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Expedi¸ ao Rio Cristalino, Mato Grosso, Julho-2004 ´ Alvaro R. De Pierro O rio Cristalino corre na dire¸ ao Sul-Norte (aprox) entre o rio das Mortes e o Araguaia, entre os paralelos 12 e 15, atravessando uma regi˜ ao ocu- pada antigamente pelo povo Xavante ate desaguar no Araguaia depois de uns 400 kms. A id´ eia de uma regi˜ ao relativamente desabitada, de uma natureza relativamente intocada e de um rio de ´ agua transparente come¸cou a fazer fun- cionar nossa imagina¸ ao desde o final do ano 2003, quando Edson sugiriu que podiamos organizar uma descida de quase todo o percurso, uns 350 kms. Depois de muitas discuss˜oes e preparativos, os dois grupos, um de S˜ ao Paulo e outro de Bras´ ılia partimos para o Norte. Os ‘paulistas’ eramos quatro: Linilson, professor da Poli-USP, Eurico, professor do Instituto de Biociˆ encias da USP, nosso nat- uralista, Carlos, fot´ ografo professional da expedi¸ c˜ao e eu, Alvaro, matem´atico aplicado da UNICAMP, um bi´ ologo frustrado, segundo Eurico. F1: Ainda em S˜ ao Paulo, (esq-dir) Carlos, Eurico, Linilson Eurico e Carlos remariam numa canoa canadense e Linilson e Alvaro nos re- spectivos kayaks. 1

Expedi˘c~ao Rio Cristalino, Mato Grosso, Julho-2004 Alvaro ...alvaro/cristalvaro.pdf · Eurico e Carlos remariam numa canoa canadense e Linilson e ... struiu uma estrada paralela

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Expedicao Rio Cristalino, Mato Grosso,

Julho-2004

Alvaro R. De Pierro

O rio Cristalino corre na direcao Sul-Norte (aprox) entre o rio das

Mortes e o Araguaia, entre os paralelos 12 e 15, atravessando uma regiao ocu-

pada antigamente pelo povo Xavante ate desaguar no Araguaia depois de uns

400 kms. A ideia de uma regiao relativamente desabitada, de uma natureza

relativamente intocada e de um rio de agua transparente comecou a fazer fun-

cionar nossa imaginacao desde o final do ano 2003, quando Edson sugiriu que

podiamos organizar uma descida de quase todo o percurso, uns 350 kms. Depois

de muitas discussoes e preparativos, os dois grupos, um de Sao Paulo e outro de

Brasılia partimos para o Norte. Os ‘paulistas’ eramos quatro: Linilson, professor

da Poli-USP, Eurico, professor do Instituto de Biociencias da USP, nosso nat-

uralista, Carlos, fotografo professional da expedicao e eu, Alvaro, matematico

aplicado da UNICAMP, um biologo frustrado, segundo Eurico.

F1: Ainda em Sao Paulo, (esq-dir) Carlos, Eurico, Linilson

Eurico e Carlos remariam numa canoa canadense e Linilson e Alvaro nos re-spectivos kayaks.

1

O 4 de julho estavamos rumo a Goias. Pernoite em Goianira, uns 10 kms

depois de Goiania (Hotel Pousada dos Viajantes, R$ 15). A BR 153, uma ver-

gonha, e quase acabou a viagem cedo depois de uma fechada por um caminhao

que tentava evitar um buraco. Mas conseguimos sobreviver.

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F2: Campos de algodao na beira da BR 153

F3: Igrejinha depois de Goias velho

No dia seguinte as 4 da tarde ja estavamos em Sao Miguel do Araguaia,

onde tinhamos que fazer os arranjos para o transporte. Ficamos analisando as

possibilidades e decidimos pela proposta original de um caminhao e um onibus

de linha alugados, marcamos o encontro com o proprietario e continuamos para

a pousada de Fio Velasco, na beira do rio Araguaia. Fio Velasco esta localizada a

uns 2 kms da primeira boca do Javaes, onde comeca a Ilha do Bananal. Naquele

local tem uma Pousada com quartos coletivos, com beliches para 6 pessoas, um

refeitorio, e um quiosque onde vendem bebidas, lembrancas (camisetas, gorros,

...) e alguns artigos de primeira necessidade como sabonete, creme dental e

outros. Tem muito espaco para acampar e um grande estacionamento que e

usado pelos grupos que descem ou sobem o Araguaia para acampar nas praias.

