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FABRINA MAGALHÃES PINTO O DISCURSO HUMANISTA DE ERASMO: Uma retórica da interioridade Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio. Orientador: Prof. Antônio Edmilson Martins Rodrigues Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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FABRINA MAGALHÃES PINTO

O DISCURSO HUMANISTA DE ERASMO: Uma retórica da interioridade

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Antônio Edmilson Martins Rodrigues

Rio de Janeiro

Dezembro de 2006

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Fabrina Magalhães Pinto

O Discurso Humanista de Erasmo: Uma Retórica da Interioridade

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Orientador

Departamento de História - PUC-Rio

Profº Francisco José Calazans Falcon Departamento de História - UNIVERSO

Profº Danilo Marcondes de Souza Filho Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Profº Sergio Cardoso

Departamento de Filosofia – USP

Profª Maria das Graças de Souza Departamento de Filosofia – USP

Prof. João Pontes Nogueira

Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais PUC-Rio

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2006.

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Todos os direitos reservados, é proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da Universidade do autor e do orientador.

Fabrina Magalhães Pinto

Graduou-se em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 1999, e ingressou no curso de Mestrado em História Social da Cultura na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro no mesmo ano, concluindo-o em 2001. Iniciou o doutorado na mesma instituição em 2002, concluindo-o em 2006.

Ficha Catalográfica

CDD: 900

CDD: 900

Pinto, Fabrina Magalhães O discurso humanista de Erasmo : uma retórica da interioridade / Fabrina Magalhães Pinto ; orientador: Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – 2006. 246 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Renascença. 4. Humanismo. 5. Erasmo. 6. Retórica. 7. De copia rerum ac verborum. I. Rodrigues, Antônio Edmilson Martins. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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A todos aqueles que contribuíram

para esse projeto. A Sergio Xavier, por todos os bons momentos.

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AGRADECIMENTOS Ao meu orientador e amigo Antonio Edmilson M. Rodrigues, por sua inabalável

irreverência durante todos esses anos e por seu constante acompanhamento e incentivo que

se iniciaram ainda nos tempos de graduação e se prolongaram até os dias de hoje,

consolidando a grande admiração que desde tempos remotos sempre senti por ele. É, sem

dúvida, com grande pesar que agora me despeço.

Ao CNPQ, pela bolsa fornecida e aos professores e funcionários do Programa de Pós-

Graduação em História da PUC-Rio.

A Edna, por todo o carinho e dedicação com que trata todos os alunos, resolvendo

sempre todas as complicações em que me meti ao longo desses seis anos de permanência na

PUC-Rio.

A Marcelo Jasmim, grande mestre, pelo apoio, carinho e ajuda fundamental logo no

início desse projeto sugerindo autores e caminhos possíveis para o andamento dessa

pesquisa.

A Ricardo Benzaquen, pelos cursos que tive a oportunidade de assistir e que tanto

contribuíram para a elaboração desta tese. Agradeço em especial o curso oferecido por ele

no IUPERJ, onde foram discutidas mais diretamente algumas temáticas renascentistas e

outras especificamente erasmianas, que expandiram os horizontes desse trabalho.

A Danilo Marcondes, por seus muitos conselhos e sua generosidade em todas as

contribuições feitas durante o exame de qualificação, assim como por todas as conversas

que tivemos recentemente e que tanto contribuíram para o desenvolvimento deste texto.

A Sérgio Cardoso, amigo recente e grande formador de almas, por me inspirar,

tantas vezes me aconselhar e por me receber em seu grupo de estudos, onde foram

discutidas as mais pertinentes questões de retórica e filosofia antiga, sem as quais

certamente este trabalho não poderia ser concluído. Desde 2005, quando tive a primeira

oportunidade de participar das reuniões mensais do grupo, perdi a conta de quantos e-mails

lhe enderecei, finalizando com a frase “mais uma vez, obrigada”.

A Maria das Graças, por sua sempre simpática acolhida em São Paulo.

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Ao professor Francisco Falcon, quem muito contribuiu para esse trabalho desde os

tempos do mestrado.

A minha grande amiga Janaína, maravilhosa companheira de tese, por seu apoio

diário em nossas conversas ao telefone, onde dividimos meses e meses de muitas angústias,

de muita cumplicidade e muita força para finalizar esse trabalho.

Às minhas amigas de sempre e de toda vida Leila Bianchi e Andréa Lemos Xavier

que, comigo, formaram um sempre muito bem-humorado grupo de trabalho e discussão, e

que comigo estiveram em muitos e muitos agradáveis e lúdicos momentos.

A todos os integrantes do Grupo de Retórica, coordenado pelo professor Sérgio

Cardoso, pelo carinho e incentivo ao debate e ao estudo sério e minucioso, prova inegável

da necessidade do trabalho coletivo.

A Rhalf, irmão querido, por nossos cafés ao fim do dia sempre regados com ótimas

conversas e, como não poderia deixar de lembrar, por sua inafiançável ajuda nesse trabalho.

À minha querida mãe Lourdes e ao meu pai Rubens, que, mesmo distantes sempre

acompanharam de perto todas as minhas angústias e devaneios, oferecendo sempre um

constante carinho, apoio e permanente estímulo em todos os momentos.

Ao querido Sérgio Xavier, por sua ajuda e seu amor, impossíveis de serem medidos,

mas fundamentais na minha vida.

A Ronaldo Monteiro, por seu carinho e amizade, além é claro, de sua sempre

oportuna e fundamental compreensão de que o que vale na vida é viver com prazer.

Aos meus maravilhosos e pacientes amigos Luciano, Beatriz, Débora e Janine que

suportaram os meus recorrentes furos.

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RESUMO

PINTO, Fabrina Magalhães; RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. O Discurso Humanista de Erasmo: uma retórica da interioridade. Rio de Janeiro, 2006, 246 p. Tese de Doutorado – Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Cícero talvez tenha sido, entre os escritores clássicos, o orador que maior atenção dispensou à questão da relação entre filosofia e retórica (sabedoria e eloqüência) unindo novamente as duas disciplinas anteriormente separadas por Platão. Erasmo de Rotterdam, como um dos principais humanistas do século XVI, não apenas não ficou imune ao peso desta tradição, como foi um dos seus mais influentes catalizadores, revalorizando a necessidade de um amplo saber para a formação do homem e para a instauração da sua dignidade. Para Erasmo, o homem no momento do nascimento ainda é uma matéria bruta, sendo a educação a maior responsável por sua formação moral e intelectual. Deste modo, o aprendizado dos studia humanitatis, cuja defesa aparece expressa já em suas primeiras obras, era condição fundamental tanto para a plena realização de seus ideais de renovação da cristandade e da instauração de uma fé mais pura, quanto para a elaboração de uma reforma educacional. A partir da centralidade da linguagem retórica em seus trabalhos, elegemos como problema central desta tese a análise de duas obras em que Erasmo explicita claramente a importância desse preceito antigo, ou seja, da união entre res e verba, representado especialmente no Ratio studii e no De copia rerum ac verborum, publicados respectivamente em 1511 e 1512. Nelas Erasmo desenvolve seu interesse pela pureza do latim, ensinando sob os moldes de Cícero e Quintiliano, como escrever e ler bem os clássicos. Considerados por muitos analistas os primeiros e mais importantes manuais educacionais da Renascença, sua importância deriva não apenas do tratamento de uma correta apreensão das línguas clássicas, mas também da necessidade iminente de sua apreensão prévia para que o leitor estabeleça a maior proximidade possível com a palavra das Escrituras em seu estado mais puro, principal meio para persuadir os homens da importância dos princípios de uma filosofia cristã.

PALAVRAS-CHAVE

Renascença, Humanismo, Erasmo, Retórica, De Copia.

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ABSTRACT

PINTO, Fabrina Magalhães; RODRIGUES, Antonio Edmilson M. The Discourse of Erasmus: a rhetoric of interiority. Rio de Janeiro, 2006, 246 p. PhD Dissertation – History Department. Pontifical Catolic University.

Perhaps Cicero had been the unique orator among classical writers that gave especial attention to the relation between philosophy and rhetoric (wisdom and eloquence) linking these two disciplines once separated by Plato. Erasmus of Rotterdam, one of the most important humanists in sixteenth century, didn’t stay unaware of this tradition, but was also one of its most influent catalysts, pointing the necessity of vast knowledge for the dignity of human being. Erasmus consider that man at birth is still a substance rude, education is the major responsible for his moral and intellectual formation. Thus, the learning of studia humanitatis, whose defense is clearly in his early books, was a fundamental condition for complete realization of the ideals of Erasmus about renovation of Christianity, appearing of pure faith and educational reform. Considering the importance of rhetorical language in Erasmus works, we have chosen for the central purpose of this tesis the analysis of these two books that reveals the importance of classical precepts, that is, the union between res and verba in Ratio studii and De copia rerum ac verborum, respectively published in 1511 and 1512. In these two books Erasmus develops his interest on the purity of Latin, taught with ideas of Cicero and Quintilian, how to read and write the classics. Considered by many the first and the best educational manuals of Renaissance, these works are important not only for the correct apprehension of classical tongues, but also to the necessity of their imminent apprehension to the reader and correct understanding of the Scriptures in its purest state, the principal step to convince men about Christian philosophy.

KEYWORDS

Renaissance, Humanism, Erasmus, Rhetoric, De Copia

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SUMÁRIO

1. Introdução

2. O resgate da ars rhetorica dos antigos na pregação cristã de Erasmo 20

2.1 A união entre retórica e filosofia em Erasmo 20

2.2 A ambigüidade erasmiana: a preponderância da retórica sobre a filosofia 31

2.3 A influência de Lorenzo Valla na recusa erasmiana da razão 39

2.4 O papel da herança ciceroniana nos esforços humanistas de

reconciliação entre retórica e filosofia 47

2.5 As origens da retórica 53

2.6 A educação sofística e a crítica platônica:

a separação entre retórica e filosofia 59

2.6.1 A crítica da escrita no Fedro de Platão ou a revisão de seu

posicionamento no Górgias? 69

2.7 A condenação moral da retórica e sua superação 74

2.8 A conciliação ciceroniana entre retórica e filosofia 82

2.8.1 A retórica da verossimilhança de Cícero 88

3. Retórica, Educação e a Dignidade do Homem na Pedagogia Humanista 89

3.1 A retomada e a reelaboração dos ideais ciceronianos na Renascença 95

3.2 A retórica a serviço da formação moral do espírito 102

3.2.1 A primazia da retórica na pedagogia humanista 111

3.3 A renovação humanista, a “Dignidade Humana”

e os princípios da filosofia cristã 129

4. Palavra, Presença, Escrita: em Direção a uma Retórica da Interioridade 133

4.1 O ceticismo erasmiano e a valorização da linguagem 133

4.2 O argumento da fé na eloqüência de Erasmo 152

4.3 A verdade prática 171

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5. A Renovação do Currículo Humanista: uma análise do Rationne Studdi

e do De Copia verborum ac rerum 180

5.1 O Rationne studdi 184

5.2 De Copia verborum ac rerum 202

5.3 As origens e os usos da copia 206

5.4 A copia verborum 209

5.5 A copia rerum 218

6. Conclusão 231

Referências Bibliográficas 235

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1. Introdução

Não tive no Elogio da Loucura objetivo diferente do de meus outros escritos, embora por uma via diferente. No Manual do Soldado Cristão, tratei simplesmente de expor a vida cristã. No livrinho sobre a Educação de um Príncipe, expus abertamente os princípios com que convém que um príncipe seja instruído. No Panegírico, sob o véu do elogio, tratei obliquamente do mesmo assunto, que já havia tratado abertamente no outro. E as idéias expressas na Loucura, não são nada diferentes das que estavam expressas no Manual, mas escritas em brumas.1

Este fragmento é parte de uma carta escrita por Erasmo de Rotterdam ao seu amigo

e teólogo Martim Dorpius, em 1515, pouco tempo após a publicação do Elogio da Loucura

e em defesa dessa obra. Suas declarações sobre a unidade essencial de seu ideário, expresso

no entanto em estilos tão diversos, suscitaram as reflexões desenvolvidas neste trabalho.

Como podemos observar, nesta carta o humanista ressalta logo nas primeiras páginas, a

semelhança entre as temáticas tratadas por ele no Enquiridion2, publicado em 1503, no

Elogio da Loucura, publicado em 1511, e no Manual para um Príncipe Cristão3, publicado

em 1516, embora estes textos cumpram, pelo menos aparentemente objetivos bastante

diferenciados.

O Enquiridion também conhecido como Manual para um soldado cristão, é fruto da

conversão do humanista holandês ao Evangelho de Cristo, por isso, todo seu esforço nessa

obra se concentra na renovação da Igreja, da teologia e da religiosidade popular, tendo

como base a Bíblia em oposição ao formalismo monástico e aos silogismos sorbônicos que,

mais preocupados com as investigações científicas sobre a natureza divina e os mistérios

que envolvem a Trindade ou a ressurreição, por exemplo, deixam de lado o cultivo de uma 1 Carta de Erasmo ao amigo Martim Dorpius em resposta as críticas que este teólogo teria feito a publicação do Elogio da Loucura. Dorpius fez-se o porta-voz dos teólogos do Colégio de Louvain, deixando claro seu descontentamento em relação as acusações erasmianas contra a classe clerical. Cf.: Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 115. 2 Erasmo. Enquiridion. Manual del Caballero Cristiano. Introduccion, traduccion y notas de Pedro Rodriguez Santidrian. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1995. 3 Nesta obra Erasmo não apenas adianta alguns preceitos que posteriormente serão desenvolvidas pelos pensadores políticos do final do século XVI, como também retoma várias idéias que já haviam sido

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fé pura e interiorizada, cujo modelo essencial é Cristo. Nesta obra Erasmo deixa claro a

mensagem que queria difundir por toda cristandade: a de que o homem deveria se armar, tal

como um cavaleiro, mas com a arma da palavra oferecida por este Manual, para enfrentar a

batalha da vida mundana contra a carne e contra o demônio. Por isso ele elabora

cuidadosamente vinte e duas regras para o verdadeiro cristão estar apto a agir contra as

ilusões, os vícios e as tentações que a todo momento se impunham para afastá-lo do reto

caminho deixado por Cristo. Pacifista, essa era a única guerra justa e aceitável para ele.

Como afirma Bataillon4, esse livro é um tratado sobre o cristianismo interior, onde

o homem deve se colocar contra os inimigos de Cristo, abandonando principalmente as

superstições e os vícios, as peregrinações, a adoração às relíquias, o culto desmedido aos

santos e a Virgem, enfim, todo tipo de ignorância religiosa que desorienta e afasta os

cristãos das verdadeiras fontes de sabedoria, definidas pelos ensinamentos mais simples de

Cristo, que, se interiorizados como conduta, contribuiriam para uma profunda renovação

espiritual. Assim, Erasmo convida cada homem a transformar-se, colocando à sua

disposição o conhecimento de duas armas fortíssimas para enfrentar os males impostos pelo

demônio, pelos vícios da carne: a oração e o conhecimento da lei divina, transmitida a

todos pela Palavra pura das Escrituras.

O Enquiridion, embora muito pouco conhecido atualmente, alcançou um grande

número de impressões durante o século XVI, sendo publicado em oito línguas diferentes

em menos de quinze anos. Bataillon5 atribui esse sucesso à eficácia de sua narrativa de tom

popular e íntimo em vez de erudito e doutoral. Ainda avesso ao tom professoral, porém sob

uma forma diversa, seus alvos eram os mesmos no Elogio da Loucura6, ou seja, a crítica

mordaz aos teólogos, frades e monges lascivos e ignorantes que corrompiam a verdadeira

religiosidade cristã. Combatia em ambas as obras a concepção tradicional do sentimento

cristão pautado na obediência às hierarquias eclesiásticas, enquanto detentoras exclusivas

do conteúdo da mensagem divina, assim como criticava a ritualização da fé, em cultos e

cerimônias considerados por ele como meras superstições e práticas de caráter puramente tratadas no Enquiridon. Cf.: Erasmo de Rotterdam. Educacion del Principe Cristiano. Madri: Biblioteca de autores cristianos, 1995. 4 Bataillon, Marcel. Erasmo e Espanha: Estudios sobre la Historia Espiritual del Siglo XVI. (Prólogo da edição francesa, p. 14) México: Fondo de Cultura Económica, 1996. 5 Idem, p. 14.

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externalizante, face ao imperativo maior da vida conforme os ensinamentos cristãos, a

partir de uma conversão interior. Em ambas as obras, sustentava a mesma solução para

extirpar "as deformações introduzidas na vida espiritual dos cristãos"7, que seria baseada,

então, no acesso de todos os homens à Palavra divina mais simples e direta das Escrituras.

Privilegiava com isso um cristianismo capaz de promover um contato direto com a

divindade, tal como explicitava no Enquiridon, e tal como reafirmaria oito anos após a

edição do Manual, usando, no entanto, outra estratégia discursiva: no lugar de seu modo tão

claro, simples e direto, a sua perspectiva no Elogio torna-se ambígua e satírica. Ele

supunha, como diz:

Ter encontrado o meio, graças a este procedimento, de [se] insinuar, por assim dizer nas almas delicadas e curá-las enquanto as divertia. Notara muitas vezes que este modo engraçado e alegre de dar uma opinião é o que logra mais êxito em muita gente. (...) Platão, [por exemplo], filósofo tão ponderado, sabe que é possível, pela alegria do vinho dissipar certos vícios que não poderiam corrigir pela austeridade; e Flaco julga que a opinião dada rindo não tem menos efeito que a séria. Que impede, proclama ele, de dizer rindo a verdade? Não é sem razão que os dois grandes retóricos, Marco Túlio e Quintiliano, dão com tanto cuidado os preceitos sobre os modos de provocar o riso. (...) Que meio mais fácil se pode imaginar para sanar os males comuns da humanidade? O prazer inicialmente alicia o leitor, e, depois de tê-lo aliciado, prende-o.8

No Manual para um príncipe cristão, por sua vez, ressurgiam os mesmos ideais

num formato novo, ligado ao objetivo próprio de sua composição, isto é, a persuasão do

príncipe Carlos para que seguisse os princípios da vida cristã e não aqueles de uma razão

exclusivamente política presente no Príncipe de Maquiavel, escrito um ano antes, em 1515.

No Manual o humanista tratava da necessidade prática premente em seu tempo de uma

renovação geral da cristandade, dirigindo-se aos ânimos de quem detinha um grande poder

para liderar uma profunda transformação das instituições e costumes. Para tanto, Erasmo

retoma rapidamente sinceras orientações morais para a instrução de um príncipe, lhe

propondo, sobretudo, que seja sábio, pois, quanto mais sábio ele for, maior será a felicidade

da república, já que se manteria atento e vigilante diante da ambição, da ira, da adulação ou

6 Sobre as sucessivas publicações do Manual no século XVI ver a Introdução de Pedro Rodriguez Santidrian in: Erasmo. Enquiridion, p. 18. 7 Ibidem, p. 28. 8 Ibidem, p. 115.

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de qualquer outro vício que pudesse vir a corromper o bom governo. Mas, o conselheiro

devia, acima de tudo, desenvolver no príncipe os valores da devoção e do verdadeiro

cristianismo, vivificando nele as virtudes da bondade, da honestidade, da caridade e do

amor ao próximo.

Comprometido com uma proposta cristã de caráter renovador, a cultura adquirida

pelo príncipe jamais, nesta perspectiva, poderia ser um fim em si mesma, senão um meio de

influenciar e transformar sua conduta como chefe político, assim como a de seus súditos.

Desejando, portanto, que a mensagem cristã tivesse o maior poder possível, Erasmo se

propõe no Manual para um Príncipe Cristão a educar aquele que considerava como a

cabeça do corpo político e social para que todo ele pudesse ser plenamente regenerado.

Como podemos perceber, apesar das diferenças formais entre essas três obras, a

preocupação do humanista com a filosofia cristã está presente em todos elas, definida

essencialmente, como já vimos, como a busca por uma fé interiorizada, depurada de todo

elemento supérfluo, ligado à dimensão externa dos cultos tradicionais e da autoridade da

Igreja. O cristianismo humanista centrava-se na figura de Cristo como arquétipo da

perfeição do homem em sua semelhança com a natureza divina em conformidade com a

inspiração paulina, cuja base assentava no contato do homem direto com Deus. A

harmonização deste ideário com o resgate humanista dos valores da cultura clássica e

principalmente das técnicas retóricas para o discurso persuasivo é questão central deste

trabalho. Afinal Erasmo escolhia intencionalmente escrever ora claramente, ora usando

uma linguagem mais alegórica e envolta em "brumas", como ele mesmo diz na carta a

Dorpius para tratar das mesmas temáticas a fim de estender o quanto possível os poderes da

persuasão das suas idéias. Assim, no Elogio procura provocar o riso se utilizando da ironia

e do deboche, tal como nos textos antigos de Luciano, para atrair um número maior ainda

de leitores do que havia atraído anos antes com o Enquiridion. O que podia funcionar

também como uma alternativa para que o humanista pudesse reativar livremente suas

críticas, porém de forma mais cautelosa, já que é indireto o discurso do Elogio, proclamado

pela Loucura. Podemos nos questionar ainda sobre até que ponto esta repetição intencional

do autor da mesma temática poderia exemplificar de variação dos estilos, dos ornatos e das

palavras, cuja importância salientava em seus tratados sobre o estilo.

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Foram estas questões que orientaram de um modo geral o interesse pelo exame das

obras de Erasmo neste trabalho, tratamento que nos levou a determo-nos mais nos únicos

textos em que o humanista aborda mais claramente e formalmente as questões retóricas: o

Rationne studdi e o De Copia verborum ac rerum, publicados respectivamente em 1511 e

1512. O Rationne, um dos primeiros textos da Renascença a sintetizar os ideais humanistas

influenciou por muito tempo a composição de diversos outros manuais educacionais por

outros autores, especialmente na Inglaterra. Mas Erasmo analisa mais cuidadosamente as

questões relativas ao ensino e a incorporação dos preceitos retóricos nos modelos

pedagógicos no De Copia, tratado mais extenso onde ele enuncia as figuras gramaticais

mais importantes para a construção de um discurso ora abundante ora conciso em palavras,

ressaltando a necessidade do aluno treinar essas duas variantes em diversos estilos e temas

diferenciados, demonstrando neste domínio a excelência de seu juízo, sua criatividade e

inventividade.

Estas obras, tratadísticas e pedagógicas, escritas para serem aplicadas no colégio de

São Paulo, um dos principais centros voltados para a educação humanística na Inglaterra,

representam bem, por sua extensa influência no pensamento humanista, a imensa

importância que era atribuída à arte da palavra neste contexto. Na enunciação dos preceitos

e técnicas argumentativas próprias do bom discurso, Erasmo, nos apresentava os princípios

que determinavam sua atividade literária, no apreço à habilidade artística de variação nos

mais diversos estilos retomada da Antigüidade para responder às novas questões de seu

tempo. É aqui que ele expõe suas estratégias, seus argumentos, as possíveis e mais vastas

formas de uso da retórica, o emprego correto dos estilos, em quais autores buscar os

conhecimentos mais adequados.

Dedicamos, assim, o capítulo 1 deste trabalho a uma análise do papel da retórica na

Antigüidade, cultuada nos manuais humanistas principalmente no resgate dos grandes

modelos de Cícero e Quintiliano. Importante neste sentido é o exame da célebre ruptura

iniciada por Platão entre retórica e filosofia. Da obra de Platão emerge a crítica filosófica à

retórica como arte dos raciocínios falaciosos e da defesa do que é moralmente condenável,

já que oposta à contemplação das idéias eternas, seu uso se punha no domínio contingente

dos negócios humanos. Para Platão portanto, a retórica se definia em relação à filosofia,

como simulacro e engano quanto à verdadeira essência das coisas. Operando para atingir os

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sentidos dos homens com a persuasão, a retórica, nesta perspectiva, se opunha à razão, ao

conhecimento contemplativo e científico da verdade, para além da dimensão imediata da

vida humana. Platão atacava então a prática dos oradores de seu tempo como disseminação

da falsidade subordinada em todos os seus recursos discursivos à obtenção do êxito da

persuasão para as causas mais diversas, não necessariamente boas moralmente9.

Os humanistas em geral, não aceitarão a noção platônica, mas sim aquela de Cícero,

intentada três séculos mais tarde, no contexto romano, para reaproximar os objetivos da

retórica com os da filosofia, conferindo-lhe maior dignidade e um poder mais amplo de

ação. O novo valor atribuído por Cícero10 à retórica ligava-se à preocupação essencial no

mundo romano com uma moral da vida prática, ligada aos seus próprios imperativos, que

não eram da busca de uma verdade absoluta e transcendente mas sim da boa conduta, do

melhor modo de agir na vida cotidiana e imediata, domínio humano por excelência, dentro

do qual só podiam ser enunciadas aproximações da verdade. Portanto, adotar a retórica

como princípio norteador da vida cultural e intelectual, mediante o resgate das idéias

ciceronianas, tal como ocorre entre os humanistas da Renascença, equivale antes de tudo a

descartar como maior mérito da razão humana, uma postura contemplativa para o

conhecimento de verdades eternas, mas antes definindo-a por seu caráter ativo, sob uma

valorização extrema de suas próprias capacidades. Desta forma, as primeiras páginas de

nossa discussão já procuram mostrar, através da análise do Enquiridion (1503), uma de

suas primeiras obras, como Erasmo já se preocupa em se afastar das verdades dogmáticas

para se aproximar de uma arte mais eficiente ao orador cristão, ou seja, a arte da eloqüência

aplicada não para agradar simplesmente e seduzir os sentidos, mas sim, às necessidades da

instrução dos homens e do estabelecimento de uma religiosidade mais pura, ligada à

conduta reta. Após esta análise, passamos a nos dedicar ao tratamento de alguns princípios

da retórica antiga, essenciais, como dissemos, para compreendermos as conseqüências da

estreita vinculação erasmiana à retórica, e a sua imediata negação da busca pelo

conhecimento absoluto, sendo apenas o verossímil da alçada dos oradores. 9 Arêas, James Bastos. A Instauração Ontológica no Sofista de Platão (ontologia tradicional e modelos alternativos da filosofia grega). Tese do Departamento de Filosofia: PUC, 1999. 10 Esta valorização da palavra está presente desde as obras escritas na sua juventude como o De inventione (ou Da invenção, de 86 a.C.), e também nas que se seguiram, como o De oratore (Da oratória, de 55), o Brutus (de 46), e o De orator (ou Do orador, também de 46). A síntese e o ecletismo ciceronianos que

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No capítulo 2 trataremos mais especificamente do processo de redescoberta e

difusão dos textos antigos e da arte retórica nos inícios da modernidade e dos valores que

lhe foram inerentes neste contexto. Este movimento é implementado inicialmente pelos

humanistas italianos do Quatrocento, que adaptaram as idéias dos antigos aos interesses de

conservação das repúblicas italianas. Este momento representa de uma maneira mais clara

as extremas mudanças que se operavam na época em relação ao pensamento medieval e

seus valores voltados para o desprezo dos interesses da vida mundana, sob uma concepção

da natureza humana como definitivamente decaída pela mancha do pecado original. O culto

à liberdade e das capacidades criativas do homem na Itália do Quatrocento, exerceria forte

influência sobre o pensamento de Erasmo. Ocorria, então, paulatinamente, um processo de

ruptura com o modo de inteligibilidade medieval cultivado pelos escolásticos, que colocava

o homem sob a sujeição direta das determinações da Graça divina.

Nesse sentido, a análise do Discurso sobre a Dignidade do Homem, escrito em

1486, por Pico della Mirandola, nos ajuda a compreender de forma simples e clara uma das

questões filosóficas mais importantes da Renascença: justamente a formulação da noção de

Dignidade do Homem, centrada na idéia de o desenvolvimento de suas capacidades

racionais o aproximaria de Deus, já que estas haviam sido dadas a ele como atributo da

Graça. Daí a importância dada por Pico à sólida formação educacional humana no saber das

artes liberais, ponto essencial do cristianismo de Erasmo.

No capítulo 3 voltamos a uma questão apenas enunciada no início do texto, mas que

é determinante para entendermos a valorização da linguagem em Erasmo: o afastamento

deste autor das pretensões racionalistas ao conhecimento definitivo e verdadeiro. Esta

negação da razão, retomada por alguns humanistas da Renascença a partir da maior difusão

dos textos céticos, contribuiu para a maior vinculação de Erasmo aos pressupostos da

linguagem, cuja verdade advém da prática, do estudo retórico e filológico dos textos. É o

que ocorre, por exemplo, na análise de Lorenzo Valla de sua Doação de Constantino, onde

ele prova ser falso este documento. É o que ocorre também na tradução de Erasmo do Novo

Testamento, onde ele substitui a expressão verbo por sermo, alterando o sentido da

passagem bíblica do Evangelho de São João: “e no princípio era o Verbo”. Para o

humanista, o conhecimento humano em seu esforço limitado de compreender a realidade reúnem Platão, Aristóteles e a visão sofistica sobre a retórica, combinados segundo as exigências da liberdade

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pode no máximo produzir conceitos e representações, sendo incapaz de alcançar a realidade

em si mesma. Deste modo, o conhecimento humano, restrito, pode apenas se aproximar da

verdade, mas nunca em sua totalidade. Com a falência da razão dogmática para explicar o

inapreensível aos olhos humanos, o humanista, que não se interessa e mesmo se opõe às

discussões teológicas sobre os mistérios da fé, se aproxima de outro tipo de saber, ou seja, o

saber que emerge da prática contínua dos homens no mundo.

Erasmo, que viveu em um contexto de crise das especulações teológicas acerca do

conhecimento científico da divindade se aproxima, então, do ceticismo, desenvolvido por

Nicolau de Cusa e Marsílio Ficcino, e de sua negação da razão filosófica como processo de

representação da realidade. Ao negá-la o humanista destaca a linguagem como uma

alternativa à razão. Portanto, esta é uma das questões centrais desta tese, que parte da

hipótese de que a linguagem para Erasmo surge como alternativa à razão filosófica como

processo de representação da realidade, pois em seu apreço por esta, ele opta pela verdade

provável que surge da ação, da pesquisa retórica e filológica dos textos e não, portanto, de

uma verdade estática e transcendente. Daí Erasmo justificar sua opção pela retórica e seu

uso principal: a reformulação dos costumes religiosos, desenvolvendo uma retórica da

interioridade, cujo objetivo maior era a transformação interior do leitor, incitando-o a

abandonar os vícios de uma religião exteriorizante e se aproximar da verdadeira filosofia

cristã.

Em nosso capítulo 4 analisamos o Rationne studii e o De Copia, obras que já no

início desta introdução destacamos sua importância para a compreensão do uso da retórica

empregado por Erasmo. Além disso, o poder de divulgação adquirido pela imprensa no

século XVI aliado às regras de eloquência, permitem ao escritor que tenha apreendido todos

os vieses de elaboração do discurso, divulgar seu argumento para um público muito mais

vasto.

É neste sentido que também entendemos a preocupação de Erasmo na confecção de

obras teóricas sobre a arte retórica, pois, mesmo se dirigindo a um público de alunos muito

reduzido, estes, por sua vez, tendo apreendido corretamente a técnica, poderiam cativar e

persuadir novos leitores dando continuidade a comunicação dos ideais humanistas. Seria

então através da palavra escrita, que possibilitava a divulgação da verdadeira doutrina

romana, permitem o renascimento da sofística e de seu novo diálogo com a filosofia.

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cristã, que o humanista pretendia alcançar seu ideal universal de homem, baseando-se no

fato de que todos poderiam transformar-se espiritualmente na medida em que cultivassem

as virtudes essenciais, dominassem as paixões e se aproximassem das regras cristãs

presentes em um cristianismo primitivo que Erasmo objetiva retomar incansavelmente com

os seus trabalhos.

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2. O significado do resgate da ars rhetorica na pregação cristã de Erasmo 2.1) A união entre retórica e filosofia em Erasmo

O homem se distingue de todos os seres animados que nós chamamos sem logos não pela razão, mas pela palavra (...) [No entanto], eu vejo as pessoas falarem com uma voz que não é humana, copiando não importa qual animal mais do que o falar à maneira humana.(...) De mais, eu estou surpreendido de ver a recompensa que uma boa pronunciação dá ao discurso; se duas pessoas falam a mesma língua e a primeira cativa todo o auditório por sua dicção melodiosa, enquanto a outra provoca um tédio geral por seu latido desagradável, se dirá que ela está usando uma outra maneira de pronunciar que não corresponde a humana.1

Como podemos perceber, esse fragmento retirado das primeiras páginas do Diálogo

sobre a pronunciação correta do latim e do grego (De recta pronuntiatione), escrito por

Erasmo de Rotterdam em 1528, propõe que o homem se torna superior a todos os outros

animais pelo uso da sua eloqüência, tanto mais quanto complementa o humanista:

“enquanto a criança não produz nenhum som humano, parece semelhante a um quadrúpede

e não a reconhecemos como um ser humano.2” Esta proposição erasmiana, pronunciada já

na Antigüidade por Isócrates3 e posteriormente por Cícero4, pode ser interpretada ainda de

1 “L’homme se distingue de tous les êtres animés que nous appelons sans logos, non point par la raison mais par la parole” (...) “C’est que je vois bien des gens parler avec une voix que n’est pas humaine, bref copient n’importe quel animal plutôt que de parler à la manière humaine. (...) De plus je suis frappé de voir tout le prix qu’une bonne prononciation donne à une discours; de deux personnes parlant la même langue il arrive parfois que la première, pareille a un jouer de cithare, captive tout l’auditoire par sa diction mélodieuse, tandis que l’autre on dirait non point une autre manière de prononcer, mais un tout autre discours ou plutôt tout autre chose qu’un discours.” Cf.: Érasme de Rotterdam. “Dialogue sur la pronunciation correcte du latin et du grec” in: Erasme. Oeuvres Choisies. Présentation, traduction e annotations de Jacques Chomarat. Paris: Librairie Génerale Française, 1991. (Le livre de Poche), pp. 904 - 905. 2 “Tant que l’enfant se traîne, tant qu’il ne profère aucun son humain, il apparaît semblable à une quadrupède et nous ne le reconnaissons pas pour un être humain”. Idem, p. 906. 3 Alain Michel e Jacques Chomarat afirmam ser Isócrates, antes mesmo de Cícero, o primeiro a diferenciar o homem pelo uso da palavra. Isócrates afirmava contra Platão a superioridade da retórica sobre a dialética, da eloqüência sobre um saber absoluto. Erasmo conhecia Isócrates, mas não o praticava por considerar excessivo o seu apreço pelo estilo; mas a hipótese mais aceita pelos analistas é que o humanista tenha conhecido essa definição do homem através do De l’Invention de Cícero. Cf. Michel, Alain. Rhétorique et Philosophie chez Cicéron: essai sur les fondementes philosophiques de l’art de persuader. Paris: Presses

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outra forma, pois, se é a fala a qualidade distintiva do homem em relação aos outros

animais, também é esta mesma habilidade que distingue os homens entre si, sendo o orador

a melhor realização do homem porque melhor desenvolve e domina a eloqüência, cativando

a atenção das pessoas para suas palavras.

É, portanto, do uso pleno da sua linguagem que “depende a dignidade e a felicidade

de todo homem”5, para que ele não permaneça reduzido à bestialidade da qual

compartilham todos os outros seres (assim como o vulgo que opta em permanecer na

ignorância), tendo em vista que: “nunca é tarde para aprender, sobretudo as coisas

relacionadas ao estudo, as quais a natureza desde o início formou e, por assim dizer,

modelou no homem. Entre a primeira delas está a linguagem.”6 Para Erasmo, o homem no

momento do nascimento ainda é uma matéria bruta, sendo a educação a maior responsável

por sua formação, uma vez que apenas ter a aparência humana não significa falar bem. Para

o humanista, falar bem é falar com arte, esta adquirida através do aprendizado dos studia

humanitatis. É, portanto, o cultivo destas matérias que torna o homem mais apto a intervir

no mundo e a renovar sua sociedade.

Embora Erasmo destaque logo no início do De recta pronuntiatione o papel da

eloqüência, como mostramos na citação que abre esse item, poucas páginas adiante ele

também ressalta o valor de uma educação voltada para o aprendizado das línguas antigas e

também para os conteúdos morais presentes nos textos clássicos, para uma formação mais

ampla do aluno. Apesar de propor essa idéia de modo indireto, pois seu objetivo é tratar

apenas do modo pelo qual é possível alcançar uma pronunciação mais adequada do latim e

do grego, a importância de um saber mais vasto pode ser evidenciada em vários de seus

trabalhos, principalmente naqueles de cunho explicitamente pedagógico – como os

Adágios, os Colóquios, o Ratio studdi e o De copia. Nessas obras, o humanista desenvolve

seu ideal de reforma educacional, incluindo toda uma gama de autores clássicos que seriam

fundamentais tanto para a apreensão da forma (das palavras, dos tropos, das figuras de

Universitaires de France, 1960. Ver também: Chomarat, Jacques. Grammaire et Rhétorique chez Erasme. Paris: Belles Lettres, 1981, p. 62. Sobre a diferenciação entre Platão e Isócrates ver: Marrou. Histoire de l’Education dans l’Antiquité, cap. VI e VII. 4 Cicéron. De L’Invention. Paris: Belles Letres, 1994, livro I, I, 1, p. 56. 5 Érasme. “De recta pronuntiatione” In Oeuvres Choisies, p. 907. 6 “Selon moi il n’est jamais trop tôt pour apprendre, surtout les choses pour l’étude desquelles la nature a dès le départ façonné et, pour ainsi dire, modelé l’homme. Parmi elles d’abord le langage”, Idem, p. 905.

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linguagem e das gramáticas latina e grega) quanto para a obtenção do conteúdo moral e

ético mais útil para a formação dos jovens oradores. A união entre forma (verba) e

conteúdo (res) é um desejo erasmiano que pode ser evidenciado em praticamente todas as

suas obras publicadas entre 1509, com a primeira edição dos Adágios, e 1528, com a

publicação do Ciceronianus, sendo explícito nesses trabalhos tanto o seu esforço em

esboçar uma doutrina sobre a arte oratória, quanto a sua oposição ao método escolástico e a

toda forma de comunicação verbal ou escrita que pudesse degenerar em sofística.7 Para

Erasmo, um discurso que fizesse uso de uma retórica vazia, tratando de questões abstratas

no que dizia respeito à fé, incompreensível ou mesmo sem utilidade, como aquele dos

teólogos escolásticos, deveria ser amplamente combatido e substituído por outro que unisse

uma eloqüência persuasiva a um saber mais ativo e pertinente às questões religiosas, à vida

prática e ao desenvolvimento do espírito. Por isso, para o humanista, era tão importante

definir a tarefa do pedagogo (ou, se preferirmos, do orador cristão) como veículo de

transmissão de um duplo saber: aquele contido nas Escrituras e o saber moral dos antigos.

Como veremos ao longo de nossa análise, todo o esforço erasmiano de purificação da fé

cristã está concentrado em mostrar que um não pode existir sem o outro, pois, se a

mensagem divina foi corrompida durante o passar dos séculos, a única forma de recuperá-la

integralmente seria através do aprendizado das línguas antigas. Por sua vez, apenas nos

textos dos melhores autores seria possível encontrar as línguas latina, grega e hebraica em

suas formas mais elevadas. 8 O aprendizado da língua não é, por esse motivo, apenas uma

forma de acesso a todo tipo de conhecimento, mas também o caminho para se alcançar a

7 Segundo Fumaroli, na Itália como na Europa do Norte a história da retórica humanista foi marcada, assim como a história da retórica grega e latina, por uma perpétua tensão entre a tentação sofística e o esforço por um retorno aos oradores gregos como Demóstenes, aos romanos como Cícero e Quintiliano, aos poetas e todos aqueles que procuravam estabelecer a aliança entre retórica e filosofia. De acordo com a abordagem deste autor, Erasmo não se opôs ao conhecimento filosófico, mas sim, procurou dar uma base filosófica ao “modus oratorios” dos humanistas. Fumaroli, M., op. cit, p. 94. 8 Erasmo descarta, pelo menos do ensino fundamental, o aprendizado do hebraico, língua muito distante das duas matrizes principais (o latim e o grego) nas quais se encontram os textos mais importantes da Antigüidade, inclusive a própria Bíblia. Segundo Erasmo, elas são as línguas que possibilitam a formação do espírito e o acesso a todo conhecimento. Tamanha a importância do aprendizado dessas línguas que ele diz que antes de tudo o “aluno deve aprender a pronunciar distintamente, depois ler corretamente, e em seguida escrever com elegância” (ver Érasme. La pronunciation correcte du grec et du latin in: Chomarat. Oeuvres Choisies, p. 914). Para termos uma noção mais apropriada de como era relevante a fluência e o entendimento dessas línguas, Erasmo nos conta que, durante sua estadia em Veneza, ele se reuniu a outros humanistas que faziam parte da confraria dos Philhellènes, que tinha estabelecido como lei apenas falar o grego durante as refeições, ficando sujeito a reprimendas aquele que não cumprisse a norma estabelecida. Érasme. La pronunciation..., p. 923.

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virtude e a fé cristã mais pura, distante de toda e qualquer distorção realizada pela Igreja e

seus teólogos ao longo dos séculos.

Uma obra representativa desta postura pedagógica erasmiana que procura unir o

conhecimento das coisas com a beleza da forma é o De duplici copia rerum ac rerum9, o

maior disseminador da retomada da tradição de Cícero e Quintiliano. Ao expor seus ideais

para a educação dos jovens, Erasmo divide sua obra em duas partes distintas. A primeira

trata da copia verborum, ou seja, das palavras mais apropriadas a serem empregadas em

cada sentença, e a segunda analisa a copia rerum, as coisas, as matérias que devem ser

estudadas nos textos clássicos como fundamento para qualquer formulação escrita, tendo

em vista que a escolha dos extratos dos melhores autores oferece aos alunos um rico

manancial onde se podem encontrar tropos, figuras de linguagem e qualquer tipo de

ornamento cujo valor filosófico envolve e seduz os leitores ao mesmo tempo que os

persuadem. As citações retiradas dos textos antigos se tornam, assim, elementos

constitutivos de um estilo filosófico propriamente humanista. Estilo que, tendo como base

os antigos, procurava, como eles, se afastar das tentações sofísticas, ou seja, de uma

eloqüência vazia, apenas preocupada com a forma.

Erasmo opta então por um método que, ao mesmo tempo em que retoma a tradição

retórica herdada dos antigos - sobretudo das proposições de Cícero e Quintiliano e de sua

defesa da união entre retórica e filosofia - também dela se afasta para eleger como

prioridade as particularidades cristãs. O aprendizado das línguas antigas assim como a

leitura dos textos clássicos, seriam então um ponto de partida para que o aluno pudesse

exercitar a sua inventio ao mesmo tempo em que se distanciava dos modelos pagãos e

cultivava uma fé mais viva para a elevação moral do espírito10. Seria somente desta forma

9 Rotterdam, Desiderius Erasmus. On Copia of Words and Ideas (De utraque verborum ac rerum copia). Marquete University Press, 1963. Analisaremos com maior cuidado esta obra no terceiro capítulo desta tese. Contudo, algumas referências são feitas a ela no decorrer do corpo do texto em que a chamamos simplesmente de De copia. Como afirma Waswo, esta obra, com as suas mais de oitenta edições na Europa Ocidental, foi o maior disseminador da união entre verba e res. Cf.: Waswo, Richard. Language & Meaning in the Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1983. Sobre esse tema ver também: Cave, Terence. Cornucopia. Figures de l’abondance au XVI siècle: Érasme, Rabelais, Ronsard, Montaigne. Paris: Macula, 1997, pp. 31-194. 10 Para Erasmo a cultura antiga deveria fazer parte do currículo pedagógico renascentista pela forma de seus textos, pela gramática, pelo uso preciso da língua e de suas expressões, tropos e figuras de linguagem, pelo conteúdo moral e para a apreensão do modo pelo qual os antigos faziam uso da leitura alegórica em seus textos. No entanto, esse aprendizado não poderia ser apenas um vão enriquecimento do saber, sem ter como pretensão mais elevada a leitura das Escrituras. É o que diz Erasmo no Enquiridion: “a literatura pagã forma e dá vigor ao gênio dos jovens alunos e os prepara maravilhosamente para o conhecimento das Escrituras, já

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que a base clássica poderia ser realmente útil para a cristandade: utilizando os recursos

antigos para chamar atenção dos cristãos dos abusos e incoerências religiosas de seu tempo.

Seria somente deste modo que a união entre saber e eloqüência deveria ser entendida e

utilizada pelos humanistas cristãos na Renascença. Para Erasmo a eloquência não é apenas

uma arte da ornamentação, mas sim a faculdade de desenvolver de maneira clara e

apropriada as idéias, dando maior relevo aos assuntos mais importantes e atenuando

aqueles que são passíveis de serem rejeitados. Este é o ponto central de nossa discussão: a

eloqüência é a forma ideal de servir à verdade e à dignidade do homem em sua relação com

Deus e com seus semelhantes, portanto, ao orador cristão caberia expor somente idéias

justas e coerentes. De fato, em várias de suas obras, Erasmo responde aos teólogos ou aos

"falsos sábios" que recusam o princípio da elocutio como sendo arbitrário e supérfluo,

afirmando ser justamente as regras da retórica que dão ao discurso uma forma inteligível, e

que tornam o orador capaz de persuadir os seus leitores das verdades da fé. Para o

humanista, o cultivo do espírito e da imitação dos ensinamentos de Cristo e a verdadeira

religiosidade não se limitavam ao culto exterior dos dogmas e práticas cristãs, mas sim ao

cultivo do espírito na imitação dos ensinamentos de Cristo.

Nesse sentido, o orador cristão não é, como na Antigüidade Clássica, apenas o

homem virtuoso (vir bonus) e comprometido com os deveres cívicos, capaz de bem falar e

convencer até mesmo uma platéia hostil da melhor direção a ser dada às questões da vida

pública. Ele é também aquele que contribui, graças à razão, mas também devido à ajuda

divina, ao esclarecimento da pureza da fé.11 O predicador cristão tal como Erasmo define

que adentrar-se nela com pés e mãos sujos é quase uma espécie de sacrilégio. São Jerônimo tacha de imprudentes aqueles que recém saídos dos estudos profanos se atrevem a expor as Sagradas Escrituras. E quanto mais insolente é o proceder de quem sem conhecer os primeiros se atrevem aos segundos! E te direi ainda que: assim como a Sagrada Escritura é pouco frutífera se te contentas com a letra, a poesia de Homero e Virgílio será de não pequena utilidade se tens em conta que toda ela é alegórica, coisa que ninguém negará pertencer à sabedoria dos antigos. Aconselharia também a não te cercares dos poetas obscenos – ou ao menos não estudá-los em profundidade... Preferiria também que entre os filósofos tu seguisses aos platônicos, já que tanto em suas idéias quanto em sua maneira de falar se aproximam ao modelo dos profetas e do evangelho. Em resumo, aproveitarás o estudo da literatura pagã se, como te disse, se faz em idade adequada e com moderação, com cautela e deleite. (...) Finalmente, o mais importante: que em tudo se faça referência a Jesus Cristo. (...) Que a sabedoria divina seja tua única amada e mais bela entre todas as ciências seculares.” Erasmo. Enquiridion, cap. II, p. 73-74. 11 Segundo Margolin, a teorização de uma comunicação que seja ao mesmo tempo argumentativa e persuasiva e que permita ao orador na ausência de uma verdade absoluta sobre os mistérios da fé, se aproximar progressivamente de uma verdade provável, é característica dos humanistas do Norte, sensíveis ao modelo italiano e erasmiano de uma nova retórica, cuja ética cristã não poderia ser de forma alguma esquecida. Margolin, Jean-Claude, op. cit., pp. 191-257.

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no Ecclesiastes tem exatamente esta função: ele deve utilizar de suas palavras e de sua voz

eficaz para “retirar as almas mergulhadas nos vícios” e direcioná-las no caminho da

salvação, pois “é com as línguas antes de tudo que se serve o Predicador: suas armas são a

doutrina sagrada, as lágrimas, as preces e uma vida sem faltas.”12 O predicador deve “curar

com a sua palavra aquele que sofre não de uma, mas de várias doenças, sustentar aquele

que vacila, trazer à vida aquele que não tem mais alma e não tem consciência de seu mal”.13

Portanto, a verdadeira persuasão é aquela que atinge o coração, que faz o homem crer em

uma nova verdade, aquela da simplicidade e da caridade cristãs. Aqui, diz o humanista, “o

sábio encantador deve utilizar os mais eficazes encantos para transformar a víbora em

ovelha”.14 Daí a importância para a realização de um bom discurso do profundo

aprendizado das técnicas retóricas, que consiste, entre outros preceitos, em escolher bem as

palavras que serão empregadas, conhecer os tropos e as figuras de linguagem, organizar o

argumento de forma concisa ou abundante e fazer uso de lugares comuns que aproximem o

público das questões tratadas pelo orador. Este vasto conhecimento apenas pode ser

apreendido através da leitura dos textos clássicos e do entendimento de seus exemplos

morais, da variação de seus estilos, da compreensão da gramática e do estudo sistemático

das regras de ornamentação e disposição, ou seja, da união entre verba e res.

Como dissemos até aqui, em obras como o De recta e o De copia, assim como o

Ratio studii e os Adagia, Erasmo prega a união entre sapiência e eloqüência, condenando

aqueles que se utilizam de uma sem a outra, como os escolásticos, de linguagem vazia e

sem sentido que ele denomina de sofistas. A similitude entre estes preceitos e os postulados

por Cícero se tornam evidentes, pois a eloqüência sem a sapiência já fora por ele criticada

em seu De inventione. Segundo Cícero, a sabedoria e a razão dos primeiros governantes

que procuraram reunir os homens em prol dos seus interesses comuns não seriam

suficientes para pacificar e organizar a fundação das sociedades, pois “o saber em si é

silencioso e impotente para falar”. E, da mesma forma,

12 “(...) c’est avec la langue avant tout que l’accomplit le Prédicateur; pour armes il a la doctrine sacrée, les larmes, les prières et une vie sans faut.” Érasme. “Ecclesiastes” In Oeuvres Choisies, p. 978. 13 “(...) il doive guérir avec sa parole celui qui souffre non pas d’une , mais de pluisieurs maladies, pour soutenir celui qui chancelle, pour ramener à la vie celui qui n’as plus conscience de son mal.” Idem, p. 979. 14 “Ici le sage enchanteur doit utiliser des incantations efficaces pour transformer l’aspic en agneau.” Ibidem, p. 979.

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uma eloqüência sem sabedoria é perigosa e não pode fazer bem nenhum

às cidades. Isso se dá porque se alguém negligencia o estudo de coisas tão nobres como a lógica e a moral, e se consagra totalmente à prática da palavra, ele se torna um cidadão inútil e mesmo daninho à sua pátria.15

A eloqüência ciceroniana supunha uma vasta cultura filosófica, oratória, poética e

histórica, que exigia do orador não apenas o conhecimento dos preceitos técnicos dessa

arte, mas também o exercício e a imitação dos melhores autores, das suas sentenças e de

seu conteúdo moral. Assim, a retórica evitava um duplo perigo: o do pedantismo e da

sofística, já que o orador passaria a se dedicar a um processo de aquisição ao mesmo tempo

do saber e da sua expressão, em um programa de educação verdadeiramente liberal. A

retórica cívica de Cícero, a de um orador em pleno exercício da sua função e das suas

responsabilidades políticas, assim como o seu trabalho de teórico da eloqüência, adquiriu

na Renascença um valor exemplar, servindo de referência central para os primeiros

humanistas, como Petrarca, Salutati, Leonardo Bruni, Marsílio de Pádua, entre tantos

outros16, que desejavam garantir a liberdade e a legitimidade do autogoverno das repúblicas

italianas.

O ideal do orador ciceroniano renasce no Quattrocento ao mesmo tempo em que se

percebe a urgência pela defesa da autonomia das cidades frente ao Sacro Império Romano.

Assim, a valorização do orador moderno emerge em um cenário onde a ruptura com o

sistema feudal e com os laços de vassalagem, se fazia, tal como na Antigüidade, em nome

da participação imediata dos citadinos nos negócios públicos. Tamanha novidade, advinda

depois de quase dez séculos de predomínio do feudalismo, só poderia encontrar subsídios

teóricos nos textos clássicos que incitavam a população a preservar sua liberdade contra

qualquer interferência externa, e a lutar tanto pela sua independência política quanto pela

manutenção do modelo republicano17. O império da palavra de Cícero sobre a Roma das

15 Cicéron, De l’Invention, livro I, p. 58. 16 De acordo com Fumaroli, os textos ciceronianos não foram totalmente desconhecidos na Idade Média, mas as suas obras mais teóricas, onde se debatia a eloqüência, apenas foram redescobertas no Quattrocento. No século XIV, apenas alguns fragmentos do De Oratore e do Orator eram conhecidos por um pequeno número de clérigos, sendo apenas em 1421 que o bispo de Lodi encontrou um manuscrito completo desses trabalhos, juntamente com o Brutos, ainda desconhecido na época. Cf.: Fumaroli, M., op. cit., p. 47. 17 Sobre a importância da redescoberta dos textos clássicos, de seu ideal de participação cívica na defesa das cidades republicanas italianas, assim como a função decisiva que o orador assume nas deliberações políticas ver: Skinner, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das

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guerras civis, sua dedicação aos interesses da cidade e da república, assim como a glória

adquirida por ele nos tribunais fizeram da eloqüência a essência de um novo ideal de vida

civil18.

Essa primazia da eloqüência na vida social e intelectual da Renascença – no corpo

político das repúblicas italianas e posteriormente das monarquias que as sucederam, assim

como nas relações jurídicas, comerciais e religiosas que compunham a vida civil – fundava-

se num ideal chave da cultura humanista, tal como vimos no início do texto ao

examinarmos a obra de Erasmo: a busca pela união entre Eloquentia e Sapientia como

realização mais alta do homem em sua capacidade de intervir positivamente no meio social

através da palavra. Desse ponto de vista partilham Marc Fumaroli e Etienne Gilson, pois,

para ambos, o que torna a sociedade possível é a linguagem.19 Segundo Gilson:

Nada é tão importante quanto o privilégio humano da linguagem, graças

ao qual as sociedades foram construídas, e com elas suas leis, suas instituições, suas artes, suas ciências e suas filosofias. Colocar assim o animal que fala no centro de tudo, é o mesmo que colocar o ponto de vista ciceroniano por excelência, aquele do ‘homo loquens’. É também professar o humanismo em seu

Letras, 1996, e também: Pocock. Le Moment Machiavélien. La Pensée politique florentine et la tradition républicaine atlantique. Paris: PUF, 1997. 18 O ideal de vida ativa se opõe, por sua vez, para autores como Eugênio Garin, ao de vida contemplativa, que pregava justamente o afastamento dos homens dos negócios da cidade. O objetivo da filosofia aristotélica na Idade Média seria o conhecimento do universal, da transcendência divina, estando a compreensão do particular, dos eventos que acontecem no mundo, submetido a leis gerais. Voltada para a contemplação do universal, a filosofia estaria dissociada da ação política, ao passo que a vida ativa correspondia ao uso da retórica, à incitação e à persuasão dos homens em defesa da liberdade cívica e da manutenção da autonomia política das cidades republicanas. Política por natureza, a retórica estaria invariavelmente imersa nas situações e nas ações particulares inerentes ao convívio social. Por essa razão, para Garin, o conhecimento dos humanistas não estava associado a uma postura contemplativa, mas aos atos direcionados pela razão humana, que passava a investir de legitimidade ontológica os eventos particulares. Em outras palavras, podemos dizer que, se a verdade, de acordo com a tradição medieval, era dada a priori da ação humana, e devia ser objeto de contemplação, na Renascença, pelo contrário, ela passa a estar imanente ao ato investigativo. Sobre esta oposição ver: Garin, Eugênio. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. São Paulo: UNESP, 1996. 19 Para eles, na Renascença há uma clara ruptura com o modus scholasticus vigente durante toda a Idade Média, sendo instaurado em seu lugar o modus oratorius, perdido com o fim da Antigüidade pagã e cristã, para fecundar o que o humanismo florentino denominou de vida civil. Apesar das excelentes análises de ambos os autores, as quais utilizamos amplamente como referência durante o texto, pensamos ser necessário também atentar para a existência de continuidades entre a cultura medieval e a cultura moderna, como propõem Skinner e Pocock. A emergência definitiva da retórica diminuiu certamente o papel e o alcance da filosofia escolástica na Renascença, entretanto, ela permaneceu sendo ensinada nas escolas e universidades modernas, sendo sempre foco de rivalidade com os humanistas. Só por esse diálogo intenso que existe entre os textos de muitos autores desse período com os defensores da escolástica, podemos notar que ela não desapareceu, permanecendo como um dos pontos centrais dos debates humanistas. Cf.: Fumaroli, Marc. “Aetas ciceroniana” in: L’Âge de L’Éloquence: Rhétorique et “res literaria” de la Renaissance au seuil de l’époque classique. Paris: PUF, 1999, p. 39. Gilson, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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sentido primeiro e pleno. O orador se encontra por um mesmo golpe promovido ao primeiro lugar na hierarquia dos seres vivos, e particularmente dos seres humanos. Se o homem é essencialmente um animal que fala, aquele que fala melhor é assim mais plenamente homem. A arte de bem falar se chama eloqüência, por isso, podemos dizer que o homem mais perfeito é aquele que penetra mais cuidadosamente na matriz dessa arte. Para saber falar é preciso ter alguma coisa a dizer: todas as ciências e todas as outras artes entraram naturalmente na formação do orador, vir doctissimos sed et eloquentissimos. Isso produz então o retorno da hierarquia entre os conhecimentos, no lugar de se ordenarem, como nas ciências, segundo sua maior ou menor aptidão para fazer conhecer o real, eles irão se classificar segundo seu valor como instrumentos possíveis para a palavra, vínculo e lei para as sociedades.20

A retórica exposta dessa forma, ou seja, seguindo diretamente as premissas lançadas

por Cícero na Antigüidade - cujo objetivo maior era reunir uma vasta gama de

conhecimentos ao ofício do orador - se torna o princípio unificante da cultura humanista na

Renascença, influenciando uma série de autores desse período, que retomaram o ideal

ciceroniano de culto às virtudes, de compromisso da retórica com o bem público e de

valorização da educação como condição essencial para a elevação humana.

Com o fim das repúblicas italianas, esse ideal passou a estar presente apenas nas

cortes e nos textos de cunho pedagógico, sendo reapropriado de forma diferenciada no

Norte da Europa, onde se destaca geralmente uma perspectiva mais devocional devido à

influência de movimentos reformistas como a Devotio Moderna, assim como pela difusão

dos textos dos humanistas cristãos que privilegiavam a elevação espiritual dos cristãos.

Desta forma, pautando-se mais em preocupações sociais e morais, diferentemente dos

italianos que centravam a sua argumentação em torno das discussões políticas, a retórica

dos humanistas transalpinos atendia a uma proposta mais relacionada com os ideais de uma

filosofia cristã, centrada na noção de um cristianismo mais ativo voltado para a reforma

espiritual dos homens.

Voltando ao argumento inicial sobre a necessidade da eloqüência para fins

pedagógicos e religiosos, nós vimos até aqui que Erasmo endossa este ideal em várias de

suas obras. Em obras como os Adágios, os Colóquios, o Ratio studdi e o De copia,

podemos perceber o tratamento destas questões e, sobretudo, do pressuposto de que de uma

boa educação depende a dignidade de todo ser humano. Nesses textos a educação assume

para o humanista uma função mediadora essencial, sendo através dela que a natureza do 20 Etienne Gilson, “Le Message de l’Humanisme, dans Culture et Politique en France à l’Époque de

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homem se realiza em todo o seu potencial e virtude próprios. Da mesma forma, no colóquio

sobre A Guerra e a Queixa da Paz (1515)21 Erasmo também salientava a necessidade de

uma aliança entre a razão e a eloqüência22, pois, “só aos homens foi dada a capacidade da

razão, a qual o homem não tem em comum com nenhum dos restantes seres vivos. Só aos

homens foi concedida a linguagem, que é o principal fundamento das relações sociais”23,

para que absolutamente nada entre eles se resolva pela força. Aqui, portanto, vemos

claramente exposta a união entre o falar bem e a sabedoria, entre a retórica e a filosofia. No

Ecclesiastes Erasmo se aproxima da fórmula desenvolvida nestes dois colóquios, afirmando

que não há nada que aproxime mais os homens da divindade eterna que o espírito e a

palavra (mens et oratio). Por isso, concordamos com Fumaroli quando ele diz que em

nenhum outro humanista a cultura foi elevada a um nível mais alto do que em Erasmo,

“pois as humanidades não estão apenas destinadas a ornar o espírito: é na cidade, na igreja,

e nos cargos de comando da sociedade que esta cultura deve encontrar seu pleno

emprego24”.

l’Humanisme et de la Renaissance” apud Fumaroli, Marc, idem, p. 42. 21 Esse texto, publicado pela primeira vez em 1517, foi escrito por Erasmo sete anos antes a pedido de João de Sauvage, então chanceler de Carlos V, para uma conferência que reuniria este imperador e os reis da França e da Inglaterra para que fosse estabelecido entre eles um acordo de paz. Nesses colóquios Erasmo enfatiza o repúdio a todo tipo de conflito, sobretudo entre os cristãos, e uma ilimitada confiança na eficácia do diálogo para a resolução dos mesmos. Especificamente no colóquio A guerra, o humanista insiste no fato de que não apenas as guerras foram banalizadas pelos cristãos, sendo mais numerosas e cruéis que aquelas dos pagãos, como também atribui ao mau uso da palavra (inclusive por aqueles que com mais afinco deveriam saber utilizá-las, como é o caso de alguns teólogos e do papa Júlio II) a culpa pelo estímulo das sucessivas desavenças existentes entre os reinos da cristandade. Cf. Erasmo de Rotterdão. A Guerra e a Queixa da Paz. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 86. 22 Como nos mostra Jerrold Siegel, as relações entre filosofia e retórica na Antigüidade envolveram concepções divergentes sobre qual a expressão mais digna da natureza humana, a que estava relacionada à filosofia ou à retórica, e qual seria a forma de sua instrução ideal. Entre os filósofos, logos - termo grego que define a qualidade distintiva do homem, o que o faz único em relação às outras espécies da natureza - foi traduzido para o latim como ratio, que se definia pela opção contemplativa de conhecimento das questões universais, dos primeiros princípios das coisas divinas e humanas. Já os retóricos traduziram logos como oratio, pois, segundo eles, o maior objetivo do homem está na busca da excelência na arte da palavra e da vida dedicada aos negócios públicos. Essa oposição entre retórica e filosofia existente na Antigüidade, assim como a necessidade de uni-las chegou até os primeiros humanistas italianos que, cultuando o orador ideal ciceroniano viam com desdém o ideal filosófico da sabedoria no âmbito privado e espiritual, combatendo os filósofos cristãos da Idade Média, que, preocupados com a redenção e a vida eterna, optaram pelos valores filosóficos, descartando como supérflua a preocupação com as coisas da vida secular. A superação da rivalidade entre as duas tradições foi, contudo, matéria comum a muitos autores clássicos e medievais, sendo também preocupação central dos primeiros humanistas. Cf.: Siegel, Jerrold. “Petrarch to Valla” in: Rhetoric and Philosophy in Renaissance Humanism: the union of eloquence and wisdom. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1968. 23 Erasmo. A Guerra e a Queixa da Paz, p. 86. 24 Margolin, Jean-Claude. “Érasme, notre contemporain” In Collection Robert Laffont, op. cit., Préface, p. VI.

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No entanto, o que nos chamou atenção ao longo da nossa pesquisa foi o fato desta

união entre retórica e filosofia não ser postulada em alguns trabalhos do humanista, como

por exemplo, no Enquiridion, nem tampouco estar presente de forma direta no De recta

pronuntiatione, sendo em ambas as obras apenas a linguagem a maior qualidade do

homem. Quais seriam os motivos da recusa erasmiana da razão filosófica? Que conclusões

devemos tirar da descoberta de que a razão talvez seja incapaz de nos convencer das

verdades que descobre? A retórica teria então um peso maior para o humanista que a

filosofia, rompendo o aparente equilíbrio estabelecido por Cícero entre as duas disciplinas?

Procuraremos ao longo desse capítulo tentar responder a estas questões, que podem

elucidar a forma pela qual o autor dialogou com a tradição clássica e como isso influenciou

a sua escolha por um método pedagógico particular. Diante da ambigüidade desta posição

erasmiana, limitamos nossa análise à breve exposição do Enquiridion (pois já apresentamos

no início desse texto nossa tese sobre o De recta pronuntiatione), tanto para realçar o

sentido específico dado pelo humanista à razão e o motivo da sua escolha pelo duelo entre

linguagem e razão, quanto para entender o privilégio atribuído por ele à arte da palavra.

2.2) A ambigüidade erasmiana: a preponderância da retórica sobre a filosofia

No capítulo quatro do Enquiridion25, intitulado Do homem exterior e interior,

Erasmo divide o homem em duas partes: em corpo, local onde incidem as paixões, e em

alma, substância que aproxima o homem da divindade. Segundo o humanista, estas duas

naturezas tão distintas entre si foram separadas após o pecado original, encontrando-se, por

isso, em constante conflito. O corpo sofre porque é mortal e se deleita com as coisas

terrenas. A alma, pelo contrário, por estar ligada à linhagem celestial, tende a lutar contra a

sua morada terrena, depreciando tudo o que é visível por ser efêmero, e buscando o que é

verdadeiro e eterno26. Erasmo resume aqui um dos argumentos do Timeu de Platão, ao

analisar a natureza da alma, afirmando não ignorar que a vida feliz consiste no controle da

25 Erasmo de Rotterdam. Enquiridion: Manual del Caballero Cristiano. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1995, cap. IV, pp. 91-96. 26 Idem, p. 92.

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classe mais baixa das paixões – como a voluptuosidade, o medo, a ira, a audácia e o desejo

– enquanto a vida infeliz consiste em ser vencido por esses vícios. É contra essa discórdia

entre alma e corpo, entre vícios e virtudes que o homem deve declarar guerra, pois, se bem

orientadas as paixões, o corpo poderia ser conduzido a atitudes interiores e devotas.

Como podemos perceber, a razão erasmiana aparece em oposição às paixões, numa

antítese explícita entre ratio e adfectus, entre homem interior e homem exterior. Portanto,

como destaca Chomarat27, a razão aqui é dominada pelas paixões carnais, já que as partes

mais bestiais e rebeldes do corpo (o fígado e o ventre) exercem sua tirania e fomentam a

rebelião de todos os membros, sendo o homem – “animal divino e superior” – transformado

em besta. A razão, tal como fora estabelecida por Platão e particularmente entendida por

Erasmo, não consegue domar os vícios humanos28. Deste modo, à razão transcendente e

científica, desvencilhada da prática cotidiana, o humanista opta no capítulo seguinte,

intitulado Da variedade das paixões, pela razão dos peripatéticos, que ensina que não é

necessário eliminar todas as paixões para alcançar a felicidade, mas apenas orientá-las no

sentido adequado, já que algumas delas, que são plantadas pela natureza, podem ser um

incentivo às virtudes. Assim, Erasmo diz que “a ira contribui para a fortaleza, a inveja para

a diligência29”. Além disso, para os peripatéticos não se pode contentar com as definições

de ordem geral, sendo necessário aplicá-las também aos fatos particulares, pois, “entre as

27 Chomarat, op. cit., p. 55. 28 No texto erasmiano a razão é vencida pela palavra em dois momentos específicos: o primeiro deles surge da necessidade dos afetos (da paixão cristã para a predicação) e o segundo quando a palavra se destaca como veículo de comunicação com as massas, já que é somente pela retórica cristã que o predicador pode eliminar dos seus fiéis antigas práticas cristãs ritualísticas e levá-los ao conhecimento do verdadeiro cristianismo. 29 “Así, la ira contribuye a la fortalez, la envidia a la diligencia...” Erasmo. Enquiridion, p. 98. A análise de Cristina Viano sobre as virtudes naturais na Ética a Nicômaco nos diz que, para Aristóteles, estas virtudes, inatas e constitutivas a cada indivíduo são incompletas, não constituindo ainda a virtude em sentido próprio. Elas apenas servem como base para as virtudes éticas e dianoéticas, que dependem do uso pleno e correto das faculdades racionais para se tornarem virtudes perfeitas. Portanto, no caso da ira e da cólera citados acima por Erasmo, elas também são virtudes importantes por despertarem a impetuosidade e o impulso, mas devem ser dirigidas pela razão e acrescidas da “escolha deliberada e do fim”. Ainda que Erasmo não cite diretamente esta obra no Enquiridion, ele afirma textualmente que seguirá a tese dos peripatéticos. Por isso citamos Aristóteles sobre as virtudes naturais: “a forma da coragem inspirada pela impetuosidade parece ser a mais natural de todas e, quando a ela se acrescentam a escolha deliberada e o fim, torna-se coragem no sentido próprio. Também os homens, portanto, quando estão encolerizados, sentem dor e, quando se vingam, sentem prazer. Porém, os que se batem por estas razões são ardentes no combate, mas não são corajosos, pois não agem nem levados pelo bem nem como quer a razão, mas o fazem sob o efeito da paixão; têm, todavia, algo que lembra a verdadeira coragem.” (Ética a Nicômaco, III.11, 1116b23-1117a9). Cf.: Viano, Cristina. “O que é virtude natural?” In: Analytica: revista de filosofia. Rio de Janeiro: UFRJ. Seminário de Filosofia da Linguagem, 1993, pp. 115-125.

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proposições relativas à conduta, embora as universais tenham uma aplicação mais ampla, as

particulares são mais verdadeiras, visto que a conduta diz respeito a casos individuais30”. A

opção de Erasmo pela filosofia aristotélica em detrimento da platônica - ou seja, da razão

científica, voltada para o conhecimento das verdades essenciais – indica todo o caminho da

sua argumentação. Além de não excluir os afetos, de grande relevância na predicação cristã,

a razão dos peripatéticos está totalmente imersa nos negócios humanos, na vida prática.

Portanto, ao contrário de Platão, a filosofia dos peripatéticos não exclui o uso nem a

importância da palavra, fundamental nas deliberações públicas, pois esta doutrina se

preocupa com as ações dos homens no mundo, assim como a necessidade da existência de

um consenso nas questões relativas à cidade, como Aristóteles propõe no livro III da

Política. A escolha erasmiana é então pelo verossímil (o possível a ser alcançado nas

deliberações) e pela função fundamental que a palavra, a ars rhetorica, assume na

resolução das contendas que fazem o cotidiano de uma sociedade.

Após se opor à razão platônica, o segundo alvo de Erasmo é a razão filosófica dos

estóicos, “que querem que o seu perfeito homem sábio esteja livre de todo tipo de

perturbações, que consideram enfermidades da alma.”31 Para ele “as tentações não apenas

não são perigosas, mas também são necessárias para a tutela da virtude. (...) Superada a

tentação, dá-se sempre ao homem um aumento da graça divina, com a qual ele fica mais

preparado contra os assaltos futuros do inimigo.32” Ao contrário do que postulam os

estóicos, na perspectiva cristã, a realização maior do homem deve ser vencer as tentações e

incursões malignas. “Ainda que sua alma arda em paixões violentas, tu hás de obrigar,

ameaçar e atar este Proteu com amarras violentas, mesmo que se transforme em toda sorte

de coisas prodigiosas33”. Erasmo, por isso, legitima e salva os afetos, já que eles podem ser

orientados não só na direção do pecado, mas também no bem do espírito, conforme o livre-

30 Para Aristóteles, uma das fontes erasmianas no Enquiridion, “sabedoria filosófica é um conhecimento científico combinado com a razão intuitiva daquelas coisas que são as mais elevadas por natureza.” Por isso, ele diz que homens como Anaxágoras e Tales de Mileto possuem uma sabedoria filosófica, mas não prática, porque não são os bens humanos que eles procuram. “A sabedoria prática, pelo contrário, versa sobre as coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação” (...) Mas ninguém delibera a respeito de coisas invariáveis, nem sobre coisas que não tenham uma finalidade, um bem que se possa alcançar pela ação.” Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2004, livro I, cap. 7, 30 e livro VII, cap. 7, 10-20. 31 Erasmo. “Da variedade das paixões” In: Enquiridion, op. cit., cap. V, pp. 97. 32 Ibidem, pp. 110-111. 33 Idem, “Do homem interior e exterior, e das partes do homem segundo as Sagradas Escrituras”, cap. 6, p. 109.

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arbítrio e o bom senso humanos. O amor conjugal, por exemplo, pode ser perigoso e ruim

para o homem se ele tem por fim o prazer sensual, assim como pode ser benéfico se o

marido ama em sua esposa a “imagem de Cristo”, isto é, a sua pureza, piedade, modéstia, o

seu amor ao próximo...34 É, portanto, da escolha do homem, do exercício de seu livre-

arbítrio, que depende a sua elevação espiritual ou a sua derrocada final.

Este é certamente o principal argumento do Enquiridion, retirado de um dos mais

celebrados lugares comuns da Renascença: que não se deve confundir vícios com virtudes,

sendo esta a pré-condição necessária de seu controle, impossível sem o conhecimento dos

mesmos e de como eles incidem sobre os homens. É contra essa confusão tão comum entre

os cristãos que Erasmo se opõe tão energicamente, sendo avesso à noção tão difundida de

piedade cristã, tida como falsa pelo humanista posto que excessiva e mal direcionada para

uma lei exterior, definida pelo ritualismo, pela superstição, pelas peregrinações, pela venda

de indulgências, pelo culto aos santos e à Virgem Maria, assim como pelo lucro advindo de

todas essas práticas. A verdadeira piedade, por sua vez, para ele consistia na imitação dos

princípios deixados por Cristo de caridade, amor e piedade.

Trata-se, então, de uma disposição interior, de uma fé, que não é revelada ao

homem pela razão, mas sim pelo êxtase e pela emoção. Assim, o terceiro alvo a que se

dirige o Enquiridion: a oposição erasmiana à razão escolástica, também ineficaz em suas

tentativas de explicar cientificamente a existência de Deus35. Para o humanista a

34 Idem, p. 108. 35 O descrédito erasmiano em relação à razão está relacionado, como bem aponta Richard Popkin, ao fideísmo, que ele assim define: “aqueles que eu classifico como ‘fideístas’ duvidam que seja possível alcançar o conhecimento pelos meios racionais se nós não formos beneficiados pela ajuda de quaisquer verdades fundamentais que repousem sobre a fé (isto é, de verdades que não repousam sobre provas racionais).” Contudo, o conhecimento científico não é totalmente descartado, pois ele também contribui para a sabedoria, porém, é a fé que é imprescindível para se crer no que não se pode ver. Além disso, sua necessidade é urgente, uma vez que sem ela o homem não pode alcançar a verdadeira felicidade apenas conquistada pela vida eterna. Popkin, Richard. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 28. O fideísmo, que se apóia nos escritos de Santo Agostinho, foi resgatado e difundido pela Devotio Moderna, a “devoção moderna” dos Irmãos da Vida Simples. Esta ordem religiosa dos Países Baixos que pregava o misticismo, o fervor religioso e a adoração de Cristo, influenciou Erasmo ainda em sua juventude em Deventer. A ênfase deste movimento era posta na piedade e na devoção, que se caracterizava tanto por uma entrega à interioridade, aos exemplos deixados por Jesus, quanto pelo desprezo dos cultos externalizantes. De acordo com Bainton, havia duas correntes distintas na tradição dos Irmãos: uma representada por Thomas de Kempis, que receava que qualquer espécie de saber pudesse atrofiar o espírito, e outra vinda de Gerard Groote, que valorizava a importância dos exemplos clássicos para a compreensão do Evangelho. Esta corrente que assimilava a tradição clássica foi desenvolvida por Hegius (professor de Erasmo) e Agricola, influenciando Erasmo nos anos em que se manteve nos Países Baixos. Ainda assim, nos lembra o autor que a devoção preconizada por Kempis em sua Imitação de Cristo foi mantida por Erasmo. Cf.: Bainton, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, pp. 7-12.

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experiência da fé depende de uma busca interior e individual de Cristo que implica

imediatamente em uma negação da razão, assim como dos dogmas defendidos tão

arduamente pela Igreja. Portanto, a verdade da fé não está nos concílios (que, por sua vez,

também se contradizem), nas bulas papais ou nos decretos teológicos, mas em um retorno

ao eu interior, ao contato direto com a divindade e numa recusa aos cultos externalizantes

que apenas afastam o homem dos preceitos verdadeiramente cristãos. Este anti-

intelectualismo erasmiano está também claramente expresso no Elogio da Loucura, de

1511, que se opõe à razão presunçosa dos silogismos escolásticos, aos seus princípios

gerais e toda a sua estrutura argumentativa. Sobre os teólogos diz Erasmo:

Seu estilo regurgita de neologismos e de termos extraordinários.

Explicam à sua maneira os arcanos dos mistérios: como o mundo foi criado e distribuído; por que canais a mácula do pecado se espalhou sobre a posteridade de Adão; por que meios, em que medida, e em que instante Cristo foi terminado no seio da Virgem; de que modo os acidentes subsistem sem matéria. A estas questões, hoje banais, os grandes teólogos, os iluminados como se chamam, preferem, e julgam mais dignas deles, outras questões que os excitam ainda mais: se houve um instante preciso na geração divina; se houve várias filiações em Cristo; se é possível sustentar a proposição de que Deus Pai odeia o Filho; se Deus poderia ter vindo sob a forma de uma mulher, de um diabo, de um burro, de uma abóbora ou de um pedregulho... Incontáveis são as suas sutis parvoíces, ainda mais sutis que as anteriores. (...) O traçado de um labirinto é menos complicado que os tortuosos caminhos dos realistas, nominalistas, tomistas, albertistas, ockhamistas, scotistas e outras tantas escolas das quais só enumero as principais. A erudição de todas é tão complicada que os próprios Apóstolos necessitariam receber um outro Espírito Santo para discutir tais assuntos com esses teólogos de um novo gênero.36

O fato é que se os teólogos se dedicam a essas “bufonarias” de nenhuma

importância, eles se afastam do que realmente importa: a compreensão do Evangelho. A

ciência escolástica do ponto de vista erasmiano não atende às necessidades práticas do

homem, como a sua busca pela felicidade eterna, tornando-se por isso mera curiosidade

sobre as coisas, ciência pela ciência. Como podemos perceber no texto de Erasmo, este

sólido fideísmo expresso com uma ironia e com um tom de deboche desconcertantes,

questiona a redução da ciência teológica de seu tempo ao tratamento de questões tão

Popikin, Richard. História do Ceticismo de Erasmo à Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 28. 36 Erasmo. Elogio da Loucura. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 68-69.

