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1 Diálogos com o Supremo Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV DIREITO RIO Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro Palestra: Ministro Carlos Ayres Britto (00:18:16) Dr. Joaquim Falcão À mesa, Doutor Ayub, nosso Professor, e é o responsável pelo Centro de Justiça e Sociedade, que faz esse evento hoje. Marcelo, nosso presidente; Doutor Norberto; Leila é a presidente da EMERJ, Desembargadora, e é a responsável também pelos nossos cursos de Mestrado; e Tonico é o presidente nosso da Associação dos Magistrados. Eu agradeço o nosso pessoal da Associação Comercial que está aqui, Eduardo, Corinto, Dora, e outros; Max Fontes, presidente da Harvard; Doris Castro Neves que é um patrimônio já da FGV; Andrea Pachá, minha colega que excepcionalmente se concedeu descer de Petrópolis hoje e vir até aqui; Munhoz, Roberto, Ana, em nome do qual saúdo todos. Leila fará uma breve apresentação do Ministro. O título é: “Pensamento, Sentimento e Consciência como Categorias Constitucionais, e depois nós vamos ter perguntas. Convidamos alguns colegas: Ana Paula da UERJ, Margarida da UFRJ, Diego da FGV, Roberta Frankel da Defensoria Pública, Marcelo. Vamos fazer umas perguntas, e aí a essa altura o Ministro que acordou hoje às 7 da manhã, ou, antes das 7 para estar aqui, 5 da manhã, então já estará morrendo de fome... (risos) Eu quero agradecer a vocês todos. (00:20:24) Dra. Leila Ministro Carlos Augusto Ayres de Britto é um poeta e um Jurista. Atual Vice- Presidente do Supremo Tribunal Federal; foi considerado pela Revista Época um dos 100 brasileiros mais brilhantes do ano de 2009; é natural de Sergipe, onde ocupou os cargos de Consultor Geral do Estado, Procurador Geral do Estado, Procurador do Tribunal de Contas; em 2003 foi nomeado para, como Ministro do Supremo, e presidiu o Superior Tribunal Eleitoral de maio de 2008 a abril de 2010. Então, em linhas gerais esta seria a biografia resumidíssima do Ministro. (00:21:23) Dr. Joaquim Falcão Próximo Presidente do Supremo e Próximo Presidente do Tribunal de Justiça. (00:21:30) Ministro Carlos Ayres Britto Bom dia a todos! Saúdo esta qualificadíssima mesa de trabalho, em especial mando meu abraço para o meu querido amigo Marcelo Cerqueira, também Alfeu Sales, Andrea Pachá, amigos de longa data aqui no Rio de Janeiro, a quem me ligo por vínculos de admiração, de afeto, e acrescento que é muito honroso pra mim estar nesta respeitabilíssima casa de pensamento, e do ponto de vista pessoal também é

FGV – Diálogos com o Supremo - stf.jus.br · pronto e acabado, tradicional, eu vou dizer algumas, lançar algumas idéias, quem sabe, algumas instigações, algumas provocações,

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Diálogos com o Supremo

Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV DIREITO RIO

Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Palestra: Ministro Carlos Ayres Britto

(00:18:16)

Dr. Joaquim Falcão

À mesa, Doutor Ayub, nosso Professor, e é o responsável pelo Centro de Justiça e Sociedade, que faz esse evento hoje. Marcelo, nosso presidente; Doutor Norberto; Leila é a presidente da EMERJ, Desembargadora, e é a responsável também pelos nossos cursos de Mestrado; e Tonico é o presidente nosso da Associação dos Magistrados. Eu agradeço o nosso pessoal da Associação Comercial que está aqui, Eduardo, Corinto, Dora, e outros; Max Fontes, presidente da Harvard; Doris Castro Neves que é um patrimônio já da FGV; Andrea Pachá, minha colega que excepcionalmente se concedeu descer de Petrópolis hoje e vir até aqui; Munhoz, Roberto, Ana, em nome do qual saúdo todos. Leila fará uma breve apresentação do Ministro. O título é: “Pensamento, Sentimento e Consciência como Categorias Constitucionais, e depois nós vamos ter perguntas. Convidamos alguns colegas: Ana Paula da UERJ, Margarida da UFRJ, Diego da FGV, Roberta Frankel da Defensoria Pública, Marcelo. Vamos fazer umas perguntas, e aí a essa altura o Ministro que acordou hoje às 7 da manhã, ou, antes das 7 para estar aqui, 5 da manhã, então já estará morrendo de fome... (risos) Eu quero agradecer a vocês todos.

(00:20:24)

Dra. Leila

Ministro Carlos Augusto Ayres de Britto é um poeta e um Jurista. Atual Vice- Presidente do Supremo Tribunal Federal; foi considerado pela Revista Época um dos 100 brasileiros mais brilhantes do ano de 2009; é natural de Sergipe, onde ocupou os cargos de Consultor Geral do Estado, Procurador Geral do Estado, Procurador do Tribunal de Contas; em 2003 foi nomeado para, como Ministro do Supremo, e presidiu o Superior Tribunal Eleitoral de maio de 2008 a abril de 2010. Então, em linhas gerais esta seria a biografia resumidíssima do Ministro.

(00:21:23)

Dr. Joaquim Falcão

Próximo Presidente do Supremo e Próximo Presidente do Tribunal de Justiça.

(00:21:30)

Ministro Carlos Ayres Britto

Bom dia a todos! Saúdo esta qualificadíssima mesa de trabalho, em especial mando meu abraço para o meu querido amigo Marcelo Cerqueira, também Alfeu Sales, Andrea Pachá, amigos de longa data aqui no Rio de Janeiro, a quem me ligo por vínculos de admiração, de afeto, e acrescento que é muito honroso pra mim estar nesta respeitabilíssima casa de pensamento, e do ponto de vista pessoal também é

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um prazer muito grande. Os queridos amigos Joaquim Falcão e Pedro Abramovai me perguntaram se eu estaria disposto a vir aqui conversar um pouquinho, dialogar um pouco, enquanto Ministro do Supremo sobre a nossa Casa de Justiça, que é uma casa de fazer destino, e destino nacional. E, eu respondi que sim, porque a curiosidade sobre o Supremo se tornou muito maior nos últimos tempos devido ao fato de que ele passou a interferir no curso da vida, no sentido qualitativo mesmo na vida dos brasileiros, a partir da compreensão de que temos uma lei fundamental eminentemente principiológica, e consagradora de valores humanistas, valores que qualificam a vida individual e coletiva do país. O Supremo é o guardião-mor da Constituição e tem uma responsabilidade muito grande de se manter fiel a ela, Constituição, que o seu único papel é esse, ser um militante da Constituição como documento fundamental do país, além das leis do nosso Brasil. A Constituição, sabemos todos, é a lei das leis que o Estado faz, e é a única lei que o Estado não faz na sua redação originária, exatamente, a única lei que o Estado não faz, não tem número, e procede de uma instância deliberativa que é anterior ao Estado, é exterior ao Estado, é superior ao Estado, que é a Nação brasileira, Nação naquele conceito de Renan: a Nação é uma alma, é um princípio espiritual; acrescentamos, é uma linha imaginária entre o passado, o presente e o futuro de um povo soberano, ou seja, a Nação tem essa peculiaridade de atar, ligar a ancestralidade à posteridade, passando pela poetaneidade, portanto, é tridimensional no tempo, na medida em que se faz atemporal, porque liga gerações passadas, gerações presentes e gerações futuras. E é ela, a Nação, que deposita sua vontade normativa suprema na Constituição que nos cabe guardar lá no Supremo Tribunal Federal. E a nossa legitimidade, evidente, tem que decolar, tem que arrancar da Constituição no plano da fidelidade, e aos respectivos comandos. Há uma vontade nacional, que é permanente, ali derramada na Constituição, e na medida em que observada com fidedignidade nos legitima, é uma legitimidade diferenciada, claro que é também uma legitimidade técnica porque as nossas decisões são fundamentadas e são públicas, aliás, até o nosso processo deliberativo hoje é público no âmbito desse valor da transparência que a própria Constituição consagrou, que significa o direito que tem a população de saber de tudo que se passa nas esferas do Poder, inclusive do Poder Judiciário, por que não?

Eu trouxe um tema que será objeto, não propriamente de uma conferência, não esperem de mim uma exposição pronta, acabada, com princípio, meio e fim sobre um tema já estudado pela doutrina, e objeto de reiteradas convergentes, e inequívocas decisões judiciais; não é isso. Eu gosto muito das instigações, das provocações, gosto muito da heterodoxia; é até meio estranho, o Ministro do Supremo se proclamar adepto das heterodoxias quando o Supremo deve ser uma instância que sobremodo vela pela estabilidade, pela fixidez, pela segurança das relações jurídicas, e devo inovar o menos possível. Acontece que essa Constituição que nos cabe guardar, ela é inovadora, ela chega a ser revolucionária, é consagradora de princípios que bem podem ser resumidos nessa palavra humanismo. É uma Constituição humanista por excelência, progressista no sentido do arejamento dos costumes notadamente, e da democracia brasileira. E, por ser progressista não pode ser aplicada por um modo passadista, por um modo retrógrado, não há como interpretar uma Constituição progressista por um modo retrocessivo sob pena de cometimento de infidelidade hermenêutica, daí por que o Supremo tem produzido decisões tão socialmente impactantes e provocadoras de tantas polêmicas, caso: células tronco embrionárias, demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol, fidelidade partidária, isonomia entre casais heteroafetivos, e parceiros homoafetivos, Lei da Ficha Limpa, liberdade de imprensa, inclusive, liberdade do humor na imprensa, mesmo em período eleitoral. Em suma, o Supremo passou a, no melhor sentido, desfilar pela passarela das mais, digamos, agudas atenções do país na medida em que se tornou uma instância interferente na qualidade de vida de toda população brasileira, e nos destinos do nosso país.