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F4: A pousada de Fio Velasco.

No caminho, as terras de Dom Wagner Canhedo, dono da VASP, que con-

struiu uma estrada paralela a publica (com pontes e tudo) para chegar na sede

da sua fazenda (ele nao parece estar em crise como a VASP).

F5:Linilson remando no Araguaia; semiacampamento temporario

atras

No dia 6 de manha, remamos rio abaixo com Eurico ate a primeira en-

trada do Javaes, que nessa epoca do ano esta seca. Pescamos muitas piranhas

perto da Pousada. Finalmente a noite conhecimos o Edson e seu grupo de

Brasılia. Edson e empresario e tem uma cadeia de restaurantes (a maior parte

em Brasilia), que se chama Marietta. Junto com ele, o filho Rafael, um amigo de

Belo Horizonte, Carlos, engenheiro, otro amigo que trabalha em Itamarati como

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Oficial da Chancelaria, Jose Emıdio (JE), e um sobrinho dele, outro Rafael, es-

tudante de engenharia forestal. Foi muito engracado; antes do encontro fizemos

1000 teorias sobre nossos parceiros brasilienses que nao tinham nada a ver, como

quase sempre acontece. Pensamos que um oficial da Chancelaria ia aparecer com

um uniforme de gala, cheio de cordoes, e que alem disso, ele ia ser o ponto fraco,

ja que nunca tinha remado: claro equıvoco. Apesar de que JE ficou muitos dias

extenuado, sempre conservou a simpatia e o bom humor e nunca protestou pelo

ritmo da descida.A noite do dia 6, bem tarde, para criar um pouco de suspense, chegaram

o caminhao e o onibus de Sao Miguel do Araguaia e nao foi facil. Levamos horas,

e muita elaboracao mental para conseguir carregar os barcos. Finalmente foram

as 5 canoas no caminhao, que era pequeno, e tivemos que entrar os kayaks no

onibus, por uma janela, tirando o vidro. Uma trabalheira.

Primeiro Dia, 7-7:

Cedo as 5 da manha do dia 7, partimos para o Cristalino. Em Cocalinho,

almocamos na churrascaria gaucha e pegamos o Max, garoto de 20 anos, que

conhece a regiao e ia fazer dupla com Edson na descida em canoa. Simpatico,

Max quer estudar para entrar na Polıcia Federal. A partir daı a emocao dos

trinta e poucos quilometros ate a ponte sobre o rio, que seria nosso ponto de

entrada. E as perguntas no ar: sera cristalino realmente?, muito estreito, ? nao

ficara cortado em muitos pontos?, tera suficiente agua nessa epoca do ano?.

F6:No onibus transportando os barcos

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F7: Descarregando

Nao demoramos muito em conhecer algumas respostas. O Cristalino sob a ponte

e realmente transparente, e muito estreito, talvez uns 15 metros. Parece uma

piscina.

F8: A ponte no ponto de entrada

Depois de descarregar desde o onibus que nao podia descer ate a margem,

comecou a correria para carregar os barcos: Edson e Max, Carlos e Rafael

(CC) nas canoas de madeira de 17 pes, e JE e Rafael, Eurico e Carlos nas 15

pes da Companhia de Canoagem, Linilson no kayak Akula e eu no meu kayak

Neko II. Sao aqueles momentos de emocao quando algumas pessoas (eu por ex-

emplo) descobrem que levaram muita mais carga da necessaria. Os brasilienses

levaram toneladas de agua para beber, absolutamente dispensaveis naquele rio

de agua pura e transparente. Eu parecia um retirante com uma boa parte do

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material amarrado fora dos compartimentos estancos, mas tudo bem, nao foi

muito grave, a gente aprende aos poucos. Ja na saida, a uns 30 metros, de

cara, fomos obrigados a cortar uma cerca de arame que atravessava o rio (nao

acho que isto seja legal). Com intervalos entre barcos, comecamos a descida as

2.30pm na primeira Carta topografica do IBGE (Rio Cristalino SD-22-Y-B-III)

no ponto 22L 0467100 8428600. Pouco tempo depois encontramos um segundo

arame, onde o rio corria mais rapido e era mais difıcil de passar. Linilson entrou

na agua e ajudou o resto a passar por cima.