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obscuras e irrelevantes, propondo em seu lugar o retorno à interioridade mística da

comunhão com Deus.

Ao combater o alcance da certeza pela razão teológica, Erasmo opõe-se também ao

mau uso da palavra feito pelos teólogos que instituíram uma forma de religiosidade muito

distante daquela praticada pelos primeiros cristãos, buscando através do bom uso da

palavra, da palavra que comove e desperta os fiéis para a verdadeira fé em Cristo, reformar

os costumes e as práticas cristãs de seu tempo. Este seria, para ele, o principal ofício do

orador cristão: trazer de volta a paixão e o contato direto com a divindade, sendo somente

através da persuasão exercida pela palavra que o humanista poderia alcançar tal objetivo.

Por isso, não é possível a um cristão renegar todas as paixões – como Erasmo demonstrou

no Enquiridion, opondo-se aos estóicos e filiando-se aos peripatéticos - pois, desse modo

seria exterminada também a fé em Cristo, a mais importante forma de afeto. Além disso,

como destaca Chomarat37, o papel dos afetos é de grande relevância para os humanistas

cristãos, sendo esta uma qualidade essencial ao orador que deseja justamente condenar os

vícios terrenos, clamar para a salvação da humanidade e, sobretudo, questionar as crenças e

as opiniões religiosas arraigadas durante séculos de domínio da Igreja Católica. Por esse

motivo, a partir da adoção de uma razão de matriz aristotélica, centrada na vida prática e

que legitima o papel dos afetos na ação virtuosa, Erasmo prefere a força persuasiva da

retórica que move as paixões dos homens e lhe inspiram o amor vivo de Cristo às

limitações que o dogmatismo da razão filosófica impõe, seja ela platônica, estóica ou

escolástica.38

37 Chomarat, op. cit., p. 61. 38 Erasmo opta por não seguir fielmente nenhuma doutrina dogmática, principalmente no que se refere às certezas da fé. Para ele existem questões totalmente obscuras e vedadas ao conhecimento humano até mesmo pela diferença entre a linguagem divina e a linguagem humana que traduz seus preceitos nas Escrituras. Portanto, não adianta ao homem se deter sobre assuntos como o livre-arbítrio, a Trindade ou qualquer outro mistério divino porque o conhecimento humano pode apenas tangenciar essas questões sem resolvê-las totalmente, pois sempre se poderá duvidar desta ou daquela assertiva. Em seu De libero arbitrio, de 1524, ao questionar até que ponto o homem é realmente livre, e ao não encontrar nenhuma resposta efetiva para esse problema, Erasmo defende o livre-arbítrio ceticamente. Diante da pluralidade de interpretações sobre esse tema, todas tendo como base as Escrituras, Erasmo propõe a suspensão do juízo. Já que a limitação da razão existe, o humanista prefere, opondo-se por isso a Lutero, a seguir a tradição, ou seja, o que a maioria aceita e concorda sobre esta questão. O argumento aceito pela comunidade tem mais garantia e validade do que o que afirma um único indivíduo contra a opinião estabelecida sobre assuntos diversos, por isso ele opta pelo consenso entre os cristãos. Esta desqualificação da razão à maneira dos céticos acadêmicos atravessa invicta todo o medievo, até que, na Renascença, a plena recuperação do esparso ceticismo acadêmico e a divulgação do ceticismo pirrônico instaurassem uma verdadeira crise na capacidade da razão alcançar qualquer verdade favorável à fé. Cf.: Popkin, Richard, op. cit., cap. II.

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36

Erasmo justifica sua escolha claramente no Enquiridion, afinal, trata-se de um

manual para a reta conduta do homem no mundo, que estabelece vinte e duas regras para os

homens resistirem aos seus vícios e seguirem a virtude. Escritas de modo claro e direto, a

sua forma é muito distante das abstrações atestadas nos sermões escolásticos que não

produziam em seus ouvintes nenhuma emoção. Tendo sido influenciado nesta época pelo

franciscano Jean Vitrier, cujos sermões não eram divididos escolasticamente, mas, pelo

contrário, poderosamente unificados por sua fé ardorosa e pelo poder de suas palavras que

causavam grande comoção em seus fiéis, Erasmo opta por uma forma discursiva limpa,

autêntica, que pudesse levar seus leitores a uma piedade fervorosa39.

Por essa razão, para Erasmo “a palavra é mais vasta que a razão, já que a retórica

com as três funções que ela distingue – docere, delectare, movere40 – é muito mais ampla

que a filosofia que lida apenas com o raciocinar e com o ensinar.”41. O movere (comover,

excitar as paixões do auditório) é um dos meios mais importantes da arte retórica que não

faz parte, no entanto, do método filosófico, que tem como princípio ensinar os ouvintes

sobre a essência das coisas. E justamente esta função retórica assume na grande maioria dos

discursos dos humanistas cristãos um papel de suma importância junto à sua pregação, que

visa antes de tudo a alteração das paixões de seus ouvintes (ou leitores) para o assentimento

das verdades cristãs.

Portanto, se Erasmo prioriza a força da argumentação persuasiva para alterar as

crenças cristãs então deturpadas, ele também conseqüentemente opta pelo caráter prático e

imediatista da retórica – em oposição às especulações abstratas da teologia escolástica -

cuja ação neste mundo seria determinante para a real conversão e salvação dos fiéis.

Podemos concluir desta análise que as três frentes que Erasmo combate no Enquiridion - o

platonismo, o estoicismo e o escolasticismo - têm um ponto em comum que lhes é

determinante: todas elas têm como princípio geral e norteador a busca de verdades

universais (e não do verossímil como defende a retórica), que as afastam das deliberações

iminentes à vida prática. Ao optar pela filosofia peripatética, imersa nas ações dos homens, 39 Sobre a espiritualidade erasmiana, seu contato com a Devotio Moderna e com Jean Vitrier ver: Bainton, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, pp. 65-88. 40 De acordo com a tradição antiga o objetivo da retórica é a persuasão, pois toda argumentação visa à adesão dos espíritos a certas teses, e os três meios de que ela se utiliza para alcançar tal fim são: a instrução, a sedução e a comoção do auditório. Cf.: Molinié, G. Dictionnaire de Rhétorique. Paris: Librairie Générale Française, 1992.

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Erasmo imediatamente também subordina esta doutrina aos poderes inerentes à retórica,

mais úteis ao combate iniciado pelo orador cristão em prol de uma reforma nos costumes

religiosos de seu tempo. Esta forma de subordinação da filosofia à retórica como renovação

da cristandade, arte superior por suas amplas funções, já pode ser encontrada em Lorenzo

Valla, que fora antes de Erasmo42 o mais ardoroso defensor desta arte. Com efeito, como

nos mostra Jerrold Seigel, Valla proclamara ser sua devoção à retórica maior do que a de

Cícero, tendo-a na conta de “rainha da verdade e da perfeita sabedoria”. Criticava assim os

filósofos que restringiam apenas a si mesmos o nome de amigos da sabedoria, deixando de

lado legisladores, oradores, chanceleres e homens de Estado cuja sabedoria governa as

cidades muito antes dos filósofos. Defensor contundente da “vida cívica”, ele renegou a

“vida contemplativa”, isolada do mundo público e da busca pelo consenso da opinião

comum. Nesta perspectiva, questionou o próprio estatuto tradicionalmente superior da

filosofia sobre a retórica, enquanto enunciadora da verdade sobre as coisas. Mais

preocupado com as questões da vida prática, Valla afirmava a superioridade da retórica

sustentando que os oradores trataram de questões éticas, morais e civis muito mais

claramente e extensivamente do que os filósofos, com seu modo obscuro que não levava

em conta os anseios do senso comum43.

2.3) A influência de Lorenzo Valla na recusa erasmiana da razão

41 Chomarat, op. cit., p. 61. 42 A influência de Lorenzo Valla sobre Erasmo é atestada por diversos biógrafos e especialistas erasmianos, como Chomarat, Halkin e Bainton, que afirmam ser a sua admiração por Valla cultivada desde a sua estadia no convento de Stein, onde troca, durante todo o ano de 1489, diversas correspondências com seu amigo Cornelio Gerard defendendo as Elegantiae de Valla das críticas feitas por Poggio. Além disso, anos mais tarde na biblioteca de Louvain Erasmo encontra um manuscrito do Novo Testamento de Valla que determinará o seu apreço pelo trabalho de exegese, assim como o cuidado com as línguas antigas, publicando, em 1505, as Anotationes sobre el Nuevo Testamento de Valla. Podemos citar ainda a relação direta que existe entre o De Voluptate (1432) de Valla e o colóquio Epicureus (1533) de Erasmo, que trataremos adiante. Cf.: Chomarat, op. cit., pp. 242-245. Halkin, Léon-E. Erasmo entre Nosostros. Barcelona: Herder, 1995, pp. 101-103. Bainton, Roland. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 76-77. 43 Siegel, op. cit., “Lorenzo Valla and the subordination of philosophy to rhetoric”, cap. V, pp. 137-169.

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A defesa da retórica feita por Lorenzo Valla está claramente exposta no Do Bem

Verdadeiro, publicado em 1431, onde ele ataca sobretudo a filosofia estóica, mostrando que

a sua pretensa sabedoria era contrária à verdade da fé cristã. Valla escreveu Do Bem

Verdadeiro enquanto era professor de retórica na Universidade de Piacenza, dividindo-a em

três partes: a primeira tratava brevemente da posição estóica; a segunda, mais longa,

atacava o estoicismo e defendia o epicurismo44; e a terceira tratava da posição cristã, a qual

ele aproximava mais da doutrina epicurista, pois, esta última, de maneira algo similar à

piedade cristã, concebia a vida humana em sua condição própria sem buscar a

transcendência e legitimava o papel dos afetos na ação virtuosa.

Timmermans45 nos diz que a associação realizada por Valla entre o epicurismo e o

cristianismo foi feita de modo pouco cuidadoso, principalmente se comparada à mesma

relação feita por Erasmo alguns anos mais tarde. Mas, por outro lado, a existência de

algumas inconsistências derivam do fato de ter sido ele o primeiro humanista a tratar desse

tema. Todavia, é preciso destacar que a sua defesa do epicurismo foi apenas para contrapô-

lo ao estoicismo, considerada a escola que melhor encarnava os ideais filosóficos na

Antigüidade, tendo em vista que Valla não demonstra no restante das suas obras nenhuma

vinculação estreita com esta escola. Na verdade ele não pretendia firmar sua lealdade a uma

doutrina filosófica, mas sim atacá-las todas sob a crítica aos estóicos, pois objetivava a

plena defesa da fé cristã que era em si incompatível com o culto filosófico pagão da

virtude. Para o humanista, os atenienses, os romanos e os muitos professores de virtude na

Antigüidade estavam muito distantes da prática ou do entendimento do real significado da

virtude. Eis o que diz Valla sobre a filosofia:

Eu não me envergonho de desprezar e condenar a filosofia, desde que Paulo encontrou imperfeições nela, e Jerônimo e outros chamaram os filósofos

44 Jerrold Siegel nos diz que não há nenhuma indicação de lealdade de Valla ao epicurismo em seus trabalhos, já que além dessa obra, a menção a esta escola só aparece no Apology to Eugene IV, estando ausente de outros trabalhos do humanista como o Ensaio sobre o Livre Arbítrio e as Disputas Dialéticas. Ainda assim, mesmo que o seu argumento não seja constante em seus trabalhos e ainda que a sua defesa do epicurismo esteja diretamente relacionada à condenação filosófica do estoicismo, por ser esta corrente filosófica contrária aos ideais do orador, a forma como ele salva as paixões epicuristas é muito próxima do modo que Erasmo o faz em seu Enquiridion. Siegel, J. Idem, pp. 145-146. 45 Segundo Timmermans, Valla mutila alguns aspectos centrais do epicurismo para poder associá-lo ao cristianismo. Timmermans. “Valla et Érasme, défenseurs d’Epicure” in Neophilologus, nº 23, pp. 414-419.

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de fomentadores da heresia. Desfazer-se da filosofia por isso, é também desfazer-se da heresia46.

Como podemos perceber, Valla não condenou a cultura antiga em geral, mas apenas

a cultura filosófica e, sobretudo, a estóica. Ele aceitava, por outro lado, a retórica por sua

compatibilidade com o cristianismo ajudando a difundir a fé sob o exercício da palavra

persuasiva. Mas, quais seriam as razões de Valla para a sua negação da razão filosófica, e o

que isso realmente significaria no inovador pensamento deste humanista? Em que

implicaria esse ceticismo de Valla em relação aos poderes da razão? Estas são algumas

questões que surgiram ao aproximarmos estes dois pensadores, ao identificarmos a

influência direta de um sobre o outro, e também ao percebermos a importância para ambos

da linguagem como mediadora de toda experiência humana, que se torna, por sua vez, uma

preocupação central entre os humanistas dos mais diversos países europeus, afetando os

trabalhos de Agricola na Alemanha, de Luis Vives na Espanha, de Budé na França, de

Thomas Asham na Inglaterra, entre tantos outros. Esta preocupação com a linguagem e

com as estratégias de argumentação que dela derivam é uma característica comum entre os

humanistas da Renascença, sendo, por isso, de grande relevância para nosso trabalho

compreender até que ponto esta valorização da ars retórica compromete o apreço pela

filosofia, e que filosofia realmente é esta que está sendo depurada. Estas são algumas das

questões que estão presentes em todo este trabalho, e que começamos a tratar ao longo

deste capítulo sem a pretensão de resolvê-las aqui. Não nos esqueçamos que a busca pela

linguagem ideal, que se relaciona diretamente, como já vimos, com a noção da dignidade

do homem, é traduzida e expressa pela busca da mais pura latinidade, tal como Erasmo

desenvolve em seu De duplici copia verborum ac rerum, de 1512, que analisaremos no

capítulo 3.

Por isso, antes de adentrarmos na observação deste manual que teve pelo menos

oitenta e cinco edições publicadas na Europa Ocidental e que foi o principal disseminador

da necessidade da união entre res e verba, oriunda da tradição de Cícero e Quintiliano,

cuidaremos de algumas das justificativas mais comuns entre os humanistas para a defesa da

arte retórica, fundamental na sua pregação cristã. Mas o que leva Erasmo em determinados

momentos da sua vasta obra a basear sua defesa da ars rhetorica da mesma maneira que

46 Valla, On the true Good apud Siegel, op. cit., p. 156.

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fizera Valla, ou seja, sob uma condenação expressa da tradição filosófica? E que espécie de

tradição é esta que surgia como tão contrária aos anseios de ambos pela renovação da fé?

O nosso argumento é que tanto Valla quanto Erasmo combatem em duas frentes

distintas: uma combate a razão filosófica dos antigos que pretende alcançar as verdades

universais, e a outra se opõe à razão escolástica, que procura dar uma resposta absoluta aos

mistérios da fé, tais como a natureza da Trindade, a ressurreição de Cristo, e a profundidade

do inferno. Ambas questionam uma noção de verdade absoluta, irrepreensível e

inquestionável, já que para eles a verdade não está dada a priori à ação dos homens, nem

tampouco cabe a eles desvendar os mistérios divinos que lhes foram negados pela própria

distância infinita existente entre a linguagem divina e a humana. No entanto, é próprio do

homem se aproximar destas verdades através de uma apreensão mais clara e mais direta dos

textos sagrados. Por essa razão, para eles a verdade emerge do apuro filológico e da

pesquisa dos textos sagrados que deveriam guiar a conduta cristã, assim como da correção

de erros antigos aceitos e disseminados pela tradição, e, sobretudo, pela divulgação dessas

correções com o auxílio da imprensa, veículo que Erasmo soube muito bem aproveitar em

sua época. Com a emergência deste novo critério de verdade, imanente à ação investigativa

do homem, pode-se compreender melhor as críticas de Valla e Erasmo à razão

contemplativa dos estóicos e dos escolásticos.

Na perspectiva cristã de Valla os estóicos estavam errados ao colocarem no ideal de

virtude a base por excelência para o alcance da eudaimonia (felicidade). Segundo esta

doutrina o homem deve afastar-se do mundo público para encontrar a sabedoria e a virtude

buscada em função de si mesma, expressando o anseio de realização e transcendência plena

das fraquezas humanas ainda neste mundo. Portanto, a honestas era o bem maior e mais

alto pelo qual se deveria almejar. A escolha estóica consiste então na “exigência do bem,

ditada pela razão que transcende o indivíduo47”. Diferentemente desta, a busca pela

felicidade na doutrina epicurista consiste no prazer e no interesse individual. No entanto,

como destaca Pierre Hadot, Epicuro propõe que se deve ter cuidado com os prazeres vãos,

“doces e lisonjeiros”, porque estes são insaciáveis, provocando por isso um grande

sofrimento àqueles que se dedicam a cultivá-los. Por essa razão, é necessário distinguir

entre estes e os prazeres que nos deixam em equilíbrio e com a alma tranqüila. Controladas

47 Hadot, Pierre. O que é a Filosofia Antiga? São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 188.

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as perturbações e os desejos que nos afligem, os homens podem suprimir aqueles que não

lhes são necessários e escolher entre aqueles que lhes são naturais de forma ascética48. A

aceitação e o controle dos prazeres é bastante compatível com o cristianismo, pois o cristão

deve buscar a virtude não como sua realização última neste mundo, mas sim no interesse de

um prazer mais pleno só alcançável pela salvação. É por essa razão que o homem deve –

como propõe Erasmo no Enquiridion – conhecer os vícios que mais incidem sobre seu

corpo para desta forma poder controlá-los e dirigi-los à virtude. Da mesma forma, diz Valla

em sua crítica aos estóicos em Do Bem Verdadeiro:

Não apenas eu dou preferência aos epicuristas, homens vulgares e desdenhados, face aos guardiões da honra, mas eu mostrarei que estes perseguidores da sabedoria, seguem não a virtude, mas sim a sombra da virtude, não a honestas, mas a vaidade, não o dever, mas o vício, não a sabedoria, mas a loucura, e eles fariam melhor se se entregassem ao prazer se de fato eles não fazem isso49.

Como já vimos, o estoicismo era considerado pelos humanistas, assim como por

Cícero, a escola da Antigüidade que melhor expressava a tradição filosófica antiga da busca

da sabedoria, sobretudo por seu apreço ao cultivo das virtudes essenciais ao homem,

enquanto o epicurismo era condenado na Renascença por ser erroneamente associado à

busca desenfreada dos mais diversos prazeres. Mas Valla, ao contrário, tal como se vê

acima, invalida o ideal de honestas relacionado à conduta ordenada, ao senso de

propriedade, balanço e proporção. A justa medida era o aspecto da doutrina estóica louvado

pela maioria de seus contemporâneos, associado à dissimulação da procura por prazer,

glória e honra tão comum a todos os homens, e que tais filósofos ligavam à aquisição da

sabedoria.

48 Idem, pp. 169-174. 49 Valla, On the true Good apud Siegel, op., cit., p. 149. Enquanto a retórica lida com as multidões e com a busca pelo consenso, a filosofia estóica, assim como a platônica que veremos a seguir, rejeitam o verossímil e a busca pela glória vã dos oradores nas cidades. Sobre isso Sêneca aconselha Lucílio na carta 7 a afastar-se do aplauso do prazer oriundo da multidão pois os “teus autênticos bens são apenas do foro íntimo”. Na carta 20 diz ele: “interioriza a filosofia no mais íntimo de ti mesmo e fundamenta a avaliação do teu progresso não em palavras que digas ou escrevas, mas sim na tua firmeza de ânimo e na diminuição dos teus desejos; comprova as palavras com atos! Diferente é o propósito dos declamadores que pretendem ganhar o aplauso da assistência, diferente é também o dos conferencistas que atraem a atenção dos jovens e dos ociosos pela variedade dos temas ou pela elegância da exposição; a filosofia, essa, ensina a agir, não a falar, exige que cada um viva segundo as suas leis, de modo que a vida não contradiga as palavras, nem sequer contradiga a si mesma.” Sêneca, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, carta 20, p. 70.

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Segundo Seigel, a radicalidade das suas críticas à filosofia seria o grande diferencial

de Valla em relação a outros humanistas do século XV, como Petrarca, Leonardo Bruni e

Salutati, pois, além de não atribuir nenhuma importância a esta disciplina, ele destaca o

cristianismo como fonte máxima e única de saber voltado para a salvação. Contudo, Siegel

nos diz que Valla segue ainda mais além ao associar as perspectivas morais do cristianismo

com o epicurismo, pois subjacente a isso está a associação do cristianismo com a retórica.

Ao propor esta relação ele nos diz que de pontos de partida diferentes o orador pagão e o

cristão chegam às mesmas conclusões. O cristão rejeita os ensinamentos dos filósofos

porque prefere a doutrina cristã da fé que lhe é superior, enquanto o orador se opõe desde a

Antigüidade à filosofia porque, ao contrário desta, a retórica aceita o verossímil advindo do

consenso entre as opiniões do senso comum em vez de se deter à busca infinita de verdades

universais50.

Da mesma forma que Erasmo afirmou no Enquiridion ser a razão incapaz de se

aproximar da fé cristã por renegar completamente toda sorte de paixões, inclusive a paixão

em Cristo, Valla, setenta e dois anos antes já desenvolvia o mesmo argumento, que sem

dúvida influenciou o humanista roterdanês. Nossa hipótese sobre a influência de Valla em

Erasmo – tanto no Enquiridion quanto no colóquio O epicurista, no qual Erasmo retoma

claramente os argumentos de Valla, porém de forma mais elaborada que o italiano - reside

basicamente sobre dois aspectos. O primeiro deles é que ambos os autores rejeitaram a

tradição filosófica, principalmente estóica, por esta instruir o homem a afastar-se do senso

comum, pondo-se em busca da verdade transcendente por suas próprias forças para a

aquisição da sabedoria. O segundo aspecto, que também se manifesta nos trabalhos dos

dois humanistas, reside na valorização da retórica, ou seja, do poder da palavra em

desestruturar crenças e dogmas instaurados erroneamente.

Esses dois pontos, como em Valla, aparecem também no último colóquio erasmiano

do Familiarium colloquiorum opus, chamado Epicureus (O epicurista), publicado na

última edição dos Colóquios em 1533. De acordo com Bierlaire, nesse diálogo entre

Hedonius (aquele que procura o prazer) e Spudaeus (o homem sério), Erasmo, “bom

discípulo de Valla, aprofunda sua pesquisa, assimilando o cristianismo à doutrina

50 Seigel, op. cit., p. 158.

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fundamental de Epicuro”51, procurando compreendê-la ao invés de associá-la, como

acontecia na Antigüidade, à busca infinita pelo prazer. A voluptas epicurista é neste

colóquio associada não aos prazeres terrenos, mas sim à busca por uma vida feliz e por um

espírito são, cuja consciência se mantém tranqüila, pois ninguém vive de modo mais doce

que os homens piedosos52. Para Hedonius é a alma a fonte dos prazeres superiores, que

suprime a sensação da dor física e que torna agradável o que é penoso. Por isso, diz ele que:

Se o amor, que é comum aos homens, aos touros e aos cachorros, possui

uma tal força, maior ainda será aquele que provém do amor celeste, do espírito de Cristo. Tão grande é o seu poder que ele pode tornar amável até mesmo a morte, o mais terrível dos males53.

A filosofia epicurista nos diz que a felicidade reside na voluptuosidade, em quem

comporta um máximo de prazer e um mínimo de sofrimento. Contudo, afirmar que aqueles

que Cristo chama de bem-aventurados são aqueles que vivem de uma maneira voluptuosa

parece para Spudaeus um grande paradoxo. Diante dessa aparente contradição,

principalmente se pensarmos nas regras cristãs e no Deus castigador do Antigo Testamento,

Spudaeus não se sente inteiramente convencido. Hedonius, porta voz de Erasmo nesse

diálogo, busca então persuadir seu interlocutor de que o maior prazer reside na piedade. É

ela que torna o homem feliz, pois concilia novamente o homem com Deus. O homem deve

dedicar-se aos prazeres autênticos, que, por sua vez, não estão em uma vida de vícios e

orgias, pois essas “voluptuosidades têm sua origem em bens que são falsos. Por

conseqüência ilusórios.54”

A verdadeira voluptuosidade reside apenas num espírito santo, e por isso, “ninguém

vive de modo mais doce que os homens piedosos”. Afinal, Deus é o soberano bem, “nada é

mais belo, mais amável e mais doce que ele.” Para Hedonius as paixões devem sim ser

mantidas, pois se “deixarmos de lado as que são funestas, como a cupidez, a ambição, a

cólera e a inveja”, podemos desfrutar do maior prazer entre todos, que é o amor a Cristo e a

possibilidade de gozar os mais elevados prazeres na vida eterna.

51 Bierlaire, Franz. Érasme et ses Colloques: le livre de d’une vie. Genève: Droz, 1977, p. 113. 52 Érasme. “Epicureus” in: Editions Robert Laffont, pp. 372-389. 53 “Si l’amour, qui est commum aux hommes, aux taureaux e aux chiens, possède une telle puissance, plus grande encore sera celle de l’amour céleste qui procède de l’espirit du Christ. Si grand est son pouvoir qu’il peut rendre aimable la mort elle-même, le plus terrible des maux.” Idem, p. 376. 54 “Ces voluptés, enfin, ont leur origine dans des biens qui sont faux. Par conséquent, ce sont aussi des illusions”. Ibidem, p. 378.

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Assim, tanto para Erasmo quanto para Valla, os epicuristas são superiores aos

estóicos, tendo em vista que estes acreditavam ser a virtude filosófica o bem supremo,

alcançado apenas por poucos sábios ainda nesta vida. Já os epicuristas, ao legitimarem os

afetos (não tendo a pretensão de exterminá-los, como os estóicos, mas apenas controlá-los

conforme o juízo de cada um), se aproximam mais do cristianismo, legitimando a virtude

mundana pela busca de prazer, que no caso do cristão se define pela esperança de salvação.

Ora, o que é a fé senão a crença em um só Deus da qual partilham todos os cristãos?

Se a exterminamos, isso certamente significaria o fim do cristianismo. A felicidade eterna é

o bem supremo do qual muitos fiéis pretendem ser beneficiados, e não simplesmente uma

virtude alcançada por poucos homens como querem os estóicos. Portanto, tanto para Valla

quanto para Erasmo, se a tradição filosófica contrariava a fé cristã, a retórica dos antigos

estava, ao contrário, a serviço de seus esforços pela renovação da cristandade, tendo a

prerrogativa de agir sobre os afetos do homem comum inspirando em todos o verdadeiro

amor a Cristo.

Assim, para Valla, o cristianismo não deve renegar a cultura pagã, pois a arte

retórica é um dos maiores bens que o homem antigo deixou para os cristãos, enquanto a

filosofia, que não pode ser comparada em consistência com a religião cristã, deve ser

substituída pelo amor a Deus. Prova disso é o uso da tradição retórica pelos padres da

Igreja. São Paulo, que se destaca particularmente por sua eloqüência, assim como São

Jerônimo, fizeram amplo uso dessa arte na sedução e persuasão dos fiéis, beneficiando

diretamente a fé. Como podemos ver, o argumento de Valla se assemelha muito com a

defesa da retórica feita por Erasmo, pois, se a filosofia discute questões abstratas sem

nenhuma relação com a vida prática e com a salvação, a retórica é um instrumento para,

através da persuasão, elevar o homem até à divindade.

Mas se, como já vimos, Valla desposou a retórica e atacou a tradição filosófica de

maneira tão mais contundente que os primeiros humanistas, mesmo ele não pôde desdenhar

da busca pela sabedoria com completa consistência, tamanho era seu apelo na cultura

humanista de resgate dos Antigos. Por essa razão, Valla se viu forçado a substituir a

filosofia dos filósofos por uma outra que fosse mais adequada aos princípios cristãos: a

“philosophia Christi”. Valla buscou em vez de reconstituir a filosofia dos antigos,

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redescobrir a filosofia que aceitasse o seu lugar sob o domínio da oratória55. Portanto, tanto

em Valla quanto em Erasmo o conteúdo a ser tematizado, longe de estar relacionado com as

questões relativas à filosofia clássica, antes devia ser útil ao cristianismo. A relação entre a

retórica e o cristianismo é o grande diferencial de Valla e Erasmo para com os humanistas

cívicos, que retomavam diretamente da Antigüidade as questões e as soluções dadas pelos

antigos no que se refere à política e à vida cívica. Desta forma, acreditamos que no caso

desses autores de um modo geral a filosofia estaria sim subordinada à retórica, já que os

programas educacionais e religiosos destacavam particularmente a variatio dos autores,

porém não estabelecia qualquer vinculação direta com nenhuma doutrina filosófica

específica, mas, apenas ao cristianismo, que unia o saber e a eloqüência em prol de seus

objetivos superiores.

Não é sem importância mostrar com que força a temática das relações que podem

ser estabelecidas entre retórica e filosofia atravessou gerações de humanistas, tendo em

Erasmo o seu maior catalizador, e se tornando, por esse motivo, de grande relevância para a

compreensão das escolhas feitas por eles entre dois métodos educacionais distintos: um que

prioriza a retórica e outro que atribui maior importância à filosofia. O foco de nossa análise

reside então sobre a escolha (ou as escolhas) feitas por Erasmo, assim como o entendimento

das suas implicações para o desenvolvimento de todo o movimento de revolução intelectual

e pedagógico iniciado por ele.

2.4) O papel da herança ciceroniana nos esforços humanistas de reconciliação entre retórica e filosofia

A supervalorização da eloqüência e da função do orador que ocorre na Renascença

foi moldada sob a influência quase que majoritária dos trabalhos de Cícero, como o De

Inventione (Da invenção) e o De Oratore (Da oratória), fontes principais sobre as quais se

baseou a busca humanista de conciliação entre retórica e sabedoria. O orador romano

justifica seu interesse por essa arte devido ao fato de serem justamente os homens hábeis no 55 Siegel, idem, p. 161.

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falar os responsáveis pela resolução de uma parte não negligenciável de aborrecimentos e

conflitos existentes na cidade. Uma parcela ampla e crucial da vida civil, portanto, deveria

ser ocupada pela “forma de eloqüência artística que se conhece geralmente por retórica,

cuja função é falar de um modo programado para persuadir, e cuja meta é persuadir através

da fala56”. O que Cícero insiste, repetindo seu argumento alguns anos mais tarde no De

Oratore, é a necessidade premente de se reunir novamente a arte retórica à sabedoria

filosófica, outrora condenada por Platão nos inícios de um conflito entre as duas artes que

atravessaria séculos de cultura ocidental.

A proposta ciceroniana de uma educação voltada tanto para a arte retórica quanto

para o aprendizado dos saberes mais gerais reflete e retoma algumas das características

centrais do ataque de Platão aos sofistas realizados já no século IV a.C., que são

condenados pelo filósofo por seu ensino voltado para o aprendizado de técnicas retóricas

que estariam mais preocupadas com a persuasão do auditório do que com a busca racional

pela verdade57. Da obra deste filósofo emerge a associação dos sofistas com os raciocínios

falaciosos e com a defesa do que é moralmente condenável, ou do que aparenta ser a

verdade. O sofista é transformado por Platão na antítese do filósofo, assim como a retórica

em relação ao pensamento justo. A condenação de Platão em obras como o Sofista, o

Protágoras e o Górgias, foi determinante na história da retórica, pois, nesse momento, ela

passa a estar associada tanto com a sedução quanto com a manipulação dos espíritos pelos

discursos e idéias. Apenas no final do Fedro, um dos seus últimos trabalhos, o filósofo

procura atribuir algum valor à retórica, se esta, por sua vez, estiver associada à verdade.

Esta seria a única forma de utilização dessa arte que, nesta perspectiva, não trataria mais do

verossímil, mas apenas da verdade.

56 Cícero, De Inventione, livro I, V.6, p. 61. 57 Segundo Marcel Détienne, no regime da palavra mágico-religiosa da Grécia arcaica, os contrários - tais como alethes (verdadeiro) e pseudes (falso) - não se excluíam de modo definitivo, funcionando, antes, em uma relação de complementaridade que deixará de ser viável no processo de laicização da palavra, estreitamente ligado à invenção da democracia no mundo grego no período clássico. Contrários que se opõem de forma complementar, sem se excluírem radicalmente, se tornarão de fato impossíveis, na lógica da contradição em que irá se apoiar o pensamento laicizado, ancorado na racionalidade. É nesse contexto que a sofística, para ser desqualificada, irá ser inscrita, tanto por Platão quanto por Aristóteles, no campo oposto ao da verdade. Primeiro porque os sofistas trabalhariam apenas com o falso, e além disso - e mais grave ainda - porque diriam o falso com a intenção de enganar, seduzir e persuadir, utilizando todos os recursos do logos para obter êxito rentável, seja como oradores ou como professores. Cf.: Détienne, Marcel. Os mestres da verdade no mundo antigo.

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Considerar o homem prioritariamente como um pensador, como faz Platão, implica

necessariamente na escolha de um método de ensino totalmente diferente daquele

ministrado pelos sofistas e preocupado com a arte do falar em público. Deste modo, a

escolha por uma opção ou por outra implica na decisão por um único programa

educacional. O contraste entre um programa cultural organizado em torno da retórica e

outro estruturado em torno da filosofia é a questão central de um dos mais importantes

conflitos da Antigüidade58. Enquanto os sofistas treinavam seus alunos para a conquista de

sucesso no mundo público, a nova paideia filosófica estava baseada na compreensão

filosófica e na definição intelectual e moral do homem. Portanto, segundo Seigel, a

confrontação entre retórica e filosofia nos diálogos socráticos pode ser definida como uma

competição entre dois métodos intelectuais, pois cada um deles impunha expectativas

diferentes para seus estudantes, tendo também uma imagem diferente do que era apropriado

à educação do homem59.

As qualidades que a retórica e a filosofia buscavam desenvolver nos homens que as

adotavam eram, respectivamente, a eloqüência e a sabedoria. Eloqüência para os oradores

antigos significava acima de tudo – inclusive do estilo e dos ornamentos empregados pelo

orador – a produção de um discurso voltado para a persuasão, sendo esta a tarefa principal

do orador. Afinal, como diz Cícero, o que há de mais importante que o poder de, pela

palavra, “reter a atenção dos homens das assembléias, seduzir as inteligências e excitar as

vontades? (...) Que força é essa capaz de domar as paixões do povo, triunfar sobre os

escrúpulos dos juízes e abalar a firmeza do Senado?60” Era justamente para a persuasão dos

ouvintes do mundo Antigo que a retórica ensinada pelos sofistas estava voltada. Enquanto o

orador se preocupava com a ação do homem nos negócios públicos da cidade, o filósofo se

dedicava ao conhecimento contemplativo, à busca pela verdade universal e à essência das

coisas.

Esta diferenciação que pode parecer à primeira vista muito radical não perdurou,

entretanto, intacta durante toda a Antigüidade, já que Cícero concentrou seus esforços em

unir as duas disciplinas ou, se preferirmos, os dois métodos distintos de ensino. Antes dele

58 Seigel, Jerrold., op. cit., p. 13. 59 A nossa pesquisa já tratou da análise desses dois métodos distintos – o retórico e o filosófico - , assim como a sua influência na reforma pedagógica proposta pelos humanistas na Renascença nos itens 1, 2 e 3 do capítulo 1. 60 Cicéron. De L’Orateur. Paris: Belles Letres, 1938, livro I, VIII, 30-31.

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Aristóteles e Isócrates já enfatizavam a importância da retórica para a filosofia, afinal,

como o discurso filosófico poderia convencer seu auditório das verdades por ele

descobertas sem as técnicas retóricas de persuasão? Mas foi Cícero o primeiro a admitir que

a retórica poderia ser útil em todas as áreas do saber, não ficando restrita apenas aos

negócios públicos61.

No primeiro livro do De Oratore, Crasso (um dos personagens do diálogo

ciceroniano e seu porta-voz) desenvolve o argumento de que a seus olhos o domínio da

eloqüência se estende a todas as atividades humanas e, por esse motivo, a cultura do orador

deveria ser enciclopédica, tendo em vista que a sua elevada função excedia em muito os

limites do pretório. Além disso, saber tratar de todos os assuntos era elemento fundamental

para a persuasão, já que eram as qualidades e potencialidades do orador que determinavam

seu sucesso ou fracasso. Para Cícero, as funções do orador não estavam reduzidas apenas a

saber falar com abundância frente aos juízes, diante do povo ou do senado; ao orador era

ainda “necessário o aprendizado de uma grande quantidade de conhecimentos, que ele

deveria dominar bem62.” Um orador que não conhece as leis, os costumes, o direito civil,

que não estuda a natureza e as paixões que atingem o coração do homem, enfim, que não

possui os conhecimentos filosóficos mais elevados, não deveria exercer tal função, pois, se

ele limitasse o seu papel à procura da forma perfeita, à escolha mais apropriada das

palavras, ao encadeamento mais pertinente da argumentação ou à riqueza de expressão,

como ele seria capaz de alcançar objetivos mais altos só atingíveis a partir de uma cultura

geral? “A arte do bem dizer, [diz Cícero], supõe necessariamente daquele que fala o exame

anterior e profundo da causa que ele trata.63” Se para nós hoje em dia nos parece óbvio que

o discurso do orador não dependa apenas da forma, mas também do conteúdo, ou seja, da

união entre res e verba64, essa era, ao contrário, uma questão extremamente polêmica para

os homens da Antigüidade, já que o domínio do filósofo, em muitos casos, era apartado

daquele do retor.

61 Siegel chama atenção para esse ponto como o maior diferencial entre Cícero e Aristóteles. Cf.: Siegel, op. cit., p. 20. 62 Idem, livro I, XI, 48, p. 23. 63 Ibidem, livro I, XI, 48, p. 23. 64 Cave se dedica a essa associação analisando o De copia de Erasmo. Cf.: Cave, Terence, op. cit., parte I.

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A retórica, se comparada à filosofia, tanto na Grécia quanto em Roma, era

considerada uma arte menor devido ao mau uso que poderia ser feito por oradores

inescrupulosos. Por outro lado, o perigo da eloqüência (verba) não servir à sabedoria (res)

estava imediatamente relacionado ao perigo de uma sabedoria (res) sem eloqüência (verba).

O que Cícero e até mesmo outros antes dele perceberam foi que uma expressão vazia é tão

ruim quanto uma sabedoria expressa de forma seca e não persuasiva. Portanto, estes dois

conceitos – verba e res – deveriam andar sempre juntos, pois não havia, na perspectiva do

orador latino, absolutamente nenhum motivo para que eles estivessem separados. Se as

duas se harmonizassem, a sabedoria poderia se fazer ativa e a eloqüência poderia se exercer

segundo os interesses da verdade.

Estamos insistindo na argumentação ciceroniana pois é justamente essa combinação

que emerge diversas vezes e de formas distintas nas obras dos primeiros humanistas

italianos como Petrarca, Leonardo Bruni, Collucio Salutati e Lorenzo Valla, sendo

determinante também para o entendimento de todo programa educacional desenvolvido um

pouco mais tarde por Erasmo de Rotterdam, Thomas More, John Colet, Melanchton,

Etienne Dolet, e outros. Na verdade, os primeiros humanistas, herdeiros diretos da tradição

clássica, retomam esse ideal diretamente das obras de Cícero que foram redescobertas no

século XIV, ainda que o fizessem de formas diversas optando ora pela sobreposição da

filosofia à retórica, como é o caso de Petrarca, ora pela sobreposição da retórica à filosofia,

como é o caso de Lorenzo Valla, ambos os casos analisados por Jerrold Seigel em sua obra

Rhetoric and Philosophy in Renaissance Humanism. Os principais manuais educacionais

dos séculos XV e XVI tinham como força motriz comum uma drástica reforma pedagógica

centrada na valorização da retórica e da vida cívica. Entre as obras erasmianas que se

opunham diretamente aos ideais pedagógicos medievais podemos citar o Antibarbari, o

Rationne studii, o De copia rerun et verborum, os Colloquia e os Adagiarum Collectanea

como exemplos de como um bom discurso pode manipular as paixões humanas e estimular

uma boa conduta moral.

Nesta simples idéia estão presente as bases de todo o projeto de reforma educacional

erasmiano: a união entre o conhecimento das línguas antigas – o latim e o grego –, assim

como de seus principais expoentes clássicos, com o conhecimento das Escrituras. Erasmo

reencontra então o sentido de uma tradição estabelecida na Antigüidade desde Platão,

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quando ele separa drasticamente os campos da filosofia e da retórica, optando pela

conciliação entre essas duas disciplinas realizada séculos mais tarde por Cícero.

Assim, para finalizarmos esta parte, retomando temas importantes abordados ao

longo deste capítulo gostaríamos de ressaltar ainda uma vez mais que Erasmo coloca a

função do orador acima de todas as outras: sendo aquele que se torna o mediador entre os

homens, descobrindo quais os assuntos mais importantes de se fazer conhecer e qual a

melhor forma de revelar a verdade e persuadir seus ouvintes. Recuperando a força que a

figura do orador assumia na Antigüidade, assim como a necessidade de um vasto

aprendizado que o capacitasse a tão árdua tarefa, o humanista ressalta, em acordo com a

tradição de Cícero e Quintiliano, cujos textos estavam sendo cada vez mais divulgados por

toda a Europa, a necessidade da eloqüência para fins morais, pedagógicos e religiosos,

desenvolvendo, uma preocupação ainda mais devocional. Isto se confirma tendo em vista

que Erasmo faz uso da eloqüência com o objetivo de conter “as deformações introduzidas

na vida espiritual dos cristãos65”. A eloqüência para o humanista tem uma função

essencialmente prática: alertar os cristãos, estimulá-los à boa conduta para assim aproximá-

los da divindade e disseminar a verdade através da arte da persuasão.

Portanto, dada a complexidade dessas questões e da influência direta da tradição

clássica nas obras de Erasmo, optamos por iniciar nossa análise pelas origens da retórica e

seu emprego na vida política ateniense pelos sofistas em oposição às críticas platônicas ao

modelo retórico. Em seguida à oposição platônica à retórica, passamos para a união entre

retórica e filosofia proposta por Cícero, suas ambigüidades inerentes, assim como sua

influência direta nos trabalhos pedagógicos e retóricos de Erasmo de Rotterdam: Ratio

studdi, de 1511, e o De copia rerum et verborum, publicado em 1512 a pedido de seu

amigo John Colet.

2.5) As origens da retórica

Até bem pouco tempo muitos especialistas localizavam o aparecimento da retórica

em 465 a.C., com o surgimento da primeira Teoria Retórica escrita por Córax e Tísias,

65 Erasmo de Rotterdam. Elogio da Loucura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 28.

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então considerada uma resposta às urgentes necessidades das sociedades gregas, onde a

palavra escrita e falada assumiam um papel essencial na manutenção da estrutura

democrática nascente. George Kennedy66 afirma inclusive que o termo grego rhétoriké teria

sido empregado provavelmente apenas no século V a.C. por Sócrates e seus discípulos,

enquanto o primeiro indício escrito deste conceito apareceria uma geração mais tarde no

diálogo Górgias de Platão, escrito possivelmente no ano de 385 a.C. Por estar associada

estritamente ao cenário político e às resoluções públicas, o termo rhétoriké foi definido

como a arte cívica de falar publicamente, sendo usada em assembléias, cortes, júris e outras

ocasiões formais sob o regime da democracia, sobretudo ateniense, com o intuito explícito

da persuasão dos ouvintes da tese proposta pelo orador.

Contudo, outras abordagens indicam uma outra direção a este debate. Autores como

Françoise Desbordes67, M. Delaunois68, Ísis da Fonseca69 e Ariovaldo Peterlini70, acreditam

que as obras literárias mais antigas nos legaram uma tendência natural para a eloqüência,

como podemos notar já nos poemas épicos e líricos e ainda em algumas tragédias do século

VI a.C.

Uma das fontes antigas que endossam esse argumento é o depoimento de

Quintiliano em sua Institutio oratoria71, século I d.C., ao afirmar que já em Homero

podemos encontrar alguns elementos da arte retórica, ao contrário do que é mais

66 Kennedy, George. A new history of classical rhetoric. New Jersey: Princeton University Press, 1994, p. XI. 67 Segundo esta autora, as fontes antigas oferecem numerosas versões concorrentes sobre as origens da retórica: Quintiliano, por exemplo, considera Homero o pai da retórica. Aristóteles, por sua vez, nos apresenta duas versões: em seu diálogo Sofista, afirma ser Empédocles o inventor da retórica, mas já em suas Refutações Sofísticas ele cita vagamente Tísias. De todo modo, segundo Desbordes, as fontes mais citadas na Antigüidade são Córax e/ou Tísias, os primeiros a reconhecer e a tematizar um certo tipo de poder da retórica, suscetível de obter resultados concretos e de modificar o rumo das coisas. No entanto, para ela a prática retórica assim como algumas definições prévias são anteriores ao surgimento da technè, ou seja, de um conjunto de técnicas discursivas apropriadas e direcionadas ao orador para que ele consiga persuadir o auditório ao qual ele se destina, que podem ser encontradas já em textos homéricos do século VI a.C. Desbordes, Françoise. La Rhétorique Antique: l’Art de Persuader. Paris: Hachete, 1996, pp. 10-16. 68 Delaunois, em sua obra Le plan rhétorique dans l'éloquence grecque d'Homère à Démosthene nos diz que a eloqüência nos poemas homéricos nada tem de sistemático. O poeta serve-se, sem dúvida, das leis psicológicas da persuasão, mas não distingue nem gêneros, nem planos. Os oradores falam de acordo com seu temperamento e de acordo com as circunstâncias em que se encontram. Para ele, no entanto, entre os personagens de Homero, há certas tendências oratórias que, fixadas e acentuadas em seguida nas escolas de retórica, darão como resultado discursos lógicos. Cf: Delaunois, M. Le plan rhétorique dans l'éloquence grecque d'Homère à Démosthene. Belgique: Acad. Royale, Classe de Lettres, 1959, p.15. 69 Fonseca, Ísis Borges B. da. "A retórica na Grécia Antiga" in: Mosca, Lineide do Lago Salvador. Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004, pp. 99-118. 70 Peterlini, Ariovaldo. "A retórica na tradição latina" in: Mosca, idem, pp. 119-144. 71 Cousin, J. (Ed.) Quintilien: Institution oratoire. Paris: Belles Lettres, 1975-1980. 7v.

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freqüentemente aceito pela historiografia: que ela tenha surgido em decorrência da

instauração das repúblicas gregas do século V a.C. Segundo ele, na Ilíada, Homero

distingue os três estilos reconhecidos posteriormente pela retórica: o estilo simples é

representado pelo discurso de Menelau, o estilo médio pelo de Nestor e o estilo grandioso

pelo discurso de Ulisses. Por isso, em sua Institutio oratoria, esta é a sua posição sobre

Homero:

Ele nos deu o modelo e o ponto de partida de todos os aspectos da

eloqüência. Ninguém saberia ultrapassá-lo no sublime ao tratar dos grandes temas, e na exatidão ao cuidar dos pequenos. Ele é ao mesmo tempo exuberante e capaz, alegre e grave, admirável [tanto] em abundância como na concisão, certamente o mais intenso na força poética, mas também na força oratória. Sem falar dos seus elogios, exortações, consolações, no livro IX, por exemplo, aquele que contém a embaixada de Aquiles, ou o primeiro, com a famosa disputa dos chefes, isso tudo não constitui uma demonstração completa da técnica dos tribunais e das assembléias? Quanto aos dois tipos de emoção, doces e violentas, ninguém será tão ignaro para não reconhecer que esse mestre as sabia governar à sua maneira. Nós não vemos no início de cada um desses dois trabalhos, eu não digo aplicada, mas bem estabelecida a regra dos exórdios? Pois ele ganha a benevolência do auditório invocando as deusas que eram reputadas para proteger os poetas, ele conquista a sua atenção sublinhando desde o início a grandeza do tema, se tornando receptivo graças a um rápido sumário. E no narrar - quem pode fazê-lo mais brevemente do que aquele que anuncia a morte de Pátroclo, quem com mais vivacidade reconta a batalha entre os Curetas e os Etólios? As comparações, amplificações, exemplos, digressões, índices materiais, argumentos lógicos e outras espécies de provas e refutações, nele há tantas que é dele que grande número dos autores de manuais retiram exemplos para tudo isso. Enfim, quanto à peroração, quem poderia igualar as súplicas de Príamo aos pés de Aquiles? Existe alguém que tenha transcendido os limites do espírito humano [ultrapassando] suas palavras, seus pensamentos suas figuras, a composição de todo o seu trabalho? É preciso talento para estar à altura da sua excelência, não para imitá-lo, o que é impossível, mas para apreciá-lo plenamente.72

Tentativas de persuasão anteriores ao século V a.C. estão presentes não apenas nos

textos homéricos, mas também em outros poemas épicos e em tragédias desse período,

como na Medéia de Eurípedes, obra que faz claramente uma alusão ao emprego enganador

da retórica, a Hécuba do mesmo autor, onde há certo destaque para as cenas de tribunais,

como se pode verificar no julgamento de Polimestor, e em textos como o Filoctetes de

Sófocles, onde Ulisses declara ter chegado, pela experiência, a entender que a língua leva

72 Quintilien, op. cit. (livro 10.1.46).

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vantagem sobre a ação73. Podemos notar a partir da observação desses textos que a

eloqüência precedeu a definição das técnicas mais apropriadas à retórica, como afirma

Cícero posteriormente, no De Oratore: "acho que alguns homens eloqüentes observaram e

praticaram o que homens eloqüentes faziam por instinto. Não foi assim a eloqüência que

nasceu da retórica, mas a retórica da eloqüência74".

Portanto, antes que Córax e Tísias, após a queda da tirania da Sicília, no século V

a.C., tivessem elaborado suas primeiras normas da arte de persuadir, atestando a

preocupação de seus autores com a premente necessidade de fornecer a seus concidadãos os

meios de defesa dos seus direitos, os discursos da Ilíada e da Odisséia, entre outros, já

serviam de modelos aos jovens oradores. A partir de então, o papel da retórica assumiu um

lugar cada vez mais central na política antiga, sendo este termo usado provavelmente no

século V a.C. por Sócrates e seus discípulos75.

De acordo com Claude Mossé76, o desenvolvimento das instituições democráticas

na Grécia ocorreu gradualmente a partir das reformas de Sólon, ainda no século VI a.C.

Mas, as mudanças que se sucederam em Atenas, entre os anos de 462/461 a.C., e se

prolongaram durante o governo de Péricles - que dirigiu a vida política ateniense entre 460

e 429 a.C.77 - abriram um espaço ainda maior para as deliberações públicas e para a

participação cívica do cidadão, contribuindo de modo decisivo para que uma nova categoria

se destacasse: a do orador. Péricles estabeleceu que a conduta dos negócios públicos não

seria mais confiada a poucos homens, escolhidos de acordo com a sua renda e nascimento,

sendo estendida também ao povo, através da sua participação nas assembléias, nos

conselhos de massa e na extensão gradual do sistema de seleção por sorteio para a maioria

das magistraturas municipais.

Além disso, um dos aspectos mais importantes da sua obra em matéria

constitucional foi a instituição do misthòs, ou seja, do pagamento pela participação nos 73 Os textos de Ísis da Fonseca e de Peterlini tratam desses exemplos de forma mais cuidadosa reiterando a hipótese de que a eloqüência precedeu a técnica retórica desenvolvida posteriormente. Cf.: Fonseca, Ísis Borges da., op. cit.pp. 99-118. Conferir também Peterlini, Ariovaldo, op. cit., pp. 119-144. 74 Cicéron. De L'orateur. Paris: Belles Lettres, 2002, livro I, XXXII. 75 Kennedy, G., op. cit., p. XI. 76 Mossé, Claude. "As instituições tradicionais da cidade grega nos séculos V e IV: a democracia ateniense", (caps. 1 e 2) in: As instituições gregas. Lisboa: Edições 70, 1985. 77 É preciso notar, no entanto, que se a época de Péricles constituiu o apogeu da democracia ateniense, a sua autoridade incontestada exercida durante mais de trinta anos, assim como o controle efetivo de todas as

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tribunais e assembléias atenienses. Inicialmente, foram os juízes os primeiros a receber um

misthòs de três óbulos por cada dia passado no tribunal, sendo esta medida estendida a

outros cargos, devido ao rápido desenvolvimento econômico de Atenas e, por conseguinte,

da necessidade de multiplicação dos tribunais e a outras atividades para além das

judiciárias78. O estabelecimento da mistoforia é seguramente uma determinação

extremamente importante, pois permite aos mais pobres participar na vida política da

cidade sem perda dos meios de subsistência, sendo-lhes possível inclusive ascender a

algumas magistraturas. Essas alterações políticas permitiram não apenas ao povo tomar

parte nas decisões do governo, mas, sobretudo, que seus representantes fossem escolhidos

cada vez mais de acordo com a sua competência e capacidade no desempenho de tais

funções.79

A hierarquia, em certa medida, deixou de residir apenas na riqueza e na linhagem

pertencentes exclusivamente à classe aristocrática, dando lugar aos mais bem preparados e

educados nos assuntos pertinentes às questões políticas. Esse fato pôde ser notado

principalmente durante a eclosão da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), que põe fim ao

equilíbrio alcançado no século V a.C., exigindo uma nova organização e especialização

técnica dos cidadãos atenienses que participavam da administração da polis, assim como de

conhecimentos técnicos, práticos e específicos sobre os negócios financeiros e as questões

pertinentes à guerra. Tais atitudes foram tomadas para que pudesse ser contornada a falta de

uma receita suficiente para a manutenção da cidade80.

instituições da cidade, nos leva a graduar a afirmação de democracia radical que alguns autores modernos usaram para caracterizar a democracia pericliana. Idem, p. 38. 78 Mossé, op. cit., p. 38. 79 De acordo com Kerferd, a introdução de pagamento tornou possível que os cidadãos mais pobres também se interessassem em disputar tais cargos. Cf.: Kerferd, G. B. O Movimento Sofista. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 33. 80 A derrota de Atenas e de seus aliados para Esparta na Guerra do Peloponeso causou não apenas o esgotamento das receitas de muitas cidades gregas, mas também gerou, particularmente para Atenas, a necessidade de se encontrar outras formas de captação de recursos para suprir as dívidas de guerra, já que ela era a principal beneficiária da exploração das cidades pertencentes à Liga de Delos. Segundo Ferreira, a Grécia dividia-se então em dois grandes blocos: de um lado a Liga de Delos, dirigida por Atenas, reunia de modo geral cidades em que vigorava a democracia, e de outro as cidades lideradas por Esparta (chamada de Simaquia do Peloponeso), que agrupava cidades de regimes oligárquicos. Sobre esse assunto ver: Ferreira, José Ribeiro. A Grécia antiga. Lisboa: Edições 70, 1992, pp. 149-174.

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A morte de Péricles em 429 a.C., as revoluções oligárquicas81 ocorridas em 411,

depois do fracasso da expedição enviada pelos atenienses à Sicília, e a derrota de Atenas

para Esparta e, conseqüentemente para o regime oligárquico na Guerra do Peloponeso, em

404-403 a.C., contribuíram para o enfraquecimento da democracia: houve a supressão da

mistoforia e a redução do corpo cívico para apenas 5000 pessoas na primeira onda

revolucionária e para 3000 na segunda. O fim do pagamento pela participação nos tribunais

e assembléias foi responsável pelo afastamento do povo ateniense dos negócios da cidade.

Esse "desinteresse pelos negócios do Estado", citado por Tucídides82 em sua História da

Guerra do Peloponeso, também foi agravado pela crise na agricultura, no artesanato e na

extração de prata no monte Láurio, suspensa com o fim da guerra. Essas e outras

dificuldades se prolongaram ao longo do século IV, afetando diretamente a vida das

instituições democráticas da cidade.

Ao mesmo tempo em que a polis ateniense buscava uma especialização nos assuntos

militares e novas estratégias no âmbito do gerenciamento financeiro, havia também uma

procura pela profissionalização da vida política, sendo a defesa das acusações, a

deliberação dos assuntos públicos e a direção da cidade conhecimentos adquiridos com

hábeis professores de retórica. Este aspecto, em particular, foi de grande relevância para o

surgimento de uma demanda em prol de uma educação mais especializada nesses assuntos,

sendo os sofistas os primeiros mestres da arte retórica na Grécia, vindos de Siracusa no

século V a.C. Ela foi ensinada na democracia ateniense aos futuros políticos e advogados

que desejassem aprender a arte de persuadir seus ouvintes nas assembléias e fóruns, onde a

palavra tornava-se, então, o meio mais eficaz de decidir entre duas ou mais opiniões que se

opusessem.

Até quase praticamente metade do século V a.C. não havia instrução formal na

Grécia, sendo esta restrita à música e aos exercícios físicos83. As crianças aprendiam a ler e

a escrever com os criados ou com as mães que delas cuidavam. Após essa fase, os cidadãos

gregos continuaram aprendendo com a experiência dos pais e dos mais velhos, e ao 81 As tentativas oligárquicas de tomar o poder e instaurar uma constituição própria a esse regime não foram adiante em decorrência tanto da resistência dos democratas, quanto das discórdias que surgiram no seio do partido oligárquico e dos excessos cometidos pelos tiranos, favorecendo o restabelecimento da democracia. Cf.: Mossé, op. cit., p.42. 82 Tucídides. História da Guerra do Peloponeso, VII, 27.

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viverem como cidadãos ativos, participando das cerimônias religiosas, das reuniões das

assembléias, ouvindo os discursos, os argumentos e as técnicas dos oradores mais hábeis,

sendo desta forma que eles aprendiam a formar suas próprias opiniões. Então, a partir desse

período, surgiram, especialmente em Atenas, "professores profissionais", chamados

sofistas, que para lá se dirigiram visando o enriquecimento através do fornecimento de uma

educação superior em retórica, filosofia e política aos jovens abastados84.

2.6) A educação sofística e a crítica platônica: a separação entre retórica e filosofia

Atraídos pela efervescência política e pelo desenvolvimento cultural85 que teve

lugar na polis ateniense, assim como pelo estímulo à discussão intelectual, muitos

representantes do movimento sofista para lá se dirigiram à procura de fama,

reconhecimento e remuneração86. O seu ensino era voltado especificamente para aqueles

que buscavam fazer carreira na política e na vida pública em geral, desejosos da apreensão

de um saber bastante específico: a compreensão dos métodos de elaboração de um discurso

persuasivo. Nada mais propício para o momento de extensão democrática que Atenas

vivenciava, tendo em vista o fato das instituições de uma cidade democrática pressupor a

faculdade não apenas de falar em público, mas de argumentar, a partir do conhecimento de

técnicas retóricas específicas, de modo persuasivo, sendo estas qualidades de suma 83 Finley, Moses I. "Sócrates e Atenas" in: Aspectos da Antigüidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp. 78-80. 84 Sobre a educação no mundo grego e latino ver: Marrou e Carcopino. 85 Os diálogos de Platão representam verdadeiros testemunhos desse ambiente de desenvolvimento cultural e emergência das discussões filosóficas em Atenas que proporcionaram a ocorrência de diversos encontros entre intelectuais, filósofos e matemáticos, que para lá se dirigiram em busca de debates e confrontos sobre as mais diversas questões. 86 Segundo Kerferd, o interesse e a admiração pelos sofistas foram expressos também por Péricles, que se aproximou intimamente de intelectuais como Damon, Anaxágoras e, certamente, Protágoras, contribuindo para a promoção e difusão deste movimento. No entanto, esse clima de celeiro intelectual e artístico não foi capaz de aplacar, na segunda metade do século V a.C., os ataques e os processos contra filósofos e sofistas como Anaxágoras, Sócrates, Protágoras, Eurípedes, entre outros líderes do pensamento progressista em Atenas. Cf.: Kerferd, op. cit., pp. 36-41. Sobre o julgamento e a condenação de Sócrates, acusado tanto de impiedade, (ou seja, de não crer nos deuses da cidade e promover a introdução de novas divindades), quanto

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importância para a defesa dos interesses tanto públicos quanto privados. Contra a pretensão

da nobreza, que sustentava ser a virtude uma prerrogativa de nascimento e de sangue, os

sofistas pretenderam fazer valer o princípio segundo o qual todos poderiam alcançá-la

através do saber. Ao criticarem sólidos valores aristocráticos como este, eles buscavam a

análise, o estudo racional e o questionamento de valores e crenças que eram transmitidos de

geração em geração87. De acordo com Finley:

Os sofistas simbolizaram e tornaram visível o surgimento de uma nova classe intelectual, divorciada em seu pensamento da massa dos cidadãos num nível até então inédito em Atenas. Sábios como Sólon eram reverenciados por expressarem nas palavras e na vida os ideais da sociedade como um todo. Os novos sábios faziam exatamente o oposto: repudiavam as crenças vigentes e os valores tradicionais, em especial no tocante à religião e à moral.88

A influência do movimento sofista é percebida de forma mais direta, no entanto, no

processo educacional, tanto pela formação de novos oradores, quanto pela disseminação e

desenvolvimento dos preceitos relacionados à arte retórica. Entretanto, o termo sofista

desde a época platônica assumiu um sentido decididamente negativo: foi reconhecido como

aquele que, fazendo uso de raciocínios ardilosos, busca, de um lado, enfraquecer e ofuscar

o verdadeiro e, de outro, reforçar o falso, revestindo-o com a aparência do verdadeiro. No

entanto, como indica Kerferd, o sentido original do termo sofista "está claramente

relacionado com as palavras gregas sophos e sophia, comumente traduzidas por sábio e

sabedoria."89

A recepção negativa aos sofistas generalizou-se possivelmente apenas a partir de

Sócrates, Platão e Xenofonte, assim como por seus discípulos, que radicalizaram a batalha

ideológica travada contra eles, e, posteriormente com Aristóteles, que manteve muitas das

críticas platônicas90. Um dos argumentos platônicos contra o ofício dos sofistas era a

remuneração cobrada por eles para ensinarem a sua arte, a qual muitos jovens se

entregavam sem conhecer sequer as premissas desse ensino. O fato dos sofistas cobrarem

de corrupção da juventude ateniense ao criticar com veemência a democracia ateniense ver: Finley, op. cit., pp. 69-86. 87 Finley, Moses, idem, p. 79. 88 Ibidem, p. 80. 89 Kerferd, op. cit., p. 45. 90 "Os sofistas" In: História da Filosofia, p. 189.

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pelo ensino foi duramente combatido por Sócrates no diálogo platônico Protágoras91.

Nesse texto apresenta-se de forma clara o duelo de Sócrates contra a paidéia dos sofistas,

um conflito entre dois modos de pensar pela hegemonia da educação92: o filosófico e o

sofístico. Chegando a Atenas, Protágoras, em troca de remuneração, oferece a Hipócrates

(até então discípulo de Sócrates) todo tipo de conhecimento, “assemelhando-se a um

vendedor ambulante”, que percorre as cidades sem cessar de enaltecê-los para aqueles que

se mostrarem desejosos de adquiri-los. Desconfiado da proposta educacional sofística e da

sua rápida sedução para com os jovens, eis o conselho de Sócrates a Hipócrates:

Não te aconselhares nem com teu pai, nem com teu irmão, nem com nenhum de nós, teus familiares, para decidirmos se deverias ou não confiar tua alma a esse estrangeiro recentemente chegado, mas tendo, como disseste, ouvido ontem à noite falar dele, vieste até aqui de manhãzinha, não para entabularmos conversão e te aconselhares comigo, sobre se deves entregar-te a ele ou não, porém disposto a gastar tua fortuna e a dos amigos, visto já teres resolvido que é preciso, a todo custo, freqüentar Protágoras, que nem conheces e com quem nunca conversaste; dás-lhe o nome de sofista, mas é evidente que ignoras o que venha a ser sofista; e é a esse homem que pretendes entregar-te!93

O diálogo platônico começa justamente com Hipócrates indo buscar Sócrates em

sua casa logo pela manhã, tamanha a sua ansiedade para que ele o acompanhasse à casa de

Cálias, onde então se encontrava o recém chegado sofista Protágoras, de quem o jovem

desejava tornar-se discípulo. O motivo da atração dos sofistas está relacionado ao amplo

conhecimento que eles se propunham oferecer, que incluía, nas palavras atribuídas à

Protágoras: "ensinar o homem a respeito dos assuntos de Estado, de modo que ele pudesse

vir a ser uma verdadeira força nos negócios da cidade, tanto como orador, quanto como

homem de ação; ou seja, a tornar-se um político eficiente e bem sucedido"94.

As novas condições políticas estabelecidas no decurso do século V a.C. tornaram

possível a crescente afirmação do poder das assembléias, assim como a ampliação dos

grupos que poderiam chegar ao poder fizeram ruir a convicção de que a areté (virtude)

dependia exclusivamente do nascimento. Desse modo, o homem não nascia capaz de

assumir este ou aquele ofício, ele tornava-se apto a ingressar no mundo político através da

91 Platão. "Protágoras" in: Diálogos. Belém: EDUFPA, 2002. 92 Jaeger, op. cit. 93 Platão. Protágoras (313 a -c), p. 54-55. 94 Idem, (319a), p. 62.

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aquisição de conhecimentos específicos, os quais os sofistas pretendiam dominar. Segundo

Jaeger95, uma das características dessa nova sociedade civil e urbana é a instauração da

mobilidade social, pois todos os cidadãos livres do Estado ateniense poderiam tornar-se

membros da sociedade estatal adquirindo cargos públicos que antes só eram concedidos à

nobreza de sangue. Sócrates, crítico dessas mudanças, afirma que:

Quando a deliberação diz respeito à administração da cidade, qualquer indivíduo pode levantar-se para emitir opinião, quer seja carpinteiro, quer seja ferreiro, sapateiro, mercador ou marinheiro, rico ou pobre, nobre ou vil, indiferentemente, sem que ninguém apresente objeção.96

Sócrates se opõe ao despreparo dos cidadãos comuns na deliberação dos assuntos

públicos, justificando por isso - diferentemente do que postulam os sofistas - que a virtude

política não pode ser ensinada, pois nem os melhores e mais sábios cidadãos atenienses

seriam capazes de transmitir a alguém a virtude que lhes é própria, sendo esta uma área em

que todos, indiferentemente, poderiam opinar. Mesmo com a rejeição de Sócrates, a

educação sofística, capaz de melhor satisfazer os ideais do homem da polis, gradualmente

substituiu a educação passada de pai para filho, tomando o espaço que era antes privilégio

apenas dos filósofos. Como o ensino da escola elementar terminava no início da

adolescência97, os sofistas passaram a ministrar uma educação seletiva para a idade de 14

anos em diante, cujo objetivo era justamente a preparação de homens para ingressarem na

carreira política. Isto explica por que obtiveram tanto sucesso, sobretudo, junto a jovens

ricos como Hipócrates, que romperam com antigos valores tradicionais e deram voz à arte

da palavra, principal fundamento da democracia grega nesse período.

Neste contexto de expansão econômica e democrática, onde a participação política

estava aberta aos cidadãos, falar em público era indispensável para quem quer que

ambicionasse uma carreira política. Mas não bastava a esses homens apenas falar bem, eles

tinham que aprender a utilizar uma linguagem persuasiva, eficaz e capaz de convencer até

mesmo uma platéia que lhe fosse hostil. A importância de uma boa argumentação levou a

procura pela educação superior. Os sofistas, então, segundo Kerferd, supriram uma

necessidade social e política do mundo grego. Se, por um lado, os sofistas não estenderam a

95 Jaeger, op. cit., p. 314. 96 Platão. Protágoras (319 d -e), p. 63. 97 Kerferd, op. cit., pp. 34-35.

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todos o seu ensinamento, mas só à uma elite desejosa de chegar à direção do Estado, não

deixa de ser notório que, com o seu princípio, romperam o preconceito que via a areté

necessariamente vinculada à nobreza de sangue98.

Além da crítica platônica no Protágoras à remuneração cobrada pelos sofistas e à

sua pretensão em ensinar todo tipo de conhecimento aos seus alunos, Platão destaca ainda

algumas diferenças entre os sofistas e os filósofos, entre as quais, selecionamos apenas uma

de suma relevância para o entendimento destas duas formas de saber: o método. Nesse

diálogo, assim como no Sofista e no Górgias, Platão incita seus interlocutores a

desenvolverem a forma dialógica em seus discursos, ou seja, a optarem pela forma breve de

conversação, constituída de frases concisas, que permite resumir ao máximo os argumentos.

No Protágoras, através das palavras de Sócrates, ele incita o sofista a discorrer de forma

breve, dizendo: Ouvi dizer, lhe falei, que tanto és capaz de discorrer sobre qualquer

assunto com a amplitude que quiseres, sem que nunca venha a faltar-te o termo exato, como também com tão poucas palavras, que ninguém te poderia vencer em concisão, além de possuíres o dom de transmitir a outros esse talento. Por isso, se quiseres conversar comigo, escolhe a outra maneira de falar, a mais concisa.99

Ao afirmar ser incapaz de acompanhar a discussão se ela estiver recheada de

períodos longos, Sócrates convence Protágoras a aderir à sua forma de discurso para que,

então, a discussão pudesse prosseguir, argumentando: "eu tenho um compromisso que não

me permite continuar a ouvir os teus discursos longos100". Por que ocorreu esta recusa

socrática?

De acordo com James Arêas101, a forma breve - braquiológica - adequada ao

diálogo, se opõe radicalmente ao modelo oratório dos sofistas - chamado macrológico -

marcado pela abundância da exposição longa, recheada com exemplos, mitos e idéias

aceitos pelo senso comum, para que assim os oradores pudessem conquistar mais

rapidamente seus ouvintes. Podemos perceber a forma dialógica claramente nos trabalhos

98 História da Filosofia, vol. 1. "Os sofistas", p. 195. 99 Platão. Protágoras, (334 e - 335a), p. 84. 100 Idem, (335c), p. 85. Essa disputa aparece novamente no Sofista, onde o Estrangeiro, que inicialmente se inclina pela forma longa, acaba, entretanto, aceitando a abordagem dialética e a forma do diálogo. Cf.: Platão. Sofista. (217e) 101 Arêas, James Bastos. A instauração ontológica no Sofista de Platão (ontologia tradicional e modelos alternativos da filosofia grega). Tese do Departamento de Filosofia: PUC, 1999, pp. 41-42.

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de Platão, onde a argumentação se constrói vagarosamente, sendo privilegiada a forma

concisa e fragmentária que lhe permite não apenas uma exposição mais objetiva dos

argumentos, como também acaba por reduzir as redundâncias do discurso sofístico,

filtrando "pelo discurso a multiplicidade dada". Para o autor, o diálogo é para Platão uma

forma particular (e privilegiada) do discurso em geral, mas que não se detém, como o

discurso sofístico, em conversas vãs, em intrigas irônicas ou em negociações polêmicas. O

diálogo platônico é, antes de tudo, o lugar privilegiado para o encontro do verdadeiro que,

por sua vez, se afasta radicalmente das opiniões e dos valores em curso102.

Já a forma da argumentação sofística - recusada explicitamente por Platão - se funda

basicamente em três aspectos. O primeiro deles, como dissemos, é a opção pelos discursos

longos, sendo esta uma característica dos discursos proferidos publicamente por oradores

especializados. A escolha por um discurso abundante em palavras e idéias permite ao

orador utilizar plenamente os artifícios retóricos mais apropriados para cada temática,

sendo a elocutio (ordem de exposição dos argumentos) e a ornatio (utilização de tropos e

figuras de linguagem) preceitos muito comuns em suas orações, pois eles poderiam deixar

os discursos tão pomposos, tão ricos em exemplos e imagens, que o seu interlocutor -

impregnado com tanto saber - poderia perder o sentido inicial da discussão e ser facilmente

persuadido pela astúcia da sua argumentação. O segundo aspecto da metodologia sofística

consiste na intenção explícita de persuadir seus ouvintes, ou seja, a incitarem ao público a

uma ação política, rápida e pragmática, formando juízos e induzindo-os a aceitar ou

repudiar uma tese103. Podemos perceber ainda com mais clareza a importância da persuasão

para os sofistas no diálogo platônico Górgias104, onde o sofista que dá nome a esta obra

postula que o maior bem para o homem tornar-se apto para dominar os outros em sua

cidade, podendo “convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos

nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política. Com semelhante poder, farás do

médico e do pedótriba teus escravos...105" Sobre a função que Górgias estabelece como

102 Idem, p. 45. 103 Para o alcance da persuasão o orador sofista pode fazer uso de argumentos pró e contra determinada questão, assim como pode ser sustentado pelo orador o argumento mais frágil, ou seja, o que lhe interessa é ensinar uma técnica cujo objetivo é - seja qual for o conteúdo da discussão - conquistar a vitória na deliberação por meio da persuasão. Sobre esse assunto ver: Kerferd, op. cit., Dialética, antilógica e erística, cap. 6, pp. 103-118. 104 Platão (427-347 a.C.). "Górgias" in: Diálogos. Belém: EDUFPA, 2002. 105 Idem, (452 d-e), p. 135.

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sendo a mais apropriada ao orador, diz Sócrates em resposta: "se bem te compreendi,

afirmaste ser a retórica a mestra da persuasão, e que todo o seu esforço e exclusiva

finalidade visa apenas a esse objetivo106".

A destinação política da palavra, herdeira direta das transformações políticas que

marcaram a democracia grega do século V a.C., condiciona a expressão retórica e sofística:

cabe a ela formar o cidadão para o pleno exercício político, capacitando-o a participar e a

influir nas assembléias e no fórum. No entanto, a persuasão da retórica nos tribunais e nas

demais assembléias não é capaz de instaurar um conhecimento, mas apenas uma crença,

como afirma o próprio sofista Górgias na continuação da sua deliberação com Sócrates.

Segundo ele: "o orador não instrui os tribunais e as demais assembléias a respeito do justo e

do injusto, mas apenas lhes desperta a crença nisso. Em tão curto prazo não lhe fora

possível instruir tamanha multidão sobre assunto dessa magnitude107."

Esse fato nos remete imediatamente ao terceiro aspecto da metodologia sofística:

seu intento de promover apenas uma crença imediata em determinado argumento, afasta-se

da busca da verdade, objetivo central da prática filosófica. Como indica Tordesillas108, a

noção de argumentação se separa do raciocínio no sentido estrito, pois através da

deliberação pode ser alcançado o assentimento e a certeza, diferentemente da demonstração

filosófica, que tem como objetivo a verdade. A argumentação sofística retira toda a sua

eficácia do ordenamento dos argumentos, pretendendo estabelecer, de acordo com

procedimentos específicos, um tipo de "verdade" inteiramente dependente das

circunstâncias e do talento do orador.

A "verdade" sofista se baseia na opinião (doxa), que, por sua vez, não é a mesma

para todos, nem para todos os diferentes grupos sociais que compõem as assembléias e os

tribunais; esta é uma "verdade provisória" que atende a algumas partes determinadas e

desagrada a outras. Cada um dos que participam das decisões políticas possui as suas

próprias certezas, convicções e, sobretudo, interesses, fato este que contribui para a sua

106 Ibidem, (453 a), p. 135. 107 Platão. Górgias. (455 a), p. 139. 108 Tordesillas, A. “L'instance temporelle dans l'argumentation de la premiere et de la seconde sophistique: la notion de Kairos” In Le plaisir de parler (org.) CASSIN, B. Paris: Les Éditions de Minuit, 1986, pp. 31-61.

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adesão a qualquer uma das teses que melhor lhe beneficie, conspirando ou para inverter a

relação de forças no interior da assembléia ou para sustentá-la109.

É deste modo, conforme destaca James Arêas110, que "a verdade resulta do valor

argumentativo de uma opinião, o discurso verdadeiro se transfigura em persuasão e o saber

reduz-se a uma crença qualquer". Desse modo, a força argumentativa ou o talento do

orador, se mede sempre em função da persuasão sobre o auditório. Daí advém, por parte

dos filósofos, sobretudo de Platão, a condenação moral da retórica.

No diálogo Górgias Platão parte do princípio de que as opiniões não são, a rigor,

verdadeiras em si mesmas, sendo necessário ao discurso dialético ultrapassá-las para a

busca do verdadeiro. O conhecimento é, para o filósofo, "um processo dinâmico que

compreende graus ou níveis distintos, no interior do qual a opinião é somente o primeiro

estágio"111. O que Platão enfatiza é o fato da opinião não corresponder à realidade, devido à

imparcialidade das suas expectativas, pois cada um toma por juiz a parte mais instável e

corruptível de si próprio: "ela é apenas uma imagem da realidade que, no entanto, se

pretende como verdade"112. É apenas a partir do reconhecimento da falibilidade das

opiniões que o ouvinte (leitor) conseguirá abandoná-las, reconhecendo a sua ignorância.

