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FACULDADE MERIDIONAL IMED FACULDADE DE DIREITO Vanessa de Souza Castejon Branco A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO FRENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA MULHER Passo Fundo 2015

FACULDADE MERIDIONAL IMED · 1.2 A clandestinidade do aborto e suas consequências na saúde da ... Ronald Dworkin (2003, p. 01) disserta sobre o aborto e a eutanásia, fornecendo

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FACULDADE MERIDIONAL – IMED

FACULDADE DE DIREITO

Vanessa de Souza Castejon Branco

A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO FRENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA MULHER

Passo Fundo 2015

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Vanessa de Souza Castejon Branco

A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO FRENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA MULHER

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Direito da Faculdade Meridional – IMED, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da Profa. Dra. Marília de Nardin Budó.

Passo Fundo 2015

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Vanessa de Souza Castejon Branco

A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO FRENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA MULHER

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Marília de Nardin Budó Orientadora

Prof. Me. Gabriel Ferreira dos Santos Integrante

Prof. Me. José Carlos Kraemer Bortoloti Integrante

Passo Fundo

2015

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Dedico este trabalho à minha família, que sempre me prestou apoio e me motivou em momentos de dificuldade, mostrando o verdadeiro significado de união, amor e dedicação. Ao meu pai, principalmente, que é e sempre será meu exemplo de vida, de caráter e de força, a quem eu devo cada objetivo conquistado.

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa faz uma abordagem ao fenômeno do aborto e a

sua criminalização no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, busca-se analisar os

direitos específicos da mulher e a sua conquista por seus direitos sexuais e

reprodutivos, bem como demonstrar que o aborto criminalizado viola diversos

desses direitos. Além disso, criminalizada, a conduta veio a se tornar uma das

principais causas de morte materna, já que a tipificação do procedimento não

impede a prática, levando apenas as mulheres a se submeterem a métodos

clandestinos e inseguros para a interrupção da gravidez. Por fim, é feita uma análise

do processo de criminalização sob a perspectiva da criminologia crítica,

demonstrando a seletividade presente no sistema penal e de que maneira ele

encontra-se deslegitimado. Diante de tudo isso, o objetivo geral é discutir acerca da

possibilidade de descriminalização do aborto e, para tanto, é utilizado método

dialético.

PALAVRAS-CHAVES: Direitos das mulheres; Aborto; Aborto Clandestino;

Descriminalização.

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ABSTRACT

The present research work makes an approach to the phenomenon of abortion and

criminalization in the Brazilian legal system. Thus, sought to analyze the specific

rights of women and its conquest by their sexual and reproductive rights, as well as

demonstrate that abortion criminalized violates several of these rights. In addition,

criminalized the conduct became one of the leading causes of maternal death, since

the typification of the procedure does not prevent the practice, taking only women to

submit to clandestine and unsafe methods for termination of pregnancy. Finally, an

analysis was made of the criminalization process from the perspective of critical

Criminology, demonstrating selectivity present in the penal system and how it is

deslegitimado. Before all this, the general objective was to discuss the possibility of

decriminalization of abortion and, for both, was used dialetic method.

Keywords: women's rights; abortion; back-alley abortion; public health;

decriminalization

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………… 7

1. OS DIREITOS REPRODUTIVOS E SEXUAIS DA MULHER FRENTE À

CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL…………………………………………... 9

1.1 Direito à dignidade da pessoa, às liberdades reprodutivas e sexuais, à

saúde: autonomia de decidir sobre o próprio corpo…………………………………. 9

1.2 A clandestinidade do aborto e suas consequências na saúde da

mulher…………………………………………………………………………………………. 24

2. SISTEMA PENAL E VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA MULHER: A

DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO…………………………………………………….. 30

2.1 Crime e Gênero: A Seletividade do Sistema Penal……………………................ 30

2.2 A Deslegitimação do Sistema Penal Brasileiro e a Contradição da Tutela

Penal dos Direitos Humanos no Caso do Aborto: do Discurso Declarado da

Proteção da Vida à Realidade da Morte Materna………………………………………. 38

CONCLUSÃO ...................................................................... Erro! Indicador não definido.

REFERÊNCIAS……………………………………………………………………................ 53

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INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro criminaliza a prática do aborto, com restritas

exceções. O presente trabalho tem como objetivo investigar quais são as reais

consequências sociais dessa criminalização, para além da ilusão, típica do mundo

dos juristas, de que ela garante a extinção do procedimento na realidade social.

Comumente são anunciadas mortes de mais mulheres que se submeteram à

interrupção da gravidez de forma insegura. Ocorre que o número de gestantes que

sofrem sequelas ou vêm a óbito em decorrência desses procedimentos clandestinos

aumenta a cada dia e, portanto, é necessária uma mudança no ordenamento, com o

intuito de minimizar a morte materna e a violação de direitos garantidos

constitucionalmente.

Não são raras as situações jurídicas em que direitos e princípios

constitucionais entram em conflito e, quando isso ocorre, é preciso analisar o caso e

encontrar o melhor meio de equilibrar a proteção dos direitos envolvidos,

minimizando o impacto sobre cada um deles.

Para tanto, o presente trabalho se divide em duas partes. Na primeira, busca-

se compreender o debate sobre o aborto a partir de seu viés jurídico, por um lado, e

a realidade de sua (não) aplicação, por outro. No primeiro capitulo, portanto,

contextualiza-se-a a situação atual do aborto dentro do nosso ordenamento jurídico,

bem como será explicado como os direitos específicos da mulher evoluíram a partir

dos direitos humanos universais. Além disso, será elucidado quais deles estão

envolvidos quando se trata do aborto: dignidade da pessoa humana, direito à saúde,

à autonomia, direitos sexuais e reprodutivos da mulher, entre outros.

Na segunda parte, cumpre-se com o objetivo de compreender de que maneira

o discurso declarado de sustentação da criminalização do aborto se relaciona com a

operacionalidade real do sistema penal. Assim, no segundo capítulo, estuda-se o

paradigma da teoria da reação social no campo da criminologia, com o objetivo de

compreender como ocorrem os processos de criminalização e de etiquetamento

social.

A partir daí, parte-se para uma análise do movimento do direito penal mínimo

que, como já sugere a nomenclatura, acredita na utilização mínima do direito penal.

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Para o desenvolvimento do trabalho utilizou-se o método dialético, sendo que,

por tratar-se de um assunto polêmico e frequentemente discutido, além de pesquisa

bibliográfica de autores renomados como Alessandro Baratta, Vera de Andrade,

entre outros, também foi realizada pesquisa bibliográfica de artigos científicos

publicados por estudantes e pesquisadores do tema.

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1. OS DIREITOS REPRODUTIVOS E SEXUAIS DA MULHER FRENTE À CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

No ordenamento jurídico brasileiro atual, a prática da interrupção da gravidez,

ou aborto, é considerada crime, conforme previsto nos artigos 124 a 128 do Código

Penal Brasileiro.

Muito se discute, porém, acerca da criminalização dessa conduta, uma vez

que, sendo considerada um ato ilícito, feriria direitos fundamentais da mulher. Esse

capítulo traz o contraponto entre os direitos específicos da mulher, que surgiram a

partir dos direitos fundamentais universais e, portanto, são assegurados

constitucionalmente e a realidade de sua violação pela realidade dos dados da

saúde pública no Brasil.

1.1 Direito à dignidade da pessoa, às liberdades reprodutivas e sexuais, à saúde: autonomia de decidir sobre o próprio corpo

Ainda que atualmente seja um assunto extremamente polêmico, o aborto, ou

interrupção da gravidez, está presente nas sociedades desde os primórdios da

humanidade. Desde sempre provocou opiniões e emoções divergentes, uma vez

que envolve questões políticas, jurídicas, morais, religiosas, entre outras.

A palavra “aborto” origina-se do latim abortus, que por sua vez deriva de

aboriri. Ab significa afastamento, enquanto bortus significa nascer, deste modo,

refere-se ao “afastamento do nascimento” (REBOUÇAS; DUTRA; 2011). O aborto,

ou interrupção da gravidez, é caracterizado pela morte do feto, independentemente

das causas que o levaram a óbito. Pode ele ocorrer de forma natural (espontâneo)

ou acidental, de modo que, nem a gestante, nem terceiros, tenham influência sobre

o resultado morte; ou pode ele ocorrer de forma criminosa, na qual a própria mãe ou

terceiro tenham intencionalmente atentado contra a vida do feto. A Secretaria da

Saúde define o aborto como “a expulsão ou extração de um embrião ou feto

pesando menos de 500g (aproximadamente 20-22 semanas de gestação),

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independentemente ou não da presença de sinais vitais” (SECRETARIA DA SAUDE

DO PARANÁ)1.

Ronald Dworkin (2003, p. 01) disserta sobre o aborto e a eutanásia,

fornecendo o seguinte significado:

O aborto, que significa matar deliberadamente um embrião humano em formação, e a eutanásia, que significa matar deliberadamente uma pessoa por razões de benevolência, constituem, ambos, práticas nas quais ocorre a opção pela morte. No primeiro caso, opta-se pela morte antes que a vida tenha realmente começado; no segundo, depois que tenha terminado.

Como mencionado anteriormente, existem dois tipos de aborto. O primeiro,

espontâneo, que acontece de forma natural (por motivos alheios à vontade da

gestante ou à vontade de terceiros), não é considerado crime em nenhuma das

hipóteses e é decorrente de fatores característicos dos genitores (parte materna

e/ou paterna), podendo ser eles patologias, defeitos intrauterinos, problemas

psicológicos da gestante, má formação do feto, entre outros.

Dentro do tipo espontâneo do aborto, estão também as ocasiões em que

fatores externos interferem na gravidez, como no caso de traumatismos ou

acidentes.

O segundo tipo é o aborto provocado, no qual se enquadra todo o aborto que

ocorreu mediante a interferência externa de pessoas, podendo ser elas médicos,

parteiras, parentes ou familiares da gestante ou, até mesmo, a própria gestante.

No aborto provocado, existem quatro principais espécies ou motivos que

levam à interrupção da gravidez. Débora Diniz e Marcos de Almeida (2015, p. 126-

127) explicam quais são elas: a primeira delas é IEG, Interrupção Eugênica da

Gestação. Nela estão incluídos os casos de aborto que se interrompe a gravidez por

motivos racistas, sexistas, entre outros. Servindo como exemplo a medicina nazista,

que obrigava mulheres a praticar o aborto em razão de serem judias ou possuírem

características descriminadas pela ideologia nazista.

Com exceção da IEG, as outras três formas de interrupção da gravidez levam

em consideração a vontade da gestante ou do casal. Essas três espécies são: a

Interrupção Terapêutica da Gestação (ITG), que ocorre quando a gravidez gera risco

1 Dado retirado do site oficial da Secretaria da Saúde do Estado do Paraná

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à saúde da mãe; a Interrupção Seletiva da Gestação (ISG), que depende da

situação do feto, ou seja, somente ocorre quando ele é incompatível com a vida

extrauterina; e, por fim, a Interrupção Voluntária da Gestação, que é a interrupção

feita em nome da autonomia reprodutiva da mulher ou do casal. Normalmente as

legislações onde esta interrupção é permitida, impõem limites à prática, como, por

exemplo, o tempo gestacional (DINIZ; ALMEIDA, 2015).

Existem muitos países em que a interrupção da gravidez, independentemente

dos motivos, não é considerada crime. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde o

debate sobre o tema é um dos mais conhecidos mundialmente, a interrupção da

gravidez é escolha da mãe, aconselhada pelo médico. A gestante tem esse livre

poder de escolha desde que seja no primeiro trimestre da gestação. A partir de 90

dias de gravidez, momento em que passa a existir a viabilidade da vida do feto fora

do útero da mãe, é que passa a ser proibida a interrupção (SARMENTO, 2005, p. 5-

7).

Na Itália, o Código Penal do país, em seu artigo 546, punia o aborto, todavia,

em meados da década de 70 tal artigo foi declarado parcialmente inconstitucional.

No final dos anos 70, então, a opção do aborto foi regulamentada de forma

detalhada através da Lei n. 194/78, determinando que a gestante poderá solicitar a

interrupção de sua gravidez em quatro hipóteses. São elas: o risco à saúde física ou

psicológica da mãe; em casos de anomalias fetais; em razão de suas condições

econômicas ou sociais; ou em virtude das condições ou características do momento

em que ocorreu a concepção (SARMENTO, 2005, p. 10-11).