F9: Passando o segundo arame

O rio nesse trecho continua superestreito (de 15 a 20 metros) e a agua muito

clara. Muitas arraias, mas nao muito grandes, do tamanho de um prato de

sopa, marrons e com uma pequena cauda; observamos algumas sem cauda,

talvez perdida nas mandıibulas de algum peixao. Um jacare morto. o primeiro

de muitos que encontramos na descida (pareceria que o Cristalino nao e muito

saudavel para os jacares). No primeiro dia nao deu para remar mais do que

duas horas (uns 10 kms) e acampamos numa curva do rio, ainda estreito (22L

0468444 8432258). Vimos as primeiras pegadas de onca na beira da agua. Antes

de que ficasse escuro pesquei um matrinxa (menos de um kg) e varios pequenos

tucunares. Eurico pegou a pacuseira dos brasilienses achando que era a minha,

e os peixes terminaram comidos pelos brasilienses. A noite cheguei na barraca e

um exercito enorme de sauvas estava passando a um par de metros; aconselhado

por nosso naturalista deixei elas em paz e na manha seguinte estavam apenas a

50 cms, mas nao fui perturbado.

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F10: Meu NekoII no local do primeiro acampamento

Segundo Dia, 8-7:

No segundo dia remamos relativamente pouco (uns 26 kms) apesar de

ter comecado as 8 da manha e acampado as 5 da tarde. O rio ficou mais largo

e passamos por varias fazendas com casas na margem. A primeira na margem

esquerda (22 L 0468281 8433452), a segunda na direita (22 L 0468507 8445904).

Num ponto ouvimos barulho de serras desmatando. Nesse trecho vimos iguanas

grandes nas arvores, os unicos bichos que da para se aproximar sem problemas,

que nao fogem. Ariranhas, capivaras, tucanos, garcas brancas e cinzas, e, para

variar, outro jacare morto. Decidimos almocar peixe frito e paramos numa

prainha muito bonita (22 L 0470148 8438458) com boa sombra e uma lagoa

na outra margem. Pesquei um tucunare e um matrinxa pequenos, que foram

fritados para as nossas barriguinhas e Linilson pescou outro tucunare, maior,

que foi reservado para o jantar (o pessoal de Brasılia contribuiu com outro).

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F11: O prazer de remar num rio estreito de agua clara

Continuando, numa curva do rio com agua mais rapida, me descuidei e fiquei

preso contra uns galhos, mas com a ajuda de Eurico e Carlos consegui sair.

Acampamos numa bela praia (22 L 0467447 8448968), Carlos esta bastante

cansado e eu um pouco, sao os kms de adaptacao. Normalmente o cansaco

aparece no comeco, quando o corpo esta se adaptando ao esforco, e sobretudo

ao sol, e no final, pelo desgaste. Jose Emıdio, nosso oficial da Chancelaria,

estava caındo aos pedacos, mas sempre manteve o bom humor.

F12: Jose Emıdio segurando meu Neko para descansar

Os dois primeiros dias tive uma isuportavel dor de cabeca, que sumiu completa-

mente a partir do terceiro. A noite, eu acreditei ver relampagos; Linilson disse

que eram vagalumes, mas eram mesmo relampagos e choveu pesado.

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Terceiro Dia, 9-7:

Levantada as 6.30, saıda as 7.30.

F13: Remando na madrugada

Antes de partir voltou a chover um pouco, o que fez a manha mais agradavel,

mas quando paramos para almocar, o calor ja estava novamente insuportavel.

Passamos pela serra do Cristalino, um conjunto de pequenos morros, de nao

mais de 500 metros de altura sobre a margem esquerda, o unico ponto em que

achei que o rio podia correr mais rapido, mas nada disso aconteceu.

F14: Paisagem de palmeiras

O Cristalino nao tem nada que se aproxime a uma corredeira. Depois do ponto

do almoco, o rio ficou mais largo e encontramos bastantes pescadores e pessoas

acampando, essa parte do rio deve ter acesso desde Cocalinho. Vimos muitas

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aves e apareceram os primeiros jaburus. Vamos relativamente independentes