Em um dos argumentos que Platão desenvolve nesta obra, através das palavras

proferidas por Sócrates, ele ressalta justamente a intencionalidade do orador, pois mesmo

possuindo um conjunto de saberes, ainda assim ele pode fazer mau uso desses

conhecimentos. Em oposição à opinião platônica, o sofista Górgias enfatiza o papel

propriamente “farmacêutico” (pharmakon) da linguagem e não a possibilidade do orador se

distanciar dos preceitos dados pelos mestres de retórica, pois, tal qual o médico, o sofista

que sabe utilizar esta arte sendo capaz de transmitir seu saber, pode favorecer certo

progresso na alma do ouvinte113. Górgias ressalta então, pelo menos inicialmente, o poder

109 Essa preocupação é bastante visível na República de Platão, onde ele questiona as bases em que a opinião se apóia, pois ela pretende fundar-se na observação dos fatos e na própria experiência histórica. Mas, no entanto, eles podem ser manipulados tanto pelas técnicas retóricas dos oradores, quanto pelas paixões e pelos vícios dos ouvintes. Por esse motivo, Chatelet chama atenção para o fato de que "as opiniões tomando a imagem pelo real, o fugaz pelo estável, a denominação pela coisa, o exemplo pelo fato, caem constantemente na incoerência". Cf.: Chatelet, François. “O que falar quer dizer” In Platão. Porto: Rés Editora, s/d, pp. 70. 110 Arêas, James B., op. cit., p. 51. 111 Lafrance, I. La théorie platocienne de la doxa. Paris: Belles Lettres, 1981, p. 46 112 Chatelet, op. cit., p. 71. 113 Em seu Elogio de Helena, Górgias (485-375 a.C.) já faz um esboço da teorização a respeito da força discursiva da própria palavra, fazendo com que o elogio de Helena se identifique a um verdadeiro elogio da potência do logos, associado à idéia do pharmakon, do remédio já não aplicado ao corpo, mas à alma. Assim

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da eloqüência e não a capacidade do orador em manipulá-la de uma forma errônea,

afirmando não existir "assunto sobre o qual ele não possa discorrer com maior força de

persuasão diante do público do que qualquer profissional114". Diante da vastidão de seus

conhecimentos, até mesmo nos assuntos relativos à medicina, o orador, ao fazer uso da sua

astuciosa retórica, tem maior força persuasiva do que o próprio médico, "tal é a natureza e a

força da arte da retórica115". No entanto, algumas linhas adiante o sofista entra em

contradição ao dizer inicialmente que a retórica jamais poderia ser algo injusto e, em

seguida, admitir a possibilidade do orador fazer mau uso da retórica, mesmo possuindo

todo tipo de conhecimentos. Diz ele:

É fora de dúvida que o orador é capaz de falar contra todos a respeito de qualquer assunto, conseguindo, por isso mesmo, convencer as multidões melhor do que qualquer pessoa, e, para dizer tudo, no assunto que bem lhe parecer. (...) Ele deverá usar a retórica com justiça, como qualquer outro gênero de combate. Se um indivíduo que se tornou orador vier a fazer mau uso da força e da habilidade, não é o professor, quero crer, que deverá ser perseguido e expulso da cidade. O professor transmitiu seus conhecimentos para serem bem aplicados, foi o aluno que fez mau uso deles.116

Vencido por Sócrates, Górgias se retira do diálogo cedendo lugar a Polo que o

substitui na deliberação, enquanto Sócrates dá prosseguimento ao seu ataque à retórica

relacionando-a à arte da bajulação, acusando os oradores de desonestidade, pois eles

"fazem apenas o que lhes afigura melhor117", e, portanto, não merecem, assim como os

tiranos, nenhuma consideração. O tipo de prova de que se utiliza o sofista para refutar seu

adversário consiste no número de testemunhas de prestígio que ambas as partes conseguem

para lhe defender.

Mas, [diz o filósofo], essa espécie de prova carece inteiramente de valor

diante da verdade, pois algumas vezes pode alguém ser vítima de depoimento de pessoas inidôneas, porém tidas na conta de pessoas de bem. (...) Com todo esse

como o pharmakon, o discurso induziria a uma mudança de estado, quer para melhor quer para pior. Por isso, diz ele que: “com efeito, como os diferentes remédios expulsam diferentes humores do corpo, e uns cessam a doença, outros a vida, assim, também entre os discursos, uns afligem, outros deleitam, outros aterrorizam, outros dispõem os ouvintes à confiança, e outros, por meio de uma persuasão nefasta, envenenam e enfeitiçam a alma”. Górgias. Elogio de Helena, (14, p. 8) Estudo introdutório, cópia do texto original e tradução por Humberto Zanardo Petreli. Cf.: Versão eletrônica www.consciencia.org/antiga/gorelogiohumberto.shtml 114 Platão. Górgias. (456 c), p. 141. 115 Idem, (456 b-c), p. 141. 116 Ibidem, (457a-c), p. 142. 117 Platão. Górgias, (466 e), p. 155.

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teu séquito de testemunhas falsas, só visas a privar-me de meu bem e da verdade.118

Torna-se claro, então, que o ataque de Platão aos sofistas não se baseia apenas nas

diferenças que apontamos entre o método sofístico e o filosófico, mas nos objetivos

principais de cada técnica, tendo em vista que a sua opção pelo método dialógico propõe

uma discussão filosófica que, por sua vez, promove a pesquisa do verdadeiro, e não a

persuasão ou, se preferirmos, a privação da verdade como fazem os oradores sofistas. É

esta mesma preocupação que move alguns séculos mais tarde os humanistas (analisados

adiante) a condenarem uma imitação acrítica dos antigos, mais preocupada com o aspecto

formal e estilístico do texto e sem nenhuma vinculação com o verdadeiro.

A prática sofista é vista por Platão como um empreendimento perigoso: "o sofista se

apodera de conhecimentos alheios, selecionando-os segundo o critério da utilidade e em

função da sua eficácia momentânea.119" A "realidade" criada pelo sofista mediante a

escolha dos argumentos e sustentada pela opinião é artificialmente produzida, já que é

manipulada pelo discurso, o que a torna um discurso instável e suscetível de contestação

como qualquer outro. A realidade torna-se, então, "um efeito do dizer"120, subordinada ao

regime do provável e do oportuno, onde o sofista pode dizer algo sem, entretanto, dizer a

verdade. Mas, como afirma James Arêas, o problema maior é o fato de a prática sofística

eclipsar a diferença entre o parecer e o ser, entre o fictício e o real. Ao pretender validar um

discurso que enuncia a aparência em lugar da realidade, faz da aparência a realidade e a

verdade do discurso121.

A estratégia platônica para conter a astúcia sofística que, na busca de um fim

específico - a persuasão - não possui nenhum interesse em instaurar a sabedoria, nem

tampouco a verdade, se baseia no afastamento do senso comum e da opinião, buscando um

novo caminho através da via ontológica. O filósofo pode aspirar ao conhecimento do

verdadeiro porque ele conduz seu saber por meio do raciocínio, da colocação de questões

que visam não à persuasão imediata de um auditório repleto de ouvintes, mas induzem à

reflexão sobre os fatos.

118 Idem, (472 a), p. 163. 119 Arêas, James B., op. cit., p. 73. 120 Cassin, B. “De l'ontologie à la logologie” In L'effet sophistique. Paris: Éditions Gallimard, 1995. 121 Arêas, James B., op. cit., p. 103.

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É com base na total descaracterização do sentido do discurso sofista que a defesa da

retórica no Górgias não se sustenta. Nessa obra, o objeto tratado é justamente a definição

da retórica em oposição à filosofia, sendo talvez o diálogo em que o autor mais radicalize

suas críticas à retórica. A retórica como artifício capaz de induzir apenas o consentimento e

a adesão rápida aos argumentos propostos é uma das críticas platônicas que permite a

separação e a oposição radical entre esses dois métodos.

2.6.1) A crítica da escrita no Fedro de Platão ou a revisão de seu posicionamento no Górgias?

O Fedro122 é considerado por muitos historiadores o texto em que o filósofo

mantém uma opinião mais amena em relação à retórica. No entanto, essa atitude de Platão

não elimina as críticas feitas anteriormente no Górgias. Pelo contrário, ele continua a

sustentar vários dos pontos tratados nessa obra, principalmente no que se refere ao

problema geral de como exprimir-se da melhor maneira seja oralmente, seja por escrito.

Neste aspecto, a preocupação essencial do autor é saber se para exprimir em palavras o

pensamento é necessário o conhecimento da verdade. Diz Sócrates:

Não é necessário que o orador esteja bem instruído e realmente informado sobre a verdade do assunto de que vai tratar? Fedro responde: A esse respeito, Sócrates, ouvi o seguinte: para quem quer tornar-se orador consumado não é indispensável conhecer o que de fato é justo, mas sim o que parece justo para a maioria dos ouvintes, que são os que decidem; nem precisa saber tampouco o que é bom ou belo, mas apenas o que parece tal - pois é pela aparência que se consegue persuadir, e não pela verdade.123

122 O Fedro foi inicialmente situado temporalmente por Karl Friedrich Hermann ao lado de outros diálogos como o Menexeno, o Banquete e o Fédon, na época designada como terceiro período da obra escrita de Platão, antes da República, do Timeu e das Leis. No entanto, H. de Von Arnim, um estudioso posterior, afirmou ser o Fedro uma das últimas obras platônicas, sendo um escrito da sua velhice, como também salienta Stenzel. Sobre a discussão historiográfica acerca da datação dessa obra ver: Jaeger, Werner. Paideia. São Paulo: Martins Fontes, 1979, pp. 1178-1181. 123 Platão. Diálogos (Mênon - Banquete - Fedro). Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d, (259 -260), pp. 240-241.

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A opinião de Sócrates neste diálogo não é diferente daquela já pronunciada por ele

no Górgias, pois, para ele, quando um orador ignora a natureza do bem e do mal ele

simplesmente não pode decidir corretamente, impelindo seus ouvintes a caírem no erro e na

ignorância. Portanto, mantendo a separação entre a retórica e a filosofia, Platão nega que a

retórica seja uma arte, considerando-a uma rotina, sem qualquer base material, cujo

interesse maior consiste apenas na persuasão, pois "não existe arte retórica propriamente

dita sem o conhecimento da verdade, nem haverá jamais tal coisa124". A conseqüência

imediata disso é que aqueles que não conhecem a verdade, alimentando as opiniões (doxa),

podem com freqüência se enganarem a respeito da realidade, sendo iludidos por meras

aparências e semelhanças. Assim, estes oradores transformarão a retórica "numa coisa

ridícula que não merece o nome de arte125".

Além disso, Platão volta a criticar o método sofístico pautado na antilogia126, ou

seja, na defesa de argumentos pró e contra uma mesma causa, fazendo parecer aos cidadãos

que a mesma coisa seja por vezes justa, e por vezes injusta. Opondo-se mais uma vez ao

método sofístico, Platão toma o discurso de Lísias sobre o amor na primeira parte do Fedro

como exemplo de como a retórica não deve ser empregada, passando a enumerar

deliberadamente muitos outros retóricos que se dedicaram em seus manuais apenas ao

estudo dos ornamentos, da exposição, das provas e das presunções que fazem parte do

conjunto de preceitos inerentes à arte retórica127, sem, no entanto, se deterem sobre as

questões relativas aos mais altos saberes.

Platão não despreza a habilidade em discursar de Protágoras ou as regras retóricas

formuladas por Polos, nem tampouco a destreza de Calcedônio em saber despertar a ira dos

ouvintes para depois acalmá-los com suas fórmulas mágicas, porém atribui-lhes um lugar

secundário128. Para Platão, a ocupação de escrever discursos, em si, não é coisa

desonesta129. Os políticos, assim como os homens mais poderosos e respeitados adoravam

escrever discursos e deixá-los para a posteridade, sendo o “bom fazedor de discursos” - seja

ele orador ou rei como Licurgo, Sólon ou Dario – comparado a deuses. O que está em

124 Idem, 260 E, p. 242. 125 Ibidem, 262, p. 245. 126 Platão. Fedro, 261d - e, 265a, pp. 243-244 e 248. 127 Idem, 266d - 267c, pp. 251-252. 128 Ibidem, 267e, p. 252. 129 Ibidem, 257c-258d.

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questão, então, é: o que é escrever bem ou mal para o filósofo?130 Nessa parte do diálogo

Platão repete claramente o mesmo argumento já presente em obras anteriores: a excelência

do discurso supõe irremediavelmente o conhecimento da verdade. Portanto, a boa retórica,

cujos frutos políticos são bons, supõe o conhecimento das coisas em si, ou seja, da

filosofia131. Deste modo, a retórica só tem fundamento se tiver como base o conhecimento

filosófico a que deve, portanto, se subordinar.132 Os procedimentos a que se dedica a

retórica (preâmbulo, exposição, provas, presunções, confirmação, refutação e recapitulação

ou resumo, assim como a busca do verossímil e não do verdadeiro) são procedimentos

preliminares e práticos que não a definem como arte, pois são apenas conhecimentos

prévios que devem ser orientados por um conhecimento especulativo produzido pela

dialética.133

Segundo Platão, os retóricos inventaram recursos valiosos para o discurso e para a

sua ordenação, mas com isso não conseguiram ensinar a ninguém a arte de convencer.

Portanto, tudo o que Lísias e os outros retóricos ensinaram sobre a eloqüência não pode

constituir uma técnica, já que seus ensinamentos constituem apenas os conhecimentos

preliminares indispensáveis a essa arte134. Este argumento o filósofo coloca como sendo a

opinião de Péricles sobre o que seus sucessores fizeram com que se tornasse a arte retórica:

reduzida à elaboração de belas regras, em meios de como se alcançar a grandeza do

discurso e quais imagens seriam mais convenientes para ornar cada um dos três tipos de

discurso - deliberativo, judiciário e epidíctico.

Pronunciariam eles [diz Sócrates referindo-se a Péricles e a Adrasto]

uma palavra rude ou grosseira contra os que chamam a isso retórica? Ou, sendo mais inteligentes diriam: 'Caro Fedro e caro Sócrates! Não se deve blasfemar, mas perdoar, se alguns que não sabem pensar são incapazes de definir o que é a retórica; esses homens, por sua falta de discernimento, só adquiriram os conhecimentos preliminares indispensáveis a essa arte, e acreditam ter aprendido a própria retórica; ensinam isso a outros e julgam formar oradores perfeitos, achando que os seus discípulos devem tentar, como se nisso não tivesse dificuldade alguma, falar sobre qualquer coisa de modo convincente e compor um todo orgânico nos seus discursos.135

130 Platão. Fedro, 252d-259e. 131 Idem, 259e-261a. 132 Ibidem, 262e. 133 Ibidem, 269d-272b. 134 Ibidem, 269c, p. 254. 135 Ibidem, 269b-c, p. 254.

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O que torna esta passagem de grande relevância para nosso estudo é o fato de Platão

destacar Adrasto136 e Péricles como os únicos a conseguirem perceber a superficialidade do

ensino da retórica, matéria sobre a qual muitos sofistas se dedicaram a escrever manuais

para os alunos que freqüentavam suas escolas. Qual seria o seu diferencial para os outros

oradores? O que os distingue desta concepção formalista do ensino retórico é justamente o

seu apreço pela união entre a retórica e a filosofia, da forma do discurso com o conteúdo

espiritual, da força expressiva com o conhecimento da verdade, sendo esta a única forma do

orador poder pleitear sobre as mais diversas questões. Por esse motivo Sócrates, porta-voz

das idéias de Platão, afirma ser Péricles "o mais perfeito na arte retórica137", justamente por

associar sua função de orador político e interessado na forma do discurso persuasivo com

pesquisas e meditações sobre a natureza do espírito. Isso porque tendo conhecido

Anaxágoras138 e se dedicado às pesquisas físicas e ao estudo da natureza do espírito,

Péricles soube transplantá-las para a sua arte retórica, como assinala Kerferd139. Segundo

este autor, era a sua concepção filosófica de mundo que informava todo o pensamento de

Péricles e dava a seus discursos uma elevação jamais alcançada por outros estadistas.

Portanto, se é de suma importância para o orador escolher a forma mais apropriada

de argumentação adaptando-se às necessidades de cada situação específica, seja utilizando

um discurso conciso ou abundante em palavras, assim como saber que espécie de discurso

pode levar à persuasão os mais diversos ouvintes, também o é na mesma medida o

conhecimento filosófico, cuja busca maior é a verdade. Desta forma, abandona-se o

verossímil e o provável, que domina o espírito da grande massa pela semelhança com a

verdade. Apenas aqueles que possuem o conhecimento da verdade são capazes de discernir

com exatidão o que é provável, pois o verossímil “é semelhante à verdade de tal modo que

136 Péricles (estadista grego do século V a.C.) e o rei Adrasto, que, "tal como Nestor, era para a poesia antiga a personificação do discurso cativante" são citados por Platão como modelos da verdadeira eloqüência, segundo Jaeger, tanto para apoiar o conceito platônico de retórica, quanto para destacar o contrário da secura e superficialidade presente constantemente nos manuais retóricos. Cf.: Jaeger, Werner, op. cit., p. 1192. 137 Platão. Fedro, 269d, p. 255. 138 Segundo Kerferd, Anaxágoras era filósofo grego da escola jônica, tendo nascido por volta de 500 a.C. Admitia, como seus predecessores, uma substância eterna e não pensava que o destino a tivesse organizado. Tudo se achava confundido no início, dizia ele, sendo a inteligência que pôs ordem no caos primitivo das coisas. A influência de Anaxágoras sobre os seus contemporâneos foi muito grande, sendo Péricles um dos seus discípulos e amigos. Cf.:Kerferd, op. cit., capítulo 1. 139 Idem, capítulo 1.

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é necessário conhecer a verdade para conhecer o que se parece com ela.”140 Deste modo, o

único modo da retórica poder ser utilizada é o retor se propor a se transformar num

dialético, conhecendo a verdade dos assuntos sobre os quais tratará, assim como a natureza

das almas e dos discursos. Platão concorda que a tarefa não é fácil, mas o esforço é

justificado, pois a finalidade da arte retórica é sublime, visando tornar o homem que dela

faz uso “capaz de uma linguagem que agrade aos deuses, e de uma conduta que lhes agrade

em todas as coisas.”141

De qualquer forma, mesmo com essa atenuação da crítica platônica que só ocorre

em uma das suas últimas obras, o que prevaleceu para a história da retórica no Ocidente

legada à Renascença foi a sua contundente oposição à retórica, assim como a drástica

separação entre esta disciplina e a filosofia, sendo apenas com Cícero, no século I a.C. que

estas duas disciplinas voltaram a estar juntas. Portanto, a referência direta que chega aos

humanistas italianos dos séculos XV e XVI é justamente aquela baseada em moldes

ciceronianos. Ela fornece a estes primeiros humanistas não apenas os conhecimentos

necessários à defesa retórica dos ideais republicanos, mas também, através da valorização

da retórica e da função do orador, a possibilidade para uma profunda reforma educacional

que daria um novo sentido e valor à arte retórica em oposição à escolástica, então a

disciplina dominante na grande maioria das instituições de ensino da Renascença.

De acordo com Fumaroli142, desde a redescoberta dos textos ciceronianos no

Trecento que seu trabalho de teórico da eloqüência, assim como a sua vida de orador

romano dedicado à política republicana e às suas responsabilidades cívicas, adquirem um

valor exemplar, servindo de referência central para homens como Petrarca, Salutati e

Bembo, então imersos na manutenção e defesa das repúblicas italianas do Quattrocento.

Portanto, segundo esse autor, “o Orator renasce ao mesmo tempo que a Urbs; ele se

destaca em uma paisagem urbana e política que rejeita o horizonte filosófico e teológico.”

O império da palavra de Cícero que resiste aos trágicos episódios das guerras civis em

Roma, que superam a sua própria morte e o passar dos séculos, fazem da eloqüência a

140 Para Platão, o verossímil é a opinião da multidão (273b); e a “verossimilhança vem a se impor no espírito da multidão por sua semelhança com a verdade” (273d). Platão, Fedro, op. cit. 141 Idem, 274b. 142 Fumaroli, M. L’Âge de la Eloquence, op. cit., p. 43.

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essência de um novo ideal de vida civil que determinará os primórdios do Humanismo

italiano entre os séculos XIV e XVI.

2.7) A condenação moral da retórica e sua superação

Após destacarmos algumas das diferenças mais marcantes entre o método sofístico

de ensino e o método filosófico, é pertinente evidenciarmos com que força a condenação

platônica da retórica foi determinante para a ruptura entre a retórica - associada ao

ordenamento das opiniões para obtenção da persuasão estrito senso, podendo, então servir

para fins moralmente condenáveis - e a filosofia, disciplina considerada em mais alto nível

por se propor à busca das verdades universais. No entanto, a negação sofística da

possibilidade de um conhecimento definitivo e a ruptura do compromisso entre ser e dizer

não implicam a valorização exclusiva de um discurso apenas em função de sua eficácia, de

sua potência persuasiva, conforme a acusação desenvolvida por Platão. Se resgatássemos a

perspectiva sofística em sua positividade, poderíamos observar que, se ela interdita uma

passagem segura do erro à verdade, ou da ignorância a uma sabedoria definitiva através do

discurso, ela afirma, por outro lado, a potência que teria a palavra para permitir a passagem

de um estado pior para um estado melhor, da mais absoluta ignorância a alguma

compreensão dos fatos. Para se investigar a positividade da sofística seria preciso não

apenas a compreensão da visão platônica sobre os sofistas como tem sido feito pelos

analistas, mas um retorno, como propõe Barbara Cassin143, às próprias fontes sofísticas. No

Elogio de Helena de Górgias, a autora destaca que o discurso em sua ambivalência é

associado ao pharmakon, droga que conforme o uso feito pelo orador pode tanto promover

a cura quanto levar à morte. Deste modo, ainda que não adentremos nas investigações em

defesa dos sofistas realizadas pela autora, é pertinente destacarmos a possibilidade da

retórica ser usada para fins benéficos à sociedade, como remédio para apaziguar possíveis

conflitos, ou para a defesa dos interesses da cidade.

143 Cassin, Barbara. “A ontologia como obra-prima sofística” In: O Efeito Sofístico. São Paulo: Editora 34, 2005, pp. 13-16.

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Contudo, os benefícios da retórica foram profundamente questionados, encontrando

em Platão seu primeiro e talvez mais forte adversário, tendo em vista que qual seria a

garantia de que fossem permitidas a defesa apenas de causas verdadeiras e justas? Como

saber se todos os oradores seguirão o bem, a verdade e os critérios morais da virtude em

todos os momentos em que fizerem uso da eloqüência? Certamente não há nenhuma. Por

isso, não é por acaso que em Platão, Aristóteles, Cícero, Quintiliano, e outros haja um

longo questionamento: a arte de persuadir pode ser outra coisa que a arte da mentira? Essa

contradição está no centro das discussões sobre a retórica, pois, o juiz nas assembléias e

tribunais antigos tinha sempre que decidir entre a tese de um acusador e a de um defensor,

sendo das duas teses em questão apenas uma a verdadeira. Mas, se o discurso judiciário144

procura se pronunciar sobre um fato passado, uma verificação experimental se torna

geralmente impossível. Como, então, nessas condições, pode-se admitir uma tese mais do

que a outra?

Em um tipo ideal de eloqüência não deveria existir um acusador que se aproveita da

boa fé de seus ouvintes, nem tampouco um acusado que é julgado culpado erroneamente

sendo ele inocente, mas sim uma busca comum de ambas as partes para se chegar à

verdade. Por isso, muitos filósofos viram com maus olhos o duelo judiciário no qual uma

das duas partes sustenta uma tese falsa em benefício próprio. Essa preocupação está

presente inclusive no discurso de Antônio no segundo livro do De Oratore, de Cícero,

quando ele diz a Crassus ser a eloqüência magnífica apenas na prática, porém medíocre na

teoria, pois a teoria de uma arte se apóia em noções que apresentam alguma certeza, em

preceitos científicos, e não apenas em opiniões (e, por isso, sujeitas ao erro) como fazem os

oradores. Eis a crítica de Antônio à retórica:

Assim, chegam até nós ouvintes que sobre um mesmo objeto pensam e julgam tanto de uma maneira, quanto de outra; e nós, nos vemos sustentar uma após a outra teses exatamente contrárias. Crassus falará contra mim e eu contra

144 Segundo os retóricos antigos são três os tipos de discurso: o deliberativo, o judiciário e o epidíctico (ou demonstrativo). O deliberativo trata de questões que dizem respeito ao futuro, como, por exemplo, aprovar a paz ou declarar a guerra; o judiciário trata de ações já ocorridas no passado, que procuram deliberar, por exemplo, se Catilina foi ou não culpado por traição à pátria, como foi acusado por Cícero nas suas Catilinárias. Já o discurso epidíctico detém-se no presente, possuindo uma particularidade diferente dos outros dois anteriores: não há em sua forma nenhuma contradição inerente para ser julgada, pois, ele cuida, por exemplo, dos elogios fúnebres, como aqueles escritos em homenagem a Péricles ou a Tucídides, ou seja, de gêneros considerados de menor importância na Antigüidade. Sobre as três formas de discurso ver: Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, livro I, cap. III, p. 39.

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Crassus, e, portanto, um de nós dois está necessariamente errado; além disso, cada um de nós a propósito de uma mesma tese, defenderá o pró e o contra e, apesar dessas duas posições há apenas uma que pode ser a verdadeira. Saibamos então que se trata de uma arte que repousa sobre a mentira, que alcança raramente o conhecimento do verdadeiro, que procura explorar as opiniões e freqüentemente os erros dos homens.145

Suprimir a contradição e, portanto, a mentira, assim como restabelecer o consenso

acerca do que é verdadeiro, este será o grande tema da crítica moral, filosófica e também

política da retórica. O ideal para esses críticos ocorre quando apenas a verdade é expressa

nos discursos humanos. Esta é, por exemplo, a solução que Platão nos oferece em seu

diálogo Górgias146, onde Sócrates afirma que o culpado deveria se adiantar ao juiz e se

fazer condenar, aceitando a sua pena e não, como muitos fazem, tentar esconder a sua culpa

atrás dos artifícios retóricos usados pela defesa. Portanto, para este filósofo, esperando-se

que se cumpra esse belo ideal, devemos suspender a utilização de uma linguagem que pode

admitir como verdadeiro o que é falso.

Já para Tucídides a causa dos julgamentos errôneos recai sobre o auditório, e não

sobre a retórica, devido à passividade e à ignorância dos ouvintes aos quais se endereçam o

discurso retórico, incapazes de resistir à sedução dos argumentos e dos artifícios do orador.

Por esse motivo, ele critica severamente os atenienses que:

Crêem menos nos olhos do que em seus ouvidos, deslumbrados pelos prestígios da eloqüência. Vocês se deixam cair na novidade do discurso, se recusando a seguir uma opinião geralmente aprovada. Sem cessar são escravos de todo tipo de estranhezas, desdenhosos do que é comum. (...) Vos lançam, por assim dizer, a perseguição de um mundo irreal, sem jamais ter um julgamento racional sobre a realidade, vítimas do prazer do ouvido.147

Como a grande massa dos cidadãos que participam das assembléias não possui o

conhecimento necessário para discernir entre argumentos falaciosos e argumentos

verdadeiros, assim como se manter imune à sedução imposta por um discurso eloqüente,

muitas escolas filosóficas - como a de Platão, a dos peripatéticos Aristóteles e Critolaos, a

dos acadêmicos Carnéades e Charmadas, assim como a dos estóicos Ariston de Chios e

145 Essa visão de Antônio que citamos acima é uma reprise dita de outra forma das suas idéias expostas no livro I do De L'orateur (I, 20, 90) Cf.: Cicéron. De l'Orateur. Paris: Belles Lettres, 2002, livro II, VI. 30, p. 12. 146 Platão. Górgias, 480. 147 Tucídides. História da Guerra do Peloponeso, 3.38.

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Posidônius - afirmaram veementemente que o uso da retórica deveria ficar restrito aos

filósofos e aos sábios, sendo apenas estes capazes de utilizar a retórica para a persuasão do

que é verdadeiro. Diante dessa ambigüidade inerente à ars retórica a literatura antiga está

cheia de críticas aos demagogos e aos sofistas que se utilizam do conhecimento das técnicas

retóricas para reforçar nos cidadãos as falsas opiniões. No entanto, Françoise Desbordes148

destaca que a condenação da retórica não implica, entretanto, em uma condenação da

persuasão, precisamente porque ao seduzir o público ela se torna um hábil instrumento de

poder. A crítica recai, por outro lado, sobre o orador que faz uso da eloqüência, que deve

ser sobretudo um homem de bem, um vir bonus. Portanto, seria apenas o sábio, o filósofo,

detentores de uma verdade autorizada, que poderiam se dirigir ao povo fazendo uso de uma

boa persuasão destinada a estabelecer ou a manter um consenso entre todos os membros do

corpo social. Por essa razão, uma grande parte do debate sobre a retórica é centrada na

questão de se deixar um instrumento tão poderoso como a palavra nas mãos daqueles que

não dizem o que é preciso dizer, em suma, daqueles que fazem um mau uso da eloqüência.

A crítica ao mau uso da palavra (tão presente na Antigüidade, como vimos) retorna

na Renascença e é direcionada sobretudo aos teólogos escolásticos que, durante tantos anos,

o fizeram em benefício da Igreja e de seus interesses em manter uma crença ritualística e

acrítica, muito distante dos reais preceitos cristãos deixados por Cristo e seus apóstolos. A

denúncia de práticas como as peregrinações, o culto aos santos e à Virgem Maria, a venda

de indulgências, o culto às relíquias e o cumprimento de alguns sacramentos, são

recorrentes nas obras erasmianas - assim como em muitos outros humanistas do século XVI

– que atribuem à permanência dessas tolas práticas a imposição da Igreja, que, em vez

despertar os cristãos para o cultivo da caridade e do amor ao próximo através dos

cotidianos sermões religiosos, prefere, pelo contrário, deixar a humanidade às cegas para o

que realmente importa: a real filosofia cristã. O termo sofista é, portanto, no século XVI

dirigido a esses teólogos que cultuam a mentira e os falsos sacramentos aos cristãos.

Mas voltemos à Antigüidade. Ao mesmo tempo, diz Desbordes, que há a crítica

moral ao uso da retórica, vê-se aparecer a idéia de uma retórica moralisada e legítima, que

permite, por exemplo, Santo Agostinho a usá-la. Essa aliança entre a arte de persuadir e a

necessidade de um bom orador (não em talento, mas em virtudes morais, chamado de vir

148 Desbordes, Françoise. La Rhétorique Antique: l'art de persuader. Paris: Hachette, 1996, pp. 20-30.

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bonus) é destacada já pelo sofista Górgias, assim como por seu aluno Isócrates. Sua retórica

relaciona-se a uma cultura baseada nas virtudes do orador, ou seja, na idéia de que para

falar bem é preciso ser justo e bom. Isócrates não crê, diferentemente de Platão, que o

homem possa se elevar a um conhecimento absoluto das coisas, assumindo em seu lugar as

verdades aceitas pela opinião comum, expressão dos únicos valores que são possíveis do

conhecimento humano. Tanto para Górgias quanto para Isócrates o discurso persuasivo tira

a sua eficácia dos valores admitidos pela doxa (opinião)149.

Até mesmo Platão após ter condenado severamente a retórica no Górgias,

afirmando que a verdade não precisa de ornamentos que só fazem mascarar o real, alguns

anos mais tarde, considerou no Fedro a possibilidade de se tirar algum proveito do poder de

persuasão inerente à linguagem, se esta estiver aliada à busca da verdade. Assim como ele

já aponta de alguma forma a necessidade da eloqüência e a possibilidade da união entre ela

e a filosofia, Aristóteles (384-322 a.C.), seu discípulo, em sua Arte Retórica, reconhece um

papel positivo à retórica, reservando-a o domínio das ações judiciárias e políticas, que

apenas podem se movimentar no espaço reservado do verossímil, deixando o verdadeiro à

metafísica e às ciências da natureza. A retórica para este último se transforma na arte das

mediações na vida política, tendo em vista que, como é possível aceitarmos o que não

possui provas formais? Como dar uma forma não apenas convincente, mas também

agradável e persuasiva ao que escapa à análise racional? Como tornar fácil a compreensão

pelo auditório do que é mais difícil de dizer e comprovar pela ausência de fatos ou provas

que sustentem determinada tese? Nas questões que não possuem um consenso óbvio as

opiniões são constantemente confrontadas, seja em política, em moral, em filosofia ou em

religiosidade, havendo sempre posições divergentes que são ao mesmo tempo legítimas.

Daí emerge a necessidade premente para a manutenção da vida em sociedade da existência

do “consenso” entre as partes, como Aristóteles propôs no livro III da Política. A retórica

torna-se, então, um "mal necessário", pois, da política ao direito o discurso e a comunicação

são inseparáveis da retórica. Sobre a utilidade da retórica o estagirita é bastante enfático:

149 Segundo Kennedy, ainda no século IV a.C. Isócrates, contemporâneo de Platão, já chamava a atenção de seus alunos para a importância do estudo filosófico. Mas, diferentemente do filósofo, ele se preocupava mais com uma sabedoria prática. Sobre a influência de Isócrates em numerosos retóricos e sua posição em relação à opinião ver: Kennedy, op. cit., pp. 22-26.

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A retórica é útil, porque o verdadeiro e o justo são, por natureza, melhores que seus contrários. Donde se segue que, se as decisões não forem proferidas como convêm, o verdadeiro e o justo serão necessariamente sacrificados: resultado este digno de censura. Acresce que, em presença de certos ouvintes, mesmo que estejamos de posse da mais rigorosa ciência, seria difícil extrair destas provas convincentes para nossos discursos. Porque o discurso inspirado pela ciência pertence ao ensino; discurso impossível aqui, dada a necessidade de tirar de argumentos comuns as provas e os raciocínios, como dissemos igualmente nos Tópicos, ao falarmos da maneira de nos dirigirmos às multidões.150[grifo nosso]

Diferentemente de Platão, que não acredita na necessidade de uma argumentação

persuasiva quando se trata de questões filosóficas ou científicas, Aristóteles ressalta a

importância prática da retórica nos assuntos mais diversos da vida cotidiana, sendo

relevante "estarmos habilitados a reduzir por nós mesmos ao nada a argumentação de um

outro, sempre que este em seu discurso não respeite a justiça.”151 A contribuição de

Aristóteles e de seu discípulo Teofrasto forneceram legitimidade e autoridade para o estudo

da retórica como disciplina acadêmica séria da Grécia à Roma republicana, estendendo-se

até o Renascimento. Contudo, um dos fatores que não contribuíram para que a união

proposta por Aristóteles entre as disciplinas fosse plenamente realizada foi o fato de, já no

início do livro I da Retórica, ele restringir radicalmente o locus retórico ao afirmar que os

modos de persuasão são os únicos constituintes da arte; tudo o mais é mero acessório. Para

Aristóteles, o domínio da retórica é apenas aquele da elocução, sendo restrito ao orador o

conhecimento filosófico. Por essa razão, Adriano Ribeiro152 nos diz que Isócrates foi o

primeiro a realmente não separar a retórica e a filosofia em campos distintos, pois a

elocução (o falar bem e de modo persuasivo) dos oradores só tem sentido se tiver apoio no

conhecimento exato e completo das coisas pertinentes apenas aos filósofos, sendo esta uma

das principais idéias desenvolvidas por Cícero mais tarde no De Oratore.153

150 Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 31. 151 Idem, p. 31. 152 Ao longo do texto deste autor ele aponta e analisa uma série de aproximações entre Isócrates e Cícero, afirmando ser apenas quando este se aproxima do conhecimento isocrático que ele passa a propor, como ocorre no De Oratore, uma extensão dos limites que eram impostos à arte retórica. Antes disso, em textos ciceronianos como o De Finibus, as Tusculanas e o Brutos, que propõem a separação dos domínios filosóficos dos retóricos, este orador não seguia ainda algumas posições isocráticas que apenas serão desenvolvidas no De Oratore. Cf.: Ribeiro, Adriano Machado. Sobre o Orador em Cícero. Dissertação de Mestrado, USP, São Paulo, 1994, p. 18. 153 Siegel nos diz que é esta a principal diferença entre Aristóteles (que não estende o domínio do orador para as questões filosóficas, limitando-o apenas aos conhecimentos pertinentes à resolução das questões públicas) e Cícero, que expande radicalmente os limites da ação oratória. Se considerarmos o fato de

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Essa reaproximação entre retórica e filosofia indicada por Platão no Fedro e

desenvolvida por Aristóteles e por Isócrates, é retomada três séculos mais tarde por Cícero,

sob uma forma que desempenharia um papel fundamental nas reflexões dos primeiros

humanistas italianos do século XV, por centrar-se na valorização da vida cívica. A idéia de

que eloqüência seria a única arma que os homens poderiam verdadeiramente se servir para

a defesa da paz e da liberdade nas cidades esteve presente na grande maioria das suas obras,

havendo, por isso, a necessidade de uma aproximação com os valores morais e com os

conhecimentos filosóficos. Esta valorização da palavra está presente desde as obras escritas

na sua juventude como o De inventione (ou Da invenção, de 86 a.C.), e também nas que se

seguiram, como o De oratore (Da oratória, de 55 a.C.), o Brutos (46 a.C.), e o Orator (ou

Do orador, também de 46 a.C.).154 A síntese e o ecletismo ciceroniano que reúne Platão,

Aristóteles, Isócrates e a visão sofistica sobre a retórica, combinados segundo as exigências

da liberdade romana, permitiu o renascimento da sofística e de seu novo diálogo com a

filosofia.

2.8) A conciliação ciceroniana entre a retórica e a filosofia Ninguém pode florescer e sobressair-se na eloqüência, não só sem a

doutrina do dizer, mas ainda sem uma total sapiência. É que as outras artes se sustentam sozinhas, por si mesmas; o bem dizer, porém – isto é, o dizer de maneira sábia, hábil e ornamentada – não tem um campo definido cujos limites possam ser demarcados.155

É importante notar que o termo sapientia, tradução latina do termo grego

philosophia, é utilizado por Cícero nesta passagem do De Oratore com a intenção de unir,

ou antes, reunir filosofia e oratória, de fazer do eloquens novamente um sapiens e vice- Isócrates ter sido uma das principais influências ciceronianas, como postula Adriano, a oposição proposta por Siegel apenas endossa e destaca a argumentação de Adriano. Cf.: Siegel, Jerrold, op. cit., prefácio. Cf.: também Machado, Adriano R., op. cit., pp. 1-60. 154 Fumarolli ressalta que também nos textos escritos um pouco antes da morte de Cícero, no ano de 43 a.C., como o De optimo genere oratorum, as Partitions oratoires e nos Topiques ele expõe e desenvolve essa doutrina. Cf.: Fumarolli, Marc. "Vocation et problèmes de la rhétorique" in: Histoire de la rhétorique dans l'Europe moderne: 1450-1950. Paris: Presses Universitaires de France, 1999, p. 22. 155 Cíceron, De L’Orateur. Paris: Belles Lettres, 2002, Livro II, introdução, II, 5.

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versa. O tema das relações entre retórica e filosofia reaparece sem cessar neste diálogo

ciceroniano que se volta para uma querela célebre na Antigüidade: a disputa entre a

sabedoria dos filósofos e a eloqüência dos retóricos. Extraídos de uma intensa prática

forense, os conhecimentos “sobre a vida, sobre os costumes e sobre as virtudes” foram

tomados pela filosofia como exclusivamente de sua alçada e retirados do domínio da

oratória, havendo a cisão entre os filósofos e os oradores, ou seja, entre aqueles que

possuíam cultura filosófica (o conhecimento de todas as coisas) e os detentores de um saber

técnico sobre o dizer. Esta cisão torna-se mesmo absurda, “pois se todo discurso consta de

assunto e palavras, nem podem as palavras ter uma sede se subtraíres o assunto, nem o

assunto ter clareza se retirares as palavras.”156

O início do De Oratore trata justamente da observação sobre o saber restrito dos

oradores, que já não agrada Cícero, nem tampouco às novas exigências advindas da crise

republicana em Roma157. Em relação a este ponto, tanto Licínio Crasso quanto Marco

Antônio (as duas personagens que polarizam o diálogo) concordam que a educação oratória

então praticada nas escolas dos retores não bastava para dar à natureza talentosa, o magnum

ingenium, a forma do summus orator158. O ensino formal e pouco eficiente na visão dos

dois oradores consistia basicamente no aprendizado de preceitos técnicos sobre a ars

rhetorica através de manuais como o Ad Herenium e o próprio De Inventione, de Cícero159.

156 Idem, III, V, 19. 157 O De Oratore foi concebido e redigido no ano de 55 a.C durante fortes lutas entre Milon e Clodius, em um período de profunda desagregação da república romana. Courband, Edmond In: Cíceron, idem, p. VII. 158 A análise deste importante texto ciceroniano é relevante aqui pelo fato de existirem diversas semelhanças entre este e o De Copia de Erasmo. Como dissemos no início deste capítulo, o homem se distingue dos animais pela fala, argumento ciceroniano presente no De Oratore e retomado por Erasmo mais tarde. Mas, para ser elevada à perfeição, esta atividade própria ao homem precisa ser cultivada por meio de uma educação que tenha como objetivo a formação do sumo orador, pois somente ele poderá realizar a eloqüência perfeita. Portanto, ainda que o aluno tenha uma aptidão natural, como diz Cícero, “em primeiro lugar, é a natureza e o talento que conferem força máxima ao dizer” (I, 113), a ampla formação do orador nas disciplinas liberais é condição indispensável para a defesa da res pública. E é justamente para esta formação – que se opõe ao tecnicismo dos manuais de retórica – que se voltam tanto o De Oratore quanto o De Copia. Seguindo os preceitos de Cícero, que alega ser o conhecimento filosófico inerente ao ofício do orador e, portanto, reunindo novamente res e verba, Erasmo mantém esta mesma chave em seu trabalho, que o coloca por sua vez, em sua busca por uma fé mais viva e autêntica, em oposição imediata aos teólogos escolásticos que mantinham uma educação também tecnicista, seca e sem vida. 159 De acordo com a tese de Adriano Ribeiro, em obras mais antigas como o De Inventione, Cícero propõe a separação entre retórica e filosofia, sendo o campo do orador apenas o da elocução. A filosofia apreende a res (as coisas, os temas) enquanto ao orador cabe sua ornamentação. Desse modo, o Cícero do De Inventione nega ao orador um conhecimento que se espraia para além de um terreno técnico restrito. Diferente postura o orador romano toma no De Oratore que, sob a influência direta de Isócrates, amplia os saberes do orador. Segundo Adriano: “descartados limites, impõe-se ao orador não o preceito da ars, mas o conhecimento das coisas sem o qual o discurso não floresce nem transborda: elocução vazia e quase pueril

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Cícero, no entanto, não descarta completamente a função deste aprendizado, mas ressalta

que o orador não deve a ele se dedicar por mais tempo que o estritamente necessário. Há

mais coisas que devem ter lugar na formação oratória. Crasso e Antônio discordam quanto

aos elementos que devem constar de um bom e eficiente ensino oratório, pois Crasso

defende em oposição a Antônio que a cultura do orador deve ser enciclopédica. Segundo

ele:

A eloqüência da qual eu falo é mais difícil do que se imagina, e demanda uma grande reunião de conhecimentos e estudos prévios. (...) É preciso, com efeito, abraçar e reunir inumeráveis noções, sem as quais não há mais do que uma vã e ridícula loquacidade. O estilo, por sua vez, deve conduzir a forma, não apenas da seleção, mas da distribuição das palavras na frase. E depois, todas as paixões que a natureza coloca no coração do homem, é preciso conhecer a fundo, pois a eloqüência desdobrando sua força tem apenas um objetivo: agir sobre as almas dos ouvintes, para lhes acalmar ou excitar.160

Neste fragmento, assim como em vários outros momentos do livro I, Cícero destaca

que apenas o conhecimento formal das regras, da escolha das palavras, da sua disposição

nas frases, não é suficiente ao orador, pois o orador ideal que ele pretende formar deve ter

um conhecimento amplo sobre todas as coisas. E, de acordo com o próprio orador, filósofos

como Aristóteles, Teofrasto e Carnéades acrescentaram em muitos de seus discursos ao seu

amplo saber uma eloqüência que utilizava todas as graças e todos os ornamentos do estilo.

E aqueles que não fizeram isso, como o filósofo Crisipo, escreveram sobre as mesmas

matérias tal como ele num estilo magro e árido. Portanto, para Cícero, a diferença entre a

fecundidade e abundância dos primeiros da secura do segundo - que não tem nem a mesma

variedade nem a mesma elegância - está na elocução, que deve, por sua vez, ter apoio no

conhecimento exato e completo das coisas161. Segundo Adriano Ribeiro, esta ampliação do

(De L´Orateur. I,VI, 20). O verbum opera quando se refere a res convenientemente apreendida. Elocução e invenção, concomitantes, só existem plenamente uma com a outra: não é mais possível, na chave isocrática, delimitar a retórica em tratado sobre a invenção, em limites da ars: no De Oratore, o prazer de falar adquire sentido com o conhecimento, vasto, do que se fala. A eloqüência deve aproximar-se da filosofia, enquanto conjuga em perfeição elocutio e inventio, sem prevalências.” Por atribuir maior valor à elocutio do que os manuais tradicionais é que, para o autor, há uma influência maior no De Oratore de Isócrates do que de Aristóteles. Para o estagirita a elocutio parece ser subsidiária da inventio, tendo em vista que para ele o elemento mais importante é a trama dos fatos, a res; a elocutio é apenas o quarto elemento, subsidiário ao mito e aos caracteres. Ribeiro, Adriano. Sobre o orador em Cícero. Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia da USP: São Paulo, 1994, pp. 26-27. 160 Cicéron. De L’Orateur, I, IV, 16 – I, V, 17. 161 Idem, I, XI, 49 – I, XII, 50.

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horizonte do orador que se espraia para além de um terreno técnico restrito ocorre devido à

influência de Isócrates, cuja amplidão do saber ressoa e se firma na elocução, pois o terreno

da inventio já não é suficiente ao orador162. A maleabilidade da elocução (verba) em

consonância com a variedade dos assuntos (res) formaria então o orador ideal ciceroniano.

Contudo, este amplo saber que Cícero defende para a eloqüência não deve firmar-se

em oposição à vida prática, como querem os filósofos163. Neste aspecto em particular,

Cícero não foge à tradição e, por isso, para ele a prática também é um elemento

fundamental na formação do orador, através do qual o aprendizado da doutrina faz-se

rápida e facilmente: “o conhecimento das coisas fica fácil se a prática firma a doutrina164”,

diz Crasso. E do mesmo modo afirma: “eu não tive outra escola que o fórum, outros

mestres que a experiência, as leis e as instituições do povo romano e os costumes dos

antepassados.”165 Para este orador, porta-voz das idéias ciceronianas neste diálogo,

contudo, esta experiência prática só vinha a somar-se ao dom natural (ingenium), ao

exercício prático do dizer (exercitatio dicendi) e a busca pelo amplo saber, pois “ninguém

deveria tornar-se orador sem possuir tudo o que o espírito humano conhece de mais

grandioso e elevado166”, no qual se destaca o estudo da filosofia.

Quais seriam então os limites da eloqüência? Ela deveria se reduzir apenas ao fórum

e às questões judiciárias e deliberativas ou se expandiria para outras áreas também? A

réplica de Crasso a Antônio (que se estende no livro I do capítulo 30 ao 74) mantém o

argumento de que mesmo se a função do orador se reduzisse a saber falar com abundância

diante do pretor ou dos juízes, diante do povo ou do senado, seriam necessários o 162 Ribeiro, Adriano, op. cit., p. 25. 163 A oratória fora em Roma um hábito e uma prática, pois, segundo Marrou, até meados do século II desconhecia-se ali a teorização retórica com a qual os gregos contavam já desde o século V a.C. Além disso, os primeiros retores gregos só chegaram a Roma no século II a.C. e a primeira escola de retores latinos só foi aberta em 93 a.C. Não obstante, os romanos apoiavam-se em uma consolidada tradição oratória, sendo a própria educação de Crasso um exemplo desta instrução prática dos antigos romanos. Marrou, H. I. Histoire de l´education dans l´antiquité, p. 316-324. 164 Ciceron, op. cit., III, XXIII, 88. 165 Idem, III, XX, 74. Na Roma antiga era costume que o menino de 7 a 15 anos tivesse a sua educação a encargo do pai ou de seus parentes mais próximos. Esta educação consistia principalmente em apresentar ao menino o fórum e a forma pela qual os debates eram travados, sendo através da experiência e da observação que ele retirava suas primeiras lições. Para uma melhor apreciação da educação familiar em Roma cf. Marrou, op. cit., p. 342. 166 Idem, I, VI, 20, p. 14. Por expandir a área de conhecimentos necessários ao orador, se opor ao tecnicismo predominante em sua época e sobretudo por reunir novamente res e verba Cícero elabora, tal como Erasmo fará séculos mais tarde, uma reforma nos estudos, se opondo às antigas regras, aos mestres da

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conhecimento das leis, dos costumes, do direito civil, da natureza humana e das noções

mais elevadas, pois tudo isso está implícito em toda espécie de causas, e não é possível

falar bem se não se tem o conhecimento desses preceitos.167 Portanto, se essa elocução não

tem como apoio um conhecimento exato e completo das coisas, ela só atrairá para si a

risada do auditório.168 “O que há de mais extravagante que uma reunião de palavras, as

quais, mesmo as mais bem escolhidas e as mais brilhantes, se tornam apenas um ruído vão

quando não possuem nem ciência, nem pensamento?169”

O orador deve saber falar não só de assuntos certos e definidos, mas também das

questões mais abstratas e universais - como da piedade, da concórdia, da amizade, dos

homens, das nações, da grandeza da alma e, enfim, sobre todas as virtudes - antes restritas

apenas aos filósofos170. E sobretudo da Ética – a parte da filosofia que trata “da vida e dos

costumes” dos homens – o orador não deve prescindir, uma vez que ela lhe fornece os

conhecimentos necessários para conduzir adequadamente os ânimos dos ouvintes171. Mas,

diz ele que há um privilégio reservado unicamente ao orador: “é o de poder sobre os

mesmos assuntos que os outros (os filósofos) que teriam disputado com uma linguagem

seca e sem vida, de se exprimir com todo o charme e a nobre abundância da eloqüência.”172

Portanto, juntamente à prerrogativa do saber estaria a necessidade de uma linguagem que se

expande em charme e em abundância, tanto das palavras (verba) quanto das idéias (res).173

Valorizando o estudo da filosofia, Cícero pretende ampliar não só o ensino grego dos

retores, mas também a própria formação oratória romana tradicional, até então baseada nas

lições apreendidas através da observação dos antigos e de sua ação prática na vida cívica174.

forma e aos manuais que tinham como seu maior objetivo fazer com que o orador cumprisse as suas funções mecanicamente sem se preocupar com o conteúdo de seu discurso. 167 Cíceron, De L’Orateur, 45-54. 168 Idem, I, XI, 50. 169 Ibidem, I, XII, 51. 170 Ibidem, I, XIII, 56. 171 Ibidem, I, XII, 53. 172 Ibidem, I, XIII,57. 173 Ibidem, 71-74. 174 Um dos pilares que fundamentava a eloqüência era a prática dos exercícios; os alunos escolhiam um mestre em oratória da cidade e passavam a acompanhá-lo ao tribunal e à assembléia, observando suas ações, seus discursos e seus argumentos, o que os tornaria aptos a apreender a linguagem mais apropriada, os argumentos mais persuasivos e a forma mais contundente de mostrar a verdade a seus ouvintes. E, certamente, diz Tácito: “sob tais preceitos, o jovem aluno do qual falamos, discípulo de vários oradores, aluno do fórum, auditor assíduo dos tribunais, formado e elevado pela provação dos outros, quem, escutando cada dia, aprende as leis, tem freqüentemente sob os olhos os costumes das assembléias e o gosto do público." Contudo, o autor do Dialogue des orateurs, escrito entre os anos de 76 ou 77 do século I, nos diz que já na Roma imperial, os

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Para ele a formação do orador deve compreender não apenas os preceitos básicos para que

este se utilize mecanicamente da eloqüência nas decisões públicas, mas compreenderia

também torná-lo um homem sábio.

Na transição do discurso de Crasso para o de Antônio, este afirma que o ideal

proposto pelo primeiro seria impossível de ser alcançado por ser muito diferente a maneira

que convém à tribuna e ao fórum, cuja conotação é predominantemente prática, pois age

diretamente na vida cívica da cidade, daquela mais contemplativa associada aos discursos

filosóficos. Antônio restringe a ambiciosa definição de Crasso, pois para ele não é

necessário ao orador um profundo conhecimento da política e do governo dos Estados:

política e eloqüência para ele são duas coisas distintas. Como argumenta Antônio, não há

tempo hábil para o orador aprofundar o conhecimento seja do direito civil, da história,

filosofia ou política, pois sua função é iminentemente prática e requer daqueles que a

praticam a total dedicação às defesas e aos negócios públicos175.

Todavia, Crasso não se dá por vencido e essa questão é novamente desenvolvida no

livro III176, amplamente dedicado à relação entre retórica e filosofia, tendo em vista que a

ciência do pensar e a do bem falar são indivisíveis. Desse modo, quanto maior e mais

intenso for o conhecimento do orador mais facilmente ele poderá conquistar a adesão de

seus ouvintes. Para embasar seu argumento Crasso nos diz que desde os tempos dos

primeiros legisladores - como Licurgo, Sólon, Temístocles e Péricles - o conhecimento e a

eloqüência caminhavam juntos, sendo Sócrates o primeiro a romper essa unidade original

entre o pensamento e a palavra ativa, entre a filosofia e a retórica, relacionando a

eloqüência à imoralidade e ao falseamento da verdade. É necessário, então, diz Crassos,

reconstituir a unidade original entre a filosofia e a eloqüência, entre a contemplação e a

ação.

alunos são conduzidos a escolas onde a qualidade dos estudos decaiu, não existem mais tantos grandes mestres de oratória para que os alunos pudessem tomar como exemplo, principalmente porque não havia mais a mesma natureza dos debates no fórum e nas assembléias, já que o orador não era livre o bastante para acusar ou defender uma questão que não fosse previamente aprovada pelo imperador. "A grande eloqüência, como a chama, precisa de matéria para se alimentar, de movimento para se reanimar, pois é consumando que ela brilha". Tácito, que viveu sob o império, se pergunta nesta obra por qual motivo os séculos precedentes tiveram um florescimento tão abundante de oradores célebres, enquanto que sua própria época, marcada pelo regime imperial, foi privada da glória oratória, quase se esquecendo do significado do termo orador. Tacite. Dialogue des Orateurs. Paris: Belles Lettres, 1947, cap. XXXVI, 65. 175 Cíceron, op. cit., I, LX-LXII, 256-262. 176 Para uma melhor apreciação do discurso de Crasso ver principalmente as seguintes passagens no livro III do De L’Orateur: capítulos XV-XX, 56-95 e capítulos XXX-XXXV, 120-143.

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2.8.1) A retórica da verossimilhança de Cícero

Após lermos o item anterior podemos nos questionar como Cícero pôde conceber a

união entre retórica e filosofia, sendo que há uma contradição intrínseca entre elas: a

primeira busca o verossímil e a segunda procura as verdades essenciais. Segundo Alain

Michel177, Cícero não deixa muito claro em suas obras como superar este impasse, mas

afirma ser clara a influência do Fedro de Platão em toda a argumentação do De Oratore.

Desta tese também partilham Werner Jaeger178 e Adriano Ribeiro.179 Vejamos como Cícero

retoma de Platão os argumentos necessários para a formulação de uma das suas obras mais

importantes.

Como vimos nos itens 1.3 e 1.4, Platão não admite nem no Górgias, nem no Fedro,

onde é mais tolerante com a retórica que o orador defenda inverdades perante o povo

suscitando suas paixões indevidamente. No próprio Fedro, Platão novamente satiriza os

procedimentos utilizados pelo sofista Górgias para obter a adesão de seu auditório,

reprovando ainda a crença de Górgias e Tísias de poderem distinguir a aparência da

verdade do que é realmente verdadeiro. Falar à multidão ignorante e apenas lhes mostrar a

aparência é o mesmo que aumentar a sua ignorância; é fazer, segundo Platão, o que há de

mais detestável, pois eles são definitivamente impedidos de se voltarem em direção à

certeza. A eloqüência deve ultrapassar a sedução do espírito, pois ela impõe ao orador o

177 Michel, Alain, op. cit., pp. 106-112. 178 Do mesmo modo concorda Jaeger ao afirmar que a síntese platônica presente no Fedro serviu de base a Cícero para o ideal de cultura por ele elaborado no De Oratore, pois a articulação entre a retórica e a filosofia, a força expressiva com o conhecimento da verdade é sempre preconizado pelas antigas escolas filosóficas, na medida em que se mostram acessíveis à retórica. Jaeger, W., op. cit., p. 868. 179 Para Adriano Ribeiro o Fedro parece ser a chave que explicita os requisitos impostos ao orador, sendo, portanto, várias as influências desta obra em Cícero. Nesta, assim como em Isócrates e em Cícero, o orador não deve confundir o bem com o mal, desconhecendo o que seja cada um deles. Portanto, sem conhecer a verdade a retórica não poderia constituir uma téchnê (Fedro, 260 e). A retórica aceita por Platão para vir a ser uma téchnê deveria ter como princípio o “conhecimento do semelhante e do dissemelhante”, do um e do múltiplo. Não se trata de uma técnica que se restringe às cortes e assembléias, mas, pelo contrário, como propôs mais tarde Cícero (De Oratore. I, VI, 20-21), Platão requer da retórica que ela diga respeito a tudo o que é dito (Fedro 261e). O orador aceito por Platão preconiza neste a amplitude do saber, incorporando a compreensão das questões filosóficas mais gerais como única forma de exercício da sua eloqüência. Além disso, o orador tal como fora idealizado no Fedro, que pode falar sobre qualquer assunto, não se limitará aos manuais de retórica (266d), assim como Cícero afirma no De Oratore (I, XXXII, 145-146). Desta forma, o conhecimento mais amplo deve ser retomado dos filósofos pelos oradores, pois apenas os saberes técnicos não são suficientes para a tarefa maior que se requer do orador (III, XXXI, 122) Ribeiro, Adriano, op. cit., pp. 54-56.

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conhecimento das exigências essenciais e, sobretudo, ela deve ter como objetivo a

educação. Por isso, sob este ponto de vista não pode se limitar apenas ao conhecimento do

provável, mas, pelo contrário, deve permitir ao povo julgar o verossímil e substituí-lo pela

verdade absoluta.

Distanciando-se nesse aspecto de Platão, Cícero busca a autonomia e a legitimidade

da retórica face à filosofia e não subordina a retórica à verdade, tomando a doxa (opinião)

dos participantes das assembléias como uma forma de se alcançar um juízo pertinente sobre

cada questão. O objeto da opinião é a probabilidade. A análise do provável dada por Cícero

já no De Inventione nos mostra que ela é distante em relação à posição platônica, pois, de

acordo com ele:

Um argumento é plausível quando ele é habitual, quando é admitido pela opinião corrente... A categoria do que é habitual e plausível se apresenta assim: 'Se a mulher é mãe, ela ama seus filhos; se o homem é ávido, ele não respeita sua palavra. Na categoria do que pertence à opinião corrente, vejamos alguns exemplos prováveis: 'Muitos castigos esperam os ímpios nos infernos'. 'Aqueles que se consagram à filosofia não crêem na existência dos deuses'.(...) Tudo o que é plausível e que nós utilizamos na argumentação está baseado em indícios, em coisas prováveis, em pontos já julgados ou em coisas comparáveis.180

Cícero define o provável (ou verossímil) como aquilo que, mesmo sem ter sido

comprovado por alguma testemunha, recebe a adesão do auditório. Ele mantém este

argumento no De Oratore pela voz de Crasso, afirmando que o orador capaz poderá

seguindo o método de Aristóteles, sustentar sobre todas as questões o pró e o contra, de levantar completamente na mesma causa duas teses opostas, ou se ele pode combater toda proposição que lhe será colocada antes da hora, se, enfim, a essa formação teórica ele sabe acrescentar o hábito e o exercício da palavra, este será o verdadeiro, o perfeito orador. Pois, sem a energia que o prende ao fórum, o orador carecerá de veemência e de força, e, sem uma variedade de conhecimentos, a ele faltarão elegância e fundamento.181

A eloqüência ciceroniana não reside sobre a certeza; pelo contrário, tem como

objeto a opinião, que é contraditória, por ser incerta. No entanto, as mesmas opiniões

podem ser depuradas e conduzir os homens do erro à verdade, através da elaboração de

argumentos opostos à mesma questão. Segundo Adriano, isto ocorre devido à influência da 180 Cicéron. De Inventione. Paris: Belles Lettres, 1994, livro I, cap. XXIX, 46, pp. 99-100.

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filosofia acadêmica sobre Cícero, que não acredita ser possível alcançar a certeza, não

havendo para eles nenhum critério sobre o qual se pudesse basear a certeza de possuir a

verdade. Na prática isto quer dizer que ele considera amplamente a utilidade da

argumentação in utranque partem, própria dos Acadêmicos e dos Peripatéticos, ou seja, a

defesa de dois lados opostos da mesma questão. “Disto advinha a necessidade de refutar os

argumentos dos outros sistemas, obrigando os acadêmicos à vasta informação sobre

eles.”182 Mais uma vez o conhecimento amplo das matérias, assim como das teses

pertinentes a cada doutrina surgem como requisitos básicos à formação do orador.

A defesa da argumentação de dois lados opostos à mesma questão também é

claramente utilizada por Aristóteles, a qual Cícero cita no De Oratore. Para o estagirita,

essa forma de pensar é útil de três maneiras: como exercício, nos encontros diários e para as

ciências filosóficas, afirmando logo no início da sua Retórica que:

Enfim, é preciso estar à altura de persuadir o contrário de nossa

proposição, do mesmo modo que nos silogismos lógicos, não para nos entregarmos indiferentemente às duas operações - pois não se deve persuadir o que é imoral - mas para ver claro na questão e para estarmos habilitados a reduzir por nós mesmos ao nada a argumentação de um outro, sempre que esse

181 Cicéron. De L'orateur. Paris: Belles Lettres, 2002, livro III, cap. XXI, 80, p. 32. 182 Adriano nos diz que: “seguidor da Academia [de Platão] (de Officis, III, IV), Cícero afirma a maior dificuldade em segui-la, visto que ela implique não apenas o conhecimento de uma teoria, mas o contraponto de várias, causa de sua maior dificuldade. Os acadêmicos, com efeito, não reconheciam juízos sobre o mundo absolutamente verdadeiros, pois não viam as condições necessárias para que isso ocorresse, ou seja, que tais juízos estivessem baseados em impressões que informassem corretamente os fatos, que a confiabilidade de tais impressões fosse reconhecida por quem a percebe (Sexto Empírico, Adv. Mat., VII, 161,402). Para os estóicos, tais condições eram satisfeitas pela impressão cognoscitiva, a Katalêptikê phantasia. Arcesilau, entre os acadêmicos foi o primeiro a atacar a pretensão estóica à posse desta impressão: nenhuma impressão, argumentava, pode garantir sua própria correspondência com os fatos. As impressões sensoriais não possuem características que assinalem a uma como mais certa do que a outra, que não o é. Em nenhum caso particular, uma impressão sensível é verdadeira por evidência própria, acerca do objeto que se supõe que ela representa. Posteriormente Carnéades não se limitou a reconhecer o conhecimento como inalcançável, com a conseqüente suspensão do juízo frente às coisas. Embora reconhecendo, com Arcesilau, não haver critério que estabelecesse como certo algo da impressão em sua relação exterior, Carnéades avança produzindo um ceticismo mitigado. Para isto, estabeleceu uma distinção entre provável e não provável, pithanón ou não, ressalvando-se o sentido do termo, que se refere, como em Aristóteles, à credibilidade da proposição.” Contudo, Adriano chama atenção para o fato de que o campo em que se aplicam as demarcações para se adotar uma impressão mais persuasiva não é o dos juízos cotidianos, “mas sobre teorias filosóficas que buscam um critério de certeza para a percepção sensorial.” É por isso que a tarefa dos acadêmicos parece ser a mais árdua. (...) “Se, não se pode, portanto, ter um critério infalível para discernir as proposições verdadeiras e falsas, e por isto também assentir uma a outra, há, contudo, condições do sábio regular sua vida pelas probabilia, de acordo com o pithanón, o mais persuasivo. É talvez por esta maleabilidade que a Academia tenha recebido a adesão de Cícero. Com efeito, ela permite o deixar-se convencer pelas melhores razões.” Ribeiro, Adriano, op. cit., nota 56, p. 43 e nota 81, pp. 72-74 respectivamente.

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em seu discurso não respeite a justiça. Ora, nenhuma das outras artes conclui os contrários por meio do silogismo, a não ser a Dialética e a Retórica.183

É através desse método que Aristóteles aceita e depura as opiniões comuns, ou seja,

aquelas que são aceitas pela maioria. O nível de verdade que o filósofo prega depende da

organização da opinião, como acontece nas assembléias, por exemplo, e que corresponde

em algum grau à verdade184. Este argumento do consenso advém da prática retórica, afinal,

aquilo que todos acreditam ser verdade é verdade. Dessa forma, Aristóteles garantiu um

status positivo para as opiniões comumente aceitas e para o reino da ação, que é onde se

afirma a persuasão. Segundo ele, "a capacidade de deliberar bem sobre o que é bom e

vantajoso para cada um está alicerçada numa típica sabedoria prática e, (...) no geral, o

homem de sabedoria prática é aquele que tem capacidade para deliberar.”185 Para

Aristóteles, portanto, a filosofia não exclui a eloqüência, pois o contemplativo deve

aprender a falar, propondo assim a conciliação entre ciência e eloqüência, contemplação e

183 Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, livro I, I, IV, p. 31. 184 Aristóteles destaca no livro III da Política a importância da existência do consenso nas deliberações políticas e, portanto, da depuração das opiniões. Segundo ele: “reunidos em assembléia geral, todos têm uma inteligência suficiente. (...) É assim que os alimentos impuros, misturados a alimentos sãos, fornecem uma alimentação mais nutritiva se a quantidade dos primeiros tivesse sido aumentada. Mas, tomado à parte, cada cidadão desta classe é incapaz de julgar... Cada um dos indivíduos que compõe [a multidão] será, sem dúvida, pior juiz que os entendidos, mas, reunidos, julgarão melhor, ou, pelo menos, não julgarão pior.” Aristóteles. A Política. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d., livro III, cap. VI, 7-10, pp. 124-125. Este argumento sobre a necessidade do consenso nas deliberações públicas é retomado no século XVI por Erasmo ao se opor à idéia de uma verdade absoluta e dogmática a respeito da divindade. Erasmo expõe sua tese em seu Ensaio sobre o Livre Arbítrio, de 1524, que ele escreve em resposta às inventivas luteranas. Erasmo reconhece as limitações da razão humana para alcançar a plenitude do saber divino, pois, para ele, apenas a fé pode aproximar o homem de Deus. Por sua vez, esta experiência não tem nenhuma vinculação com a razão, mas com uma relação mística, dada pelo êxtase e pelo sentimento. Portanto, se para ele a verdade da fé depende da negação da razão teológica, ou seja, de uma ciência para se chegar a Deus, em que critério de verdade ele se apoiaria? Conforme a tese do professor Danilo Marcondes (a qual adotamos aqui) a verdade para Erasmo advém de sua base aristotélica, principalmente no que tange ao consenso, pois, se não há certeza na opinião individual, devemos adotar o consenso oferecido pela multidão, tendo em vista que os homens reunidos julgarão melhor que aquele que permanece convicto de suas crenças particulares contra a opinião da maioria. Ele retoma, portanto, diretamente o livro III da Política, assim como a Retórica e a Ética a Nicômaco, obras freqüentemente lidas na Renascença, pois, ao contrário do que é comumente aceito, não há um abandono total de Aristóteles pelos humanistas, mas apenas de obras como a Metafísica, tão cara à tradição escolástica medieval. Este ceticismo em relação aos poderes da razão em demonstrar a verdade nos chama a atenção para a aceitação erasmiana do verossímil e não de uma verdade absoluta e irrevogável, como propõem os teólogos escolásticos. E é justamente pelo viés da crítica que caminha o anti-intelectualismo de Erasmo em relação ao racionalismo e o dogmatismo da teologia escolástica, detentora dos mais amplos e inquestionáveis saberes. A partir dessas críticas, já presentes desde as suas primeiras obras, Erasmo desenvolve todo o seu programa educacional ancorado não na busca de respostas inalcançáveis (como a questão do livre-arbítrio), mas numa formação ampla e eclética baseada na leitura dos antigos, na compreensão e apreensão da forma e conteúdo desses textos, assim como na utilização da retórica voltada para um cristianismo centrado na vida prática e no consenso entre os homens. 185 Aristóteles. Ética a Nicômaco.

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ação. No entanto, como podemos perceber, Aristóteles restringe o campo de ação do orador

apenas às questões relacionadas ao mundo público.

Cícero foi o primeiro a admitir que a retórica pode ser útil em todas as áreas, na

medida em que “é o orador aquele que saberá se exprimir com a maior abundância186”

sobre qualquer assunto, superando inclusive qualquer especialista em sua área. É por esta

razão que vários analistas afirmam ser o Fedro a referência norteadora do De Oratore, pois,

em ambas as obras é possível identificar o que é requerido da filosofia para o orador, sem

dele retirar a sua função prática na cidade. Da mesma forma, como o De Oratore, o Fedro

não limita a retórica a um conjunto de preceitos aplicados apenas às cortes e deliberações

no intuito de convencer os homens perante os tribunais ou nas assembléias, pois ela

manifesta-se em todos os pensamentos e discursos humanos. Além disso, ambas, tanto a

dialética quanto a retórica partem de uma origem comum: o conhecimento da natureza do

semelhante e do dissemelhante, do um e do múltiplo, ou seja, da verdade, sendo apenas

desta forma que ela se transformaria em téchné187. Desta forma, segundo a análise de

Adriano Ribeiro, ambas as disciplinas buscam ao final a verdade.

A filosofia, dado que a dialética aplicada por Sócrates em seu segundo discurso [no Fedro] chega à verdade por meio de dois procedimentos básicos (a sinóptica e a diairética), e a retórica, enquanto lida com o verossímil, é dependente da primeira, pois mesmo o discurso sobre o verossímil necessita da verdade para saber o que é semelhante.188

A antilogiké (ou seja, o conhecimento do pró e do contra ao mesmo argumento), é

para este autor o primeiro passo para a dialética proposta por Platão no Fedro, sendo ela

imprescindível para a descoberta da verdade189. No entanto, não há nenhuma garantia de

que essa depuração efetuada pelo conhecimento dos contrários garanta o alcance da

verdade. Deste modo, Cícero busca o verossímil, muito mais possível de ser encontrado do

que a verdade, lendo Platão sob a ótima acadêmica. Seguindo de perto o modelo platônico

tal qual expresso no Fedro, Cícero elabora o seu De oratore, unindo novamente res e

verba, a filosofia platônica com os preceitos retóricos firmados por Isócrates, pois o vasto

conhecimento só acontece com a palavra que o orna. 186 Cíceron. De L’Orateur, I, X, 41. 187 Platão. Fedro, 260e. 188 Ribeiro, Adriano, op. cit., p. 59.

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A nova revalorização da retórica estabelecida por Cícero, assim como a sua relação

com a verossimilhança, e não mais com a verdade, influenciou diretamente a forma como a

eloqüência foi apreendida pelos humanistas nos séculos XV e XVI. Isto foi determinante

tanto para as novas condições políticas que emergiram com a instauração das repúblicas

italianas, quanto para a renovação cultural e pedagógica então empreendida inicialmente

nessas cidades.

189 Idem, p. 60.

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3. Retórica, educação e a dignidade do homem na pedagogia humanista 3.1) A retomada e a reelaboração dos ideais ciceronianos na Renascença

Como vimos no capítulo anterior, o privilégio da linguagem coloca o homem que

sabe utilizar bem este dom no primeiro lugar na hierarquia dos seres humanos. Esta

capacidade inata ao homem deve, no entanto, seguindo os preceitos ciceronianos, ser

aperfeiçoada através de uma educação voltada para o aprendizado das técnicas retóricas,

assim como de um saber mais vasto e filosófico. Por essa razão, em seu Dos Deveres,

Cícero afirma que: "reconhecemos a força, nos cavalos e nos leões; mas nunca lhes

atribuímos a eqüidade, a justiça e a bondade, porque eles não têm razão, nem palavra."1 A

eloquência acrescida do saber, conclui o orador, é indispensável para que os homens

persuadam outros a aceitarem as verdades que a razão descobre. Entretanto, o saber que o

orador quer fazer triunfar não será jamais a verdade em si, mas o que é passível e provável

de estar mais próximo da verdade segundo o que é aceito pelo senso comum e de acordo

com o que em cada assunto é capaz de gerar a persuasão. O probabilismo ciceroniano se

funda no princípio de que, em presença de ouvintes comuns, seria difícil extrair somente

com a posse da ciência (sem o auxílio da eloqüência) provas convincentes que alcançassem

o espírito dos homens em geral.

Assim, é pelo discurso aliado a um saber mais vasto que torna possível a persuasão

do auditório, sempre que se demonstra a verdade ou o que dela está mais próximo (o

verossímil). Esta mesma premissa se repete também no Orator, no De Oratore (que há

pouco analisamos) e no Brutos, onde Cícero insiste na sua tese central de que a eloquência

é ao mesmo tempo saber e palavra, devendo ser este saber adaptado pela arte oratória às

circunstâncias e aos homens de cada época. Da mesma forma, quase um século depois,

Quintiliano se pergunta se "não é porventura esplêndido que, pelo simples emprego da

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inteligência comum e das palavras que todos usam, possamos conquistar tamanho louvor e

glória ...?”2

Para estes retóricos apenas a razão seria incapaz de convencer uma platéia hostil aos

argumentos do orador, mas esta associada à força da eloqüência seria a fórmula ideal que

deveria ser por ele atingida. Uma das declarações mais influentes de que o poder do orador

estava justamente em aliar a razão à eloquência, talvez seja ainda a que é fornecida por

Cícero nas primeiras páginas de seu De oratore, onde procura recuperar categoricamente o

estudo das questões filosóficas, então restritas apenas aos sábios, para complementar o

ofício do orador3. Estes dois saberes indispensáveis à vida pública, permitiram não apenas

aos primeiros legisladores convencer nossos antepassados a adotarem um estilo de vida

mais civilizado, como também continuaram sendo na Antigüidade as qualidades que os

líderes civis deveriam possuir e cultivar acima de tudo, de maneira a persuadir seus

concidadãos a seguirem um determinado curso de ação em vez de outro.

Devido à sua relevância para a cidade, muitos tratados antigos cuidaram desta

"forma de eloquência artística que se costuma conhecer como retórica, cuja função é

persuadir, e cuja meta é persuadir através da fala.”4 Tal como fizera Cícero, Quintiliano, um

dos teóricos mais importantes da Antigüidade a tratar da ars rhetorica no século I d. C.,

também destacou a necessidade da combinação entre o falar bem e o conhecimento

filosófico. Contudo, se aparentemente Cícero mantém um equilíbrio entre sapiência e

eloquência, Quintiliano atribui maior importância à palavra do que à razão, pois é através

dela que nós exprimimos nosso pensamento.

E, certamente a divindade que é a origem, pai de todas as coisas e arquiteto

do mundo, não estabeleceu entre os homens e os outros animais nenhuma outra distinção mais marcante que o dom da palavra. (...) É pela razão que a divindade em nós se faz presente, e pela qual nós somos associados aos deuses imortais. Mas, a razão nos seria menos útil e estaria menos evidente em nós se a linguagem não nos permitisse exprimir o que a nossa inteligência conheceu; é o que falta a todos os outros seres, mais que uma sorte de inteligência e de pensamento. Com efeito, construir uma habitação confortável ou construir um ninho, ou mesmo reservar provisões para o inverno (...) tudo isso implica um certo grau de razão; mas como os seres que cumprem estes trabalhos não possuem linguagem, nós os conhecemos mudos e desprovidos de razão. (...)

1 Cícero, Marco Túlio. Dos Deveres. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 46. 2 Quintiliano. Institutio oratoria. Livro II. XVI. 19. 3 Cíceron. De L´Orateur, livro I, XIII, 56-57. 4 Cíceron. De L´ Inventione, livro I, I.

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Então, se é verdade que nós não recebemos nada dos deuses que seja preferível à palavra, teria alguma coisa que seria mais digna de exercício e trabalho que a faculdade pela qual os homens predominam sobre todos os outros animais?5

A radicalidade de seu apreço pela linguagem influenciou humanistas no século XV

como Lorenzo Valla6, como vimos no capítulo anterior, que em sua oposição à razão

filosófica opta por uma eloqüência necessária ao orador cristão, capaz de aproximar os

homens dos verdadeiros pressupostos religiosos, negando a razão contemplativa em sua

forma escolástica ou estóica cujo dogmatismo limitava a palavra enquanto ação neste

mundo. Mas, essa entronização da retórica no âmbito do pensamento humanista e de sua

religiosidade não se fez sem esforço e sem um longo processo de acomodação dos valores

da tradição antiga, centrada na infalibilidade do mundo dos negócios humanos e os ideais

cristãos de salvação. Contudo, se Valla manifestava uma confiança irrestrita nos poderes da

palavra em persuadir a humanidade a amar e a servir a Deus, a seguir os ensinamentos

cristãos de humildade e caridade (que eram preferíveis para ele à busca do conhecimento

intelectual dos mistérios divinos), Petrarca, no século anterior, desenvolvia uma posição

diferenciada7. Para estes primeiros humanistas ainda era difícil conciliar a valorização da

vida mundana inerente à tradição retórica com os ideais cristãos de salvação do espírito

humano.