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Diante disso, diante dessa Constituição que me parece axiologicamente heterodoxa, eu trouxe um tema que é uma provocação na verdade, já que vamos falar, o convite foi para dar sequência a um programa da FGV intitulado: “Diálogos com o Supremo”, então não me cabe aqui fazer, monologar, fazer uma conferência no melhor estilo pronto e acabado, tradicional, eu vou dizer algumas, lançar algumas idéias, quem sabe, algumas instigações, algumas provocações, e fico à disposição dos senhores para uma conversa naquela antiga linha Socrática que nós chamamos de Maiêutica; provocações, porque importa muito mais perguntar do que propriamente responder, e Sócrates tinha o cuidado de dizer que esse tipo de espaço de diálogo é um lócus privilegiado de instigação do pensamento em que ninguém é mestre de ninguém, ninguém ensina ninguém, apenas os espíritos estão abertos para com toda sinceridade investigar um tema apenas como ponto de partida, mas sem saber qual vai ser o ponto de chegada, até porque nas coisas ditas humanas, talvez não haja mesmo um ponto de chegada, o que é maravilhoso; na física quântica, todos nós sabemos que Werner Heisenberg formulou o princípio da incerteza, dizendo que até as partículas subatômicas não podem ser nem quantificadas, nem determinadas no seu movimento porque elas descrevem dinâmicas heterodoxas, e de repente se transformam em ondas sem que ninguém perceba, e o mesmo observador pode ver um próton, um elétron, um nêutron, um fóton como uma partícula, e o mesmo observador já vê como onda; é como se Heisenberg dissesse: - Que bom que tudo seja incerto, porque se não fosse assim a vida seria uma mesmice, morreríamos se não de susto, morreríamos por um modo pior, de tédio. Então, é certo que tudo seja incerto, e se tudo é inseguro o nosso desafio só pode ser um, vamos nos sentir seguros na própria insegurança, e fazer dessa vida uma experiência fascinante, dizendo assim: - Olha, a minha única questão fechada é a abertura para o novo, e ponto final.

Então, eu trouxe esse tema aqui, que é uma espécie de fio a desfiar, a puxar sem nenhum novelo precedente, é um caminho que não tem ponto; tem ponto de partida, mas não tem ponto de chegada, eu me interesso muito pela maneira de caminhar pura e simplesmente, vamos puxar esse fio de um título apenas, e o novelo vai se formando aos poucos, se é que ele vai se formar; o título é esse: “O pensamento, o sentimento e a consciência como categorias constitucionais”; isso numa perspectiva humanista. Nós queremos resgatar, ou desentranhar do Direito, desentranhar dos dispositivos jurídicos propriedades normativas, qualificadoras da vida e do indivíduo, a tal ponto que venham a merecer o nome de humanismo, queremos um direito humanista, um direito a serviço do humano. O humanismo, essa compreensão que todos tem, podemos compreender o humanismo, aliás, eu acho que na Constituição, humanismo é isso, não é mais do que isso, mas isso já é tudo. Humanismo é expressão de vida civilizada, expressão de uma vida coletiva civilizada. Entendendo-se como vida coletiva civilizada, aquela que faz da humanidade que reside em cada um de nós, o próprio fundamento de uma dignidade humana, digamos inata, há uma inata dignidade humana que a Constituição mais do que outorga, reconhece como se fosse mesmo um postulado juro-naturalista pré-existente. Há uma inata dignidade humana cujo título de legitimação, ou cujo fundamento jurídico não é outro senão a humanidade que mora em cada um de nós, o humano que reside em cada um de nós, na linha daquele poema famoso “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, cujos versos iniciais são tão conhecidos de cor e salteado: - “Não sou nada; Nunca serei nada; Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”, ou seja, o indivíduo é um Universo à parte; se é parte de algo, é um algo à parte, se é parte de um todo, é um todo à parte, é um microcosmo. É irrepetível nas suas peculiaridades, absolutamente original, não há ninguém igual a ninguém, e por isso se faz destinatário de situações jurídicas subjetivas, situações jurídicas ativas, numa linguagem mais técnica, que começam com os direitos e garantias individuais, e vão se espraiando pelos direitos econômico-sociais, pelos direitos culturais, ou sociais-genéricos, pelos direitos políticos, pelos direitos ecológicos, pelos direitos digitais, que a doutrina vem e

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cataloga de imediato como de primeira, segunda, terceira e até direitos de quarta geração.

Mas, o Humanismo tem um segundo significado, ele é a transubstanciação da democracia de três vértices, só há Humanismo quando a partir da Constituição brasileira, se positiva uma democracia, ao mesmo tempo liberal, fraternal e social, ou pela ordem do constitucionalismo ocidental: liberal, social, fraternal. O humanismo, que penso existir na Constituição, é esse que faz da humanidade que radica em cada um de nós o título de legitimação do reconhecimento da nossa inata, ingênita, congênita dignidade, virginal dignidade, e ao mesmo tempo, digamos assim, evolui essa idéia de humanismo, para desembocar, desaguar na democracia de três vértices. A democracia como princípio lógico de organização do estado, do governo, do estado, e da sociedade como um todo, logo, a democracia como um projeto de vida global do estado, do governo e da sociedade civil. Tudo mais na Constituição é decorrência desse projeto, desse princípio democrático de organização do estado, do governo e da sociedade. Os vetores interpretativos por excelência são esses, e também não é necessário queimar muito fosfato para evidenciar que a nossa democracia principia, começa com o Artigo 1º da Constituição que lança fundamentos que são os primeiros conteúdos da democracia. Que fundamentos são esses? Fundamentos: - soberania popular, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político; são os conteúdos por excelência da democracia brasileira. Fundamentos chamados assim pela Constituição a partir dos quais se alcança; o estado brasileiro pode alcançar a partir destes fundamentos, objetivos que ela mesma Constituição também chama de fundamentais, por exemplo: Artigo 3º - Construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; claro que um desenvolvimento que tenha como elemento conceitual, elemento conceitual dele desenvolvimento, equilíbrio ecológico, e uma convivência internacional sem dependência, ou seja, sem temerária dependência externa do Brasil em relação aos demais partícipes da comunidade nacional. E, vêm aqueles outros: - promover o bem de todos, erradicar a pobreza e a marginalização, etc., etc. Mas, entre os fundamentos do Artigo 1º e os objetivos fundamentais do Artigo 3º, a Constituição colocou estrategicamente o Artigo 2º, entre o Artigo 1º - Fundamentos da República, Artigo 3º - Objetivos fundamentais da República; vem o Artigo 2º, e o Artigo 2º cuida dos três Poderes, no meio dos quais o Judiciário, ou seja, os três Poderes estão ali no Artigo 2º estrategicamente colocados entre os fundamentos da República, e os objetivos dessa mesma República para que a partir dos fundamentos eles atuem, legislativamente, executivamente, jurisdicionalmente eles atuem para alcançar os objetivos do Artigo 3º: - erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as distâncias sociais e regionais, promover o bem de todos sem preconceito de origem, de sexo, de raça, de cor, ou quaisquer outras formas de discriminação, e implantar a democracia de três vértices: - liberal, social e fraternal, ou solidária.

Então, o humanismo que nos cabe desentranhar da Constituição é esse. E eu trouxe esse título: “Pensamento, Sentimento, Consciência como Categorias Constitucionais”, pelo seguinte, objetivamente nós temos o humanismo na Constituição, mas para que esse humanismo objetivamente posto na Constituição se revele na sua pureza, na sua extensão, na sua latitude, na sua longitude; para que esse humanismo se torne um corpo vivo e saia do papel, e se incorpore ao cotidiano existencial de cada um de nós, é preciso que o intérprete seja também humanista. Eu dizia ainda há pouco, a Pedro Abramovai que não se pode conceber democracia sem democratas, república sem republicanos, comportamentos éticos sem protagonistas igualmente éticos. Nessa linha de pensamento não pode haver humanismo sem humanistas, a objetividade humanista pressupõe a subjetividade igualmente humanista porque senão vamos aplicar retrocessivamente a Constituição tão progressista que é, mas diante da nossa interpretação e da nossa aplicação, os nossos votos, petições, pareceres, nós vamos inverter a própria ontologia da Constituição tornando um documento ideologicamente