do grupo de Edson, que normalmente demora mais para preparar o material e

tomar o cafe da amanha. Vamos nos cruzando tratando de acampar juntos, como

aconteceu nos dois primeiros dias, mas neste terceiro dia nao deu. Iam um pouco

na frente e o por do sol estava se aproximando; sempre e bom ter pelo menos

uma hora de luz para preparar o acampamento. Carlos e eu iamos na frente e

erramos por uns metros o braco principal, entramos num canal sem saıda que

tinha um bom local. Caminhamos um pouco para explorar e encontramos uma

voadeira ancorada, pegadas de anta e de humanos, mas nao as seguimos. Depois

ouvimos um tiro, e apos um tempo dois caras sairam na voadeira; deviam estar

cacando. O local era bom para acampar (22 L 0478837 8472358), muitas pegadas

de anta e veado grande, mas a quantidade de pernilongos infernal. Jantamos

sopa e macarrao, ouvimos um animal pesado caındo na agua e recebemos a

primeira ligacao externa, de minha garota Marisa. Levamos um telefone de

satelite e acertamos para ligar num horario determinado (7 a 7.30pm) para

receber ligacoes e nao gastar muita bateria. Entrar na barraca e uma operacao

para que os pernilongos nao consigam entrar, mas o barulho do lado de fora e

aterrador. Dentro da minha barraquinha ‘solo’, que parece um ataude, nao da

para se mexer muito e tem que ter uma estrategia para dormir: entrar de torso

nu ate passar o calor aoredor das onze da noite e botar a blusa do meu pijama,

e somente as tres da manha acordar para entrar no saco de dormir, ultraleve,

mas necessario nesse horario.

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F15: A minha casinha e a bagagem

Quarto Dia, 10-7:

Levantada para sair as 8. Descobrimos que o pessoal de Brasılia tinha

passado a noite a nao mais de 500 ms rio abaixo. Remamos uns 40 kms como o

dia anterior. De manha mais tiros no caminho, os malditos cacadores. Cruzamos

bastantes pessoas, a maioria pescadores e passamos por varias fazendas. Um

pequeno inconveniente: o rio num ponto bem estreito fechado por um tronco,

eu desci e passei pela margem esquerda, Linilson tentou passar por cima do

tronco, pela direita e ficou pendurado; teve que se jogar na agua para sair. Al-

gumas partes do rio eram realmente lindas quando ficava bem estreito. Alguns

jacares pequenos, vimos um grupo grande de ariranhas, muitos tucanos, garcas

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de todo tipo, muitas jacutingas, que fazem aquela barulheira. Acampamos num

local nao muito bom (22 L 0488128 8487680), um pouco descoberto e dava para

ouvir que tinha uma pista de pouso do outro lado do rio, na margem esquerda.

Passou um barco de remo com uns caras que estavam pescando com arpao. As

6 apareceram as nuvens de pernilongos. Comimos peixe (tucunare e piranha

pescados no local), arroz e linguica. Edson e o grupo de Brasılia acharam o

local ruim e continuaram alguns kms rio abaixo para acampar. Jose Emıdio

parecia esgotado (mas sempre brincalhao).

Quinto Dia, 11-7:

A noite choveu bastante e a levantada foi molhada: trovao, relampagos,

, etc. Parou as 6.30 mais ou menos, deixando a nossa vida grudada e molhada.

Nao tem nada mais chato que guardar o equipamento molhado. Neste dia,

Linilson deixou o Carlos remar no kayak, porque parecia estar muito cansado

pela canoa. Saimos as 7.45, ja sem chuva. As partes estreitas foram espetac-

ulares: alguns jacares pequenos, tucanos, muitas jacutingas, ariranhas, e vi a

primeira arraia enorme, do tamanho de um pneu, diferente das menores, mar-

rons, mas marrom com manchas claras, muitas araras. Linilson teve um pequeno

percalco quando uma aranha caiu na cabeca dele e levou uma picada sem con-

sequencias. Eu virei 3 vezes em paradas de embarque e desembarque, pura e

simplesmente por displiscencia (de fato nao aconteceu mais), meu kayak estava

muito carregado e pouco equilibrado. Vimos bastantes construcoes na beira do

rio, lamentavelmente. Encontramos a que deve ter sido a melhor praia da vi-

agem para acampar: extensa, com o rio estreito, areia muito branca e fina, cheia

de pegadas de animais, onca, ariranha, veado, e o rio fervendo de peixe. Peguei

varias piranhas e doei para o pessoal de Brasılia, que acampou junto, para com-

pletar a refeicao. A desgraca do dia foi que no escuro, na entrada da barraca,

chutei e quebrei meus oculos, e nao tinha outros. Carlos fez um conserto com

Araldite, mas decidi que nao ia usar, ja que nao sou tao miope assim. Antes da

janta apareceu um barco com motor com duas pessoas: um velho com aspecto

de patrao, no leme, e o outro, indıgena com aspecto de servente. O sujeito com

aspecto de patrao chegou perguntando: “Quem e o chefe?”, Eurico rapidamente

respondeu que aı nao tinha chefe e que estavamos de passagem descendo o rio,

que tinha um professor da Poli-USP (Linilson), um da Biociencias da USP (o

proprio Eurico), um professor da UNICAMP (eu), um empresario de Brasılia

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(Edson), um fotografo famoso (Carlos) e o cara ficou mais tranquilo e comecou