Ressalta-se que nas hipóteses dos dois primeiros itens o procedimento

poderá ser realizado a qualquer tempo da gestação. Quanto aos outros só é

permitido se estiver dentro do período de 90 dias de gravidez.

Além daqueles já mencionados, países como Inglaterra, Japão, Austrália e

outros, permitem a interrupção da gravidez, sendo que, na maioria, a lei vigente

estabelece prazos (tempo gestacional) em que o procedimento pode ser realizado

(GOLLOP, 2015, p. 02).

Já no Brasil, o Código Penal Brasileiro (2015) considera como aborto legal, os

casos em que a gravidez representa risco à saúde da gestante e os casos em que a

gestação é consequência de estupro. Os delitos relacionados ao aborto estão

previstos no capítulo em que são elencados os crimes contra a vida, dispostos nos

artigos 124 a 128:

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Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Além dos casos previstos no Código Penal, há ainda a decisão do STF, a qual

considerou a possibilidade de abortamento legal nos casos em que o feto for

anencéfalo. A decisão foi tomada com base no fundamento de que, muito embora a

vida seja o maior bem tutelado, o feto anencéfalo não possui vida em potencial, uma

vez que sua condição é incompatível com a vida fora do útero. Ainda, considera-se

que essa situação oferece risco à saúde da gestante e pode causar não apenas

danos psicológicos à mãe, mas também à sua integridade física.

Diferentemente do que é considerado crime, é o que é considerado

moralmente condenável. Muito embora, o que é crime seja determinado pelos

grupos de poder e, portanto, acaba por ser considerado também moralmente

condenável, tudo depende da cultura e educação predominantes em determinado

local.

Além da cultura e da educação, a religião é um fator determinante na criação

do conceito pessoal do que é considerado moralmente condenável. A questão sobre

a criminalização do aborto, ou não, é uma das discussões que mais provoca reações

e sentimentos, já que ela não somente envolve interesses particulares, mas também

dimensões religiosas.

Ainda que na vinda dos portugueses ao Brasil, tenhamos herdados seus

dogmas da Igreja Católica, nem sempre o aborto ocasionado pela própria gestante

foi considerado ato ilícito no Brasil. O Código Criminal de 1830 não previa a hipótese

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de a própria mulher induzir seu aborto, de modo que a prática era livre de sanções,

sendo somente punido se um terceiro interrompesse a gravidez (BRASIL, Lei de

16./12/1830).

Wanessa Zimmer Barbosa (2010, p. 26) relata que “o dogma religioso diz que

a vida começa a partir da fecundação, e este tem sido o principal argumento para o

aprofundamento da restrição e até mesmo à tentativa de se acabar com o direito

definitivo da interrupção da gravidez”.

A Igreja Católica, que é uma das instituições mais respeitadas e influentes da

história mundial, sempre pregou que a vida é uma dádiva de Deus e, portanto, os

homens não podem intervir nela. Ela condena qualquer atentado contra a vida e

integridade física humana, não importando as especificidades do caso, isto é, proíbe

qualquer hipótese de aborto, independente de o feto possuir má-formação

incompatível com a vida extrauterina, ou não.

Deve-se ressaltar, no entanto, que o Brasil é um Estado laico, como previsto

na Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 19, inciso I, motivo pelo

qual as convicções religiosas não podem interferir na criação das leis ou decisões do

judiciário, bem como nas políticas que regem o País. Ainda assim, todavia, tais

convicções sempre foram e continuam sendo um dos principais obstáculos na

evolução e conquista democrática dos direitos da mulher.

Ainda que não haja, na Constituição, artigo referindo especificamente “O

Brasil é um Estado laico”, entende-se que o princípio da laicidade está abrigado pelo

texto constitucional. Joana Zylbersztajn (2012, p.30) declara:

Entendo que o primeiro elemento formador do princípio da laicidade é a própria determinação de democracia, incluída entre os dispositivos normativos: “art. 1 A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente , nos termos desta Constituição”.

Além do 1º, parágrafo único, o artigo 5º, incisos VII e VII, são citados pela

autora como elementos que demonstram a laicidade do Estado Brasileiro.

O princípio da laicidade não se limita ao fato de o Estado não poder adotar

uma religião específica explicitamente, ele se estende a neutralizar suas normas e

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leis, de modo que a possibilidade de aceitação da sociedade independa de

convicções religiosas particulares (ZYLBERSZTAJN, 2012, p. 30).

Além da questão religioso, a (des)criminalização2 do aborto abrange outras

questões, como o conflito entre os direitos fundamentais envolvidos, a ineficácia do

aborto como crime na redução da realização de abortos clandestinos, a interferência

nos direitos específicos das mulheres, entre outros que serão discutidos . Quando

o assunto é a interrupção da gravidez, verifica-se que de um lado, estão os direitos

fundamentais assegurados à gestante, enquanto do outro, estão os direitos, também

fundamentais, assegurados ao nascituro.

O principal direito fundamental do feto, conflitante aos da gestante é o direito

a vida e a questão que segue é: “quando inicia a vida?”. Para saber se o

embrião/feto possui, ou não, direitos, é necessário saber em que momento aquela

vida teve início.

Embora essa discussão se arraste ao longo de muitos anos, até hoje, não

existe um entendimento consolidado. Diante das grandes controvérsias sobre o

momento em que se inicia a vida, é importante entender as três principais teorias

sobre o assunto.

Há, primeiramente, a Teoria Concepcionista, a qual afirma que a vida tem

início desde o momento da fecundação, como o próprio nome já diz, no momento da

concepção. Adeptos dessa teoria concluem que quando a criança nasce com vida,

ela passa a possuir direitos que já havia adquirido anteriormente, no momento da

concepção (SILVA; SOUZA, 2015, p. 02). A Teoria Conceptista é a adotada de

forma majoritária pela doutrina civil brasileira.

Chinelato (2007) refere que:

O nascimento com vida apenas consolida o direito patrimonial, aperfeiçoando-o. O nascimento sem vida atua, para a doação e herança, como condição resolutiva, problema que não se coloca em se tratando de direitos não patrimoniais. De grande relevância, os direitos da personalidade do nascituro, abarcados pela revisão não taxativa do art. 2º. Entre estes, avulta o direito à vida, à integridade física, honra e à imagem, desenvolvendo-se cada vez mais a indenização de danos pré-natais, entre nós com impulso maior depois dos Estudos da Bioética.

2 A descriminalização é o processo através do qual deixa de ser considerado crime determinada conduta, em virtude de não ter mais interesse da sociedade em punir sua prática.

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Conclui-se, com base nessa teoria, que desde o momento da concepção o

nascituro já é uma pessoa de direitos reconhecidos, inclusive direitos patrimoniais.

Desta forma, seriam terminantemente proibidas as pesquisas realizadas com

embriões, visto que, considerando a destruição do produto da concepção, ser

humano e com direitos, caracterizaria aborto.

Outra conhecida teoria é a Neurológica. Esta teoria estabelece que a vida

inicia quando as primeiras conexões cerebrais acontecem dentro do cérebro do feto,

ou seja, quando iniciam-se as primeiras atividades cerebrais (SILVA; SOUZA, 2015,

p. 03).

Antigamente, era considerado que a morte ocorria quando o ser parava de

respirar ou seu coração não funcionava mais, atualmente, todavia, entende-se por

morte neurológica quando uma pessoa não possui mais a capacidade de ter

consciência e passa a manter seus órgãos vitais em funcionamento com a ajuda de

aparelhos, ou seja, artificialmente (PENNA, 2005, p. 102). Penna (p. 100) ainda

explica o estado de coma e morte:

O coma é o estado mais avançado de alteração da consciência, em que não existe resposta aos estímulos e não existe ciclo sono-vigília. Trata-se, portanto, da ausência de consciência. Assim, a morte da pessoa corresponde à impossibilidade de retorno da consciência.

Diante disso, considera-se que, ainda que o coração de determinada pessoa

continue batendo e ela continue respirando, através do uso de aparelhos, se não

houver mais atividade no cérebro, tal pessoa teve morte cerebral.

A Teoria Neurológica baseia o conceito de vida no conceito atual de morte. Se

a morte ocorre quando não há mais atividade cerebral, conclui-se que ainda não

existe vida enquanto um feto não possuir as conexões neurais no córtex. Deste

modo, é possível afirmar que se o óvulo foi recentemente fecundado, não poderia o

embrião possuir um cérebro formado (SILVA; SOUZA, 2015, p. 03).

Por fim, a terceira teoria é a Teoria Natalista, a qual refere que o nascituro é

um ser em potencial, o qual possui expectativa de direitos. Isso significa que, ainda

que estejam reservados direitos ao feto, ele somente irá adquirir tais direitos se

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nascer com vida. Deste modo a criança só se tornará um ser com personalidade a

partir de seu nascimento com vida (SILVA; SOUZA, 2015, 03).

Segundo Semião apud Miranda (2000):

No útero, a criança não é pessoa, se não nasce com vida, nunca adquiriu direitos, nunca foi sujeito de direitos, (...). Todavia, entre a concepção e o nascimento, o ser vivo pode achar-se em situação tal que se tem de esperar o nascimento para se saber se tem algum direito, pretensão, ação, ou exceção lhe deveria ter tido. Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa.

Considerando essa teoria, o nascituro não é uma pessoa com

personalidade, ele é apenas um ser com expectativa de direitos, de modo que só irá,

de fato, adquiri-los nascendo vivo.

Embora existam teorias, até o presente momento não há um entendimento

sólido e universal consolidado. Por esse motivo torna-se tão difícil entender o

momento exato em que a vida se inicia e, consequentemente, determinar com

exatidão se a legalidade do aborto fere os direitos do feto.

Já no que tange aos direitos da mulher/gestante é necessária uma

retrospectiva acerca de seu surgimento, que teve início a partir dos direitos humanos

universais. É incontestável que para se viver em sociedade de forma harmoniosa é

essencial a existência de regras, as quais imponham limites às condutas praticadas

pelas pessoas, de modo que o direito de uma pessoa termina quando o de outra se

inicia.

Comparato (2005, p. 01) observa que:

...é a parte mais bela e importante de toda a história: a relevação de que todos os seres humanos, apesar de inúmeras diferenças biológicas e culturais que o distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes do mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais.

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Com a necessidade da existência dessas regras é que surgiu a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, que representa a primeira organização

internacional a enquadrar quase toda a população mundial. Nela proclama-se que

“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (COMPARATO,

2005, p.12).

Esse ponto histórico deveria ter sido marcado pelo fato de que independente

de cor, etnia, raça ou classe social, todos na sociedade deveriam ser possuidores de

direitos e, ainda que tenha sido reconhecida a necessidade da criação de um pacto

social, que permitiria aos homens viver em sociedade como seres livres e

possuidores de direitos, isso não bastou para eximir com as desigualdades que

continuam extremamente presentes.

Inicialmente, foram criados os direitos fundamentais de primeira dimensão.

São eles: garantias individuais, isto é, as liberdades públicas, que surgiram a partir

da Carta Magna de 1215. (MORAES, 2011, p. 34). Gonçalves Filho, sobre os

direitos de primeira dimensão, explica que “são poderes de agir reconhecidos e

protegidos pela ordem jurídica a todos os seres humanos.” (GONÇALVES, 2010,

p.46).

Em razão desse reconhecimento, não necessitam de uma legislação formal,

uma vez que são direitos ligados à natureza humana. Por outro lado, reconhecidos,

esses direitos ganharam proteção, sendo de responsabilidade do Estado garanti-los.

Importante ressaltar que o reconhecimento desses direitos não ocorreu de forma

rápida ou fácil, mas sim o contrário, eles surgiram após muita luta contra a opressão

e o poder. Conforme Bobbio (1992, p. 05):

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.

O surgimento dos direitos de segunda dimensão ocorre no contexto da

Revolução Industrial na Europa (século XIX)3 e da I Guerra Mundial (início do século

3Os movimentos desencadeados nesta época reivindicavam direitos trabalhistas (LENZA, 2010, p. 740).