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contrário aquilo que ela, Constituição, efetivamente é. Então, a subjetividade humanista deve ser tão objeto de preocupações nossa, tanto quanto, ou mais até do que a objetividade humanista que se encontra fincada na Constituição brasileira, no lastro formal da Constituição, na tessitura gráfica da Constituição, portanto. E, aí, a razão de ser do título, é que o que há de mais humano em nós, o que há de mais salientemente humano em nós, o que nos caracteriza como elemento conceitual, como conteúdo, como ingrediente do nosso humanismo é notadamente a parelha temática: pensamento - sentimento, porque cotidianamente, no nosso dia-a-dia, habitualmente, com frequência, nós somos e agimos debaixo dessas duas faculdades, dessas duas características: do pensamento e do sentimento. Daí porque a Física Quântica e Danah Zohar, uma Física Quântica anglo-americana, autora do livro: Ser Quântico; e de um livro ainda mais recente chamado: Inteligência Espiritual; ela faz uma proposição, que mais recentemente a neurociência confirmou: o cérebro humano, ele é dual, é binário, é dúplice, ele tem o hemisfério esquerdo, e o hemisfério direito, basicamente é isso; do lado esquerdo do cérebro humano está o pensamento, do lado direito do cérebro humano está o sentimento. Então, o nosso modo de ser e de agir é habitualmente esse, é um pensar e um sentir, umas pessoas sentem mais do que pensam; não que não saibam pensar; é que se convenceram de que a primazia deve recair sobre o sentimento, e outras invertem a lógica, pensam mais do que sentem. O pensamento é sinônimo de inteligência intelectual, que é a inteligência lógica, ou cartesiana, o cérebro acionado pela sua dimensão intelectual, ele produz idéias, sobretudo idéias, a sede das idéias é a mente, que é sinônima; a mente é sinônima de inteligência intelectual. Então, o cérebro pelo seu lado esquerdo é um produtor de idéias, de pensamentos, pensamentos e idéias que significam representação abstrata, mental, de pessoas, de fatos, de eventos. O pensamento nos habilita a conhecer, a nos conhecer e conhecer as coisas externas por um modo indireto, também chamado de especulativo ou discursivo; é por teorizações, é por formulações abstratas, claro que depois vem também as experiências, mas a partir dessa preocupação de conhecer primeiro por partes o intelecto, a mente, a inteligência lógica, só conhece por partes, é como se a realidade não fosse um todo, ela fosse partes sem um todo, não há cientista que não fragmenta a realidade e dela se aproxima por um modo cauteloso, cuidadoso, metódico para aproximações sucessivas, daí porque o conhecimento científico é chamado de indireto, ou discursivo. É um conhecimento gradativo, cumulativo, uma proposição servindo de base para outra proposição, uma geração transmitindo a outra o seu estoque de conhecimento cientificamente amealhados. Já, o lado direito do cérebro é o lado do sentimento, é o lado do coração, é o lado da emoção. O cérebro conhece pelo seu lado direito de estalo, um súbito de percepção e apanha a realidade como um todo, não fragmentariamente, num insight, como um espocar de um raio, um flash. E, não é por partes que o lado direito do cérebro conhece, é holisticamente, ou esfericamente, o lado esquerdo científico é angular, o lado direito que é o sentimental, o emocional, é chamado de inteligência emocional, o lado direito; o lado esquerdo, inteligência intelectual. Então, o lado direito é um modo de conhecer não por partes, não aos poucos, mas no súbito de percepção, é o modo de conhecer holístico, esférico, porque numa esfera estão todos os ângulos, é um modo de conhecer instantâneo: sem planejamento, sem método, sem metas. E não é a toa que o lado, é o lado intuitivo, é o lado da abertura, do nosso espírito para a essência das coisas sem metodização nenhuma, é a faculdade que nós temos esse lado direito chamado inteligência emocional de ver o todo como se não tivesse partes, é um todo sem partes, e como se fosse, como se não houvesse o antes nem o depois, só o durante, é o nosso modo instantâneo de ser, o que nos interessa é o instante, nós não temos meta, não temos memória, nós temos apenas o durante, apenas o instante, e quando vivido o instante com intensidade as suas fronteiras são dilatadas, e nós conseguimos experimentar o instante dilatadamente, e nesse momento há uma característica muito interessante, como é um conhecimento obtido por contemplação, por intuição, num súbito de percepção, por intensidade, não há método nenhum, não

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há... o conhecimento não é gradativo, é de uma só vez, quando ele é servido, por uma pausada, uma desestressada meditação, esse instante de percepção ele se dilata nas suas fronteiras e tem a propriedade de bloquear o funcionamento da mente; quando nós estamos no nosso coração, estamos fora da nossa mente, o uso do sentimento, assim, debaixo de intensidade, ou de pausada contemplação, desapressada experimentação, esse lado do sentimento tem a propriedade de bloquear completamente o funcionamento da inteligência emocional, porque a mente fica aturdida como que paralisada quando o sentimento está funcionando. O sentimento é o lado feminino nosso, o pensamento é o lado masculino, evidente. Esse lado feminino por ser intuitivo é chamado de... não é chamado... ele se manifesta com muito mais ousadia, com muito mais coragem, como se nós, digamos assim, soltássemos as amarras desse navio que é o coração para adentrar o mar, ainda que encapeladamente açoitado de ventos, de tempestades. Em francês a palavra coragem é courage, não é isso? Uma palavra que se compõe do substantivo “coeur” e do sufixo “age”, o agir do coração. Então, é preciso muita coragem para acionar o coração, não é coração músculo cardíaco, que bate pendularmente aqui dentro do nosso peito, é coração neurônio, categoria neural, tanto quanto o pensamento é categoria neural; é o lado feminino. Por isso que nós podemos dizer o seguinte: é um pensamento de direito, e há um sentimento de justiça, porque justiça é uma palavra feminina, e direito é uma palavra masculina. Interessante como certos gênios da raça intuíam com essas coisas, meu querido amigo Marcelo Cerqueira. Tobias Barreto dizia assim: - Direito não é só uma coisa que se sabe, pela inteligência intelectual; claro que ele não cunhou essa expressão, que não era conhecida: inteligência intelectual; mas ele tinha intuição do lado esquerdo do cérebro, Direito não é só uma coisa que se sabe, é também uma coisa que se sente, já dizia Tobias Barreto. E depois nós aprendemos que o substantivo sentença vem do verbo sentir. No ponto de partida das coisas muitas vezes nós não colocamos a inteligência intelectual, a ciência, a técnica, a lógica; nós colocamos a intuição, a contemplação, a ousadia, a sensibilidade. E, quando essa sensibilidade vai se intensificando, cada órgão dos nossos sentidos se manifesta por um modo puro, sem controle, solto, livre, leve, solto, ou como diria Caetano Veloso: “Sem lenço, sem documento”; a nossa sensibilidade como que ganha em densidade e passa a merecer o nome de sensitividade, sensitividade é até mais do que sensibilidade. Aí eu me pergunto: mas porque eu estou falando sobre isso, essas coisas não são categorias meta jurídicas? Não tem nada a ver com o Direito? Antes de responder eu vou complicar ainda mais as coisas. E possível perceber que o sentimento e o pensamento não se gostam, não são amigos fraternos, eles constituem uma dicotomia, uma dualidade básica, dois pólos, portanto, que não se apreciam, onde um está, geralmente o outro não está, é muito difícil a convivência. Mas, quando o ser humano consegue na sua interioridade harmonizar sentimento e pensamento, acasalá-los, fazer um casamento por amor entre os dois, o indivíduo parteja o rebento da consciência, e consciência é uma terceira categoria, é outra característica humana, nós temos, portanto, três categorias humanas, por excelência: - o pensamento, o sentimento e a consciência, só que a consciência não é uma priori, é um a posteriori, não é um antecedente, é um conseqüente; nós podemos viver sem consciência, sobretudo quando saímos do sentimento e ficamos exclusivamente no pensamento, nos tornamos frios, distantes, calculistas, aliás, a neurociência comprova o seguinte: - Quando nós usamos o pensamento, lado esquerdo do cérebro, claro que irrigamos o cérebro, porém muito menos que quando usamos o lado direito, o lado direito feminino é o que mais irriga o cérebro humano, e por isso o cérebro mais sanguineamente irrigado é mais corajoso, é mais inovador, é mais produtivo. E, a consciência, seria uma espécie de refinamento das faculdades, das virtudes, das características humanas, porque o pensamento tende a ser radical, o sentimento tende a ser radical, a otimização das coisas se dá nesse terceiro estádio, e superior, e superlativo estádio da consciência, a consciência harmoniza, portanto, o pensamento e o sentimento resgatam a nossa inteireza e nos equilibra. Há um poema de Vinícius de Moraes que

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diz assim: - “A vida só se dá pra quem se deu”; certamente ele quis dizer, a vida só se dá por inteiro a quem por inteiro se dá à vida, e nós somente somos inteiros quando estamos investidos na posse das nossas características essencialmente humanas, o pensamento e o sentimento, acasalados na perspectiva da consciência, a consciência é o que nos lapida por excelência. Numa metáfora talvez mal apanhada, eu diria o seguinte: - Antes da consciência nós podemos ser no máximo um mármore de Carrara, depois da consciência nós já somos a Pietà de Michelangelo, é completamente diferente, aliás quando eu vi a Pietà pela primeira vez, claro que emociona, como todos que vêm aquela magnífica obra de arte, eu percebi, enlevado, pela primeira vez na minha vida a figuração de Cristo por um modo secundário, Cristo ali no colo de Maria não é a figura principal, a figura principal é Ela, é Maria, quem sabe numa homenagem que Michelangelo quis prestar a essa entidade mágica que só as mulheres tem: o útero. Seja como for, eu também podia dizer, já estou terminando, que antes do pensamento e do sentimento, nós temos os instintos, os instintos são o nosso ponto de partida, a consciência seria o nosso ponto de chegada. Os instintos não nos caracterizam como seres humanos, e sim como partícipes do reino animal, porque os animais também têm instintos, talvez até mais aperfeiçoados que os nossos. O que há de mais material, mais imediato, mais corpóreo, mais in natura, não pasteurizado, insubmisso às coordenadas mentais são os nossos instintos, sobretudo os instintos da sobrevivência, da conservação, os instintos da reprodução, da busca do prazer, e da fuga do sofrimento ou da dor, são as manifestações instintivas por excelência. Mas, o mais forte de todos é o da sobrevivência, tanto que Espinosa numa frase também lapidar disse o seguinte: “Todo ser vivo na medida em que pode se esforça por se conservar tal como é, vivo". Daí, porque uma bactéria, um micróbio resiste ao antibiótico com que eventualmente é combatido, a bactéria, o micróbio; claro que Espinosa não disse isso porque não havia antibiótico na época do grande pensador luso-holandês. E, aí, é que vem a parte final da minha exposição.