a se explicar e a bater papo. Era o propietario do local e estava preocupado pela

invasoes e tinha que ficar vigiante. Se apresentou como o ‘comandante’ Miguel,

morava em Goiania, tinha sido piloto da Varig-Cruzeiro nos 70 e comprado a

terra por preco de banana por influencia do Medici, porque era amigo amigo

dele, ou amigo de um amigo. Mais ou menos 2000 hectares. Eurico perguntou se

tinha algo na terra: cultivos, gado, ... ‘Nao, estou esperando que o preco suba’;

nesse momento pensei no MST (as coordenadas da praia eram 22 L 0495774

8509750). Depois do papo amigavel, o comandante Miguel foi embora, ofere-

cendo o telefone da casa e que podiamos ficar o tempo que quisessemos no local.

Sexto Dia, 12-7:

Foi um dia de calor supremo, mas remamos mais de 40 kms. A noite,

o calor dentro da barraca era infernal, mas a quantidade de pernilongos fora

desaconselhava abrir para a entrada de ar. Durante o dia tudo ficou muita mais

exuberante: varias arraias gigantescas, mais jacares e deu para ver alguns pin-

tados. O grupo de Brasılia viu uma anta cruzando o rio. Os paulistas paramos

para almocar numa local lindissimo (coordenadas 22 L 0506581 8521092). O

rio estreitava ate uns 10 ms fazendo uma curva a direita. Em frente, antes de

estreitar, uma pequena ilha, e muita vegetacao, na margem direita, a prainha

onde ficamos. A agua clarissima. Uma abundancia enorme de peixes, piran-

has em quantidade, cada lancamento um ataque. Pela primeira (e unica) vez

pescamos varias cachorras, tambem tucunares, e com algumas piranhas, sem-

pre presentes, foram o jantar, com arroz e ervilhas. No final do dia houve um

pequeno desentendimento entre Linilson e Carlos por causa da decisao de parar

(Linilson queria continuar remando ate as 5 e Carlos queria parar, eram 4 hs).

Com aquele calor e difıcil manter a cabeca fria. Acampamos, naquela praia (22

L 0512498 8528074), bastante bonita da briga, e fomos tirar umas fotografias do

mato atras da praia com Carlos. Tinha muita areia e os brasilianos chegaram

depois para se instalar. Foi o momento que decidimos nao mais usar o filtro de

agua, muito trabalho para uma agua que era realmente muito limpa: com as

pilulas foi suficiente (talvez tambem desnecessarias). Esse dia, lamentavelmente,

minha filmadora parou de funcionar e foram somente 16 minutos de filme; talvez

entrou humidade. Choveu um pouco a noite para diminuir o calor.

Setimo Dia, 13-7:

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Dia duro. Um solazo, e remamos mais de 40 kms. O rio, a maior parte

do tempo foi muito largo, as vezes quase 100ms, uma verdadeira lagoa, sem cor-

renteza, e muitas vezes com vento contra, vimos alguns botos. Nao tem tantos

como no Javaes ou no Araguaia. Sabiamos pelas cartas que tinha uma balsa

atravessando o rio no ponto marcado com o numero 23 (22 L 0518000 8540300),

onde devia ter um posto de venda de bebidas. Foi uma correria, cada curva era

a visao de uma cerveja gelada. E chegamos. No ponto tem uma ponte destruıda

ou semiconstruıda, e a balsa. Para nao me acostumar mal tomei somente duas

cervejas e comi algumas das minhas barras de cereal.

F16: Aquela cerveja na ponte

Depois remamos mais 14 kms e acampamos frente a enorme fazenda Pinheiral,

segundo nos falaram, de Dom Pedro Vaz, que mora em Goiania. Nesse ponto o

rio faz uma curva a esquerda e tem uma lagoa a direita.

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F17: Chegando na praia do acampamento

Sobre a margem direita, estao as casas da fazenda (22 L 0517988 8548466).