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XX). Diante destes dois grandes acontecimentos, bem como do desequilíbrio social

causados por eles, é que os direitos sociais, culturais e econômicos foram fixados4.

Por fim, após os direitos sociais, com o surgimento de novos problemas

mundiais, relacionados ao grande desenvolvimento tecnológico e científico, foi

necessária a criação de direitos que envolvessem a ideia do coletivo.

De acordo com Bobbio (1992, p. 06):

...emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído.

Bobbio (1992, p. 06), em sua obra A Era dos Direitos, ainda questiona o

surgimento de nova geração de direitos, que envolve a pesquisa biológica e a

manipulação de material genético. Indaga ele “Quais são os limites dessa possível

(e cada vez mais certa no futuro) manipulação?”.

É importante ressaltar, com esse breve relato sobre os direitos fundamentais,

que cada geração foi surgindo de acordo com as mudanças que aconteciam dentro

da sociedade. Através da história, é possível verificar que, a cada acontecimento

marcante que revolucionou a vida em sociedade, gerou-se a necessidade de

mudanças e criações de normas.

Com a criação de normas de proteção universal, vem a conveniência da

criação de normas e sistemas complementares, a fim de atender as particularidades

existentes na sociedade. Os direitos específicos das mulheres, assim como os

direitos humanos universais, emergiram da Declaração Universal dos Direitos

Humanos.

Flávia Piovesan ressalta a insuficiência em tratar os indivíduos de forma geral

e genérica, fazendo-se necessário que cada indivíduo seja visto de acordo com as

suas especificidades. Em vista disso, cada situação de violação de direitos exige

uma medida diferenciada, havendo, assim, respeito às diversidades (PIOVESAN,

2010, p. 284). Nesta perspectiva, visa-se alcançar um dos principais direitos que é a

4A Constituição de Weimar (1919) e o Tratado de Versalhes (1919) consagraram o surgimento dos direitos de segunda dimensão. (LENZA, 2010, p. 740).

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igualdade, protegendo grupos ou indivíduos de frequente discriminação em razão de

suas peculiaridades.

A partir desta ideia é que, em 1979, é aprovada a Convenção sobre a

Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, onde essa

discriminação é exposta em seu artigo 1º como sendo (PIOVESAN, 2012, p. 285):

...toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercido pela mulher, independente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos, e das liberdades fundamentais nos campos político, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Buscou-se, então, através das normas gerais – direitos humanos universais –

um meio de proteger além de todos os seres humanos, as mulheres de todas as

desigualdades a elas impostas.

Esse mesmo entendimento de extensão das normas gerais se aplica ao

princípio da dignidade humana, o qual tem como objetivo a proteção de todas as

pessoas, porém, em razão da descriminação desenfreada em relação à mulher, bem

como considerando as mudanças ocorridas na sociedade, esse princípio passa a

alcançar as necessidades específicas da mulher.

No passado, a dignidade era diretamente relacionada às posições sociais, isto

é, o reconhecimento do indivíduo dentro da sociedade dependia necessariamente de

sua posição social ocupada. Por esse motivo, entendia-se que determinadas

pessoas eram mais dignas do que outras (SARLET, 2010, p. 34).

Ingo Wolfgang Sarlet refere, por outro lado, que já no entendimento estoico,

todos os seres humanos eram dotados da mesma dignidade, inclusive o “maior dos

criminosos”. Essa é uma qualidade inerente do ser humano e o distingue de todas

as demais criaturas (SARLET, 2000, p. 35 e 54).

No entanto, por esse princípio se tratar de, como mencionado por Sarlet, uma

qualidade inerente do ser humano, existe uma grande dificuldade em indicar suas

delimitações, já que ele não se encontra descrito com as suas especificidades.

Não obstante essas dificuldades em delimitar e indicar os aspectos

específicos da dignidade humana, é de extrema facilidade identificar as situações

em o princípio é o violado.

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Conforme Sarlet (2010, P. 52):

Na tentativa, portanto, de rastrear argumentos que possam contribuir para uma compreensão não necessariamente arbitrária e, portanto, apta a servir de baliza para uma concretização também no âmbito do Direito, cumpre salientar, inicialmente, e retomando a ideia nuclear que já se fazia presente até o mesmo no pensamento clássico – que a dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e alienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade.

Do exposto, verifica-se que a dignidade da pessoa passou a ser indispensável

e insubstituível, sendo, portanto, qualidade absoluta de cada indivíduo. Veio a se

tornar, também, um mecanismo de limitação do poder Estatal, visto que, sem ele o

Estado seria possuidor de um poder desenfreado.

A ideia principal do princípio encontra-se no respeito e na consideração das

vontades particulares de cada pessoa. Assim, é de livre escolha de cada ser

humano definir seus objetivos de vida, dando um sentido a ela de acordo com as

suas vontades.

De todo o descrito acima acerca da dignidade humana, é possível verificar

sua crucial importância na sociedade. Cabe salientar que essa importância se da,

em particular, na vida das mulheres, uma vez que sobre elas sempre foram impostas

ordens que, muitas vezes, não condiziam com as suas vontades. Serve, como

exemplos clássicos dessas ordens, a liberdade sexual e reprodutiva que, como

comprova a história, sempre lhe foi negada.

A partir daqui é que começamos a ver os chamados direitos reprodutivos e

direitos sexuais, que possuem uma origem recente e são uma conquista crucial na

história da humanidade. Tiveram seu surgimento em decorrência de diversos

movimentos, estando entre os mais importantes: o movimento gay e o movimento

feminista (ÁVILA, 2003, p. 466). Como a própria nomenclatura já expõe esses

direitos dizem respeito à liberdade e igualdade no que tange a reprodução do

indivíduo. O mesmo podemos dizer sobre os direitos sexuais, que se referem à

liberdade e à igualdade, porém em relação ao exercício da vida sexual. É de

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extrema importância entender que são dois objetos diferentes, de forma que ambos

devem ser assegurados à vida da mulher.

Esses dois campos – direitos reprodutivos e sexuais – têm como objetivo dar

força e garantir a total autonomia da mulher, devendo somente ela decidir sobre seu

corpo e vida. Além disso, não devem eles ser limitados ao ambiente doméstico, uma

vez que se tratam também de questão de políticas públicas.

Ainda que tenham sido reconhecidos recentemente, a trajetória dessa

conquista teve início no século XVI, quando ainda eram discutidas acerca das

incertezas sobre o crescimento populacional. Esse período foi marcado pelo

marquês de Condorcet e por Thomas Malthus5, enquanto Condorcet tinha uma

posição otimista em relação ao crescimento populacional e seu desenvolvimento

socioeconômico, Malthus tinha uma visão pessimista sobre o tema, acreditando que

a população cresceria mais rápido que os meios de subsistência (CORREA; ALVES;

JANNUZZI, 2015 , p. 04).

Na segunda metade do século XX, então, verificou-se o maior crescimento

populacional da história, trazendo preocupações aos demógrafos, visto que o

desenvolvimento socioeconômico não conseguiria acompanhar a expansão

demográfica. Nesse cenário é que surgiu a necessidade de criação de políticas que

controlassem e limitassem as taxas de natalidade, dando abertura a conferências

internacionais promovidas pela ONU (Organização das Nações Unidas) que

discorressem sobre o tema (CORREA; ALVES; JANNUZI, 2015, p. 04-05).

Das primeiras conferências realizadas sobre o tema foram surgindo inúmeras

outras no decorrer dos anos, valendo citar algumas das principais, como a

Conferência de População de Desenvolvimento do Cairo em 19946 e a Conferência

de Viena7.

A partir desses debates, cada vez mais, passou-se a discutir os direitos

humanos como direitos das mulheres. Conforme Barsted (2002, p. 87):

5 Thomas Malthus era contra os métodos contraceptivos, assim como era contra o aborto. Como controle de natalidade ele somente era de acordo com o aumento da idade permitida para o casamento e com abstinência sexual fora do matrimônio. Ainda, Malthus não diferenciava o sexo da reprodução, de modo que entendia que as relações sexuais tinham apenas a função de procriação. (CORREA, ALVES E JANNUZI, p. 04). 6 Foi um dos principais marcos na evolução dos direitos da mulher. Foi através dela que o foco das políticas populacionais mudou, trazendo como novo objeto central o “pleno exercício dos direitos humanos e a ampliação dos meios de ação da mulher” 7 Outro marco importante na luta pela proteção dos direitos humanos. A Conferência de Viena contribui para a disseminação e consolidação da importância dos direitos humanos como interesse mundial, além de legitimar a ideia dos direitos humanos das mulheres

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Ao afirmar que os direitos das mulheres são direitos humanos, a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, pela Organização das Nações Unidas, deram alento à introdução da perspectiva de gênero em todas as demais Conferências da ONU da década de 90. Em Viena, as Nações Unidas reconheceram que a promoção e a proteção dos direitos humanos das mulheres devem ser questões prioritárias para a comunidade internacional. Consolidou-se, dessa forma, um longo caminho iniciado em 1948, quando da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Segundo Correa, Alves e Jannuzzi (2015, p. 09), foi nessa perspectiva é que

se consagraram duas afirmações produzidas por feministas nos anos 70 do século

XX: “a população tem dois sexos, e os direitos das mulheres deveriam ser

respeitados na vida privada, mas também pelas políticas públicas destinadas a

alterar padrões demográficos”.

Mais uma vez, é necessário dar a devida importância à Conferência do Cairo

de 1994, uma vez que foi através dela que ocorreram cruciais mudanças no debate

populacional, passando-se a dar primazia aos direitos humanos, à igualdade entre

os sexos e aos direitos reprodutivos. No 4º capítulo do Programa de Ação da

Conferência são, pela primeira vez, utilizadas as expressões igualdade e

desigualdade entre os sexos. Como objetivos a serem alcançados neste capítulo

estão (PATRIOTA, 1994, p. 50):

a) alcançar a igualdade e a justiça baseadas numa harmoniosa parceria de homens e mulheres e capacitar a mulher a realizar todo o seu potencial; b) assegurar o aumento da contribuição feminina para o desenvolvimento sustentável com seu pleno envolvimento nos processos de formulação de políticas e de tomada de decisão em todos os estágios e participação em todos os aspectos de produção, emprego, atividades geradoras de renda, educação, saúde, ciência e tecnologia, esportes, atividades culturais e relacionadas com população e outras áreas, como atuantes tomadoras de decisões, como participantes e beneficiárias; c) assegurar que todas as mulheres, assim como os homens, recebam a educação necessária para satisfazer a suas necessidades humanas básicas e exercer seus direitos humanos.

Também é importante dar ênfase ao capítulo VII do relatório da conferência,

pois é neste ponto em que os direitos reprodutivos são definidos como o direito de

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tomar livres decisões, isento de qualquer descriminação, coerção ou violência.

Pertinente mencionar o seguinte trecho do texto do referido capítulo (PATRIOTA,

1994, p. 62):

Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos.

Não menos importante que os demais citados, é o capítulo VIII, onde

finalmente o aborto, praticado de forma insegura, é reconhecido como causador de

um grave problema de saúde pública.

Assim como os direitos reprodutivos e sexuais, o direito à saúde também se

tornou parte de um dos direitos de categoria de gênero, estando incluído nos direitos

humanos das mulheres. A Constituição Federal de 1988 prevê claramente em seu

artigo 196 que a saúde é direito de todos, bem como é dever do Estado proporcioná-

la, de modo a garantir, mediante políticas sociais e econômicas, redução do risco de

doença e de outros agravos. Ainda, garante acesso universal e igualitário às ações e

serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O PAISM – Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher – é a união de

varias lutas sociais (incluindo o feminismo) e tem como finalidade trazer extensão à

política de saúde da mulher, visto que ela é claramente direcionada apenas ao seu

ofício de reprodutora. D’Oliveira (1996) relata que o programa foi bem recebido pelos

setores da sociedade e passou a ser visto como modelo assistencial que seria capaz

de atender as necessidades da saúde da mulher, já que além da assistência pré-

natal e parto, passou a incorporar também tratamentos inovadores como prevenção

de DSTs, prevenção à gravidez indesejada, contracepção, entre outras patologias

clínicas mais comuns.