Nós só podemos resgatar o que há de salientemente humano no Direito, se resgatarmos em nós, intérpretes e aplicadores do Direito positivo o que há de mais salientemente humano em nós mesmos, são nossos pensamentos, nossos sentimentos e a nossa consciência, que não são categorias meta jurídicas, a Constituição deles fala: - Olha, essa Constituição é tão surpreendente, tão inovadora, pra não dizer revolucionária que fala até do mistério da vida. Há três estados de existência, todos sabemos disso, três estados de existência, coisas que existem na realidade, fazem parte da carne e do real: o estado das coisas conhecidas, já aprendidas e descritas pela inteligência intelectual; o reino das coisas incognoscíveis, ainda não são conhecidas mas um dia serão, por efeito da evolução da ciência e da tecnologia, um dia a inteligência intelectual chegará lá; e há o terceiro estado de realidade, que é o das coisas incognoscíveis, do mistério, que falava no Hamlet, Shakespeare, dizendo: “Horácio, há muito mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a tua vã filosofia”. A Constituição nos remete para esse mundo do mistério quando no preâmbulo fala de Deus. E, a coisa mais misteriosa? Há fenômeno mais misterioso do que Deus? E a Constituição nos remete a Ele, claro que para homenagear o sentimento de religiosidade do povo brasileiro, a religiosidade em si, não essa ou aquela religião. Quando se fala de Deus é para homenagear esse impulso antropológico da criatura para o Criador, somos imanentes, temos ciência da nossa imanência, mas algo nos impulsiona para a transcendência, é uma viagem do profano para o sagrado, e isto é contemplado na Constituição. A Constituição fala de fé, de crença, de liberdade de culto, e tudo isso é o espaço do mistério. O mistério não tem forma, por isso é o informe por excelência; o amor, por exemplo, conceito de justiça, ninguém nunca, jamais conceituou a justiça, nem vai conseguir, justiça, nacionalismo, amor, patriotismo, Deus, são categorias arredias da descrição intelectual, inapropriáveis pelo nosso intelecto porque não tem forma, ou pelo menos, não tem uma forma pré-definida, o amor, Deus, etc., eles podem assumir qualquer forma, e só há um modo, não de conhecer porque são incognoscíveis esses

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fenômenos, só há um modo de experimentar Deus, é experimentando; o amor - é experimentando, ou seja, para "conhecer" o mistério, conhecer entre aspas, é preciso ser, o mistério, é preciso ser aquilo que o mistério é, o que demanda da nossa parte extrema coragem, porque o ser humano não quer perder o controle da coisas, e nós da área jurídica somos idólatras da segurança, nós raciocinamos assim: - Oha, a embarcação é muito bonita, muito forte, mas ela tá mais segura no porto; esquecidos nós de que as embarcações não foram feitas para os portos, e sim à aventura do mar aberto.

Então, Professor Falcão, a minha provocação é essa, vamos estudar a Constituição na perspectiva das faculdades, das virtudes, das características humanas, do pensamento, do sentimento e da consciência, características que estão lá na Constituição. Interessante, nós estudamos mais o lado de fora do que o lado de dentro, nos interessamos muito mais pelo abstrato do que pelo concreto, pelo invisível, do que pelo visível, pelo distante do que pelo próximo. Por isso é que na dicotomia, Marcelo Cerqueira, entre o homem e a humanidade, nós preferimos a humanidade, e às vezes confundimos humanista com cultor da humanidade, e humanismo com louvor, culto à humanidade. Ora, amar a humanidade, que é um sujeito abstrato, distante, algo impalpável, invisível, é muito fácil, e se transforma muitas vezes numa proclamação meramente retórica; é fácil amar a humanidade, esse sujeito tão distante; agora, amar o homem, o ser humano inconcreto, o lavador de carro, o vigia, o lixeiro, o guardador de carro, a empregada doméstica, o ascensorista, esse que é o nosso desafio porque são pessoas que tem nome, tem rosto, tem sonhos, tem expectativas, tem dramas, perplexidades, paradoxos. A humanidade está ao alcance da nossa mente, mas só o homem está ao alcance de nosso olhar. Verdadeiramente humanista é quem ama a humanidade, mas a partir do ser humano in concreto, de carne e osso, ali ao alcance da nossa mão e do nosso ombro, porque a hora de enxugar a lágrima é quando a lágrima está caindo. Então, quais são as coordenadas do pensamento enquanto categoria constitucional? Quais são as coordenadas do sentimento? A Constituição fala de arte, de criação, de ética, de valores, e é evidente que o mundo dos valores da ética, da arte, da criação é um mundo muito mais próximo do sentimento do que do pensamento. Quando a gente diz: - Fulano de tal é uma pessoa de sentimento; está dizendo, é uma pessoa de valor, é sensitiva, mais do que sensível. E o que é consciência à luz da Constituição? e, ela fala de consciência. No Inciso IV diz: - É livre a manifestação do pensamento; no Inciso II: - Pesquisar, divulgar o pensamento; Artigo 220: - A manifestação do pensamento; Inciso VI do Artigo V: - É inviolável a liberdade de consciência; Artigo 143: - Fala de imperativo de consciência. Que categorias são essas aqui? Qual o conteúdo significante de cada uma dessas categorias que resumem o que há de mais humano em cada um de nós? Enfim, a subjetividade humana me parece que deve ser a prioridade das prioridades, vamos conhecer as objetividades jurídicas, mas a partir da subjetividade do intérprete e aplicador do Direito. A provocação, portanto, é essa, e eu me coloco à disposição dos Senhores.

(01:06:05)

(Aplausos)

(01:06:35)

Dr. Joaquim Falcão

Mais uma vez o Brasil se rende ao Nordeste. (risos)

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(01:06:44)

Dra. Leila

Vamos então passar às perguntas dos nossos convidados. A primeira é Dra. Ana Paula de Barcellos, Mestra e Doutora em Direito Público pela UERJ, Professora Adjunta de Direito Constitucional na UERJ, Autora de Livros e Artigos Especializados. Com a palavra Doutora.

(01:07:05)

Dra. Ana Paula de Barcellos

Muito bom dia a todos, é um prazer estar aqui, eu gostaria de agradecer a organização, Diego em particular. Ministro, o Senhor não imagina o prazer que é ouvi-lo, a libertação que é ouvi-lo. Eu quero cumprimentar a mesa, as autoridades, além da pessoa do Ministro e Professor Marcelo. Ministro a minha pergunta é também uma reflexão. O projeto humanista que envolve essa reintegração dos elementos; é muito interessante porque a gente dá aula pra graduação, e isso é evidente, se conta uma história e o aluno já tem a opinião porque ele sentiu aquilo, não sabe por que, depois ele vai tentar racionalizar, vai tentar conciliar sentimento - pensamento, mas ele já tem um insight. Mas, a minha pergunta é: - Qual é o papel do Direito, e do Direito Constitucional nesse projeto? Porque por vezes me parece que é uma certa pretensão exagerada do Direito de englobar a experiência humana, de englobar todos os aspectos desse projeto humanista, e a consequência disso vai sendo uma desumanização, na medida em que o Direito vai entrando, os espaços puramente humanos, ou tipicamente humanos vão se retraindo. Então, a minha pergunta é; o Direito Constitucional em particular: - Qual é o papel dele? Até que ponto ele vai? Em que momento ele pára? E há espaços da política, das relações humanas, não jurisdicizadas? A minha pergunta é: - Se o Direito tem essa pretensão, essa capacidade toda de construção humanista? E o perigo do Direito pretender demais de si próprio, de se achar um instrumento capaz de re-humanizar, e na verdade ele ocupa tanto espaço que o humano se torna cada vez mais, enfim, acessório, e as relações vão sendo jurisdicizadas, e não humanizadas? Então, essa é a minha primeira reflexão que eu gostaria de ouvir do Senhor e agradecer a sua belíssima conferência.

(01:09:50)

Ministro Carlos Ayres Britto

Eu que digo de Vossa Excelência que sou o seu fã desde sempre, embora eu seja três vezes mais velho, mas desde o seu surgimento no mundo acadêmico, enquanto excelente jurista, escritora, corajosa nas afirmações, que eu fiquei fã; uma linguagem bem coloquial, sempre que a vejo fico feliz pela oportunidade de tributar a minha homenagem mais sincera ao seu modo de ser, de agir e ao seu pensar de enxuta contemporaneidade.

O Direito é pretensioso, ambicioso, e ele se sabe objeto de estudos de vários modelos de Ciência Jurídica. O Direito tem mesmo a pretensão kelseniana da plenitude, o Direito é pleno, o Direito é uno, da unidade, o Direito é coerente, tem todas as regras, ele mesmo aporta todas as regras de eliminação de antinomias, de incompletude, e no sentido de que tem resposta normativa para todas as questões, senão por uma norma geral positiva, dizia Kelsen, ou Bobbio, norma geral negativa para aquela regra milagrosa: - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei, ou seja, o Direito é maior que a Lei; não havendo Lei, isso não significa que não há o Direito; não havendo Lei o Direito se manifesta sob a forma de

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concessão, de reconhecimento. Eu até diria num trocadilho, não sei se mal posto, quando não há Lei, nem obrigando, nem proibindo a conduta o indivíduo tem o direito de não ter dever. Mas, o Direito como sistema de normas que a autoridade pública põe, ou recepciona, ou garante, o Direito assim ungido pela autoridade estatal, pela autoridade pública, enquanto repositório de normas, digamos, sistematicamente agrupadas, ou sistematizadamente agrupadas, o Direito quer existir a se, independentemente do intérprete, vamos chamar Norma pra facilitar o raciocínio.

A norma tem a pretensão de ser solta no mundo, soberana no mundo e prescindente do seu subjetivo, intérprete e aplicador. Ora, não há nada no mundo isoladamente colocada, todas as coisas estão conectadas, todas as pessoas, todas as coisas, todos os fenômenos, isso é científico, a física quântica também demonstra isso desde Einstein. A partir de 1905, tudo está conectado, nada está desligado de nada, até porque isto também deita raízes, agora já em Heráclito, o fundador da Escola de Éfeso, que viveu no V século antes de Cristo, e que foi também um poeta, cunhou coisas como, trocadilhos como: "Só o impermanente que é permanente"; "Tudo muda menos a mudança"; "O ser das coisas é o movimento"; "Ninguém entra duas vezes nas águas do mesmo rio".