Petrarca foi um dos precursores do humanismo em seu culto à tradição ciceroniana,

mas incorporou também, por outro lado, uma postura tradicional de desconfiança em

relação ao uso da retórica, que seria comum a muitos dos humanistas posteriores, tal como

Salutati, por sua aderência a um cristianismo mais interiorizado e contemplativo

incompatível com o envolvimento na vida mundana. Conquanto ele fosse um dos pioneiros 5 Quintiliano. Institutio Oratoria. Vol. II, XVI, 12-17. 6 Siegel propõem que Lorenzo Valla teria recebido maior influência de Quintiliano, por sua radicalidade em relação aos poderes da palavra, do que por Cícero ao propor um equilíbrio entre as duas disciplinas. Em suas Dialectical Disputations Valla teria usado Quintiliano como sua fonte mais importante por ele considerar a dialética como apenas uma parte da retórica, desqualificando, por sua vez, as obras ciceronianas em que predominam a sua visão filosófica. Erasmo na ambigüidade e ecletismo que lhes são peculiares também manifesta seu apreço pelo teórico romano no De copia, porém isso não quer dizer que ele tenha menos interesse por Cícero, como veremos ao analisarmos esta obra. Cf.: Siegel, op. cit., p. 161. 7 Como vimos no capítulo anterior, ao tratarmos da posição de Valla no De voluptate, posteriormente chamado de De vero falsoque bono, percebemos claramente a sua rejeição da razão filosófica. Esta mesma crítica aparece no De libero arbitrio, provavelmente escrito entre os anos de 1438 e 1439, onde o humanista rejeita a filosofia como prejudicial à religião. Portanto, Valla nos aconselha a não agirmos como os filósofos, pois a sua paixão pelo saber acaba por conduzi-los à loucura como nos mostra o exemplo do suicídio de Sócrates. Valla, Lorenzo. Dialogue sur le Libre-Arbitre. Édition critique, traduction, introduction e notes par Jacques Chomarat. Paris: Vrin, 1983, (107-109).

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no resgate dos valores da Antigüidade, estava longe de existir em Petrarca uma aderência

total aos postulados ciceronianos tal como haveria em Valla, por mais que ele considerasse

fundamental para o programa pedagógico do humanismo o estudo dos antigos. Assim, se

Petrarca valorizava o discurso eloqüente, não era tanto por sua forma e beleza, mas por sua

importância moral. Diz ele:

O quanto a eloqüência pode realizar na formação da vida humana é

sabido tanto pela leitura de tantos autores, como pela experiência da vida prática. Como é grande o número daqueles que em nossos dias até os exemplos de virtude são de nenhuma ajuda, mas que têm sido despertados e orientados de repente de uma maneira maldita de vida para uma perfeitamente ordenada simplesmente pelo som de outras vozes.8

O papel moral da retórica fica evidente aqui, pois, para Petrarca a verdadeira

oratória requer virtude e sabedoria e está necessariamente a serviço delas. A sua devoção à

retórica aparece novamente quando o humanista escreve seu estudo sobre as leis, de 1356,

onde ele afirma que desde o momento que estes estudos foram apartados da retórica eles

declinaram, retomando claramente a posição ciceroniana sobre os conhecimentos vastos

sobre os quais deveria se deter o orador.9 Mas, ainda que colocando a retórica no mais alto

lugar na hierarquia das disciplinas, a fé cristã para Petrarca, maior cometimento do homem,

combinava pouco com a figura do orador, pois ele é o único que sente prazer com a vida da

cidade: “eles amaldiçoam a solidão, eles odeiam e se opõem ao silêncio”10. A devoção de

Petrarca a Cícero não o impede de criticar o paganismo e a valorização excessiva, a seu ver,

da vida mundana por parte do grande orador latino (tal como Erasmo faria bem mais tarde

em seu Ciceronianus), afinal quase quatorze séculos separam sua visão cristã dos

postulados antigos.

Como cristão e devido à sua aproximação com Santo Agostinho, Petrarca está muito

mais preocupado que Cícero com as necessidades interiores do homem e dos impulsos

diferenciados que exigem a vida ativa. Por estar imerso nas deliberações públicas, na busca

pela persuasão e pela criação do consenso, o orador antigo não poderia se afastar da

multidão e, por essa razão, também não buscaria o silêncio e a verdade no encontro com

Deus. Esta proximidade com Santo Agostinho faz com que Petrarca desconfie num

8 Petrarca, Fam., I, 9, 6 apud Siegel, op. cit., p. 34. 9 Idem, p. 41. 10 Ibidem, p. 43.

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segundo momento da junção entre retórica e filosofia, subordinando por isso a primeira à

segunda, pois não há mais lugar para o esplendor da linguagem no âmbito da mais alta

sabedoria. Na perspectiva do humanista a filosofia estava muito mais próxima do espírito

contemplativo do cristianismo do que a retórica, numa consideração das relações entre

cultura clássica e cristianismo completamente oposta à formulação de Lorenzo Valla no

século seguinte.11 Com efeito, a maneira pela qual os humanistas se apropriaram da

tradição clássica em suas obras e especialmente das questões relativas ao papel e a função

da retórica foram bastante diferenciadas, atendendo a adaptação necessária das temáticas

clássicas às exigências do mundo moderno e dos seus interesses e questionamentos

específicos.

O exemplo de Petrarca é importante para nossa análise porque seu pensamento

encarna certas ambigüidades em relação à retomada da retórica no contexto humanista

relacionado aos valores cristãos mais ligados à interioridade e à transcendência. Tais

ambigüidades reeditavam de forma nova no início dos tempos modernos o velho conflito

do mundo antigo entre os valores filosóficos da contemplação e da vida ativa, ligado agora

às questões especificamente cristãs. Como veremos, influenciado por Valla em sua

valorização da retórica, Erasmo ecoaria também tais problemas, esforçando-se por afirmar

a importância do estudo da retórica em sua nova proposta pedagógica a partir de sua

adequação aos valores morais do cristianismo e no âmbito da fé mais propriamente

humanista, da formação de uma conduta reta e do cultivo da vida espiritual, pois a retórica

assume neste período a função mediadora que possuía na Roma Antiga: "dar a tudo o que o

homem sabe e mesmo aquilo que excede o seu saber uma forma e um sentido que o instrui

e o torna menos impotente".12 Seria então através do aprendizado da arte retórica que o

homem dizia e aprendia a dizer com uma aparência de facilidade as coisas mais difíceis,

pois o domínio dessa arte nos permitia falar com eloquência persuadindo o leitor ou o

ouvinte do argumento proposto. Assim, no âmbito da nova fé, a mensagem divina se torna

11 Para uma análise mais profunda sobre as obras de cada um desses humanistas, assim como do modo pelo qual eles foram influenciados pela tradição clássica ver os textos de: Kann, Victoria. “Humanist Rhetoric” In Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance. Ithaca and London: Cornell University Press, s/d. Ver também: Siegel, Jerrold. Rhetoric and Philosophy in Renaissance Humanism: the Union of Eloquence and Wisdom, Petrarch to Valla. Princeton University Press, 1968, capítulos II e IV. 12 Fumaroli, Marc. L'Age d l'Éloquence et "res literaria" de la Renaissance au seuil de l'Europe Classique. Paris: Presses Universitaires de France, 1999. Cf.: também do mesmo autor, Histoire de la Rhétorique dans l'Europe Moderne: 1450-1950. Paris: Presses Universitaires de France, 1999, p. 5.

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ativa no sentido de combinar-se com o cultivo da interioridade, como veremos no capítulo

seguinte.

O elogio feito por Cícero no De Oratore à ars rhetorica ressoaria com força já entre

os humanistas italianos do século XIV.

Que há de mais poderoso, que há de mais magnífico do que poder um

homem afetar os movimentos do povo, os escrúpulos dos juízes e a gravidade do Senado, por meio da oratória? Além disso, prossegue ele, o que poderia ser mais régio, mais liberal, mais nobre do que a arte da retórica, a arte que nos faculta conceder súplicas, animar os aflitos, garantir a segurança, libertar as pessoas do perigo e mantê-las em estado civilizado?13

A partir da retomada desta tradição os oradores foram colocados no centro do

mundo intelectual e cultural da época, sendo a eles atribuída a imagem de realização mais

plena e perfeita das potencialidades da razão humana. Não foi por acaso que os trabalhos

em que Cícero teorizou sobre a eloquência - em parte desconhecidos pelo mundo

medieval14 - adquiriram um valor exemplar e serviram de referência principal para os

humanistas dos séculos XIV, XV e XVI.

Com uma importância política inquestionável no mundo antigo, uma das questões

mais importantes na qual os retóricos insistiram em seus tratados era que o benefício da

comunidade implicava o não afastamento da vida pública. Cícero fala em tom desdenhoso

daqueles que se distanciam das suas obrigações civis em várias partes das suas obras. Em

Dos Deveres, por exemplo, ao tratar das obrigações da cidadania ele declara ser com efeito

um vício que as pessoas “apliquem esforços excessivos a questões obscuras e difíceis, ou

mesmo desnecessárias.”15 Isto porque deixarmo-nos “ser por elas afastados do

cumprimento das obrigações [públicas] é contrário ao nosso dever, já que todo mérito da

virtude consiste na atividade.”16 É, portanto, um homem verdadeiramente cívico aquele que

não se dedica a controvérsias inúteis, mas cuida, em vez disso, da administração da

comunidade. A imagem positiva da cidadania centrava-se na figura do homem que sabia

13 Ciceron. De L´Orateur, I, p.24. 14 De acordo com Fumaroli, durante a Idade Média apenas alguns fragmentos do De Oratore e Do Orador eram conhecidos por um pequeno número de clérigos, sendo em 1421 que um bispo de Lodi descobriu um manuscrito completo destes trabalhos e do texto até então desconhecido do Brutos. Fumaroli. L'Âge de la Eloquence, p. 47. 15 Cícero. Dos Deveres, livro I, VI, 19. 16 Idem, I, VI, 19, pp. 12-13.

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pleitear por justiça nos tribunais e deliberar com prudência nos conselhos e nas

assembléias, de maneira a promover medidas que fossem ao mesmo tempo proveitosas e

honradas.

A retomada dessas questões na Renascença é afirmada, como já vimos,

especialmente pelos humanistas cívicos italianos que conclamavam a população a participar

das deliberações concernentes à defesa das repúblicas. Segundo Skinner, essa crença na

importância da eloqüência e da vida cívica se tornara, mais do que um artigo de fé, um

verdadeiro traço a caracterizar o pensamento humanista, estando presente inicialmente no

tratado de Petrarca Da ignorância e fazendo parte posteriormente da maioria das obras dos

humanistas florentinos, como no Diálogo de Leonardo Bruni.17

O império da palavra e, por sua vez, o culto da ação de Cícero sobre a Roma das

guerras civis, sua glória vitoriosa, os riscos heróicos de sua carreira oratória e sua morte

trágica fizeram da eloquência a essência de um novo ideal de "vida civil", cujo princípio

estava na liberdade e na razão humana como formas de controlar a incerteza das paixões e

a ação da fortuna.18 Para Hanna Gray19, esta busca incessante pela eloquência e por seu uso

prático na atmosfera cívica nos revelaria as características identificadoras do Renascimento.

Segundo ela, a retórica constituiu a força principal tanto na cultura dos antigos quanto na

Renascença fazendo com que os humanistas estipulassem um valor central a um corpo de

preceitos capazes de garantir a comunicação efetiva das idéias igualmente importantes

sobre as habilidades retóricas e demais habilidades humanas. Para bem falar, ou seja, para

que fosse alcançado o principal objetivo de uma eloquência verdadeira, o orador precisaria

aprender a associar a sabedoria ao estilo, fugindo assim dos discursos artificiais,

extravagantes e sem originalidade, cuja característica mais evidente seria a submissão da

substância (idéia) à forma (ornamento).

3.2) A retórica a serviço da formação moral do espírito cristão

17 Skinner, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 110. Para uma melhor apreciação dos textos de Petrarca, Salutati e Bruni, assim como da forma específica em que eles formularam essa união entre retórica e filosofia ver: Siegel, op. cit., parte I. 18 Idem, p. 98-99. 19 Gray, Hanna H. "Renaissance Humanism: The Pursuit of Eloquence" In Renaissance Essays. Edited by Paul Oskar Kristeller and Philip P. Wiener. New York: University of Rochester, 1992, p. 199.

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A ascensão da retórica neste contexto correspondeu à constituição de um novo

ideário de valorização do homem, de exaltação de suas virtudes e capacidades em intervir

positivamente através da eloqüência na ordem do mundo. Estes ideais se adequavam de

início às novas exigências das repúblicas italianas e a necessidade da participação dos

cidadãos na defesa da liberdade e legitimidade política das cidades-estado. Contudo, o

contexto republicano não se sustentou por muito tempo, abrindo espaço para o

desenvolvimento de um outro tipo de discurso retórico que não estava vinculado

diretamente às exigências das deliberações políticas, mas sim, já que apartadas deste

contexto, à produção de textos com fins morais e pedagógicos cujo objetivo era levar o

leitor à elaboração de um julgamento prudente20. Com o fim das Repúblicas italianas a

retórica deixa de fazer parte diretamente das ações políticas, diplomáticas e das disputas

jurídicas, voltando-se muito mais para uma função pedagógica, cuja preocupação recaía

sobre as questões relativas ao ensino e à formação moral dos jovens, dos príncipes,

cortesãos e nobres.

Nesse contexto em que o conhecimento é baseado em uma razão prática, ou seja, no

ato de aceitar ou não o argumento proposto pelo autor, impõe-se também a necessidade da

ação, mas esta é mais salientada da perspectiva da natureza crítica e reflexiva do homem no

mundo enquanto atributo divino, que se distanciava do apelo à ação imediata que ocorria no

senado ou nas assembléias. Contudo, a associação entre o texto escrito e o desenvolvimento

de uma reflexão que levasse o leitor a reformar seu espírito é muito mais explícita nos

humanistas do Norte, como veremos no próximo capítulo, ao abordarmos sobretudo alguns

textos erasmianos. Nestes, a característica devocional se faz marcante, ecoando as

ambigüidades que já vimos em Petrarca, com o objetivo da reformulação dos valores da

20 São desta época tratados como O Príncipe de Maquiavel (1515), o De liberis recte instituentis escrito pelo cardeal Iacopo Sadoleto, em 1533, O Cortesão de Castiglione, entre tantos outros, que apontam para um novo direcionamento dado à arte retórica e ao teor de suas discussões, agora muito mais ligadas às questões pedagógicas e à elevação moral do homem através de uma sólida educação liberal. Particularmente na obra de Sadoleto, o otimismo acerca das capacidades do homem para seu crescimento moral se traduzia na defesa do livre-arbítrio e dos estudos humanísticos para a formação moral de todos os cristãos. Em seu ensaio sobre a educação filial, citado acima, o autor defendia o estudo das artes liberais, única força capaz de levar o homem à aquisição do autodomínio, do controle sobre seus vícios e da consciência da dignidade humana em sua semelhança com Deus. Deste modo, pela "reta instrução", o homem poderia descobrir-se "naturalmente cristão". Os jovens, portanto, deveriam ser introduzidos por seus mestres no estudo da gramática e da retórica, da poesia e da música, da geometria e aritmética e, sobretudo, na filosofia de Platão e Aristóteles. Esta foi na Itália a nova função atribuída à retórica, cujas premissas seguiam de perto as noções presentes no Discurso sobre a dignidade do homem de Pico della Mirandola, de 1486.

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tradição, de valorização da retórica e dos valores ligados a um cristianismo mais autêntico e

humano. Nestes textos o alto valor da eloquência é atribuído em função de uma ação

interventora de conteúdo mais moralizante que visava à reforma espiritual do homem,

privilegiando sua dimensão interior.

Portanto, antes de prosseguirmos nossa análise, gostaríamos de chamar atenção para

algumas diferenças nas funções da retórica na Renascença em relação ao papel que ela

assumia entre os antigos, pois longos séculos separam um contexto histórico do outro.

Entendemos a retórica na Renascença como uma versão adaptada de seu ancestral clássico,

considerando que a dimensão mais propriamente política e legal da retórica – as formas de

discurso deliberativo e judiciário, amplamente evocados nos tribunais e assembléias

romanas - cai por terra com o fim das repúblicas italianas, apenas permanecendo a forma

demonstrativa ou epidíctica do discurso21.

O Ad Herennium - escrito entre os anos de 86 e 82 a.C. é a mais remota arte retórica

escrita em latim que a Antigüidade nos legou e uma das obras antigas de maior circulação

na Idade Média. Propõe que o gênero demonstrativo diz respeito principalmente ao louvor e

à vituperação, que só podem ser lançados sobre “uma pessoa em particular.” Esses elogios

incluíam bênçãos da sorte como a riqueza, o poder e a glória, qualidades corporais como a

agilidade, a força e a dignidade, e atributos de caráter como a prudência, a justiça, a

coragem e a modéstia22, contudo, ele observa que quase nunca nos deparamos com ele na

vida cotidiana. Também o personagem de Marco Antônio no De Oratore chega até mesmo

a sugerir que “por já não termos muita utilidade para esses panegíricos, parece apropriado

eu deixar esse tópico inteiramente de lado.”23 Posteriormente, no entanto, Quintiliano

complementou a função desse discurso afirmando que os elogios podem ter um caráter

mais amplo, abrangendo ainda os mortos, os animais, os objetos, as obras públicas, os

21 Como observa Quintiliano, a maioria dos retóricos romanos concorda que são três os gêneros da retórica: o deliberativo, o judiciário e o demonstrativo (ou epidíctico). Segundo ele, este consenso se dava pelo fato dos retores aceitarem a tipologia originalmente proposta por Aristóteles no livro I, capítulo III, de sua Retórica onde ele propõe que cada um destes gêneros tem um tempo e uma função que lhes é apropriada. O deliberativo cuida das deliberações sobre o que é útil ou prejudicial à cidade, e seu tempo é o do porvir; o judiciário trata das acusações e defesas, e seu tempo é o passado; o demonstrativo trata dos elogios ou dos vitupérios, e seu tempo é o presente. É fato que os teóricos romanos têm muito pouco a dizer sobre esse tipo de discurso. Quintiliano. Institutio oratoria, III, VI, I. Cf. também: Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, livro I, cap. III, p. 39. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, III. VIII, 15. 22 Retórica a Herênio, op. cit., III. VI-VIII. 23 Cíceron. De L’Orateur, II, LXXXIV. 341.

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governantes, os homens justos e bons, e toda sorte de outras coisas24, sendo esta

compreensão mais abrangente que foi endossada e adotada por vários humanistas no

Renascimento ao restabelecerem o gênero do panegírico em prosa e em verso.

Podemos citar como exemplo o Discurso sobre a Dignidade do Homem, de Pico, o

Elogio da Loucura, de Erasmo, a Utopia de Thomas More, entre tantas outras obras cujas

temáticas estavam muito distantes das prerrogativas e deliberações políticas, estando mais

comprometidas com o cultivo moral do espírito para a formação de uma boa conduta. Elas

incitavam o leitor a pensar criticamente, a bem julgar sobre o que é melhor para o homem e

a sociedade. No caso de Pico a opção se punha entre o ecletismo religioso que valoriza a

dignidade das capacidades humanas ou a intolerância da Igreja que perseguia as idéias e

doutrinas filosóficas que não se adequavam aos dogmas cristãos. Já na obra de Erasmo a

questão se colocava entre a aparente “sanidade” de um culto externalizante ou a loucura do

abrasamento evangélico decorrente do contato direto com a divindade. E por fim, para

More em sua Utopia, mais relacionada com a consideração da vida social, a questão sobre a

educação ganhava um lugar central. A melhor forma de vida seria mesmo a européia ou

haveria outras que poderiam substitui-la? O que seria melhor: um novo mundo onde as

prerrogativas da educação eram valorizadas ou a permanência na ignorância do antigo? Do

mesmo modo, até mesmo na sua tradução do Novo Testamento Erasmo centraliza sua

interpretação na análise dos motivos dos personagens bíblicos em agir de determinado

modo. Para ele a narrativa podia ser também um pretexto não para uma simples exposição,

mas sim para uma narrativa ulterior, para uma história recontada ou interpolada que é

constituída emocionalmente para persuadir o leitor sobre alguma questão ética, ou seja,

para a reflexão sobre a melhor forma de agir em casos específicos e segundo a moral

cristã.25

O desenvolvimento do discurso epidíctico na Renascença diminui o papel da

retórica tal como fora concebida nos moldes clássicos ligada à oralidade, aumentando, pelo

contrário, a esfera da literatura, tendo em vista que o texto escrito assume então as funções

antes ocupadas pela retórica deliberativa e judicial. Portanto, enquanto os oradores na

Antigüidade eram treinados para persuadir seus ouvintes das necessidades da expansão do

24 Quintiliano, op. cit., III. VII. 6. 25 Waswo, R. “The challenge from eloquence: Erasmus and Literature” In Language and Meaning in the Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1997, p. 224.

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território romano para o Egito, por exemplo, ou para condenar traidores da sua pátria, os

humanistas da Renascença ao adotarem as habilidades retóricas ciceronianas e aristotélicas

foram muito além de seu uso no fórum e em assembléias populares. No Renascimento a

palavra oral é substituída por um discurso escrito que deveria provocar nos seus leitores

uma ação muito específica: o exercício de um julgamento prudente26. É desta forma que, ao

adotarem a forma do discurso epidíctico, os humanistas em geral produziam seus textos

para alertar, ensinar e encorajar a atividade da resolução prática. Portanto, a produção de

textos como os que citaremos no item seguinte, comunicam para seus leitores, acima de

tudo, o significado do exercício da interpretação, pois apenas ela poderia assegurar-lhes

uma formação baseada na virtude e na prudência27. É com essa preocupação que os

humanistas buscam traduzir, editar e utilizar em suas obras uma vasta gama de autores

antigos, pois eram neles que podiam ser encontrados num mais alto nível os exemplos

morais e as mais hábeis formas de incitar o leitor ao julgamento mais apropriado das

questões que se lhes apresentasse na vida cotidiana. Esta visão educativa do processo de

leitura, assim como a importância do ensino das línguas clássicas, é claramente incorporado

por Erasmo, como veremos no capítulo III, em seus tratados mais teóricos sobre a

educação, como o Ratio studdi e o De copia, tendo em vista que para ele a ação política é

mediatizada pelo exercício de julgamento no ato da leitura.

Um outro ponto articulado com a valorização da prudência e do saber que os

humanistas resgataram e adaptaram da Antigüidade e, sobretudo, de Cícero, é a questão do

decoro do orador, de fundamental importância para realização da eloqüência ideal nos

moldes ciceronianos. O decoro ciceroniano definia a sabedoria própria do orador em saber

adaptar seu discurso, as palavras e as sentenças utilizadas aos mais diversos auditórios e

26 De acordo com a análise de Victoria Kann, houve na Renascença uma dupla influência: a de Cícero e a de Aristóteles. Em relação ao peso da retomada ciceroniana a autora não se detém muito, devido à maior aceitação desse argumento entre os analistas, assim como por ela associar diretamente o orador persuasivo de Cícero com o homem prudente de Aristóteles, ambos preocupados com um julgamento prático e não teórico, já que a “maioria das coisas sobre as quais nós inquirimos nos levam a possibilidades alternativas”. Kann aborda, portanto, com mais vagar a influência aristotélica, sobretudo por esta ser muitas vezes negada na Renascença, indicando as traduções do latim para línguas vernaculares da Retórica e da Ética a Nicômaco, assim como o papel destas obras na formação de um julgamento prudente a ser incitado por humanistas como Bruni, Pontano, Salutati e Valla. Segundo ela, Cícero e Aristóteles têm em comum que a capacidade de deliberação sobre o que é bom e vantajoso está alicerçada em uma sabedoria prática, sendo o conhecimento e a prudência do orador que estabelecem a aceitação do auditório das suas teses. Desta forma, como o próprio Cícero estabelece, a faculdade da prudência seria inseparável do decoro (capacidade do orador se adequar às mais diversas situações). Cf.: Kann, Victoria, op. cit., pp. 29-84. 27 Idem, p. 41.

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circunstâncias. Erasmo valoriza e a adapta para as necessidades morais e cristãs de seu

tempo.

No entanto, se é próprio do bom orador adaptar a sua linguagem à sua elevada

função, da mesma forma que deve falar de maneira adequada ao seu auditório, às temáticas

tratadas e aos diferentes contextos em que se encontra, de modo a conquistar e a seduzir o

seu público, não seria então permitido a ele distanciar-se da verdade em seus discursos, ou

mesmo deturpá-la? Esta questão sobre o decoro se liga ao problema moral que encerra a

retórica que remonta a Platão, como já vimos. Desde esse período foram dadas respostas

diferentes para essa questão, sendo Aristóteles, Teofrasto, Isócrates, Carnéades, Cícero e

muitos outros, alguns dos principais interlocutores nessa discussão.

Segundo Chomarat28, Erasmo chegou a tratar, porém de forma muito en passant, da

relação do orador com seu público em alguns dos seus Colóquios, em suas declamações e

no De conscribendis, sendo no Ecclesiastes que ele realmente precisa esse problema. Desde

o início do trabalho ele afirma que a linguagem humana deve ser uma imagem (um

espelho) do seu próprio pensamento, da mesma forma que a palavra divina está em

consonância direta com a imagem de Deus. “Mas, se ela está em desacordo com o espírito

de onde ela provém, ela não merece mais o nome de linguagem, da mesma forma que a

máscara não merece ser chamada de rosto ou o disfarce de ser chamado de carnação29”. Por

isso, o artifício retórico é para Erasmo, e deve ser sobretudo para o predicador, um

instrumento não para enganar ou ludibriar seu leitor ou ouvinte com argumentos falaciosos,

mas sim um meio extremamente útil para o emprego das parábolas, metáforas ou da forma

mais adequada de provocar o riso e assim prender a atenção da platéia (como ele faz no

Elogio da Loucura), e persuadir a todos da doutrina cristã. Diz ele no Ecclesiastes:

Uma atitude convém ao profeta da Antiga Lei, uma outra convém ao

Doutor evangélico; e os mesmos propósitos não são adaptados ao homem que evangeliza, pecador que adverte os pecadores... É preciso descobrir a verdade de maneira diferente para homens diferentes, tendo em conta as circunstâncias e os seres, mas é preciso não escondê-la de ninguém quando a situação demanda. (...) É uma falta muito grave acrescentar ou omitir o que é divino. É por vezes permitido esconder a verdade, seja quando os ouvintes são indignos, seja quando

28 Chomarat, Jacques. Grammaire et Rhetorique chez Erasme. Paris: Belles Lettres, 1981, p. 1107. 29 Érasme. “Ecclesiastes” in: Mesnard, Pierre. Oeuvres Choisies. Paris: Librairie Générale Française, 1991, 772 B.

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eles não são ainda capazes de ser instruídos nos mistérios. Mas, misturar as coisas humanas às coisas divinas como se elas estivessem sobre o mesmo plano é um tipo de sacrilégio que a Escritura interdita muitas vezes.30

Em apenas uma passagem Erasmo chama atenção do predicador para no mínimo

duas premissas de suma importância para o emprego da arte da eloqüência. A primeira

delas é, sem dúvida, a questão do decoro: o predicador, da mesma forma que o orador

romano deve saber adaptar o seu discurso a qualquer tipo de auditório e obviamente saber

lidar com as diferenças de nível social e econômico que existe dentro de uma igreja. Nesta

perspectiva, a verdade do Evangelho deve ser transmitida de modo que possa alcançar

todos os presentes, e não apenas aqueles de nível social superior. Ao predicador é

permitido, por exemplo, suprimir de seu sermão as histórias bíblicas mais complexas, ou

até mesmo analisar de modo sucinto as passagens de maior dificuldade. No entanto, ele não

pode, como o orador romano, fazer uso indiscriminado de um dos principais recursos

retóricos: a amplificação e a redução dos argumentos. A segunda parte da citação destaca o

erro em que recaem alguns doutos religiosos que, sem nenhum rigor, misturam partes

escritas por eles mesmos aos Evangelhos, deturpando seu sentido e contrariando as leis

divinas. Por isso, Erasmo condena o mau uso da palavra realizado pelos teólogos

destacando a importância da retórica, do aprendizado das línguas e do apuro filológico para

conter as deformações instauradas pelos teólogos na religiosidade cristã, pois, como destaca

Chomarat, Erasmo associa o homem que mente deliberadamente a Satanás, o pai da

mentira, que, apenas por suas palavras persuadiu e enganou o gênero humano

convencendo-o a afastar-se dos preceitos divinos.31

Já o bom orador, aquele que está engajado no serviço a Deus - “deve ter um coração

simples, isento não apenas da luxúria, da volúpia e de todos os outros vícios desse gênero,

mas também das preocupações mais baixas que, sem arrastar o homem ao crime, desviam

seu espírito dessa sublimidade que é necessária ao predicador”32 – é o único capaz de um

correto uso da palavra para instaurar um cristianismo interiorizado e ajudar o vulgo a

realizar um julgamento prudente. Esta é uma das características mais importantes do orador 30 Idem, 803 E –804 A, p. 974-5. 31 Chomarat, Jacques, livro II, op. cit., p. 1107. 32 “Aqueles que estão engajados no serviço a Deus “doivent avoir un coeur simple, exempt non seulement de la luxure, des voluptés et de tous les outres vices de ce genre, mais même de ces préoccupations trop basses qui sans entraîner l’homme au crime, détournent son esprit de cette sublimité qui est requise chez un Prédicateur.” Cf.: Érasme. “Ecclesiastes” in: Mesnard, Pierre. Oeuvres Choisies, 777 D.

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cristão, pois infelizmente a massa dos homens dá mais valor aos vícios que as virtudes.

Esse erro no qual incorrem muitos fiéis é atribuído por Erasmo a um equívoco em seu

julgamento sobre as coisas, já que o vulgo julga sempre “às avessas”. Para Erasmo:

O vulgo escolhe sempre o pior em vez do melhor, os bens menos importantes em lugar dos mais importantes, negligenciando os bens mais altos e verdadeiros em proveito dos mais insignificantes. Quem, com efeito, não coloca os bens do corpo acima daqueles da alma, os temporais acima dos eternos? Em seguida o ódio, o ressentimento e o rancor fazem com que os males que vêm dos outros nos pareçam mais graves do que são em realidade. Inversamente, o amor faz freqüentemente que os males nos pareçam bens, e que os bens nos pareçam maiores do que eles são realmente. (...) Pois que quantos poucos homens encontramos que não sejam seus próprios aduladores, atenuando seus vícios, exaltando suas virtudes mais do que é justo?33

Para Erasmo, os homens julgam mal as coisas, valorizando erroneamente os bens

materiais no lugar do que realmente faz bem ao espírito. O ouro, as riquezas e a ostentação

apenas afastam os homens da piedade cristã. O problema está, então, na capacidade de

julgamento ou discernimento entre o que é bom e o que é ruim para o espírito, pois “em

quase todos os domínios da vida humana os julgamentos às avessas são a fonte de onde

brota a ruína dos costumes34”. Quantas más ações os homens cometem para se tornarem

ricos ou para conquistarem honrarias? Eles navegam, viajam, iniciam guerras, não tendo

nenhuma sorte de perigo que eles desprezem. Mas são ainda mais numerosos aqueles que

valorizam os bens do corpo e não os da alma. Do mesmo modo, diz Erasmo, julgamos ser

os ritos cristãos mais importantes que a própria fé em Cristo, sendo atos como a

peregrinação, as procissões, a venda de indulgências, o culto desmedido aos santos e aos

sacramentos, as celebrações católicas (que mais parecem pagãs que cristãs), profundamente

criticadas pelo humanista em praticamente todas as suas obras.

O mesmo ocorre no Ecclesiastes, porém, como ele escreve para futuros

predicadores, Erasmo acrescenta a necessidade deste orador cristão ter, acima de tudo,

33 O vulgo “choisit le pire au lieu du meilleur, les biens les moins impotants à la place des plus grands, et à l’inverse néglige les biens les plus hauts et les véritables au profit des plus insignifiants. Qui en effet ne place les biens du corps au-dessus de ceux de l’âme, les temporals au-dessus des éternels? Puis la haine, le ressentiment et la rancune font que les maux venant d’autrui nous paraissent plus grands qu’ils ne sont en réalité. (...) Car combien peu d’hommes trouvous-nous Qui ne soient leurs propres flatteurs, atténuant leurs vices, exantant leurs vertus plus qu’il n’est juste?” Idem, 968 F-969 B, p. 1000. 34 (...) “mais dans presque tous les domaines de la vie que les jugements à rebours sont la source d’où jaillit toute la ruine des moeurs.” Ibidem, 832 B, p. 979.

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muito cuidado ao questionar esses rituais. Como fazem parte dos hábitos cristãos, melhor

seria ao predicador se afastar dessas práticas, deixando subentendido a sua desaprovação

em relação a estes espetáculos. Segundo o humanista, “o costume é uma coisa violenta, e se

o pastor protestasse provocaria uma revolta em vez de remediar o mal.”35 Esse é o tipo de

decoro que o predicador deve ter para cativar a confiança de seu público, persuadindo-o a

seguir uma religião onde o contato direto com a divindade e a compreensão das Escrituras

funcionaram como bases desta nova religiosidade.

Devido à semelhança que existe entre os vícios e as virtudes, assim como o fato

desta má compreensão das coisas assolar a maioria dos cristãos, é que Erasmo trata dessa

temática repetidas vezes, principalmente no Enquiridion, onde ele chama atenção para a

importância do “conhecer-se a si mesmo”, para que assim possamos distinguir não apenas

os vícios que mais recaem sobre a nossa personalidade, mas também o que já se tornou

hábito em nossas vidas e que, por isso, por serem pequenos erros não nos chamam mais

atenção.

A dificuldade tanto em “conhecer-te a ti mesmo” quanto em julgar acertadamente é

uma das preocupações erasmianas mais recorrentes, sendo nesses pontos onde ele se utiliza

mais brilhantemente das técnicas retóricas de redescrição, tendo em vista a sua habilidade

em tratar repetidas vezes dessas temáticas, mas sempre de uma forma diferente da que já

havia tratado antes. Os humanistas sabiam que o único meio possível para vencer esses

obstáculos seria através de uma educação mais ampla, baseada nos studia humanitatis e que

reunindo o saber pagão ao cristão seria capaz de tornar o homem mais apto a agir no

mundo. É seguindo esta chave, portanto, que poderemos entender a importância que a

educação assume na Renascença e especificamente para o humanista roterdanês, tendo em

vista que esta educação reformada (com base nos antigos e não na tradição escolástica)

assim como a prática de interpretação dela advinda torna o aluno apto a bem deliberar e a

bem julgar sobre qualquer ação.

Antes de iniciarmos a análise sobre a reforma educacional proposta por Erasmo

optamos por um breve exame da historiografia acerca do contexto social, político e

educacional de emergência da retórica na Renascença italiana, apreendendo seu sentido e

35 (...) “s’il protestait, la coutume est une chose violente, et on aurait plus vite provoqué une révolte que remédié au mal”. Érasme. Ecclesiasites, 840 A-E, pp. 981-982.

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suas implicações a partir de sua oposição em relação à tradição escolástica medieval,

traçando em linhas gerais o processo de sua afirmação como uma das principais disciplinas

da formação educacional oficial. Este quadro que pretendemos montar, tendo em vista

alguns dos fundamentos essenciais da Renascença italiana, será de fundamental

importância para que possamos compreender melhor quais as características mais

marcantes que levaram Erasmo – profundamente influenciado por esta tradição – a dar

tanto relevo à sua opção pela linguagem retórica em seus trabalhos, sobretudo naqueles de

conotação mais pedagógica como o De copia e o Ratio studdi que analisaremos no capítulo

IV.

3.2.1) A primazia da retórica na pedagogia humanista

Autores como Eugênio Garin36 e Quentin Skinner37, partem, de forma geral, da

linha interpretativa proposta por Hans Baron38 de que o humanismo teve seu início nos

centros urbanos italianos, em cidades como Florença, Pádua e Milão, tendo desenvolvido

um tipo de ideal republicano e democrático calcado na participação política de cada

cidadão, no culto a uma "vida ativa" em oposição à "vida contemplativa" da Idade Média,

cuja valorização se adequava melhor à vida sob formas políticas monárquicas estruturadas

sobre as relações de vassalagem que na época mesma da ascensão do humanismo, ainda

estavam presentes em quase toda a Europa. Se na França, nos Países Baixos, na Espanha e

em Portugal a nobreza feudal excluía dos burgueses o poder de decisão política,

36 Eugênio Garin é um dos analistas que faz uso do conceito criado por H. Baron de "humanismo cívico" ao evidenciar a atividade dos humanistas na vida pública, sendo esta confirmada através da participação dos chanceleres na política da cidade de Florença. Nessa função todo conhecimento adquirido com o aprendizado das disciplinas humanísticas - que incluíam além da leitura dos clássicos e o ensino das regras de retórica, oratória, diplomacia e política - eram utilizados na vida civil das cidades contribuindo para a conservação da sua liberdade. Defendendo a influência do humanismo para além das universidades, este autor se distancia da posição afirmada por Paul Kristeller ao associar os humanistas deste período apenas as regras de gramática e a erudição desvinculada da ação política. Garin, E. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista/UNESP, p. 19. Cf.: também Kristeller, Paul O. Tradição Clássica e Pensamento no Renascimento Italiano. Lisboa: Edições 70, 1995. 37 Skinner, Q. Ver parte 1, "As Origens da Renascença" in: As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 25-210. 38 Baron, Hans. The Crisis of the Early Italian Renaissance. Princeton University Press, 1966.

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imprimindo-lhes o seu modo de vida como padrão, na Itália o sistema feudal caíra em ruína

levando a nascente burguesia a fazer parte do cenário político.

Esta é uma das vertentes que explicam a formação do humanismo não como um

fenômeno isolado ou uma mera fase na história da erudição, como propõe Kristeller39, mas

como um processo essencialmente político, onde o homem adquire importância social de

acordo com a sua interferência na "vida ativa" das cidades, tal como ocorria no mundo

antigo, uma vez que estes textos justificaram inicialmente a defesa da liberdade das cidades

italianas.

Q. Skinner ressalta o fato de que já em fins do século XII, mesmo sob a ameaça dos

imperadores germânicos, a forma republicana de autogoverno teria sido adotada por quase

todas as principais cidades do norte da Itália.40 A adoção da forma republicana de

autogoverno pelas cidades italianas lhes proporcionava uma certa independência de fato,

mas, no entanto, elas continuavam a ser consideradas vassalas do Sacro Império Romano. 39 Para Kristeller este processo de renovação humanista teve seus primeiros impulsos no campo educacional tendo se mantido fechado dentro das escolas e universidades. Procurando afastar-se dos anacronismos que geralmente recaem sobre o conceito de humanismo, este autor preferiu conferir o sentido renascentista original dado ao termo, utilizando-o apenas como referência àqueles que estudaram e se destacaram num grupo particular de disciplinas - as studia humanitatis - que compreendiam a gramática, a retórica, a história e a filosofia moral. No entanto, o fortalecimento destas disciplinas nos programas universitários não pode ser remetido apenas a um fenômeno escolar ou à afirmação do gramático moderno contra os barbarismos da dialética escolástica. Tratava-se, sim, de uma reorganização do saber que expressava a preeminência de um programa educacional mais adequado à emergência de novos problemas, como também de um programa voltado para a pesquisa filológica e de um movimento marcado por críticas às autoridades seculares. Contudo, se, por um lado, a definição de Kristeller nos ajuda a ver o conceito como fora entendido pelos homens da Renascença, por outro, sua preocupação em definir os humanistas apenas como professores e representantes de um certo ramo de estudos limita muito a influência dessas disciplinas fora das escolas. O humanismo se originou e se desenvolveu dentro dos limites dos estudos retóricos e filológicos, mas, não se conteve apenas nessa área. Discordamos da sua afirmação de que o "humanismo sempre permaneceu circunscrito nos seus interesses clássicos e retóricos", sendo sua influência em outros campos, "apenas externa e indireta." Kristeller, P. O. "O Movimento Humanístico" e "A Filosofia do Homem no Renascimento Italiano" In Tradição Clássica e Pensamento no Renascimento Italiano, pp. 11-29. 40 Distanciando-se da tese de Hans Baron, pois este autor afirma que a mudança no pensamento florentino ocorreu entre os anos de 1399 e 1402, sob a ameaça do expansionismo dos Visconti de Milão, Skinner faz menção à esta polêmica historiográfica também alimentada por J. K. Hyde e George Holmes. Como Baron, eles também afirmaram que "jamais se havia feito uma defesa da liberdade republicana até os humanistas cívicos do Quatrocentos", uma vez que as cidades-repúblicas não dispunham de uma ideologia cívica a que pudessem recorrer. Segundo estes autores, os ideais disponíveis nos séculos XIII e primórdios do XIV seriam muito mais "aristocráticos e cavalheirescos" que propriamente cívicos. Dessa forma, uma ideologia independente não poderia ter-se articulado com sucesso até a "revolução humanista", na Florença de inícios do Quatrocentos. Embora essas teses sejam correntemente aceitas, concordamos com Skinner quando ele diz que elas nos induzem a uma visão equivocada de como se desenvolveu o pensamento político renascentista. Para este autor, havia, na verdade, já no século XIII duas tradições distintas de pensamento - a retórica e a escolástica - com as quais se podiam valer os protagonistas do governo republicano, sendo a

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Portanto, a essência de sua objeção às exigências imperiais consistia no fato de que elas

teriam o direito de preservar sua liberdade contra qualquer interferência externa, lutando,

por isso, tanto pela sua independência política quanto pela defesa do modelo republicano.

Para a defesa de seus ideais de liberdade foi de importância fundamental a ação dos

primeiros humanistas ou "pré-humanistas", como Bartolo de Saxoferrato41 e Boncompagno

da Signa que, em sua narrativa sobre o Cerco de Ancona, provavelmente escrita entre 1201

e 1202 resgata o ideal cívico dizendo:

Recorda a todos que são descendentes da nobreza da velha Roma, e que

até este momento sempre estiveram preparados para lutar pela conservação da liberdade. (...) Exorta-os a manter-se firmes e a lutar como homens, já que nas maiores batalhas é que se conquista o mais glorioso triunfo.42

Esta temática esteve presente também nos discursos de vários humanistas

posteriores - como Leonardo Bruni, Colucio Salutati, Gianozzo Manetti e Matteo Palmieri -

ao defenderem ou exaltarem a liberdade republicana contra o Império. O fato que

gostaríamos de ressaltar é que independente do momento exato em que se deram as

primeiras defesas das cidades italianas, (seja no século XII, como propõe Skinner, seja no

século XIV, como propõe Baron), seja contra o Império, seja contra o Papado, foi a retórica

que forneceu os argumentos necessários para que estes homens pudessem sustentar seus

ideais contra o discurso da tradição. O despertar de uma posição renovada do homem fez

com que a retórica recuperasse seu sentido prático original no elogio da eloqüência, num

mundo que incorporava e fazia renascer em si a vida consagrada ao bem público.

De acordo com Skinner, o estudo da retórica nas universidades italianas, como a de

Bolonha, por exemplo, já fazia parte do currículo disciplinar desde o início do século XII,

tendo como objetivo básico ensinar ao aluno como escrever cartas oficiais e outros

documentos análogos com o máximo de clareza e força persuasiva. Essa concepção

segundo a qual escrever cartas era uma arte especial, passível de se resumir em regras e de retórica, expressão da intervenção positiva na ordem do mundo, de grande utilidade para a defesa da liberdade republicana. 41 Ao reinterpretar o código civil romano ele teria propiciado às comunas lombardas e toscanas uma defesa legal das suas ambições à liberdade, avançando decididamente na idéia da criação de vários Estados soberanos, separados entre si e independentes do Sacro Império. O efeito desta mudança impediu as pretensões legais do imperador quanto às cidades italianas, pois o argumento desenvolvido por Bartolo defendia a tese de que ainda que o Imperador pudesse pretender ser o único governante do mundo, havia muitos povos que de fato não obedeciam a ele.

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se aprender de cor, gerou inúmeros tratados dedicados a este tema, como Os preceitos da

epistolografia escrito entre 1111 e 1118. No início do século XIII, a arte da epistolografia

foi combinada ao ensino da arte de escrever discursos públicos formais. Esse avanço no uso

de exemplos retóricos teve um óbvio significado prático, especialmente em uma sociedade

que lidava com todos os seus negócios legais, políticos e diplomáticos por meio de

discursos e debates formalizados, capacitando os "dictatores" (como eram chamados), a

participarem cada vez mais nas discussões públicas e políticas.

A criação de crônicas sobre a cidade resultou deste mesmo processo, cuja

abordagem era deliberadamente propagandista, seja para exibir seu autor como um possível

provedor de úteis conselhos políticos, bem como para inculcar a ideologia característica das

cidades-repúblicas. Assim, algumas das formas que estas crônicas assumiram foram a de

encorajar os cidadãos a tomar armas em defesa de suas cidades, enfatizar a necessidade de

que as cidades prestassem auxílio umas às outras e celebrar o ideal de liberdade

republicano.

Outro gênero de escrita política que se desenvolveu neste período foi o dos livros de

conselho dirigidos ao "podestá" e a outros magistrados urbanos, que segundo Skinner43,

chegaram a influenciar posteriormente os livros de aconselhamento dos príncipes no século

XVI, como seria o caso, por exemplo, do Príncipe de Maquiavel. Seria enganoso, porém,

supor que tal continuidade tenha assumido a forma de uma derivação direta. Se assim

pensássemos, estaríamos negligenciando a influência de uma teoria retórica nova, e

conscientemente humanista. Nos séculos anteriores, pusera-se enorme ênfase no

aprendizado das regras de composição, dando-se pouco espaço para o estudo dos poetas e

oradores antigos como modelos do melhor estilo literário e expressão mais alta da

dignidade humana.

Tão logo o estudo da retórica veio a se basear no estudo de exemplos e autoridades

clássicas, esses autores passaram a ser tratados como figuras literárias dignas de serem 42 Skinner, op. cit., p. 53. 43 Contrapondo-se mais uma vez a Baron, Skinner afirma que a análise deste autor sobre o "humanismo cívico" não valoriza a influência dos "dictadores" dos séculos XII e XIII que se dedicaram ao estudo e ao aprofundamento das técnicas retóricas nos escritores florentinos de inícios do Quatrocentos. Skinner, Q. ibidem, p. 54. Um importante traço de continuidade evidenciado entre esses dois grupos do qual chama também atenção Kristeller, foi que de modo geral eles tiveram a mesma formação jurídica, desempenhando, portanto, papéis muito parecidos no campo profissional, quer trabalhassem como mestres de

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estudadas e imitadas por si mesmas. Este é considerado por muitos analistas da Renascença

o grande acontecimento do humanismo nos séculos XIV e XV: a redescoberta da língua

artística da Antigüidade, de sua sonoridade, seu ritmo e o balanceamento dos períodos

harmoniosamente estudados. Além disso, destaca-se o valor histórico, lingüístico e moral

destas obras que passaram a ser valorizados pelos humanistas que seguiram Petrarca na

recuperação e tradução de textos antigos.44 A retomada de obras como as de Cícero,

Quintiliano, Salústio e Tito Lívio, tomadas como modelos de patriotismo, de virtude cívica

e da forma ideal pela qual os cidadãos deveriam defender a liberdade republicana,

contribuíram para a formação de um ideário que tinha a cidade-estado como espaço por

excelência para a formação intelectual e moral dos homens. Seus protagonistas foram

intelectuais como Contarini, Matteo Palmieri, Leonardo Bruni, Colucio Salutati, Maquiavel

e Guicciardini. Com o objetivo de garantir a integridade das cidades-repúblicas que ainda

resistiam, Salutati, em carta oficial escrita em 1390, responde à declaração de guerra

enviada à Florença dizendo:

Agora haveremos de tomar armas para defender tanto a nossa liberdade

quanto a dos outros, a quem gravemente oprimis com o jugo de vossa tirania, esperando que a eterna justiça da Majestade Divina haverá de guardar a nossa liberdade e perceber a miséria da Lombardia, não tolerando que a ambição de um único mortal prevaleça sobre a liberdade de tantos povos.45

Estão claras neste fragmento as preocupações do humanista em manter a liberdade e

em ressaltar a imagem de Florença como guardiã desse ideal republicano, moralmente mais

elevado, tendo em vista que não poderia ser apenas através das vontades de um só homem

que a organização política da cidade seria estruturada, mas sim através da participação do

conjunto da sociedade. O valor do indivíduo deixava então de ser medido, como ocorria na

Idade Média e nas monarquias tradicionais, pela antigüidade de sua linhagem ou por suas

riquezas, sendo valorizada sobretudo sua capacidade de desenvolver as potencialidades que

retórica nas universidades da Itália, quer trabalhassem a serviço das cidades ou da Igreja. Cf.: Kristeller, P. Studies in Renaissance Thought and Letters. Roma, 1956, p. 262, 560-564. 44 Skinner sustenta que estas novas influências clássicas difundidas pelas universidades italianas também enriqueceram os gêneros de escrita política que já haviam nascido do estudo da retórica nas primeiras décadas do século XIII, concorrendo assim para que adquirissem uma apresentação mais sofisticada, bem como um tom propagandístico mais explícito. Com numerosas referências a Cícero, estes autores enfatizaram mais do que nunca que "a principal ciência relativa ao governo das cidades é a da retórica, isto é, a ciência do discurso. " Skinner, op. cit, p. 90. 45 Colucio Salutati apud Skinner, idem, p. 99.

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possui através de uma sólida formação educacional. Apenas deste modo o homem poderia

atingir o nível mais alto de excelência que o tornava digno para a defesa da cidade e o culto

dos ideais republicanos. O conteúdo de tal educação deveria concentrar-se num estudo

interligado da filosofia antiga e da retórica, sendo elas consideradas as principais

disciplinas para preparar aqueles que pretendiam o acesso à vida pública. Petrarca já

afirmava em seu tratado intitulado Da ignorância46, que a filosofia aristotélica não seria

suficiente para o aprendizado da virtude. Para ele, somente quando formos capazes de unir

a sabedoria à eloquência, e ainda, de dominar as artimanhas do discurso, é que poderemos

instruir realmente nossos ouvintes sobre as virtudes, como também incitá-los a praticar atos

virtuosos. Esta alta estima atribuída à linguagem, à forma e à estética do discurso, marcam

a essência suprema da dignidade do homem Renascentista.

Reclamava-se então para os homens do início da modernidade uma cultura formal e

retórica que tornasse possível o cultivo da inteligência e a imitação da tradição antiga,

considerada como modelo ideal, superior e inigualável, muito distante da cultura medieval

que os humanistas tanto se esforçavam por se distanciar. O caminho para a apreensão mais

profunda deste saber era pela palavra, já que a cultura antiga era eminentemente literária e

retórica. Portanto, a eloqüência, ou seja, a arte da linguagem, se torna a ars por excelência

entre todas as disciplinas, tanto por proporcionar a leitura dos clássicos quanto por garantir

a possibilidade da imitação47 do que de mais grandioso foi escrito pelo homem. Por essa

razão, a educação logo se tornaria uma das preocupações fundamentais na vida intelectual

46 Kristeller, P. Ocho Filosofos del Renacimiento Italiano. Roma, 1956, pp. 17-32. 47 Uma reação contra essa tendência se manifesta desde a metade do século XV, reforçada pelas ciências experimentais e pelas nascentes ambições da língua vulgar, como ocorre em Alberti, por exemplo. Já no século XVI, humanistas como Erasmo e o próprio Montaigne condenaram posteriormente a imitação dos antigos que degenerava em pedantismo. Erasmo mesmo antes de seu Ciceronianus, de 1528, obra em que ele condena mais radicalmente a imitação, já procurava restabelecer as formas de expressão em seu modo mais livre. A retórica para ele nunca teve um fim em si mesma, ou seja, para que os homens apenas se expressassem tal como Cícero, utilizassem exatamente suas palavras ou memorizassem corretamente as suas expressões ou histórias. Em Erasmo a apreciação da tradição literária e lingüística se altera totalmente, pois seu objetivo era que a retórica fosse um instrumento a ser adaptado às necessidades de se expressar dos homens modernos e ao tratamento das questões que lhes são pertinentes, e que, portanto não deveria continuar a servir os esquemas a as temáticas dos antigos. Érasme, “Ciceronianus” In Mesnard, Pierre, La Philosophie Chrétienne, op. cit., pp. 257-358. Do mesmo modo, também Montaigne critica esse uso vazio da literatura antiga nos Ensaios, dedicando o ensaio sobre do pedantismo ao tema. Em passagem bem representativa dessa crítica ele nos diz que: “indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou em prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu – o que de fato importa – não nos passa pela mente. (...) Sabemos dizer ‘como observou Cícero’, ‘eis o que dizia Platão’, ‘são as palavras de Aristóteles’, mas que dizemos de nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos.” Montaigne. Ensaios, livro I, XXV, p. 75.

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deste período, estabelecendo-se por toda a Itália as primeiras escolas voltadas para os

estudos liberais, para a leitura dos textos clássicos e para o aprendizado das técnicas

retóricas.

Esta nova concepção pedagógica - oposta aos valores medievais centrados nos

estudos teológicos, na leitura de compilações como a Chartula e o Catolicon que reuniam

fragmentos escolhidos aleatoriamente dos textos antigos, assim como de textos destinados a

se imprimir na memória, geralmente com a ajuda de elementos rítmicos e de fórmulas para

aplicar mecanicamente – postula, ao contrário, a leitura, a compreensão e a interpretação de

seus conteúdos genuínos. Uma das escolas italianas mais representativas desta renovação

foi a de Guarino de Verona48, que atraiu humanistas de diversos países europeus por seu

distanciamento de um ensino voltado para o latim medieval, para as antigas gramáticas,

para as regras de composição e para os castigos físicos, característica esta muito comum em

algumas escolas e que se tornou alvo de críticas reiteradas pelos humanistas.49 Aberta em

1420, após conseguir autorização da Comuna de Verona, a escola pública de Guarino

ensinava retórica, pelos discursos dos padres da Igreja, os de Cícero e todas as matérias

concernentes a eloqüência, todas de grande importância e utilidade para os cidadãos da

cidade e do distrito veronês. O seu método de ensino reunia ainda exercícios físicos e uma

educação moral séria e rigorosa, além de considerar individualmente as potencialidades de

seus alunos.

Para Garin, este é um diferencial importante em relação ao método de ensino

tradicional que dedicava pouca atenção aos jovens, misturando alunos de idades diferentes

numa mesma sala de aula, homogeneizando assim séries e capacidades diferenciadas.50 A

questão da educação infantil constituiu um problema central para os novos pedagogos da

Renascença, pois, disso dependia a formação de homens mais justos e virtuosos e,

48 Sobre a importância da escola de Guarino, ele mesmo pupilo de Chrysoloras, um dos mais importantes professores de grego da Renascença, e sua influência em vários humanistas ilustres no século XV ver: Garin, op. cit., pp. 123-135. Cf.: também Bolgar, R. R. The Classical Heritage and its Beneficiaries: from the Caroligian Age to the Renaissance. New York, 1964, pp. 268-270. 49 Sobre os castigos corporais às crianças diz Erasmo que: “aí, nada mais contraproducente que habituá-la aos flagelos. Essa enormidade transmuda a índole mais dócil em rebeldia e reduz os desanimados ao desespero. A assiduidade de castigos debilita o corpo enquanto a mente fica insensível à força da palavra. Também aquela freqüência de repreensões acres deve ser eliminada. Remédio aplicado sem critério exacerba a doença ao invés de trazer alívio. De outro lado, se usado reiteradamente perde a eficácia tal como alimento insípido e pouco saudável.” Erasmo. “De Pueris” In De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. São Paulo: Editora Escala, s/d, p. 123. 50 Garin, E. L’Éducation de l’Homme Moderne (1400-1600), p. 27.

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sobretudo, com uma postura mais questionadora em sua participação ativa na sociedade.

Além disso, uma educação bem estruturada seria capaz de desfazer as diferenças de status

social pela elegância do mesmo convívio civilizado. Mediante a prática das virtudes, a

sociedade colocava-se nesta perspectiva em um nível mais elevado, sendo comum a todos o

prestígio e a nobreza do espírito. Por fim, a necessidade de uma boa educação se adequava

também perfeitamente ao otimismo corrente entre os humanistas no que se referiria à

qualidade das potencialidades criativas do homem, cuja fonte principal é o Discurso sobre

a dignidade do homem de Pico della Mirandola, publicado em 1486, de que trataremos no

item seguinte.

Deste modo, foi com base numa ampla e sólida base filosófica que homens como

Guarino passaram a se dedicar à reforma do ensino, enquanto outros cuidaram teoricamente

dos objetivos mais adequados à educação ginasial e a melhor forma de alcançá-los através

da publicação de manuais pedagógicos, pois constituía uma prerrogativa essencial na

Renascença a formação de homens que tivessem mais consciência de seu papel na

sociedade. Tratados como O livro chamado O Governante, de Sir. Thomas Elyot, publicado

em 1531, Sadoleto em seu A boa educação dos meninos, de 1534, Luis Vives51 em seu

Tratado sobre a educação, de 1531, Roger Aschan em seu O mestre-escola, de 1570, assim

como Erasmo em várias das suas obras - os Adagia de 1500, seguido de dez edições

durante sua vida, o De ratione studii de 1511, o De copia verborum de 1512, os Colloquia

de 1519, Antibarbarorum de 1520, De conscribendis epistolis de 1522, De recta

pronuntiatione de 1528, De Pueris instituendis de 1529 e o Compendium do livro de Valla,

Elegantiae de 1531 - foram dedicados às questões pedagógicas e à reforma do ensino.

Esta diversidade de manuais humanistas que tiveram de modo geral grande

influência na renovação dos estudos ao longo dos séculos XVI e XVII se inspiraram em

grande medida, no Ratione studdii de Erasmo, considerado o primeiro esboço de um

51 Juan Luis Vives, que originariamente chegara à Inglaterra para lecionar os studia humanitatis em Oxford em 1523, lançou posteriormente, em 1531, uma exposição muito similar às preocupações educacionais erasmianas desenvolvidas no Ratio studdii, de 1512. No entanto, como o Ratio era apenas um pequeno esboço de um currículo modelo, escrito a pedido de John Colet para ser implementado na Escola de São Paulo, Vives lança uma exposição muito mais ambiciosa sobre os métodos e objetivos da educação humanista em seu De tradendis disciplinis (Tratado sobre a educação), de 1531. Cf.: Vives, Juan Luis. “Estudio Preliminar” In: Tratado de la Enseñanza; Introducccíon a la Sabiduría; Escolta del Alma; Diálogos; Pedagogía Pueril. México: Editorial Porrúa, 2004, p. XXV.

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currículo modelo que sintetizou os ideais humanistas.52 Entre as características que lhe são

comuns selecionamos quatro passos essenciais que estiveram presentes em boa parte desses

tratados, e em outros textos não citados nesta concisa lista. Contudo, não iremos abordar

agora o método de ensino propriamente dito, que implica o aprendizado das línguas

clássicas, dos autores a serem lidos, de como utilizá-los entre outras etapas que

analisaremos de forma mais cuidadosa no terceiro capítulo desta tese quando nos deteremos

no estudo do De ratione e do De copia.

A primeira prerrogativa fundamental destes manuais era a necessidade da educação

ser iniciada logo na infância, pois deste modo o preceptor encontraria um campo mais puro

para semear seus ensinamentos, sem preconceitos e vícios tão comuns aos mais velhos.

Este solo constituiria o terreno mais adequado para plantar as sementes dos estudos liberais,

do aprendizado dos exemplos e histórias bíblicas, assim como das regras de bom

comportamento e civilidade - tais como saber portar-se à mesa, não assoar o nariz nas

mangas das camisas, saber vestir-se, falar e andar corretamente, não correr no interior das

Igrejas, não gargalhar como um cavalo, entre outros tantos conselhos que Erasmo ministra

às crianças em seu De civilitate morum purilium (A civilidade pueril), de 1530. Este texto,

um modesto manual de práticas para corrigir e ordenar atitudes corporais - dedicado “ao

nobilíssimo Henrique de Borgonha, filho de Adolfo, príncipe de Veere, criança de

promissor futuro”53 – é complementado pelo humanista com o De pueris (Sobre os

meninos), onde ele desenvolve alguns dos princípios básicos para a educação dos

adolescentes, procurando adequar as atitudes do corpo com aquelas do espírito de onde

refluem os princípios éticos da verdadeira nobreza, a saber, a honestidade, tal como

constava em tratados antigos como o Dos Deveres de Cícero. Por essa razão, para Erasmo

os homens que não têm acesso ao conhecimento da filosofia e das outras disciplinas não

passam de criaturas inferiores, muito próximas aos animais:

52 Skinner nos diz que o Ratione de Erasmo por muito tempo influenciou a publicação de diversos manuais, sobretudo na Inglaterra. Entre os textos que receberam influência do humanista Skinner destaca Sir Thomas Elyot, que “reconheceu ter uma profunda dívida para com Erasmo”; Vives, que lançou em 1523 uma exposição similar ao Ratione, em seu De tradendis disciplinis, de 1531; Willian Kempe em seu Educação infantil para o saber, de 1588, que afirma tal como Erasmo que “o primeiro passo no aprendizado deve ser aprender a ler o latim o mais cedo possível”, entre outros autores. Para a observação mais profunda destes manuais ver: Skinner, Quentin. “O estudo da retórica” In: Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. São Paulo: UNESP, 1999 – (UNESP/Cambridge), pp. 41-100. 53 Erasmo, “preâmbulo” ao Civilidade Pueril In: Erasmo. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Editora Escala: São Paulo, s/d, p. 123.

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De fato, enquanto os animais obedecem cegamente aos instintos da natureza, o homem, desprovido dos parâmetros das letras e dos ensinamentos da filosofia, fica antes sujeito a impulsos mais que animalescos. Nenhum animal é tão ferino e nocivo quanto o homem, quando arrastado por ímpetos de ambição, de cupidez, de ira, de inveja, de luxúria e de lascívia. Razão porque quem não se antecipa para iniciar o filho na esfera de preceitos sadios não se tenha a si mesmo na conta nem de ser humano nem de filho de homem algum.54

Para Erasmo quando a natureza dá um filho ao homem ela não lhe outorga nada

além de uma massa informe, de uma folha em branco, cabendo aos pais, portanto, a

iniciativa de moldar até a perfeição aquela matéria flexível e maleável. Por outro lado, não

é adequado deixar essa massa sempre informe, pois “se não imprimires a imagem de

homem, ela se degrada por si mesma e vira monstruosidade.”55 Por conseguinte, recomenda

o humanista que “reflita, em teu íntimo, quanto de conforto, de utilidade e de glória refluem

do filho sobre os pais, posto que retamente educado.”56 Permitir ao jovem reconhecer o

homem que existe em si próprio é o propósito da nova educação que Erasmo postula na

qual se detém durante tantos anos. Seu objetivo é “formar seres livres na liberdade que é ao

mesmo tempo tão difícil e tão bela.”57

Este é um dos pontos mais importantes que permeiam não apenas este texto, mas

todos aqueles em que o humanista se detém sobre as questões pedagógicas: que o homem

não nasce homem, ele se torna homem na medida em que é educado, fazendo uso pleno da

sua linguagem e da sua razão e se reconhecendo como um ser livre. Portanto, quanto mais

cedo este processo de humanização se der melhor será a formação da sua dignidade e o

desenvolvimento das suas potencialidades. Em diversos de seus textos Erasmo procura

estimular justamente uma postura crítica a seus alunos, leitores ou futuros mestres,

afirmando a relevância da leitura dos autores antigos para a apreensão não apenas do

melhor estilo, mas também dos exemplos de ética e moral por eles fornecidos. Portanto, o

que realmente importa para o humanista não é o saber vão, que não traz nenhum benefício

para a vida e as atitudes do homem, mas aquele que o transforma, que o faz melhor e que

lhe dá a capacidade de bem julgar sobre as coisas.

54 Erasmo, “Falhar na educação é fazer do ser humano um monstro” in De Pueris (Dos Meninos), p. 32. 55 Idem, “Sem a devida educação, o homem degrada-se”, p. 33. 56 Idem, p. 34. 57 Érasme. “Il faut former les enfants à la vertu et aux Lettres” In Chomarat, Oeuvres Choisies, p. 259.

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Uma segunda característica, comum aos manuais da época era a crítica dos métodos

forçados e violentos de aprendizado característicos das instituições medievais. Em relação a

este aspecto até mesmo obras mais livres e que não tratam exclusivamente do problema da

educação, como os Ensaios de Montaigne58, publicados inicialmente em 1580, também

concordam que:

A disciplina rigorosa da maior parte dos nossos colégios sempre me desagradou. Menos prejudiciais seriam talvez se a inclinassem para a indulgência. São verdadeiras prisões para cativeiro da juventude, e a tornam cínica e debochada antes de o ser. Ide ver esses colégios nas horas de estudo: só ouvireis gritos de crianças martirizadas e de mestres furibundos. Linda maneira de acordar o interesse pelas lições nessas almas tenras e tímidas, essa de ministrá-las carrancudo e de chicote nas mãos.59

Tanto Montaigne quanto Erasmo concordavam com Quintiliano sobre o fato de que

a autoridade que se exerce de modo tirânico comporta as mais nefastas conseqüências para

os alunos, em particular pelos castigos. Em lugar destes Erasmo propunha que o

aprendizado fosse um prazer para o aluno, podendo ser entremeado com outras distrações

como jogos e exercícios físicos60. Quanto às restrições alimentares, também comuns em sua

58 Estamos aqui apontando semelhanças entre as propostas erasmianas e montaignianas sobre a educação, mas antes devemos esclarecer que Montaigne, embora apreciasse a arte da forma nos escritos antigos, citando-os sempre em seu texto, e mesmo se utilizasse de muitos recursos retóricos, repetindo alguns tropos e fazendo uso da função exemplar dos textos antigos, ele negava completamente nos Ensaios a obediência aos preceitos tradicionais do estilo, sendo hostil a toda super estimação da forma acusando-a de trair a verdade das coisas e das almas. De Quintiliano ou Cícero, por exemplo, os autores mais cultuados na primeira Renascença como modelos da forma e do conteúdo retórico, ele cita apenas os preceitos pedagógicos, não os retóricos. Propondo uma nova linguagem, mais livre, tendo somente a si mesmo como matéria, prática condenada pelos autores antigos, Montaigne desenvolveu uma linguagem da simplicidade, da naturalidade e da originalidade, se opondo vivamente ao apego desmedido à forma dos antigos. Já para Erasmo, que vive num contexto histórico muito diferente, sem relacionar as técnicas discursivas de forma direta e necessária com a traição da verdade das coisas e das almas, a retórica adquirira uma função de grande importância para o mundo cristão como já vimos: através da palavra e do discurso sincero (que mantinha uma relação de verdade entre o que autor pensa e o que ele escreve) o orador cristão poderia instruir, comover e persuadir os homens. 59 Montaigne, Michel de. “Da educação das crianças” In: Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972, livro I, XXVI, p. 88. 60 Diz Quintiliano que: “não pensem que ignoro o que seja cada idade e julgue que se deva oprimir, exigindo um trabalho formal nos primeiros anos. Devemos, sim, é ter muito cuidado para que a criança não aborreça o estudo, pelo qual ainda não pode ter inclinação, a ponto de, depois virar nele forte aversão. Tudo deve ser processado como se fora um jogo: a criança é solicitada, é elogiada e, muitas vezes, alegramo-nos com o pouco que sabe. (...) Para estimular a criança a aprender [a ler], aprovo o método de formar jogos com as letras em marfim, madeira, papel lixa, ou também algum outro meio de acordo com a idade e, com o qual, sintam prazer em manejar, olhar e chamar pelo nome. (...) E, já que me detenho em minúcias, desejaria que os cartazes apresentados às crianças contenham sentenças úteis, bons conselhos, porque a sua recordação durará

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época, Erasmo atacava vivamente toda espécie de abstinência que prejudicasse a eficiência

do aprendizado. Desta forma, segundo a seleção dos conteúdos realizados seja pelos

preceptores, seja pelos colégios, tudo será submetido ao exame da criança, porém nada lhe

será imposto por simples autoridade ou ameaça de castigo. Nenhum princípio ou corrente

filosófica, como a aristotélica, a estóica ou a epicurista deveria ser imposta aos alunos. Ao

contrário, caberia ao professor apresentar o conteúdo destas ou outras correntes filosóficas

para que o próprio aluno escolhesse qual se adequava mais aos seus próprios interesses. De

acordo com Montaigne, por sua vez, em sua postura cética, se ele não pudesse escolher,

seria melhor a dúvida do que a certeza absoluta em sua opinião. Assim, o desenvolvimento

do tom questionador e crítico do aluno ocorre como o terceiro ponto comum aos manuais

educacionais do período que gostaríamos de destacar. Trata-se, com efeito, de uma das

mais importantes questões debatidas por Erasmo no Rationne studii.

Expressões como “eu ignoro” ou “eu duvido” como bem destaca Montaigne em seu

ensaio Da educação das crianças seriam muito mais úteis às crianças, pois colocariam em

evidência as suas indagações naturais. Duvidar e questionar deveriam fazer parte do

processo educacional na medida em que este deveria se direcionar mais para as questões do

que para a memorização de lugares, datas, formas e regras gramaticais. Por isso, diz o

humanista apresentando neste aspecto grande semelhança com os postulados erasmianos

que:

Não menos que saber, duvidar me apraz. Porque, se por reflexão própria abraçar as opiniões de Xenofonte e Platão, elas deixarão de ser deles e passarão a ser suas. (...) As abelhas libam flores de toda espécie, mas depois fazem o mel que é unicamente seu e não do tomilho e da manjerona. Da mesma forma os elementos tirados de outrem, ele os terá de transformar e misturar para com eles fazer obra própria, isto é, forjar sua inteligência. Educação, trabalho e estudo não visam senão a formá-la.61

Este modo interrogativo ou hipotético revela em si uma crítica ao modo tradicional

e dogmático de conhecimento, pois este não partia das indagações naturais do ser humano e

não dava conta do exercício de sua reflexão racional, verdadeira essência de sua natureza.

até a velhice. E, ao fixarem-se numa inteligência, ainda vazia de idéias, serão melhor aproveitadas para a formação de hábitos e atitudes.” Quintiliano, Marco Fábio. “Educação do futuro orador” In: Titãs da Oratória. Rio de Janeiro: El Ateneo do Brasil, v. X, s/d, pp. XVIII-XX. 61 Montaigne, Michel de, op. cit. “Da educação das crianças”, livro I, XXVI, p. 82.

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A relevância da educação das crianças neste contexto se definia pela existência nestas de

uma matéria mais maleável, ou seja, de uma natureza mais pura e inocente, contrária à

corrupção dos adultos comprometidos com a ciência dogmática vã e artificial, e por isso

mais refratários aos novos estudos. Uma forma de conter os erros mantidos pela tradição

seria estimular a criança, já que a sua espontaneidade e seu tom questionador - não nos

esqueçamos de que as crianças nos fazem perguntas praticamente o tempo todo e que

muitas vezes não sabemos como respondê-las – é um contraponto essencial a este saber

formado que não admite contestação.

Portanto, a escolha por uma postura dogmática, ou seja, a vinculação estrita a

apenas uma corrente filosófica que não admite os pressupostos de todas as outras, não

caberia em uma educação que propunha justamente a crítica do aluno aos modelos

filosóficos então existentes. Em última instância o aluno deveria estar apto, uma vez

conhecendo as doutrinas, a questionar as verdades que são comumente aceitas escolhendo

aquelas que pudessem ser mais úteis a ele em sua natureza própria. Este tipo de julgamento

segue em princípio os passos deixados por Lorenzo Valla, que através das suas indagações

e com o auxílio da pesquisa filológica provou ser falso o documento no qual os papas

assentavam sua pretensão ao domínio temporal, a Doação de Constantino62, de 1440. Não

cabe aqui retomar pormenorizadamente a construção admirável do texto de Valla, basta que

a definamos com uma sucessão de orações imaginárias, em que o humanista procura

reconstituir por verossimilhança o discurso de Constantino no momento de sua conversão

ao cristianismo, interrogando se as palavras que constavam neste documento poderiam

realmente ter sido utilizadas no período em que foi outorgada a doação. À leitura rigorosa

do texto, Valla acrescenta a crítica histórica, provando que a Doação não poderia datar do

século IV, acusando a redundância, a repetição, as contradições de estilo, inaceitáveis na

língua romana clássica, demonstrando ainda a origem religiosa de muitas expressões e

62 Durante a sua conversão ao cristianismo, o imperador Constantino teria doado ao papa Silvestre e seus sucessores praticamente a totalidade de seu império. Na Idade Média os papas utilizaram este documento para justificar a sua tutela sobre os reis e o próprio imperador germânico, arrogando-se o direito de vigiá-los e mesmo de depô-los. Valla então procura reconstituir o que teria sido provável dizerem Constantino, seus senadores e seus herdeiros, que ele teria deserdado com a Doação, ainda pagãos que certamente não aceitariam submeter-se tão naturalmente ao papa. Como excelente latinista, e neste aspecto a autoria de Seis livros sobre as Elegâncias da Língua Latina (Elegantiae) o comprovam, Valla desenvolve um apurado exame da linguagem, da história e da estilística, realizando ainda a crítica das idéias.

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temas que faziam parte do Velho Testamento, o qual Constantino, como afirma o

humanista, certamente não conhecia.

É esta mesma linguagem interrogativa, em que Valla surge como precursor, que

aparece em Montaigne, Erasmo, Vives e Rabelais um dos objetivos mais altos a ser

cultivados pela educação, sendo este um tropo freqüente nos textos do século XVI.

Diretamente relacionada a esta questão está o quarto e último ponto que gostaríamos

de colocar: a leitura dos textos antigos e sua devida apreensão dos conteúdos. Que proveito

tiraria o aluno de saber de cor sentenças de Cícero, Sêneca e Tácito se ele não introjetasse

realmente o que elas querem dizer, ou se elas apenas servissem de ilustração nas

composições que ele é obrigado a fazer no colégio? “Do que sabemos efetivamente,

dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Triste ciência a ciência

puramente livresca.63” Montaigne, assim como Erasmo, apontava a importância do

conhecimento dos textos mas ressaltava que o fundamental para o processo educacional

estavam na criação, na elaboração das próprias opiniões e julgamentos dos alunos sobre as

matérias ministradas. Este ponto é um dos mais importantes do Ratio studdii e do De copia,

que analisaremos no terceiro capítulo dessa tese.

Com tantas regras de gramática para aprender64 (e decorar mecanicamente)

divididas em ortografia, prosódia, etimologia, sintaxe e figuras de estilo, não sobraria aos

alunos fôlego para a compreensão dos textos antigos, assim como para a escrita de seus

próprios textos em latim. Portanto, se fazia premente uma reforma no ensino que atingisse

63 Idem, p. 82. 64 De acordo com Garin, o método e a forma do pensamento escolástico eram baseados na lectio e nos auctores. De um lado havia os autores (auctores) que possuíam autoridade própria e reconhecida e, de outro, os leitores (lecteurs), os mestres que expunham e ilustravam as sentenças dos autores. Desta forma, o autor expõe a sua doutrina e o leitor (ou o mestre) expõe a doutrina de outrem; este nunca é um autor, mas apenas um comentador. Não havendo, portanto, como sinaliza o autor nenhum estímulo à inventio, e sim apenas ao comentário. Durante muitos séculos os frutos da pedagogia medieval consistiram na elaboração de comentários. O objeto do saber não era o homem, nem o mundo, mas o que está escrito em certas obras que tratam do homem e do mundo. O objetivo do saber não era a formação de um homem livre nem tampouco do exercício de seu julgamento prudente, mas sim a aquisição de técnicas perfeitamente elaboradas que permitissem aos alunos a leitura dos textos propostos nas escolas, a eliminação das dúvidas que surgissem das leituras e a resolução dos possíveis conflitos que poderiam surgir de opiniões contrárias. Mas, sem dúvida a criação individual não era estimulada. Objetivo muito diferenciado nós vemos nos textos dos humanistas dos séculos XV e XVI, que vão muito além do comentário, apresentando as opiniões e críticas do próprio autor. E é justamente este tipo de postura crítica, tanto do autor quanto de seu leitor, que muitos textos de conotação pedagógica querem incentivar na Renascença. Garin, E. op. cit., p. 66. Hans Gumbrecht também afirma que a idéia de autor como temos hoje, ou seja, daquele que faz parte da criação da sua obra é uma idéia moderna, que emerge apenas nos séculos XV e XVI. Gumbrecht, Hans. “O autor como máscara: contribuição à arqueologia do impresso” In: Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 74.

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esses preceitos humanistas. Paulatinamente nas escolas italianas e, posteriormente nas

escolas do Norte da Europa, os textos e gramáticas medievais foram sendo substituídos por

trabalhos como a Cornucopia de Perotto e as Elegantiae65 de Valla, que penetraram nas

escolas européias e se tornaram a base para o estudo do latim, influenciando o modo pelo

qual eram acessados os textos antigos. Com um cuidado extremo, a geração de humanistas

formados neste período buscou descobrir o sentido e o uso das palavras, seu aspecto

histórico e as mudanças sofridas pelas palavras e expressões latinas ao longo dos séculos.