Ainda que garantida expressamente pela Constituição como direito de todos,

livre de qualquer discriminação, o sistema de saúde brasileiro não abrange toda a

exigência da mulher, uma vez que se mostra insuficiente em assisti-la em momentos

de necessidade, como nos casos de aborto ilegal. Por medo das consequências

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penais que poderão ser aplicadas pelo Estado, a mulher deixa de procurar ajuda

médica e, portanto, o Estado deixa de lhe proporcionar o pleno direito à saúde.

Assim, sem a ajuda que o Estado deveria proporcionar, a mulher opta por

exercer seu direito de autonomia de maneira clandestina, procurando métodos

alternativos e perigosos para interromper sua gestação.

1.2 A clandestinidade do aborto e suas consequências na saúde da mulher

Pode-se dizer que o aborto clandestino é a solução extrema encontrada pelas

mulheres que não desejam a continuação da gravidez. Essa é uma solução que,

infelizmente, expõe milhares de mulheres a sérios riscos à sua saúde mental e

integridade física.

Vale lembrar que dados abrangentes sobre a realização de abortos no país

são de difícil acesso e essa dificuldade se dá em virtude da prática ser considerada

como crime nos casos em que não se enquadra nos dispostos dos artigos 124 a 128

do Código Penal Brasileiro. Portanto, diante de qualquer tentativa de pesquisa

estaremos lidando com o receio das mulheres em assumir a prática de um delito.

Assim, as estimativas a que se tem acesso não são precisas e completamente

confiáveis.

De qualquer modo, através da pesquisa sobre o aborto, realizada em agosto

de 2010 e fevereiro de 2011, demonstrou-se que independe do nível de escolaridade

ou idade para que mulheres realizem o aborto clandestino. “Porém, o índice é maior

entre as mulheres jovens, de classe social menos favorecida e com baixo nível de

estudo, mostrando que quem tem condições financeiras, faz o procedimento de

maneira mais segura” (SILVA; SOUZA, 2015, p. 01).

Isso significa que as mulheres que têm condições financeiras baixas acabam

por fazer o procedimento de maneira precária, servindo para aumentar as

estatísticas de morte materna.

TABELA 1. Realização de aborto segundo características sociais – mulheres de 18 a 39 anos, Brasil urbano, 2010.

Você já fez aborto alguma vez? Nº Sim % C(95%), pp.

Todas as mulheres 2.002 296 15% 2

Idade

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18 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39

191 483 488 452 388

11 36 84 79 86

6% 7% 17% 17% 22%

1 1 2 2 2

Escolaridade Até a 4ª série do fundamental 5ª a 8ª série do fundamental Ensino médio Ensino superior

191 429 974 408

44 80 115 57

23% 19% 12% 14%

2 2 1 2

Religião Católica Evangélica ou protestante Outras religiões Não tem religião/não respondeu

1.168 551 81 202

175 72 13 36

15% 13% 16% 18%

2 1 22

Fonte: Pesquisa Nacional de Aborto, microdados de amostra, Brasil 2010 apud SILVA; SOUZA, 2015, p. 12 Nota: Intervalos de confiança C a 95%, em pontos percentuais (pp.)

Considerando esses fatos, devemos, antes de qualquer outra coisa, tratar o

problema da criminalização do aborto como questão de saúde pública. Os dados

apontados pela pesquisa nacional do aborto (PNA) mostram-se favoráveis a

mudanças na legislação penal brasileira, visto que expõe números inaceitáveis de

óbitos maternos em decorrência de procedimentos mal feitos.

TABELA 2. Características de mulheres que fizeram aborto – mulheres de 18 a 39 anos, Brasil urbano, 2010.

N % C (95%), pp.

Total 296 100%

Idade no último aborto 12 a 15 anos 16 a 17 anos 18 a 19 anos 20 a 24 anos 25 a 29 anos 30 a 34 anos 35 a 36 anos Não sabe/não respondeu

13 37 46 77 55 21 4 43

4% 13% 16% 26% 19% 7% 1% 15%

2 4 4 5 4 3 1 4

Usou remédio para abortar Sim

141

48%

6

Ficou internada por causa do aborto Sim

164

55%

6

Fonte: Pesquisa Nacional de Aborto, microdados de amostra, Brasil 2010 apud SILVA; SOUZA, 2015, p. 12. Nota: Intervalos de confiança C a 95%, em pontos percentuais (pp.)

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No Brasil, o aborto é algo muito comum, conforme o Ministério da Saúde

Brasileiro (2015) e o DATASUS8: mais de 3 mil internações são feitas por ano no

Distrito Federal tendo como causa o aborto. O procedimento é praticado por

mulheres de diversas faixas etárias, diferentes classes sociais, níveis de

escolaridade variados e de todas as raças, demonstrando que há inúmeros fatores

que as levam à prática.

Todavia, na pesquisa verifica-se que a maior ocorrência de abortos é quando

as mulheres possuem de 18 a 29 anos, quando estão no pico de seu ciclo

reprodutivo, e baixo nível de escolaridade. Por outro lado, é possível constatar que a

religião não interfere na escolha pelo abortamento, já que a pesquisa sinaliza a

diferença de apenas 3% entre uma religião e outra.

Quanto aos métodos utilizados no procedimento, chegou-se ao resultado de

que 48% das mulheres que participaram da pesquisa e afirmaram que já fizeram o

procedimento tomaram medicamento com a função de abortar. Além disso, 55%

afirmaram que foram internadas em decorrência da realização do aborto. Isto é, a

maioria das mulheres que fizeram o aborto clandestino veio a ter complicações após

o procedimento.

É de conhecimento geral que as desigualdades sociais existem em grande

escala no Brasil e são elas, muitas vezes, responsáveis por diversas outras

consequências dentro da sociedade como, por exemplo, a falta de oportunidades de

emprego, baixa escolaridade e exclusão social.

Logicamente, pessoas com um nível de escolaridade inferior tem menos

oportunidades de empregos, e com o desemprego vem a pobreza. Assim, com essa

corrente de consequências, gera-se um efeito dominó que leva até a deficiência de

direitos básicos, como o acesso à saúde, tornando essas pessoas grupos

vulneráveis. Enquanto as mulheres pertencentes aos estratos sociais superiores tem

acesso a clínicas de luxo para realizarem o aborto em segurança, nunca chegando

ao SUS, as mulheres dos estratos econômicos mais baixos não têm a quem recorrer

senão o sistema público quando as complicações com o aborto ocorrem.

Melo (2005, p. 08) afirma que:

8O DATASUS é o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, que tem a função de disponibilizar dados e informações acerca da saúde brasileira de forma atualizada, através de seu portal online: www.datasus.saude.gov.br.

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A noção de vulnerabilidade é particularmente útil, porque exprimi várias situações: identificar grupos que estão em situação de risco social, grupos que devido a padrões comuns de conduta tem probabilidade de sofrer algum evento danoso, identifica grupos que compartilham algum atributo comum e por isso são mais propensos a problemas similares.

Diante dessa perspectiva, considerando que mulheres jovens, de baixa renda

e baixo nível de escolaridade fazem parte de um mesmo grupo vulnerável, é

evidente que estão propensas a passarem por problemas similares, sendo o aborto

clandestino um deles.

Conforme a pesquisa realizada por Mendes (2009) a gravidez na juventude é,

muitas vezes, alvo de discriminação, por ser associada a uma gestação indesejada

pela mãe, pelo pai da criança e também pelos familiares de ambos, principalmente

quando os envolvidos não possuem condições financeiras boas. Isso obriga a jovem

a optar em ter e criar a criança com precariedade de meios ou, então, recorrer ao

aborto.

Vale lembrar que isso tudo ocorre, em inúmeros casos, sem que a mulher

tenha qualquer tipo de apoio financeiro ou emocional do companheiro ou da família,

sendo assim, quando a opção escolhida é o aborto, ele é realizado

clandestinamente e em situações de risco a sua saúde (MENDES, 2009).

O outro grande fator determinante se dá à precariedade do ensino ou à

dificuldade de acesso a ele, gerando o baixo nível de escolaridade. Mulheres com

pouco tempo de estudo ou com tempo de estudo zero, ao terem a sua primeira

relação sexual, não possuem conhecimento básico sobre os métodos contraceptivos

de modo que tendem a engravidar, muitas vezes, em sua primeira experiência. Além

disso, ainda que conheçam métodos contraceptivos, tem acesso dificultado a eles

ou, em muitos casos efetivaram a compra diretamente em farmácias, não recebendo

orientação médica adequada sobre o uso e, consequentemente, falharam

(MENDES, 2009).

Ainda nesse contexto, verificamos que essa ausência de escolaridade impede

que mulheres, jovens ou adultas, tenham grandes ambições no que tange o estudo

ou uma carreira profissional nem sucedida e, assim, a maternidade se torna um

meio de inclusão na sociedade ou mudança do seu status social (MENDES, 2009).

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É importante ressaltar que as desigualdades não estão presentes apenas

quando se trata de classes sociais, elas também ocorrem – e são extremamente

comuns – em se tratando dos gêneros. Desde o início da vida, já são impostas

distinções de funções entre meninos e meninas, enquanto a eles é passada a ideia

de que o homem é o provedor da casa, a elas são passadas, geralmente, as tarefas

domésticas. Desta forma, desde muito cedo, cria-se a comum ilusão de que o

cuidado da casa e a maternidade é o principal – e muitas vezes o único – objetivo

das mulheres que não possuem perspectivas de educação e ambição profissional.

Além dos já mencionados, há outros inúmeros motivos que levam a mulher à

prática do aborto. Como anteriormente visto através da Pesquisa Nacional do Aborto

(apud SILVA; SOUZA, 2015, p. 12.), não são apenas mulheres jovens, de baixa

renda e baixo nível de educação que realizam a interrupção da gravidez. O

procedimento ocorre também em faixas etárias mais elevadas, entre mulheres de

alta posição financeira e com ensino superior. Nem sempre é necessária a

existência de uma motivação gerada por fatores e desigualdades sociais, sendo que

por vezes, a simples autonomia sobre decidir sobre sua própria vida leva a esta

prática.

Independentemente dos motivos que levam a mulher ao aborto, no

procedimento, por ser ele clandestino, são utilizadas técnicas bárbaras que

comumente resultam em óbito ou em sequelas à gestante. Mario Francisco Giane e

Leila Adesse (2015, p.02) relatam sobre os estudos realizados pelo Instituto Alan

Guttmacher de Nova York, Estados Unidos, realizado em 1994, abrangendo países

da América Latina, incluindo o Brasil:

Em 1994, o Alan Guttmacher Institute publicou os resultados da investigação sobre aborto clandestino em seis países da América Latina, inclusive o Brasil. São utilizadas diversas técnicas para interromper a gravidez, incluindo também uma ampla variedade de procedimentos populares, praticados pelas próprias mulheres ou por pessoal não capacitado, que resultam em sérios riscos à saúde destas mulheres, levando muitas vezes ao óbito materno.

Essas técnicas podem ser realizadas pela própria gestante ou por terceiros,

geralmente sem qualquer tipo de preparo. Os autores citam algumas dessas práticas

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relacionadas em outra pesquisa do instituto americano, também realizada na

América Latina (GIANE; ADESSE, 2015, p. 02):

Em outro trabalho do Alan Guttmacher Institute sobre a prática do aborto no Brasil, Colômbia, Chile, Republica Dominicana, México e Peru, são relacionadas algumas destas práticas de maior risco: trauma voluntário (quedas, socos, atividade físicas excessivas, etc.), substâncias cáusticas inseridas na vagina (cloro, cal, sais de potássio), objetos físicos inseridos no útero (cateter e objetos pontiagudos, tais como arame, agulhas de tecer e cabides), entre outras práticas.

Não é preciso grande aprofundamento para saber que técnicas tão brutas e

inadequadas geram graves consequências e traumas à gestante. De acordo com o

Ministério da Saúde Brasileiro (2015), no ano de 2013 foram registrados 470 óbitos

de mulheres pelo SUS, ocorridos durante a gravidez, o parto ou aborto. Parte

significativa desse montante foi classificada como CID-006, ou seja, aborto não

especificado. Ainda, números relativos a outras causas de morte como infecções,

hemorragias, falha na tentativa de aborto, traumas, entre outros, podem representar

também mortes decorrentes de abortos clandestinos.

Mais uma vez, é válido lembrar que índices sobre o tema são extremamente

imprecisos e os números apresentados são meras estimativas, já que a pesquisa é

realizada com base somente nas internações hospitalares pelo SUS.