Então, Heráclito já percebia que o mundo era feito de pares de opostos: o longe e o perto; o alto e o baixo; o estreito e o largo; o claro e o escuro; enfim, o amor e o ódio, a vida e a morte, não há nada que não tenha o seu oposto, tudo é dicotômico, tudo é binário, tudo é dual. Mas, exatamente por isso as coisas dicotômicas se estranham; no ponto de partida elas se friccionam, não se gostam, elas se tencionam, e nesse tencionamento liberam energia, e é essa energia liberada pelos pares de opostos que põe o mundo em movimento. E a natureza, o que faz a natureza? Conciliam seus pares de opostos, interessante isso, a natureza gosta da unidade, ela experimenta os pólos, individualizados, lógico, mas na perspectiva de uma composição, de um casamento, de uma harmonia. Por exemplo: a linha do horizonte é aquele ponto de eliminação dos pólos: o céu e a terra, ninguém sabe onde começa a terra, onde termina o céu, onde começa o céu, onde termina a terra; a linha do horizonte unifica essas dicotomias. O óvulo e o espermatozóide, eles se unificam no zigoto que é o embrião dos primeiros 5 dias; alguns embriologistas dizem que o zigoto ainda pode ser tido como tal até o décimo quarto dia da fecundação. Digamos: as duas margens de um rio, que faz a natureza, compõem as duas margens nessa unidade que se chama corrente, é o ponto de unidade possível entre as duas margens de um rio. As duas asas de um pássaro? Também se unificam nesse milagre do vôo, o vôo é o ponto de unidade entre os dois pólos representados pelas duas asas. Em suma, tudo na natureza é dicotômico no ponto de partida, mas é unitário no ponto de chegada, nós seres humanos é que não sabemos imitar a natureza e promover na nossa interioridade a harmonização das dicotomias. Nós temos dicotomias, como: "o antes e o depois", "o individual e o coletivo", "os interesses e os valores", "o entendimento e a compreensão". O entendimento é uma categoria mental, a compreensão é uma categoria sentimental, é mais importante compreender do que entender. Espinosa também dizia isso: "Nas coisas ditas humanas não há o que censurar, não há o que crucificar, há só o que compreender".

Em suma, são quase que infinitas as dicotomias que se agitam no nosso interior, mas talvez a mais importante delas, e a que tem a precedência no plano da tentativa de harmonização e conciliação, seja a dualidade de pensamento e sentimento, essa dicotomia é que precisa ser enfrentada com prioridade, exatamente porque quando nós conciliamos pensamento e sentimento, ganhamos esse status, essa qualidade, esse plus de subjetividade que é a nossa consciência.

Mas, eu dizia Ana Paula Barcellos, o Direito é pretensioso como se o indivíduo não tivesse nada a ver com ele, só o legislador; mas não é isso. É impossível, também vou falar quanticamente, a teoria aqui é quântica, deita raízes em Newsborn, por exemplo,

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é impossível o objeto cognoscível permanecer tal e qual, depois de infletir sobre ele o olhar atento do sujeito cognoscente. A Física Quântica diz: o observador faz o objeto em alguma medida; e é verdade isso, isso é ineliminável. Minha mulher, ela é uma exímia fotógrafa, e eu sou um péssimo fotógrafo. Ela bate uma fotografia, e eu até por curiosidade, pego a minha máquina e bato a fotografia do mesmo objeto, quando da revelação, a fotografia por ela tirada, batida, tem uma qualidade estética que a minha não tem, não tem como. E, cientificamente, só pode ser isso, algo da subjetividade dela, porque ela é uma artista, é sensível para as coisas da arte fotográfica. Algo da subjetividade dela se desprende, e vai para o objeto fotografado, adere à objetividade daquilo que vai ser clicado, e essa mescla de subjetividade e objetividade, é captada pelo clique, exatamente o clique é que tem a propriedade de apanhar a unidade entre o fotógrafo e o objeto fotografado.

Então, o intérprete do Direito, ele desencadeia reações no dispositivo interpretado, porque o dispositivo ainda não é a norma, sabemos todos disso, a norma está ali embutidamente; é como se fosse um, digamos... ainda se usa Sonrisal hoje? usa né...? (risos) Então, o invólucro do Sonrisal é o dispositivo, é o preceito, é um texto normativo. E aquele pó é o conteúdo, é a norma. O dispositivo é o invólucro da norma; a norma é o remédio em si, o invólucro é o dispositivo, é preciso rasgar o dispositivo e dele desentranhar o conteúdo que é a norma. Aquela norma não está pronta e acabada no dispositivo, só está pronta, e acabada, depois da interferência do intérprete, o intérprete desencadeia reações normativas no dispositivo.

(01:19:47)

Dr Joaquim Falcão

Mas, Ministro..., dentro dessa linha do Sonrisal, a gente tira à norma uma efervescência enorme...

(01:19:56)

Ministro Carlos Ayres Britto

(sorrindo) isso... bonito... pronto...

(01:19:57)

Dr Joaquim Falcão

... depois desaparece... (risos)

(01:19:58)

Ministro Carlos Ayres Britto

... merece palmas... (risos)

(Aplausos)

(01:20:05)

Ministro Carlos Ayres Britto

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É essa efervescência... A norma desencadeia reações no intérprete, e o intérprete desencadeia reações; não é nem na norma, é no dispositivo. É como se a norma dissesse no ponto de partida da sua intelecção. Vamos chamar de intelecção só no primeiro momento. É como se a norma dissesse quanticamente para o intérprete: - Quem é você pra me conhecer sem a minha colaboração? É preciso que o intérprete faça sucessivas viagens de idas e vindas, dele para a norma, da norma para ele, até que os dois, ele e a norma se conciliem, cheguem a um entendimento. Quem quiser que diga que isso é antijurídico a mais não poder; isso é esoterismo jurídico, coisa que o valha (risos), mas eu tenho a boa companhia dos quânticos, a partir de Enstein, e a neurociência mais e mais confirma as teorizações quânticas. De sorte que essa pretensão que o Direito tem de ser até uma camisa de força para a realidade é frustrada diante de um intérprete mais sensível, mais humano, mais consciencioso. E, o intérprete não deve ter pejo, acanhamento de fazer do seu labor interpretativo uma mescla de construção e de descoberta; ele descobre algo pré-existente no dispositivo, alguma angulação normativa, alguma propriedade normativa já estava lá no dispositivo, claro, mas algo de novo pode ser agregado e tecnicamente fundamentado. A nossa Constituição é tão sábia, que no Artigo 93, Inciso 9º diz que o Juiz é obrigado a fundamentar as suas decisões, mas não diz como fundamentar; é obrigado fundamentar.

E, me parece Ana, o nosso desafio é esse, é usar as três inteligências: a inteligência intelectual, absolutamente necessária; a inteligência emocional, é o sentimento de justiça; e a inteligência espiritual ou consciencial; e a norma de Direito está à espera dessa descoberta construção no seu processo de revelação.

(01:22:35)

(inaudível)

(01:23:23)

Dra. Leila

Então, vamos aproveitar até a indicação do Ministro quanto ao binário, e vamos chamar de dois a dois o nosso convidado, só então depois Vossa Excelência responderia. Então, o Deputado Marcelo Cerqueira que é Doutor da Faculdade Nacional de Direito, Professor de Direito Constitucional da UERJ e da UFE, livre docente em Direito de Estado pela Universidade Gama Filho, foi Procurador Geral do CADE, do INCRA, da ALERJ, integrou a Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB, e é Presidente do Instituto de Advogados Brasileiros; e a Professora Doutora Margarida Camargo, que é Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, Mestre pela PUC do Rio de Janeiro, Pesquisadora do CNPq, Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Pesquisadora da Fundação Casa de Ruy Barbosa.

(01:24:28)

Dr. Joaquim Falcão

Antes de passar a palavra para o Marcelo e para a Margarida eu queria agradecer Margarida, Ana, são colegas de outras Faculdades que vieram prestigiar aqui o Ministro, e essa interlocução da FGV com outras Instituições acho que é fundamental para o Rio de Janeiro, e para o conhecimento jurídico. Marcelo vai ter que sair depois porque Carmem Lúcia, também está chegando aqui, o Marcelo vai recepcioná-la, mas eu não queria que Marcelo fosse sem que ele participasse de uma homenagem que eu quero fazer, não somente ao Presidente Doutor Manoel Alberto, mas ao Presidente

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da Associação dos Juízes... Tonico... pelo descortínio, independência, rigor, persistência com que ambos lideram a defesa do Poder Judiciário do Rio de Janeiro nesse momento, em que, contra o sentimento de justiça dos cariocas e dos brasileiros, o Poder Judiciário é covardemente ameaçado. Eu peço então aos dois uma salva de palmas pela liderança.

(Aplausos)

(01:26:25)

Dr. Marcelo

No Górgias, Platão faz Sócrates dizer, que a retórica é a culinária da filosofia. Olha, eu já vou para os 50 anos desse exercício de quebrar pedra, esse ofício meu, e, é raro, eu também nunca tinha ouvido um professor, um doutor, um juiz, fazer uma palestra tão bonita, com tanta substância, com tanta emoção, com tanto coração, com tanta humanidade sem falar uma palavra de retórica, é Direito puro, e é sentimento puro. Eu quero dizer que o Juiz mais sintonizado com o sentimento do povo brasileiro é você. Não é Falcão? É o Juiz mais sintonizado com o sentimento do povo brasileiro, e as necessidades da Nação Brasileira.