O desejo de reformar a educação é uma constante nas obras de Erasmo, sobretudo

nestas que acabamos de citar, pois, na época em que ele praticamente iniciava seu

aprendizado em Steyn a situação da educação ainda mantinha muitos traços da pedagogia

medieval. Em carta ao amigo Cornelius Gérard, escrita em junho de 1489, Erasmo nos

conta a quantas andava a educação em seu tempo:

Na Antigüidade o interesse sobre todas as artes era grande, como nós vemos bem, mas mais ainda em relação à eloqüência; mas, diante da obstinação crescente dos bárbaros, a eloqüência desapareceu ao ponto de não deixar nenhum rastro. Então, todos esses ignorantes que jamais a estudaram começaram a ensinar o que eles não sabiam. (...) Então, os preceitos antigos uma vez rejeitados, são substituídos por não sei quais novos preceitos de ignorância, como essas ‘maneiras de se exprimir’, verbosas imaginações, regras da ciência gramatical, ridículas, e divagações sem número. E, após ter muito suado para aprender tudo isso a fundo, os alunos chegariam a um tal fastígio que eles não seriam mais capazes de fazer um único discurso em latim. Ao que me parece, se essa raça de bárbaros continuarem dedicados a esse objetivo, eu não sei verdadeiramente em qual língua eles traduziriam nossa Thalia. Mas nosso Lorenzo [Valla], pela admirável superioridade de sua erudição, nos tem salvo quase inteiramente da destruição. Com qual zelo Lorenzo se detém a refutar as sotisses dos bárbaros e a revalorizar o culto dos oradores e poetas já caídos no esquecimento, tu aprenderás nos seus livros que se chamam Elegantiae.66

65 Este tratado de gramática latina que começa pelo estudo das formas e dos usos das palavras ao longo do tempo teve numerosas edições a partir de 1471. Tamanha foi a sua importância para Erasmo que além de recomendar a sua leitura repetidas vezes para seu amigo Cornelius ao longo das suas correspondências, ele também fez um resumo das Elegantiae quando ainda estava em Gouda, aos vinte anos. Conhecido como Paráfrase este texto foi editado pela primeira vez em Colônia, em 1529, e posteriormente em Paris, entre 1529 e 1530. Uma revisão foi feita por Erasmo, impressa em Friburgo em 1531 e teve aproximadamente 40 edições. Ver Chomarat, Jacques, op. cit., pp. 242-258. 66 “Dans les siècles anciens, l’interêt pour tous les arts était grand, on le voit bien, mais plus encore pour l’éloquence; mais, devant l’obstination croissante des barbares, l’éloquence disparut au point de ne laisser aucune trace. Alors, tous ces ignorants que n’avaient jamais étudié commencèrent à enseigner ce qu’ils ne savaient pas. (...) Alors, les préceptes anciens une fois rejetés, on alla vers je ne sais quels nouveaux précepts d’ignorance, como ses ‘manières de s’exprimer’, verbeuses imaginations, vers des règles de la science grammaticale, ridicules, et des divagations sans nombre. Et après avoir beaucoup sué pour apprendre tout cela à fond, les élèves avaient atteint, dans les lettres et l’éloquence, un tel sommet qu’ils n’étaient plus

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Nesta fase do humanismo a pesquisa filológica e exegética de Lorenzo Valla teve

um papel de grande importância. Ao assegurar que a restauração da língua latina seria

fundamental para uma melhor compreensão dos próprios textos pagãos, este humanista

também propõe que o estudo das línguas poderia e deveria ser direcionado para a apreensão

de qualquer espécie de conteúdo, inclusive das Escrituras, como ele fez em suas Anotações

sobre o Novo Testamento, corrigindo a Vulgata com base no texto grego da Bíblia de modo

análogo à sua análise da Doação de Constantino, realizada nos anos de 1440.

O sentimento de vitória sobre uma tradição intelectual e escolar vivenciada como

opressiva, identificada com o latim medieval e a teologia escolástica, era recorrente nos

textos humanistas ao longo de todo Quattrocento até a primeira metade do século XVI.

Textos como o de Rabelais em seu Gargantua, de 1535, são exemplares desta mudança tão

estimulada por Erasmo já alguns anos antes. O tema de uma geração que lutou para

assegurar um espaço de formação de homens livres, abertos às novas possibilidades das

disciplinas humanísticas é claro no texto de Rabelais, ao celebrar a abertura de novas

escolas e a disseminação pela Europa dos novos métodos de ensino. Assim, em carta

endereçada a seu filho Pantagruel, é com pesar que Gargantua relembra os tempos em que a

educação era dominada pelos bárbaros em que se dera a sua própria formação:

Meu falecido pai Grandgousier, de memória abençoada, fez todo esforço para que eu pudesse alcançar excelência mental e técnica. O fruto dos meus estudos e trabalhos alcançou, de fato ultrapassou, seu desejo mais querido. Mas você pode perceber que, para a educação, as condições não eram tão favoráveis como são hoje. Nem eu tive professores tão capazes como você. Nós ainda estávamos na idade das trevas, ainda caminhávamos na sombra das nuvens escuras da ignorância, sofríamos as calamitosas conseqüências das destruição da boa literatura pelos Godos. Agora, pela graça de Deus, a luz e a dignidade foram restituídas às letras e eu vivi para vê-lo. De fato, eu assisti tamanha revolução na educação que eu, não erroneamente reputado em meu tempo o mais sábio do século, teria dificuldade para freqüentar a primeira classe de uma escola de gramática.67

capables de faire un seul discours en latin. À ce qu’il me paraît, si cette race de barbares avait continué sur as lancée, je ne sais vraiment pas dans quelle langue inconnue elle aurait traduit notre Thalie. Mais notre Laurent, par l’admirable supériorité de leur érudition, l’ont sauvée, presque éteinte, de la destruction”. Carta de Erasmo à Cornelius Gérard. Steyn, julho de 1489. In: Correspondance d’Érasme, tome I, 1484-1514. Paris: Gallimard, 1968, lettre 23, p. 84. 67 Rabelais, François. “Comme Pantagruel, estant a paris, recent lettres de son pere Gargantua, et la copie d’ielles”. Oeuvres. Paris: Garnier, 1956, p. 185.

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Após tantos séculos em que era destacada apenas a dimensão teológica e religiosa

do homem, agora os humanistas buscam fundamentar o valor do homem em sua própria

estrutura existencial. Fundamental tornou-se o ponto de vista sobre a dignidade do homem,

porque, de todos os seres ele é o único dotado de razão e de fala, a qual não só comunica

como também dá forma às idéias. O homem assim dotado é digno de respeito, portanto, sua

conduta deve pautar-se por aquilo que é apropriado à sua natureza. Ele deve tratar o seu

semelhante com civilidade, deve lutar para manter a concórdia e evitar a dissensão, deve

reformar seu espírito afastando de si os vícios que mais o atingem e seguir as virtudes

cristãs da piedade, da compaixão, da humildade, da renúncia e do amor ao próximo.

Aí reside o objetivo do processo educativo: tornar o homem perfeito e consciente da

sua posição de animal racional, dotado de livre-arbítrio e sociabilidade. Estas são algumas

das premissas desenvolvidas no Discurso sobre a dignidade do homem, de Pico della

Mirandola que agora passamos a analisar pela consistência filosófica e ideológica que o

conceito de “dignidade humana” conferiu ao pensamento moral e retórico humanista de um

modo geral. Buscaremos, então, trilhar a influência de seus princípios no cristianismo

erasmiano, aprofundando nesse exame das disparidades entre a tradição medieval e os

valores humanistas acerca da natureza humana, perceber como o novo culto ao homem que

se estabelece é determinante no pensamento educacional e pedagógico erasmiano.

3.3) A renovação humanista: a Dignidade Humana e os princípios da filosofia cristã

Este espírito de valorização do homem encontra sua manifestação mais sólida na

Academia Platônica de Florença com o pensamento de Marsílio Ficino e de Pico della

Mirandola, que, juntamente com as idéias de Nicolau de Cusa, exerceria grande influência

nos principais centros universitários da Renascença, tais como Oxford, Cambridge e

Paris68. Estes pensadores formularam filosoficamente a crença humanista generalizada nas

68 Erasmo foi arrastado para a órbita do espiritualismo florentino em sua primeira visita à Inglaterra através de humanistas como John Colet, que mantivera correspondência com Ficcino, e de Thomas More, que

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capacidades do homem no âmbito mais geral e universal de suas relações com Deus e a

natureza, conferindo um sentido mais profundo e amplo à necessidade humanista de uma

sólida educação liberal (que contava com o ensino da retórica, da filosofia, da gramática, da

história e da poesia) para que esta, num estágio mais elevado69, promovesse a aproximação

entre o homem e a divindade.

Erasmo não apenas concilia, como também sustenta durante toda a sua vida a

reunião e a complementaridade entre as posições cristãs e pagãs, seja em textos como os

Adágios e os Colóquios, que possuem uma função claramente pedagógica e exemplar sobre

o tratamento e o uso da cultura clássica, seja oferecendo aos seus leitores e interlocutores o

patrimônio das conquistas realizadas pela filosofia moral antiga na permanente busca pela

paz e pela concórdia. A busca por esta conciliação entre a Antigüidade pagã e o

cristianismo não era, portanto, uma preocupação nova na época de Erasmo tendo em vista

que, ainda no século XV, Marsilio Ficcino e Pico della Mirandola já haviam elaborado os

fundamentos desta síntese.

Entre esses textos, o exemplo mais audacioso é, com efeito, o Discurso sobre a

dignidade do homem, composto em 1486 por Pico della Mirandola. Se, de um lado, como

afirma Cassirer70, é nítida a influência de seus predecessores da Academia Platônica,

principalmente a exercida pela obra de Nicolau de Cusa, por outro, a concepção de Pico

sobre o homem soa muito mais livre e direta: “não te fizemos nem celeste nem terreno, nem

mortal ou imortal, de modo que assim, tu por ti mesmo sejas o escultor da própria imagem

traduzira a obra de Pico. Por essa razão, é evidente para Halkin a influência do neoplatonismo florentino no pensamento de Erasmo, em sua conciliação entre filosofia e religião e em sua crença na capacidade do homem em reformar seu espírito e aproximar-se de Deus. Halkin, Léon-E. Erasmo entre Nosotros. Barcelona: Editorial Herder, 1995, pp. 57-78. 69 Grande parte dos humanistas cristãos, como propõe Halkin - Erasmo, Vives, Colet, Dolet, More, entre tantos outros - pensavam que o estudo das letras clássicas funcionam como um primeiro estágio a ser alcançado pelos alunos e futuros mestres, pois o nível mais elevado do conhecimento estava em colocar este saber pagão em prática, ou seja, remetendo-o à uma melhor compreensão e questionamento das questões cristãs, sendo, portanto, o primeiro colocado à serviço deste último. 70 Segundo Cassirer, vários são os autores que se dedicaram ao tema da dignidade do homem, sendo alguns dos expoentes mais ilustres o De libero arbitrio de Lorenzo Valla, o De dignitate et excelentia hominis, escrito em 1452 por Gianozzo Manetti, o diálogo Da familia de Alberti, as Epistolae de Poggio, entre tantos outros. No Discurso de Pico, segundo o autor, que deveria servir de introdução à defesa das suas 900 teses em Roma, podemos reconhecer a influência desses textos, mas, sobretudo, pelos ideais defendidos por Nicolau de Cusa, em sua Douta ignorância, e por Ficcino. Cassirer, Ernest. “Liberdade e necessidade na filosofia do Renascimento” in: Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 123-204.

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(...) e possas retratar a forma que gostarias de ostentar.”71 É apenas, portanto, pela decisão

do arbítrio (e não pela Providência) que o homem há de definir a sua compleição pessoal.

Segundo a abordagem de Pico, o homem poderá pelo seu próprio mérito, tanto

“descer ao nível dos seres mais baixos e embrutecidos, quanto ao invés, por livre escolha da

tua alma, subir aos patamares superiores, que são divinos72". Uma forte noção de liberdade,

dignidade e criatividade humana emerge nesta polêmica obra que exercerá grande

influência sobre o movimento humanista dos séculos XV e XVI, fazendo-se o credo central

na constituição de um novo tipo de catolicismo, de caráter místico e espiritualista, que

desdenha das instituições eclesiásticas, centrando-se na devoção interna, na reforma moral

do espírito e no desenvolvimento de sua razão. O homem de Pico se converte em soberano

de si mesmo, distanciando-se por isso das doutrinas medievais, pois a liberdade por ele

adquirida lhe daria mobilidade por toda a hierarquia cósmica, podendo, de acordo com a

sua vontade e suas ações, ascender ou decair.

Pico é o primeiro humanista a desafiar a concepção de “inalterabilidade do self”73

que informava o pensamento medieval, e confiar, de maneira quase ingênua na capacidade

71 Pico della Mirandola, Giovanni. A Dignidade do Homem. Campo Grande/MS Solivros: Uniderp, 1999, p. 53-54. 72 Idem, p. 54. Neste ponto o texto de Pico se desloca da tradição neoplatônica da Academia florentina, representada por Marsílio Ficcino em sua Theologia Platônica (escrita entre 1469 e 1474) que define o espírito humano pelo amor inato de Deus sendo levado essencialmente do centro do universo, onde estava fixado, à imortalidade divina. Diferentemente do homem definido por Ficcino, que tinha como substância de seu espírito a força primordial que o elevava à divindade, o homem de Pico era insubstancial, podendo tanto engrandecer-se quanto arruinar-se segundo sua própria determinação. “No homem, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos. Se fossem vegetais, plantas; se sensuais, brutos; se racionais, viventes celestes; se intelectuais, um anjo e um filho de Deus. (...) Por conseguinte, se viver um homem devotado às coisas do ventre, como uma serpente que rasteja sobre o solo, aquilo é um cepo e não foi um ser racional que vistes. Se vires alguém envolto nos múltiplos enganos da fantasia, aliciado por sedução ou dominado pelos sentidos, então se trata de um ser irracional e não foi ao homem que vistes. Se, em contrapartida, ao filósofo que, com reta razão, discerne todas as coisas, se a ele venerares, então és um ente celeste e não terreno. Se vires um genuíno contemplativo que, negligenciando o corpo se refugia nos escrínios da mente, aquele não é um ser terreno nem mesmo celeste, porque se trata do mais augusto nume revestido de carne humana.” Esta passagem deixa explícita a autonomia em relação a seu destino então adquirida pelo homem que pode, se assim o desejar, controlar a natureza e modificar-se a si mesmo. Convertendo-se em soberano de si próprio, ele escolhe ser o que quiser: uma planta, um animal embrutecido, um anjo, podendo até mesmo se igualar a Deus, uma vez que este homem partilha também de algo que é sublime por ter sido feito à imagem e semelhança da divindade mais alta. Cf.: Pico della Mirandola, ibidem, p. 56. 73 Greene, Thomas. “The flexibility of the self in Renaissance Literature” In P. Demets, Th. Greene, L. Nelson. The Disciplines of Criticism. Essays in Literary Theory, Interpretation and History. Yale University Press: Have-London, 1968, pp. 243-244.

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do homem fazer-se da melhor maneira possível, conseguindo com isso o propósito maior de

toda a humanidade: ascender até a divindade, conquistando a salvação e a felicidade eterna.

Segundo Thomas Greene74, esta é a mais extravagante asserção entre os humanistas

sobre a liberdade de escolha do homem de seu próprio destino, assim como a possibilidade

de moldá-lo e transformá-lo. Esta concepção, segundo o autor, está muito próxima da

heresia por não mais operar com a idéia de graça, onde o homem, marcado essencialmente

pelo pecado era impotente para se recriar ou para se aproximar de Deus a não ser pelo

auxílio e vontade divinas. Uma mudança de direção na conduta humana (tornar-se bom ou

mal) só ocorreria nas doutrinas medievais aristotélico-tomistas através da interferência

divina. Já em Pico o argumento se altera radicalmente, o seu mundo é marcado pelo

movimento e o homem torna-se livre para escolher o seu próprio caminho - ou ele ascende

até o nível dos seres mais elevados, como o dos anjos e dos querubins, ou desce até a

categoria dos seres mais embrutecidos - de tal sorte que poderia ter toda e qualquer

variedade de vida. Pico vê no ser humano um novo “Proteu”, um “camaleão75”. O que seria

então mais digno de ser admirado do que a capacidade do ser humano de ser o gerador de si

mesmo (plastes et fictor sui) dentro de uma dinâmica regenerativa ou degenerativa?

Como propõe o humanista, portanto, a dignidade do homem não é algo dado ou

acabado e mecanicamente fixo, ela deve ser conquistada através de uma educação que

possa nos ajudar a ascender à divindade. Tendo em vista a necessidade de uma ampla

formação moral e intelectual que nos torne melhor, diz Pico: “socorremo-nos então nos

exemplos dos antigos mestres que de tudo podem fornecer informações fartas e seguras.”76

Por essa razão, o Discurso ressalta acima de tudo a confiança humanista no currículo

pedagógico que aqui ele divide em quatro disciplinas listadas em ordem ascendente. Em

primeiro lugar está a ética, “para com ela expulsarmos as volúpias desordenadas e

assegurarmos a paz duradoura”; em seguida a dialética, para finalizar os “conflitos da razão

em meio às disputas das palavras e a capciosidade dos silogismos”; em terceiro a filosofia

natural, que “apaziguará as discórdias de opiniões que também dilaceram a alma humana”;

e em quarto e último nível está a teologia77.

74 Idem, p. 243. 75 Pico della Mirandola, op. cit., p. 55. 76 Idem, p. 62. 77 Ibidem, p. 63.

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Pico propõe claramente a união entre diversas correntes filosóficas e a teologia,

contanto que as primeiras estejam a serviço da segunda, pois apenas dessa forma o homem

se torna capaz de compreender os mistérios divinos. Embora a filosofia esteja subordinada

à teologia, Pico destaca de tal forma a relevância do conhecimento filosófico que dedica a

segunda parte do Discurso à valorização não apenas destes saberes, mas de uma infinidade

deles. O ecletismo das suas teses se estendia ao conhecimento das doutrinas dos filósofos

pitagóricos, da cabala judaica, da magia, das ciências ocultas e do hermetismo, todas

expressões diferenciadas da busca humana de Deus.78 Pico se esforçava por fundar um

cristianismo que procurasse harmonizar uma vasta diversidade de tradições e culturas, num

ecumenismo fundado sobre a celebrações do espírito humano e de todas as manifestações

de sua reflexão voltada para a busca do amor de Deus, enquanto atualização de sua

semelhança essencial com a perfeição do criador. O otimismo de Pico se define então pela

convicção de que o cultivo das artes liberais, da ação criativa e da busca pelo

conhecimento, possui um sentido religioso, ou seja, se faz enquanto realização mais alta da

natureza humana, promovendo sua ascensão rumo à perfeição divina.

Já Erasmo, representante de uma fase mais madura do Renascimento, embora

exaltasse o ideal de elevação do espírito já se distanciava, por outro lado, do otimismo

radical de Pico que não conhecia limites para a liberdade humana. Ele e outros humanistas

(como Valla) eram profundamente céticos quanto às possibilidades da filosofia79 destacadas

por Pico, na exaltação da excelência de suas habilidades criativas. Na verdade, Erasmo

reelaborou a noção de dignidade humana de Pico sob uma moralidade que desconfiava

mais dos excessos do artifício. Tanto ele quanto Valla apostavam numa base bíblica, na

interpretação e no conhecimento dos textos sagrados, assim como num ideal de

transformação do homem e do mundo calcado na imitação dos preceitos de Cristo (tais

78 Podemos evidenciar os esforços de Pico na fundação de uma grande síntese doutrinal entre religiões e filosofias as mais diversas, na superação de suas oposições aparentes como o objetivo de elaborar uma religião universal que simbolizasse a união espiritual de todos os homens. Segundo o humanista, devemos buscar em todas as distintas formas de conhecimento exemplos de caridade, de moral, de controle das paixões, da manutenção da paz, assim como da busca pela concórdia entre as opiniões. O impulso do espiritualismo cristão expresso em Pico (como também em Ficcino e em Nicolau de Cusa), que visava recolher em todas as filosofias e religiões não cristãs, não o que as separa, mas o que as aproxima da religião de Cristo, foi retomado e divulgado por toda a Europa do Norte através das obras de Erasmo, Thomas More, John Colet e outros, proponentes de um primeiro ideal de reforma, humanista e católico, profundamente conciliatório, ainda antes da eclosão do cisma luterano. Cf.: Lecler, Joseph. Histoire de la Tolérance au Siècle de la Reforme. Paris: Aubier, Éditions Montaigne, 1955, tomo I, p. 131. 79 Cantimori, E. op. cit., p. 157.

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como a caridade, a bondade e o amor ao próximo) e, ainda, nos modelos exemplares de

virtude cultuados pelos antigos e no cultivo das disciplinas humanísticas: a gramática, a

retórica, a história e a filosofia moral.

Em nenhum outro autor deste período esta crença de que a educação poderia levar à

transformação do homem é manifesta de forma tão explícita e ao mesmo tempo realizada

de modo tão controverso quanto em Pico, por isso, suas idéias serviram de ponto de partida

para todos aqueles que, como Erasmo, se empenharam em promover uma ruptura com o

modelo anterior de educação e de religiosidade cristã, afinal, aliar a magia à teologia

constituiria por si só uma heresia para a Igreja católica que tanto esforço empreendeu para a

caça às bruxas. Mas, além disso, Pico não faz nenhuma referência no seu texto às

cerimônias, aos sacramentos e às instituições eclesiásticas como forma de auxílio à

purificação e ascensão da humanidade. Mais importante para ele do que uma religião

externalizante seria o cultivo de um novo catolicismo, cujo principal fundamento é o ideal

humanista da dignidade do homem, baseado na virtude cristã, nos valores da tolerância e da

concórdia religiosa. Como vimos no capítulo anterior é esse mesmo objetivo que alguns

anos mais tarde é desposado por Erasmo em seu Enquiridion.80

Segundo Pico, a sistematização desses saberes nos ajudaria a aplacar o conflito

interno entre os vícios e as virtudes que existem dentro de cada um de nós, ou entre a

natureza que nos eleva para a divindade e a que nos arrasta para o plano inferior dos seres

embrutecidos e sem razão. Portanto, se não desejamos nos desgastar com estas lutas e

desavenças próprias de nossa constituição, o melhor a fazer é buscar a paz que nos deixa

próximos ao Senhor, e, “nesse caso, somente a filosofia nos dominará por completo e nos

aquietará.”81 E complementa: “aqueles que se filiaram a uma só das correntes filosóficas,

80 Durante o período em que permaneceu na Inglaterra, entre 1499 e 1505, Erasmo conheceu humanistas como Willian Grocyn, Willian Latimer e Thomas Linacre, que o influenciaram a seguir as idéias neoplatônicas ressurgidas através da Academia de Florença, chefiada por Pico e Ficcino. Segundo Baiton, o que Erasmo aproveitou realmente desta tradição foi um reforço da sua própria religião de interioridade, já que ele havia sido influenciado antes pela Devotio Moderna, que também questionava a religião externalizante cultivada pela Igreja e pregava um contato direto do homem com Deus. Certamente este é um ponto de afinidade entre Pico e Erasmo, no entanto, destacamos também a idéia de dignidade do homem desenvolvida por Pico, a ruptura por ele estabelecida com o modo de pensar medieval e a sua valorização da educação como pontos chave da sua influência sobre Erasmo. Cf.: Baiton, Roland. "Neoplatonismo e Piedade. Inglaterra: Holanda: O Enquiridion In Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Caloust Gulbenkian, 1969, pp. 65-92. 81 Pico della Mirandola, op. cit., p. 67.

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como a tomista ou a escotista, aliás, muito em voga, podem limitar a discussão dessas

teorias a poucos capítulos.”

É, portanto, a partir da valorização da sapientia humana que Pico formula toda a sua

tese acerca da possibilidade de concórdia entre todos os sistemas antigos e modernos.

Convencido de poder conciliar sobre esta base Aristóteles e Platão, Averróis e Avicena, o

paganismo e o cristianismo, a filosofia e a retórica, assim como a magia e a cabala com as

demais doutrinas filosóficas.

Da obra de Pico emergem claramente três proposições essenciais para o pensamento

erasmiano: a primeira delas diz respeito à valorização do homem em sua própria estrutura

existencial e a importância da educação nos studia humanitatis para a sua correta formação

e ação no mundo, pois, como diz Erasmo em seu De recta pronuntiatione, “o homem não

nasce homem, mas torna-se homem”.82 Na visão erasmiana o homem já recebe as

propriedades de sua natureza no ato da concepção e do nascimento, porém, esta, além da

sua riqueza intrínseca (ao partilhar da centelha divina no ato da criação83) comporta ainda

um lastro imenso de inúmeras potencialidades, que podem ser plenamente desenvolvidas

através da educação para realizar sua semelhança com o espírito divino. No entanto,

diferentemente de Pico, como vimos, Erasmo define essa semelhança mais pelo cultivo da

simplicidade presente nos ensinamentos cristãos do que pela exaltação entusiasmada dos

poderes do artifício humano. A segunda relaciona-se à concórdia (tolerância religiosa) que

deveria existir entre as doutrinas, a aceitação do conhecimento pagão, pois, ao invés dos

conflitos doutrinais o homem deveria dedicar-se à interioridade e a um contato direto com a 82 Erasme. De recta pronuntiatione, op. cit., p. 905. 83 Assim como no Discurso de Pico, Erasmo também desenvolve em algumas das suas obras uma concepção dualista do homem, dividido em corpo e alma. Eles concordavam que, uma vez que o espírito, a centelha divina, se faz presente no corpo, as exigências deste não podem ser negadas. Diz ele no Enquiridion: “quanto à alma, somos tão capazes do divino que podemos alcançar a mesma natureza dos anjos e fazermos a mesma coisa com Deus.” Este ponto de união da alma com Deus, também presente em Pico, suscitou o ataque dos teólogos contra Erasmo. Segundo ele, estas duas naturezas tão distintas entre si foram separadas após o pecado original, encontrando-se em constante conflito. O corpo porque é visível, mortal e se deleita com as coisas terrenas, a alma, pelo contrário, por estar ligada à linhagem celestial tende a depreciar tudo que é visível e efêmero, buscando o que é verdadeiro e eterno. Para Erasmo, o homem por partilhar no momento de sua criação de uma centelha divina, tal como Deus, também se torna imortal. Por isso, "o semelhante é atraído por seu semelhante; a não ser que a alma enlameada totalmente na imundície do corpo tenha degenerado de sua primitiva grandeza tendo deixado contaminar-se por ele." É contra esta discórdia entre alma e corpo, entre vícios e virtudes que assolam o homem a todo instante que devemos declarar guerra. Os neoplatônicos florentinos também concordavam que o corpo não era totalmente mau, podendo, se controladas as paixões, ser conduzido a atitudes interiores e devotas. Embora algumas vezes tivesse uma divisão tripla de corpo, alma

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divindade. A terceira e mais importante proposição, essencial para o humanismo como um

todo, é a sua negação da concepção tradicional e agostiniana da miséria humana que

dominara o pensamento medieval84, condição esta essencial para a afirmação da dignidade

do homem e de seus poderes de apreensão e compreensão do saber através da educação.

Para analistas como Cassirer85 foi a difusão da obra de Pico que conferiu o escopo teórico

necessário para a afirmação de repúdio humanista da concepção agostiniana feita então

sobre bases mais consistentes.

Santo Agostinho86 expôs na Cidade de Deus que o desejo do homem de buscar uma

vida virtuosa se baseava em uma presunção e em um equívoco acerca do que se pode

querer atingir com os seus próprios esforços. Na opinião de Agostinho se um governante

conseguisse desempenhar virtuosamente o seu ofício, esse triunfo não poderia ser atribuído

à sua própria vontade e ação no mundo, mas apenas ao poder da graça de Deus. Ele

acrescenta ainda que, mesmo que porventura Deus tenha agraciado este governante e a ele

tenha dado algumas virtudes, ainda assim ele "não chegará à perfeição da justiça" devido à

sua natureza decaída.

A concepção agostiniana do homem decaído pelo pecado, de grande influência

durante o período medieval, foi responsável pelo estabelecimento de uma visão do homem

condicionada pela miséria e que desdenhava de suas capacidades para alcançar as virtudes e

recuperar a plenitude de sua natureza. A insistência agostiniana sobre a separação entre

e espírito, habitualmente, contudo, a dupla divisão prevaleceu. Cf.: Erasmo, Enquiridion, p. 91. Sobre o dualismo e sua influência neoplatônica em Erasmo ver: Baiton, Roland, op. cit., p. 72. 84 Contudo, a concepção agostiniana da queda pelo pecado original não foi a única a determinar o pensamento medieval sobre o homem. A partir do século XII uma outra tradição viria consolidar-se e aprofundar os debates sobre a questão da liberdade. Trata-se da corrente aristotélico-tomista, contra a qual o humanismo se opunha mais fortemente e cuja doutrina afirmava ser a natureza humana pré-fixada na hierarquia celestial, sendo o indivíduo impotente para se recriar. Portanto, mesmo que mantivessem uma vida virtuosa e cultivassem boas ações, esta conduta não poderia restaurar a condição inicial perdida com o pecado. Como afirma Thomas Greene, para São Boaventura, assim como para muitos escolásticos, o homem perde com a queda a sua liberdade e a sua capacidade de transformar-se, a não ser que receba o auxílio da graça divina. A diferença entre a concepção agostiniana e a tomista consiste na definição de habitus, proposta por São Tomás de Aquino, que oferece ao homem uma estabilidade menos rígida na hierarquia celestial. De acordo com Aquino, habitus seria a disposição adquirida pelo homem e que o permite agir de acordo com a sua natureza. Toda virtude, toda arte é um habitus, sendo, no entanto, estes bens inatos e não adquiridos por sua própria vontade, o homem praticamente não possui meios de alterar o seu ser. Entretanto, o autor dá uma pequena margem de movimento a este homem, que caminha em direção à salvação ou ao pecado. Em oposição a estas concepções o Renascimento mostra-nos, de forma cada vez mais clara, uma outra imagem. Cf.: Greene, Thomas, op. cit., pp. 243-244. 85 Cassirer, E. “Liberdade e necessidade na filosofia do Renascimento”, op. cit. pp. 123-204. 86 Santo Agostinho. A Cidade de Deus: (contra os pagãos). Petrópolis, RJ: Vozes, São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990. Vol. II, p. 245.

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vida corpórea e vida espiritual encorajava a idéia de que o homem, submetido às paixões,

não teria acesso a nenhum tipo de conhecimento sem o auxílio da graça87. Seu ideal era,

portanto, que a alma, o corpo e a sociedade humana não fossem fendidos pela tenebrosa

distorção da vontade decaída, coisa que só poderia ocorrer pela intervenção da graça. Para

simplificar seu argumento podemos dizer que a visão cristã medieval de mundo excluía

toda consideração sobre a legitimidade e autonomia da história secular e temporal, sendo

esta mero desenvolvimento do pecado humano. Do mesmo modo, se pode afirmar que a

emergência de modos históricos de explicação estariam relacionados com a substituição

desta visão de mundo por uma outra secular, mais ligada à vida cotidiana e que tinha por

princípio a noção da dignidade humana.88 Por esse motivo afirma Pocock que uma

comunidade marcada ainda pela ordem eterna está em nítida oposição ao ideal de uma

república de cidadãos.

Se eles crêem que a tradição é a única reação possível aos desafios dos eventos contingentes, eles não aplicarão seus poderes coletivos de decisão positiva; (...) se eles pensam que a matriz de todos os valores está em uma hierarquia universal, eles não estarão dispostos a se associar a um corpo soberano independente para tomar as decisões [que melhor escolherem]. O cidadão deve ter uma teoria do conhecimento que o autorize a tomar decisões políticas e a participar dos acontecimentos públicos89.

Por essa razão, Baron, Skinner e Garin concordam - ainda que existam diferenças

singulares entre eles - que a ascensão da retórica está imediatamente associada ao

desenvolvimento de um novo tipo de vida civil que, baseado nos exemplos antigos, viria a

substituir a filosofia escolástica. O objeto da filosofia aristotélica, muito em voga durante o

período medieval, seria o conhecimento do universal, estando a compreensão do particular,

87 Sobre Santo Agostinho ver: Brown, Peter. Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, pp. 318-352. 88 A suprema liberdade adquirida pelo homem no texto de Pico para a constituição de sua formação moral (tomando forma determinada de acordo com a decisão de seu próprio ânimo), é chamada por Thomas Greene de flexibilidade vertical. Uma questão de grande importância em sua análise é que a liberdade vertical pressupõe a crença no homem, no poder de sua ação e de transformação de si e do mundo, valorizando, sobretudo, a experiência e a ação no contexto das cidades e em sua participação cívica, assim como a busca pela renovação das letras e da religiosidade cristã. Greene, Thomas. "The Flexibility of the Self in Renaissance Literature", p. 243. 89 Pocock. "La vita activa et le vivere civile" in: Le Moment Machiavélien. La pensée politique florentine et la tradition républicaine atlantique. Paris: Presses Universitaires de France, 1997, p. 56.

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dos eventos que acontecem no mundo, submetido a leis gerais e transcendentes, não tendo

por isso dignidade própria.

A análise realizada por Eugênio Garin90 nos revela que a tendência geral do

humanismo consistia em encarar a existência como um conjunto de ações particulares

ligadas a momentos específicos. Deste modo, o autor descaracteriza a importância na

Renascença da filosofia aristotélico-tomista, na qual a dignidade ontológica de um objeto

era dada por sua associação a uma estrutura hierárquica transcendente e universal. No

âmbito da cultura humanista, ao contrário, o conhecimento não dependia de uma postura

contemplativa, mas de um ato da razão humana, que passava a investir de sentido e

legitimidade ontológica os eventos particulares mundanos em sua peculiaridade. Em outras

palavras, podemos dizer que, se a verdade a ser conhecida, de acordo com a tradição

medieval, era um a priori à ação humana, e devia ser objeto de contemplação, na

Renascença, ela passa a estar imanente ao ato investigativo. Assim, o erudito humanista,

afirma o autor, considerava que a filologia mais do que a filosofia se constituiria como o

caminho privilegiado até o conhecimento.

Erwin Panofsky91 também concorda que se há algo que distingue o programa da

Renascença daquele da Idade Média é a ciência da filologia. Segundo ele, muito embora o

período medieval não ignorasse boa parte dos textos antigos, sobretudo os latinos, não

havia ainda a preocupação com o poder que os tempos históricos particulares podiam

exercer sobre os textos, nem tampouco um sentimento de distanciamento histórico da

Antigüidade. A filologia começa então com o trabalho paciente e minucioso de restituição

da pureza dos textos clássicos, eliminando as alterações realizadas por copistas ou os erros

apresentados por traduções descuidadas e datações imprecisas. Este é o aspecto de maior

relevância desta ciência: o apreço pela linguagem e o sentido que as palavras assumem no

contexto de sua escrita. Entretanto, um filólogo não é apenas um perfeito conhecedor do

grego e do latim, ele é também um homem interessado na história das civilizações do

passado. Guilherme Budé afirma em Da Filologia que o domínio desta ciência é vasto: "ele

90 Como dissemos anteriormente, algumas obras aristotélicas são sim retomadas na Renascença pelos humanistas, como a Retórica, a Ética, e a Política, porém, textos como a Física e a Metafísica, tomados pelos escolásticos, são profundamente rejeitados por eles. Garin, Eugênio. Ciência e vida civil no Renascimento Italiano. São Paulo: UNESP, 1996. 91 E. Panofsky. Renacimiento y Renacimientos en el Arte Ocidental. Madri: Aliança Editorial, 1981.

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compreende (...) a totalidade do saber humano, do saber transmitido pelos livros”.92 Através

do conhecimento do particular (da língua e de seu significado) pode chegar-se a um nível

mais amplo do saber, ou seja, ao conhecimento dos fatos, a partir de uma leitura que

traduza fielmente as intenções e contextos dos autores antigos.

O interesse pela filologia, a tentativa de se descobrir o que os documentos

continham verdadeiramente e quais eram os significados reais das palavras, ou seja, o que o

orador, o filósofo, o historiador e o poeta realmente disseram no momento em que

escreveram suas obras, trouxe à tona o interesse pela história destes autores. A partir do

estudo dos textos clássicos houve uma busca pelas circunstâncias históricas, sociais e

temporais nas quais o autor exprimiu seu pensamento. Em lugar da lógica, exaltou-se a

gramática e a filologia, sendo intensificado o estudo das línguas antigas, da crítica textual,

da estrutura das frases e, em geral, da palavra escrita como instrumento para transmitir um

sentido. Foi, portanto, através da amplitude do saber que a Florença de humanistas como

Salutati e Bruni, conheceu diretamente a história da Roma republicana e dos oradores e

filósofos que a defendiam fervorosamente, tendo como um dos seus principais instrumentos

o uso das técnicas retóricas.

Se para Baron, Skinner e Garin o pensamento humanista, sob qualquer de suas

formas, implica um rompimento com o modo de inteligibilidade medieval, pelo qual o

sentido dos eventos e das coisas do mundo seria decidido anteriormente pela providência

divina, a nova função que é dada à retórica no Renascimento vai muito além das fronteiras

marcadas pelo mundo cívico, e pela dualidade entre contemplação e ação. Como vimos no

exame de Pico, sob a influência do neoplatonismo o universal tornou-se objeto de

conhecimento intelectual, sendo através deste que o homem poderia elevar-se

espiritualmente.

O espírito contemplativo na Renascença não se exerce pela retirada do mundo ou

por um processo de deduções e demonstrações próprias à escolástica medieval, ao

contrário, ele pressupõe o diálogo filosófico, o convívio com os homens93, e exige antes de

92 Guilherme Budé apud M.-M. de La Garanderie. Christianisme et Lettres Profanes (1515-1535). Paris: Lille, 1976, t. II, p. 60. 93 Neste sentido, de acordo com Pocock, o sentido da ação política imediata na defesa da liberdade cívica se associou, não raro, à filosofia, ao espírito contemplativo. A vida ativa preconizada pelo humanismo cívico, teria, assim, por esteio, a idéia de uma república definida como realização de um paradigma universal no mundo, com clara influência neoplatônica. Uma república que incitaria as ações em sua defesa por

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tudo, uma forte noção de julgamento prudente, seja na ação imediata, seja na ação advinda

do processo de leitura e reflexão crítica dos textos. O homem deve dedicar-se, portanto, à

investigação de tudo aquilo que faz parte do mundo humano, da sua realidade social e

política, a sua história e a sua linguagem. A verdadeira ciência na Renascença é a ciência da

realidade humana - a retórica, a filologia, a política e a moral – e não aquela dos cientistas,

dos matemáticos ou dos filósofos que está relacionada com a certeza das verdades

universais.

Portanto, a negação do paradigma medieval agostiniano além de exaltar no homem

sua possibilidade de ação e investigação no mundo, também pressupõe uma verdade

prática, oriunda do julgamento e da pesquisa humana sobre o que seria mais adequado à

sociedade, muito distante, portanto, daquela dos filósofos. Mais uma vez voltamos à

temática da crítica da razão empreendida pelos humanistas que tratamos no capítulo

anterior. Antes demonstramos, tendo como base a análise do Enquiridion, como Erasmo

renegou o dogmatismo da razão platônica, da estóica e da escolástica, salvando apenas a

razão dos peripatéticos pelo fato dela considerar a legitimidade das afeições na busca da

virtude e se aproximar dos preceitos cristãos. Mostramos ainda como Valla alguns anos

antes também já havia criticado diretamente a razão filosófica e como sua obra influenciou

Erasmo.

Agora que retornamos a essa tese, nossa pergunta é: se estes humanistas condenam

a razão, influenciados pela crítica cética às pretensões racionalistas ao conhecimento do

verdadeiro, que alternativa eles colocam em seu lugar? Em primeiro lugar, a verdade que

eles buscam é uma verdade aproximada concernente às questões da vida humana imediata e

que não pretende responder os insolúveis dilemas escolásticos sobre o livre-arbítrio, sobre a

imortalidade da alma, sobre o mistério da Trindade e da transubstanciação, entre tantos

outros. Ao retirarem da sua meta o desejo de responder a essas questões, estes humanistas

passam a se dedicar a uma devoção interiorizada num contato cada vez maior com os

preceitos cristãos tais como foram deixados por Cristo. Daí emerge a dedicação dos

humanistas a uma leitura crítica da Bíblia, pois seu objetivo era compreender a fundo a

personificar o estabelecimento ideal da dignidade humana, do espaço privilegiado de exercício de suas virtudes naturais. A continuidade da filosofia pode ser traduzida na Renascença pelo desenvolvimento de um ideal universal da dignidade do homem, consciente de sua natureza privilegiada de único animal capaz de usar a palavra e a razão em busca de sua elevação moral e do exercício de suas virtudes naturais.

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mensagem divina então deturpada pela Igreja ao longo dos séculos, utilizando como um dos

seus principais instrumentos a filologia para o alcance desta verdade envolta nas brumas da

ignorância e dos interesses católicos em serem os únicos intérpretes do texto bíblico.

Nossa hipótese é que esse ceticismo declarado, como vimos, em relação aos

poderes da razão em desvendar totalmente os desígnios divinos abriu caminho para a

consideração da palavra como uma alternativa ao modelo racionalista de conhecimento,

pois, tanto da perspectiva da investigação retórica, quanto da filológica seria possível que

viesse à tona a verdade, ainda que concernente ao senso comum e à vida prática.

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4.

Palavra, Presença, Escrita: rumo a uma retórica da interioridade

4.1 O ceticismo erasmiano e a valorização da linguagem

Deus fala muito raramente e muito brevemente aos homens, mas suas palavras são ao mesmo tempo perfeitamente verdadeiras e perfeitamente eficazes. Na primeira vez o Pai falou e engendrou a linguagem eterna. Ele falou de novo e por seu Verbo todo poderoso criou a máquina inteira deste mundo. Ele falou ainda uma vez mais através da mediação de seus profetas, graças aos quais nos foram legadas as Escrituras que contêm o tesouro infinito da sabedoria divina. Enfim, enviando seu Filho, isto é, seu Verbo revestido de carne, ele manifestou sobre a terra sua Linguagem precisa que encerra tudo o que foi dito em uma conclusão.1

Nesse fragmento, extraído da Língua (1525) Erasmo nos diz claramente que a única

maneira do homem se aproximar da divindade e conhecer os seus desígnios é através da

leitura das Santas Escrituras. Contudo, o texto bíblico, como ele mesmo aponta, é permeado

de passagens obscuras e até mesmo incompreensíveis, suscitando ao longo dos séculos uma

grande variedade de interpretações e de divergências entre os teólogos. Além disso, ele

destaca outro obstáculo para os eruditos que pretendessem encontrar o sentido último e

essencial da mensagem divina, ou seja, o fato de que sua redação, realizada por

intermediários humanos, estava exposta a deturpações e erros sobre o que havia sido dito

realmente pela divindade. Como portanto não podia haver um consenso absoluto em

relação a interpretação bíblica correta, se tornava impossível segundo o humanista falar de

uma verdade definitiva, relacionada com a certeza dos silogismos quando se tratava da

vontade de Deus. A verdade das Escrituras que Erasmo julgava ser necessário desvendar

pela crítica filológica, portanto, era uma verdade provável, cuja natureza se adequava bem

aos limites da razão humana e às questões ligadas à sua vida prática, em consonância com a

valorização da virtude dos antigos. Se aproximava de Cícero, mais uma vez, que também 1 “Dieu parle très rarement, il parle brièvement mais ses paroles sont tout à la fois parfaitement vraies et parfaitement efficaces. Une primière fois le Père a parlé et il a engendré le langage éternel. Il a parlé à nouveau et par son verbe toutpuissant a créé la machine entière de ce monde. Il a parlé encore une fois par ses prophètes par l’intermédiaire desquels il nous communiqué les Livres Saints qui recèlent sous quelques mots simples le trésor infinit de la sagesse divine. Enfin en envoyant son Fils, c’est-à-dire son Verb revêtu de chair,

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não definiu o alcance de uma verdade absoluta como meta para a eloqüência, que em geral,

se fundava sobre os mesmos problemas, da dinâmica da vida prática.

Esta mesma proposição também é expressa nas obras de Salutati, Valla e Pontano,

aplicadas no ceticismo2 quanto às possibilidades do conhecimento racional das essências

das coisas da natureza, mostrando-se mais prudentes em relação a tão empolgada exaltação

que Pico Della Mirandola fizera da excelência das habilidades criativas e racionais do

homem3. Erasmo também compartilhava da concepção desses humanistas, adotando o

ataque cético às pretensões racionalistas de conhecimento do real em várias de suas obras.

Nas Paráfrases ao Evangelho de São João, de 1523, ele nos diz que:

Como a natureza divina supera infinitamente a fraqueza do espírito humano

ela não pode ser percebida tal como ela é por nossos sentidos nem conhecida por nosso espírito, nem representada por nossa imaginação nem expressa por palavras; e embora nas coisas criadas vê-se os traços do poder, da sabedoria e da bondade divinas, ele espera certamente que as analogias tiradas das coisas, que nós compreendemos pouco ou muito pelos sentidos e pela inteligência, nos conduzam a um conhecimento tênue e esquemático das realidades incompreensíveis de modo que nos as contemplamos como em um sonho e num nevoeiro, mas nenhuma analogia nem eventualmente tirada de alguma coisa criada – quer se trate dos Anjos, da máquina dos céus ou dos corpos aqui de baixo, familiares a nosso sentido, sem nos ser entretanto plenamente

il a manifesté sur terre son Langage abrégé, resserrant en quelque sorte tous ses dits en une conclusion.” Érasme. La Langue. (Introduction, traduction et notations de Jean-Paul Gillet) Genève: Labor et Fides, 2002. 2 Sexto Empírico em suas Hipotiposes Pirrônicas define assim o ceticismo: “o resultado natural de qualquer investigação é aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser ele inapreensível, ou ainda, persiste na busca. O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade, outros, que a verdade não pode ser apreendida, enquanto outros continuam buscando. Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade são os ‘dogmáticos’, assim são chamados especialmente Aristóteles, por exemplo, Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e os céticos continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética.” Portanto, segundo a interpretação de Sexto, como ressalta Danilo Marcondes em seu artigo A tradição cética, há uma diferença fundamental entre a Academia de Clitômaco e Carnéades e o Ceticismo. “A afirmação de que a verdade seria inapreensível já não caracterizaria mais uma posição cética, mas sim uma forma de dogmatismo negativo”. A posição cética de fato se caracterizaria então pela “suspensão do juízo quanto à possibilidade ou não de algo ser verdadeiro ou falso”. Souza Filho, Danilo Marcondes. A Tradição Cética. Departamento de Filosofia – PUC-RJ/UFF, pp. 1-2. 3 Victoria Kann analisa os trabalhos de Salutati, Valla e Pontano nessa chave cética, destacando a defesa de Pontano da literatura ficcional em seu De sermone como uma forma de negação da razão dogmática. Para ele a verdade é buscada na prática, que se dá quando o leitor é levado à modéstia ou à caridade. Desta forma, a literatura tem validade para o leitor desde que ela possa retira-lo do vício e incitá-lo à virtude, sendo atribuída então grande importância à poesia, aos versos de Virgílio, às tragédias, à dissimulação irônica dos socráticos e às fanfarrices burlescas de Luciano, já que todos esses textos incitam a reflexão moral e a crítica dos costumes. A defesa de Pontano desta concepção prática de verdade é um sinal evidente que ele, assim como outros humanistas do Quatrocento, compartilharam com o orador ciceroniano a noção da impossibilidade de se encontrar as verdades absolutas. Kann, Victoria, op. cit., p. 43.

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compreensíveis – se encaixa totalmente com a maneira de ser e a natureza das realidades. (...) ‘Ninguém conhece o Pai tal como ele é, exceto o Filho e aqueles a quem o Filho quis revelar.’ Por isso, procurar por raciocínios humanos o conhecimento da natureza divina é temerário; falar do que não se pode ser expresso por palavras é demência; defini-lo é impiedade.4

Erasmo retoma aqui um dos principais temas do ceticismo cristão de sua época

(cujos principais fundamentos veremos mais adiante com um breve exame das idéias de

Nicolau de Cusa): a descrença no poder da razão discursiva em conhecer cientificamente a

existência de Deus assim como a verdade das Escrituras. Apenas Deus, o criador de tudo,

conhece a natureza, o céu, os anjos e os corpos humanos (que só poderíamos conhecer

parcialmente em seu funcionamento). Ainda que estabeleçamos analogias entre as coisas

criadas por Deus e a criação humana, é vedado ao homem não apenas o conhecimento da

própria divindade, mas também é impossibilitado a ele o conhecimento pleno da natureza e

de si mesmo, já que não as criara. Portanto, para o humanista, se dedicar a compreender

aquilo que por sua própria natureza era incompreensível ao homem, era o mesmo que tentar

dizer o indizível, era em suma “pura demência, audácia sacrílega e ímpia”. Parafraseando

Mateus 11:27, Erasmo reafirma a impossibilidade de conhecer o Pai; apenas o Filho o

conhece, e nós não somos certamente parte do pequeno número daqueles a quem Deus quis

revelar o que Ele sabia, como os profetas do Antigo Testamento e os apóstolos escolhidos

por Cristo.

Segundo Erasmo, Deus quis transmitir a fé evangélica aos homens aos poucos,

tendo em conta o progresso dos tempos e o desenvolvimento das suas capacidades. Por essa

razão, os judeus, durante vários séculos, honraram a Deus sem conhecer o Filho e o Espírito

Santo. E, mesmo com a vinda de Cristo Ele quis que nós ignorássemos certas coisas. “Não

foi tudo a nós revelado pelo intermédio do Santo Espírito, mas apenas o que convinha para 4 “Comme la nature divine surpasse infiniment la faiblesse de l’esprit humain, elle ne peut être perçue telle qu’elle par nos sens ni conçue par notre esprit, ni représentée par notre imagination ni esprimée par des mots; et quoique dans les choses créés luisent des traces de la puissance, de la sagesse e de la bonté divines, il arrive certes que des analogies tirées de ces choses, que nous comprenons peu ou prou par les sens et l’intelligence, nous conduisent à une connaissance ténue et schématique des réalités incompréhensibles si bien que nous les contemplons vaguement comme en rêve et dans un brouillard, mais aucune analogie ne peut être tirée d’aucune chose créée – qu’il s’agisse des Anges, de la machine des cieux ou des corps d’ici-bas, familiers à nos sens, sans nous être pourtant, eux non plus, pleinament compréhensibles – qui cadre totalmente avec la manière d’être et la nature des realités. (...) ‘Nul ne connâit le Père tel qu’il est, excepté le Fils et celui à qui le Fils a bien voulu révéler.’ C’est pouquoi rechercher par des raisonnements humains la conaissance de la nature divine est de la témerité; parles de ce qui ne peut point être exprimé par des mots est

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a crença na doutrina evangélica e para a salvação do gênero humano.”5 Deste modo, afirma

Erasmo, convêm aos homens amar a bondade divina mais que admirar ou buscar

compreender sua sublimidade, que apenas seu Filho conhece.

Como eu comecei a dizer, para comunicar a alguém um certo conhecimento das coisas que não são nem inteligíveis nem explicáveis, é preciso utilizar os nomes das coisas familiares à nossa inteligência, se bem que não há nada em nenhuma parte e em nenhuma das coisas criadas em que se possa tirar uma comparação que se encaixe rigorosamente com a verdade da natureza divina. Por isso as Escrituras sagradas que chamam Deus esse Espírito Tão Elevado, o ser maior e melhor que se pode conceber, designam seu Filho único como sua linguagem.6

Erasmo se refere aqui à relação de similitude existente entre o Pai, o Filho e sua

Linguagem. Segundo ele, é impossível ao entendimento humano perceber a totalidade da

grandeza divina. “Por isso ele não assumiu um corpo imaginário. Quem amaria um vão

espectro ou uma aparência fantasmagórica?”7 Então, Ele em sua bondade, nos legou seu

único filho, dotando-o da mesma natureza física dos homens, pois não “duvida que os

homens possam se tornar filhos de Deus.”8 Assim, Cristo em sua semelhança com o

homem, e ao mesmo tempo com o Pai, torna compreensível e visível a mensagem divina

para os homens, através das Escrituras. Como Cristo é o discurso de Deus acomodado ao

entendimento humano, torna-se possível para nós buscar o seu entendimento.

No entanto ao homem só é possível a aproximação com a mensagem divina através

de uma leitura precisa do texto, que leve em consideração seu contexto gramatical e

histórico. Neste sentido, o método filológico torna-se a base da interpretação figurativa ou

de la démence; le définir est de l’impieté.” Erasme. “Paraphrase à l’Évangile de Jean” In Oeuvres Choisies, p. 611. 5 “Il n’a pas non plus tout révelé par intermédiaire du Saint Esprit, masi seulement ce qui convenait pour la croyance en la doctrine évangélique et le salut du genre humain.” Idem, p. 613. 6 “Comme j’avais commencé à le dire, pour communiquer à quelqu’un une certaine connaissance des choses qui ne sont ni intelligibles ni explicables, il faut utiliser les noms de choses familières à notre intelligence, bien qu’il n’y ait rien nulle part dans aucune des choses créées dont on puisse tirer une comparaison qui cadre rigoureusement avec la vérité de la nature divine. C’est pourquoi les Lettres sacrées qui apellent Dieu cet Esprit Très Haut, l’être le plus grand et le meilleur qu’on puisse concevoir, désignent son Fils unique comme son langage.” Ibidem, p. 614. 7 “Car il n’a pas assumé un corps imaginaire. Qui aimerait en effet un vain spectre ou une trompeuse fantasmagorie?” Ibidem, p. 625. 8 “C’est Dieu qui a réalisé cela; et ne doute pas que les hommes puissent devenir fils de Dieu.” Ibidem, p. 625.

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alegórica que Erasmo desenvolve em sua leitura das Escrituras9. Portanto, se a Deus coube

a criação das coisas e do universo, ao homem caberia a assimilação e interiorização da

palavra divina, da sua linguagem, único instrumento oferecido pela divindade para que a

humanidade pudesse conhecer (ainda que existam passagens obscuras e outras veladas ao

entendimento) a verdadeira filosofia cristã, concernente à compreensão humana. Nesta

perspectiva, portanto, o cristão autêntico deveria dedicar-se a outra forma de conhecimento,

que nada tinha a ver com as pretensões científicas do conhecimento da essência divina, mas

se definia antes, por um caráter intuitivo, ligado à revelação, tendo por meio a pureza da

palavra, cujo objetivo maior seria o desenvolvimento espiritual e a salvação. Assim, no

âmbito do sentimento cristão de Erasmo, o ato de contentarmo-nos com as aproximações e

imperfeições da linguagem humana em nos demonstrar uma verdade que transcendia de tal

forma a nossa compreensão, se dava como importante preceito moral, de adequação do

homem aos limites de sua própria natureza. Em suas Paráfrases, por exemplo, ele

manifestou claramente esta postura cética em relação às capacidades da razão humana em

postular verdades indubitáveis sobre a divindade. No entanto, apesar de mobilizar em suas

obras, de uma maneira geral, questões de natureza cética, (tais como a que acabamos de

mencionar, que se refere às possibilidades do conhecimento das essências das coisas), não

lhe interessava uma exposição teórica da filosofia cética propriamente dita dos antigos, na

retomada explícita dos tropos de Sexto Empírico, Enesidemo e Agrippa, por exemplo.

Em vez disso, Erasmo se isnpirou mais dos argumentos desenvolvidos por Nicolau

de Cusa, em sua Douta Ignorância (De Docta Ignorantia), de 1440, que foi o primeiro a

questionar a possibilidade de conhecer Deus em sua essência, atacando as pretensões da

teológica escolástica, pautada na concepção aristotélica de ciência, segundo a qual, o

homem poderia através do raciocínio, alcançar a realidade das coisas em sua essência,

independentemente da natureza própria e limitadora de sua percepção. Segundo ele, todos

os investigadores “julgam o incerto comparando-o e relacionando-o proporcionalmente

com algo já antes aceito como certo. Portanto, toda investigação é comparativa, valendo-se

do meio da proporção.10” Mas para se medir conhecimentos distintos a primeira condição

que se impõe como premissa indispensável é a homogeneidade, por isso, eles têm de estar

9 Sobre o método de interpretação alegórica utilizado por Erasmo para a leitura das Escrituras, ver o excelente capítulo de Terence Cave sobre este tema. Cave, Terence, op. cit., cap. 3, pp. 78-149. 10 Cusa, Nicolau de. A Douta Ignorância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, I, 1, p. 42.

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relacionados a uma mesma unidade de medida e devem ser concebidos como pertencentes a

uma mesma ordem de grandeza. Respeitadas essas condições, “logo, toda investigação

cifra-se numa proporção comparativa fácil ou difícil.”11

Contudo, essa condição não se satisfazia quando a meta e o objeto do conhecimento

passavam de uma realidade finita, singular, para uma outra de natureza infinita e absoluta,

como o era a divindade. Esta última, com efeito, estando além de toda e qualquer

possibilidade de comparação e de medição, não podia jamais ser objeto do conhecimento

humano. Desta forma, não poderia existir, segundo Cusa, uma metodologia racional

legítima do pensamento capaz de vencer o abismo entre os dois extremos. Negando o

aristotelismo, portanto, ele propunha uma outra via de aproximação entre o homem e Deus,

localizada na rejeição da busca da ciência acerca das coisas divinas como pura vaidade e na

afirmação da sabedoria humana em reconhecer-se, voltando-se para a interioridade e

aceitando sua ignorância como abertura para a revelação. Tal sabedoria era tida como a

única maneira, em sua perspectiva, de realização da harmonia plena entre o homem e Deus.

Cusa formulava então a oposição fundamental entre scientia e sapientia, a partir da

postulação cética dos limites da razão humana, que seria tão cara ao cristianismo de Erasmo

e de tantos humanistas em seu tempo.

Esta solução centrada na interioridade do autoconhecimento humano de sua

natureza específica e de suas insuficiências, para uma apreensão mais efetiva do texto

bíblico é muito próxima daquela partilhada pelo movimento religioso da Devotio Moderna,

que teve grande influência em diversos países da Europa do Norte, assim como na

Alemanha, país de origem de Cusa12. De qualquer forma, a hipótese que de fato nos

interessa é que a posição cética de Cusa em relação ao conhecimento da divindade, assim

como seu retorno a uma religiosidade mais pura, baseada na sabedoria das Escrituras, é

muito próxima da posição defendida anos mais tarde por Erasmo. Assim como Cusa,

Erasmo também percebeu as limitações intrínsecas à racionalidade humana, deslocando sua

atenção para a prática religiosa e não para o entendimento dos mistérios que agradavam

11 Idem, I, 1, p. 42. 12 Muito embora não tenha sido comprovada a tese de que ele teria sido educado no colégio de Deventer, na Holanda pelos Irmãos da Vida Comum – mesmo lugar em que Erasmo recebeu sua primeira formação, tendo este movimento grande ascendência sobre o humanista – podemos indagar se Cusa pelo menos poderia ter conhecido indiretamente os ideais deste movimento. Idem, Introdução, p. 13.

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mais à especulação vã que à adoração. A oposição entre scientia e sapientia no que dizia

respeito à fé, estava no cerne do pensamento de Erasmo.

Também em seu adágio Silenos de Alcebíades ele reafirma seu ceticismo, dizendo

que: “Deus não pode ser nem compreendido nem pensado, mesmo que ele seja a fonte de

tudo o que é.”13 Ou ainda: “a respeito das coisas divinas, o discurso humano apenas pode

balbuciar”14, sem poder compreender na totalidade a sua linguagem absoluta. Há aqui uma

inadequação total entre a realidade divina e as palavras humanas que querem dela se

aproximar. Portanto, cabe ao orador nos moldes em que ele fora postulado por Cícero de

levar seus ouvintes ou leitores a uma aproximação da verdade, que, ainda que de natureza

aproximada, bastava para formar sua boa conduta segundo a simplicidade dos princípios

básicos do cristianismo. Muito mais adequadas para tornarem-se ativos, num discurso

próprio à persuasão, muito mais eficaz para fazer germinar nos espíritos uma fé viva e

autêntica do que a complicada dialética dos escolásticos. O ceticismo se dava então, neste

contexto, como parte da fundamentação teórica de que Erasmo se servia em seu ideal de

valorização da retórica, e de suas prerrogativas. Mas, embora estes princípios tenham sido

mobilizados pelo humanista em várias das suas obras, é no De Libero Arbitrio (Ensaio

sobre o Livre Abítrio)15, de 1524, que ele expunha de forma mais direta e contundente sua

13 Érasme. Éloge de la Folie; Adages; Colloques; Réflexions sur l'Art; l'Education; la Religion; la Guerre, la Philosophie et Correspondance. Paris: Robert Laffont, 1992. 14 Carta de Erasmo de 9 de dezembro de 1517. Érasme, Desiderius, (1466-1536). Correspondance: 1484-1517. Paris: Gallimard, 1968. 15 Até 1520, mesmo com a eclosão do Cisma luterano Erasmo não havia ainda atacado Lutero publicamente, muito embora, a partir do momento em que sua atitude de desafio à Igreja tornou-se cada vez mais impertinente ele tenha deixado claro o afastamento das suas idéias do reformador alemão. Considerou Lutero, então, como o pior inimigo de sua própria causa quando saíam de sua pluma, libelos cada vez mais violentos. Sua profunda descrença na natureza humana em nome da sua fé pessoal, destruidora da dignidade humana, foi contra o que para Erasmo era a essência do Evangelho, ou seja, a assimilação do amor de Deus e do amor ao próximo sob um mesmo mandamento. Ainda que tivessem opiniões tão distintas sobre a fé e sobre o homem Erasmo, como homem moderado e apaziguador, manteve-se distante do conflito. Mas, a ortodoxia católica, representada pelo papa Leão X, não cessaria de pressioná-lo a escolher entre Roma e a Reforma, ameaçando-o de excomunhão por sua posição ambígua em relação às críticas de Lutero à Igreja. Sua posição se mostrava cada vez mais difícil de ser sustentada, numa época tão cheia de disputas em matéria de fé. A decisão de permanecer como espectador do conflito era mal interpretada de ambos os lados. Erasmo era, freqüentemente, tido como luterano pelos ortodoxos católicos, e como conservador pelos reformadores. Diante da pressão por parte das autoridades eclesiásticas, e de amigos católicos como Thomas More e o rei da Inglaterra Henrique VIII, Erasmo acaba por escrever contra Lutero, explicitando sua posição a favor da Igreja Romana, e livrando-se das acusações de heresia protestante que lhe vinham sendo imputadas. Escolheu o livre-arbítrio como tema de seu ensaio, publicando seu ensaio em 1524. Cf.: Mesnard, Pierre. La Philosophie Chrétienne, p. 205. Sobre o conflito entre Erasmo e Lutero ver também: Halkin, Léon-E. Erasmo entre Nosostros, pp. 221-240. Huizinga, J. Erasmo, pp. 212-225. Bainton, Roland H. Erasmo da Cristandade, pp. 187-250.

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postura cética, curiosamente, em defesa da tradição, polemizando com Lutero contra a

ruptura que este promovia com a autoridade religiosa da Igreja.

Como mostrou Popkin, “o anti-intelectualismo generalizado de Erasmo e sua falta

de simpatia por discussões de teologia racional o levaram a sugerir um tipo de base cética

para permanecer na Igreja Católica.”16 Essa postura contrária às abstrações intelectualistas

dos teólogos, todavia, já estava presente desde os seus tempos de estudante na Universidade

de Paris, se repetindo no Enquiridion, no Elogio da Loucura, em alguns de seus Colóquios

e nas Paráfrases ao Evangelho de São João. No Ensaio sobre o Livre Arbítrio, por sua vez,

onde ele manifestava de maneira mais explícita sua adesão ao ceticismo, utilizou-se de

maneira curiosa desses argumentos para defender a tradição da ousadia e das precipitações

da crítica luterana. Afirmava que em vez de passar toda a eternidade na busca pela

resolução dessas infindáveis questões ele preferiria fazer como os céticos e suspender o

juízo17, inclusive no que dizia respeito à iluminação espiritual de Lutero, pela qual o

reformador julgava ter encontrado o sentido genuíno da mensagem divina e pela qual

promovia o rompimento com a Igreja. Erasmo preferia suspender o juízo especialmente em

relação ao que fosse permitido pela autoridade das Escrituras e pelos decretos da Igreja, aos

quais ele se dizia disposto a se submeter em respeito ao consenso sem procurar

compreender suas razões, já que sabia de antemão que enquanto homem ele não poderia

oferecer por si mesmo razões melhores para outra interpretação. Diz Erasmo no Ensaio

sobre o Livre Arbítrio que:

Eu tenho tão pouco prazer em dogmatizar que eu me colocarei ao lado dos céticos toda vez que eu for autorizado pela autoridade inviolável da Santa Escritura e pelas decisões da Igreja, as quais eu submeto sempre voluntariamente o meu sentimento, ainda que eu compreenda ou não as razões do que ela ordena. E essa disposição de espírito me parece ser preferível a de outros, que, obstinadamente ligados às suas opiniões não se permitem delas se afastar no que quer que seja, deturpando violentamente todos os textos das Escrituras a serviço da tese que eles abraçam.18 (grifo meu)

16 Popkin, Richard. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 30. 17 18 “Et d’autre part, j’ai si peu de plaisir à dogmatiser que je me rangerais plutôt du cotê des sceptiques, chaque fois que j’y serai autorisé par l’autorité inviolable de la Sainte Ecriture et par les décisions de l’Eglise auxquelles je soumets toujours trè volontiers mon sentiment, que je comprenne ou non les raisons de ce qu’elle ordonne. Et cette disposition d’esprit me paraît préférable à celle de certains autres, qui, opiniâtremente attachés à leur sens ne permettent pas qu’on s’en écarte en quoi que cet soit, et qui détournent

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Para ele, frente à incapacidade humana de discernir com certeza o falso do

verdadeiro diante das passagens obscuras da Bíblia e das possibilidades por vezes

contraditórias de interpretá-las, devia-se acatar as decisões da Igreja que tradicionalmente

se responsabilizava por essas questões, como ele sustenta no fragmento abaixo:

Encontram-se, com efeito, nas Santas Escrituras, alguns santuários aonde Deus não quis que nós entrássemos, se nós tentamos penetrá-los, somos cercados de trevas, que se tornam mais espessas à medida em que avançamos: assim, somos levados a reconhecer a majestade da sabedoria divina e a fraqueza do espírito humano.19

Indignado com a emergência da discórdia na cristandade a partir da importância

concedida às Escrituras, que só deveria servir para desenvolver a inclinação do espírito

humano para o bem, para a paz e para a harmonia, o humanista lembrava a Lutero em sua

obra que interpretar o texto bíblico não era tão fácil como ele imaginava. Para Erasmo, que

desprezava a ardorosa convicção luterana de uma iluminação divina do espírito, era

importante reiterar sempre o caráter inalcançável da essência dos mistérios divinos para

evitar a emergência do que considerava tão só obstinação por parte de alguns, cujo apreço

excessivo à própria opinião, no plano da interioridade, só poderia gerar conflitos na

cristandade.

Para Lutero por sua vez, respondendo às críticas erasmianas em seu De servo

Arbitrio, de 1525, era inadimissível levantar problemas céticos em questões relativas à fé,

luz de Deus para os homens. Apelava por isso, plenamente à sua consciência individual

como regra da fé e como critério de validade da sua interpretação da palavra de Deus, pois,

para ele, a natureza humana era depositária da verdade última das Escrituras, mediante os

desígnios obscuros da graça divina, que concedia sua luz ao espírito.20 Da perspectiva

violemment tous les textes de l’Ecriture au service de la thèse qu’is ont embrassé une fois pour toutes.” Erasme. “Essai sur le Libre Arbitre” In La Philosophie Chrétienne. Introduction, traduction et notes par Pierre Mesnard. Paris: Vrin, 1970, a4, p. 204. 19 “Il se trouve en effet, dans les Saintes Ecritures qualques sanctuaires où Dieu n’a pas voulu que nous entrions trop avant, et si nous esayons d’y pénétrer, nous sommes environnés de ténèbres d’autant plus épaisses que nous nous y enfaçons davantage: ainsi sommes-nous amenés à reconnâitre et l’insondable majesté de la Sagesse divine et la faiblesse de l’esprit humain.” Erasmo, Idem, p. 205. 20 Segundo Danilo Marcondes, esta experiência da consciência individual, que se opõe à confiança dos católicos nos dogmas e concílios, “consiste em uma experiência de caráter intuitivo, e não de um raciocínio demonstrativo”. Neste aspecto, a doutrina da iluminação que Lutero desenvolve tem como base Santo Agostinho, que faz um apelo à luz natural tendo a vista a condição decaída do homem. A única forma então do homem se elevar acima do pecado seria pela graça, na medida em que nossa mente possui uma centelha do

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luterana, portanto, a tradição tendia a solidificar erros, havendo por essa razão a

necessidade do homem se voltar para o seu interior para descobrir a centelha do amor de

Deus que lhe concedia a visão da verdade autêntica de sua mensagem. Fundamentalmente,

na visão luterana, contudo, o homem só poderia adquirir este conhecimento pela ação do

fator externo da graça onipotente, por isso sua condenação a Pelágio, no Servo Arbítrio, que

polemizara com St. Agostinho nos tempos da consolidação do pensamento cristão, ser tão

incisiva, já que para Pelágio, o homem poderia ser salvo mediante suas próprias ações neste

mundo. De acordo com Lutero, inspirado na noção agostiniana da graça, o homem,

definitivamente decaído em sua natureza não podia jamais contribuir para sua salvação. Seu

ataque ao pelagianismo se orientava contra a sobrevivência de seus traços no cristianismo

humanista de Erasmo, que louvava a determinação da vontade humana em seguir os

preceitos e contribuir para a neutralização do caráter decaído de sua natureza.

Afirmando as capacidades de ação do homem neste mundo, diante de Lutero, o

humanista contestava fortemente em suas bases o excesso de interioridade da fé reformada,

em que a própria opinião se transformava em certeza e dogma a ser sustentado e obedecido

externamente. Atentava para os perigos do solipsismo, inerentes aos princípios da nova

religião, pois se o cristão pusesse tal convicção e certeza sobre a validade de suas próprias

opiniões, ou seja, como provindas da transcendência da luz divina, isso implicaria numa

ruptura radical e definitiva com os valores e questões do mundo externo que lhe cercavam.

Erasmo desenvolve este problema em seu Ensaio sobre o livre Arbítrio, ressaltando que,

estimularmos a idéia de que o critério da verdade da palavra divina estaria no plano da

subjetividade, contribuiria extensamente para o conflito na cristandade, sendo que, dada as

insuficiências naturais da razão humana, uns não poderiam na verdade provar mais do que

os outros, na perspectiva de Erasmo, a presença da certeza da luz divina, como base de suas

posições.

As dificuldades da leitura e interpretação bíblica, Erasmo já apontara em diversos

momentos, e sob diversas formas. A partir delas, levantava a questão seguinte contra os fogo divino já que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. “Este é o caráter básico do lux rationalium mentium agostiniana (De Trinitate, IV, I, 3), que pode ser vista como uma versão cristã da anamnese platônica. Durante o pensamento medieval há todo um contexto em que a doutrina da iluminação se estabelece como solução para o problema do conhecimento, mantendo que a mente humana possui em seu interior uma capacidade de ‘ver’ a essência das coisas, tornada possível pela origem, em última instância

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fundamentos da fé luterana, que considerava bastante frágeis: por que razão a consciência

de cada um deveria ser mais confiável do que aquilo que é dito pelo consenso? Tendo em

vista o problema em se estabelecer o que as Escrituras querem de fato dizer sobre os

mistérios divinos, por que não aceitar o que é dito pela Igreja sobre cada uma dessas

questões insolúveis, e beneficiar a cristandade pela permanência da paz e do consenso?

“Por que iniciar uma controvérsia de tais dimensões sobre algo que não podemos saber com

certeza?”21 Já havia manifestado anteriormente seu descontentamento com a presunção dos

intelectuais e dos teólogos em sua busca pela certeza, que os distanciava do ponto mais

essencial do cristianismo - a simples atitude cristã de simplicidade e humildade- mas sua

postura cética seria efetivamente elaborada como justificativa para a regra da fé, na

controvérsia com Lutero.

Uma vez que se sentia incapaz de resolver problemas teológicos complexos como

das relações entre graça e livre-arbítrio, e nem tampouco era esse o interesse central de sua

fé, ele preferia simplesmente aceitar as proposições da instituição que durante séculos

tentou responder a essa e outras dúvidas estabelecendo em torno de seus postulados a

concórdia entre os cristãos. Acreditamos, portanto, como dissemos ao final do primeiro

capítulo, que o critério de verdade aceito por Erasmo advém da sua base aristotélica e

eminentemente prática - sobretudo como está exposta no livro III da Política -

principalmente no que tange ao consenso, pois, se não há certeza na opinião individual, o

mais correto seria adotar o que é aceito pelo senso comum, já que o juízo da multidão tem

maior validade do que o que é defendido por apenas uma pessoa.

Em seus princípios, a crítica da razão científica realizada por Erasmo nessas obras

atestam a influência do ceticismo moderno em seu pensamento.22 Este ceticismo em relação

divina, desta visão.” Portanto, para este autor, é certamente este contexto que influencia a regra da fé de Lutero. Marcondes S. Filho, Danilo, op. cit., pp. 7-8. 21 Erasmo, De Libero Arbitrio, a2-a3. 22 O ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo e formou pelo menos duas concepções distintas relativas ao conhecimento. A primeira conhecida como ceticismo acadêmico (por ser formulada na Academia de Platão no século III a.C.) estabelecia que nenhuma forma de conhecimento das essências do real era possível. Arcesilau (315-241 a.C.) e Carnéades (213-129 a.C.) são seus principais teóricos, e se voltaram sobretudo para o questionamento das pretensões filosóficas dos estóicos, mostrando que nada na natureza é passível de ser realmente conhecido em sua verdade própria. Diante da impossibilidade da elaboração de premissas que alcancem uma certeza absoluta, alguns céticos desenvolveram o argumento de que o melhor tipo de informação que podemos obter é apenas o provável, e, por essa razão, deve ser analisada de acordo com a probabilidade. O probabilismo de Carnéades influenciou Cícero, Diógenes Laércio e Santo Agostinho, sendo a retomada dos textos destes autores na Renascença o que tornou viável a transmissão do saber cético sobretudo no fim do século XV e no início do século XVI, enquanto a divulgação das Hipotiposes Pirrônicas

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aos poderes da razão é considerado por Popkin uma das forças propulsoras do surgimento

da filosofia moderna, pois, segundo ele, as principais questões filosóficas, científicas e

mesmo teológicas da modernidade não podem ser entendidas sem que levemos em

consideração a influência dos argumentos céticos nesse período.23 Contudo, como diz o

próprio autor, a escolha de Erasmo e a crise intelectual gerada pela Reforma Protestante no

século XVI, como ponto de partida de sua análise do ceticismo moderno, não quer dizer

que este tenha sido o primeiro ou o único humanista a reintroduzir o ceticismo neste

período, podendo este fato ter ocorrido anteriormente, como já vimos no caso de Nicolau de

Cusa. Nem tampouco que a sua breve análise sobre o ceticismo erasmiano tenha esgotado o

tratamento deste tema, o que deixa espaço para o surgimento de outras análises; que é o que

tentaremos fazer brevemente.

De uma forma geral os analistas têm dedicado pouco interesse à análise do

ceticismo em autores anteriores ao século XVI – como Valla, Pontano, Salutati e Nicolau

de Cusa.24 Em relação à análise do ceticismo em Erasmo são ainda mais escassos os

trabalhos, sendo que para nós é bastante importante perceber seus traços, para que

possamos avançar sobre o exame dos princípios que podem estar subjacentes à sua

de Sexto Empírico são traduzidas para o latim e editadas na França em meados do século XVI. A segunda, denominada de ceticismo pirrônico, cujo grande representante na modernidade é Montaigne, afirmava que não há evidência adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento é ou não possível e que, portanto, devemos suspender o juízo acerca de todas as questões relativas ao conhecimento. Este estado mental levaria então à ataraxia, ou seja, a quietude, a imperturbabilidade, quando o cético não mais se preocupa com questões que transcendam as aparências. O ceticismo pirrônico recebe esta denominação por pretender retomar as idéia de Pirro de Élis, que viveu no século IV a.C. e nada escreveu. Timão de Filonte, Enesidemo, Agripa e Sexto Empírico – autor das Hipotiposes Pirrônicas – são os principais pensadores céticos pirrônicos conhecidos.

Tratar das diferenças e semelhanças entre estas duas correntes céticas é um objetivo que não nos cabe aqui, porque o que nos interessa de fato é a sua afirmação mais geral de que toda a pretensão ao conhecimento do não evidente é problemática, pois, qual seria o critério para se chegar a ele? O cético, portanto, ao pensar a realidade como provisória, mutável, de acordo com os padrões da percepção imediata e empírica dos homens, se opunha fundamentalmente às doutrinas dogmáticas, como a platônica ou a estóica, por exemplo. O período de que tratamos é particularmente relevante no que diz respeito à constituição do ceticismo moderno, vários fatores possibilitaram isso, tais como a crise da escolástica ao final do século XIV; o humanismo Renascentista (acentuando a ruptura com a escolástica e sobretudo com a Metafísica e a ciência aristotélicas) e recuperando na Antigüidade clássica padrões éticos, políticos e estéticos; e a Reforma Protestante, que provoca uma profunda ruptura no interior da religião cristã. Sobre o ceticismo e, sobretudo, em relação as diferenças e semelhanças entre as concepções acadêmicas e pirrônicas ver o excelente trabalho de Bolzani Filho, Roberto. Acadêmicos Versus Pirrônicos. Tese do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo. USP: São Paulo, 2003. 23 Popkin, Richard, op. cit., prefácio. 24 A obra de Nicolau de Cusa intitulada a Douta Ignorância empregou diversos argumentos céticos visando minar a confiança na abordagem racional do conhecimento religioso e de sua verdade, já em meados do século XV, em benefício de uma renovação da fé cristã. Cf.: Cassirer, Ernest, op. cit., pp. 13-78.