F18: Meu Neko com a fazenda de Dom Pedro no fundo

Enviamos nosso representante diplomatico JE para ver que tinha de interessante

e pedir permissao para acampar. O patrao nao estava (perdimos uma recepcao

de primeira), mas o encarregado deu a permissao. Durante o dia houve outra

pequena discussao entre Carlos, Eurico e Linilson, aparentemente porque nao

avisaram a Linilson que iam parar para descansar; nesse ponto, quase perdi

minha maquina fotografica, que deixei na partida sobre o conves. Mas por sorte

consegui detectar antes que caisse. Vimos pouquissimos bichos, algum jacare,

uma famılia de ariranhas que apareceu de repente ao lado do meu kayak, e

nada mais. A noite jantamos arroz com linguica e fiquei um pouco diarreico,

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talvez exagerei com as passas, o que me levou varias vezes a meditar no mato.

A fazenda tinha um gerador que somente apagaram as 10 horas. Eu estava

bastante cansado (piorado pela diarreia), um pouco de dor no tendao do braco

direito, mas nada do outro mundo. Tinhamos remado ate alı mais ou menos 240

kms. Estava mais fresco que o dia anterior dentro da barraca (a chuva enche,

mas tambem ajuda).

Oitavo Dia, 14-7:

Foram mais 40 kms num rio muito largo e correndo pouco, muito calor

e poucos animais.

F19: Carlos e Rafael Costacurta

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F20: Eurico e Carlos Kipnis (pilotando)

F21: Edson e Max na superpraia

O fator psicologico e essencial e, nessas condicoes, eu fico muito cansado. De

manha, na saıda, estava tao mal condicionado psicologicamente, que remei na

direcao oposta, onde tinha a lagoa. O rio continuava largo, mais escuro, e nao

deu para ver muita coisa.

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F22: O rio mais largo

F23: Carlos e Eurico descansando e se refrescando

Passei algumas ariranhas e um grupo enorme de macacos bugio, fazendo aquele

barulho infernal. Nao vi nenhuma arraia. Acampamos numa praia boa (22 L

0518960 8571510) sobre a margem direita. Dava para ouvir barulho de gente

conversando, era um grupo que acampava rio abaixo a uns 500ms na margem

esquerda, que vimos no dia seguinte.

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F24: A casinha do Carlos na praia

Essa noite acabou a primeira bateria do GlobalStar, mas usei a segunda para

falar com Marisa, uma necessidade. Ela ja tinha tentado ligar quando acabou

a bateria.Nono Dia, 15-7:

Nao dormi bem, mas me recuperei o suficiente. O que na noite anterior

me parecia impossıvel aconteceu: remamos 50 kms e nao tive problemas com

o cansaco. Novamente o estado psicologico tem um papel essencial, mas ainda

nao consigo entender por que na 3a feira 14 estava morto e um dia depois com

disposicao para remar 50 kms.

F25: Saıda ao amanhecer

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F26: Descansando

A paisagem mudou, a mata mais densa e fechada, com poucas praias, o que nos

fez pensar seriamante em tentar chegar na pousada da foz naquele mesmo dia,

simplesmente por falta de lugar para acampar; mas teria sido terrıvel: 65 kms,

e os ultimos 15 no escuro, sem lua, na parte mais complicada do rio, com muitos

bracos e lagoas. Por sorte, encontramos uma praia pequena com espaco para os

dois grupos e houve, pela primeira vez, um fogo comum.

Durante a descida, pela primeira vez erramos o braco; eu ia na frente

(mea culpa) e os paulistas me seguiram. O volume de agua comecou a diminuir,

ficou muito raso e tivemos que puxar os barcos varias vezes. Pensei no pior,

ter que voltar depois de ficar sem agua, mas depois de sair dos barcos varias

vezes conseguimos reencontrar o braco principal. Mais na frente apareceu um

rebanho de bois na margem esquerda, que comecaram a fugir desesperadas do

meu kayak, ate que decidiram cruzar o rio. Me senti um kayakista boiadero.

Ouvimos alguns bugios fazendo barulho, vimos jacares, alguns jaburus. Tem

um aspecto de mini-pantanal, como dizem, mas nao tanto.

Dessa vez, a noite, quem estava cansado e caindo aos pedacos, foi Eurico,

comimos uma fritada de piranhas, macarrao e sopa e ele foi imediatamente a

dormir, depois de um antialergico e um tylenol.