(01:27:32)

Dr. Joaquim Falcão

Marcelo, você como sempre avançou o meu final (risos)... O meu final evidentemente que passava por Pernambuco. E tem um autor, J. Borges, meu irmão Corinto conhece bem, que é o autor de Cordel, enfim, é o grande nome de Cordel do Brasil. O J. Borges vendia durante décadas 5.000 exemplares daqueles livrinhos de Cordel nas feiras, aos sábados, de Caruaru, multipliquei isso por 20 anos, ele com certeza vendeu mais do que Paulo Coelho. E um dia..., eu gosto muito dele, conversando com ele, disse assim: Borges, qual é o seu mistério? Como é que você vende tanto, por tantos anos, etc. e tal... aí, ele disse o seguinte: - Ah, Joaquim, a única coisa que eu tenho que fazer é bater no sentimento do povo. O Senhor bate no sentimento do povo.

(Aplausos)

(01:29:02)

Dr. Marcelo

Professor, Joaquim Falcão e eu, temos uma sintonia fina porque trabalhamos juntos. Eu estou numa casa em que eu entrei menino, e sou pós-graduado por aqui. Outra questão também é a seguinte, eu ao longo da minha vida, como palestrante, como ouvinte eu jamais vi ao final de uma palestra uma salva de palmas como essa que o Ministro recebeu aqui, ele não só está identificado, como ele se identifica, e é uma relação entre ele, que é uma relação que é muito mais de sentimento e de consciência do que de outra coisa. Ele deve receber não só essa homenagem não, mas deve receber todas as homenagens, os poetas da minha estação primeira querem que receba as flores em vida (risos), o carinho e a mão amiga.

Eu vou fazer uma pergunta Ministro que, sem querer incomodá-lo, que são as seguintes: - O controle concentrado do Supremo operou-se em dois momentos: o controle do Legislativo e o controle do (01:18:25?) Administrativo. No controle do

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Legislativo, em que o Supremo errou, foi feita uma proposta de lei popular que foi aprovada pela Câmara e que o Congresso saiu da (01:30:37?) dele, foi aprovada pelo Congresso, sancionada pelo Presidente, e entrou em vigor e teve eficácia, é a Lei da Ficha Limpa, portanto, não estamos só no campo do social não, mas estamos no campo da democracia brasileira, porque é necessário que o Congresso tenha verticalidade, não é possível essa corrupção, e esse Congresso..., é necessário, a Ficha Limpa ainda é o início de uma retomada de valores éticos e republicanos que esse Congresso não representa, e por não representá-lo, ele é um perigo a democracia. Pois bem, o Supremo afastou-se do social e deferiu a Lei da Ficha Limpa não aplicando numa eleição fundamental, num Congresso que está desmoralizado, até porque recentemente a maioria votou em causa própria no caso da Deputado Roriz, com uma defesa prévia, uma ignomínia, um Congresso que já foi um Congresso de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, esse Congresso que resistiu a Democracia e fez a Anistia e a transição.

A outra, é que a competência do Ministro da Justiça é uma competência terminativa no sentido de conceder o refúgio, portanto, a competência do Ministro da Justiça, ela é definitiva, ele concede, ele concede, o refúgio e pronto, e aí terminou. Entretanto, uma Nação estrangeira, sem legitimidade ativa argúi no Supremo Tribunal Federal uma possibilidade de extradição, não conhecida pelo Direito Brasileiro, e não conhecida por nenhuma Nação soberana, e o Supremo conhece, e posteriormente; primeiro conhece, não devia ter conhecido, conhece; e posteriormente acompanha ao Ministro da Justiça que manteve o Cézare Battisti aqui por questões humanitárias. Nesse segundo momento, o Supremo Tribunal Federal, ele decide com o tema da palestra, da sua palestra, o resumo da sua palestra é o seguinte: - Há de haver um direito à compaixão, esse é o substrato da sua palestra. Portanto, no primeiro caso, o Supremo julgou de costas para a necessidade do país, a Lei da Ficha Limpa tinha que ser aplicada, e ela tem que ser aumentada, e tem que ser rigorosa, e a corrupção, ela não pode continuar sob pena da democracia ficar em perigo, e a corrupção é coisa da elite, quem corrompe é quem tem dinheiro, é a classe dominante, é a burguesia, são os empreiteiros, é o dinheiro, é o capital estrangeiro, a corrupção é aí; não é uma questão moralista de Jânio Quadros não, é uma questão da possibilidade de manter essa federação imperfeita, desequilibra esse governo, enfim, desse lado. E, do outro lado, foi pelo Direito da compaixão. Ministro, para onde é que o Supremo está nos levando?

(Aplausos)

(01:34:30)

Dra. Margarida

Boa tarde a todos. Parabenizo muito a iniciativa da realização desse evento por parte da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Agradeço muito a oportunidade de estar aqui. Agradeço o convite feito do Professor Joaquim Falcão, quem está liderando essa Escola, bastante renomada, reconhecida no mundo acadêmico, e é uma oportunidade muito honrada pra mim estar aqui, podendo, enfim, conversar com o Ministro do Supremo Tribunal Federal, cujo trabalho eu tenho tido oportunidade de acompanhar, e com muito interesse, com muita admiração.

Ministro, eu havia preparado uma pergunta inicialmente que está no foco das minhas preocupações que é a questão da segurança jurídica, da previsibilidade, da conduta devida. Enfim, um pouco apontando, ou encaminhando, a questão do minimalismo, não minimalismo, do Poder Judiciário, nessas questões básicas do Estado de Direito. Mas, a sua palestra me instigou no sentido distinto, diferente, porque eu vi nela suscitar uma perspectiva jus naturalista, e eu como Professora de Teoria do Direito

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tenho uma atenção muito especial para essas questões do positivismo, do jus naturalismo, e vi isso em diversos momentos, inclusive na resposta trazida aqui para a Professora Ana Paula. Então, passa da imanência divina, fala de Deus, da natureza, una, equilibrada, etc., e de um humanismo ontológico, diria que é um jus naturalismo que toma como base um humanismo ontológico, estaria ele na objetividade da Constituição, na subjetividade do intérprete, e no acasalamento dessas duas dimensões necessárias, como o Senhor trouxe aqui.

Mas, pra questões concretas e pra enfrentar os desafios que o Supremo Tribunal Federal, Poder Judiciário de um modo geral, ele é chamado a resolver. O Senhor acha então, que a questão principal, poderíamos dizer, que ela recai sobre um processo de seleção de Juízes humanistas, porque falar do Senhor é fácil, mas temos um Poder Judiciário grande pela frente, enfrentando desafios concretos, o CNJ chamando atenção pra eficiência, e a previsão. Enfim, se objetivamente a questão principal deveria recair sobre o processo de seleção para Juízes humanistas. Muito obrigada.

(01:37:12)

Dr. Margarida

Margarida quer saber quem vai substituir a Ellen Grace, quer dizer, no fundo é isso. (risos)

(01:37:22)

Ministro Carlos Ayres Britto

Muito homenageado..., a Professora Margarida e o Professor querido também, e como o Marcelo Cerqueira, são ícones, são referências, e as observações são sempre instigantes, sempre.

Para responder a intervenção do Marcelo Cerqueira fica mais fácil pra mim, porque eu também fui a favor da Lei da Ficha Limpa desde uma decisão que proferi em 2006, no caso Eurico Miranda. Desde aquela época que eu tirava, desentranhava da Constituição a norma de que como intérprete eu precisava para dizer, concluir, o que me parecia o óbvio, o eleitor é soberano, diz o Artigo 14 da Constituição: - A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal, pelo voto direto, secreto, valor igual para todos, etc. O eleitor é soberano, soberano é o que está acima de tudo, acima de todos, vem de super homini. Esse eleitor soberano tem o direito de saber tim tim por tim tim da vida daqueles que tem a pretensão de representá-lo, não precisa que lei diga isso. Ele deve ter acesso à biografia, a vida pregressa do candidato, e essa expressão vida pregressa está na Constituição muito antes da Lei da Ficha Limpa, e vida pregressa só pode ser vida passada, vida pretérita, vida pregressa, vida futura. Daí Professor Marcelo, quando o Supremo decidiu, com todo respeito, não quero fazer crítica, que deveríamos esperar 2 anos para aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa eu não me contive, e lhe respondi, então, a moralidade administrativa vai ficar em banho-maria, vai ficar de quarentena, dizendo: - Olha, fica quietinha aí porque você só vai funcionar daqui a 2 anos; não me parecia decisão compatível com a Constituição Federal, mas majoritariamente o Supremo decidiu por modo diferente a partir de fundamentos tecnicamente bem urdidos, bem lançados. Eu não perco oportunidade pra dizer que eu sou admirador dos Ministros que trabalham naquela Casa, e acho que eles estão à altura do cargo, e são corajosos, lúcidos, técnicos o suficiente para fundamentar na direção contrária a minha os respectivos votos.

Quanto a Cézare Battisti eu também concordo inteiramente. Eu me lembro que quando votei na matéria citei Manuel Alceu Afonso Ferreira, que quando era estudante de Direito na PUC de São Paulo, foi perguntado por um Professor de Direito

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Internacional Público sobre quem dava a última palavra em matéria de extradição, se era o Supremo, ou se era o Presidente da República. E, ele respondeu, desde aquela época, mais de 40 anos, ele respondeu: - Se não, não; se sim, talvez; ou seja, se o Supremo diz: - Não é não, não há condições de extraditabilidade; ponto final. Mas, se o Supremo diz: - Sim; cabe ao Presidente da República entregar ou não o extraditando porque a extradição é um Instituto de Direito internacional, não cabe ao Supremo Tribunal Federal monitorar o Presidente da República na protagonização de relações de Direito Internacional. A Constituição habilita o Presidente da República com exclusividade para fazê-lo, o Supremo só entra no circuito extradicional por efeito do inciso II do Artigo 4º da Constituição: - Prevalência dos Direitos Humanos. E curioso, na Itália é assim também, e até a legislação favorece mais o Executivo do que a nossa. Eu me dei ao trabalho de ler o Código, as Leis Processuais Penais da Itália, e lá encontrei, dizendo que o processo Extradicional começa com o Executivo e termina com o Executivo, com uma diferença do nosso, quem dá a última palavra lá não é o Presidente da República; disse bem, é o Ministro da Justiça, Marcelo Cerqueira disse muito bem, quem dá a última palavra lá é o Ministro da Justiça. De sorte que, mas também fui voto vencido, apenas respeitosamente é que estou registrando o fato, mas com nome, gênero, número e grau com o seu pensar jurídico, e com a sua manifestação de ordem eminentemente cívica.