Conforme a ONUBR - Organização das Nações Unidas no Brasil (2015)

estima-se que ocorrem anualmente até 3,2 milhões de abortos inseguros em países

que estão em desenvolvimento, envolvendo adolescentes com idade de 15 a 19

anos (ONUBR). Todavia, a esmagadora maioria de casos de morte materna ou

ocorrência de sequelas em virtude de aborto clandestino não é registrada,

permanecendo oculta e dificultando a aproximação com a realidade.

Com todo o exposto até o momento, podemos concluir que sendo

considerado crime, o aborto gera números espantosos à saúde mundial, estando

entre as principais causas de morte materna no Brasil, devido à prática clandestina e

insegura. A partir dessa ideia é que se deve deixar de abordar o tema aborto

somente como uma conduta criminosa, punindo a mulher que o faz, e começar a

considerá-lo um problema de saúde pública.

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2. SISTEMA PENAL E VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA MULHER: A

DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

Este capítulo busca compreender as mudanças de paradigma no campo da

criminologia, de modo a serem abandonados os conceitos de suas primeiras

formulações para chegar criminologia crítica e ao paradigma da reação social.

Em razão dos achados da criminologia crítica os movimentos de política

criminal decorrentes dessa concepção teórica, tanto do minimalismo penal quanto

dos feminismos, sabe-se que a conduta não deixa de ser praticada apenas em

virtude de ser tipificada como crime. Ao contrário, somente gera-se mais

consequências violentas, como no caso do aborto, que gera a clandestinidade.

Assim, parte-se para o debate sobre o controle do corpo feminino.

Por fim, faremos uma análise da legislação vigente em alguns países da

Europa, no que tange a (des)criminalização do aborto, a fim de visualizar a maneira

encontrada de ponderar entre os direitos fundamentais envolvidos na própria

regulamentação da matéria.

2.1 Crime e Gênero: A Seletividade do Sistema Penal

É imprescindível deixar clara a distinção entre o que é considerado crime e o

que é considerado moralmente condenável, visto que a discussão sobre o processo

de descriminalização do aborto, ou não, em nada tem relação ao que é certo sobre o

ponto de vista religioso ou ético, ou, então, o que a prática representa

individualmente a cada um.

O Código Criminal do Império de 1830 (2015, Presidência da República)

definia o crime, em seu artigo 2º, de uma maneira mais genérica, determinando que

crime era considerado toda a ação ou omissão voluntária contrária às leis penais

previstas na época.

Por muito tempo, a doutrina penal brasileira seguiu a ideia do Código

Criminalista de 1830, entendendo que crime era toda a ação humana que infringisse

a lei. Todavia, com a evolução da doutrina, adotou-se uma nova definição de que

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crime é um fato decorrente de uma ação humana, o qual lesa ou põe em perigo um

bem jurídico protegido pela lei.

Todavia, a noção de o que é crime, vai muito além do conceito dogmático

exposto, sendo conveniente, primeiramente, uma análise da criminologia. Lombroso,

pioneiro na criminologia positivista e influenciado pela teoria da evolução das

espécies de Darwin, acreditava na existência do criminoso nato, ou seja, a causa do

crime era reconhecida no próprio criminoso, de modo que o agente já nasce com

determinada propensão a cometer crimes (COELHO; MENDONÇA, 2015, p. 5591).

Já Enrico Ferri desenvolveu a teoria do criminoso nato de Lombroso, dando a

ela uma perspectiva sociológica, referindo que seriam três as causas de um crime:

as causas individuais, características pessoais do indivíduo; as causas físicas,

relacionadas ao ambiente em que o indivíduo se situa; e as causas sociais,

referentes à sociedade em que o indivíduo vive.

Desta maneira, o crime não seria questão de escolha de cada pessoa, mas

sim uma consequência previsível causada por esses três fatores. Em decorrência

deles se formaria a personalidade perigosa em determinado indivíduo, de modo que

“ser criminoso constitui uma propriedade da pessoa que a distingue por completo

dos indivíduos normais”. Estas pessoas com potencial de periculosidade

representariam uma minoria na sociedade normal, composta por indivíduos de bem

(ANDRADE, 2003, p. 37). As penas aplicadas, então, a esta minoria perigosa seriam

um meio de defesa social, que além de ter um fim punitivo, serve também como

meio de prevenção e recuperação do indivíduo criminoso.

O paradigma da criminologia, todavia, alterou-se com o tempo, surgindo a

teoria do labelling approach ou, como também é conhecida, a teoria da reação

social. Esse novo paradigma deixa de analisar o delito em si e o autor da infração, e

passa a focar no sistema de controle social, entendendo que o crime não é apenas

um dado, afinal uma determinada conduta não é naturalmente criminosa, nem o

indivíduo que a pratica é naturalmente um criminoso por sua personalidade ou pelos

fatores de Ferri, anteriormente mencionados. Aquela conduta se revela criminosa

devido ao processo de definição legal de crime, que é a tipificação do crime, e o

etiquetamento (ANDRADE, 2003, p. 41).

Na relação entre indivíduos de uma sociedade, nenhuma conduta pode ser

determinada como definitiva de modo que a percepção da sociedade sobre ela seja

imutável. Cada ação está continuamente sobre a aprovação dos demais.

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Antonio García-Pablos de Molina (2006, p. 09) define a questão do labelling

approach:

O labelling approach, em consequência, supera o paradigma etiológico tradicional, problematizando a própria definição da criminalidade. Esta, se diz, não é como um pedaço de ferro, como um objeto físico, senão o resultado de um processo social de interação ( definição e seleção): existe somente nos pressupostos normativos e valorativos, sempre circunstanciais, dos membros de uma sociedade. Não lhe interessam as causas da desviação (primária), senão os processos de criminalização e sustenta que é o controle social que cria a criminalidade. Por isso, o interesse da investigação se desloca do desviado e do seu meio para aquelas pessoas ou instituições que lhe definem como desviado, analisando-se fundamentalmente os mecanismos e o funcionamento do controle social ou a gênese da norma e não os déficits e carências do indivíduo, que outra coisa não é senão vítima dos processos de definição e seleção, de acordo com os postulados do denominado paradigma de controle.

É possível verificar a relevância do controle social e a forma que distribui

rótulos sociais, inclusive e principalmente as agências de controle social formais que

etiquetam os indivíduos negativamente.

Becker (1971, p.19) descreve o processo de etiquetamento da seguinte

maneira:

Os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais (estranhos). Desde esse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma conseqüência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um 'ofensor'. O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação (etiqueta); a conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente.

Isto é, o crime só é crime, porque os grupos poderosos impõem a

determinada conduta a qualidade de criminosa. Podemos aplicar uma etiqueta a

qualquer pessoa que pratique aquele ato que determinamos como criminoso. Por

isso, denomina-se reação social, podendo se dizer que a criminalidade é uma

relação entre a ação e a reação da sociedade. A prática desviante é, então, parte o

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ato em si e parte a reação que a sociedade tem em relação a ele. Shecaira (2011, p.

307) sobre o tema:

...os outros decidem que determinada pessoa é non grata, perigosa, não confiável, moralmente repugnante, eles tomarão contra tal pessoa atitudes normalmente desagradáveis, que não seriam adotadas por qualquer um. São atitudes a demonstrar a rejeição e a humilhação nos contatos interpessoais e que trazem a pessoa estigmatizada para um controle que restringirá sua liberdade. É ainda estigmatizador, porque acaba por desencadear a chamada desviação secundária e as carreiras criminais. Estabelece-se, assim, uma dialética que se constrói por meio do que Tannenbaum denominou a dramatização do mal, que serve para traduzir uma mecânica de aplicação pública de uma etiqueta a uma pessoa.

Ocorre, portanto, que o sistema penal não se trata apenas de normas penais

estáticas, mas sim um processo constante e dinâmico que integra diversas

instituições. O processo da criminalização dentro desse sistema ocorre através de

duas instâncias de controle social: a primeira se dá através das agências de controle

social formal que é o Legislador (criminalização primária) e as instituições como a

Polícia, o Ministério Público e a Justiça (criminalização secundária). A segunda

instância é composta pelos mecanismos de controle social informal, que são a

família, a escola, a mídia, entre outros. Isto significa que desde o início de nossas

vidas (família, escola, etc.), já se utiliza o etiquetamento, determinando condutas

como corretas ou desviantes (ANDRADE, 2003, p. 42).

Vera de Andrade (2003, p. 44) ainda frisa que o labelling abandona as

indagações feitas pela criminologia tradicional, que procurava saber quem é o

criminoso e as causas que o levavam a cometer delitos, e passou a questionar quem

é definido como desviante e quem o define como tal.

De forma mais breve, Aniyar (1983, p. 52) define a criminologia:

...é a atividade intelectual que estuda os processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante; os processos de infração e de desvio destas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação, a sua forma e conteúdo e os seus efeitos.

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Com a teoria da reação social surge também a verificação das denominadas

cifras negras, as quais causam turbulência na investigação e nas estatísticas de

controle criminal. As cifras negras representam a criminalidade oculta, que é o

volume de crime consideravelmente maior do que aquele registrado oficialmente.

Essa questão poderia, inclusive, anular o entendimento dos clássicos e

positivistas de que os indivíduos considerados criminosos representam uma minoria,

mas sim o contrário de que eles são maioria dentro da sociedade.

Sobre a questão do aborto, Aniyar (1983, p. 68) expõe:

A cifra negra diminui, à medida que aumenta a visibilidade do delito. Antes de ser eliminado o aborto como delito, dos Códigos Penais franceses e ingleses, dizia-se que 1 em cada 100 abortos era conhecido pela polícia; esta proporção, no entanto, parece pequena relativamente ao que observam alguns investigadores na Inglaterra, que afirmam que eram conhecidos 250 de cada 50.000 ou 100.000 dos que eram efetivamente praticados.

Na visão da teoria da reação social, a criminalização é o processo em que o

indivíduo assumirá uma nova identidade social, imposta por etiquetas e rótulos,

sendo que esta nova identidade substituirá a anterior, tornando o indivíduo

definitivamente criminoso.

Ainda, o labelling em muito se relaciona com a criminologia crítica9, que

buscou entender os motivos e os poderes que eram capazes de classificar/rotular

condutas como crime, bem como determinar os grupos que possuem o poder de

etiquetamento e os grupos etiquetados.

Inspirada em Marx e no conflito das classes sociais, a criminologia crítica ou

radical se baseia na história, que demonstra a sobreposição de uma classe à outra,

de modo que aquela que se sobrepõe seleciona os fatos socialmente desviados.

Menezes (2015, p. 14) observa que – pegar outra citação:

A Criminologia Crítica é caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idéia de que o Sistema Punitivo é construído e funciona com apoio em uma ideologia da sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo

9Zaffaroni (1998, p. 60) considera que a teoria da reação social foi um marco de extrema importância, que possuiu caráter deslegitimador do sistema penal, e tal estudo deveria ser complementado.

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longe estaria da defesa social ou da preocupação com a criação ou manutenção de condições para um convívio harmônico entre as pessoas. O verdadeiro fim oculto de todo Sistema Penal seria a sustentação dos interesses das classes dominantes. Qualquer instrumento repressivo de controle social revelaria a atuação opressiva de umas classes sobre as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recaindo pesadamente sobre os pobres e raramente atuando contra os integrantes das classes dominantes, os quais, aliás, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam.

Retornando às cifras negras, considerando que elas representam a

criminalidade real, elas demonstram que a criminalidade é um fenômeno que atinge

à grande maioria da sociedade, enquadrando todas as classes sociais, todavia, a

criminalização é frequentemente distribuída de forma desigual e seletiva

(ANDRADE, 2003, p. 50).

Verifica-se, diante do exposto, que a maioria criminosa – especialmente as

classes altas – é impune, visto que exercem grande poder sobre o sistema penal e

os órgãos estatais, enquanto às classes inferiores e pobres são frequentemente

criminalizadas. É importante ressaltar que esse contexto se dá em virtude da

precária estrutura do sistema penal, que somente detém da capacidade de atender

uma pequena parte da demanda criminal.