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F27: Para o jantar de piranhas

F28: Todos juntos

F29: Jantando as piranhas com arroz

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No final da tarde, Eurico entrou na agua e foi atacado por uma piranha, algo

pouco comum, uma mordida no dedo do pe; saiu rapidamente da agua antes de

que chegassem as otras, atraıdas pelo sangue.

Decimo (e ultimo) Dia, 16-7:

Foi um dia emocionante, mas nao sabiamos que ia ser assim. Levantada

as 6 da manha para remar os ultimos 15 kms ate a pousada do Cristalino, um

pouco antes do rio chegar no Araguaia (ponto 35 22 L 0534300 8601500). Saımos

as 7.30 e chegamos as 10.30 na pousada.

F30: Cansado e barbudo mas nao tanto

Foi aquele trabalho para tirar o equipamento, limpar e secar tudo, e carregar

no ‘canoao’. O tal de ‘canoao’ era um barco de alumınio de 10 ms com motorinterno traseiro. O piloto, Artur, branco, velho e barrigao, falava bastante

enrolado, parece que nao via e tambem nao ouvia muito bem, mas conhecia o

rio como a palma da mao. Comecamos fazendo algumas piadas sobre o assunto

que depois iamos ter que repensar. Carregamos os barcos perpendiculares ao

canoao, que devia ter uns dois metros de largo, sobressaindo aoredor de 1.5 mts

de cada lado, o que me produzia alguma preocupacao, especialmente porque

meu barco ia na frente.

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F31: O canoao carregado

Como Artur afirmava que iamos demorar umas 5 horas, ninguem se preocupou

muito e fomos almocar com calma. O almoco, uma delıcia com frango, pirarucu

e tartaruga (sera que esta permitida a pesca do pirarucu e a caca da tartaruga?).

Ao meiodia saımos rio acima pelo Araguaia.

F32: Posse final: Max, Carlos, eu, Linilson, Rafael, Edson, JE,

Eurico, Rafael Costacurta, Artur (Carlos Kipnis e um ponto entre

Edson e JE)

Depois de duas horas meu GPS marcava que faltavam em linha reta 24 kms dos

32 que faltavam no comeco (tinha as coordenadas de Fio Velasco, 22 L 0554378

8575696,e a estimativa era que pelo rio , a distancia era um pouco mais de 50

kms) o que me fez suspeitar que iamos demorar muito mais do que 5 horas.

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F33: No calor maternal do Araguaia

O sol estava insuportavel e tinha que me refrescar submergindo minha gorra na

agua. As vezes Artur largava o leme e Carlos mantinha o rumo; mais de uma

vez a proa do meu kayak entrou na agua, nas balancadas. Passaram 3 horas, 4

horas, vimos varias aldeias caraja na Ilha do Bananal

F34: Aldeia caraja

, cruzamos com varias canoas de indios pescando,

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F35: Carajas pescando

comecou a ficar escuro, e nada de chegar, como eu ja estava suspeitando.

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F36: E nada de chegar

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F37: E a preocupacao com meu pe

A noite fechou e meu GPS ainda marcava uma distancia de 4 kms em linha retapara chegar no destino. Nao sei como Artur conseguia encontrar o caminho,

marcava a agua e a margem com uma pequena lanterna e ordenou apagar todas

as outras para nao confundir. Comecamos a pensar que Artur devia ser bom

mesmo porque a visibilidade era zero, sem lua. Num momento passamos a 50

cms de um tronco de arvore semisubmerso, uma batida poderia ter significado

virar e uma catastrofe, com o ‘canoao’ oscilando com o peso dos barcos. Quando

o GPS marcou 1000 ms de distancia de Fio Velasco respirei aliviado. A chegada

teve tambem alguns momentos de emocao: na aproximacao, meu kayak ia bater

num barco amarrado, mas, por sorte tinha o remo perto e consegui afastar o

perigo.

F38: Descarregando na noite de Fio Velasco

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Finalmente descarregamos (eram umas 7.30pm), preparamos tudo para o dia

seguinte, nos despedimos dos amigos brasilienses e fomos dormir.

Faltava o pesadelo da BR153 para voltar para casa, mas conseguimos so-

breviver, senao nao estaria escrevendo a estoria. Um bom almoco em Goias

velho

F39: Goias velho

foi bom para relaxar. O Cristalino valeu a pena.

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