Bem, Professora Margarida, eu não me defino como jus naturalista não. Eu apenas entendo que o positivismo não consegue eliminar do Direito positivo, como o nosso, certas categorias que deitariam raízes no jus naturalismo. Vou citar o artigo da Constituição, não sei se é o 220 que fala de terras indígenas... qual é o artigo? deixe-me ver aqui, se é o 220... Eu estou aqui com a Constituição, eu não tenho boa memória assim pra citar artigo não... vamos lá... o que diz a Constituição? diz... não é o 220... diz assim: ficam reconhecidos aos índios a posse, qualquer coisa assim, ficam reconhecidos os direitos sobre a posse, os direitos... é melhor ler... momentinho... tenham paciência...

(01:43:53)

Alguém responde: 231.

(01:43:55)

Ministro Carlos Ayres Britto

Vejam que postulação jus naturalista, seria: - "São reconhecidos aos índios, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". A Constituição não diz, são outorgados, os direitos, são reconhecidos. Então, isso é um reconhecimento de algo pré-existente à própria Constituição; segundo costumes, não nossos, mas dos próprios índios. Então, esses conceitos de uso, de posse, de ocupação fogem do Direito Civil e passam a ganhar uma postura constitucional. Há um conceito constitucional de posse, de ocupação, de tradicionalidade de ocupação; e esses direitos; é como se nós no Supremo apenas declarássemos o direito. Eu sei que isso, à luz do positivismo termina sendo uma heresia, porque o que seria de direito natural foi positivado, mas é Constituição se dobrando a evidencia de que certas categorias, como que são ontològicamente de Direito natural, e não pode deixar de penetrar no Direito positivo, como categoria de Direito positivo. São reconhecidos aos índios; eu acho que nunca a Constituição disse isso, não me lembro da Constituição dizer isso, diz: são outorgados, são conferidos - ou seja, doravante, mas são reconhecidos, significa, desde sempre, quando você diz: são outorgados - está trabalhando com categoria do doravante; quando usa: são reconhecidos - você está trabalhando com categoria do desde

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sempre, e foi o que fez a Constituição. A sua instigação é maravilhosa, as Escolas da Magistratura, do Ministério Público, das Defensorias Públicas, da Advocacia deveriam mesmo fazer focados Congressos, focados Simpósios, focados Cursos na formação dos Magistrados, e não só na informação técnica. Por quê? Porque o concreto uso das informações de pura tecnicalidade jurídica vai depender da formação do magistrado, e quanto mais se resgate do ser humano a sua dimensão humanista, que é o que caracteriza ontologicamente, mais correto. Por exemplo, Professora, todos nós queremos o ideal da Justiça, a Constituição fala na Justiça como jurisdição, fala da Justiça como Poder Judiciário, e no preâmbulo fala da Justiça nem como jurisdição, nem como Poder Judiciário, e sim, como valor ao lado daqueles outros 5 valores: desenvolvimento, bem-estar, segurança, liberdade e igualdade; dizendo a Constituição que são 6 valores supremos de uma sociedade pluralista, fraterna e sem preconceitos. A Justiça aí é como valor, valor objetivo, a idéia de Justiça como locomotiva social, como usina de inspiração de comportamentos de massa, a Justiça como uma idéia, força, que plasma caracteres, subjetividades. A Professora Ana disse que os alunos dela do ponto de partida das discussões, ele já tem um sentimento de justiça, então, justiça como sentimento. Mas, quem definiu justiça até hoje? Há uma definição de Justiça que é tão vaga que não merecia nem ser catalogada como definição, é a de Ulpiano: "Viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um o que é seu"; isso é pura retórica, porque você vai perguntando: Qual é o seu de cada um? O que é viver honestamente? O que é não lesar a ninguém? Isso não é conceito, isso não é definição, definição é marcar limite, e isso não marca limite, nem semântico, nem significante, é uma proposição em aberto na sua significação.

Eu medito há 40 anos sobre justiça; é um tema fascinante, que me fascina, me queima as pestanas, me empolga, o máximo a que eu cheguei de compreensão, não de entendimento, de compreensão foi o seguinte, a justiça é um valor que não se realiza sozinha, só pode se realizar na medida em que outros valores sejam realizados; é como a beleza, a beleza de um quadro, a beleza não é o quadro, é o que qualifica o quadro como estético, está no quadro, mas não é o quadro, e não existe fora do quadro, não há beleza, senão não há mulher, senão não há paisagem, senão não gestos, senão não há conduta. Assim é a justiça, a justiça não existe por si mesma, é preciso que ela esteja acoplada a um valor, digamos: liberdade, igualdade, fraternidade, solidariedade, transparência, legalidade, impessoalidade. Para qualificar esse valor na direção dela, Justiça, de que modo? Me parece que com uma cota, uma dose, um quantum de proporcionalidade, razoabilidade, então a Justiça está referida aos outros valores, e os outros valores só merecem um qualificativo substancialmente justos se referida à Justiça. Como é que se faz a passagem dos outros valores para a Justiça? Mediante a aplicação dos outros valores debaixo de uma determinada cota de razoabilidade, proporcionalidade. Se eu pudesse resumir proporcionalidade e razoabilidade numa palavra, eu chamaria ponderabilidade. A liberdade só é justa se dotada de um quantum de razoabilidade, um quantum de proporcionalidade. Mas, orteguianamente, porque a Justiça se manifesta numa proposição legislativa em abstrato? Mas é fácil falar da Justiça em abstrato, eu quero saber da Justiça no caso concreto, a Justiça como conteúdo de uma decisão judicial em concreto, e não como conteúdo de uma formulação legislativa em abstrato. Então, se a Justiça está referida aos outros valores, então, ela só se configura na medida em que os outros valores sejam configurados, os outros valores estão referidos à Justiça. E, eu falo de ponderabilidade; o que é ponderabilidade? Qualidade do que é ponderável; lógico. Mas, ponderável em termo de razoabilidade e proporcionalidade, e só o caso concreto é que vai me dizer o que é razoável e o que é proporcional; eu não consigo superar essa dificuldade. Então Professor, alonguei na resposta, mas é que o tema é fascinante...

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(01:51:32)

Dr. Joaquim Falcão

Ainda bem que o Senhor não chegou à conclusão, senão acabava com os Professores de Direito (risos), nós perdíamos...

(01:51:39)

Ministro Carlos Ayres Filho

... apenas pra não deixar a oportunidade, não confundir racionalidade com razoabilidade. Racionalidade é uma pretensão de validade, ou de validez pra todo e qualquer caso, atemporalmente, aespacialmente. É diferente de razoabilidade que se caracteriza pela contingencialidade da existência, da vida, ou seja, o Juiz humanista, ele pelo menos faz um esforço de, a partir do transparentemente justo, salientemente justo, induvidosamente justo, justo para além de qualquer dúvida, ele buscar a formatação de uma resposta jurisdicional também justa.

(01:52:36)

Dra. Leila

Antes de passar às duas últimas perguntas, eu queria registrar aqui a presença do Desembargador Roberto Guimarães, e do Desembargador Moinhos Pinheiro que faz parte da comissão de Concurso para Magistratura que está em andamento. Então, estou aqui convidando para as últimas perguntas a Dra. Roberta Frankel, que é Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, ex-Coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, e Pós-Graduada em Direito Civil Constitucional pela UERJ. E, também, o Professor Diego Werneck, que é doutorando em Direito pela Yale Law School, e Professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Com a palavra Doutora.

(01:53:30)

Dra. Roberta Frankel

Boa tarde a todos. Gostaria primeiro de agradecer o convite, a oportunidade de estar aqui, de assistir esta brilhante palestra que o Doutor Carlos Ayres de Britto proferiu. Eu gostaria de fazer uma pergunta de ordem mais prática. Primeiro eu preciso fazer um breve resumo de uma situação que está acontecendo aqui no Rio de Janeiro. A população pobre do Rio de Janeiro está sofrendo intenso processo de remoção, em razão da preparação da cidade para a Copa e das Olimpíadas. O Poder Público Municipal vem intensificando uma prática que era comum na década de 60 e que resultou numa cidade violenta e desigual, porque esse processo desloca a pessoa pobre dos centros urbanos pra locais distantes, onde não existe oferta de emprego, e nem serviços de infra-estrutura. Outra oportunidade que é dada a essas pessoas é aceitar uma indenização irrisória, que não é o suficiente para aquisição de uma moradia nos moldes que a pessoa tinha antes. E, essa pratica viola uma série de princípios constitucionais como: direito à moradia, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio objetivo da erradicação da pobreza, da marginalização. Então, eu gostaria de saber nesse contexto de violações dessas garantias constitucionais, como reage a consciência, o pensamento, e o sentimento da STF diante desse quadro de violações?

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(01:55:04)

Professor Diego Werneck

Obrigado Ministro pela presença. Queria agradecer também em nome dos nossos alunos de graduação, muitos dos quais estão aqui, provavelmente a primeira vez que eles têm a chance de assistir um Ministro do STF conversar com eles; seus Professores ao vivo.