Por outro lado, também há o fato de que, se o sistema penal abarcasse todos

os delitos cometidos, o sistema social entraria em colapso. Segundo o Ministério da

Justiça do Governo Federal, no ano de 2007 a população carcerária chegava ao

alarmante número de 422.272 (quatrocentos e vinte e dois mil duzentos e setenta e

dois) presos para 275.194 (duzentos e setenta e cinco mil cento e noventa e quatro)

vagas, existindo, portanto, um déficit de 147.179 (cento e quarenta e sete mil cento e

setenta e nove) vagas (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, GOVERNO FEDERAL).

Desse modo, podemos dizer que a principal clientela do sistema penal é

composta pelas classes menos favorecidas, em razão de possuírem uma maior

chance de serem rotulados. Essas chances são distribuídas desigualmente por um

código social extralegal, que cria estereótipos e preconceitos, sendo os pobres os

que detêm de maior possibilidade de serem criminalizados (ANDRADE, 2003, p. 54).

Para a criminologia crítica, então, há uma enorme contradição no sistema penal, já

que ele se propõe, supostamente, em garantir a igualdade entre todos os sujeitos de

direito, mas ao mesmo tempo quando da sua aplicação demonstra uma

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desigualdade notável ao determinar quais grupos na sociedade tem mais chance de

serem rotulados.

De acordo com Lopes (2015, p. 03), o crime deixou de ser realidade

ontológica, vindo a se tornar “um status atribuído a determinadas pessoas, mediante

duas seleções: dos bens protegidos penalmente e dos indivíduos rotulados, entre

todos os outros que também realizam infrações penalizáveis”.

A contribuição do labelling e da criminologia crítica foi essencial para a

revelação da seletividade através da qual o sistema penal opera. A partir dessa idéia

de seletividade de estereótipos, por volta dos anos 80, iniciou o desenvolvimento da

criminologia crítica feminista, que passou a estudar a maneira que a mulher era

tratada diante do sistema de justiça criminal. Vera de Andrade (2007, p. 56-57)

concluiu que o sistema de justiça criminal (SJC) não garante plena proteção da

mulher contra a violência e, além disso, ainda reproduz na sua dupla vitimização.

Segundo a autora, o SJC é um mecanismo de controle social desigual e seletivo que

exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas e, ao fazer isso com a

mulher ele:

...duplica, ao invés de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas ( estupro, atentado violento ao pudor, etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual (p. 57).

Passando pelo sistema de justiça criminal, a mulher acaba por reviver uma

história de estereótipos e discriminação, já que ao criminalizá-la por condutas

específicas do gênero o sistema reforça o controle patriarcal, que é um dos mais

antigos sistemas de dominação.

Basicamente, o patriarcado nos remete à ideia de dominação e superioridade

do homem em relação à mulher. Entretanto, essa ideia básica atualizou-se com as

teorias feministas. Soraia da Rosa Mendes (2002, p. 101-102) explica:

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Pode-se entender por patriarcado a manifestação e institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e crianças da família, e o domínio que se estende à sociedade em geral. O que implica que os homens tenham poder nas instituições importantes da sociedade, e que privam as mulheres do acesso às mesmas. Assim como também, se pode entender que o patriarcado significa uma tomada de poder histórica pelos homens sobre as mulheres, cujo agente ocasional foi a ordem biológica, elevada tanto à categoria política, quanto econômica.

O patriarcado se estabeleceu em diversos pontos da história, sempre por

meio de instituições que reproduziam o sistema de gênero, isto é, reproduziam a

desigualdade entres os sexos, com a dominação do homem e a discriminação da

mulher. Ocorre que com o passar dos anos esse conceito de patriarcalismo foi se

perdendo já que, como citado anteriormente, remetia ao poder do pai sobre a

família, enquanto o entendimento mais contemporâneo é no sentido de que esse

poder de “pai” não existe mais. Entretanto, a ideia de dominação do masculino sobre

o feminino permaneceu, no sentido de que o homem teria poder sobre a sua esposa

(MENDES, 2012, p. 104-105).

Como mencionado anteriormente, o sistema penal é um sistema de controle

social seletivo e desigual, que age através das agências de controle formais e

informais. No caso da mulher, ainda que ambos os controles – formal e informal –

exerçam controle sobre ela, a família (instituição de controle informal) lhe é

particularmente dirigida, já que é através dela que as primeiras noções de divisão de

trabalho/tarefas lhe são fornecidas. Para Scott (1990) a divisão existente no

mercado de trabalho, claramente desigual entre os sexos, foi provocada pelo

discurso masculino que dividiu as tarefas domésticas em: “aos homens, a madeira e

os metais”; “as mulheres, a família e o tecido”. (MENDES, 2012, p. 191-192).

Confirma-se, portanto, que o controle sobre o feminino tem início nos

primeiros anos de vida da mulher e, após, se mantém através da seletividade no

sistema penal. Seletividade rotula a mulher como criminosa e a põe sentada no

banco de réus, ignorando seus direitos e suas vontades.

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2.2 A Deslegitimação do Sistema Penal Brasileiro e a Contradição da Tutela Penal dos Direitos Humanos no Caso do Aborto: do Discurso Declarado da Proteção da Vida a Realidade da Morte Materna

Na primeira parte desde capítulo, visualizou-se as alterações no paradigma

da criminologia, através das quais foi possível concluir que o sistema penal atual

seleciona de forma desigual os estereótipos que irão sofrer penalização.

Por esse motivo, podemos dizer que hoje, no Brasil, convivemos com um

sistema jurídico penal falho e desacreditado, já que somente os grupos selecionados

sofrem penalização, enquanto a maioria – geralmente de classe alta – fica impune.

Vera Regina Pereira de Andrade (1996, p. 04) nos expõe três promessas de um

sistema penal eficaz que não foram cumpridas:

1°) A promessa de proteção de bens jurídicos, que deveriam interessar a todos (isto é, do interesse geral), como a proteção da pessoa, do patrimônio, dos costumes, da saúde, etc.; 2°) A promessa de combate à criminalidade, através da retribuição e da prevenção geral (que seria a intimidação dos criminosos através da pena abstratamente cominada na Lei penal) e da prevenção especial ( que seria a ressocialização dos condenados, em concreto, através da execução penal) e 3°) a promessa de uma aplicação igualitária das penas.

Andrade (p. 02) ainda explica que essa crise está presente no próprio modelo

de Direito instaurado atualmente, que acredita que todos os problemas sociais

podem ser resolvidos com uma solução legal. Afirma que ela é consequência da

contradição entre dois modelos atualmente existentes no país, o primeiro é o modelo

do direito penal mínimo e o outro é baseado nos movimentos de “Lei e ordem”

(ANDRADE, 1996).

Este último representa a política criminal que basicamente divide a sociedade

entre pessoas de bem, que merecem ter seus direitos protegidos, e os delinquentes

e marginais, aos quais devem recair o peso e a severidade do sistema penal. Franco

define o movimento “Lei e ordem” como um movimento que “compreende o crime

como o lado patológico do convívio social, a criminalidade como uma doença

infecciosa e o criminoso como um ser daninho” (FRANCO, 2000, p. 82).

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Com essa perspectiva é que certas condutas passam a ser crime e condutas

já tipificadas sofrem aumento de pena, com a justificativa de que a pessoa que

pratica essas condutas não pode permanecer com as pessoas consideradas de

bem.

É válido lembrar que um dos meios pelos quais esse movimento mais se

propaga é a própria mídia e o jornalismo sensacionalista.

Por outro lado, o movimento do direito penal mínimo (movimento minimalista)

visa, como já sugere o seu nome, a redução do direito penal. Shecaira (2004, p.

341/342) explica:

O nome minimalismo deriva de sua proposta a respeito de direito penal atual, que tem por objetivo, em curto prazo, reduzi-los. Seus autores fazem um aprofundamento da teoria da rotulação social, que, como já foi visto, defendem uma “prudente não intervenção” em face de alguns delitos cometidos, por entenderem que qualquer radical aplicação de pena pode produzir consequências mais gravosas quanto aos benefícios que pode trazer. A concepção de fundo desse pensamento não deixa de ser marxista, ainda que de forma não ortodoxa. Por isso, desde o início do pensamento crítico, foram manifestadas reservas aos pontos suscitados pelos teóricos ingleses, autores da “nova criminologia”. (...) minimalistas consideram a criminologia como resultado de um processo de definição, cuja finalidade está em ocultas situações negativas e sofrimentos reais da classe menos favorecida. Assim, propugnam superar o idealismo da teoria da rotulação social, em grande medida adotada pelos neo-realistas ingleses, para ter uma atitude de simpatia pelos infratores. (...) Assim, propõem um repensar de todo o sistema de exploração da sociedade capitalista que permeia a criminalidade. Deve-se deixar de atribuir relevo aos pensamentos tradicionais da criminalidade de massas ou criminalidade de rua (furto, roubo etc) para pensar uma “criminalidade dos oprimidos”: racismo, discriminação sexual, criminalidade de colarinho-branco, crimes ecológicos, belicismo etc.

Esse pensamento baseado no direito penal mínimo defende a garantia dos

direitos fundamentais que são, muitas vezes, atentados pela política estatal de punir.

É através dele que se pretende apoiar os grupos criminalizados de uma forma

preventiva ao cometimento de outros delitos, fazendo isso através de processos

como a despenalização e a descriminalização.

Podemos citar como um exemplo de conquista desse movimento minimalista

a criação dos Juizados Especiais Criminais10, que torna a aplicabilidade da lei penal

10 Lei 9.099/95

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mais branda para crimes de menor potencial ofensivo, evitando a punição exagerada

de uma conduta menos gravosa.

Entre os autores que defendem o movimento minimalista, Alessandro Baratta

merece destaque. Gabriel Ignácio Anitua (2008, p. 728/729) disserta sobre os

princípios considerados por Baratta como os pilares do movimento, estando entre os

principais o princípio da intervenção útil. Esse princípio afirma que no momento da

utilização do direito penal deve-se pesar os malefícios e os benefícios da sua

aplicação, sendo que quando os malefícios forem mais relevantes ele não deverá

ser utilizado.

O autor ainda menciona o princípio da subtração metodológica dos conceitos

de criminalidade e pena, o qual busca encontrar uma maneira de melhorar a política

criminal, ponderando as práticas que devem ser consideradas crimes. Além destes,

ainda cita o princípio da especificação dos conflitos e dos problemas, que visa tratar

cada caso individualizadamente, de modo que, se for possível, aplicar ao autor do

delito sanções não penais e, portanto, preservá-lo da rotulação da sociedade. O

princípio geral da prevenção que, como o nome já indica, tem por objetivo a

prevenção dos delitos, minimizando a utilização do direito penal (ANITUA, 2008).

Por fim, Anitua menciona o princípio da articulação autônoma dos conflitos e

das necessidades reais, que foca em um maior envolvimento dos infratores na

resolução da situação causada, de forma que afasta sua posição passiva de apenas

observador e o envolve na melhor solução possível do problema. (ANITUA, p.

728/729).

Diante dessa contradição entre dois movimentos extremamente opostos, se

insere o feminismo. Vera Regina de Andrade (1996, p. 03) aduz sobre a inserção do

feminismo dentro dessa ambiguidade:

O movimento feminista que reemerge no Brasil dos anos 70, se insere plenamente nesta ambigüidade, pois ao mesmo tempo em que demanda a descriminalização de condutas hoje tipificadas como crimes (aborto, adultério e sedução, por exemplo), demanda ao mesmo tempo a criminalização de condutas até então não criminalizadas, particularmente a violência doméstica e o assédio sexual. Demanda, também, o agravamento de penas no caso de assassinato de mulheres e a redefinição de alguns crimes como estupro, propondo o deslocamento do bem jurídico protegido (que o estupro seja deslocado de “crime contra os costumes” como o é hoje para “crime contra a pessoa”) com vistas a excluir seu caráter sexista e que, neste mesmo sentido, o homem (e não apenas a mulher, como o é hoje) possa ser vítima de estupro.

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Passados quase 20 anos desde o discurso da autora, algumas das

conquistas citadas por ela já foram alcançadas, como a descriminalização do

adultério, a sedução, bem como o agravamento dos crimes que envolvem violência

contra mulher11, todavia, outras, como por exemplo, o aborto, ainda são mudanças

veementemente discutidas atualmente.