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valorização do discurso persuasivo e de promoção de uma nova forma de devoção25. Estas

questões nos chamaram a atenção para pensarmos o próprio desenrolar do pensamento

erasmiano, pois, ao adentrarmos na análise de várias das suas obras percebemos que a sua

vinculação ao ceticismo - principalmente acadêmico de Carnéades, por exemplo, que

afirma o probabilismo - se faz presente de forma explícita, como citamos no começo deste

item, e não apenas no Ensaio sobre o Livre Arbítrio, como aponta Popkin. A partir de uma

visão mais geral de sua obras, revela-se o cerne da postura cética de Erasmo, ligado

essencialmente aos interesses da persuasão de sua causa, pois, se no Ensaio sobre o Livre

Arbitrio ele se mantém ligado à tradição para combater o argumento luterano, na maior

parte das suas obras ele expressa sua descrença quanto à validade de muitos de seus

elementos, na condenação de crenças e hábitos na vida dos cristãos, mantidos erroneamente

como sagrados. Em ambos os casos, apesar da aparente ambigüidade de suas posições,

trata-se do esforço pela defesa de um mesmo ideal, porém em diferentes circunstâncias. A

defesa cética da tradição no contexto específico da controvérsia com Lutero, não contradiz,

mas antes se adequa melhor aos princípios de seu cristianismo autêntico e interiorizado,

centrado na pureza dos preceitos e na imitação da conduta cristã mais simples, que aceita a

tradição e o consenso dum ponto de vista prático, mas não adere a eles como dogma.

Embora Erasmo não tenha sido tão radical quanto Lutero, ao propor uma ruptura

definitiva com a Igreja, recusava-se terminantemente em praticamente todos os seus

trabalhos (senão em todos eles) a adesão à noção de uma verdade dogmática como base da

fé. Uma declaração explícita da repetição destes argumentos é dada por Erasmo em uma

carta dirigida à Martim Dorpius, em 1515, em defesa do Elogio da Loucura das

contundentes críticas dos teólogos. Nesta carta o humanista ressalta logo nas primeiras

páginas a semelhança entre as temáticas tratadas por ele no Enquiridion, publicado em

1503, no Elogio da Loucura, publicado em 1511, e no Manual para um Príncipe Cristão26,

publicado em 1516, dizendo que:

25 Destacamos aqui os trabalhos de R. Popkin, Victoria Kann, R. Waswo e Danilo Marcondes, os quais faremos recorrentes referências ao longo deste trabalho. 26 Nesta obra Erasmo não apenas adianta alguns preceitos que posteriormente serão desenvolvidas pelos pensadores políticos do final do século XVI, como também retoma várias idéias que já haviam sido tratadas no Enquiridon. Cf.: Erasmo de Rotterdam. Educacion del Principe Cristiano. Madri: Biblioteca de autores cristianos, 1995.

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Não tive no Elogio da Loucura objetivo diferente do de meus outros escritos, embora por uma via diferente. No Manual do Soldado Cristão, tratei simplesmente de expor a vida cristã. No livrinho sobre a Educação de um Príncipe, expus abertamente os princípios com que convém que um príncipe seja instruído. No Panegírico, sob o véu do elogio, tratei obliquamente do mesmo assunto, que já havia tratado abertamente no outro. E as idéias expressas na Loucura, não são nada diferentes das que estavam expressas no Manual, mas escritas em brumas.27

Nestas três obras citadas ele destaca veementemente a necessidade de se

desenvolver novos valores para a devoção de seu tempo, persuadindo seus leitores a

seguirem os princípios cultivados por Cristo de bondade, honestidade, humildade e amor ao

próximo. O que percebemos à medida que estendemos a análise a um número maior de

obras é a presença recorrente e de maneiras diversas de um mesmo argumento central: a

crítica à primazia da razão teológica e científica como critério de fé. Este ceticismo em

relação à ciência, que passa a ser considerada uma atividade vã pois o conhecimento do

mundo natural não é possível devido aos limites e falhas de nossa racionalidade, é

denominado de solução fideísta.28A realidade para Erasmo é uma experiência não evidente,

provisória e mutável, porque concerne antes de tudo à vida prática e imediata dos homens e

não à infinitude inalcançável de Deus.

O ceticismo renascentista seria então a base teórica que sustenta a valorização da

linguagem como alternativa ao dogmatismo das doutrinas filosóficas e, sobretudo, das

pretensões escolásticas em provar a existência de Deus e em dominar tudo o que é dito a

respeito das Escrituras sem admitir qualquer tipo de contestação aos seus dogmas. A crítica

dos céticos, como afirma o Professor Danilo Marcondes, é voltada sobretudo “contra o

apelo dos racionalistas aos poderes do intelecto, desde a luz natural até a iluminação

divina” 29, que garantiam o conhecimento do real em sua essência. Esta proposição central

para o realismo epistemológico foi profundamente combatido pelos céticos na Antigüidade

e também na Renascença, tendo em vista a ampla recuperação neste período do ceticismo

acadêmico e das Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico. Mas, se alguns pensadores

27 Carta de Erasmo ao amigo Martim Dorpius em resposta as críticas que este teólogo teria feito a publicação do Elogio da Loucura. Dorpius fez-se o porta-voz dos teólogos do Colégio de Louvain, deixando claro seu descontentamento em relação as acusações erasmianas contra a classe clerical. Cf.: Erasmo de Rotterdam. Elogio da Loucura. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 115. 28 Popkin, R., op. cit., pp. 28-30. 29 Souza Filho, Danilo Marcondes. O Argumento do Criador e o Ceticismo Moderno, pp. 1-25.

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retomam os princípios céticos condenando a razão o que eles colocam no lugar para

substituí-la? Erasmo combate o pensamento racional substituindo-o pela força da

eloqüência cristã, que bem utilizada pelo orador poderia conter “as deformações

introduzidas na vida espiritual dos cristãos”. Um dos argumentos centrais dessa tese é

mostrar como o ataque cético às pretensões racionalistas ao conhecimento da verdade teve

um papel fundamental na busca da linguagem entre os humanistas cristãos como alternativa

à razão para se alcançar a verdade. A verdade para Erasmo, como dissemos até aqui, não é

algo imanente ou oferecido aos homens pela divindade, mas, pelo contrário, é alcançada a

partir da ação investigativa do homem neste mundo, ou seja, da pesquisa filológica e

retórica do texto bíblico, tal como propôs inicialmente Valla. A preocupação humanista

central com a linguagem deriva do fato dela ser entendida na Renascença como meio

inevitável e mediador de toda a experiência humana.

Por essa razão, a única forma de se apreender realmente os conteúdos de tudo o que

foi escrito no passado é através do conhecimento das línguas originais, em sua qualidade de

criações do homem no tempo e no domínio da vida prática. Portanto, o conhecimento das

Escrituras (essencial para a teologia) implica também, como qualquer outro texto, o

conhecimento das línguas. Profetas e poetas bíblicos podem ter pregado apenas por

inspiração, mas os intérpretes precisam de erudição secular, sofisticação retórica e

inteligência para compreender a mensagem divina. Além disso, podemos acrescentar o fato

de que as Escrituras foram produzidas por homens tão falíveis quanto nós, sendo muito

provável que em algum momento eles possam ter compreendido mal o sentido da

mensagem divina ou cometido erros lingüísticos, comuns a qualquer escritor em qualquer

momento histórico. Deste modo, a necessidade de detectar e corrigir esses erros é uma

premissa fundamental aos humanistas cristãos do século XVI, pois disso depende o

renascimento de uma nova religião voltada para o cultivo exemplar da imagem de Cristo.

Antes de Erasmo escrever a sua primeira versão do Novo Testamento em 1516, obra

em que analisa a natureza fluida do significado das palavras ao longo do tempo, ele já havia

desenvolvido o seu interesse pela pureza das línguas em seu De Copia, de 1512, em que

ensina a bem escrever sob os moldes de Cícero e Quintiliano. A centralidade da questão da

linguagem, de seu aprendizado e de sua arte, é mais que patente nesta obra, pela sua própria

forma tratadística, em que procura despertar leitores, alunos ou futuros mestres para a

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importância desta forma de saber para sua formação ideal. Por isso escolhemos o De Copia

para uma análise mais aprofundada no capítulo 4, expressão do novo significado que a

linguagem adquiria na fé erasmiana. Assim, teremos a ocasião de destacar através da

análise do texto como essa escolha da linguagem (retórica) é associada na Renascença a um

ideal de um cristianismo puro e interiorizado, que emerge também como uma das

conseqüências da crítica da razão.

A representação lingüística torna-se, neste contexto, como bem aponta o Professor

Danilo Marcondes, “um importante meio para se evitar alguns dos principais problemas

que afetam a representação mental e a pretensão ao conhecimento do real por meio dos

poderes do intelecto.”30 Para tanto, salienta o autor a importância crucial de um argumento

tomado pelo ceticismo moderno: o argumento do conhecimento do criador. Para os

antigos, orientados pela primazia da contemplação da verdade no universo das formas

perfeitas de Platão, localizado no âmbito ideal do eterno, o conhecimento criador do

homem (como artífice) era pouco valorizado por situar-se no domínio contingente do

tempo. Os produtos de sua criação não eram tidos então mais do que como cópias

imperfeitas da realidade a que pretendiam dar corpo. Assim nos dizia Platão no Livro X da

República, definindo a natureza da criação humana face ao mundo perfeito e eterno das

idéias das coisas, mundo das essências a ser contemplado pela razão: “o criador de

fantasmas, o imitador, segundo dissemos, nada entende da realidade, mas só da

aparência.”31

A exaltação do conhecimento próprio às artes e a valorização de um sentido positivo

da criação humana é própria do mundo cristão. Se o demiurgo que Platão nos apresenta no

Timeu32, construía o mundo a partir da contemplação das formas eternas, tal como um

artífice, o Deus cristão criava todo o universo a partir do nada, concedendo uma centelha

deste seu atributo próprio ao espírito humano. Como já tivemos a oportunidade de ver, este

ideário estava na base da noção de Dignidade Humana proposta por Pico, princípio do

culto humanista às capacidades criativas da razão, pelo qual, o jovem discípulo de Marsílio

30 Souza Filho, Danilo Marcondes, op. cit., p. 2. 31 Platão, A República, livro X, 601c. 32 “Ora, se este mundo é belo e for bom seu construtor, sem dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno; e se for o que nem se poderá mencionar, no modelo sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós é mais do que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno; entre as coisas criadas não há nada de mais belo que o mundo, sendo seu autor a melhor das causas.” Platão, Timeu, IV, 29 a.

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Ficino postulava a aproximação direta entre Deus e o homem. Mas, no âmbito mesmo das

reflexões do humanismo, este argumento também seria desenvolvido de maneira cética e

restritiva, ou seja, para destacar a distância intransponível entre a divindade e a natureza do

espírito humano, fornecendo as bases do fideísmo. Assim, no cerne do cristianismo de

Nicolau de Cusa, por exemplo, estava o exame das disparidades insolúveis entre as criações

do homem e a natureza infinita de Deus. Neste registro, o argumento do conhecimento do

criador ganhava um sentido limitador, pois, se era verdade que o homem conheceria

plenamente tudo aquilo que fosse capaz de criar, não poderia acontecer por outro lado que

ele pudesse conhecer a essência das coisas que não criara e, sobretudo, a essência divina.

Segundo o Professor Danilo Marcondes:

O conhecimento humano em seu esforço limitado de compreender a realidade pode no máximo produzir conceitos e representações, sendo incapaz de alcançar a realidade em si mesma. Não conhecemos a realidade tal como ela é, mas apenas como a representamos. Como Deus é o criador da natureza, apenas Deus pode conhecê-la enquanto tal. O conhecimento humano, se é que merece este nome, está restrito a meras aparências, aos fenômenos, e não pode ser considerado verdadeiro, demonstrável ou fundamentado em nenhum sentido conclusivo.33

Também Erasmo, como vimos na citação das Paráfrases ao Evangelho de São

João34, com que iniciamos nossa discussão deste capítulo, ressaltou a distância entre o

homem e a essência da mensagem divina, fundando as bases de sua religiosidade numa fé

que se traduzia pelos meios humanos e por suas criações, âmbito restrito do exercício de

seu conhecimento, cuja moralidade se situava justamente na consciência de seus próprios

limites. Se a linguagem dos homens só poderia garantir no máximo que vislumbrássemos

as realidades divinas como num sonho e num nevoeiro, poderia ser efetiva por outro lado

para o conhecimento da simplicidade dos preceitos a serem vivenciados plenamente pelos

cristãos.

Este argumento cético se funda sobretudo na crítica à concepção aristotélica de

ciência, segundo a qual, o homem é capaz de conhecer o ser como ser35, ou seja, de

alcançar através dos artifícios de sua razão, a estrutura da realidade das coisas, tal como

33 Souza Filho, Danilo Marcondes, op. cit., p. 16. 34 Erasme. “Paraphrase à l’Évangile de Jean” In Oeuvres Choisies, p. 611. 35 Aristóteles, Metafísica, IV.1, 1004a.

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elas são em si mesmas. Para pensadores como Cusa e Erasmo, ao contrário, o homem não

podia conhecer as coisas das quais não era causa eficiente, e nem muito menos conhecer

qual a natureza das causas eficientes das coisas que não criara. Neste sentido, a plena

sabedoria das essências do mundo natural pertencia só a Deus. Devido a esta limitação

inerente ao conhecimento humano este argumento postulava, portanto, que os homens só

podiam conhecer a realidade essencial das coisas de que fosse causa eficiente. Este,

portanto, seria o sentido negativo deste argumento, presente em Nicolau de Cusa e em

Erasmo, como dissemos, em sua Lingua, Paráfrases ao Evangelho de São João, em seu

colóquio Silenos de Alcebíades e no Ensaio sobre o Livre Arbítrio.

Se no âmbito do entusiasmo de Pico pelos dotes criativos da razão “a arte parece

ser assim o campo por excelência em que o homem ultrapassa seus limites, podendo

produzir ou criar algo.”36, no que dizia respeito à fé de Erasmo, por outro lado, a aceitação

do homem de sua própria insuficiência e dos limites de sua razão, era um importante

preceito moral, inerente à própria dissociação entre scientia e sapientia, enunciada

anteriormente por Cusa. Mas, o apreço à criação humana, ainda que restrito à sua própria

condição natural imediata, também se fazia presente em seu pensamento, e de maneira

fundamental. Neste contexto, é à linguagem, arte da comunicação por excelência, que

Erasmo dedica sua atenção, como meio de, através da persuasão, inspirar nos espíritos uma

fé viva, e que impulsionasse o livre arbítrio dos homens para a busca da regeneração da

essência genuína de sua natureza à semelhança da natureza divina de Cristo. Nesse sentido,

a ars rhetorica legada a nós pelos antigos, uma das criações mais importantes do mundo

greco-romano, assume na Renascença o papel fundamental de regulamentar o acesso à

linguagem divina das Escrituras, pois com “pés descalços”, como diz o humanista, seria

impossível ao homem dela sequer se aproximar. Para tanto, para adentrarmos o domínio

deste elevado saber é preciso antes, o homem se ater aos processos da sua própria criação,

permanecendo dentro dos limites prescritos por Deus à sua compreensão: o estudo das

línguas antigas, da gramática e dos principais textos antigos. Por isso, ainda que Erasmo

não expressasse explicitamente em suas obras, um sentido positivo mais forte do argumento

do conhecimento do criador, nos moldes de Pico, por conta da essência de sua fé situar-se

na simplicidade e na natureza, ele é parte essencial de seu ideário, do qual procuramos

36 Idem, p. 13.

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destacar alguns traços importantes aqui. O sentido restritivo com que Erasmo define a

linguagem humana em relação à onipotência divina não o impediu, portanto, de conceder a

ela, um papel central em sua religiosidade, sobretudo naquelas obras onde o que está em

jogo é a sua busca pelo desenvolvimento da natureza intelectual dos homens e a sua defesa

da linguagem retórica; como no Ratio studii e no De copia que veremos no capítulo

seguinte.

Assim, com a desestabilização da noção de conhecimento absoluto e definitivo

sobre a totalidade do real, no que dizia respeito a Deus e às coisas da natureza, foram duas

de um modo geral as conclusões relevantes a que chegaram os humanistas. A primeira

delas era que a ciência deveria ceder lugar à fé centrada na sapientia adequada aos

pressupostos cristãos mais simples. A segunda conclusão postulava que o homem deveria

dedicar-se à investigação do mundo humano e das suas criações na política, na cultura, na

história e na linguagem, pois estas sim poderiam ser seu objeto de conhecimento, pelas

quais poderia tornar-se útil aos seus semelhantes, contribuindo para a vivificação do

sentimento cristão dos homens em sua vida imediata no mundo. Portanto, “a verdadeira

ciência é a ciência da realidade humana, desde a retórica e a filologia, até a política e a

moral.37” Podemos entender melhor este argumento cético se lembrarmos das várias

assertivas de Valla e de Erasmo tanto em relação a impossibilidade do total conhecimento

das Escrituras, quanto da busca por um significado mais próximo do real a partir da sua

interpretação. Por essa razão, estes dois humanistas manifestaram ao longo de seus

trabalhos uma insuperável devoção pelo aprendizado do latim correto, pois apenas assim o

homem ao desenvolver a sua criação poderia aproximar-se da criação divina. Os esforços

de Erasmo no De copia, no Ratio studdi e nas Anotações ao Velho Testamento estão

claramente direcionados para esse sentido, ou seja, para a purificação da palavra.

Trataremos de ambos os argumentos, pois nosso objetivo é mostrar que através da

negação da razão Erasmo justifica e ressalta a importância da linguagem. Vejamos então o

primeiro argumento para a crítica da razão: o argumento da fé, contrário aos preceitos

científicos da escolástica, e como Erasmo dialoga com essa questão.

37 Idem, p. 17.

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4.2) O argumento da fé no âmbito da eloqüência de Erasmo

Diferentemente dos humanistas italianos que se dedicaram ao desenvolvimento do

individualismo, ao elogio da liberdade, a instauração e a conservação do modelo

republicano e retomada dos exemplos da Antigüidade Clássica, os humanistas do Norte

enfatizaram em seus textos questões muito distantes daquelas que preocupavam

diretamente os peninsulares; ainda que tenham sido profundamente influenciados pelo

movimento de renovação das letras por eles iniciado.38

Vivendo sob um regime monárquico, num mundo de rígidas hierarquias, jamais

entre os humanistas do Norte a virtú se associaria ao entusiasmo pela liberdade cívica, e

menos ainda, se desprenderia de um ideal de liberdade natural do homem. Melhor dizendo,

aqui, a liberdade só se exerce e tem pleno sentido se estiver inscrita no âmbito de uma

ordem natural, estando sempre ligada a uma realização de ordem moral. O ideal de

liberdade de Erasmo, assim como de outros humanistas cristãos, como John Colet, Thomas

More e Budé, corresponde a uma conduta moral e ética, condizente com a filosofia de

Cristo. Portanto, o que seria realmente particular e específico a estes humanistas seria o 38 Skinner estabelece algumas continuidades e descontinuidades entre o humanismo italiano e o humanismo transalpino, destacando como uma das principais influências da Itália sobre o Norte a escrita dos “espelhos de príncipes”, cujo objetivo maior era desenvolver o vínculo entre o cultivo do conhecimento e o estabelecimento de governos sadios. No Cortesão, por exemplo, Castiglione retoma o ideal ciceroniano de culto as virtudes (anteriormente aplicado nas cidades-repúblicas italianas), de compromisso da retórica com o bem público e da valorização da educação como condição essencial para a elevação humana. Segundo ele: "esforçar-me-ia por mostrar-lhe quanto as letras, que foram de fato concedidas por Deus aos homens como um dom supremo, são úteis e necessárias à nossa vida e dignidade; não me faltariam exemplos de tantos excelentes capitães antigos, os quais somaram o ornamento das letras à virtude das armas. (...) Pretendo que nas letras o cortesão seja mais que medianamente erudito, pelo menos nestes estudos que chamamos de humanidades, e não somente da língua latina, mas também da grega tenha conhecimentos para as muitas e várias coisas que nelas estão divinamente escritas. Seja versado nos poetas e não menos nos oradores e historiadores, e exercitado também em escrever versos e prosa, especialmente nesta nossa língua vulgar.”� O cortesão, assumindo a função de educador, pois tais estudos o deixariam preparado para falar seguramente com qualquer um, deveria usar de todos os artifícios para convencer o príncipe da importância das virtudes para a manutenção de um bom governo. Também nos países do norte da Europa foram publicados vários livros de aconselhamento destinados já não apenas aos reis e aos príncipes, mas também a seus cortesãos, nobres, conselheiros e magistrados, permanecendo aceita a tão difundida convicção humanista de que as ligações entre o conhecimento e o governo sadios são muito fortes. Com esse objetivo foram produzidos tratados educacionais bem sistematizados que detalhavam ao máximo a espécie de formação nos studia humanitatis que deveria ser dada àqueles que mais tarde poderiam ocupar posição de destaque nos negócios do governo - como o Educacion del principe cristiano, de Erasmo (1516), o Da educação de Juan Luis Vives, A boa educação dos meninos de Sadoleto (1534) e O mestre-escola de Thomas Ascham. Ver: Skinner,

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apreço e o cultivo em suas obras de uma espiritualidade e de uma fé autenticamente cristãs

que tem esperança e confiança irrestrita nos poderes do Verbo. Todos vêem no logos divino

uma medicina infalível não apenas para a alma, mas também para o corpo social e político.

Trata-se, antes de tudo, como diz Erasmo em Paraclesis39 (publicada como uma introdução

à tradução do Novo Testamento, de 1516) de compreender e de apreender para encarnar as

coisas que são apreendidas e compreendidas. Segundo ele, muitos homens cuidam

ardorosamente das mais diversas filosofias (platônica, acadêmica, estóica, peripatética,

epicurista) se dedicando a conhecer profundamente cada um dos dogmas da sua seita

enquanto a mais justa entre elas, a filosofia cristã, é posta de lado.

Então, por que nós não dedicamos uma tal energia ao nosso fundador e soberano, Cristo? (...) E nós, iniciados de tantas maneiras em Cristo, nós não consideraríamos odioso e desonroso ignorar seus dogmas, que proporcionam a todos a felicidade mais segura? (...) O que é certo é que apenas ele veio do céu para nos ensinar, apenas ele pode ensinar as verdades seguras, pois ele é a sabedoria eterna, apenas ele ensinou os caminhos do saber, sendo ele o autor único do saber dos homens, apenas ele colocou em prática tudo o que jamais foi ensinado, apenas ele pode proporcionar tudo o que foi prometido.40

Para Erasmo, é muito mais fácil apreender os princípios de uma sabedoria cristã do

que a doutrina de Aristóteles, com todos os comentários desmesurados e contraditórios dos

escolásticos. O humanista não condena aqueles que se dedicam ao estudo dos filósofos e de

Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno, caps. 8 e9, pp. 232-280. Cf. também Castiglione, op. cit., p. 66-67. 39 O projeto de editar o texto grego do Novo Testamento e com isso substituir a Vulgata, elaborando uma nova tradução mais fiel e com um latim mais correto, toma corpo ao final do século XV devido a influência de seu amigo John Colet, que o persuade a se dedicar intensamente ao estudo da língua grega que o humanista ainda não dominava. Além disso, Erasmo foi encorajado pela descoberta em Louvain, em 1504, das Anotações ao Novo Testamento escritas anos antes por Lorenzo Valla, que foram impressas no ano seguinte em Paris por Josse Bade. A primeira edição do Novo Testamento erasmiano que era composta pelo - texto grego, a tradução e as anotações, sendo precedidas pela Paraclesis, por dois textos introdutórios, Methodus e Apologia, assim como por duas cartas prefácio – foi publicada em Bâle, em fevereiro de 1516, sendo dedicado ao papa Leon X. Érasme. “Paraclesis” In Oeuvres Choisies, présentation, traduction et annotations de Jacques Chomarat, op. cit., pp. 446-462. Sobre esse texto ver também: Chantraine, Georges. “Mystère” et “Philosophie du Christ” selon Erasme. Étude de la lettre à Paul Volz et de la “Ratio verae theologiae.” Namur: Editions J. Duculot, 1971. 40 “Alors pourquoi ne montrons-nous pas encore bien davantage une tlle énergie pour notre fondateur et souverain, le Christ? (...) Et nous, initiés de tant de manières au Christi, nous ne considérons pas comme honteux et déshonorant d’ignorer ses dogmes qui procurent à tous le bonheur le plus assuré? (...) Ce qui est certain c’est que lui seul est venu du ciel pour enseigner des vérités assurées, puisqu’il est la sagesse éternelle, seul il a enseigné les voies du salut lui qui est l’auter unique du salut des hommes, seul il a mis en pratique tout ce qu’il a jamais enseigné, seul il peut procurer tout ce qu’il a promis.” Idem, pp. 448-449.

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suas doutrinas, mas desdenha daqueles que se detém tempo demais neste aprendizado

ignorando o saber mais elevado de todos, que é o de Cristo. “Deixa-te instruir, seja dócil a

sua Palavra”, é o que quer Erasmo. Assim poderás ser habitado por essa verdade e

transformado por ela. O saber filosófico para ele, portanto, não é suficiente nem tampouco

constitui um objetivo digno de se buscar. O que importa é a transformação, a revolução

interior que esse saber opera em nós. Por isso a função maior do predicador cristão, como

Erasmo nos mostra em seu Ecclesiastes, de 1535, é tornar conhecida e acessível as

Escrituras para que cada vez um número maior de fiéis possa ser transformado por essa

Palavra regeneradora. Não basta aos cristãos portanto decorarem meia dúzia de versículos

bíblicos ou uma centena de preces dedicadas a uma infinidade de santos se a verdade do

Criador não opera em nós interiormente.

Persuadir um avarento a desprezar o ouro, persuadir um soldado habituado

à pilhagem a ser benevolente com os pobres, persuadir o dono de muitas riquezas a tornar-se pobre por sua livre espontaneidade, afim de tornar-se rico de bens espirituais, este é o verdadeiro fruto de um trabalho considerável e longo.41

A verdadeira persuasão é aquela que atinge o coração, que faz o homem crer em

uma nova verdade, aquela da simplicidade cristã. Diferentemente do rei, por exemplo, que

faz uso da força para obrigar os homens a segui-lo e a respeitá-lo, é com a palavra e com a

eficácia de sua voz que o pregador pode “fazer voltar à vida as almas que durante tanto

tempo estiveram imersas em vícios. (...) Aqui o sábio encantador deve utilizar os mais

eficazes encantos para transformar a víbora em ovelha.”42

Tendo como objetivo a divulgação da Palavra divina, assim como de textos que

tornem mais fácil seu entendimento, certamente não foi por acaso que Erasmo dedicou

sucessivamente as Paraphrases ao Novo Testamento ao principais governantes da Europa

Ocidental no século XVI – como Carlos V, Ferdinando da Áustria, Henrique VIII,

Francisco I e Clemente VII. Ele sabia muito bem que precisaria atrair a simpatia, apoio e 41 “Persuader un avare de mépriser l’or, persuader un habitué du pillage d’être bienfisant envers les pauvres, enfim faire par la persuasion que celui qui auparavant était moins le possesseur de ses richesses qu’il n’était possédé par elles, devienne pauvre par sa libre e espontanéité, afin de devenir riche de biens spirituels, cela est vraiment le fruit d’un travail considérable et long.” Erasme, “Ecclesiastes” In Oeuvres Choisies, 821F –822C, p. 979.

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proteção destes homens para que a sua filosofia cristã pudesse triunfar. Do mesmo modo,

talvez por esse motivo foram escritos neste período tantos textos destinados à educação do

príncipe, como o próprio Manual para um príncipe cristão43, de Erasmo, pois é necessário

primeiro educar a cabeça da sociedade (representada pelo príncipe), para só depois passar-

se ao resto do corpo, ou seja, a grande massa dos cidadãos. Para ele é fundamental formar

a essência de um bom governante, para que ele possa alcançar o mais alto grau de virtude

em sua forma mais pura e acabada. Portanto, através de seu exemplo o príncipe educaria

seus súditos. Para Erasmo e outros humanistas da Renascença, a busca da virtude se tornou

uma questão de grande significado religioso e moral, pois, se quem abraça as virtudes pode

ser considerado cristão, segue-se que um príncipe e um povo que colaborem para a

constituição de uma república autenticamente virtuosa, estarão atuando para a instituição de

um modo de vida genuinamente cristão. Essa é a esperança subjacente à exigência que

Erasmo faz nesta obra, de que todos os governantes e magistrados sejam íntegros em todas

as virtudes e se considerem nascidos para o bem público.

"Quem é o verdadeiro cristão?", pergunta Erasmo em seu Manual. "Não quem foi

batizado ou ungido, ou quem freqüenta a Igreja. Mas, antes, aquele que abraçou Cristo no

íntimo de seu coração, e que o imita em suas ações.44" Para o humanista, o importante em

ser cristão é cultivar o modo de vida proposto por Cristo, buscando-se um retorno à

natureza e à simplicidade do verdadeiro cristianismo. É esta crença no poder transformador

da Palavra que explica melhor a dimensão pedagógica e militante do Evangelismo.

Assimilar a palavra divina, acolhê-la e alojá-la em si, fazer-se, enfim, discípulo da

verdadeira filosofia cristã é o que propõe Erasmo em sua Paraclesis45. Somente por meio

dela o homem viveria de acordo com sua liberdade natural, mantendo-se longe do pecado e

do vício. Escutar essa Palavra, se esforçar para compreendê-la, servi-la e propagá-la, seja

pela pregação, seja pela edição de paráfrases, comentários ao texto bíblico ou traduções, foi

a tarefa a que se dedicaram muitos humanistas do século XVI.46 Nesta perspectiva, a

42 O pregador pode “il fait en sorte de ramener à la vie par as voix efficace les âmes depuis longtemps ensevelies dans les vices. (...) Ici le sage enchanteur doit utilizer des incantations efficaces pour transformer l’aspic en agneau.” Idem, p. 979. 43 Erasmo. Educacion del Principe Cristiano. Madri: Biblioteca de autores cristianos, 1995. 44 Idem, p. 153-154. 45 Érasme. “Paraclesis” In Oeuvres Choisies, pp. 446-462. 46 Sobre o papel de tradutor e editor de Erasmo que, juntamente com vários amigos seus, dedicou grande parte de seu tempo à publicação de textos clássicos, como os de Cícero, Sêneca e Luciano, de textos

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república ideal, a república verdadeiramente virtuosa era necessariamente cristã em sua

forma autêntica.

Por essa razão, as questões políticas amplamente debatidas na Itália são no Norte

substituídas em grande medida tanto pela difusão da palavra divina (em obras de cunho

devocional) quanto pelo combate ao mau uso da palavra feito pelos teólogos que omitem e

deturpam o sentido das Escrituras, surgindo daí uma literatura de inventivas e ataques que

logo iria florescer, com ferocidade ainda maior, graças aos protagonistas da Reforma

protestante. Críticas e sátiras à religiosidade católica, à ignorância popular e à corrupção

dos governos aparecem de forma recorrente no Elogio da Loucura de Erasmo, no

Gargantua de Rabelais e na Utopia de More.47

Convencido do poder da palavra Erasmo trata incansavelmente de questionar o

modo em que se encontrava a religiosidade de seu tempo, repetindo - ora com um tom mais

direto como no Enquiridion e no Manual para um príncipe cristão, ora com uma

argumentação mais metafórica e satírica, como no Elogio da Loucura - ser absurdo supor

que a essência do cristianismo se encontre em cerimônias e rituais cultivados pela Igreja

católica. Este tipo de devoção, segundo Erasmo:

Se não é dirigida a Cristo e se não se vê livre de toda consideração de interesses materiais não pode ser considerada como realmente cristã. Nem tampouco está muito longe da superstição daqueles que em outro tempo prometiam a Hércules a décima parte de seus bens esperando poder fazer-se ricos, ou ofereciam um galo a Esculápio para poder livrar-se de uma enfermidade, ou sacrificavam um touro a Netuno para poder fazer uma feliz viagem. (...) Eu, na verdade, não condeno tanto os que fazem essas coisas com uma ingênua superstição quanto aqueles que, em proveito próprio, praticam certas observâncias - que porventura sejam mais toleráveis - como se fossem da mais santa e alta devoção, ao mesmo tempo que para seu próprio interesse fomentam a ignorância do povo...48

modernos como o de Agricola, por exemplo, sobre o qual Lisa Jardine defende a tese de que ele tenha inserido parte de seu De Copia para cobrir partes perdidas do texto deste humanista, assim como na divulgação de textos que contemplassem seus objetivos de disseminar os ideais da filosofia cristã ver: Jardine, Lisa. Erasmus, Man of Letters. Princeton: Princeton University Press, 1995. 47 Thomas More denuncia a extravagância e o descaso da nobreza em priorizar seus interesses particulares às custas do bem comum, na medida em que tendo consigo uma "nuvem de lacaios e outro tanto de malandros de libré" contribui para o desemprego e a miséria entre os cidadãos. Da mesma forma o autor critica os proprietários rurais, e em especial aqueles que perceberam ser a criação de carneiros cada vez mais lucrativa do que a produção de alimentos, pois assim, "não deixam terra que possa ser cultivada; cercam todo pedaço para a pastagem, derrubando casas e mesmo aldeias.” More, Thomas. A Utopia. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Os pensadores), p. 230. 48 Erasmo. Enquiridion, op. cit., capítulo 8, regra 4.

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O Enquiridion foi escrito sob o entusiasmo ainda recente do descobrimento das

epístolas de São Paulo, sob a orientação de John Colet. Erasmo extraiu desta leitura a

confiança em uma divina renovação do homem através do amor, da caridade, da bondade,

da fraternidade, enfim, da aproximação cada vez mais íntima com os preceitos de uma

religiosidade orientada para seguir os passos do próprio Cristo e que, por isso, deveria

afastar-se do cerimonialismo cultivado pela Igreja Católica.

Seguindo a metáfora paulina presente em todo o livro: Cristo é a cabeça desse

corpo, que tem por membros toda a humanidade, portanto, a graça de Deus, nesta

perspectiva, não é um favor excepcional e inacessível, sua força e sua graça recaem sobre

os homens se eles seguirem seus passos, não havendo nenhum vício que não possa ser

vencido, quando os homens exercem seu livre arbítrio para a vivência plena do

cristianismo, pois a graça se põe então ao seu lado. Erasmo pergunta incisivamente a seus

leitores: "se Deus é por nós, quem estará contra nós?49" Desse modo, o autor convida cada

homem a sentir-se um homem novo, que dispõe de duas armas fortíssimas para enfrentar a

batalha da vida mundana contra a carne e contra o demônio: a oração e o conhecimento da

lei divina na palavra simples e pura.

O humanista suprime a importância dos rituais cristãos e da Igreja como

intermediária entre o homem e a divindade, pois ele, uma vez que é tocado pela graça,

torna-se capaz de se elevar mais uma vez a esta divindade. Portanto, da mesma forma que

no Elogio, no Enquiridion - apenas com uma linguagem mais clara e acessível - ele

denuncia as deformações introduzidas na vida espiritual dos cristãos: a oração

externalizante, a devoção aos santos, a prática sacramental, as superstições, a inconsistente

espiritualidade dos frades e monges que levam uma vida desregrada, os teólogos modernos

que nunca se aproximam da verdadeira sabedoria sempre entretidos com suas elocubrações

filosóficas, e enfim os demais falsos cristãos, "filhos da carne", que mais interessados nos

prazeres mundanos permanecem incapazes de compreender a palavra divina. Mas, ainda

assim, ele está motivado em persuadir seus leitores de que eles podem, enquanto parte do

corpo de Cristo, controlar seus vícios; sendo claro o seu intento em disseminar a mensagem

49 Erasmo. Enquiridion, p. 53.

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cristã. Talvez em prol deste objetivo, suas críticas tenham tido um peso menor do que

aquelas formuladas no Elogio50.

O fato de Erasmo reiterar este tema constantemente não pode ser considerado mero

exercício retórico, pois ele não acreditava no uso vazio desta arte. Mais importante para ele

era saber dispor da arte da persuasão enquanto estivesse plenamente adequada aos esforços

e interesses da renovação cristã. Erasmo se utiliza nestas obras de um dos mais importantes

preceitos que ele destaca em seus manuais pedagógicos: a importância da variatio das

palavras, das expressões, dos tropos e das figuras de linguagem no tratamento da mesma

temática de acordo com os interesses da persuasão em cada caso. Percebemos aqui o

cuidadoso emprego prático de uma técnica que ele mesmo distingue, com base nos autores

antigos, essencial para a eloqüência perfeita, tal como declarava Crassus no De Oratore no

Cícero:

Qual é portanto o homem que sabe estremecer um auditório? Aquele que, quando fala, retém sobre si, todos os olhares? (...) É aquele cujo estilo possui variedade, clareza e abundância, que sabe iluminar pensamentos e palavras (...) Que sabe, além do mais, regular esta elocução sob considerações de circunstâncias e de pessoas, e que merece ser louvado por esta espécie de mérito, que eu chamo de justeza e conveniência.51

No Enquiridion, no Elogio e no Manual para o príncipe cristão, como ressaltamos,

o objeto de análise é essencialmente o mesmo. No entanto, estas são obras escritas para

públicos bastante diferenciados: o Enquiridion é um manual de piedade cristã escrito em

uma linguagem simples e direta, e voltado para um público mais amplo, embora este texto

tenha sido escrito em latim. O Elogio, um ensaio burlesco e irônico escrito como

passatempo de viagem, não se dirige a um leitor particular (como o Manual para um

príncipe cristão) mas sim à juventude, da qual ele quer provocar o interesse, a admiração e

50 No Elogio da Loucura está presente a idéia de uma cristandade imperfeita, formada por homens imperfeitos onde a simplicidade e a ilusão se unem para instituir a união social. A loucura (associada a ilusão) seria, portanto, o vínculo por excelência entre os homens, quem garantiria a amizade, o amor, a harmonia em instituições como o casamento e nas relações interpessoais cultivadas nas cidades. Por esse motivo, a sabedoria jamais poderia conduzir a pólis, pois se distanciaria demais do comum dos homens. Nesta obra Erasmo mostra um mundo dominado pela loucura, sendo poucos aqueles que conseguiriam, aproximando-se da natureza e não do artifício, conhecer a verdade da sua mensagem. No Enquiridion a presença religiosa e paulina se faz presente com mais força, sendo atenuadas suas críticas em alguns momentos, como no caso das cerimônias da Igreja onde o humanista primeiro as condena e depois afirma que seu culto não atrapalha a busca de um maior contato com os preceitos de Cristo. 51 Cicero, De Oratore, III, XIV, 53, p. 22.

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o amor a esta magnífica forma teatral e irônica do elogio à Loucura, deusa maior que sobe

no púlpito para dizer algumas verdades aos homens. O Manual para um príncipe cristão,

escrito diretamente para o príncipe Carlos, futuro imperador Carlos V, desenvolve o estilo

comum de manual dos espelhos de príncipe tradicionais de sua época como contraponto à

razão que governava o Príncipe de Maquiavel, escrito um ano antes no contexto italiano.

Princípio subjacente e comum às suas obras era o combate aos falsos sábios,

teólogos e clérigos, cujo mau uso da palavra corrompia o verdadeiro espírito cristão,

desviando seus fiéis para a adoração de imagens e relíquias de santos, assim como para o

culto de sacramentos e cerimônias, que em nada diziam respeito à dimensão mais

propriamente espiritual da fé. O objetivo do humanista é então, tanto no Enquiridion,

quanto no Elogio e no Manual, "advertir, e não morder; ser útil, e não ofender; reformar os

costumes humanos e não escandalizar”52, alertando os cristãos, através do bom uso da

eloquência, das verdades que a razão traz à luz. Atraindo para suas palavras a atenção dos

homens de seu tempo, ele, assim, realizava seu desejo no Elogio de "achar um remédio

capaz de combater a tolice e a ignorância dos cristãos que estavam estragados pelas

opiniões mais tolas”53. Através da sátira Erasmo procura "se insinuar, por assim dizer nas

almas delicadas e curá-las enquanto as divertia. (...) Que meio mais fácil se pode imaginar

para sanar os males comuns da humanidade? O prazer inicialmente alicia o leitor, e, depois

de tê-lo aliciado, prende-o.”54 Segundo ele, a verdade evangélica ornada com o atrativo do

prazer atinge o coração dos cristãos e aí se estabelece mais profundamente do que se

estivesse desprovida dos modos de provocar o riso, cuidadosamente elaborados por Cícero

e Quintiliano.

As exigências do decoro tradicional dos antigos de adequação do tema às condições

próprias da persuasão (no âmbito da diversidade de circunstâncias no mundo da vida

cotidiana) não era, portanto, incompatível, na visão de Erasmo, com a pureza da mensagem

cristã. Para ele, a linguagem era dádiva divina aos homens, devendo estes desenvolvê-la,

dando corpo aos pensamentos e reflexões naturais da alma e se comunicando com seus

semelhantes. Assim deveria proceder o bom predicador cristão, num discurso voltado para

estimular a fé autêntica na mesma medida em que sua palavra brotava diretamente da

52 Erasmo. Carta de Erasmo a Martim Dorpius, maio de 1515 in Elogio da Loucura, p. 115. 53 Idem, p. 116. 54 Ibidem, p. 115.

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interioridade da alma, lugar da fé e da virtude. Voltaremos com mais vagar a este

importante preceito da sinceridade do discurso mais adiante, quando trataremos da

similitude do discurso divino com o Cristo e ao mesmo tempo com a verdade de Deus. A

linguagem humana deveria proceder da mesma forma, estando em consonância com as

verdades contidas em seu interior, traduzidas na boa intenção do discurso, constituindo a

melhor forma possível de predicação para que seus ouvintes ou leitores pudessem

interiorizar plenamente a mensagem de Cristo.

Concedendo importante sentido moral à eloqüência ele encarnava também, contudo,

a consciência de seus possíveis males, que teve, no cristianismo de Petrarca uma de suas

primeiras formulações durante a Renascença. Erasmo sabia que os homens podiam fazer

uso dessa arte em sentido inverso, usando de artifícios de maneira imprudente, de modo a

comunicarem apenas inverdades e pensamentos falsos. Isso pode ocorrer também, como o

humanista ressalta em seu De copia, com a copia, ou seja, a abundância de palavras ou de

idéias, pois em vez de ser usada para enriquecer o discurso ela pode torná-lo afetado e

redundante. Contudo, assim como para os antigos, o mau uso da palavra não seria

suficiente para fazê-lo perder de vista que “não há nada mais magnífico que um discurso

que transborda, como um rio dourado, com uma rica abundância de pensamentos e

palavras.”55 Erasmo chama atenção, porém, para a grande dificuldade dos homens

realmente conseguirem possuir essa virtude do discurso, porque em vez disso, elaboram

discursos prolixos, fúteis e sem elegância “que obscurecem a idéia sob um amontoado

vazio e confuso de palavras e de frases que importunam o ouvido dos melhores ouvintes.”56

Essa dubiedade em relação à linguagem, como dissemos no primeiro capítulo,

Platão já destacava no Fedro (258 d) ao afirmar que há uma má e uma boa maneira de falar

e de escrever. A má é aquela do logógrafo e do sofista, mais preocupada com o uso de

ornamentos estilísticos e com a escolha dos argumentos mais aptos a alterar as paixões de

seus ouvintes para que a persuasão seja mais facilmente alcançada; desenvolvendo muitas

vezes uma linguagem vazia e sem sentido. A boa é aquela do sábio e do filósofo que

procuram alcançar a alma e não apenas excitar as afecções. O bom discurso deveria atingir

o coração de seus leitores ou ouvintes mais do que conseguir seu assentimento sobre esta

55 Erasmus. On Copia of Words and Ideas (De Utraque Verborem ac Rerum Copia). Wisconsin: The Marquette University Press, 1963, livro I, cap. I, p. 11. 56 Idem, idem.

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ou aquela questão. Na Renascença a boa retórica cultivada pelos humanistas - associada

mais à postura conciliadora de Cícero que procura unir filosofia e retórica (res e verba) do

que a dicotomia entre as disciplinas pretendida por Platão – se choca com a má retórica dos

teólogos escolásticos, associado aqui imediatamente aos sofistas do mundo Antigo.

Contrariamente ao sofista, o humanista é aquele que quer expressar sua linguagem

de forma autêntica, visível e presente. É aquele que crê na variação da res (do sujeito, das

temáticas) e no imperativo das palavras e de sua disposição em um texto, de vital

importância para o discurso. É aquele que crê, por exemplo, na relevância em se condenar a

corrupção dos homens, dos seus costumes e de sua religião mais do que na forma de

manifestar sua indignação. É aquele que crê, sobretudo, na capacidade transformadora da

palavra e na ação do homem em, expressando as verdades do seu eu interior, poder

regenerar ainda que parcialmente alguns aspectos da sua sociedade.

Convencido então de que a palavra transformará o mundo, de que essa medicina

divina purgará todas as almas doentes, o humanismo cristão torna-se, ao mesmo tempo,

tradutor, comentador e propagador desse saber57. Face a uma Faculdade de Teologia que

condena todos esses programas de reformulação religiosa como heresias luteranas,

multiplicando as perseguições, censuras e interdições (como foram os casos de Etienne

Dolet, Thomas More e do próprio Erasmo), os humanistas se colocaram a tarefa de divulgar

essa Palavra salvadora, ou seja, a verdadeira sabedoria cristã, a todos os cristãos. É o que

diz o humanista no Paraclesis, publicado em 1516:

Se existe em qualquer parte um tal encantamento, uma força da harmonia

que produza um verdadeiro entusiasmo, uma Persuasão verdadeiramente arrebatadora de almas, eu desejaria desposá-la no momento presente para persuadir a todos os homens da coisa mais salutar de todas. (...) Por essa razão

57 É preciso destacar que os primeiros vinte anos do século XVI correspondem a uma intensa polêmica acerca da autoridade do texto latino da Vulgata. O anúncio de que Erasmo se preparava para editar uma nova tradução do texto grego do Novo Testamento (publicado em 1516) provocou uma enorme efervescência entre os teólogos, sobretudo porque o humanista já havia dado sinais, em diversas ocasiões, de seu pouco apreço pelo ensinamento escolástico. Como é o caso da edição do Elogio (de 1511), por exemplo, onde Erasmo já manifesta toda sua antipatia ao monarquismo, ao saber e ao mau uso da palavra feito pelos escolásticos, tendo em seguida que explicar-se a Dorpius por suas críticas. Um dos pontos altos da carta resposta de Erasmo, escrita em 1515, onde ele resume alguns dos pontos destacados por Dorpius, é justamente a insatisfação deste teólogo em relação a intenção de Erasmo em publicar uma versão latina do texto grego do Novo Testamento, pondo em xeque a fragilidade do saber dos teólogos e frades sobre as Escrituras. Sobre a defesa de Erasmo contra a ofensiva de Dorpius à sua obra, escrita em 1514, ver: Erasmo. Elogio da Loucura, pp. 111-149. Sobre este assunto cf. também: Osório, Jorge A. “Acerca de um tópico do Humanismo em Erasmo: a defesa do grego na carta a Matin Van Dorp” in Máthesis, nº 13, 2004, pp. 177-198 ou www4.crb.ucp.pt/biblioteca/mathesis.

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continua o humanista: Eu não concordo com aqueles que querem interditar aos ignorantes de ler a Divina Escritura traduzida em língua vulgar, sob o pretexto de que o ensinamento de Cristo é tão obscuro que apenas um pequeno número de teólogos pode compreendê-lo, ou que a melhor defesa da religião cristã consiste em não ser conhecida. Os segredos dos reis talvez seja preferível esconder, mas Cristo deseja que os seus segredos sejam mais divulgados quanto possível. Eu espero que todas as mulheres leiam o Evangelho, que elas leiam as Cartas de Paulo. E que esses textos sejam traduzidos em todas as línguas dos homens, que eles possam ser conhecidos não apenas pelos Escoceses e Irlandeses, mas também pelos Turcos e Sarracenos.58 (grifo meu)

Quando Erasmo afirma seu desejo de fazer com que o Evangelho e as Epístolas de

São Paulo sejam conhecidos por todos, até mesmo pelas mulheres, e que eles sejam

difundidos por vários países, inclusive aqueles mais distantes onde o acesso a mensagem

divina é difícil, isto põe em relevo também seu objetivo de suprimir os intermediários que

se colocam entre entre o homem e seu Deus. Portanto, após tantos séculos em que a Igreja

manteve os cristãos apartados do conhecimento bíblico, sua ambição é justamente

reconstruir esse diálogo entre o leitor e o texto sagrado para que o cristão pudesse

interiorizar e vivenciar este modelo de bondade, caridade e amor. Desse modo, em vez de

decorarem meia dúzia de versículos bíblicos (como diz Erasmo em seu Enquiridion), os

fiéis deveriam se deixar tomar pela mensagem das Escrituras, gravando na parte mais

íntima de si os seus preceitos. Para muitos humanistas do século XVI a Palavra de Deus é

Presença do próprio Deus, definindo-se como realidade espiritual viva, lugar de plenitude e

espaço plenamente habitado.59 Mas, era apenas pela força de sua própria palavra, ligada à

58 “S’il existait quelque part une telle sorte d’enchantement, une force de l’harmonie qui produise un véritable enthousiasme, une Persuasion vraiment entraîment d’âmes, je désiderais en disposer dans le moment présent, pous persuader à tous les hommes la chose plus salutaire de toutes.” (...) Je suis en effet passionnément en désacord avec ceux Qui voudraient interdire aux ignorants de lire la Divine Écriture traduit dans une langue vulgaire, sous le prétexte que l’enseignement du Christ est si obscur que c’est à peine si un tout petit nombre de théologiens peut le comprendre, ou sous celui que la meilleure défense de la religion chrétienne consiste à n’être pas connue. Les secrets des rois il est peut-être préférable de les cacher, mas le Christ désire que ses secrets à lui soient le plus divulgués. Je souhaiterais que toutes les femmes lisent l’Évangile, qu’elles lisent les êpitres de Paul. Et que ces textes soient traduits dans toutes les langues des hommes, si bem qu’ills puissent être lus et connus non seulement par les Écossais et les Irlandais, mais aussi par les Turcs et les Sarrasins.” Érasme. “Paraclesis” in Oeuvres Choisies, p. 447 e 450-451. 59 Se a Palavra Divina corresponde simbolicamente à divindade, torna-se claro o desejo humanista de retorno à fonte e de sua reprodução fiel através da imprensa, assim como de tornar essa Palavra até então apresionada pela escolástica livre para ser conhecida por todos. Se este é o remédio capaz de curar os homens de seus vícios, como então privá-lo aos cristãos? Cave, Terence. Cornucopia: Figures de l’Abondance au XVI siècle: Érasme, Rabelais, Ronsard, Montaigne. Paris: Éditions Macula, 1997, pp. 105-126. No entanto, Elisabeth Eisenstein nos relata que na Inglaterra, pelo menos até a década de 1540, ainda era proibida a tradução da bíblia para o inglês, sendo assim restringido o conhecimento do texto sagrado apenas aqueles que

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pureza da Palavra divina, que os humanistas conseguiriam alertar e tornar conhecido de

todos a sabedoria deixada por Cristo. Com esse objetivo Erasmo, Colet, Thomas More,

Etienne Dolet, Lefèvre d’Etaples, entre tantos outros humanistas multiplicaram não apenas

as traduções, os comentários e as paráfrases ao texto bíblico, mas também os manuais de

iniciação à piedade (como o Enquiridion), os Catecismos e os Almanaques, cujo objetivo

era ensinar de maneira simples e direta como o cristão deveria agir do mundo.60 Tratava-se

então de retirar das mãos dos teólogos tradicionais o controle sobre a interpretação da

verdade das Escrituras, difundindo massivamente por meio das novas técnicas da imprensa

o conteúdo da mensagem divina a um número cada vez maior de pessoas.

Como disse Erasmo no fragmento acima de seu Paraclesis: Deus quis salvar a

todos os homens, e por isso “Cristo deseja que seus segredos sejam mais divulgados quanto

possível.” Os humanistas combatiam o monopólio por parte da Igreja, do conteúdo da

Palavra divina, ao mesmo tempo em que denunciavam a presunção destes eruditos em

formularem uma verdade última sobre um tema que só admitia proposições prováveis, dada

a onipotência infinita e obscura de Deus. Além disso, se, como dissemos antes com base no

argumento cético do “conhecimento do criador”, o homem apenas conhecia de fato os

produtos de sua criação, ele jamais poderia alcançar o sentido último do conteúdo da

mensagem divina mas somente buscá-la, através de seus meios insuficientes. É o que diz

Erasmo em sua Paráfrase ao Evangelho de São João:

Como a natureza divina supera infinitamente a fraqueza do espírito humano, ela não pode ser percebida tal como ela é nem por nossos sentidos nem conhecida por nosso espírito, nem representada por nossa imaginação nem expressa por palavras. (...) Por isso convém ao homem que ele dedique todo esforço de seu espírito a amar a bondade de Deus mais do que a admirar ou a ensaiar compreender sua perfeição que nem mesmo os Querubins nem os Serafins sabem plenamente. E embora Deus não possa ser admirado em todos os seus trabalhos, ele preferiu que nós o considerássemos digno de ser amado por sua bondade mais do que por sua grandeza.61

conheciam o latim. Eisenstein, Elisabeth L. A Revolução da Cultura Impressa: os primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora Ática, 1998, pp. 181-184. 60 Sobre a publicação desses textos, verdadeiros manuais para se conhecer e seguir o Evangelho, ver: Boujour, Michel. Miroirs d’Encre: Rhétorique de l’Autoportrait. Paris: Seuil, 1980. 61 “Comme la nature divine surpasse infiniment la faiblesse de l’esprit humain, elle ne peut être perçue telle qu’elle par nos sens ni conçue par notre esprit, ni représentée par notre imagination ni esprimée par des mots. (...) C’est pourquoi il convient que l’homme tende tout l’effort de son esprit à aimer la bonté de Dieu plutôt qu’à admirer ou à essayer de comprendre as sublimité que ni les Chérubins eux-mêmes, nim les Séraphins ne saisissent pleinament. Et quoique Dieu ne puisse pas être admirable en toutes ses oeuvres, il a

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Portanto, se o homem não pode compreender os mistérios obscuros dos dogmas nas

Escrituras, tais como as questões sobre a Trindade e o Livre arbítrio, tão debatidas entre os

teólogos, isso de nada importaria para a legitimidade de sua fé, já que Deus se fazia

presente a nós através da Palavra pura e clara de seus preceitos básicos, sendo o mais

importante para o cristianismo aproximar-se “de uma fé simples, da filosofia cristã, e

venerar com o coração puro a verdadeira religião”.62 Portanto, se não havia nenhuma

diferença entre o Verbo e o Espírito de Deus, é natural que os humanistas insistissem no

conhecimento e na interiorização do texto bíblico. Este argumento está presente nos

primeiros versos do Evangelho segundo São João:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.63

Como nos sugere esta passagem, Cristo tem uma relação direta de similitude com

Deus, a ponto de ser permitido amalgamar o discurso de Deus ao discurso de Cristo, assim

como as suas vontades. Contudo, o Filho não é idêntico ao Pai, mas ele lembra o Pai por

uma semelhança tal que é possível “ver em ambos e em cada um deles o Pai no Filho e o

Filho no Pai.”

Mas, essa similitude que deixa tanto a desejar no nível humano, é absolutamente perfeita entre Deus, o Pai, e seu Filho, e não há nada que exprima com maior exatidão e força a imagem escondida do espírito que um discurso não

préféré que nous le considérions como aimable pour as bonté plutôt que comme étonnant par as grandeur.” Erasme. “Paraphrase à l’Évangile de Joan” In Oeuvres Choisies, p. 611. 62 Erasme. “Paraphrase à l’Évangile de Jean”, op. cit., p. 612. 63 “Evangelho segundo São João” In A Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1982, (I: 1-3,14). A palavra grega logos (linguagem, razão, cálculo, pensamento) é traduzida pela Vulgata por verbum. Tanto Valla quanto Erasmo criticaram esta tradução para o latim, pois verbum significa palavra, e esta não era condizente com o sentido original. Portanto, onde na Vulgata lia-se “in principio erat Verbum” Erasmo, na sua edição do Novo Testamento, de 1516, decide alterar o Verbum por sermo. Este termo latino, já empregado por São Ciprião e outros padres, significa “série de palavras que formam um sentido, conversação, língua, linguagem”. Alegando que as razões desta mudança eram de natureza puramente filológicas, estéticas e gramaticais, quando Erasmo traduziu esta passagem do Evangelho de São João, um dos discursos mais fortes do texto bíblico, justamente por relacionar Cristo a eterna fala de Deus, ele também produziu uma teologia original, que procura assegurar o correto sentido das Escrituras através de uma apurada pesquisa filológica, aplicando no texto sagrado o mesmo tipo de atenção para a linguagem que Erasmo aprendeu com Valla. Waswo, R., op. cit., p.220.

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mentiroso. Pois o discurso é na verdade o espelho da alma, da alma invisível aos olhos corporais. E, se nós desejamos tornar conhecida nossa vontade à outros, nós não teremos meio mais claro, mais rápido, que um discurso que brota das profundezas mais íntimas de nosso espírito. Depositado o discurso de quem fala no ouvido de quem escuta, transfere (-se) a alma do primeiro aquela do segundo. E, de todas as coisas que possuem os mortais para emocionar a alma, não há nada mais eficaz que o discurso.64

A similitude perfeita que une o Pai ao Filho e o Filho ao Logos, e permite que o Pai

se encontre presente no Filho, e que o Filho seja o discurso do Pai, Erasmo a utiliza

relacionando-a ao discurso do homem65. O essencial dessa similitude que apontamos aqui é

destacar a função exemplar do discurso divino. Portanto, a mesma relação que existe entre

o logos (o raciocínio, a linguagem) divino e o seu discurso, deve também ocorrer entre o

pensar humano e o que é escrito por ele. Tal como não existe diferença entre o Pai e sua

mensagem divina, o mesmo deve ocorrer com os discursos humanos; a escrita dos homens

deve estar imediatamente de acordo com a sua essência. Parece-nos natural, então, que os

humanistas concebessem o estilo do discurso como espelho do espírito do homem, de sua

alma e de tudo que há nela de mais íntimo, de mais singular e essencial. “Quem tem um

coração mundano fala do mundo, quem tem um coração carnal fala da carne, mas quem

tem o Espírito de Cristo em seu coração fala de coisas celestes e piedosas, de coisas santas,

castas e dignas de Deus.”66 Portanto, a única razão de ser da linguagem é exprimir por

palavras o que se concebe na alma; o discurso transforma-se em “espelho de si”, como diz

Erasmo no Ecclesiastes:

O espírito é a fonte, e o discurso é a imagem proveniente dessa fonte. E, da

mesma forma, esse único Verbo de Deus é a imagem do Pai, imagem que não se distancia em nada de quem a produziu, de tal sorte que ela constitui com ele uma única natureza - uma natureza que não pode ser dividida - , o discurso humano é um tipo de imagem do espírito do homem. E este não possui nada de mais admirável nem de mais forte: é por isso que Hesíodo o chama de seu tesouro

64 “Mais cette similitude qui laisse tant à désirer au niveau humain, est absolument parfait entre Dieu le Père et son Fils, Il n’est d’ailleurs rien qui n’exprime avec plus d’exactitude et de force l’image cachée de l’esprit qu’un discours non mensonger. Car le discours est en vérité le miroir de l’âme, de la l’âme invisible aux yeux corporels. Et si nous désirons faire connaître notre volonté à autrui, nous n’avons pas, pour y parvenir, de plus sûr moyen, de moyen plus rapide, qu’un discours jailli des profondeurs les plus intimes de notre esprit. Déposé par celui qui parle dans l’oreille de celui qui écoute, ce discours, grâce à quelque énergie occulte, transfère l’âme du premier dans celle du second Et de toutes ces choses que possèdent les mortels pour émouvoir les ressorts de l’âme, il n’en est point de plus efficace que le discours.” Erasme. “Paraphrase à l’Évangile de Joan” In Oeuvres Choisies, p. 614. 65 Chomarat, Jacques, op. cit., pp. 31-50. 66 Érasme. “Ecclesiastes” In Oeuvres Choisies, pp. 974-1021.

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mais precioso. Se ele não reflete mais a alma da qual ele brota ele não merece mais o nome de discurso, ele não merece que a máscara seja chamada de rosto, ou que a maquiagem que o recobre seja chamada de tez.67

Ao associar o discurso produzido por um homem às qualidades ou defeitos

existentes em seu espírito, Erasmo enunciava uma tópica cara aos antigos estóicos, tal

como podemos encontrar em Sêneca, em suas Cartas a Lucílio, no século I. d.C, onde ele

afirma como preceito a necessidade de um discurso digno provir da interioridade da alma,

plena de vigor sob o cultivo da virtude. Na carta 114 Sêneca nos diz:

O estilo de um homem colérico denotará cólera, tal como o de um indivíduo impulsivo denota excitação e o de um efeminado moleza e indecisão. Fenômeno idêntico é o que tu verificas em certos sujeitos (...) cuja única preocupação é fazer qualquer coisa que dê nas vistas: só pretendem chocar os outros, atrair os olhares... A causa disso está numa grave perturbação da alma. (...) Cuidemos, portanto, da alma, pois dela provêm as nossas idéias, as nossas palavras, é ela quem regula a nossa aparência, a nossa fisionomia, o nosso modo de andar. Se a alma está sã e robusta, também o estilo será vigoroso, enérgico, viril, mas se perde o equilíbrio tudo o mais cairá por terra.68

O bom discurso de acordo com este autor, em consonância com a qualidade moral

do espírito, não deveria definir-se pelo cuidado excessivo com o estilo, assim, ele dizia a

Lucílio: “Quando vires alguém com um estilo rebuscado e cheio de adornos podes ter

certeza de que a sua alma apenas se ocupa de bagatelas. Uma alma verdadeiramente grande

é mais tranqüila e senhora de si a falar, e em tudo quanto diz há mais firmeza que

preocupação estilística.”69 O estilo de Sêneca pode ser associado ao sistema tripartite que

Cícero nos apresenta no Orator.

Segundo o grande orador latino, existem três gêneros de discurso: “um que se diz

grandiloqüente, com elevada gravidade de sentenças e grandiosidade de palavras,

veementes, variadas, abundantes, graves, hábeis e preparadas para comover e arrastar os

67 L’esprit est la source, et le discours est l’image provenant de cette source. Et de même que cet unique Verbe de Dieu est l’image du Père, image Qui ne dissemble en rien de celui Qui la produit, de telle sorte qu’elle constitue avec lui une seule nature – une nature indivisible -, le discours humain est une sorte d’image de l’esprit de l’homme. Et celui-ci ne possède rien de plus admirable ni de plus puissant qu’elle: c’est pourquoi Hésiode l’apelle son trésor le plus précieux. Si elle ne reflète plus l’âme dont elle jaillit, elle ne mérite plus le nom de discours, elle ne mérite pas plus que le masque mérite de s’appeler le visage, ou que le fard qui recouvre ce dernier mérite de s’apeller le teint. Idem, “Ecclesiastes”, 772F – 773A. 68 Sêneca. Cartas à Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, carta 114, pp. 635-636. 69 Idem, carta 115, p. 638.

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ânimos”70; outro que se diz sutil ou tênue, ou compresso ou remisso ou humilde; havendo

ainda o orador de estilo intermediário entre eles, que se diz médio ou medíocre, “que não se

serve nem da precisão destes últimos nem da torrente dos primeiros, sem sobressair nem

em um extremo nem em outro, participa dos dois (...) e salpica todo o discurso com

ornamentos moderados de dicção e de pensamento”71. Cícero em seu Orator afirma que o

discurso grave que se define pelo vigor máximo, é próprio do grande orador, ao passo que o

sutil ou sermo, pertence ao discurso filosófico que se caracteriza pela ausência deste vigor e

pela simplicidade72. Embora o orador afirme particularmente gostar mais do estilo

grandiloqüente, ele nos diz também que o homem que possui a arte da eloqüência ideal

deveria ter bom desempenho em todos os estilos, embora soubesse que a excelência em

cada um deles pertencesse a caracteres diversos que a eles correspondessem em diversas

formas de talento73. Sêneca, adota o estilo humilde do sermo nas Cartas, ou seja, o gênero

humilde, pois com seu objetivo filosófico de instruir, condenava o vigor oratório como um

vício.

O uso de Erasmo da tópica de Sêneca sobre a noção do discurso como espelho da

alma e sua virtude localizada no gênero humilde, parece estar muito melhor relacionada,

contudo, aos objetivos da varietás ciceroniana do que da negação estóica da arte da

persuasão. Deste modo, procura estimular no De Copia o exercício da escrita nos jovens

para que encontrem seu talento natural e próprio, mas também para que conheçam bem a

arte de todos os estilos, sabendo variar as palavras e as formas do dizer segundo as

circunstâncias. Assim, ainda que levemos em conta seu ideal de simplicidade e cultivo do

espírito, e o uso do estilo humilde na maior parte de suas obras, seria incorreto afirmar que

Erasmo opta plenamente pela primazia do sermo filosófico, dentro da perspectiva estóica,

haja visto sua preocupação constante com a dignidade da arte dos estilos. Autor de diálogos

(como o Ciceronianus e o Antibarbárie), de colóquios, de textos preceptísticos sobre a

melhor forma de escrever (como o Ratio studii, o De copia e os Adagia) de comentários ao

texto bíblico (como as Parafrases), de sermões (como o Ecclesiastes), de declamações

(como o Elogio da Loucura, o De contemptu mundi e o Laus et vituperatio matrimonii),

70 Cicerón. El Orador. Barcelona: Ediciones Alma Mater, 1968, 5 20. 71 Idem, 6 22. 72 Ibidem, 28 97. 73 Cicero, De Oratore III, IX, 32.

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Erasmo representava em sua obra o ideal da variação e da virtude da eloqüência ideal. Feita

esta ressalva, de qualquer modo, nas obras que mencionamos ao longo deste item o tema da

interioridade e da preferência por um estilo menos rebuscado é de importância

fundamental, pois, ligado ao apego a estes princípios estava a enunciação da preocupação

central dos discursos erasminos, o docere ou ensinar, próprio do discurso sutil (humilde),

fator primordial de uma eloqüência que buscava mais do que simplesmente excitar as

paixões da alma.

Cícero em seu Orator, com efeito, atribuía ao discurso sutil o docere, ao módico o

delectare ou deleitar, ao veemente o movere ou comover; “condição esta última que por si

só resume toda a essência do orador.”74 Mas, porque toca as paixões, ele não se detém em instruir os espíritos, ele trata de perturbar [alterar] as almas; e este não saberia elevar-se sem uma palavra rica, variada, abundante. O orador conciso, cujo tom não se eleva jamais, pode instruir os juízes, mas não pode comover.75

Sêneca, por sua vez, negava a variação retórica dos estilos por adotar como único

legítimo o discurso simples, claro e conciso do sábio, único capaz de instruir, por expressar

a virtude plena de sua alma76. Erasmo, embora adotasse o docere das Cartas a Lucílio, não

optava pelos preceitos e valores de um discurso propriamente filosófico, ou seja, em seu

pensamento conviviam os imperativos da arte da eloqüência e os valores de humildade da

filosofia cristã. Assim, enquanto Sêneca preceituava a negligência com as palavras (verba)

em prol do cuidado com a res (caso) nas Cartas:

Queres que ele [Papírio Fabiano] insista em coisa pequenina: nas palavras; Não te quero, Lucílio meu, demasiado ansioso pelas palavras e composição; Cada qual, cuja oração vires que é solícita e polida, saberás que tem o ânimo não menos ocupado com pequenezas.77

74 Ciceron, El Orador, op. cit., 21 69. 75 Cicéron. De l’Orateur, op. cit., livro II, 53 214. 76 Santos, Marcos Martinho dos. “Arte dialógica e epistolar segundo as Epístolas morais a Lucílio” In Letras Clássicas. Departamento de Letras Clássicas e Modernas. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, n.º 3, 1999, pp. 45-99. 77 Sêneca, Cartas à Lucílio, cartas (100 10), (115 1) e (115 2) apud Santos, Marcos Martinho dos, op. cit., p. 55-56. Optamos aqui por manter o mesmo recorte realizado pelo autor, ao analisar tão claramente as epístolas de Sêneca neste excelente artigo.

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Erasmo em seu De copia dedicava toda a primeira parte à análise da copia das

palavras (copia verborum), cuidando na segunda da copia das coisas ou casos (copia

rerum), harmonizando-os plenamente. Na primeira parte, mais extensa que a seguinte, ele

procura então desenvolver este tema já tratado por Quintiliano no livro X da sua Intitutio

oratoria, voltado para a educação dos oradores e para o tratamento da copia das palavras.

No entanto, “se Quintiliano tivesse tratado a fundo as questões que ele assinalou, não teria

havido nenhuma necessidade para que eu me dedicasse a esses preceitos.”78 Destacando a

importância desse tema ele diz que os grandes homens de todos os ramos do saber não

deixaram de praticar com cuidado esse gênero, sendo portanto este seu objetivo nesta

primeira parte.

Em De copia, tendo seguido os exemplos de Virgílio, Esopo, Cícero - que era tão

dado ao exercício da copia que costumava realizar competições com seu amigo Rossios

para saber quem chegaria mais freqüentemente, seja exprimindo por gestos variados o

mesmo pensamento, seja formulando-o com palavras diferentes, à abundância da sua

eloqüência – e de Quintiliano sobre a abundância e a importância das palavras ele nos diz

que:

Eu estou instruindo os jovens, cuja extravagância do discurso não parece má a Quintiliano, porque com julgamento o supérfluo é contido, e alguns deles até a idade os auxilia, enquanto que por outro lado, você não pode por nenhum método curar a pobreza.79

Erasmo ressalta já no prefácio desta obra a importância do conhecimento de todos

os tipos de palavras, tendo em vista que algumas são mais sublimes, mais agradáveis, mais

veementes ou mais expressivas, enquanto outras contribuem melhor para a harmonia de um

discurso que tem por objetivo uma linguagem clara e direta. Por essa razão, na primeira

parte ele analisa e exemplifica todos os métodos de variação inerentes ao discurso, tratando

destas questões em 33 capítulos. Muito embora, como bem destacava Cícero no De oratore,

o discurso do orador é vazio se não cuida também da res, ou seja, da importância dos casos,

78 Erasmus. “A procura pela abundância é perigosa” In On copia of words and ideas, op cit., livro I, cap. I, p. 11. 79 “Then I am instructing youth, in whom extravagance of speech does not seem wrong to Quintilian, because with judgment, superfluities are easily restrained, certain of them even, age itself wears away, while on the other hand, you cannot by any method cure meagerness and poverty.” Idem, “A quem a copia irrestrita foi atribuída como falta”, cap. IV, p. 14.

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devendo portanto abraçar ambas unindo res e verba. Em seu De copia, onde ensina seus

alunos as regras para a escolha das palavras e dos temas pertinentes a cada discurso, o

humanista segue diretamente os preceitos ciceronianos.

Dos preceitos de Sêneca, todavia, Erasmo retomava a relação entre os vícios do

discurso e os vícios da alma, destacando a decadência dos discursos e costumes de sua

época, devido à corrupção dos espíritos. Em sua preocupação cristã com o cultivo da

interioridade da alma, para que não se corrompesse pelos vícios de seu meio político e

social, as idéias de Erasmo coincidiam com os valores estóicos de Sêneca, que nas Cartas a

Lucílio retirava-se dos negócios do mundo e voltava-se para sua própria interioridade a fim

de buscar a virtude da sabedoria. Assim, era essencial para a eloqüência de Erasmo a

correspondência entre seu estilo e a virtude de seu espírito e de sua conduta, elementos

fundamentais para a persuasão e para a legitimidade da instrução. Segundo ele: “a natureza

de um homem não se desvenda tanto pelos traços de seu rosto quanto por seu discurso, pois

o último é o espelho mais fácil e menos mentiroso da alma.”80

Do mesmo modo Sêneca dizia que o princípio essencial da retórica era:

Dizer o que sentimos, sentir o que dizemos, isto é, pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras. Imagina um mestre qualquer: se a impressão que tu sentes contemplando as suas ações é idêntica à que tens ouvindo os seus discursos, esse mestre atingiu o seu propósito. Observemos a qualidade de seus atos, a fluidez do seu discurso: entre ambos, a mais perfeita unidade! As nossas palavras não visam o prazer literário, mas sim a pertinência...81

Mas o humanista, de todo modo, se afastava bastante das idéias do filósofo estóico

no significado que concedia à linguagem, pois, seu ponto de vista, influenciado pelos novos

métodos retóricos e críticos de Valla, dava mais ênfase aos sentimentos da alma enquanto

existentes em função de sua expressão lingüística voltada para o mundo e desta como meio

por excelência, como já vimos, de toda a experiência humana, inclusive da interioridade.

Alinhado à perspectiva ciceroniana, Erasmo não dissociava a arte de bem falar e de todo

conhecimento das coisas humanas a ela inerente da sabedoria em bem se conduzir no

mundo, tal como fizera Sêneca. Sua concepção do que fosse conhecimento, em qualquer

nível, portanto, não se dissociava do aprendizado das línguas. Como dissemos antes, na

80 Érasme. Lingua, op. cit., 698B. 81 Sêneca, op. cit., carta 75, p. 306.

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medida em que o discurso é criação humana, campo e meio de seu conhecimento, cabe a

nós apreender todos os seus meandros mais recônditos, pois é apenas desta forma que o

homem poderá alcançar a verdade, através da pesquisa filológica e retórica.

Assim, antes de passarmos à análise do De Copia consideramos importante

determo-nos um pouco ainda sobre o impacto da inspiração da obra de Lorenzo Valla sobre

Erasmo, (que podemos reconhecer por suas próprias palavras em muitas de suas

correspondências) detendo-nos um pouco sobre os preceitos, técnicas e idéias que Valla nos

apresenta especialmente no Elegantiae, cujas noções e a forma podem ter servido de

modelo aos tratados erasmianos.

4.3) A verdade prática

É conhecida a influência dos escritos de Lorenzo Valla82 no pensamento de

Erasmo, e isso ele manifesta claramente em sua vasta correspondência, onde defende a

relevância das idéias do erudito italiano desde os tempos em que era estudante no convento

de Steyn. Ainda no ano de 1489, em carta escrita a seu amigo Cornelius Gérard, em 15 de

maio, ele enumera – quase como um preceptor – os seus verdadeiros guias, ou seja, os

autores que mais lhe compraziam a leitura. Erasmo cita entre os grandes nomes clássicos:

na poesia Virgílio, Horácio, Ovídio, Juvenal, Estácio, Martial, Cláudio, Pérsio, Lucano,

Tibulo e Propércio. Em prosa Cícero, Quitiliano, Salústio e Terêncio. Para as regras de

elegância do estilo, diz ele, “eu não confio em ninguém tanto quanto em Lorenzo Valla; nós

não temos ninguém comparável a ele na fineza do espírito e na fidelidade da memória.”83 É

interessante notarmos que Valla aparece aqui, lado a lado com os autores clássicos,

tamanha a estima de Erasmo por seu trabalho. Mas, poderíamos nos perguntar se já nesta

época Erasmo conhecia as Elegantiae de Valla para a estar recomendando desta forma.

Acreditamos que sim, mas veremos esse argumento aos poucos de acordo com a própria 82 Lorenzo Valla é autor de obras como a Constantini Donatione declamatio, a Dialecticae disputationes, o De voluptate, o Repastinatio dialecticae et philosophiae, entre outras, que influenciaram muitos humanistas ao longo da Renascença. Mas, os textos que tiveram maior importância para Erasmo foram as Elegantiae e Adnotationes in novum testamentum.

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correspondência erasmiana. Chomarat afirma que uma tal familiaridade com o texto de

Valla só pode ser um indício de que ele já o conhecia antes mesmo de entrar neste colégio,

ou seja, quando ainda estava em Deventer.84

Em outra carta à Cornelius, esta escrita em junho de 1489, Erasmo recomenda a seu

amigo os melhores eruditos que trataram em sua época da eloqüência antiga. Opondo-se às

escolhas feitas por Cornelius, que ressaltara a importância de Jerônimo Balbo

(desconhecido de Erasmo) o humanista questiona por que ler esses autores se existem

nomes tão grandiosos como Agrícola, seu discípulo Alexandre, Guilherme de Gouda e

Frederico Mormam, só para citar os mais eruditos entre os alemães. Pois, se “voltarmos

nossos olhos para os italianos quem mais que Lorenzo Valla, mais que Philelfo observa a

antiga eloqüência? Quem é mais eloqüente que Eneas Silvio, Dathus, Guarino, Poggio e

Gasparino”.85 Se antes Erasmo havia prescrito a seu amigo os melhores autores clássicos a

serem lidos, agora ele completava sua lista acrescentando também os autores modernos.

Diante do ensino bárbaro que prevalecia na grande maioria das escolas de sua época

e que pouca atenção davam para o aprendizado e o exercício do latim correto, Erasmo

elogia a coragem de Valla ao tentar romper com essa tradição, que pela admirável

superioridade de sua erudição salvou do esquecimento o estudo dos poetas e oradores

antigos.86 Esta revalorização do ensino dos antigos e o cuidado com o latim poderia ser

encontrada nas Elegantiae, obra de tanta importância para Erasmo que ele recomendava

sempre não apenas a leitura mas também sua releitura. No entanto, Cornelius, em sua

resposta às recomendações do humanista se mostrava pouco interessado na leitura das

83 “Érasme à Corneille Gérard, Steyn, 15 de maio de 1489” In Correspondance d’Érasme, carta 20, pp. 76-77. 84 Assim como Chomarat, Mecenas Dourado afirma que desde a sua entrada para a Ordem dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, em Steyn no ano de 1487, Erasmo já demonstrava nas suas cartas deste período à Servais Roger, um bom domínio de diversos autores clássicos como Virgílio, Ovídio, Horácio, Terêncio e Juvenal. Tendo acabado de entrar para Steyn, e então com dezesseis anos, é muito provável que Erasmo já tivesse um conhecimento prévio de alguns destes textos desde a sua estadia no Colégio de Deventer sob a orientação de professores como Hegius, cujo interesse na divulgação das temáticas clássicas era grande. Além disso, diz o autor que havia na biblioteca do Colégio vários autores latinos e gregos como Plauto, Virgílio, Tibulo, Ovídio, Sêneca, Platão, Hesíodo e Plutarco. Desta forma, Dourado afirma ser nesse período em que se destaca a influência de Hegius e a tradição da renovação das letras atribuída a Agricola que as bases intelectuais do humanista são formadas. Dourado, Mecenas. Erasmo e a Revolução Humanista. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1968. p. 15. Chomarat, Jacques. Grammaire et Rhetorique chez Erasme, op. cit., p. 243. 85 “Pour en venir aux Italiens, qui, plus que Laurent Valla, plus que Philelphe, observe l’antique éloquence? Qui est le plus éloquent qu’Eneas Sylvius, Augustin, Dathus, Guarin, le Pogge, Gasparino?” Érasme à Corneille Gérard, Steyn, junho de 1489” In Correspondance d’Érasme, carta 23, p. 83. 86 Idem, p. 84

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Elegantiae dizendo que Valla foi criticado com vigor por muitos sábios, destacando entre

eles Poggio, renomado humanista italiano. A este comentário Erasmo respondeu com sua

sagacidade habitual:

Eu estimo que tu não tenha escrito espontaneamente, mas com um propósito deliberado, seja para exercer seu talento de estilista sobre um tema paradoxal, seja para me dar motivo para escrever, de modo que, em Platão, Glauco critica a justiça a fim de provocar Sócrates a defendê-la, tu me arrasta a defender Valla ressaltando as injúrias indignas pelas quais os bárbaros deliberam contra um homem de grande erudição. Conclusão que se pode facilmente tirar do fato que tu não apenas leu e releu Valla, mas que tu tens ainda o imitado: a elegância de teu estilo, de tua frase o revela. 87

A nossa impressão ao lermos este fragmento é que ambos, Erasmo e Cornelius,

parecem estar exercitando efetivamente os preceitos retóricos, já que o humanista holandês

é realmente levado a discorrer sobre Valla, elogiá-lo e refutar as críticas dos humanistas ao

seu trabalho. A réplica de Erasmo a Cornelius confirma que ele conhecia as Elegantiae e

mesmo as imitava ao dizer que “a elegância de seu estilo e de sua frase o revelam”. Se ele

já conhecia e mesmo empregava a elegância do estilo defendida por Valla em seus próprios

escritos, por qual razão ele o incitava a ler os textos de Valla? E, como disse Erasmo, se o

próprio Cornelius faz uso destes preceitos, por que ele iria defender os seus opositores se

não fosse para, como ocorre nos diálogos platônicos, incitar Erasmo a defender as

Elengatiae? Uma tal sutileza nas relações entre eles, entre o artifício e o real, a ironia de

Erasmo ao tratar Cornelius como um tolo, já que ele em nenhum momento desenvolveu

algum subsídio sólido para defender os críticos de Valla, apenas apresentando a questão, já

demonstram ainda na juventude de Erasmo sua atenção para com os pressupostos da

retórica e e com a arte do discurso epistolar.

O fato que, no entanto, gostaríamos de ressaltar é que a defesa erasmiana das

Elegantiae de Valla, sua rejeição dos estudos tal como eram desenvolvidos pelas

gramáticas medievais, seu apreço pela mais pura latinidade, e sobretudo, seu amplo 87 “Ce que tu écris de notre Valla, je l’interprète ainsi: j’estime que tu l’as écrit non espontanément, mais de propos déliberé, soit pour exercer ton talent de stylist sur un thème paradoxal, soit pour me donner matière à écrire; de même que, chez Platon, Glaucon critique la justice afin de provoquer Socrate à la defendre, tu m’entraînes à défendre Valla en passant en revue les injures indignes par lesquelles les mysthes grossiers de la barbarie délirent contre un homme de grande érudition. Conclusion que l’on peut facilment tirer du fait que tu n’as pas seulement lu et relu Valla, mais que tu avoues encore l’imiter: le nierais-tu, que

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conhecimento desta difícil e extensa obra já denotam que Erasmo poderia ter conhecido

Valla ainda antes de sua entrada em Steyn. Como dissemos anteriormente, é muito provável

que este humanista tenha tomado conhecimento dos textos clássicos ainda em Deventer,

como ressaltam Chomarat e Dourado. Contudo, não é apenas dos textos antigos que

Erasmo já havia se aproximado. Primeiro porque Erasmo pode ter conhecido o texto de

Valla via Hegius, seu professor e principal responsável por uma série de melhorias na

escola de Deventer. Segundo Chomarat, em seu Invenctive contre les modes de

signification, Hegius faz uso do texto de Valla sem o nomear diretamente.88

Mas, o que confirma mesmo essa teoria é o fato de Erasmo no mesmo ano em que

dá entrada em Steyn já ser capaz de compor um hábil resumo de fórmulas às vezes

ininteligíveis dos seis livros que compõem o texto de Valla, chamado de Epítomo das

Elegantiae, ou Paráfrase, composto entre os anos de 1486 e 1488 a pedido de um mestre

da escola pouco instruído que desejava um manual de iniciação para auxiliar o aprendizado

do latim pelos alunos do Colégio. Publicado pela primeira vez em 1529, sem a autorização

de Erasmo, o Epítomo alcançou mais de 50 edições até 1566. Ora, para elaborar um resumo

da obra de Valla e das categorias que ele desenvolve seria preciso a Erasmo no mínimo um

conhecimento profundo da sua obra que certamente não se daria logo na sua entrada em

Steyn.89 Além disso, ele não apenas resume mas também substitui as citações de Cícero e

de outros autores por frases e exemplos de sua própria autoria mais simples e mais fáceis

para os alunos conseguirem memorizar.

Em sua forma final, o Elegantiae compreende seis livros: I sobre os nomes, verbos e

particípios; II sobre as outras partes do discurso; III sobre o significado dos termos na lei

civil; IV sobre o significado de outros termos (muitos de origem teológica); V sobre os

verbos e idiomas; VI sobre outras opiniões de gramáticos. Este trabalho pelo qual Erasmo

demonstra grande apreço, é um apanhado elaborado de dicção gramatical e estilo do latim

clássico, cujo objetivo era resgatar a cultura da Antigüidade e a pureza da eloqüência

romana. O que interessou diversos autores da Renascença foi a sua pesquisa sobre o uso

verdadeiro, mais próximo da pura latinidade que é expressa nos textos clássicos e que se

l’élégance de ton style, de ta phrase, le proclame.” Érasme à Corneille Gérard, Steyn, julho de 1489” In Correspondance d’Érasme, carta 26, p. 89. 88 Chomarat, Jacques, op. cit., p. 244. 89 Idem, idem.

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perdeu durante a Idade Média. Valla recomenda a “elegância” do estilo de acordo com o

venusto uso dos antigos, ou seja, seu padrão de julgamento é completamente histórico, não

derivando de nenhum postulado dado à priori, mas baseado totalmente na observação da

mudança de todos os aspectos do uso: gramatical, sintático e semântico.90

Como aponta Richard Waswo, os argumentos e demonstrações de Valla são às

vezes literais, às vezes oblíquos e sugestivos, mas nunca formais ou silogísticos, como os

textos escolásticos. Em resumo, ele exemplifica a filosofia retórica que ele advoga fazendo

uso de todos os recursos e registros de linguagem a seu comando, mas seu interesse maior

está no uso comum das palavras. Para Valla, o grande aspecto do uso comum do falar vai

muito além do contexto particular do orador e de seu dever de ser claro e evitar afetação,

preocupação predominante no Institutio oratoria de Quintiliano, pois ele insere essas

premissas em todas as discussões humanas, inclusive científicas. Por isso, ele ataca as

conceituações aristotélicas, como por exemplo, a de “ato” versus “potência”. Segundo

Valla:

Se uma caixa é feita deste pedaço de madeira, deveríamos dizer que este pedaço de madeira é uma caixa ‘em ato’? Quem jamais falou desta maneira? Quem não riria de alguém falando assim? [A seguir ele pergunta:] Para que serve acrescentar em ato? 91

Para ele, a distinção aristotélica é meramente preciosista, referente a si mesma,

fazendo pouco sentido na prática chamar a madeira de caixa em “potencial”, ou da mesma

forma, chamar uma caixa manufaturada de caixa “em ato”. Deste modo, perde-se a clara

distinção feita pelo senso comum entre produto e material.

No entanto, não são apenas as mudanças históricas e o uso comum atribuído às

palavras que interessavam Valla, mas também as conseqüências cognitivas derivadas de

seus métodos. Para ele a linguagem se tornava conhecimento, pois este depende do juízo

humano que se exerce aplicando nomes e usando palavras. Assim, ao invés de ressaltar a

noção da linguagem como dádiva divina, Valla preferiu dar ênfase ao seu caráter

propriamente humano, ou seja seu desenvolvimento sob o pleno exercício da razão: “O

papel de Deus não vai além de tornar a percepção e o discurso possíveis: antes ele foi

90 Waswo, R., op. cit., p. 92. 91 Valla, Lorenzo, Elegantiae, I, XVI; 678, apud Waswo, R., op. cit., p. 97.

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invocado na metáfora da luz, aqui ele é vago e simples companhia (deo autore).”92 O

conhecimento da verdade, então, já não derivava mais, então, da transcendência ou das

especulações científicas dos escolásticos, mas sim da ação humana, de sua busca em se

aproximar o quanto possível de uma verdade que é provável e mutável ao longo do tempo.

Portanto, para ele, a verdade depende do juízo humano na medida em que este depende da

semântica das palavras, pois somos nós que as aplicamos, alteramos seu sentido, deixamos

de usá-las ou criamos novas formas e expressões para que possamos representar, comunicar

e mesmo conhecer nossas próprias reflexões. A divindade não faz parte desse processo que

é exclusivamente humano e diz respeito à sua forma própria de conhecimento. “O processo

que conceitua o mundo na linguagem é humano, cognitivo, contingente e semanticamente

constitutivo.”93 Deste modo, se o conhecimento da verdade depende do conhecimento das

palavras (como Valla demonstrou em sua análise da Doação de Constantino),

imediatamente o conhecimento das línguas antigas torna-se fundamental para que o homem

possa alcançar essa verdade e, sobretudo, a verdade maior contida nas Escrituras. Esta idéia

está presente em muitos dos trabalhos de Erasmo, como em suas Paráfrases ao Novo

Testamento, por exemplo, mas foi em seus tratados pedagógicos - o De ratione e o De

copia - que o humanista desenvolveu teoricamente seu interesse principal pela pureza do

latim.

Valla aplicou este método filológico/retórico não apenas em textos não religiosos,

ele ousou ir ainda mais longe aplicando-o também ao texto sagrado em seu Adnotationes in

novum testamentum (Anotações ao Novo Testamento), cujo manuscrito Erasmo encontra,

em 1504, na abadia de Premontre nas proximidades de Louvain, e que publica no ano

seguinte. Acredita-se que sua descoberta tenha influenciado diretamente a sua elaboração

de um novo comentário sobre o texto bíblico (que começou a ser escrito entre os anos de

1505 e 1506), confirmando seu interesse não apenas pelas pesquisas filológicas de Valla,

como também por sua erudição, ao comparar inúmeros textos, incluindo os gregos, e ao

examinar os elementos gramaticais e retóricos na formação da Vulgata, criticando algumas

obscuridades em seu significado. Em carta escrita à Fischer, em 1515, Erasmo revela a seu

amigo a sua descoberta, embora diga ter pouca intimidade com a velha hostilidade que

persegue o nome de Lorenzo Valla. 92 Idem, p. 107.

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Mas, longe de frustar o autor de uma glória merecida e de privar milhares de estudantes do conhecimento desta fonte [eu ousaria dizer] que o trabalho seria muito útil e muito bem acolhido por todos os espíritos sãos e leais; e quanto aos outros, devemos desprezá-los energicamente (...) O nome de Valla com toda certeza deve estar em favor de todos aqueles que amam as boas letras por seu esforço em restaurar a coisa literária, pois ele assumiu com plena consciência de causa um papel que lhe tornaria odiado. (...) Este homem tão perspicaz não ignorava que as orelhas dos mortais eram tão sensíveis ao ponto que, mesmo entre os melhores, encontram-se poucos que entendam de bom grado a verdade.94

Em sua defesa de Valla contra as acusações de heresia por parte da Igreja, este

humanista sabia suficientemente bem o senso de ameaça latente destas observações a ponto

de justificá-las de imediato até mesmo em suas correspondências, já que para ele “a

verdade engendra o ódio”. Outro motivo para a sua defesa do grande erudito italiano

relacionava-se certamente com a publicação da sua tradução do Novo Testamento que se

daria no ano seguinte, sendo que os princípios dos seus estudos filológicos são os mesmos

firmados anos antes por Valla, cujo interesse central era conservar e restaurar a palavra das

Escrituras dos erros cometidos por seus antigos tradutores. A necessidade em se detectar e

corrigir esses erros tornava-se mais premente diante da difusão das novas técnicas da

imprensa, capaz de multiplicar tais erros para milhares de pessoas. Assim, o humanista

ressalta nesta carta a importância da crítica às expressões e palavras utilizadas na Vulgata,

se mostrando, tal como Valla fiel aos ensinamentos de Quintiliano, para quem nada serve

melhor ao aprendizado que indicar nos trabalhos dos mestres o que deve ser evitado, assim

como o que deve ser imitado.

Valla ousou censurar nestes autores qualquer pequena expressão: crime imperdoável! Como se Aristóteles não tivesse criticado um pouco de tudo neles; como se Drutus não tivesse tratado com desprezo o estilo de Cícero, Calígula o de Virgílio e Tito Lívio, Quintiliano e Aulo Gelio aquele de Sêneca! Bem longe de haver uma falta, nada é mais desejável aos estudantes que as divergências de idéias.95

93 Ibidem, p. 100. 94 "Érasme à Cristophe Fischer, Paris, mars, 1505" In Correspondance d'Érasme, carta 182, pp. 381-387. 95 Érasme à Cristophe Fischer, Paris, mars, 1505, In Correspondance d'Érasme, carta 182, pp. 383.

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Esta é sem dúvida uma das principais metas a ser desenvolvida pelas escolas, pois a

análise e a crítica dos textos é fundamental para o desenvolvimento intelectual dos alunos;

suprimir isso seria reduzir sua capacidade analítica. Por isso, ele condena “a simplicidade

da massa que tudo admira, sem escolha, se admirando reciprocamente, e se congratulando

uns aos outros.” A importância dos estudos de Valla se direciona para os alunos que não

tiveram profundo conhecimento da língua grega e que não podem por esse motivo conhecer

o texto do Novo Testamento, cuja edição conhecida pelos humanistas era traduzida

diretamente do grego e não do hebraico. Citando Santo Agostinho em sua Doutrina Cristã

(Doctrina christiana, II, II) diz Josse Bade, amigo de Erasmo, em concordância com a sua

defesa de Valla:

As coisas que estão um pouco obscuras e fechadas em uma língua

devem ser iluminadas e abertas através da comparação com uma outra língua (que seja de mais fácil compreensão). Como podemos reprovar Valla de colocar sob os olhos de todos essas passagens onde a versão em latim ora se afasta do texto grego, ora se explica mal?96

Por essa razão, a crítica textual não pode se manter reduzida apenas aos textos

clássicos, pois esses erros que Valla apontou em sua versão do Novo Testamento, assim

como aqueles que Erasmo destaca em sua tradução de 1516 do texto bíblico (como, por

exemplo, a sua alteração que vimos no item anterior de verbo por sermo) afastam o homem

da verdade contida nas Escrituras. Por que então não se utilizar desta técnica também neste

texto? Por isso, para ambos os humanistas as palavras possuem uma importância central em

suas análises, a ponto de Erasmo afirmar que “o que a roupa é para o corpo, o estilo é para

o pensamento”. Dessa forma, para ele é preciso escolhermos as palavras com o mesmo bom

gosto com que exibimos nossos adornos corporais, a decoração de nossas casas e a

preparação da nossa mesa de refeições. Não é por acaso portanto que ele recomenda aos

seus alunos a leitura dos autores antigos, a observação atenta de toda palavra importante,

todo arcaísmo ou neologismo, todo argumento finamente inventado ou habilmente

adaptado, toda beleza de estilo, todo adágio e toda sentença digna de ser memorizada.

96 "Josse Bade à Désiré Érasme de Rotterdam, 9 de mars, 1505 " in Correspondance d'Érasme, carta 183, p. 388. Esta carta é escrita logo após Erasmo descobrir o texto de Valla nas proximidades de Louvain e esboçar seu julgamento em defesa do humanista. Bade concorda com a opinião erasmiana de que Valla não merece as críticas que recebe, mas sim o reconhecimento e a amizade de todos os estudiosos.

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Erasmo desenvolve teoricamente a atenção que é preciso ter com as palavras em ensaios

como o De ratione e o De copia que passamos agora a analisar.

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5. A renovação do currículo humanista: uma análise do Rationne

studii e do De copia verborum ac rerum

A literatura pagã forma e dá vigor à inteligência dos jovens e os prepara

maravilhosamente para o conhecimento da Sagrada Escritura, já que se adentrar nela com pés e mãos sujas é quase um sacrilégio. São Jerônimo tacha de negligentes aqueles que recém saídos dos estudos profanos se atrevem a expor as Sagradas Escrituras. E quanto mais insolente é o proceder de quem sem provar os primeiros se atrevem aos segundos!1

Tal era a grande importância que Erasmo concedia aos estudos da cultura clássica

pagã para a vivência plena da Palavra das Escrituras. Nas bases de seu ideal de conciliação

entre o cristianismo e o estudo das boas letras nas escolas européias estavam as noções

humanistas fundamentais de que viemos tratando até aqui, da Dignidade do Homem e de

estímulo às capacidades de sua razão. Assim, como podemos ver nesta passagem do

Enquiridion, Erasmo foi buscar as fontes para a legitimação de seu culto à eloqüência não

somente nos autores antigos, mas nos grandes Padres da Igreja, desenvolvendo sua proposta

para uma reforma no currículo de ensino, cujo objetivo era modificar os métodos

pedagógicos, os hábitos intelectuais e a própria atitude cristã, pois também São Jerônimo,

precisou conhecer as línguas antigas para aproximar-se mais da mensagem divina em sua

essência. Esta temática faz parte recorrentemente das ambições erasmianas e se apresenta,

seja em suas correspondências, seja em suas obras maiores, desde os seus primeiros escritos

de juventude, tais como o Antibárbaros, de fins do século XV.

Para o humanista, o conhecimento dos antigos, empregado não como um fim em si

mesmo, ou seja, para proporcionar a fama e a glória a autores desejosos de exibir sua

erudição, possibilitava o desenvolvimento das capacidades críticas dos alunos. Através

deste aprendizado eles poderiam reconhecer os estilos e suas técnicas, assim como o valor

dos exemplos para alcançarem a honra de uma vida virtuosa. Em um estágio posterior, após

haver aprofundado os conhecimentos das línguas, poderia então buscar um conhecimento

1 Erasmo. Enquiridion, op. cit., p. 73.

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mais vivo e autêntico das Santas Escrituras, em sua linguagem própria, pois deste modo,

segundo ele “ela nos falará de muitas coisas proveitosas para a vida.”

Em defesa dos antigos, assim como Erasmo, muitos outros humanistas travaram

uma luta contra a Igreja e seu programa educacional que condenava como heresia este

estudo dos clássicos, pois, em sua perspectiva, os valores pagãos deviam ser

necessariamente incompatíveis com a doutrina cristã. Assim, o programa de reforma que

Erasmo propunha primeiramente em seu Antibárbaros2, uma de suas primeiras obras,

atingia de tal maneira alguns dos princípios centrais da educação religiosa tradicional que o

humanista foi inviabilizado de publicá-lo. Apenas conseguiria fazê-lo em 15203, mais de

vinte anos depois de sua redação, sendo acrescido de algumas críticas, desta vez ainda mais

contundentes contra o ensino escolástico que, alguns anos antes despertara a apreensão de

Robert Gauguin. Este humanista francês, em carta enviada a Erasmo, em 14954, responde

ao envio do manuscrito do Antibárbaros lhe advertindo do perigo que a sua divulgação

comportaria, tendo em vista o fato de Erasmo escrever em uma época em que as "vocações

profanas corriam perigo."5 Diz Gauguin:

Sua empresa contra essa espécie desprezível de homens que não cessam de desacreditar o estudo das humanidades é uma guerra difícil que atirará o ódio sobre ti. Nenhuma máquina de guerra te dará a vitória sobre essa gente que, mesmo vencida por ti, se obstinará [em permanecer] na sua ignorância por mais tempo. A arma mais eficaz para combatê-los será a estima pelas letras que acrescentam a eloqüência ao saber. (...) O que é espantoso é que entre os autores cristãos eles concordam e louvam aqueles que exprimem seu pensamento com uma língua polida e abundante em palavras: por que então eles condenam aqueles que admiram a eloqüência em outros autores? (...) Se esta é a razão que nos distingue dos seres inanimados, por que não nos esforçarmos em revelar por onde um homem pode ser superior a um outro homem sem causar prejuízo a quem faz uso destes autores? Tanto o gago é superior ao mudo quanto o bem

2 Segundo Lúcio Nassaro, a primeira redação dos Antibárbaros, de caráter mais privado, ocorreu entre 1488 e 1489, quando Erasmo tinha ainda menos de vinte anos e estudava no monastério de Steyn. Na segunda redação, entre os anos de 1494 e 1495, Erasmo já procura publicá-lo. Fato este que se comprova também por sua carta à Gauguin (que citamos acima) no ano de 1495, visando obter deste humanista um parecer favorável a publicação de sua obra. Sobre os Antibárbaros e a necessidade dos studia humanitatis, ver a dissertação de Nassaro, sobretudo os capítulos III e IV, onde o autor trata especificamente destas temáticas. Nassaro, Lúcio. A Unidade da Verdade em Erasmo. São Paulo: Departamento de Filosofia. Dissertação de Mestrado, 2005. 3 Sobre esse assunto ver a obra de Mecenas Dourado onde ele analisa comparativamente algumas diferenças existentes entre o texto original e o que foi publicado em 1520. Cf.: Dourado, M. Erasmo e a Revolução Humanista. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1968, capítulos 1 e 2. 4 Robert Gauguin à Érasme (Paris, octobre, 1495) in: Correspondance d'Érasme 1484-1517. Edition Intégrale. Tome I. Paris: Gallimard, 1968, pp.124-6. 5 Garin, E. L'Éducation de l'Homme Moderne, op. cit.

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dizer é superior ao gago e a eloqüência predomina sobre o bem dizer. (...) Eu não te censuro por combater contra os inimigos das belas letras, pois é necessário fazê-lo da maneira mais ameaçadora.6

Como podemos perceber, aparentemente Gauguin concorda enfaticamente com as

críticas de Erasmo àqueles que desconfiam do poder da eloqüência. Entretanto, após elogiar

a clareza na exposição do humanista deste tema tão controverso, a forma da composição e a

"graça na utilização dos ornamentos", o seu conselho a Erasmo é justamente diminuir a

parte do diálogo em que William Batt, personagem principal e porta-voz do autor7 nos

Antibárbaros, se ocupa em defender as boas letras. A justificativa para esta correção seria

que Batt discursa um bom tempo sem nenhum interlocutor lhe responder, e este fato

deixaria o texto muito longo e fatigante, tendo em vista que não há a alternância dos

argumentos como há nos diálogos de Platão e de Cícero. Esta crítica em relação à forma do

texto, se Erasmo a tivesse aceito, poderia alterar profundamente a estrutura do texto, pois a

defesa mais contundente das boas letras, assim como as críticas mais duras aos padres e

teólogos e, enfim, a todos aqueles que reprimiram o estudo dos clássicos após o fim do

Império Romano, foram encarnadas pelo personagem de Batt.

Erasmo já antecipava no Antibárbaros alguns dos preceitos fundamentais que iriam

fazer parte alguns anos mais tarde do Rationne studii e do De copia, os primeiros e

principais manuais pedagógicos da Renascença, pois influenciaram a publicação de muitos

outros textos cuja preocupação central era ensinar os alunos a lerem, a compreenderem, a

imitarem e a incitarem os alunos a produzirem outros textos com base nos antigos.

Contudo, havia a dificuldade inerente à função do professor, pois este não poderia mudar o

6 Carta de Robert Gauguin a Erasmo, Paris, outubro de 1495, carta 46 In Correspondance d'Érasme, op. cit., p. 124-25. 7 Batt ressalta que são inúmeros os adversários da alta cultura, separando-os em três categorias. Os primeiros adversários são os incultos, que por estupidez ou sob pretexto da religião, desejam a destruição total das letras. Segundo Batt, estes são os verdadeiros "bárbaros" ao lutarem contra toda literatura e contra a glória da república das letras. Apesar disso, eles não marcham para o combate, pois não possuem nem o armamento nem a ciência da guerra. A segunda categoria, um pouco mais equipada, diz ele, "possuindo mais disfarces que Proteu", realiza seus ataques tanto de longe quanto de perto. Estes não trabalham para extingui-la inteiramente, mas para restringi-la em seus limites, aceitando outros estudos mas temendo as humanidades. Já os terceiros desejam a manutenção da república das letras mas sob a condição de que eles próprios sejam considerados os maiores poetas e retóricos. Sem responder qual seria o pior dos inimigos das letras, ele diz que os humanistas devem lutar contra todo tipo de barbarismo escolástico, posto que não admitem abandonar velhos preconceitos doutrinários postulando a pretensa incompatibilidade entre o cristianismo e a cultura pagã.

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currículo escolar, neles acrescentando um estudo mais profundo das disciplinas

humanísticas. Diz Batt no Antibárbaros:

Se nós esquecermos de usar as invenções do mundo pagão nos campos, nas cidades, nas igrejas, no trabalho e na guerra isso não causaria aos cristãos nenhum mal. O fato é que nossa escrita e nossa fala veio até nós através dos pagãos; eles descobriram a escrita, eles inventaram o uso do discurso.8

É verdade, portanto, acrescenta Batt, que algumas das invenções dos pagãos são

questionáveis, mas outras - como a escrita e a arte do discurso - são necessárias e úteis,

sendo a linguagem uma dádiva universal de Deus aos homens. Por que então não podemos

absorver o que há de bom nelas para nós mesmos, "se as conquistas dos pagãos fazem parte

de um plano divino"9? Acreditamos ser este o ponto central da defesa erasmiana da cultura

pagã, pois o humanista diz que as maravilhas do mundo, a descoberta do sistema de saber,

assim como tudo que foi "brilhantemente dito e diligentemente transmitido", foi dado aos

pagãos pela Providência divina para que a desenvolvessem sob os poderes de sua razão,

fornecendo importantes subsídios para que posteriormente a religião cristã pudesse ser

purificada em sua essência e ajudada pelo mais alto conhecimento. 10 Mas, em vez dos

cristãos aproveitarem a herança das sociedades antigas, "eles trouxeram perigo e confusão

para o legado pagão”11. Portanto, na sua opinião: “não há erudição na existência exceto

pelo que é secular ou que seja pelo menos encontrada ou informada pela literatura

secular.”12

Esta questão é sem dúvida crucial na estruturação do texto erasmiano, sendo a partir

da utilidade para o cristianismo atribuída pelo humanista à sabedoria pagã que se desenrola

de forma mais sólida a defesa das boas letras. Com efeito, ao potencializar a importância

dos Antigos, não se referia nunca ao conteúdo de sua crenças religiosas próprias, mas

tratava especificamente do legado pagão de aprendizagem e da importância da linguagem

enquanto criação do homem, para o entendimento das sutilezas, das metáforas e das

8 Erasmo. "Les Antibarbares" in Oeuvres Choisies, p. 57. 9 Idem, p. 58-59. 10 James MacConica também ressalta este ponto em sua análise como uma questão central na defesa de Batt das letras clássicas. Cf.: MacConica, James "Erasmus" In Renaissance Thinkers. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 16. 11 Erasmo. "Les Antibarbares", op. cit., p. 61. 12 Idem, p. 62.

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parábolas do texto bíblico. Esta temática se repete também no Enquiridion, cuja passagem

citamos no início deste capítulo.

Mas é já no início de sua carreira literária, no Antibárbaros que Erasmo explicita

este ponto principal de seu pensamento e objetivo primeiro de seus esforços. Consegue

justificar perfeitamente então a necessidade do estudo dos antigos em benefício da pureza

do espírito cristão. Afinal, o uso da linguagem e das capacidades da razão era atributo

divino aos homens, fossem eles cristãos ou pagãos. Cabia ao cristão, nesta perspectiva,

utilizar-se bem das criações da razão dos gregos e romanos antigos ainda que não

conhecessem a mensagem divina. Elas possibilitariam a homens como Lorenzo Valla a

restauração da Palavra viva de Deus aos homens, obscurecida pelos erros do passado

medieval. Como, do ponto de vista do cristianismo humanista, centrado na práxis, os

desígnios divinos não podiam ser conhecidos pelo homem, dada a limitação de sua própria

natureza face à onipotência de Deus, cabia-lhes os estudos do saber propriamente humano e

de seus valores, como expressão da centelha divina de seu espírito, em qualquer tempo:

Diz-me que não deveríamos ler Virgílio porque está no inferno. Achas que muitos cristãos, cujas obras lemos, não estão no inferno? Não nos compete discutir se os pagãos antes de Cristo foram condenados. Se quiseres rejeitar tudo o que é pagão, terás que abandonar o alfabeto, a língua latina e todas as artes e ofícios.13

Foi dessa forma que Erasmo procurou conciliar a cultura pagã com o texto bíblico, e,

ao mesmo tempo, não subjugar os estudos da tradição clássica ao controle e interesse dos

teólogos que suprimiam a sua importância. Enfatizava que devia-se ter em mente que as

línguas grega, latina e hebraica (assim como sua gramática) foram essenciais para a

construção de uma sabedoria primordial responsável pela iluminação até mesmo do saber

cristão. E é assim que Erasmo conclui sua obra: "resta-nos refutar aqueles que dizem que

não é para um cristão prestar atenção na eloqüência14".

5.1) O Rationne studii

13 Idem, p. 98. 14 Erasmo. "Les Antibarbares", op. cit., p. 121.

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A influência de Erasmo foi determinante e quase incalculável para a difusão de uma

nova concepção educacional por diversos países transalpinos, ao colocar sempre em

primeiro plano nas suas obras o valor da formação nas bonae litterae. Após críticas ao

sistema educacional de sua época, ele elabora em um período em que o modelo curricular

não estava fechado acerca dos objetivos mais adequados à educação e da melhor forma de

alcançá-los, um esboço de seus métodos humanistas intitulado De rationne studii15 (Plano

de Estudos ou Método para estudar), publicado em 1511. Erasmo dedica esta obra a Pierre

Viterios, professor das artes liberais em Paris, para atender aos interesses dos alunos aos

quais ele ensina. Segundo ele:

Tu me pedes que eu te prescreva um plano de estudos e um método que tu seguirás como o fio de Teseu para te encontrares nos labirintos dos autores. E no que me concerne, é de muito bom grado atender a um amigo tão caro (...) de cujo pedido tão nobre pode-se esperar tantos frutos.16

Este pequeno esboço de um currículo modelo, baseado em sua experiência

pedagógica adquirida durante os anos em que foi professor em Paris, foi, segundo

Skinner17, um dos primeiros a sintetizar os ideais humanistas, tendo influenciado por muito

tempo diversos outros manuais, como o de Juan Luis Vives, De tradendis disciplinis, de

1531, o de Sir. Thomas Elyot, The Book named the Governor (O Livro chamado O

Governante), também publicado em 1531, o tratado de Roger Ascham, The Schoolmaster

(O mestre-escola), publicado pela primeira vez em 1570, entre outros escritos realizados ao

longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Um fato que nos chama atenção nesta obra, além da

sua grande repercussão nas escolas e universidades européias, é que ela constitui um

modelo para a organização e sistematização do saber pautado essencialmente nos autores

clássicos, tendo como principal objetivo o desenvolvimento de duas das cinco tarefas

atribuídas aos oradores antigos: a inventio e a elocutio. Seguia fielmente neste ponto a

forma dos tratados clássicos.

15 Erasmo. "Rationne studii" In Oeuvres Choises, pp. 228-233. 16 A intenção de Erasmo era dedicar o Rationne a Thomas Grey, no entanto, sua cópia foi roubada em Ferrara por Guilherme Thale que publicou o texto colocando seu nome na dedicatória. Quando Erasmo percebeu a fraude ele dedicou o trabalho a Pierre Viterius, amigo de Thomas Grey. Cf.: Érasme. Correspondance, p. 166. 17 Skinner, Q. "O estudo da retórica" In Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, pp. 41-100.

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Havia uma concordância geral nos tratados antigos quanto ao número das

faculdades que qualquer orador deveria possuir e a ordem em que elas tinham de ser

discutidas. De acordo com o Ad Herennium (o mais antigo manual romano sobre a

eloqüência cuja autoria é desconhecida), entre as cinco capacidades que o orador deveria

cultivar, a primeira era a inventio, ou seja, a capacidade de “descobrir as coisas verdadeiras

ou verossímeis que tornem a causa provável.”18 A segunda, a dispositio, que era a

capacidade de “ordenar e distribuir essas coisas: mostra o que deve ser colocado em cada

lugar”.19 A elocutio vinha em terceiro lugar, tratando da acomodação de palavras e

sentenças adequadas à invenção”.20 Em seguida vinham a memoria, “a firme apreensão, no

ânimo, das coisas, das palavras e da disposição”21 e a pronuntiatio, que tratava da

“moderação, com encanto, de voz, semblante e gesto.”22 Embora essa divisão esteja

presente nos tratados antigos, o peso que davam para cada uma das faculdades do orador

era diferenciado.

Em geral, apesar de sua importância na arte da eloqüência, a memoria e a

pronuntiatio não eram exploradas com tanta profundidade pelos tratados, ao nos voltarmos,

em contraste, para a inventio, a dispositio e a elocutio, encontraremos análises muito mais

minuciosas por parte dos retóricos romanos. Autores como Cícero, Quintiliano e o próprio

texto do Ad Herennium, começam invariavelmente pela inventio, conceito geralmente

traduzido como invenção dos argumentos. No entanto, associar a inventio à idéia de

fabricação ou elaboração de argumentos não nos parece ser uma idéia que traduza bem o

sentido deste termo, pois na Antigüidade a faculdade da invenção era a de descobrir os

“lugares” em que se podiam encontrar argumentos adequados, com o objetivo de apresentá-

los da forma mais persuasiva. A ênfase do conceito recaía portanto não tanto na criação de

formas e palavras novas, mas sim no bom uso das que já existiam. Textos como o Ad

Herennium e o De Inventione, de Cícero, atribuíam maior importância e dificuldade, entre

as cinco tarefas do orador, à inventio. No entanto, em textos como o De Oratore, escrito em

uma fase posterior, a parte mais significativa da tarefa do orador como dissemos no

primeiro capítulo, definia-se pela elocutio, sua virtude própria em que se manifestava todo

18 Retórica a Herênio, I, II.3, p. 6. 19 Ibidem, I, II. 3, p. 6. 20 Ibidem, I, II. 3, p. 6. 21 Ibidem, I, II. 3, p. 6. 22 Ibidem, I, II. 3, p. 6.

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o esplendor da arte da palavra. Erasmo retomava a tradicional primazia da Inventio dos

tratados antigos mas não deixava de concedê-la também à elocutio, na mesma proporção,

reafirmando sua concepção eminentemente artística do uso da língua.

Uma vez tendo descoberto quais argumentos utilizar, o orador devia aprender a

distribuí-los da maneira mais eficaz em seus discursos. Embora concordassem que a

dispositio constituía a segunda parte da retórica, os autores romanos discordavam quanto a

seu caráter e importância. Enquanto o personagem de Marco Antônio fornece no De

Oratore uma análise completa de uma disposição efetiva, tema que ele distingue

explicitamente da invenção de argumentos23, Quintiliano em sua Institutio Oratoria, incluía

a dispositio no âmbito da inventio.24

Quanto à elocutio, a capacidade de falar e escrever com plena expressividade e, por

conseguinte, da maneira mais persuasiva possível, segundo o Ad Herennium, existem três

aspectos principais, garantidores do alcance de uma elocução cômoda e perfeita. “Para que

convenha o mais possível ao orador, ela deve ter três características: elegância,

composição, dignidade.”

A elocução faz com que cada tópico pareça ser dito correta e claramente. Dividi-se em vernaculidade e explanação. A vernaculidade conserva a fala pura, afastada de todo o vício. A explanação torna o discurso claro e inteligível. (...) Composição é o arranjo de palavras que torna todas as partes do discurso igualmente bem polidas. Havemos de conservá-la se evitarmos encontros freqüentes de vogais que deixam o discurso com vazios e hiatos, (...) e evitarmos a excessiva ocorrência da mesma letra, (...) ainda se evitarmos a repetição da mesma palavra (...) e não usarmos seguidamente palavras de terminação igual (...). A dignidade é o que torna o discurso ornado, fazendo-o distinto pela variedade.25

Cícero, em seu De Oratore, prefere deixar de lado os preceitos relativos à pureza

do latim, pois estas são lições dadas às crianças. Em relação à perfeita clareza do discurso é

evidente, diz ele, que o orador deva “falar com um latim puro, com palavras que exprimam

de maneira precisa o que se quer enunciar, que não empregue períodos muito longos, não

prolongue as metáforas emprestadas para comparação com outros objetos...”26 Insistia mais

na importância da variedade das expressões, palavras, ornatos e temáticas do que 23 Ciceron. De L’Orateur, op. cit., II, LXXXVI. 24 Quintilien. Institution Oratoire. Paris: Belles Lettres, 1979, Proêmio, v. I. 25 Retórica a Herênio, IV, 17, pp. 223-224.

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propriamente na clareza e na pureza do latim, condições que o orador já deveria saber a

priori.27 No De copia, tal como Cícero, Erasmo afirmava a profunda relevância da

varietate, destacando de maneira significativa em seus manuais apenas duas das cinco

funções inerentes à função do orador: a inventio e a elocutio.

Diferentemente de Cícero, por exemplo, Erasmo no Rationne studii não faz maiores

comentários sobre a dispositio, seu objetivo maior é levar o aluno a adquirir a capacidade

da invenção, para que pudesse libertar-se dos seus modelos, assim como ensiná-lo a

escolher as palavras mais adequadas ao discurso, e os tropos e as figuras de linguagem que

melhor contribuíssem para o sucesso de sua argumentação. Procurando perceber quais os

interesses mais imediatos do humanista no pequeno esboço do Rationne studii,

analisaremos passo a passo o seu método para conduzir os alunos na conquista de tais

requisitos fundamentais para a educação humanista.

A primeira reivindicação de Erasmo nesta obra é em relação à gramática. A

gramática do grego e do latim deveriam ser ensinadas às crianças desde o início do

aprendizado, não somente porque nessas duas línguas estava quase tudo que merecia ser

conhecido, mas também porque elas se pareciam uma com a outra, sendo, desta forma,

mais fácil ensiná-las juntas do que separadamente. Segundo ele, é fundamental que o aluno

cultive e assimile os rudimentos das duas, seja através de um preceptor, seja através da

escolha dos melhores autores, que ele espera que sejam pouco numerosos, porém bem

escolhidos. Nesse texto desaparece, portanto, o desprezo que o humanista nutria pelos

gramáticos no contexto do Elogio da Loucura, "raça de homens que seria a mais calamitosa

e mais malquista pelos Deuses..., cuja maior felicidade vem-lhes do contínuo orgulho de

seu saber.”28 No Rationne, pelo contrário, Erasmo considera importante o conhecimento

dos gramáticos gregos como Theodore Gaza e Constantin Lascaris, destacando entre os

modernos o trabalho de Nicolas Perotti, que parece ser o mais preciso de todos, sem ser, no

entanto, muito detalhista.

Mas, se eu reconheço que os preceitos desse gênero são necessários, eu

espero que, na medida do possível, eles sejam pouco numerosos, desde que sejam os melhores. Jamais eu aprovei os professores que fazem com que as crianças passem muitos anos nesse tipo de aprendizado. Pois, a verdadeira

26 Ciceron. De L’Orateur, III, XIII, 48-49. 27 Idem, III, XIII, 48-51. 28 Erasmo. Elogio da Loucura, p. 61.

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aptidão para falar corretamente se adquire da melhor maneira falando e vivendo com aqueles que falam puramente, e, sobretudo, pela leitura dos autores eloqüentes, dos quais é preciso impregnar-se, e daqueles cujo estilo é o mais puro, mas que também dão prazer àqueles que os estudam por um certo atrativo do assunto que abordam29.

Desde seus primeiros trabalhos e correspondências, até seus últimos escritos, como

é o caso do Dialogue sur la pronuntiation correcte du latin et du grec (1528), que citamos

no primeiro capítulo, Erasmo destaca a necessidade do conhecimento do latim e do grego,

não apenas por seu valor formal, mas pelo fato de que todas as coisas dignas de serem lidas

foram escritas nestes dois idiomas, pois deste aprendizado depende a dignidade e a

felicidade de todo ser humano: “que ele se torne um homem e não uma besta.”30

Entretanto, pode parecer curioso mas o humanista só aprendeu o grego, língua que

sem a qual, escreve Rabelais, "nenhuma pessoa pode se dizer sábio", após os seus trinta

anos durante a sua estadia na Inglaterra, e não na primeira infância, como ele propõe no

Rationne. Foi apenas a partir dos contatos travados neste país com Thomas More, Willian

Grocyn e John Colet, que o orientam decisivamente em direção aos estudos bíblicos, que

Erasmo concentrou todos os seus esforços na recuperação de sua defasagem no

conhecimento desta língua e, por sua vez, de toda a cultura grega.

Em 1505, então com 38 anos, Erasmo se inscreve na faculdade de Teologia de

Cambridge para ali preparar o seu doutorado, aperfeiçoando o grego e estudando

simultaneamente a literatura pagã e a bíblica. A paixão pela precisão e pelo poder de

sugestão desta língua, leva o humanista a realizar inúmeras traduções de autores gregos31:

dos diálogos de Luciano (juntamente com More), de Eurípedes e de Plutarco, além de, entre

os anos de 1511 e 1514, ele próprio ministrar alguns cursos públicos de grego na

29 Da mesma forma, esta mesma preocupação se repete em seu Dialogue sur la pronunciation correcte du latin et du grec, de 1528, onde ele afirma ser esta a característica essencial que distingue o homem dos animais, devendo ser desenvolvida ainda na infância esta aptidão inata ao aprendizado. Erasmo. “Rationne studii” In Oeuvres Choisies, p. 229. 30 Erasmo. "Dialogue sur la pronunciation correcte du latin et du grec (1528)" In Érasme: Oeuvres Choisies, op. cit., pp. 906-907. 31 Erasmo diz em seu De Copia que a tradução de textos gregos é um excelente exercício para o treino da língua. Podemos perceber, devido às diversas traduções de autores gregos feitas pelo humanista, que ele realmente baseia seus escritos pedagógicos em sua própria experiência. Além disso, Erasmo critica a impertinência daqueles que se dedicam à análise das Escrituras sem antes conhecer os textos clássicos; e ele mesmo só se resolve a traduzir o Novo Testamento após ter se exercitado bastante na língua grega com suas leituras e publicações de autores como Luciano e Eurípedes.

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Universidade de Cambridge, publicar sucessivamente seus dois tratados pedagógicos - o

Rationne e o De copia (em 1511 e 1512) - para só depois trabalhar com empenho em uma

das suas obras mais importantes: a edição greco-latina do Novo Testamento, publicado em

1516.32

A valorização do grego pelos humanistas ingleses era tamanha que o Colégio de São

Paulo, fundado por Colet em 1508, foi o primeiro estabelecimento a introduzir essa língua

como disciplina regular no ciclo de estudos.33 A sua importância, no entanto, já vinha sendo

percebida por diversos autores da Renascença italiana como Leonardo Bruni, chanceler

florentino, que relatou com entusiasmo a chegada no fim do século XIV de um famoso

mestre das letras gregas, Emanuel Chrysoloras, proveniente de Bizâncio, então ocupada

pelos turcos. Com a sua vinda, os sábios cidadãos de Florença poderiam finalmente entrar

em contato com os saberes da cultura helênica:

Eis que tu podes ver Homero, Platão, Demóstenes e outros poetas, filósofos e oradores (...), vê-los e também falar com eles, impregnar-te de sua admirável ciência; e tu a deixarás passar? Depois de quase setecentos anos, ninguém na Itália ainda conhece as letras gregas das quais se reconhece que procede toda a ciência (...) Chrysoloras, ele é o único doutor em letras gregas. Se ele se for, tu não encontrarás nenhum outro para que te as ensine.34

Como compreender as metáforas ou as sátiras empregadas pelos autores antigos se

não houver um profundo conhecimento da sua língua? Para Erasmo, negligenciar o estudo

da linguagem é o mesmo que condenar ao fracasso o aprendizado das coisas, como ele

afirmava já no Antibárbaros, fazendo alusão aos filósofos e teólogos escolásticos que se

mantiveram indiferentes ao estilo, à eloqüência e assim também à pureza da Palavra e a

realização de sua essência ativa, pela qual penetrava nos corações dos homens. Em relação

ao seu apreço pela pureza do latim, como demonstramos no capítulo anterior, Erasmo

recebeu forte influência de Valla, a quem defendeu repetidas vezes em suas 32 Sobre a vida de Erasmo ver: Halkin. "Inglaterra, una segunda patria" in: Erasmo entre nosotros. Barcelona: Editorial Herder, 1995, pp. 57-79. 33 Godin. "Dictionnaire" in: Érasme: Éloge de la Folie, Adages, Colloques..., p. 95. 34 Leonardo Bruni apud Eugênio Garin. L'Éducacion de l'Homme Moderne (1400-1600). Paris: Fayard, 1968, p. 91. P. O. Kristeller também destaca a importância do conhecimento da língua e da cultura grega para a formação humanista, assim como também faz referência à participação de Emanuel Chrysoloras. Diz o autor que, com a chegada deste especialista iniciou-se, mais de meio século antes da queda de Constantinopla, o êxodo de eruditos bizantinos para a Itália. Em relação a difusão da cultura

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correspondências relatando sua indignação com as críticas e as injúrias feitas ao "mais

eloqüente dos homens": "ele que por tanto estudo, dedicação e fadiga, refuta as parvoíces

dos bárbaros e salva do aniquilamento as letras quase enterradas.”35 O domínio dessas

línguas é uma propedêutica indispensável à apreensão das ciências liberais – poesia,

retórica, dialética, história e filosofia moral – disciplinas que constituem a essência do

currículo humanista.

Associado ao estudo das línguas antigas, Erasmo destaca a importância de alguns

gramáticos nos quais os alunos devem se pautar para aprofundar seus estudos. Diz ele:

Então, para que possamos colher mais cedo os frutos mais copiosos dos autores nos quais afirmei ser necessário buscar a riqueza da língua, eu gostaria que lêssemos com aplicação Lorenzo Valla, que sobre a elegância da língua latina escreveu da maneira mais elegante. (...) Entretanto, eu não desejaria que sejamos em tudo submissos aos preceitos gramaticais de Valla. Seremos ajudados além do mais se aprendermos de cor as figuras gramaticais ensinadas por Donat e Diômede; se tivermos na memória todas as leis e as formas de versos; se conhecermos bem o essencial da retórica, isto é, as proposições, os argumentos, os ornamentos, as amplificações e as fórmulas de transição. Porque tudo isso é útil não apenas para julgar, mas também para imitar.36

Embora o humanista valorize e respeite o trabalho filológico de Valla, defendendo-o

sempre dos seus críticos mais mordazes, Erasmo já deixa claro, mesmo em suas

correspondências mais antigas, que não é adepto da devoção exclusiva a um único autor,

estimulando fortemente, pelo contrário, a inventio, na diversidade de exemplos e, por sua

vez, de proposições, de ornamentos, técnicas de redescrição, entre outros.

Após o aprendizado das línguas grega e latina, o 2º passo estabelecido por Erasmo

a ser dado pelos alunos seria a leitura cuidadosa de alguns dos mais importantes expoentes

da cultura clássica. Nada melhor para educar os homens a serem artífices de sua própria

humanidade do que a leitura dos textos profanos, que, ao contrário dos textos rigorosos de

teologia, traduziam realidades exemplares com imagens imediatas e facilmente

apreensíveis. O contato com estes textos não se afirmava apenas enquanto escola de moral

universalmente humana, mas, sobretudo, porque propiciava simultaneamente o helênica na Itália ver: "Renaissance thought and bysantine learning" in: Kristeller. Renaissance thought and its sources. New York: Columbia University Press, 1979, p. 143. 35 Erasmo a Cornélio Gerard, Steyn, julho de 1489 In Érasme. Correspondance, p. 91. 36 Erasmo. "Rationne studii" In Oeuvres Choisies, p. 231.

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conhecimento histórico do mundo antigo em todos os seus aspectos, assim como uma

aquisição mais precisa de um manancial de exemplos, de expressões, de palavras e de

ornatos que funcionariam como um rico acervo de que o orador poderia servir-se em seus

discursos. Devido a essa grande importância dos Antigos para o enriquecimento da cultura

moderna Erasmo se preocupava em indicar quais são os manuais necessários ao

aprendizado, assim como o que convém observar e notar no autor estudado. Não é sem

propósito que o início do aprendizado é dedicado à imitação, sendo a leitura acompanhada

de exercícios escritos para que o aluno constituísse um verdadeiro "tesouro na memória".

Para Erasmo, a verdadeira aptidão para falar corretamente se adquire falando e

vivendo com aqueles que falam da forma mais pura37 e, sobretudo, pela leitura dos autores

eloqüentes, entre os quais devemos procurar não só aqueles que possuem o melhor estilo,

mas também àqueles que dão prazer aos estudantes pelo atrativo dos temas que abordam.

Nesse gênero, entre os gregos, Erasmo cita em primeiro lugar Luciano, em segundo

Demóstenes e em terceiro Heródoto. Do lado dos poetas, o primeiro lugar é de Aristófanes,

o segundo de Homero e o terceiro de Eurípedes.

Entre os latinos o primeiro lugar é de Terêncio (cujo estilo puro, limpo e muito

próximo da linguagem cotidiana, é também agradável aos adolescentes pela natureza do

gênero. "Se julgarmos [boa idéia] acrescentar a ele algumas partes escolhidas de Plauto

desprovidas de obscenidade, eu não veria de minha parte nenhum inconveniente38". O

segundo lugar seria de Virgílio, o terceiro de Horácio, o quarto de Cícero e o quinto de

César. "Se acharmos útil acrescentar Salústio eu não me coloco muito contra, e julgo que

esses autores são suficientes para o conhecimento das duas línguas.”39

Existem alguns aspectos curiosos nesta lista de autores que gostaríamos de ressaltar,

tais como: a moralidade erasmiana ao escolher somente as peças de Plauto que estivessem

desprovidas de obscenidade; a total ausência de autores cristãos40, a sua preferência pelos

37 Erasmo, em viagem para a Itália, freqüentou a academia do importante editor Aldo Manucio, onde pôde aperfeiçoar seus conhecimentos da língua e da pronúncia grega, sendo esta a única língua falada pelos humanistas que ali se encontravam. 38 Erasmo. Rationne studii, p. 229. 39 Idem, p. 229. 40 Desde o Antibárbaros o humanista já proclama que apenas há cultura (eruditionem) entre os antigos, fazendo uma série de críticas aos autores cristãos, sendo os melhores aqueles que fizeram uso da cultura clássica, como Santo Agostinho e São Jerônimo. Essa defesa exacerbada do paganismo feita por Erasmo foi atacada diversas vezes por diferentes frentes de combate, como pelos teólogos de Louvain e da Sorbone, e

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poetas; a ausência de autores que são recorrentes em suas obras como Platão, Sêneca,

Tácito e Quintiliano e a referência a outros que quase não vemos citados em seus trabalhos

como César. Poderíamos ainda nos perguntar qual a ordem dos autores a serem estudados,

qual o tempo que seria dedicado a cada um deles e quais os trabalhos de Cícero ou

Demóstenes deveríamos privilegiar. Estas escolhas seriam feitas apenas pelo preceptor ou

as preferências dos alunos seriam consideradas? Estas questões sem dúvida não faziam

parte das preocupações do humanista neste pequeno ensaio, porque ele não faz nenhuma

menção a elas em seu texto. Portanto, quaisquer que sejam as reservas e as interrogações

deste gênero quanto ao manual de Erasmo devemos ressaltar sobretudo o espírito novo de

suas idéias e a importância decisiva de suas escolhas, principalmente se o compararmos

com qualquer um dos programas medievais.

Estes, segundo Mecenas Dourado41, centravam sua educação na leitura de

compilações que agrupavam extratos de Varrão, Virgílio, Cícero, Salústio, Celso, Valério

Máximo, Catão, Ovídio, Macróbio, Epicuro, Apuleio, Plotino, Teofrasto, do Talmud, de

Plauto, Terêncio, Sêneca, Simaco, Hildebert de Mans, Claudiano, Prudêncio, Empédocles,

Diógenes, Estácio, Lucano, Rufino, Horácio, S. Bernardo, S. Agostinho... E tudo isso na

desordem de 355 folhas de um manuscrito de pequeno formato marcado pela

superabundância de autores cujos fragmentos eram escolhidos sem nenhum critério e que

não dariam, de forma alguma, oportunidade para o florescimento nem do espírito crítico

nem da capacidade criativa.42

Temos, portanto, de pensar o Rationne studdi como um manual que dialoga e se

opõe diretamente à esta tradição absolutamente restritiva, se comparada com o amplo saber

pregado pela pedagogia humanista. Face a este tipo de ensino que era ministrado com base

em compilações que reuniam, sem critério, fragmentos de autores de todo tipo sem

ainda pelos participantes da Assembléia de Valladolid, reunidos para condenar as heresias dos textos erasmianos, criticando, entre outros aspectos, as diferentes obras onde o humanista expunha seus novos projetos para a educação moderna. 41 Dourado, Mecenas, op. cit., p. 25. 42 O autor cita ainda outros exemplos que compunham a pedagogia medieval como o Mametrectus, que fazia o comentário da Bíblia inteira; o Legenda Santorum, sobre vários sermões, antifonias e hinos, com algumas notas sobre os meses hebreus, indumentária eclesiástica e outros assuntos semelhantes para uso dos discípulos da Igreja; o Catholicon, um dicionário muito usado pelos teólogos, cuja segurança na etimologia das palavras não era garantida; o Ebrardus, que era ao mesmo tempo vocabulário e gramática; o Cornutus, composto de dísticos que deviam ser aprendidos de cor, ensinando ainda a significação das palavras de bom emprego entre gente culta, e outros, sendo uma característica comum entre todos esses trabalhos o "pedantismo e a barbaria”. Idem, pp. 25-30.

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nenhuma atenção para o estilo e os ornamentos do texto nem as palavras, sem, enfim, uma

concepção que valorizasse a linguagem enquanto criação da razão humana, Erasmo

estabelecia novas bases para o saber onde o domínio da variação das formas e dos

exemplos nos escritos antigos é fundamental num contexto ideológico que privilegia a

formação de julgamentos críticos e ativos socialmente.

Quintiliano afirma, num trecho bastante influente do livro X de sua Institutio

Oratoria, que um orador deve tentar dominar três scientiae além da própria retórica, que

seriam a poesia, a história e a filosofia moral. Em seguida, ele fornece uma lista de autores

especialmente dignos de estudo em cada uma dessas disciplinas. Entre os poetas ele cita

Homero e Virgílio; entre os historiadores, Tucídides e Heródoto, ao lado de Salústio e Tito

Lívio, entre os romanos; e, em se tratando de filosofia moral ou cívica, acrescentara sem

hesitação que, “Cícero, que se destaca em todas as formas de produção literária, consegue,

nessa forma, rivalizar até com o próprio Platão.”43 Segundo Skinner, foi essa visão romana

dos studia humanitatis que a grande maioria dos teóricos educacionais do Renascimento

procuraram fazer reviver.44 E se compararmos esta lista com a de Erasmo veremos que

apenas os historiadores Tucídides e Tito Lívio não fazem parte da sua seleção, pois o

humanista não destaca esta categoria em separado, preferindo aqueles autores cujo atrativo

na leitura poderiam seduzir mais facilmente os alunos. A seleção de Erasmo, de qualquer

modo, seria adotada por inúmeros outros manuais da época. Vives, por exemplo, que dá

prosseguimento a muitas das temáticas tratadas pelo humanista, sobretudo aquelas relativas

à educação, ao final do seu Tratado de la Enseñanza (De tradendis disciplinis) afirma que

devemos concentrar-nos nas obras em que encontramos o saber exposto da maneira mais

direta, ou seja, nas grandes obras da Antigüidade.45

Erasmo valorizou ao longo de sua vida as obras dos antigos, tanto editando-os

quanto traduzindo-os (como fez com as obras de Plauto, Terêncio, Platão, Plutarco, Cícero,

Sêneca e Luciano), pois acreditava nos modelos de ética e de moral por eles fornecidos.

Entre muitos exemplos de seus esforços no campo pedagógico, podemos citar os Adágios,

onde ele deseja não apenas suprir seus leitores com os rudimentos da educação clássica,

43 Quintilien. Institution Oratoire, livro X, 1. 123. 44 Skinner, Q. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, pp. 41-48. 45 Vives, Juan Luis. Tratado de la Enseñanza; Introdución a la Sabeduría; Escolta del Alma; Diálogos; Pedagogía Pueril. México: Editorial Porrúa, 2004.

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mas também chamar-lhes a atenção para a forma desses textos, favorecendo o aprendizado

e, sobretudo, a aplicação prática desses conhecimentos nas suas próprias vidas. Nessa obra,

publicada pela primeira vez em 1500, (muito antes da elaboração de seus textos mais

teóricos), ele já sustentava uma ética da busca da interpretação mais apropriada para a vida

cristã, estando mais interessado não no produto da interpretação, a ser dogmatizado como

verdade, mas sim no processo e no esforço analítico, enfim, na liberdade de pensamento e

na crítica, frutos do aprendizado liberal. É a partir dessa motivação e do uso prático que

Erasmo faz do aprendizado que pretendemos analisar seu modelo curricular.

Uma vez que aprendesse as gramáticas grega e latina, o humanista dizia preferir que

a criança fosse iniciada na arte da conversação, devendo dedicar-se a aprender a falar as

línguas antigas como línguas vivas, sendo esta a terceira etapa educacional que deveria

cumprir. Preocupava-se tanto com a pronúncia quanto com a gramática, cujo significado

podia ser alterado ao longo do tempo, procurando devolver à língua a sua pureza e a sua

dimensão histórica. Tendo adquirido a capacidade de falar, senão exuberante, pelo menos

convenientemente, é necessário que o aluno se volte em seguida para a compreensão das

coisas, ou seja, da matéria de seu discurso. Este é o 4º passo a que devia se dedicar

assiduamente o aluno.

Embora os escritores que nós lemos para polir a nossa língua nos forneçam um conhecimento das coisas mais que mediano, é necessário de modo sistemático perguntar quase toda a ciência das coisas aos autores gregos. Pois, onde poderíamos colhê-las mais puramente, mais rápido ou mais agradavelmente senão nas próprias fontes?46

Então, para que “possamos colher mais cedo os frutos mais copiosos dos autores

nos quais afirmei ser necessário buscar a riqueza da língua, eu gostaria que lêssemos com

aplicação Lorenzo Valla.”47 Para cumprir esses preceitos devidamente torna-se necessário

um preceptor cuja tarefa seja a de fazer com que os alunos aprendam o que é importante em

cada autor por meio de exemplos, ao mesmo tempo em que se exercitariam escrevendo

pequenos trabalhos, que consistiam basicamente na cópia de breves textos que contivessem

algum episódio histórico e mitológico.

46 Erasme. Rationne studii, p. 230. 47 Idem, p. 230.

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A prática, da mesma forma, era uma das formas mais eficientes de fazer com que o

aluno apreendesse realmente a erudição dos antigos, a parte mais sofisticada de sua arte, em

sentenças e palavras raras, sendo esta a 5ª etapa do programa do Rattionne studdii. Ele

acrescenta ainda o fato de que cabe ao mestre louvar seus alunos quando eles dizem

qualquer coisa exata e lhes corrigir quando eles erram, sendo desta forma que eles se

habituam a discorrer com atenção e cuidado.

Assim, munido de tudo isso, no curso da leitura dos autores devemos observar atentamente toda palavra importante, todo arcaísmo ou neologismo, todo argumento finamente inventado ou habilmente adaptado, toda beleza rara do estilo, todo adágio, toda sentença digna de ser confiada à memória.48

A 6ª etapa consistia no estímulo que devia ser dado à memória. Nos tratados antigos

o exercício da memória era de importância decisiva para a boa eloqüência, por esse motivo,

algumas obras como o Ad Herennium e o Institutio Oratoria de Quintiliano se detinham

com mais cuidado sobre essa questão. A natureza do tratamento bastante breve que Erasmo

concede ao tema em seu Rationne studii, é um ponto sobre o qual devemos nos deter um

pouco para compreendermos melhor o sentido da revolução educacional que propunha. A

grande mudança ocorrida nas escolas e universidades da Renascença, como ressalta

Garin49, foi muito mais profunda do que a simples substituição dos manuais escolásticos

pelos manuais humanistas, pois os textos destinados a serem fixados pela memória,

geralmente com a ajuda de um elemento rítmico e de fórmulas para sua aplicação

mecânica, vão ser substituídos por um grande número de fontes clássicas cuja memorização

no sentido medieval seria impossível. Portanto, este autor destaca que um dos pressupostos

mais importantes da reforma educacional é a substituição do aprendizado calcado na

memorização e nos comentários dos textos, por outro relacionado à apreensão dos

conteúdos e à produção de novos textos.

Com isso não queremos dizer que os escolásticos não se preocupassem com

disciplinas como a ética e a filosofia moral50, ou até mesmo com a oratória, por lidarem

48 Ibidem, p. 231. 49 Garin. L'Éducation de l'Homme Moderne, p. 22. 50 De acordo com Jerrold Seigel, uma questão fundamental para o programa do humanismo renascentista - opondo-se ao sistema escolático - foi o desejo de combinar eloqüência e sabedoria, para unificar filosofia e retórica. Cf.: Seigel. "Ideals of Eloquence and Silence in Petrarch" in: Renaissance Essays. (Library of History of Ideas) New York: University of Rochester Press, 1983, vol. 2, p. 12.

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quase que exclusivamente com os textos antigos reunidos em fragmentos escolhidos muitas

vezes de forma aleatória. O fato é que eles se apropriavam desses conhecimentos,

subordinando-os aos seus próprios objetivos; a filosofia moral, por exemplo, instituída a

partir do aristotelismo da escolástica, na primazia da vida contemplativa, considerava a

eloqüência como um obstáculo à filosofia. Na cultura da Renascença, pelo contrário,

informada pelas obras de Cícero, a prescrição para a verdadeira filosofia moral e genuíno

espírito cristão estava na reunião entre a sabedoria e a eloqüência, para torná-la efetiva na

vida dos homens.

Outra peculiaridade do ensino escolástico medieval é que todo seu método de

ensino é baseado na leitura dos textos, havendo, de um lado, os autores que possuem valor

próprio e têm sua autoridade reconhecida e, de outro, os leitores, que são os mestres que

ilustram as sentenças dos autores, expondo de modo mais detalhado seus argumentos. Os

mestres, neste caso, são apenas leitores e nunca autores. Este conceito, segundo

Gumbrecht51, surge apenas no Renascimento, no âmbito da qual, para relembrarmos, foi

possível o desenvolvimento de um ideário de valorização plena da criação humana, sendo

nesse momento que o autor ganha a dignidade da criação da obra, emprestando a ela toda a

força de suas capacidades. Do mesmo modo que, ao contrário, no contexto medieval,

ensinar consistia somente em ler e comentar um conteúdo cuja essência estava dada, em

função da verdade transcendente de Deus. Assim, aquele que aprendia era automaticamente

privado da criação sendo seu aprendizado limitado à produção de questões (quaestio) sobre

as passagens mais espinhosas, a serviço da enunciação dos dogmas e da resolução de

conflitos em torno dos mistérios divinos da Bíblia.

A cultura renascentista, por sua vez, não concebia mais o processo do

conhecimento de forma passiva, como definitivo e imutável (a priori da investigação dado

somente à contemplação), procurando tornar os homens capazes de agir, de descobrir e de

conhecer, pois a condição humana, de acordo com a crença humanista, não era fixada

essencialmente pela mancha do pecado, mas podia sim ser aperfeiçoada através do

conhecimento e do cultivo das virtudes. Desta forma, como aponta Garin, o acento que se

coloca com insistência sobre o tema dos studia humanitatis e da formação do homem,

constitui um dos motivos dominantes dessa nova cultura na qual os autores e seus exemplos

51 Gumbrecht. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.

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vão assumir uma singular importância. Na base dessa nova maneira de educar, havia

fundamentalmente a preocupação de formar a juventude e de ajudá-la a estimular suas

próprias energias naturais, sem a condicionar, limitando sua ação no interior de uma

moldura rígida e de fórmulas dogmáticas. As noções gramaticais e léxicas puramente

memoriais, assim como os manuais elementares são reduzidos tanto quanto possível, neste

novo contexto, pois o objetivo agora é ascender os próprios modelos antigos, e como que

recriá-los. E, deste modo, os autores se transformaram em objeto de uma pesquisa contínua,

não apenas por se constituírem como paradigmas de expressão, mas como fontes autênticas

do saber.52

Com a necessidade de se respeitar a liberdade e individualidade do aluno o mestre

deve dirigir seu espírito de uma maneira radicalmente oposta portanto ao método

escolástico, fundado essencialmente sobre a memória e sobre a repetição interminável de

fórmulas ou receitas prontas. Com o pouco destaque que Erasmo concedia à memória em

seu tratado, enunciava, na verdade, uma tópica cara às noções humanistas, opondo o

artificialismo das técnicas mnemônicas ao desenvolvimento natural do intelecto e das

capacidades próprias do juízo do aluno53. Assim, segundo ele, uma seleção entre os nomes,

os fatos e as noções indispensáveis ao exercício da boa argumentação se operará

naturalmente, podendo ser facilitada por pequenos "sinais não apenas variados, mas

especializados a fim de que sejam reconhecidos no primeiro golpe de vista", inscritos nas

margens dos manuais ou nos cadernos dos alunos. Entretanto, segundo Erasmo:

Embora eu não conteste que a memória possa ser ajudada pelos lugares e pelas imagens, a melhor memória repousa sobre três pontos principais: a compreensão, a ordem e o cuidado; porque cabe à memória ter compreendido a coisa a fundo.54

Quanto a esta alusão do humanista aos lugares e às imagens da memória, podemos

reconhecer um distanciamento seu também em relação a Cícero. Ao fim do segundo livro

do De Oratore, com efeito, o orador mostrava a importância crucial da arte da memória

como atributo indispensável para a realização da eloqüência ideal. As técnicas de 52 Idem, p. 28-29. 53 Sobre a enunciação desta contraposição fundamental, ver por exemplo os ensaios Da Presunção e Dos Mentirosos, respectivamente décimo sétimo e décimo oitavo do segundo volume dos Ensaios de Montaigne.

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memorização dos temas e formas dos discursos através do recurso à abstração das imagens

e dos lugares permitiam a excelência do desenvolvimento da memória natural do homem

como num processo mecânico. O orador deveria formar imagens das coisas de que

desejasse lembrar-se e depois ordenar essas imagens em diversos lugares. Deste modo, a

ordem dos lugares conservaria a ordem das coisas. Já no tratado de Erasmo a memória era

um ponto menor, porém, não indigno de ser aconselhado fornecendo uma ajuda importante

para as coisas cuja rememoração é tão difícil quanto necessária (como os lugares

geográficos, as figuras de gramática, as genealogias ou coisas parecidas); portanto devemos

escrevê-las de forma concisa em quadros suspensos na parede dos quartos, afim de tê-los

diante de nossos olhos mesmo quando não prestamos atenção55. No contexto humanista, de

larga difusão das obras dos antigos, das novas técnicas da imprensa e da emergência de

grandes escolas e bibliotecas, a memória não podia ter tanta utilidade quanto para os

antigos, que concebiam o estudo da eloqüência sobretudo no âmbito da oralidade e não da

escrita, ou seja, no âmbito da ação imediata do orador nas questões do fórum e das

assembléias. A parte isso, o imperativo erasmiano da transformação do espírito sob o

cultivo de uma fé intensa, centrada nos poderes da razão e da virtude combinava pouco com

a primazia do acúmulo de saberes, prática própria aos autores de seu tempo, que buscavam

a glória pública na exibição de uma erudição oca. Estes, do ponto de vista do pensamento

de Erasmo, pouco se diferenciavam dos teólogos medievais, cuja religiosidade, pautada na

contemplação, se beneficiava da centralidade da memória como processo de

conhecimento56, pela qual a ação crítica se paralisava para dar lugar à acumulação de

assuntos numa repetição mecânica e verbal para a plena interiorização dos dogmas e

postulados da tradição.

Entretanto, o fator mais importante quanto a este tema, segundo o Ratio é que: o que

queremos lembrar deve ser lido atentamente e muitas vezes, assim como recitado com

freqüência, para que, se alguma coisa nos escapar, nós possamos recuperá-la. A pedagogia

erasmiana ressaltava a dedicação e o esforço do aluno, a utilidade do estudo e a conjunção

54 Erasmo. Rationne studii, p. 231. 55 Idem, p. 232. 56 Sobre a função da memória na pedagogia medieval, ver: Mecenas Dourado, op. cit., p. 33. Citamos também o excelente livro de: Yates, Francis. El Arte de la Memoria. Madri: Taurus, 1974. Cf.: Carruthers, Mary. Machina Memorialis: Méditation, Rhétorique et Fabrication des Images au Moyen Âge. Paris: Éditions Gallimard, 2002.

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entre uma educação moral e a formação intelectual, pois sua educação liberal é fundada

sobre o exercício de julgamento pessoal, no desenvolvimento das faculdades naturais,

assim como na prática de uma imitação que deve ser cultivada principalmente nos

primeiros anos do aprendizado, mas que num estágio posterior não seja escrava dos

modelos antigos, dando lugar à imaginação e à capacidade criativa do aluno. De modo

geral, como dissemos, se este programa valoriza o estudo da gramática como uma

disciplina útil e mesmo indispensável, está fundado também sobre uma prática cotidiana,

sobre os exercícios da escrita e da conversação, e não sobre uma teorização fechada e

autosuficiente da arte de escrever ou de um sistema de pensamento. Desta forma,

recorrendo mais aos exemplos contidos nos textos antigos que a longas definições abstratas,

a maior parte das figuras de retórica (amplificação, comparação, metáfora, gradação,

prosopopéia, entre outras) pode ser compreendida pelos mestres e pelos alunos pelo

exercício feito por eles próprios na escrita de frases e ou de pequenos ensaios que

utilizavam essas figuras, que ficaram assim gravadas nos espíritos daqueles que imitaram

suas fórmulas. Seria essencialmente na prática e na dedicação dos alunos que estariam

pautadas as regras principais do manual humanista.

Distanciando-se, portanto de maneira fundamental da forma pela qual a arte da

memória foi elaborada na Idade Média e da primazia que tinha entre os antigos, Erasmo

aponta outra direção para a educação, valorizando a compreensão, a interpretação e, daí, a

assimilação. "Essa é, na sua expressão mais simples e fundamental, toda a revolução da

pedagogia do Renascimento propugnada eficazmente, entre outros, por Erasmo.57" Em um

pequeno colóquio publicado em 1529, chamado Ars notaria, Erasmo esboça a sua opinião

sobre a arte de memorização, que, segundo a crença de seu interlocutor, tornaria possível o

aprendizado de todas as ciências liberais sem o menor esforço.

Desiderius. - O que continha o livro [da ars memorandi]? Erasmius. - Diferentes figuras de animais, como dragões, leões, leopardos, diversos círculos onde estavam escritos palavras em línguas diferentes; grega, latina, hebraica ou bárbara. Desid. - Em quantos dias o método do trabalho prometia o conhecimento das ciências? Erasm. - Em quatorze dias. Desid. - Essa promessa é certamente magnífica; mas você conhece alguém a quem essa arte mnemônica

57 Idem, p. 34.

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tenha feito sábio? Erasm. - Não. Desid. - Ninguém jamais viu nem jamais verá, a menos que vejas alguém se enriquecer pela alquimia.58

Margolin59 ressalta que entre os séculos XIV e XVI a ars memorandi, tornou-se

uma técnica esotérica muito próxima das fórmulas e regras da magia, da cabala e da

astrologia, disciplinas estas, pelas quais Erasmo e alguns de seus amigos não demonstraram

a menor simpatia, se recusando em assimilar os princípios destas "ciências". Dando total

descrédito a essa arte mágica que prometia o conhecimento das ciências em apenas 14 dias,

em seu De pueris instituendis (A Civilidade Pueril), também de 1529, tratando de questões

inerentes ao aprendizado real como o rápido esquecimento das coisas aprendidas pelos

alunos, Erasmo aconselha-os sobre qual seria então a técnica para se ter uma boa memória.

É preciso fechar a fenda para que nada se perca.... [No entanto, ela não seria fechada] nem com espuma e nem com gesso, mas com trabalho. Aquele que aprende as palavras sem compreender seu significado as esquecerá rápido... De fato as palavras, como diz Homero, são aladas; elas levantam vôo facilmente se os pensamentos não lhe servem de contrapeso. Aplique-se então de início a bem compreender o que tu lês, depois examine em tudo o sentido e repasse-o para tu mesmo de vez em quando: é nisso que tu deve aplicar seu espírito, a fim de acostumar-se a refletir a cada vez que for necessário.60

Erasmo no De pueris não conhece outra arte mnemônica que não seja aquela

baseada no trabalho, no amor ao estudo e na assiduidade. Com estas etapas estipuladas

brevemente pelo Rationne studii o aluno é introduzido nas questões iniciais da retórica ao

estudar as figuras de estilo e os tipos de discurso. Da mesma forma que os exercícios

escritos que acompanham as explicações dos textos constituem um prelúdio ao estudo

aprofundado da retórica (desenvolvido no De copia), os autores escolhidos pelo aluno ou

pelo preceptor, também servem de modelos para os oradores iniciantes imitarem. Para

Erasmo o conhecimento da linguagem, da gramática e dos exemplos deixados pelos autores

clássicos daria aos estudantes a liberdade de formular seu pensamento com facilidade e

exatidão. Já aqueles que não tiveram o devido cuidado com as palavras passariam uma

impressão de verbalismo, por isso, a prioridade dada pelo humanista à palavra simboliza

sua opção pelo orador em oposição ao filósofo, pelo professor de retórica em oposição ao

dialético, ou se preferirmos, pelo humanista em contraste com o teólogo escolástico. 58 Erasmo, "Ars notaria" apud Margolin, Jean Claude, Histoire de la rhétorique..., idem, p. 238. 59 Idem, p. 237.

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No De copia, que passaremos a analisar, podemos notar de forma mais clara a

importância atribuída por Erasmo ao conhecimento das regras da elocutio, sendo através de

sua apreensão que o estudante poderia ornar um bom discurso, mediante a escolha refletida

entre os recursos de que dispunha. Erasmo tentou estabelecer também neste manual

algumas regras técnicas para a invenção, mas o caráter livre da sua produção é, por

conseqüência, irredutível à elaboração de fórmulas exatas e imutáveis que não deixem o

espaço necessário para a criatividade e a inventividade dos alunos formados nas disciplinas

liberais. Segundo Eugênio Garin61, educar para esses humanistas não significava formar um

rígido programa pedagógico, mas, ao contrário, liberar as potencialidades naturais dos

indivíduos.

O Ratione studii é um breve ensaio, escrito às pressas como o humanista mesmo

diz, onde ele procurou evidenciar a importância da variação dos autores clássicos, a busca

pela compreensão do significado de suas obras através do entendimento de algumas figuras

de retórica e do exercício constante, preocupando-se, sobretudo, com a formação do

espírito. Com isso, Erasmo dá prosseguimento ao seu projeto de reforma educacional,

aprofundando sua análise sobre as questões relativas à retórica no De duplici copia

verborum ac rerum, publicado em 1512.62

5.2) O De duplici copia verborum ac rerum63

Erasmo escreveu o De Copia a pedido de John Colet, fundador em Londres do

Colégio de São Paulo, em 1508, "onde sob orientação dos melhores professores, a

juventude britânica desde tenra idade se impregna ao mesmo tempo de Cristo e das

60 Erasmo. Civilidade Pueril, p. 86. 61 Garin, op. cit., p. 103. 62 Foi Josse Bade quem, em julho de 1512, publicou em Paris a primeira edição do De duplici Copia. Erasmo parece não ter ficado satisfeito com esta edição e, em 1514, aparece uma segunda versão desta obra, impressa em Estrasburgo, e acompanhada agora de suas Parabolae. 63 Utilizaremos aqui a versão traduzida para o inglês por Donald B. King e H. David Rix do De duplici copia verborum ac rerum, de Erasmo. Cf.: Erasmus, Desiderius. On copia of Words and Ideas. Wisconsin: Marquette University Press, 1963. Ao longo do texto, em vez de usarmos o título traduzido para o inglês priorizaremos seu título latino, recortando-o para De Copia.

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melhores letras”64, como diz o humanista no prefácio deste trabalho. Erasmo enfatizava o

pioneirismo de Colet, sendo o primeiro diretor do Colégio - o primeiro estabelecimento

desse tipo a introduzir o grego como disciplina regular no ciclo de estudos - o ideal

humanista de ensino, conciliando harmoniosamente as artes liberais com o estudo cristão.