Essas mudanças mencionadas pela autora só foram possíveis diante a luta

feminista que teve grande destaque nos anos 70 não só no Brasil, mas no mundo.

As mulheres e feministas passaram a se inserir e ganhar força na política

internacional, principalmente nas conferências realizadas pela ONU, e a partir dai é

que iniciou-se um processo de transnacionalização do feminismo.

Miranda (2015, p. 03) explica sobre o feminismo:

O feminismo propõe um projeto de sociedade alternativa e coloca como objetivo a abolição, ou ao menos transformação profunda, da ordem patriarcal e de seu poder regulador, em nome de princípios de igualdade, de equidade e de justiça social.

O movimento feminista conseguiu alcançar grandes proporções, de modo

que, através do FSM – Fórum Social Mundial12, encontrou uma nova forma de

atuação no espaço global. Todavia, antes do FSM, outros acontecimentos foram de

extrema importância para a expansão do feminismo na esfera mundial (ALVAREZ,

2003).

No Dossiê “Um outro mundo (também feminista...) é possível: construindo

espaços transnacionais e alternativas globais a partir dos movimentos”, Alvarez

11As mudanças ocorreram através da criação da Lei Maria da Penha n.º 11.340/2006, que incluiu a qualificadora do parágrafo 9º, aumentando a pena do crime de lesão corporal (artigo 129, do Código Penal) quando ocorrido em violência doméstica. Além disso, a lei ainda retirou o direito de representação nos crimes com lesão, evitando, assim, que a vítima seja coagida pelo agressor a não representar contra ele, bem como proibiu a aplicação da Lei 9.099/95 nos crimes de violência doméstica. 12Segundo o site oficial do FSM, o fórum “é um espaço de debate democrático de idéias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. O primeiro FSM em 2001 foi seguido de um processo mundial de busca da construção de alternativas às políticas neoliberais.”

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(2003) leciona que, nos anos de 1980 e 1990, feministas da América Latina

passaram a realizar encontros a cada 2 ou 3 anos. Esses encontros eram espaços

em que mulheres, de diversas culturas, grupos, classes sociais, opções sexuais, que

se identificavam com o movimento, podiam discutir, trocar ideias e criar estratégias

para as lutas feministas e pela justiça social.

Estes encontros, portanto, serviram de cenário para determinar questões-

chave dentro do movimento feminista latino-americano e, através deles, a

participação das mulheres nas conferências internacionais, como a Conferência do

Cairo e a de Viena, ganhou força.

Destaca-se que os movimentos feministas têm como objetivo forçar o Estado

a discutir os interesses das mulheres, pressionando-o a criar políticas públicas que

visem proteger e garantir os direitos das cidadãs. Dentre os principais pontos

problemáticos considerados pelo movimento estão a proteção da mulher contra a

violência doméstica, abusos sexuais, os direitos reprodutivos e o direito da mulher à

autonomia sobre seu corpo, que inclui a luta pelo direito ao aborto.

Vale lembrar que inúmeras foram as conquistas da mulher no século XX,

como, por exemplo, aquelas mencionadas anteriormente, todavia, ainda há muitas

disparidades em países de todo o mundo, inclusive no Brasil. Em 2008, o Fórum

Econômico Mundial realizou a pesquisa Global Gender Gap Report, que

disponibilizou dados a respeitos dos países que conseguiram alcançar a igualdade

de gêneros nas áreas de economia, educação, política e saúde. A pesquisa teve

como ponto principal analisar as disparidades da mulher em relação ao homem,

sendo que o Brasil se mostrou ainda muito distante do esperado no que tange a

igualdade de gêneros, ficando na 73ª posição (MIRANDA, 2015, p. 05).

A partir desse aumento da participação feminina na política internacional,

revelaram-se números alarmantes de vítimas de violência sexual, que antes

permaneciam ocultos, já que uma parte considerável desses crimes era cometida

dentro das relações de parentesco, de amizade ou profissionais. Assim,

considerando o aparecimento desses números assustadores é que se deixou de

tratar os problemas da mulher como privados e passou a vê-los como públicos,

pressionando o governo a criar legislações e políticas públicas visando a maior

proteção da mulher.

Diante de todo o exposto até o momento, verifica-se uma tensão entre os

movimentos citados, o movimento minimalista e o movimento feminista. Como já

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mencionado anteriormente, citando Vera de Andrade, o feminismo luta pelo apoio do

Estado e do direito penal para proteção das mulheres contra a violência doméstica,

de modo que já conseguiu o agravamento de penas quando se trata de delitos

praticados no ambiente doméstico, mas simultaneamente busca a extinção da

discriminação e a descriminalização de alguns delitos, como o aborto.

É nesse ponto em que os movimentos se encontram. Quando se trata da

criminalização do aborto é possível verificar que as ideias se encaixam, uma vez que

além de negligenciar os direitos fundamentais das mulheres, os direitos sexuais e

reprodutivos, pelos quais o feminismo tanto luta, ainda gera a clandestinidade

prejudicando a saúde, principalmente, de mulheres de classe social inferior –

frequentemente marginalizadas -, validando, assim, os argumentos do minimalismo

penal de que o aborto penalizado não impede a prática, apenas reproduz mais

consequências.

Karam (2004, p. 175) disserta sobre o tema:

A enganosa publicidade do proibicionismo aqui se desnuda. Os proibicionistas se apresentam como defensores da vida e, mais do que isso, pretendem-se os únicos defensores da vida. Em suas campanhas, tentam estigmatizar os antiprobicionistas, como se estes não tivessem compromisso com a vida. Mas constatadas mortes de mulheres causadas pelas condições precárias em que são realizados os proibidos abortos, que, repita-se, que não são nem nunca foram impedidos pela proibição, não parecem lhe incomodar. (...) À argumentação dos proibicionistas, pretende extrair um sentido criminalizador deste reconhecimento, é tão somente mais um produto de seu enganoso discurso, é tão somente um produto daquela falsa crença de que o controle social se limitaria à intervenção do sistema penal.

Resta evidente que da maneira em que o nosso sistema penal está

estabelecido, ele só tem a função de impor seu poder diante da sociedade e

repreender as classes marginalizadas, como no caso do aborto, em que criminaliza

as mulheres geralmente de baixa classe social.

Até o momento, pudemos visualizar que o sistema penal atual se baseia na

premissa de que todos os problemas sociais podem ser resolvidos com a

criminalização de condutas. Um sistema assim vem a se tornar ineficaz em reduzir a

criminalidade, contribuindo, muitas vezes, apenas para aumentá-la. Assim, sua

função passou a ser unicamente a de controle social e marginalização dos grupos

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excluídos e segregados, já que as classes de poder são constantemente impunes,

ainda que ambas cometam os mesmos delitos.

Considerando que o sistema penal brasileiro, deslegitimado como está, não

impede a prática do aborto, as mulheres vêm a recorrer aos métodos clandestinos,

que são brutos e violam claramente os direitos humanos da mulher. Ocorre, todavia,

que quem sofre com essa criminalização são, mais uma vez, as classes menos

favorecidas, que não possuem condições de arcar com os preços estratosféricos

cobrados para realizar o procedimento de maneira minimamente adequada e,

consequentemente e muito comumente, vem a falecer. Nesse sentido Zaffaroni

(2001, p. 220):

Até hoje o sistema penal não conseguiu resolver o conflito gerado pelo aborto, o aumento da repressão sobre os médicos que o praticam não faz que aumentar o preço dos seus serviços, excluindo cada vez mais as mulheres das faixas economicamente mais carentes, que se vêem entregues a mãos despreparadas e desumanas, o que tem feito aumentar o número de mortes devido ao emprego de práticas primitivas, fazendo com que o aborto ocupe o primeiro lugar entre as causas de morte materna.

Diante disso, podemos afirmar que a criminalização do aborto causa

implicações de maneira desigual na vida de mulheres de baixa renda e alta renda,

violando o princípio do artigo 5º da nossa Constituição, que prevê que todos são

iguais perante a lei, garantindo-se à igualdade. Ou seja, as consequências do aborto

clandestino pertencem apenas às mulheres de classe social inferior que, em

relevante parte dos casos, equivale ao óbito materno. Além disso, importante

ressalvar que a taxa de condenações na seara criminal pela prática do aborto é

ínfima.

Concluímos, portanto, que a criminalização do aborto não salva a vida dos

fetos e embriões, mas pelo contrário, somente traz outras consequências, como o

óbito das gestantes. No primeiro capítulo do presente trabalho, analisamos a

evolução dos direitos humanos para os direitos humanos específicos das mulheres e

manter o aborto como crime, na realidade brasileira, é uma cristalina violação

desses direitos.

Com a proibição da interrupção da gravidez e a consequente clandestinidade

e precariedade dos procedimentos, direitos fundamentais como à saúde, à

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liberdade, à autonomia, à dignidade da pessoa humana, à vida, entre outros, sofrem

grave violação, já que, embora seja difícil determinar o número certo, milhares de

mulheres morrem anualmente por complicações relacionadas ao aborto.

Pensando por outro lado temos a preocupação com a proteção do direito à

vida do embrião, com o discurso declarado de que é um bem jurídico garantido

constitucionalmente e é evidente que esse direito, sendo mundialmente reconhecido,

deve ser protegido. Todavia, ao fazer essa afirmação não estaríamos por ignorar a

tutela do direito à vida da gestante? Lógico que vida do embrião/feto deve ser

protegida, mas com a mesma equivalência com que se resguarda a vida das

mulheres, estas já nascidas e desenvolvidas?

Essa questão nos remete a uma ponderação entre princípios e valores

constitucionalmente garantidos, através da qual se busca encontrar uma maneira de

sacrificar minimamente o bem jurídico garantido a cada uma das partes envolvidas.

Muitos países fizeram essa ponderação e conseguiram encontrar um equilíbrio na

proteção de cada direito. Façamos, portanto, uma breve análise das soluções

encontradas por países da Europa, como a França, Itália, Espanha e, por fim,

Portugal, no que tange a (des)criminalização do aborto.

Em 1975, na França, foi aprovada uma lei temporária que permitia a prática

do aborto, com a realização do procedimento por um médico, quando a gestante

alegasse que a gravidez lhe causasse angústia, nos casos em que oferecesse risco

à saúde e vida da mãe ou quando houvesse a possibilidade de o feto sofrer a vida

extra-uterina. Contudo, essa lei, n.º 75-17, estabelecia que nos casos de angústia, a

interrupção da gestação deveria ser feita nas primeiras 10 semanas de gravidez e a

pedido da própria gestante. Já nos casos em que oferecia riscos à integridade física

da mulher, a interrupção poderia ser feita a qualquer momento. Ressalta-se que,

para tanto, antes do procedimento, a gestante deveria comparecer a instituições e

conselhos especiais de assistência na resolução de eventuais problemas sociais que

poderiam estar influenciando na decisão da mulher em abortar. Ainda em 75 foi

reconhecida a compatibilidade da referida norma com a Constituição do país

(CAVALCANTE; XAVIER, 2006, p. 124).

O Conselho do Estado da França (última instância de jurisdição do país)

também reconheceu que a Lei 75-17 seria compatível com o artigo 2º da Convenção

Européia de Direitos Humanos, no qual está previsto o direito à vida. Já em 2001, foi

promulgada outra lei (n.º 2001-588) também tratando da questão do aborto. Esta lei

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ampliou os limites do prazo em que havia a possibilidade de interrupção da gravidez

de 10 semanas para 12 semanas, assim como tornou facultativo o comparecimento

às instituições de aconselhamento, que antes era obrigatório. As autoras Cavalcante

e Xavier (2006, p. 124-125) citam parte do relatório do Conselho Constitucional do

país13:

...ao ampliar de 10 para 12 semanas o período durante o qual pode ser praticada a interrupção voluntária de gravidez quando a gestante se encontre numa situação de angústia, a lei, considerando o estado atual dos conhecimentos e técnicas, não rompeu o equilíbrio que o respeito à Constituição impõe entre, de um lado, a salvaguarda da pessoa humana contra toda forma de degradação, e, do outro, a liberdade da mulher, que deriva da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Verifica-se que, assim como o Brasil, a França tem em sua Constituição o

direito à vida resguardado, todavia, ainda assim, encontrou um equilíbrio, isto é, um

meio de tutelá-lo quando se trata do embrião/feto, bem como quando se trata da

gestante, minimizando os sacrifícios das partes envolvidas.

Também da década de 70 a Itália posicionou-se no sentido de

descriminalização do aborto. Antes, era vigente o artigo 546 do Código Penal

italiano, o qual punia o aborto, excluindo os casos em que a gestação oferecia risco

à saúde materna. Entretanto, em 1975, tal artigo foi declarado inconstitucional, sob a

alegação de que a lei não poderia proteger a vida do nascituro total e absolutamente

e, ao mesmo tempo, negar às gestantes a mesma proteção (CAVALCANTE;

XAVIER, 2006, p. 125).

Em 1978, foi editada a Lei n.º 194, a qual regulamentou o aborto,

estabelecendo que a gestante poderia solicitar a realização da interrupção da

gravidez, desde que nos primeiros 90 dias, bem como dentro dos seguintes casos:

(a) de risco à sua saúde física ou psíquica; (b) de comprometimento das suas

condições econômicas, sociais ou familiares; (c) em razão das circunstâncias em

que ocorreu a concepção; ou (d) em casos de má formação fetal14. Ressalta-se que,

assim como a legislação francesa, a italiana também autorizou a realização do

13Relatório Final da Comissão Tripartite para revisar a legislação punitiva sobre a interrupção voluntária da gravidez. 14 Lei italiana n.º 194/1978

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aborto em qualquer momento da gravidez na hipótese de representar risco à vida da

mãe.

Com isso, podemos dizer que, mais uma vez, ponderou-se a tutela do direito

à vida, de modo que é inconstitucional fornecer total proteção do referido direito ao

feto, ser ainda em desenvolvimento, quando se nega o mesmo direito à mãe, ser

que já é pessoa.

Ainda, analisemos a situação do tema na Espanha, que nos últimos 40 anos

sofreu e continua sofrendo diversas alterações. Na década de 80, foi aprovado

projeto de Lei que alteraria o Código Penal espanhol, no que tange o aborto. A lei

Orgânica n.º 9/198515 reformou o artigo 417 bis do Código Penal Espanhol, que

passou a ter a seguinte redação:

Articulo único. El artículo 417 bis del Código Penal queda redactado de la siguiente manera: . «1. No será punible el aborto praeticado por' un médico, o bajo su dirección, en centro o establecimiento sanitario. público o pnvado, acreditado y con consentimiento expreso de la mujer embarazada, cuando concurra alguna de las circunstancias siguientes: I.a Que sea necesario para evitar un grave peligro para la vida o la salud fisica o psíquica de la embarazada y así conste en un dictamen emitido con anterioridad a la intervención por un médico de la especialidad correspondiente, .distinto de aquél por quien o bajo cuya dirección se practique el aborto. En caso de urgencia por riesgo vital para la gestante, podrá prescindirse del dictamen y del consentimiento expreso. 2.· Que el embarazo sea consecuencia de un hecho constitutivo de delito de violación del artículo 429, siempre que el aborto se practique dentro de las doce primeras semanas de gestación y que el mencionado hecho hubiese sido denunciado. 3.a Que se presuma que el feto habrá de nacer con graves taras fisicas o psíquicas, síempre que el aborto se practique dentro de las veintidós primeras semanas de gestación y que el dictamen, expresado con anterioridad a la práctica del aborto, sea emitido por dos especialistas de centro o establecimiento sanitario, público o privado, acreditado al efecto, y distintos de aquel por quien o bajo cuya dirección se practique el aborto.

Em poucas palavras, a Lei tornou permitida a realização do aborto em

qualquer momento da gravidez nos casos em que oferecesse risco à vida e à

integridade física e psíquica da gestante; na hipótese de estupro, se a interrupção

fosse feita dentro de 12 semanas de gestação; e quando houvesse má-formação do

feto, dentro de 22 semanas.

15 Documento digitalizado e disponibilizado pela Agencia Estatal Boletín Oficial Del Estado [ES] – site oficial.

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Conforme Cavalcante e Xavier (2006, p. 135-136), a Corte Constitucional do

país concluiu que nesses casos mencionados, o aborto não iria contra a

Constituição, entendendo que, ainda que o direito à vida seja protegido

constitucionalmente, ele não pode ser considerado absoluto em relação ao

embrião/feto, quando estiver em conflito com os direitos da gestante, assim como os

direitos garantidos à mulher não podem ter primazia quando em confronto com os

garantidos ao feto. Após, foi elaborada nova legislação, sanando alguns vícios, mas

manteve as mesmas hipóteses de aborto legal previstas na lei 9/85. Ocorre que na

hipótese que permite o aborto quando houver risco à saúde e psíquica da mulher

tornou-se muito amplo, de modo a estender as possibilidades legais da interrupção.

A Lei orgânica 9/85 permaneceu em vigor até o ano de 2010, quando sofreu

novas alterações. A Lei n.º 2/2010 de 03 de março adotou o critério de prazos e,

conforme o tempo gestacional iria aumentando, mais limites iriam se impondo.

Primeiramente, até a 14ª semana de gestação, a decisão de interrompê-la pertencia

unicamente à gestante, independente de motivos. Passado esse período, até a 22ª

semana poderia optar pelo aborto se a gravidez oferecesse risco à vida/saúde da

mulher ou se o feto sofresse de anomalias (física ou psíquica). Após 22 semanas,

somente seria possível a prática no caso de risco grave à integridade da mãe ou

quando fosse detectada incompatibilidade do feto com a vida extra-uterina. A Lei

ainda previa, em seu artigo 13, que mulheres de 16 e 17 anos não precisariam de

autorização dos pais para o procedimento se respeitassem os outros limites

estabelecidos na lei16.

Ainda, em 23 de setembro do corrente ano (2015) ocorreu a alteração mais

recente, que modificou o artigo 13 da legislação anterior, passando a determinar que

mulheres de 16 e 17 anos deverão tem o consentimento dos pais ou responsáveis

legais para a realização do procedimento17.

Por fim, no que tange Portugal, o país teve o mesmo Código Penal – de 1886

- durante 96 anos, o qual proibia a prática do aborto em qualquer caso. Além disso,

quando finalmente teve edição em 1982, a legislação manteve a proibição do

procedimento. Após alguns projetos inexitosos de descriminalização do aborto em

virtude da vontade da mulher, em 1984 foi aprovado um projeto, resultante na Lei

6/1984, que passou a prever as primeiras hipóteses de excludentes de ilicitude do

16 Disponibilizado no site oficial da Agencia Estatal Boletín Oficial Del Estado [ES] 17 Idem

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aborto. Seria permitido procedimento quando: a) representasse perigo iminente à

vida ou a saúde da mulher, a qualquer tempo da gestação; b) representasse risco de

vida ou de lesão grave à gestante, se realizado até a 12ª semana de gravidez; c) na

possibilidade de o feto vir a sofrer, por enfermidade grave ou má-formação, se

realizado até a 16ª semana (em 1997 o prazo aumentou para 24 semanas); ou

quando a gravidez resultar de estupro, desde que seja feito nas primeiras 12

semanas (também em 1997 o prazo foi aumentado, ficando no máximo de 16

semanas) (GOIS, 2011, p. 25-26).

A polêmica no assunto não parou e novos projetos foram apresentados no

sentido de descriminalizar o aborto diante da vontade da mulher, porém, mais uma

vez, sem êxito. Somente em 1998 o projeto apresentado pela Juventude Socialista

(JS) foi aprovado. Entretanto, antes de sua definitiva aprovação, partidos políticos

decidiram por o projeto em discussão através de um referendo, o qual teve resultado

negativo por 50,07% dos votos e restou “não vinculativo”, já que mais de 50% dos

eleitores não compareceu à votação (GOIS, 2011, p. 28-29 e 33).

Passaram-se quase 10 desde o referendo de 98, para que uma nova

discussão travada. Em 2007, com um novo referendo e quase uma década de

julgamentos de mulheres que havia abortado, 59,25% dos votos foram no sentido da

descriminalização, porém, novamente mais de metade dos eleitores absteve-se de

votar e o referendo foi considerado “não vinculativo”. Ainda assim, o Parlamento

entendeu que a maioria dos votos era o suficiente para descriminalizar a prática.

Diante disso, em abril de 2007 foi editada a Lei n.º 16/2007, a qual inseriu no

ordenamento possibilidade de aborto pela vontade da gestante, desde que realizado

dentro de 10 semanas de gravidez (GOIS, 2011, p. 40, 45-46).

Diante dessa análise da legislação sobre o aborto em outros países, podemos

verificar que se deixou de analisar o direito à vida como completamente absoluto e a

descriminalização do aborto passou a ser baseada principalmente no equilíbrio entre

os direitos reconhecidos aos envolvidos (gestante e embrião/feto).

Conforme demonstrado durante o desenvolvimento do presente trabalho, o

sistema penal brasileiro encontra-se deslegitimado no que tange a tipificação do

aborto, já que é ineficaz em minimizar a ocorrência de interrupções da gravidez

ilegais. Como já foi relatado, criminalizado o aborto, além de não ter êxito em reduzir

a prática, ainda tem a função de aumentar as mortes, visto que milhares de

mulheres recorrem aos procedimentos inseguros.

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Portanto, o aborto no Brasil, seja pelo fato de ter se tornado um problema de

saúde pública, seja pela ineficácia de sua penalização para evitar a prática ou seja

pela violação dos direitos da mãe, tem uma forte tendência a ser descriminalizado.

Porém, assim como os países europeus citados, é importante encontrar um

equilíbrio na sua legalização, impondo prazos que deverão ser respeitados, de forma

a não se ignorar os direitos do feto.

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CONCLUSÃO

A presente pesquisa de conclusão de curso analisou a evolução dos direitos

humanos que, após muito tempo e muitas lutas, tiveram a sua interpretação

estendida, passando a serem visualizados também como os direitos fundamentais

das mulheres. Através dessa evolução é que as mulheres conquistaram o

reconhecimento de seus direitos sexuais e reprodutivos. Todavia, em que pese

terem alcançado tantas conquistas, as mulheres ainda sofrem diante de graves

desigualdades.

Ainda na primeira parte do trabalho buscou-se demonstrar que embora esses

direitos sejam, teoricamente, garantidos a todas as mulheres, uma análise sobre a

realidade atual nos mostra que, na prática, as desigualdades continuam

extremamente presentes.

Diante dessa realidade, o segundo capítulo da pesquisa, teve por objetivo

explicar de que modo o discurso declarado de sustentação da criminalização do

aborto se relaciona com a operacionalidade real do sistema penal.

Para tanto, na primeira parte do capítulo teve-se por objetivo entender o

paradigma da teoria da reação social, dentro da criminologia, a fim de melhor

compreender de que maneira os processos de criminalização ocorrem, assim como

o etiquetamento social. Com o desenvolvimento dessa primeira parte, restou

demonstrado que se trata de um processo controlado pelos grupos de poder,

através do qual somente os estratos sociais mais baixos são penalizados.

Em seguida, partiu-se para uma análise do movimento do direito penal

mínimo e da deslegitimação do sistema penal. Essa análise permitiu compreender

que atualmente há uma contradição entre dois modelos aplicados no país: Um

modelo baseado no direito penal mínimo e, de outro lado, um modelo baseado em

movimentos de “Lei e ordem”. Essa contradição acaba por deslegitimar o sistema,

que ao invés de auxiliar na diminuição da prática de delitos, somente auxilia para

aumentar as consequências negativas.

Por fim, foi realizada uma breve análise das soluções adotadas por outros

países, como a França, Itália, Espanha e Portugal, que encontraram na

descriminalização do aborto – ainda que com limites – a melhor maneira de

minimizar as consequências decorrentes de um sistema penal desigual.

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Restaram, portanto, expostas as maneiras pelas quais o aborto, tipificado

como crime no nosso Código Penal, viola os direitos das mulheres.

Assim, considerando que o Brasil enfrenta problemas como os expostos

durante o trabalho - como problemas de saúde pública e violação de direitos –

devemos buscar soluções que venham a minimizar a taxa de morte materna em

virtude do aborto e, consequentemente a violação de direitos. Por isso, é importante

repensar se a criminalização do aborto é, de fato, a melhor maneira de tratar a

questão e os problemas dela decorrentes.

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