Devido a amizade que cultivavam desde a primeira viagem de Erasmo para a

Inglaterra65, em 1499 (sendo Colet um dos seus principais incentivadores no

aprofundamento dos estudos bíblicos) o humanista escreveu vários trabalhos para suprir

este Colégio de material pedagógico adequado às novas propostas educacionais, difundidas

dali, para os países da Europa do Norte, que tinham como objetivo estimular os alunos no

aprendizado da gramática, dos autores antigos de seu estilo e de seus exemplos em

associação com os pressupostos da disseminação da "filosofia cristã". Erasmo enviou o De

Copia para que Colet analisasse seu conteúdo em setembro de 1511. Após recebê-lo, o

humanista o aprovou imediatamente dizendo:

Eu li rapidamente sua carta sobre os Estudos, pois minhas ocupações não me permitiram lê-lo com vagar. No curso de minha leitura não somente eu aprovei tudo, mas admirei seu espírito e sua arte, sua ciência, sua abundância, e sua eloquência. Eu desejei por várias vezes que as crianças de minha escola fossem formadas segundo o método que tu descreves como desejável. Eu mesmo desejei diversas vezes que os professores fossem como aqueles que tu descreves tão sabiamente.66

Além dos elogios ao texto, Colet também reafirmou seu convite para que Erasmo

desse aulas em seu Colégio e ele próprio ensinasse aos alunos o método mais fácil para o

aprendizado do latim e do grego, pois, enquanto o manual erasmiano prometia ensinar estas

línguas num curto espaço de tempo, sendo priorizados os interesses pessoais dos alunos na

escolha dos autores, as gramáticas medievais mal os fazia balbuciar tais línguas.

É nesta direção que o pensamento de Erasmo caminha de modo cada vez mais

explícito, aprofundando as tendências já esboçadas no Antibárbaros, onde ele afirma va,

64 Idem, ver prefácio. 65 Segundo Halkin, Erasmo passou vários períodos na Inglaterra entre os anos de 1499 e 1517, mantendo amizades com humanistas como Thomas More, John Colet, Willian Grocyn, Thomas Linacre, Tunstal e Willian Latimer; sendo todos eles personalidades que, fortalecendo sua educação com os mestres italianos, exerceram forte influência no florescimento dos estudos humanistas em Oxford. Léon-E. Halkin. Erasmo entre Nosostros. Barcelona: Editorial Herder, 1995, pp. 57-78. 66 Carta de John Colet à Erasmo, escrita em Londres em fins de setembro de 1511, carta 230 In Correspondance d'Érasme, op. cit., p. 443-444.

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como já vimos, a extrema importância da excelência da formação do espírito nos estudos

das boas letras, para que o homem se fizesse digno de abordar as Santas Escrituras, pois

fazê-lo, segundo ele "de pés e mãos sujos é quase uma espécie de sacrilégio. E quanto mais

insolente é o proceder de quem sem os primeiros se atrevem as segundas!”67 Assim, a

adequação humana dentro dos limites naturais de sua razão e seu aprofundamento no

estudo da linguagem como campo próprio de seu conhecimento era um movimento

fundamental para a aproximação com Deus, no uso do estudo das línguas antigas e da

retórica para tornar mais viva e persuasiva a mensagem divina passada diretamente aos

homens, por meio da Palavra. Para explorar ainda mais estas questões, inicialmente

abordadas de forma indireta em obras como o Antibarbárie, os Adágios e os Colóquios,

Erasmo elabora os dois manuais pedagógicos, publicados em 1511 e 1512: além do

Rationne studii (que tratamos no item anterior) o De Copia, obra mais extensa, da qual

passaremos a analisar agora.

Em seu primeiro manual o humanista procurou desenvolver as faculdades

inventivas e criativas dos alunos, destacando a importância não apenas do conhecimento

dos autores pagãos, como também a relevância de sua variação; pois, ainda que alguns

autores tratassem dos mesmos temas, seria relevante tanto para os mestres quanto para os

alunos que o acesso a exemplos diversificados do uso de lugares e figuras de linguagem, de

diferentes tipos de estilos, fosse plenamente viável e que compreendessem ao mesmo

tempo a forma particular de cada autor em desenvolver a sua argumentação. No De Copia o

princípio da variação é explorado com mais profundidade, pois, nesse tratado, Erasmo o

analisa em seus preceitos básicos, nas figuras gramaticais mais importantes, assim como

nas várias formas de se exprimir uma idéia, cuidando especificamente da diversidade de

significados que pode ser atribuído a uma única palavra ou expressão e das várias

possibilidades que pode adquirir a linguagem em contextos diferenciados. De acordo com

Jean-Claude Margolin:

Erasmo enquanto retórico e pedagogo procura inicialmente a 'varieté'

como um músico que compõe diversas variações sobre um tom dado, ou muda de um instrumento para outro, se arriscando a alterar o ritmo da melodia (...), pois, tanto ele quanto os mestres aos quais ele destina seu trabalho, querem ensinar a riqueza e a maleabilidade da linguagem a partir do uso de boas fontes,

67 Erasmo. Enquiridion, p. 73.

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mas que eles a alcancem igualmente em função das suas necessidades e segundo seu gênio próprio.68

Tal como no De Rationne, no De Copia Erasmo enfatiza a união entre verba

(palavra) e res (coisa), pois, a dependência estrita do conhecimento das coisas e do

conhecimento da linguagem e de seus recursos, era traço essencial de seu pensamento,

voltado para as prerrogativas e interesses próprios do homem. Se inspirava no grande

exemplo de Cícero, que imortalizara em suas obras este ideal da união entre res e verba,

procedendo também tal como ele, contudo, tratando dos dois temas de modo dualista. É que

Erasmo mantinha a reverência à tradicional concepção que analisava separadamente a

palavra e seu significado, acreditando ser uma forma mais didática de explicá-las. Contudo,

apesar de ser uma condição fundamental a associação entre verba e res, no Rationne o

humanista já dava claramente prioridade para as palavras, a fim de estabelecer a base inicial

da educação na instrução da gramática latina e grega no contexto humanista.69

Ainda que ele não se questionasse, como nos lembra Richard Waswo70, sobre a

forma como se deveria passar do conhecimento das palavras para o conhecimento das

coisas, isto não retirava a relevância de seu tratamento desta questão, mas expressava antes,

a originalidade de sua abordagem, pois, ele não estava interessado em escrever uma

investigação teórica tal como faziam Agricola, Valla e Vives, estando sempre mais

preocupado com o sentido prático e com os usos imediatos e correntes da linguagem

escrita. Seus objetivos associavam-se ao pressuposto antigo de que um bom

desenvolvimento do estilo dependia de uma grande variedade de modelos e modos de

ornamentação verbal e procedimentos argumentativos, adequados, porém, plenamente à

sabedoria prática de seu uso de acordo com o senso comum e a multiplicidade de suas

circunstâncias na vida cotidiana. Por essa preocupação mais expressa com o caráter ativo de

seus preceitos, os argumentos por ele afirmados foram aqueles que definiram o humanismo:

pragmático, filológico, pedagógico e ético. Assim, sua formulação no De Copia foi

responsável pela maior disseminação da união entre res e verba, oriunda de Cícero e

Quintiliano, na Renascença. 68 Jean-Claude Margolin. "Apogée de la rhétorique humaniste" in: Histoire de la Rétorique dans l'Europe Moderne, p. 221. 69 Também no Elogio da Loucura Erasmo mantém sua tradicional concepção das relações separadas entre palavra e significado.

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Mas, se, podemos notar nesta obra um tratamento mais amplo da res do que no

Rationne, não deixamos de perceber, por outro lado, que mesmo neste contexto (e

especialmente no Livro II, em que se dedica mais à res), o destaque da elocutio supera o da

inventio. O que prevalece de fato é a fórmula: “o que a roupa é para o corpo, o estilo é para

o pensamento” ou, então a que afirma: “devemos escolher nossas palavras com o mesmo

bom gosto com que exibimos nossos adornos corporais, decoramos nossas casas e

preparamos nossa mesa de refeições.”

5.3) As origens e os usos da copia

Tanto Cícero quanto Quintiliano em suas obras, representaram a grande extensão

semântica do termo copia, significando com ele não apenas a abundância de res e de verba

(coisas e palavras) na boa eloqüência, mas também designando o conjunto de técnicas do

orador, responsável pela organicidade dos dois âmbitos, assim como os modos de

armazenamento de todos os seus recursos, tema que é objeto de um estudo detalhado no

Livro X das Institutio de Quintiliano.

Cícero em seu Orator, por exemplo, associava a copia à abundância do discurso

rico, fértil, próprio do estilo grandiloqüente, por considerá-lo como o mais alto na

hierarquia dos três estilos, sendo a expressão mais digna das virtudes do bom orador, ou

seja da realização mais plena de sua arte, na união entre res e verba.71 Cícero e Quintiliano

empregaram a copia num contexto de dualidade entre as coisas (res) e as palavras (verba).

Na retórica clássica res estava associada ao cultivo da inventio, enquanto a verba

compreendia não apenas as unidades léxicas como os sinônimos, mas também os tropos e

outras figuras verbais, sendo a elocutio o seu domínio. Ainda que com campos

diferenciados e independentes, a combinação entre a copia rerum e a copia verborum, era

fundamental para a realização de um bom discurso.

70 Waswo, R, op. cit., p. 216. 71 Ciceron, El Orador, 99.

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A definição tão explorada por Quintiliano em suas Institutio Oratoria72 da copia

não como quantidade expressa, mas como reserva de argumentos e preceitos inspiraria de

perto a noção de Erasmo, embora este não a ligasse, como Quintiliano à valorização da

memória73. Para ele, a copia significava sobretudo, o material abundante sobre o qual se

exerceria o livre juízo e o bom uso por parte do orador em seus discursos. Tratava-se de

uma sabedoria própria de sua arte, que concedia virtude à copia mediante a boa escolha

entre os vários estilos, palavras, figuras de linguagem, tropos, ornamentos ou coisas de

acordo com as conveniências de cada caso e matéria. Cabia então ao aluno ou ao mestre,

sublinhava Erasmo, escolher falar com concisão ou abundância, na medida em que tinha à

sua disposição uma grande quantidade de exemplos, extraídos das grandes obras dos

antigos. Deste ponto de vista, tanto o estilo conciso como o estilo abundante e

grandiloqüente, tão caro a Cícero, possuíam o mesmo valor, atestando a dignidade da arte

do orador. Assim, apesar de não concordar com este na definição da virtude mais alta do

bom discurso dada pelo estilo mais abundante, Erasmo concedia à variatio, tal como fizera

Cícero, um papel crucial na sabedoria própria à boa eloqüência. De fato, é a variação que se

destaca no De oratore quando emerge a questão sobre qual é o homem capaz de fazer

estremecer uma assembléia? Segundo ele, o homem capaz de atingir este objetivo tão

elevado é aquele:

Cujo estilo é variado, claro e abundante, que sabe colocar em evidência

pensamentos e palavras... Quem sabe dispor sua elocução a partir de considerações de circunstâncias e de pessoas merecerá ser louvado por esse gênero de mérito que eu chamo de justeza e de conveniência.74

Em relação à concisão das palavras, quem falará mais brevemente do que aquele

que sabe escolher entre um grande número de palavras, entre os mais diversos gêneros de

figuras, aqueles que são mais apropriados para se obter a concisão? Do mesmo modo, no

que concerne à densidade do pensamento quem estará mais apto a exprimir uma idéia com

o menor número de palavras possível do que aquele que sabe pelo estudo e pela prática

quais são os pontos fundamentais da causa tratada, quais são aqueles de menor importância

e quais são aqueles que podem ser utilizados para enriquecer o objeto tratado? 72 Quintiliano, Institution Oratoire, X, V, 6. 73 Cave, T. op. cit., p. 35.

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Para Erasmo, portanto, é característico do mesmo artista tanto falar copiosamente

quanto concisamente pois, se é verdade o que dizem “Platão e Sócrates, a habilidade de

mentir e de falar a verdade são talentos inerentes ao mesmo homem, nenhum artista poderá

tornar o discurso conciso melhor do que aquele que tem a habilidade para enriquecê-lo.”75

Devido a importância desse ponto ele retorna a ele com freqüência em seu tratado,

especialmente no sexto capítulo do Livro I, onde sublinha a necessidade de se evitar o mau

uso da concisão, assim como da realização da copia de forma tola.

Aqueles que se inclinam de modo inepto ao laconismo podem empregar poucas palavras: nessas poucas palavras, entretanto, muitas, para não dizer todas, são supérfluas. Pelo contrário, aqueles que desajeitadamente expõem sua abundância, dizem, de qualquer modo, muito pouco ao falarem sem medida, porque manifestamente eles omitem muitas coisas que deveriam ser ditas. 76

Portanto, para o humanista, era fundamental não confundir abundância com

verbosidade e concisão com pobreza, secura do estilo.

Logo adiante atentava para o fato de que a copia é dupla: há a copia das palavras

(copia verborum) e copia das coisas (copia rerum). É comum entre os comentadores a

tradução de res por idéia ou pensamento, como fazem Jean-Claude Margolin77, Jacques

Chomarat78, Donald King e David Rix, (sendo os dois últimos os tradutores e comentadores

da edição que utilizamos do De Copia). No entanto, preferimos antes seguir a tradução de

res como coisa, objeto, como propõe Terence Cave79. Segundo ele, as res não surgem do

espírito tal como as idéias espontâneas, elas estão já engastadas na linguagem, formando o

material do exercício de escrita. Portanto, o estudo da copia rerum (ao qual Erasmo se

dedica no livro II do De copia, explorando a noção quintiliana de “tesouro”) encontra seu

coroamento em um método de imitação onde não é a realidade que se imita, mais os

74 Cíceron. De L’Orateur, op. cit, livro III, XV, 53. 75 Erasmus. On Copia of Words and Ideas, livro I, cap. V, p. 14. 76 Idem, livro I, VI, p. 15. 77 Margolin, Jean-Claude. “Erasme et le verbe: de la rhétorique à la l’herméneutique” In Érasme, l’Alsace et son Temps. (catalogue et actes du colloque) Strasbourg, 1971, pp. 271-293, p. 93. Do mesmo modo, Margolin repete esta definição de res em seu Érasme: precepteur de l’Europe, cap. II. 78 Chomarat, J. Grammaire et Rhetorique chez Erasme, p. 714. Em sua tradução de partes do De copia Chomarat também mantém res com o sentido de idéia, intitulando a obra de La Double Abondance des Mots et des Idées. Ver: Erasme: Oeuvres Choisies, pp. 233-259. 79 Cave, Terence. Cornucopia. Figures de l’Abondance au XVI Siècle, op. cit. p. 47.

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autores, não as idéias, mas os textos, tamanho é o destaque que adquire a elocutio até neste

contexto.80

Como a copia é dupla o De Copia é dividido em dois livros, seguindo a tradição

clássica: o primeiro trata da abundância das palavras (copia verborum) e o segundo trata da

abundância das idéias (copia rerum), sendo a primeira parte mais extensa que a segunda,

pois as idéias são particulares a cada homem ou comuns somente a poucos entre eles,

enquanto que as palavras são necessárias para a constituição de todas as idéias. Por esse

motivo, na primeira parte ele analisa e exemplifica todos os métodos de variação próprios

do bom discurso: os sinônimos, os homônimos, a isonomia, a metáfora, a metonímia, a

ironia, a hipérbole, a enálage, a antonomásia, a perífrase, entre outras. Já na segunda parte

Erasmo analisa as formas de variação dos objetos, tais como: a acumulação, a similitude, a

dilatação, o uso de parábolas, a amplificação dos argumentos, a comparação, entre outras.

5.4) A copia verborum (ou copia das palavras)

Erasmo afirma no prefácio de seu manual que resolveu se dedicar à análise da copia

verborum porque Quintiliano pouca atenção lhe deu em sua Institutio Oratoria,

privilegiando a res. Diz Quintiliano que:

Os preceitos relativos à expressão, se eles são necessários para o

conhecimento teórico, eles não tem uma eficácia suficiente para [criar] o poder oratório. (...) Eu deveria examinar a coisa com mais atenção, se apenas um exercício fosse suficiente, mas eles são tão estreitamente ligados entre eles e inseparáveis que, se um deles faltasse, o trabalho consagrado aos outros seria vão. (...) Então, quando o estudante souber encontrar e dispor as idéias, ele saberá escolher plenamente o método para ordenar também as palavras.81

Para Erasmo, no entanto, o cuidado com as palavras é parte fundamental do

discurso, devendo ser tratado com mais destaque, ainda que não acentuasse este ponto

como um excesso de teorização sobre a eloqüência, mas, porque não considerava 80 Idem, p. 47.

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conveniente marcar uma descontinuidade entre os dois âmbitos. Assim, ao invés de

enfatizar um caráter teórico da elocutio, aprofundava com isso a natureza prática do

conhecimento das idéias, imbricado com a arte da linguagem. Esta maior valorização da

elocutio, podemos encontrar no De Oratore de Cícero, como mostramos no primeiro

capítulo, e é por esse caminho que o De copia se desenvolve, atribuindo um papel de

destaque para a copia das palavras e de sua utilização na elaboração dos discursos. Quanto

a este tema, diz o humanista, não é útil ao estudante ler os autores clássicos e memorizar

todo tipo de palavra por eles utilizada, pois isso equivalia a uma atrofia do próprio juízo, ou

seja, do não entendimento de seu significado correto e do risco correspondente de seu

emprego não apropriado. Erasmo, com seu apuro filológico, já enfatizava a importância de

que as palavras fossem conhecidas em sua natureza própria, em sua semântica fluida,

devendo ser historicizadas, cabendo ao aluno ou ao mestre perceber se a linguagem antiga

poderia ser utilizada em seu tempo e de que forma. Do mesmo modo que o orador do

século XVI devia ter cuidado ao utilizar as palavras presentes nos textos da Antigüidade,

Erasmo o desaconselhava, assim como Quintiliano nas suas Institutio82, a realização de uma

lista de palavras e de seus sinônimos, recomendando, pelo contrário, que fosse feita uma

leitura apurada dos bons autores, pois, uma palavra não é boa nem má: tudo depende do

contexto, das circunstâncias e do modo como a palavra foi empregada. Desta perspectiva,

ele seleciona alguns exemplos de autores bem sucedidos no uso da abundância: como

Homero, Ovídio, Virgílio, Cícero e Quintiliano, que sabiam enriquecer e bem dilatar suas

idéias a ponto de mais nada poder lhe acrescentar, mas que no entanto, também sabiam

exercitar sua variatio comprimindo as mesmas idéias até o ponto em que não se podia nada

tirar dela, tornando-a mais clara de acordo com as conveniências da persuasão.

Mesmo que não fosse sua intenção se aprofundar nessa questão, ele ressalta como

Virgílio é igualmente admirável por essas duas qualidades. "O que seria mais conciso que

dizer 'e os campos onde esteve Tróia?' “Em poucas palavras, como diz Macróbio, ele

desapareceu com a cidade de Tróia sem deixar nem mesmo uma ruína.”83 Louvando a

concisão de um dos autores latinos que mais lhe agrada, ele também cita a abundância com

que Virgílio trata o mesmo tema.

81 Quintiliano, Institution Oratoire, X, I, 1-5. 82 Idem, X, I, 8-9. 83 Idem, I, III, p. 13.

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Chegou o dia supremo, a sorte inexorável da Dardânia; morreram os troianos, acabou Tróia e a imensa glória dos Teucres o cruel Júpiter a Argos tudo transferiu, nas vilas incendiadas os Danaens são senhores. Ô pátria, ô habitação dos deuses, Ílion, e vós ilustrados Pela guerra, as muralhas dos Dardânios. O desastre dessa noite, os mortos, quem poderia dizê-los, Quem poderia com suas lágrimas se igualar à nossa infelicidade?84

Tratando de como alguns autores antigos utilizaram a copia em seus trabalhos,

Erasmo ainda faz um último elogio à Virgílio: "qual fonte, qual mar transborda tantas ondas

como o poeta transborda palavras?" Entretanto, mesmo o estilo quase irrepreensível do

poeta, assim como o de Homero, Ésquilo, Sêneca e Cícero foram criticados por usarem

mais de uma vez a mesma idéia com um grande número de palavras. Este seria para

Erasmo um erro em que poderiam cair até mesmo os mais brilhantes poetas e oradores, por

isso, ele afirmava já no De Copia que a procura pela abundância das palavras poderia ser

também prejudicial:

Meus preceitos têm como objetivo podermos abraçar com o menor número de palavras possível o essencial da idéia, sem que a ela não falte nada, e que possamos alargá-la graças a abundância sem que, no entanto, sejamos redundantes; de forma que isso será fácil uma vez conhecido o método, seja de rivalizar com o laconismo, se tivermos vontade, seja de imitar a exuberância da abundância, seja de copiar a medida rhodiana [intermediária entre o laconismo e a abundância].85

Acentuando os preceitos de conveniência do estilo abundante e copioso tal como

definido por Cícero, Erasmo reafirmava os valores de sua moral destacando os riscos em

que os homens podiam cair no uso imoderado da abundância, não para enriquecer boas

idéias e intenções, contribuindo para a transformação dos espíritos e da sua própria

renovação interna, mas unicamente para a exibição de seus dotes artísticos:

Não há nada de mais admirável ou mais magnífico que um discurso que transborda, com uma rica abundância de pensamentos e palavras, mas, é certamente uma coisa que não deixa de ser perigosa. (...) Não é, então, raro que

84 Virgílio, Eneida, apud Erasmo, idem, p. 13. 85 Erasmo. De Copia, livro I, I, p. 11.

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os mortais aspirem com mais zelo que felicidade possuir essa virtude divina, caindo em um [discurso] prolixo, fútil e sem elegância, ao mesmo tempo obscurecendo a idéia sob um amontoado vazio e confuso de palavras e de frases que importunam as orelhas dos melhores ouvintes.86

Diante deste erro, tão difundido entre tantos autores da época, Erasmo enfatizou em

seu tratado entre os preceitos da arte retórica aqueles que são mais adequados para evitar

essas falhas tão comuns, propondo sobre as duas formas de abundância alguns princípios ou

fórmulas que pudessem orientar os escritores a não caírem nas armadilhas da redundância,

ensinando, portanto, a seus leitores como é possível variar as palavras, o estilo, as

expressões e os ornatos da melhor forma possível, sem obscurecer o tema de seu discurso.

Esta era aliás uma das funções importantes da variação, segundo ele, evitando a tautologia,

ou seja, a repetição das mesmas palavras ou expressões, considerado um vício tão ofensivo

quanto evidente, impossibilitando a plena persuasão.

De um modo mais profundo e moralizante, a variação é cultuada por Erasmo no De

Copia como um processo natural, pois a própria natureza se renova a todo instante. “Assim

como o olho se fixa na mudança de cena, da mesma forma a mente sempre examina o que

quer que pareça novo”.87 Este aspecto Cícero já ressaltara na passagem do De oratore que

citamos, sendo este um dos princípios básicos do boa eloqüência que não pretendia apenas

agradar os sentidos de seus ouvintes, mas atingir sua alma na essência de sua natureza.

Assim, no que tange à forma, se seu discurso não oferecesse um “equilíbrio nas expressões,

uma condução brilhante, graça e se não varia jamais (...), ele não é capaz de nos encantar

por muito tempo.”88 Não nos resta dúvida de que este aspecto toca uma das idéias mais

profundas de Erasmo sendo, por essa razão, um dos fundamentos do De Copia. Segundo

Cícero a afetação e o excesso de ornamentos podem apenas nos seduzir por pouco tempo,

provocando quase que imediatamente a saciedade do ouvinte. Mas, pelo contrário, quando

se trata de textos escritos ou de discursos o objetivo não é apenas “atingir o ouvido, mas

sobretudo o espírito que distingue e que julga os defeitos dos ornamentos emprestados.”89

O bom discurso desperta a capacidade crítica de seu leitor ou ouvinte, e esse objetivo

86 Erasmo. De Copia, I, VIII, p. 16. 87 Erasmo. De copia, livro I, cap. VIII, p. 17. 88 Ciceron. De Oratore, livro III, XXIV, 99. 89 Idem, III, XXIV, 100.

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corresponde nitidamente às pretensões erasmianas de influência na vontade de seu leitor

para conduzir-se no mundo tendo em vista sua transformação interior.

O hábito de variar a expressão do objeto permitia a improvisação, pois é muito útil

saber substituir uma expressão por outra. Mas, alerta o humanista: esta técnica só pode ser

apreendida através do exercício e do treinamento constantes, que se dá a partir da tradução

dos autores gregos, “porque a língua grega é especialmente rica na palavra e no

pensamento”90. Além disso ele recomenda: parafrasear os textos gregos, reescrever os

versos dos poetas em prosa, ler cuidadosamente bons autores dia e noite (particularmente

aqueles que são mestres da copia no discurso, como Cícero, Aulo Gelio, Apuléio), anotar as

figuras usadas por eles; memorizar o que anotamos, imitar o que memorizamos e, pelo uso

freqüente, tornar um hábito tê-los sempre à mão.91 Erasmo aqui se baseia em Quintiliano e

enumera de forma muito semelhante todos os exercícios preconizados pelo retórico

romano, que diz que:

Traduzir do grego para o latim era, segundo o julgamento de nossos antigos oradores, o melhor exercício. É aquele que, nos célebres livros de Cícero sobre o orador Crassos se destaca como sua prática constante; é aquele que o próprio Cícero recomenda freqüentemente em seu próprio nome. (...) E, a razão de ser desse exercício pode-se ver facilmente. Os autores gregos tem uma abundância de idéias e eles introduziram infinitamente a arte em sua eloqüência, e quando nós traduzimos, é lícito nos servirmos das melhores palavras, pois todas as palavras de que nós nos servirmos são nossas próprias palavras. Quanto às figuras, principal ornamento de um discurso, nós somos forçados a imaginar um grande número delas e de variá-las, pois a maneira de se exprimir dos homens difere em geral daquela dos gregos. Mas, retiramos também um grande benefício da paráfrase mesma do latim. (...) E, com efeito, a altivez da inspiração [poética] pode elevar o tom da prosa e das palavras que a licença poética permite empregar com mais audácia, não suprimindo a faculdade de se servir dos mesmos com seu sentido próprio, de outro lado, podemos acrescentar aos pensamentos a força oratória, e preencher as lacunas e suprimir a exuberância. (...) É por isso que eu não concordo com aqueles que defendem transpor os discursos escritos em latim, e com aqueles que defendem que as melhores expressões já foram empregadas, e tudo que se dirá será necessariamente inferior.92

Para Erasmo, assim como para Cícero e para Quintiliano, em cujas bases se

fundamenta o De copia, a variatio e a imitatio dos autores antigos são passos de grande

90 Erasmus. De Copia, I, IX, p. 17. 91 Erasmo. De Copia, I, IX, p. 17. 92 Quintiliano. Institution Oratoire. Paris: Belles Lettres, 1979, livro X, V, 2-5.

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importância para que o aluno se desenvolva e crie seus próprios textos num estágio

posterior da educação. Segundo Waswo, este manual erasmiano está baseado no fato de que

o estilo depende da consciência de alternativas disponíveis, sendo por essa razão que o

humanista apresenta para os estudantes uma grande variedade de modelos, modos de

ornamentação verbal e procedimentos argumentativos.93 Este é sem dúvida, como

dissemos, um ponto de grande relevância pois, para Erasmo, a elegância do estilo consiste

“parcialmente em palavras usadas por autores adequados, em parte pelo emprego da

palavra correta. O que a roupa é para o corpo, o estilo é para nosso pensamento.”94

Passa então a tratar especificamente dos métodos de variação, para os quais dedica

do capítulo XI ao XXXII, cuidando no XXXIII de alguns exemplos práticos próprios à

variatio. Neste capítulo, ao final do primeiro livro, Erasmo nos mostra as mais diversas

formas de se construir e reconstruir uma única frase, desenvolvendo 146 maneiras

diferentes de dizer: "sua carta me agradou muito", mesmo diante da aparente

impossibilidade da realização de tal tarefa. Procurava sublinhar com isso a infinita

variedade de alternativas da arte da palavra e seu imenso poder de gerar diversos efeitos

para o mesmo sentido, explorando profundamente suas virtualidades no âmbito da

comunicação humana. Entre esses tantos exemplos selecionamos alguns deles: "Sua

epístola vivamente me agradou; sua carta me emocionou muito; de sua carta eu obtive

muito prazer; seu bilhete não mediocremente alegrou minha alma; suas páginas me

trouxeram uma alegria soberana; sua carta foi a ocasião para um prazer inigualável para

mim; você não acreditaria o quanto eu me alegrei com o que você escreveu; quando a sua

carta chegou eu fui tomado de grande satisfação; o fato de você ter me mandado uma carta

foi um grande prazer.”95 O que o humanista procura provar ao longo dos capítulos é a

possibilidade de se modificar a forma da frase através do uso de sinônimos, hipérboles ou

isonomínias96, mas sem interferir na essência do sentido da mesma. Ele mesmo emprega

em suas obras uma série delas, como nos Colóquios, nos Adágios, no Ecclesiastes,

associadas todas ao objetivo maior que deve ter o orador cristão: colocar em ordem as 93 Waswo, R, “The challenge from Eloquence”, op. cit., p. 215 94 Erasmo. De Copia, I, X, p. 18. 95 Erasmo. Erasmo. De Copia, I, XXXIII, p. 39. 96 Para Erasmo o principal método de variação se tira da isonomia, isto é, da equivalência, que consiste em acrescentar uma negação, utilizando palavras de sentido contrário àquelas da frase original. Ele cita

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regras do bem dizer e utilizar as figuras retóricas partindo da virtude de sua própria

consciência intelectual e moral. O primeiro método de variação se dá através do emprego

de sinônimos, daquelas palavras que, “embora sejam diferentes, expressam exatamente o

mesmo pensamento, de modo que não ocorre diferença se você escolher uma ou outra

palavra.”

O maior número delas deve ser tirado de bons autores, de modo que, toda

vez que for desejado elas estarão disponíveis para nós, como um suplemento de palavras. (...) Assim, a seleção deve ser exercitada por aquele que vai falar, para que entre todas, ele escolha as melhores palavras.97

O que guiará, portanto, a escolha destas palavras (sejam elas simples, não visuais,

poéticas, arcaicas, obsoletas, estrangeiras ou obscenas) é o contexto em que elas aparecerão

e o uso que delas se pretende fazer. Por exemplo, as palavras obscenas para Erasmo não

devem fazer parte do discurso cristão. Mas, para os poetas, sobretudo para os satíricos, “se

permitiu muito nesse aspecto”. Do mesmo modo, “existem nos poetas palavras que devem

ser usadas com economia, especialmente na prosa.”98 Nesse cuidado Erasmo, contudo,

certamente foi inspirado não apenas nos antigos, mas também em Lorenzo Valla, e sua

forma de valorização da linguagem, como alternativa à razão filosófica no contexto

moderno, tal como vimos no fim do terceiro capítulo.

O segundo método de variação trata da enalage, que consiste na manutenção do

radical da palavra, havendo uma pequena alteração na mesura da mesma, como falacioso,

falso; agradável, que agrada. Este recurso pode ser utilizado para transformar um

substantivo em adjetivo e vice-versa, tal como: expressão de Homero para homérica

expressão; extraordinária imprudência para de imprudência extraordinária. Pode ser usada

também para trocar um verbo passivo por um ativo e vice-versa; para trocar um nome por

advérbio etc. No entanto, diz o humanista, pode se desejar manter o discurso sem modificá-

lo, alterando a sua qualidade. E aí são “tantas as maneiras possíveis de troca como existem

formas gramaticais de uma palavra.”99 As variações pela forma são: número, pessoa, voz,

exemplos como: "ele tem o primeiro lugar, ele não está entre os últimos" ou, "um homem notavelmente culto, um homem que não é em absoluto um iletrado." 97 Erasmo. De Copia, I, XI, pp. 19-20. 98 Idem, I, XI, p. 21. 99 Ibidem, I, XIII, p. 25.

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espécies, figura, tempo, modo, declinação e conjunção. Aqui, segundo Erasmo, obtêm-se

apenas uma pequena variação, que ele ainda assim analisa com todo cuidado.

Mas, onde o aluno pode conseguir uma variação maior é através de figuras como a

antonomasia100 (o terceiro método de variação), onde altera-se o nome “o poeta” para

Homero; “o filósofo” para Aristóteles; “o ímpio” para Enéias . A seguinte é a perífrase101,

que alguns chamam de circuitio, e que substitui, por exemplo, destruidor de Cartago por

Cipião. A perífrase se divide em: etmologia, notação e definição. O quinto método de

variação trata da metáfora102, também chamada de translatio porque transfere uma palavra

do seu real e adequado significado para outro muito próximo; como eu vejo para eu

entendo. Este, segundo Erasmo é o tipo de metáfora (deflexio) mais utilizado. Mas há ainda

outros tipos: do irracional para o racional (por exemplo, um homem odioso latiu); do

animado para o inanimado ou vice-versa (ex. toda árvore está trabalhando); do animado

para o animado (ex. como se alguém devesse falar de abelhas pastando); do inanimado para

o inanimado (ex. usado quando alguém fala de uma floresta jorrando, que é uma expressão

usada para fontes).

Cícero destacava no De Oratore103, em seu exame sobre as virtudes da elocutio, a

importância do bom uso da metáfora, pois ela tinha a vantagem de fazer com que as idéias

penetrassem imediatamente no espírito pelos sentidos, devido ao seu poder imagético de

concisão, cumprindo por substituição de um termo próprio a prerrogativa de reparar certas

insuficiências da língua, tornando visível ao espírito, aquilo que não se podia ver nem

distinguir com os olhos e contribuindo para o maior brilho do discurso. Quintiliano104

também, nas suas Institutio Oratoria acentuava as vantagens da metáfora em sua

contribuição não apenas para a copia do discurso, mas também para a variação, elegância,

clareza e sublimidade. Dessa forma, para Erasmo, a metáfora servirá para:

Sugerir que qualquer um que desejar ser mais fluente no discurso deveria observar e colher dos melhores autores um grande número de metáforas bem feitas e para o mesmo propósito acrescentar muitas similitudes. As melhores

100 Erasmo, De Copia, I, XIV, p. 27. 101 Idem, I, XV, p. 27. 102 Ibidem, I, XVI, p. 28. 103 Cicero, De Oratore, III, XXXIX, 155-161. 104 Quintiliano. Institution Oratoire, VIII, 6, 6.

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estão em Cícero; há muitas em Quintiliano. Mas, nesse quesito dificilmente alguém supera Plutarco.105

A metáfora se associa a figuras que lhes são vizinhas, tal como a alegoria, que não

passa de uma metáfora contínua, e a catacrese (abusio), “utilizada quando usamos palavras

para expressar um significado relacionado consigo próprio, pelo qual nenhuma palavra

adequada já existia; mas é metáfora quando tal palavra já existe.”106

O próximo método de variação (o sétimo se considerarmos a alegoria e a catacrese

como métodos independentes, apesar da proximidade) é a onomatopeia, ou seja, o

desenvolvimento e derivação de novas palavras por analogia. Segundo Erasmo, “a

observação de todas essas coisas contribuirá muito para a copia do discurso, porque nestes

termos criados repousa grande parte da saúde da língua latina,” sendo por essa razão que

ele considera importante o fato de se ousar um pouco na criação de novas palavras,

especialmente em verso e na tradução de autores gregos.

O humanista segue ainda enumerando as figuras. O oitavo método de variação é o

da metalepsis (transuptio) muito similar à catacrese, por isso ele não o aprofunda, sendo

inclusive bastante confusa a sua definição. O método seguinte é o da metonímia, que

consiste em dar a uma invenção o nome do inventor, como por exemplo Baco para o vinho;

usar o autor para representar o trabalho (vendi um Virgílio) e indicar o efeito pela ação. O

décimo é a sinédoque (intellectio), que faz compreender de modo geral uma coisa pela

outra, o todo por uma de suas partes, o gênero por uma de suas espécies, o objeto fabricado

por sua matéria, o conseqüente por seu antecedente, a coisa por seu signo.107 O principal

método de variação provém da isononímia, ou seja, da equivalência. Consiste em

acrescentar uma negação, a retirar, a desdobrar, com a palavra de sentido contrário, tal

como: “ele tem o primeiro lugar, ele não está entre os últimos;” “um homem notavelmente

culto, um homem que não é em absoluto um iletrado”. Assim, buscando a palavra oposta,

acrescentando-lhe ou tirando-lhe uma negação, o orador pode dar uma nova aparência ao

discurso como Erasmo demonstra: “isso me agrada, isso não me desagrada”; eu aceito essa

condição, eu não recuso essa condição.”108

105 Erasmo, De Copia, I, XVII, p. 29. 106 Idem, I, XIX, p. 30. 107 Ibidem, I, XXIII, p. 33. 108 Ibidem, I, XXIV, p. 34.

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A este método se ligam a variação pelas palavras comparativas (ele coloca fama

antes do dinheiro, ele coloca dinheiro antes da fama109) e a variação por correlativos (ela

não quer ser sua esposa, ela não o quer por marido110). Vêm em seguida a amplificação

(auxesis) e a hipérbole (superlatio) entre as quais não há praticamente nenhuma diferença.

No entanto, a hipérbole diz mais do que a realidade pode garantir, como por exemplo, “ele

poderia quebrar rochas”.111 Em contraposição a esse método vem a atenuação (diminutio)

dos fatos (por exemplo, quando alguém arrasou com o outro e se diz que ele apenas o

tocou112).

É possível ainda ao orador alcançar a variedade através da compositio, seja

variando as proposições, alterando a ordem das palavras ou repetindo um verbo para cada

proposição. Pode-se variar também mudando a figura de uma proposição de várias formas,

assim como alterando a afirmação por uma interrogação ou por uma negação irônica, ou

por uma exclamação, sendo possível ainda a inversão de toda a ordem das proposições.

5.5) A copia rerum (ou copia das coisas, dos objetos)

Erasmo desenvolve sua argumentação no livro II oferecendo ao leitor uma série de

exemplos para que eles possam saber ampliar o máximo possível uma única frase, relatando

em detalhes o que poderia ser expresso resumidamente. Desta forma os quatro primeiros

métodos erasmianos possuem uma evidente unidade. No primeiro método de amplificação

o humanista demonstra como transformar a seguinte frase: “ele terminou sua educação”. A

partir desta frase extremamente curta e objetiva, ele elabora todo um parágrafo onde

discorre sobre os muitos conhecimentos que alguém que terminou seus estudos deveria ter.

São possíveis formas de amplificação da frase: “tem rico acervo de ornamentos retóricos”,

“ele conhece muito bem todas as histórias dos poetas”, “os canons dos gramáticos”, “é

versado nas sutilezas da dialética”, “conhece os mistérios da filosofia natural”, “as

109 Ibidem, I, XXV, p. 34. 110 Ibidem, I, XVI, p. 35. 111 Erasmo. De Copia, I, XXVIII, p. 35. 112 Idem, I, XXIX, p. 35

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dificuldades da metafísica”, “as complicações dos teólogos”, “as demonstrações da

matemática”, “os movimentos das estrelas”, “os sistemas dos números’, “a localização das

cidades, montanhas, rios, seus nomes e as distâncias entre eles”, entre outros tantos saberes

que ele ainda enumera.113

O segundo método, também associado ao primeiro, ensina ao aluno/leitor a não

resumir a conclusão de um tema, mas sim particularizar uma ação no tempo, relatando um a

um e detalhadamente cada ponto da questão. Desta forma, assim se desenvolve o terceiro

método, pois “não apenas mencionamos um fato banal, mas contamos também as causas e

o início de onde se desenvolveu”114, recomendando ao leitor Salústio e Tito Lívio sobre

essa questão.

O quarto método, apesar de ser também uma variação da arte de particularizar, ele o

considera como mais importante, pois é utilizado toda vez que nós não relatamos um tema

resumidamente, “mas enumeramos suas circunstâncias concomitantes ou resultantes.”115

Erasmo cita o seguinte exemplo: “nós vamos deixar a guerra por sua conta” e passa a

analisar as conseqüências deste fato. Segundo ele: um tesouro é exaurido contra os soldados

bárbaros, vilarejos são incendiados, muralhas transpostas, pessoas idosas ficam sem

descendentes, crianças ficam órfãs, muitas virgens são desonradas sem pena, a arte é

extinta, havendo o caos de todas as coisas humanas.116

O quinto método é usado toda vez que queremos amplificar, adornar ou agradar.

Erasmo aprofunda aqui a idéia de amplificação desenvolvida até então, pois cabe ao aluno

(e ao mestre) saber colocar em evidência seu objeto. Por essa razão, ele distingue entre os

autores antigos diversos tipos de descrições, indicando em cada um deles os processos

próprios desenvolvidos para enriquecer o discurso. Segundo o humanista, são os poetas e,

sobretudo Homero, que têm excelência na descrição. Mas são vários os tipos de descrições:

de uma cena, por exemplo, que transporta o leitor para um teatro e lhe coloca a coisa diante

de seus olhos; da tomada de uma cidade; de um banquete, de revoltas e batalhas,

cerimônias religiosas, animais, trabalhos de arte, máquinas, edifícios, entre várias outras.

Ele enumera ainda a descrição de pessoas (prosopopeia), do caráter (notatio), da aparência

113 Erasmo, De Copia, II, “Primeiro método de embelezar”, p. 43. 114 Idem, II, “Terceiro método”, p. 46. 115 Ibidem, II, “Quarto método”, p. 47. 116 Ibidem, II, “Quarto método”, p. 47.

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(effictiones), de lugares que existem (topographia), de lugares que não existem (topothesia)

e de um momento (chronographie). Segundo o humanista este tipo de descrição é muito

usada por iniciantes, com o fim do deleite de seu leitor ou ouvinte. Os poetas são aqueles

que melhor se utilizam desse recurso, muito útil também para os estudantes que devem a

ele se dedicar como a um exercício, até alcançar uma descrição completa como faz Vírgílio

em sua Eneida.

Era noite, quando as estrelas estavam na metade de seu vôo, Quando cada campo repousava; E corpos cansados sobre a terra Desfrutavam um sono pacífico; os bosques E mares selvagens repousavam; As bestas e os pássaros multicoloridos, aqueles longínquos E amplos e límpidos lagos, e campos Com insetos, caíam em sono sob a noite silenciosa, Curavam suas preocupações, e os corações esqueciam seus árduos trabalhos.117 O sexto método para enriquecer um texto consiste na digressão (egressio, digressio,

excursus) que segundo, a definição de Quintiliano, “foge do assunto principal mas ainda

assim é pertinente e útil ao caso”118, sendo usado tanto para deleitar quanto para louvar e

censurar. A digressão associa as descrições ao emprego de lugares comuns, entre os quais

tem uma particular importância aqueles que criticam um vício ou exaltam uma virtude.

Até aqui Erasmo seguiu uma ordem lógica tratando de explicar como a partir de

uma frase é possível desenvolver o discurso. Mas, a partir deste ponto, o humanista

particulariza sua análise sobre os modos de enriquecê-lo. O sétimo método cuida dos

epítetos, freqüentemente usados pelos poetas com o objetivo de deleitar ou informar. Para

eles os epítetos são tomados de poderes mentais ao atribuírem grandes qualidades ou

defeitos a uma pessoa (ex. Platão, o mais sábio dos filósofos; Cícero, o príncipe da

eloqüência119). No entanto, os oradores os empregarão apenas para sugerir uma idéia útil à

sua causa; por exemplo, para reforçar a autoridade de um autor que ele cita. O oitavo trata

das circunstâncias, ou seja, das particularidades concernentes ao objeto ou aos personagens

de que se fala. Essas precisões, esses detalhes descritivos são para Erasmo de uma

importância extrema, com a “condição de serem utilizados em momentos oportunos.” Eles 117 Virgílio, Eneida apud Erasmo, De Copia, II, “Quinto método”, p. 55. 118 Quintiliano (IV,3,14) apud Erasmo, Idem, II, “Sexto método”, p. 56. 119 Ibidem, II, “Sétimo método”, p. 57.

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servem para amplificar ou reduzir, para fazer ver (evidentia), e para a demonstração, “pois

todo o discurso se encontra guarnecido e fortificado de argumentos numerosos”.120 Mas, o

que realmente importa aqui é o uso que o orador faz desses métodos, respeitando as

circunstâncias nas quais eles devem ou não ser empregados.

O nono método para dilatar um texto é através da amplificação, a arte, de fazer

parecer grande o que se fala. Erasmo distingue diversas formas de amplificação: a

progressão (incrementum), a comparação (comparatio), isto é, a comparação com outro

termo menor, a dedução (ratiocinatio), a acumulação de palavras ou idéias que são

semelhantes e a retificação (correctio). Sobre esta última diz o humanista que: “nós

conduzimos diante de seu tribunal não um adúltero, mas o exterminador da pudicidade, não

um sacrílego, mas um inimigo de tudo o que é santo e sagrado, não um assassino, mas um

sádico carrasco de seus compatriotas e de seus aliados.”121

No décimo método de desenvolvimento baseado no grande número de

possibilidades sobre as proposições há uma mudança na obra, pois ele abandona os detalhes

descritivos e passa à argumentação. Como então proporcionar a abundância? É preciso

antes de tudo “descobrir o maior número de proposições” inerentes a cada objeto.

Para Erasmo, aquele que busca a copia deveria ter especial cuidado em encontrar as

proposições que compreendessem o caso no seu todo, seja sobre o que fosse, então dividi-

las propriamente e finalmente arranjá-las em ordem da melhor forma possível. É claro que

isso deve ser feito de tal forma que o discurso não seja confundido com a copia do

pensamento, e o ouvinte esteja certo para onde direcionar sua atenção, o que ele deveria

lembrar e o que esperar. Entretanto, a habilidade natural será de grande ajuda em tudo,

como a jurisprudência será de grande valor para a oratória forense; e o conhecimento da

filosofia moral, da história e de vários autores é útil na oratória persuasiva e

demonstrativa.122

No entanto, não existe uma técnica exata para descobri-las, sendo apenas por meio

do talento e da experiência que o orador pode consegui-las. Algumas são tiradas do que é

comum a muitas causas, isto é dos lugares comuns, e outras são tiradas do que é

essencialmente particular à causa defendida. Para demonstrar esta afirmação Erasmo nos

120 Ibidem, II, “Oitavo método”, p. 57. 121 Ibidem, II, “Nono método”, p. 60. 122 Erasmo, De Copia, II, “Décimo método”, pp. 60-66.

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oferece alguns exemplos de temas a serem expandidos: uma controvérsia cujo tema é tirado

de Quintiliano, uma argumentação retirada de Cícero, uma crítica ao matrimônio, entre

outros. Para cada um dos vários temas Erasmo lista o maior número possível de

proposições particulares, comuns e conjecturais associadas a cada temática tratada,

objetivando provar cada uma das teses que ele sustenta. Como a sua narração é muito

extensa (e nossa intenção não é reproduzir literalmente todo o seu discurso, antes analisá-lo

em seus pressupostos básicos), optamos então por começar com o exemplo ciceroniano, em

que o orador romano é ameaçado de morte por Antônio por causa das suas Filípicas. Para

defender Cícero, Erasmo formula ao menos três proposições:

1º Aquele que busca fama imortal não teme a morte.

2º Aceitar a morte seria negar seus escritos. Do mesmo modo, Erasmo ressalta que

um homem já velho não tem muito a perder.

3º Nada é mais inadequado para Cícero, o melhor dos homens, do que dever sua

vida a Antônio, o pior dos homens.

O terceiro tema escolhido por Erasmo é a crítica ao matrimônio, onde desenvolve

três proposições gerais para enriquecer o argumento.

1º Levando em conta a piedade, o casamento será um obstáculo para o

relacionamento com Cristo.

2º Pelo ponto de vista do prazer em vida, um casamento infeliz traz vários vexames.

3º O casamento compromete a liberdade do indivíduo.123

Mas, frisamos mais uma vez, para Erasmo, a forma mais eficiente de se aprender

esses métodos é praticando-os, como já destacara anteriormente no Rationne studii,

enfatizando a importância de que as línguas grega e latina fossem não apenas aprendidas

em suas regras gramaticais, mas que fossem praticadas na conversação, inserindo-se

plenamente no espírito por hábito.

O décimo primeiro e último método para enriquecer o discurso consiste em

acumular as provas e argumentos para sustentar as proposições. Segundo ele, várias são as

razões empregadas para dar suporte à mesma proposição, e as razões são confirmadas por

vários argumentos. Na maior parte das vezes os exempla são derivados dos elogios tanto do

autor, quanto das circunstâncias, da natureza, das pessoas ou das coisas. Duas são as fontes

123 Erasmo. De Copia, II, “Décimo Método”, pp. 62-63.

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principais que Erasmo oferece ao leitor para que ele busque seus argumentos: os lugares

comuns e os exempla. Sobre os lugares comuns, o humanista nos diz que muitos autores

antigos já trataram desse tema (Aristóteles, Boécio, Cícero e Quintiliano escrevem

abundantemente sobre eles). Quanto à maneira de encontrar e usar os exempla, Erasmo

afirma que alguns autores trataram dessa temática (Quintiliano, Aristóteles e Hermógenes)

porém de forma menos abundante. Por essa razão, ele se dedica mais à análise deste meio

de proporcionar a abundância ao discurso. É possível ao orador ampliar o exempla pelo

elogio de seu tema, do autor, personagens históricos ou povo. O enriquecimento pode se

dar contando mais detalhadamente cada fato, utilizando um número maior de ornamentos

oratórios, sobretudo daqueles que melhor funcionassem como aparato para reter o auditório

em circunstâncias apropriadas. Logo em seguida Erasmo introduz um longo

desenvolvimento sobre a interpretação dos exempla fabulosa, ou, se preferirmos sobre a

exegese alegórica, pois todos os mitos contados pelos poetas antigos são repletos de

alegorias; e aí, “mesmo se o sentido latente não é tão facilmente acessível, ele existe

sempre.” Eles podem ser relatados tanto completamente quanto resumidamente, se as

circunstâncias e a propriedade permitirem. Mas, no caso daqueles que estão sem

credibilidade, é bom que haja um prefácio para o efeito de sua composição. Embora o

método da alegoria não seja encontrado na mesma extensão e em todo lugar, mesmo assim,

está fora de questão que nos autores habilidosos da Antigüidade e nas citações dos poetas

antigos, a alegoria é encontrada, tanto na história como na batalha de Hércules contra o

duas-bocas Aquelon, na teologia (no exemplo de Proteu mudando de forma ou de Palas

nascendo da mente de Jove), na ciência, como na fábula de Phaeton, ou na moral, no caso

daqueles homens que Circe transformou em animais brutos pela ação mágica, ocorrendo

ainda que às vezes um tipo de alegoria é misturado ao outro.124

Um outro meio para dilatar os exempla consiste em mostrar de modo detalhado a

relação de semelhança, de dissemelhança ou de oposição (simile, dissimile, contrarium), ou

ainda de igualdade, inferioridade e superioridade (par, minus, maius) que pode existir entre

o personagem ou a situação da qual se fala. Cada um desses tipos é ilustrado por uma

citação de Cícero ou de Virgílio fornecida por Quintiliano, porém Erasmo inventa a

124 Erasmo, De Copia, II, “Décimo primeiro método”, p. 70.

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contentio, que é a forma de dilatação mais longamente analisada pelo humanista. Segundo

ele:

Há também um tipo geral de contentio, especialmente do tipo demonstrativo, quando com o propósito da alegoria nós contrastamos uma pessoa com a outra; por exemplo, de forma a elogiar Júlio, pontífice romano, alguém poderia contrastá-lo com Caio Júlio César, e comparar os bons atos do primeiro com aqueles do segundo.125

Erasmo relaciona ainda ao exemplum uma série de procedimentos vizinhos, próprios

a fornecer os argumentos para sustentar uma proposição. O primeiro é a parábola, que não

se distingue do exemplum, onde se faz intervir um fenômeno natural no lugar de um

personagem. O segundo é a imagem (imago), que é uma breve comparação; ela serve

menos para provar que para dar ao discurso a sua gravidade. O terceiro é a contentio

demonstrativa, que é utilizada para louvar um personagem, colocando-o em paralelo com

outro que lhe serve de ponto de partida. O quarto gênero de exemplum Erasmo o chama de

iudicia, ou seja, os pensamentos e as sentenças (sententiae) que podem ser coletadas dos

escritores ilustres, dos sábios, dos poetas, dos historiadores, dos filósofos, das Escrituras,

das cartas privadas, entre outros.

Segundo Erasmo, elas podem ocorrer na narração, nos apelos e nas emoções, e não

apenas na argumentação. E, “se forem empregadas apropriadamente, contribuem

grandemente para a copia do discurso.” São várias as formas das sententiae. Algumas são

de aplicação universal: “o ódio é sua própria punição”. Outras são relacionadas ao sujeito

do tema: “o príncipe que deseja saber todas as coisas deve ignorar muitas.” Outras são

simples: “o amor conquista tudo”. Outras têm uma razão adicional ou combinada: “em toda

disputa o mais capaz, mesmo se receber injúria, nunca, por ser mais forte o demonstra”.

Algumas são duplas, com partes opostas: “complacência traz amigos, a verdade, desgosto”.

E, por fim, algumas são de partes diferentes: a morte não é miserável, a aproximação da

morte é.”126

O próximo método de enriquecimento do discurso vizinho ao exemplo, e mais

precisamente ao exemplo fictício (fabulosum) é o apólogo, muito próximo das fábulas. A

diferença entre eles é que os apólogos dão prazer maior e persuadem de forma mais efetiva. 125 Idem, p. 79.

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Eles agradam por certo tipo de imitação dos costumes e convencem porque colocam a

verdade diante dos olhos do leitor. Segundo Erasmo, as pessoas do campo e os não

educados são mais facilmente persuadidos por eles. Os apólogos de Esopo são

especialmente célebres, sendo ele considerado sábio por esta razão. “Quase todos podem

compor este tipo de fábula para um dado propósito, mas para compor com correção é

preciso ter não apenas talento, mas também estudo sobre a natureza das coisas, pois elas

são de infinita variedade.”127 Os apólogos serão feitos sem tédio, segundo Erasmo, através

da imitação e adaptação de alguns aspectos da vida dos homens, assim como ao usarmos as

fábulas, sententia e sermões.

Outras formas de variação próximas ao exemplum fabulosum são, por exemplo, as

narrativas de sonhos, como o sonho de Luciano, ou de ficções puras como as estórias de

Prodicos sobre Héracles, ou a fábula de Mommos em Cícero. Segundo Erasmo:

Eu penso que muitos escritores conseguiram muitos benefícios neste tipo e, repousando na credibilidade das pessoas, introduziram na literatura cristã como verdade algumas tolices extremamente miraculosas. Nesta classe estão as Histórias Verdadeiras de Luciano e quase todos os argumentos da Comédia antiga, que agradam não pela imitação da realidade, mas pelas ilusões e alegorias. Não há dúvida que este tipo de ficção, que apresenta a imagem sombria da realidade é relatada nas parábolas.128

O que Erasmo ressalta é que se essas narrações imaginárias visam a persuadir, elas

devem respeitar a noção de verossimilhança, para que não enganem nem abusem da

credulidade dos leitores, tomando a ficção pelo real. Enfim, por último, trata das alegorias

teológicas e dos exemplos tirados do Antigo e do Novo Testamento. Eles podem e devem,

segundo o humanista, ser tratados de modos variados pelo uso da alegoria, podendo ser

adaptados aos costumes dos homens, ao corpo da Igreja, em harmonia com Cristo e com a

comunicação celestial.

Para concluirmos a análise desta obra gostaríamos de retomar seus pontos que

consideramos principais, ressaltando uma noção fundamental para Erasmo e que ele expõe

apenas no início do texto: a questão do decoro. Este ponto é importante devido ao fato de

que tanto aquele que visa à concisão quanto aquele que visa à abundância, precisa ter a

126 Ibidem, pp. 81-82. 127 Ibidem, p. 85. 128 Ibidem, p. 87.

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plena sabedoria para escolher corretamente entre seus recursos, eliminar e não reter apenas

o que é indispensável ao seu argumento. Aqueles que buscam a abundância deviam então

recorrer de forma diligente aos procedimentos enunciados por Erasmo no De Copia, e

aqueles que buscam a concisão devem cuidar para que seu estilo não seja seco, obscuro e

sem graça. A abundância exige uma escolha para excluir as razões fúteis, os exemplos

inadequados, as sentenças vãs, as digressões muito longas e as figuras muito utilizadas.

Desta forma, o orador ou o escritor precisa ter essencialmente um bom juízo e equilíbrio em

suas opções, sendo esta, enfim a virtude própria de sua arte, localizada afinal, na excelência

do caráter. Sobretudo, ele deve demonstrar prudência no uso da abundância, pois, nem ela

nem a concisão (ele deve saber) são condições absolutas, boas em si mesmas, mas sim,

relativas a cada objeto, às circunstâncias e à intenção do discurso. Portanto, o verdadeiro

orador, como já dizia Cícero, saberia, em cada momento, extrair de cada estilo sua beleza

ideal, atestando sua própria virtude.

Portanto, para o humanista, a estreita vinculação a uma escola antiga de eloqüência

(seja a exuberância do estilo dos asiáticos, seja o estilo mais simples dos áticos, ou o meio

termo entre as duas proposto pela escola rhodiana) não significa muito para o

reconhecimento da boa eloqüência, porque, nesta perspectiva, o que realmente importa é

exercitar o próprio talento em todas as formas, sabendo bem empregá-las, em função da

propagação da fé e das virtudes cristãs, nos contextos mais variados da vida dos homens.

Essa necessidade e este modo de apreço dos poderes da eloqüência ele propõe diretamente

no Rationne e no De Copia. Enfatiza então as vantagens da habilidade artística do discurso

para contribuir com a purificação da natureza humana sob uma fé autêntica, sublinhando a

harmonia e a continuidade plena entre estes dois âmbitos da vida. Sublinha assim a

gravidade das faltas da ausência de concordância entre o tipo de eloqüência e o estilo, de

um lado, e o conteúdo das palavras, as circunstâncias e a figura do orador, de outro. Nada

mais distante dos pressupostos erasmianos do que uma tal discordância.

Tal é o sentido mais profundo do De copia, manual escolar pouco estudado pelos

analistas, mas que desenvolve um ponto de vista original sobre a retórica, na medida em

que o autor não apenas usa os princípios de Cícero e de Quintiliano, mas também os

repensa e os atualiza de modo extremamente pessoal e crítico.

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* * *

Assim, o argumento que procuramos destacar entre os conselhos de estilística e

retórica que Erasmo dá a seus alunos ou mestres no De Copia, é a sua preocupação com a

variatio, não apenas pelo prazer de variar, mas, sobretudo, para que eles aprendam como

adaptar harmoniosamente o estilo ao objeto tratado; condição fundamental para a

construção de um discurso claro e ao mesmo tempo persuasivo. Este princípio, como

dissemos, não está presente apenas em seus escritos teóricos, mas também expresso

claramente na forma de suas mais diversas obras, assim como em sua correspondência,

onde o ele exercita com freqüência a variação do estilo.

No entanto, ao propor a variatio Erasmo entra em choque com toda uma geração de

humanistas italianos que propunham a vinculação estrita ao modelos ciceroniano de escrita.

Esta questão além de possuir um papel de grande relevância na modificação de toda

uma estrutura educacional baseada na pedagogia escolástica, também retoma a querela

anticiceroniana travada algumas décadas antes por Lorenzo Valla, Policiano e Pico della

Mirandola, contra a imposição do modelo ciceroniano e a favor da liberdade de espírito. Na

Itália, desde a publicação dos trabalhos de Valla, o primeiro a questionar o predomínio do

modelo ciceroniano, alguns humanistas se engajaram na batalha em prol da variação do

estilo de acordo com a matéria tratada, ou segundo as circunstâncias de tempo e de lugar.

Esta polêmica sem dúvida não passou desapercebida por Erasmo que, em 1528,

publica o Ciceronianus129 (O ciceroniano) opondo-se ao pedantismo e à relação que o leitor

moderno estabelecia com os textos clássicos, tomando-os como modelos absolutos da

verdade e do saber. Os humanistas dos séculos XV e XVI perceberam o estilo como sinal

do caráter do homem como um todo e expressão de suas virtudes próprias, não sendo

apenas uma capacidade artística válida por si só. Mas, o que muitos deles não viram,

tamanha a sua admiração por Cícero, é que a prática única e constante deste autor poderia

129 Este diálogo não é uma retratação da sua admiração por Cícero (tendo editado algumas de suas obras, sempre enfatizou a moral contida em seus textos), mas sim a denúncia de um novo paganismo que, sobretudo na Itália, se fundamenta sobre a reputação inatacável do orador romano. Erasmo desde logo é partidário da imitação, como sua pedagogia demonstra suficientemente, mas o humanista quer que seus alunos aprendam a imitar os antigos para que eles possam definir-se em comparação com os clássicos. Erasmo. "Ciceronianus" in: Erasme. La Philosophie Chrétienne: L'Éloge de la Folie, L'Essai sur le Libre Arbitre; Le Ciceronien; La Refutation de Clichtove. (Introduction, traduction et notes par Pierre Mesnard) Paris: Vrin, 1970, pp. 257-358.

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esterilizar o autor moderno, impedindo-o de descobrir sua própria natureza e de

desenvolver sua criatividade e seu juízo particular.

A proposta erasmiana em seus tratados pedagógicos se opõe radicalmente a essa

questão amplamente debatida pelos italianos, tendo em vista que, tanto no Rationne quanto

no De Copia, os exemplos clássicos são de grande utilidade ao aprendizado por

apresentarem em seu conteúdo as línguas antigas em seu estado mais puro (sem as

deturpações lingüísticas acrescidas pelo tempo), assim como narrativas e poesias de grande

beleza, exemplos morais eficazes e uma grande variedade de modelos e formas estilísticas.

No entanto, ainda que partindo dos clássicos como referência, o humanista esperava

estimular em seus alunos uma nova relação com o texto, muito mais criativa e

independente, onde estivesse presente o espírito e a inventividade dos autores.

A insistência na variatio nas obras teóricas erasmianas (seja dos autores e de seus

exemplos morais, seja das formas de ornamentação e das palavras) é, segundo, Marc

Fumaroli130, uma das características essenciais que distinguem os manuais de Erasmo de

vários outros escritos por humanistas como Alberti, Sadoleto, Picolomini e Guarino de

Verona, e que os tornaram, juntamente com a obra de Agricola (De inventione dialectica)

os modelos pedagógicos mais influentes da Europa. Os manuais erasmianos foram a

principal referência para a exposição similar de Juan Luis Vives sobre os objetivos e

método da educação humanista, intitulado De tradendis disciplinis, de 1531131. O acento

erasmiano na variatio e também nos métodos de se enriquecer o discurso é diametralmente

oposta à veneração ao modelo ciceroniano, abundante.

É deste ponto de vista que ele escreve o Ciceronianus, um diálogo entre três

personagens: Buléforo, Nosopon e Hipólogo. O primeiro expressa as idéias erasmianas

contra Nosopon, sendo Hipólogo um personagem indeciso e pouco consistente. Um dos

pontos altos desse diálogo é quando Nosopon faz notar a seus interlocutores que em toda a

Itália se dedicaram à procura da verdade ciceroniana (particularmente humanistas como

Bembo e Sadoleto), imitando suas palavras, seu estilo e suas idéias. Buléforo (porta-voz de

Erasmo) replicando esta assertiva, afirma que a admiração mesmo excessiva de Cícero não

130 Segundo Fumaroli, o método de Erasmo tal como ele aparece explícito também no prefácio dos Adágios, possui um aspecto que o diferencia dos humanistas italianos: o gosto do humanista por diversos processos estilísticos e figuras de linguagem. Cf.: Marc Fumaroli. L'Âge de l'Éloquence, p. 98. 131 Quentin Skinner. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, p. 42-43.

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desviou esses grandes espíritos da elaboração de trabalhos onde é nítida a presença das

suas próprias idéias e opiniões. Nesse sentido, o julgamento de Buléforo sobre Sadoleto,

bispo de Carpentras, é ainda mais interessante e nos direciona para um debate mais vasto,

que se situa no centro do diálogo humanista e, por sua vez, constitui o cerne de suas

discussões. Diz ele sobre o ciceroniano:

Sadoleto...,mestre da ciência e do bom gosto, não se mostra ciceroniano ao ponto de esquecer a dignidade de seu cargo (episcopal) e as exigências de sua causa; ele não receia da mesma forma empregar em suas cartas um vocabulário eclesiástico. Assim, ele não falaria de uma maneira tuliana? Pelo contrário, ele se exprime certamente do modo pelo qual teria falado sobre tais questões Cícero, se ele fosse nosso contemporâneo; isto é, de modo cristão, sobre os temas cristãos...132

Essa última frase sublinha bem o interesse erasmiano pelo uso consciente das

técnicas retóricas e dos modelos antigos, sendo necessário que a retórica empregada pelos

humanistas cristãos fosse adaptada às questões, ao vocabulário e aos problemas morais

específicos da vida no século XVI, não devendo ser utilizada, portanto, de forma arbitrária

e sem nenhuma preocupação com sua utilidade prática imediata. A retórica para Erasmo,

assim como foi para Cícero, era uma forma consciente do homem intervir no mundo, sendo

por essa razão que ele tanto se empenhou, juntamente com outros humanistas133, na edição,

na tradução e na publicação, tanto das obras antigas, quanto das obras de outros humanistas

que partilhavam do mesmo ideal de valorização da cultura clássica aplicada aos interesses

da filosofia cristã.

Como a retórica assume este papel prático na vida cotidiana, estando sempre

relacionada às temáticas religiosas, políticas, sociais e pedagógicas, um orador que

empregue essa arte como faz um sofista (ou um teólogo) por exemplo, sem nenhuma

preocupação com a verdade, nem tampouco com as questões que afligem seus

132 Erasmo. "Ciceronianus" in: Erasme. La Philosophie Chrétienne: L'Éloge de la Folie, L'Essai sur le Libre Arbitre; Le Ciceronien; La Refutation de Clichtove. (Introduction, traduction et notes par Pierre Mesnard) Paris: Vrin, 1970, p. 337. 133 Sobre a função que Erasmo assume de editor e tradutor de trabalhos que estivessem de acordo com os seus ideais de disseminação de uma filosofia cristã ver: Lisa Jardine. Erasmus: Man of Letters. Princeton: Princeton University Press, 1995. A rede de humanistas que se forma em prol de interesses comuns e que se utiliza conscientemente do poder de comunicação que a imprensa adquire no início do século XVI, assim como o uso da retórica como forma padrão de orientar a elaboração de novos trabalhos que estivessem preocupados com as questões religiosas e pedagógicas, são temáticas que pretendemos ainda desenvolver ao longo do doutorado.

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contemporâneos, está totalmente desvinculado dos preceitos mais caros à eloquência. Esse

é um problema que Erasmo já ressalta no De Copia, quando destaca a importância da

adaptação das palavras e expressões dos antigos ao contexto moderno, indo de encontro

alguns anos mais tarde, quando escreve o Ciceronianus, aos puristas da linguagem que

rechaçam a terminologia cristã dizendo que "Deus há que ser chamado de Júpiter, Cristo de

Apolo, a Santa Virgem de Diana, a Igreja católica de templum, (...) apenas para servir aos

termos e expressões utilizadas por Cícero.134"

Através de sucessivas réplicas àqueles que seguem Cícero de uma forma totalmente

inadequada, Buléforo define um classicismo que se liberta de todo vestígio de paganismo,

e cujo interesse está em expressar apenas uma filosofia de inspiração cristã, em acordo com

um humanismo comprometido com as questões inerentes à Renascença.

Assim, fundamentalmente, Erasmo insiste no Ciceronianus na insuficiência do

modelo privilegiado do grande orador latino, afirmando a importância da leitura de

Aristóteles, Teofrasto, Plínio e de todos aqueles que não apenas contribuíram para a beleza

do estilo, mas também ofereceram em abundância exemplos morais e reais, contribuindo

para o aprendizado das disciplinas liberais e, sobretudo, para a formação moral e religiosa.

É, portanto, munido de todos esses conhecimentos que o aluno poderá, afastando-se dos

seus modelos, elaborar um discurso próprio que exprima a sua virtude, em consonância

com os problemas de sua realidade imediata.

134 Erasmo. "Ciceronianus" in: Erasme. Philosophie Chrétienne, p. 288.

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6. Conclusão

O objetivo central desta tese foi analisar a influência da retórica antiga, sobretudo a

de Cícero e sua união entre res e verba, na recuperação da retórica na Renascença por

Erasmo de Rotterdam, um dos principais catalisadores e difusores desta tradição. Esta

forma de fala e escrita oriunda dos antigos - desenvolvida inicialmente na Grécia do século

V a.C. pelos sofistas e estendida por todo o mundo antigo do Ocidente - possuía um

objetivo muito claro: dar ao discurso a forma mais persuasiva possível para que por meio

da linguagem o orador fosse capaz de convencer até mesmo uma platéia hostil da

veracidade dos seus argumentos.

Por sua relevância política a retórica tornou-se na Antigüidade um meio

extremamente eficaz nas deliberações públicas das cidades, sendo seu ensino ministrado

nas melhores escolas. Cabiam aos futuros oradores o aprendizado das cinco partes da

retórica: a escolha dos argumentos mais apropriados a uma discussão (inventio), a

disposição dos mesmos argumentos da forma mais instigante ao ouvinte ou leitor

(dispositio), a escolha das palavras, expressões e figuras de linguagem mais adequadas as

temáticas escolhidas (elocutio), a capacidade de guardar na mente com firmeza as coisas

descobertas (memoria), e o uso correto da voz, da aparência e dos gestos para a construção

de um estilo moderado e elegante (pronuntiatio).1 Do mesmo modo, também era tarefa do

orador antigo conhecer perfeitamente os três tipos de discurso – o deliberativo, o judiciário

e o demonstrativo – e o momento apropriado onde usar cada um desses tipos. Um outro

elemento do aprendizado dizia respeito ao número de partes de um discurso adequadamente

organizado, a saber: proemium, a narratio, a confirmatio, a propositio, a partitio, a

refutatio e a peroratio, conforme a divisão proposta por Quintiliano.2

1 Essas são, em linhas gerais, as cinco partes da retórica que os oradores greco-romanos deveriam deter sua atenção, embora existam algumas discordâncias entre os tratados antigos em relação ao peso ou a importância de cada uma dessas partes, como dissemos no capítulo 1. 2 Segundo Aristóteles são quatro as partes do discurso: o proema, a proposição, a prova (que contém a confirmação, a refutação, a ampliação e a diminuição) e o epílogo. Segundo o Ad Herennium, entretanto, esse

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No entanto, além desses conhecimentos técnicos, Cícero ainda destacava a

importância do saber filosófico na formação de todo o orador, tendo em vista que

conhecimento e eloqüência (res e verba) não poderiam ser dissociados. Com o fim das

repúblicas em Roma e o retorno da monarquia ao poder, os espaços de deliberação política

se tornaram cada vez mais escassos. Deste modo, os gêneros judiciários e deliberativos

antes associados aos fóruns e assembléias cederam espaço para a emergência de um outro

tipo de discurso mais apropriado à nova realidade política da época: o discurso

demonstrativo ou epidíctico, que diz respeito ao louvor e aos elogios das coisas que

julgamos honradas. Mas, antes desse momento, os retóricos clássicos pouco tinham o que

dizer sobre esse discurso, considerado uma forma menos importante por Aristóteles, pelo

Ad Herennim e por Cícero, no De Oratore. Essas são muito brevemente algumas das causas

que contribuíram para o declínio da eloqüência no mundo antigo e, consequentemente,

também da Idade Média, onde esse conjunto de saberes técnicos e filosóficos se manteve

restrito a poucas ou ínfimas áreas de estudo na Europa.

O saber dos antigos apenas começou a ser resgatado de fato pelos primeiros

humanistas no século XIV, a partir das descobertas realizadas por Petrarca de alguns textos

clássicos. Marcadas as diferenças temporais entre dois momentos tão distintos da história,

procuramos perceber ao longo desta tese como a retórica utilizada nos tribunais e senados

greco-romanos, pôde ser retomada e aplicada séculos mais tarde tanto nas repúblicas

italianas dos séculos XIV e XV, quanto nos textos dos humanistas cristãos do século XVI

para a persuasão dos fiéis a levarem uma vida mais adequada aos verdadeiros preceitos

cristãos, como dissemos antes, tão distantes das regras e abstrações escolásticas. Nossa

questão era então compreender que retórica é essa que emerge na Renascença? Quais as

diferenças mais marcantes entre essas retóricas? Mas, sobretudo, o nosso objetivo foi

analisar qual a importância e a função desta nova retórica. A que fins ela serve, então, numa

outra temporalidade e num contexto cristão e não pagão? Com efeito, sua vinculação ao

cultivo da espiritualidade cristã no contexto humanista não significava sua dissociação das

preocupações com a dimensão da vida pública e com a intervenção direta na ordem política

esquema precisa ampliar-se para abranger seis partes distintas: o exordium, a narratio, a divisio, a confirmatio, a confutatio e a conclusio. Cf.: Aristóteles. Arte Retórica. Arte Poética. Cf. também Retórica a Herênio, I, III.4 e Quintiliano. Institutio Oratoria, IV, I.1.

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e social, como podemos comprovar no papel central que teve o ideal da reforma pedagógica

no pensamento de Erasmo e de muitos outros humanistas cristãos de seu século.

O aprendizado das línguas e a leitura dos textos clássicos seriam para o humanista

um ponto de partida para que os homens pudessem se exercitar antes de adentrar como ele

diz no Enquiridion, com pés e mãos sujas na leitura das Escrituras. Este saber apenas teria

valor se estivesse associado à elevação moral e espiritual. O saber pelo saber visando

apenas a glória e o reconhecimento dos oradores (como no mundo antigo) não interessava a

Erasmo. Para o humanista a eloqüência não é apenas uma arte da ornamentação, mas sim a

forma ideal de servir à verdade e à dignidade do homem em sua relação com Deus e seus

semelhantes. Portanto, ao orador cristão caberia expor somente idéias justas e coerentes, de

modo que sua persuasão conduzisse um número cada vez maior de fiéis a seguir a

verdadeira filosofia cristã. Seria somente deste modo que a união entre saber e eloqüência

deveria ser entendida e utilizada pelos humanistas cristãos da Renascença.

Nesse sentido, o orador cristão não é, como na Antigüidade Clássica, apenas o

homem virtuoso (vir bonus) e comprometido com os deveres cívicos, capaz de bem falar e

persuadir qualquer auditório. Ele é também aquele que contribui, graças à razão, mas

também devido à ajuda divina, à pureza da fé. O pregador cristão tal como Erasmo o define

no Ecclesiastes tem exatamente esta função: ele deve utilizar de suas palavras e de sua voz

eficaz para “retirar as almas mergulhadas nos vícios” e direcioná-las no caminho da

salvação, pois “é com as línguas antes de tudo que se serve o pregador: suas armas são a

doutrina sagrada, as lágrimas, as preces e uma vida sem faltas.”3 A linguagem assume então

para Erasmo uma importância vital em seus trabalhos, tendo em vista que o pregador ou o

orador cristão podem curar pela palavra aqueles que sofrem não de um, mas de vários

vícios. Portanto, a verdadeira persuasão é aquela que atinge o coração, que faz o homem se

elevar e se transformar diante de uma nova religiosidade pautada na simplicidade e na

caridade cristã.

Destacando a função terapêutica que a retórica assume na Renascença, Erasmo

dedica quase a maioria de suas obras ao tratamento das questões pedagógicas – como nos

Antibábaros, Colóquios, Adágios e em seus manuais pegagógicos, como o Ratio studii e o

De copia - resgatando e defendendo o aprendizado da arte retórica nas escolas e

3 Érasme. “Ecclesiastes” in Oeuvres Choisies, p. 978.

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universidades contra os escolásticos que reprimiam e condenavam o estudo das disciplinas

humanísticas em prol da dialética. A dialética, para ele, não era apenas inútil na pregação

cristã por não tocar os corações, mas era também uma arte dedicada à divisão, a disputa e

ao sectarismo. É nesse sentido que o humanismo da Renascença se opôs vivamente ao

ensino dos gramáticos medievais.

A reforma do ensino tornou-se então condição fundamental para a renovação da

própria teologia, que deveria se afastar cada vez mais das distinções conceituais e das

proposições escolásticas que não contribuíam em nada para o conhecimento da verdadeira

mensagem cristã. O domínio da linguagem assumiu para Erasmo, e para humanistas como

Colet, Morus, Vives, entre tantos outros, uma importância vital, protagonizando um vasto

movimento de renovação intelectual, político e cultural ligado à tendência de secularização

sobre as noções da natureza humana e dos poderes da razão, definidos por um ideal de ação

e investigação das coisas do mundo.

Esperamos com este trabalho estimular os estudos sobre a retórica destacando a

grande importância de suas implicações na constituição do pensamento moderno. O exame

da obra de Erasmo exemplifica bem como podia ser extensa a dimensão de seu uso. Ele

estendia seus domínios do âmbito restrito da deliberação política imediata, tal como ocorria

entre os primeiros humanistas cívicos italianos, para o desenvolvimento do ideal

ciceroniano da união entre eloqüência e filosofia no sentido de sua recriação para responder

aos problemas mais complexos da vida de seu tempo, referentes, como já vimos, à questão

da formação espiritual do homem e do estabelecimento de uma nova religiosidade que tinha

por cerne o contato direto com Deus e o apreço à liberdade da ação crítica no mundo. Este

é um dos pontos de maior importância ao analisarmos o uso da retórica feito por ele, pois

todo o esforço da sua pedagogia consiste no bom uso desta arte para fins cristãos, ou seja,

na reprovação de uma retórica que se exibe, apenas preocupada com o ornamento e com o

formalismo.

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Referências Bibliográficas:

1) Obras de referência

MARGOLIN, Jean-Claude. Douze anées de bibliographie érasmienne (1950-

1961). Paris: Vrin, 1963.

MARGOLIN, J.-C. Quatorze anées de bibliographie érasmienne (1936-

1949). Paris

2) Fontes primárias publicadas

2.1) Trabalhos de Erasmo

ÉRASME, Desiderius, (1466-1536). Correspondance: 1484-1517. Paris:

Gallimard, 1968.

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