A minha pergunta parte de algo que o Senhor falou ao início da sua apresentação, que sendo a Constituição, uma Constituição quase revolucionária, progressista, isso tem certas implicações sobre como você deve olhar pra ela, e uma das implicações que o Senhor mencionou é de que se você ao interpretá-la é menos ambicioso do que o próprio patamar de ambições que a Constituição colocou; isso seria um caso de infidelidade hermenêutica; e outra implicação é de que a legitimidade do STF como guardião dessa Constituição está ligada a capacidade dele de ser fiel. Então, esse binômio: fidelidade - infidelidade não é só o que está escrito, mas as ambições que defluem do que está escrito.

E, a minha pergunta é a seguinte: - Eu queria pensar, pensar alto aqui, quais são as implicações dessa estrutura que o Senhor colocou pra maneira como o STF se relaciona com o seu próprio passado, recente.

Explicando: - Muitas pessoas diriam que as decisões do STF com relação ao que a própria Constituição determinava nos primeiros anos, após a promulgação da Constituição poderiam ser um caso de infidelidade hermenêutica no sentido que o Senhor colocou. Na medida em que o STF muitas vezes foi muito menos ambicioso do que as ambições que a própria Constituição estaria colocando, na marca do pênalti diante do STF.

Essa é uma maneira de encarar a coisa, essa maneira de encarar a coisa nos levaria a dizer que o STF estava errado. No início dos anos 90, já que muitos desses temas que o Senhor mencionou como exemplos de protagonismos do STF seriam impensáveis naquela época por decisões do próprio STF. Mas existe uma outra narrativa possível, que me parece que em alguns votos de casos recentes, mandados de Injunção é uma narrativa que aparece que não é de: estávamos errados na época, mas sim; o contexto mudou. Então, acho que tem uma tensão entre essas duas narrativas; ser menos ambicioso do que a Constituição desde o início era infidelidade hermenêutica. E a outra seria: não, existe o momento, e o momento da fidelidade plena é agora. Eu queria só ouvir o Senhor a respeito dessa tensão.

(01:57:45)

Ministro Carlos Ayres Britto

As duas respostas ao mesmo tempo, isso que é uma provocação. (risos) A fidelidade da Constituição é nosso dever irrestrito, inafastável, até o povo sabe disso. Eu contava ali na ante-sala que recentemente, não sei se contei aqui para o público, contei do lavador de carro? Não... não contei. Eu e minha mulher estávamos num dia de domingo, nos dirigindo a um restaurante, quando voltamos encontramos o nosso carro guardado por um morador de rua, seus 40, 45 anos, e ele disse... me conhecia: Ministro Ayres Britto eu tomei conta do carro pra ninguém lhe dar prejuízo, etc., danificar seu patrimônio, ele era muito inteligente, articulado. Eu, claro que agradeci, procurei um trocado pra recompensá-lo de alguma forma, não tinha, e a minha mulher não tinha. Então, eu disse pra ele: olha, sinto muito, agradeço, sinto muito não poder lhe retribuir, fica pra outra vez, fico lhe devendo. E, ele me respondeu assim de bate-pronto, numa linguagem coloquial: Ministro, o Senhor não me deve nada, basta cumprir a Constituição; quer dizer, isso é maravilhoso! (aplausos) extraordinário isso!

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Eu acho que só no Brasil isso acontece só no Brasil. Esse homem demonstrou pensamento, sentimento, consciência com esse tipo de resposta ao mesmo tempo. Quando uma Constituição entra em vigor ela enfrenta dificuldades, sobretudo numa Constituição progressista que renova, areja a democracia, atualiza os costumes, combate a corrupção, ela encontra dificuldades, ela só é do povo, a Constituição, enquanto está sendo elaborada, depois que é elaborada a comunidade jurídica vem e se apropria dela, é como num verso de Manuel de Barros; Manuel de Barros estava vendo umas telas de Van Gogh naquela fase que Van Gogh deu de pintar Girassóis, e ele vendo girassóis escreveu o seguinte: em Van Gogh um girassol se apropriou de Deus, nós nos apropriamos da Constituição e reivindicamos o monopólio da sua interpretação, por isso que as audiências públicas, os portais da transparência, os amici curiae tem uma importância notável na abertura da Constituição para a sociedade civil e na abertura das janelas do Direito Constitucional para o mundo circundante. Essa dificuldade que a Constituição tem de operar de plano é agravada pelo fato de que nós, seus intérpretes como que instintivamente não queremos perder nossas teorias, nossos livros, nossos votos, nossas aulas, nossas petições, nossos pareceres. Há uma instintiva reação na modernidade constitucional, ela precisa de algum tempo, é como diria aquele notável uruguaio, aportuguesando a pronuncia Couture: O tempo se vinga das coisas feitas sem a colaboração dele. É como se nós da área jurídica internalizássemos essa advertência e disséssemos: - Não, vamos com calma, vamos devagar que o santo é de barro. E a Constituição fica experimentando uma quarentena que muitas vezes se prolonga para além do razoável. Você falou em Mandado de Injunção. Eu me lembro que quando estávamos votando sobre Mandado de Injunção naquele caso da greve dos Servidores, eu fiz um ligeiro trocadilho, eu disse o seguinte: - Olha, só cabe Mandado de Injunção diante de uma norma constitucional de eficácia limitada, ela promete o direito, promete investir alguém na nacionalidade, na soberania, na cidadania, acena com a outorga; na verdade outorga direitos e garantias, mas não contém em si mesma, ela Constituição, os elementos normativos de aplicabilidade plena daquela promessa, vamos chamar assim, claro que nenhuma norma é promessa. Então, eu disse: - Só cabe Mandado de Injunção diante de uma norma constitucional de eficácia limitada porque precisa ser integrada na sua vontade normativa pela mediação, ou legislativa, ou executiva, só cabe, portanto, o ajuizamento de Mandado de Injunção diante de uma norma constitucional de eficácia limitada. Como é que nós do Judiciário vamos responder com uma sentença de eficácia limitada? Não é um tremendo paradoxo? Diante de uma norma constitucional de eficácia limitada vem o Judiciário e produz uma decisão de eficácia limitada. Evidente que o Judiciário só pode produzir uma decisão de eficácia plena para conferir ao Mandado de Injunção aquilo a que ele se destina, o seu caráter mandamental. Aí, com o tempo, por força da evolução da sociedade, da imprensa, doutrinadores como, por exemplo, Ana de Barcellos, a Doutora Margarida, certamente o Doutor Werneck, tantos outros aqui...

(02:03:47)

(inaudível)

(risos)

(02:03:51)

Ministro Carlos Ayres Britto

Não diria isso porque também ele...

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(02:03:53)

(inaudível)

(risos)

(02:04:00)

Ministro Carlos Ayres Britto

... ele tinha uma liderança intelectual, mas um grande jurista sem nenhuma dúvida, um grande jurista. Aí, com o tempo, no imaginário da gente imperceptivelmente Eduardo Couture vai sendo substituído por Victor Hugo. O que foi que disse Victor Hugo? Nada é tão irresistível quanto a força de uma idéia cujo tempo chegou. Então, nós os Ministros do Supremo hoje não somos melhores do que os de ontem, nós somos beneficiários da evolução do correr do tempo, essa abertura da sociedade para novos valores, por isso é que, eu acho que não estamos, digamos assim, produzindo sentenças aditivas, ou incorrendo em protagonismo judiciário, nós estamos apenas interpretando a Constituição com mais atualidade, o que é natural, é o nosso dever, cada geração é beneficiária do conhecimento da anterior porque o conhecimento é ontologicamente cumulativo. Eu tenho um netinho de 2 anos, ele sabe mais de mexer no meu celular do que eu sei, e ninguém ensinou; isso é como o instinto, alguém ensina os animais ao acasalamento? e nem os homens também. Eu assisti um filme há muito tempo, não lembro mais o filme, tão bonito, romântico de dois jovens, um rapaz e uma moça, eles naufragaram e ficaram muitos anos numa ilha, Lagoa Azul, belíssimo aquilo, quando chegou no tempo certo do acasalamento os dois eram professores (risos), sabiam tudo, porque é isso mesmo. Agora, quando o Supremo; a sua pergunta Professora, quando o Supremo tem a oportunidade de se debruçar sobre questões sociais, o sentimento à meu juízo deve estar no ponto de partida, claro que o ponto de chegada é a consciência, mas no ponto de partida, sobretudo, é o sentimento, até porque em matéria de Direitos Sociais existe, não é Professora Ana Paula, a teoria da vedação do retrocesso ainda com mais força. E, os Direitos Sociais no fundo, no fundo, no fundo eles são a condição de materialização de gozo, de viabilidade dos direitos individuais. Por exemplo, pense-se no direito individual a inviolabilidade domiciliar; esse direito não funciona pra quem morra na rua, pra quem estende na hora de dormir uma rede sobre dois galhos de árvore, digamos, pra ter onde embalar o seu próprio abandono, não tem domicílio, não tem residência. Aí diz: - É inviolável o sigilo da correspondência telegráfica; quem vai mandar telegrama para uma pessoa que mora na rua literalmente? Ou então, diz a Constituição: - Assegurada a liberdade de locomoção, que é uma liberdade de ir, de vir, que também a de ficar, significa nem ir, nem vir. Quando a pessoa não tem casa e vive literalmente na rua, o deslocamento não é opcional, é uma compulsão, não existe liberdade de locomoção, existe a compulsão, a imperiosidade da locomoção. Então, a Constituição fica absolutamente sem sentido no plano dos direitos individuais se o indivíduo não assiste um mínimo de bem estar material. Aliás, como dizia Santo Agostinho. Santo Agostinho dizia: - Sem o mínimo de bem estar material não se pode se quer ser vir a Deus. Hoje há uma precedência dos direitos sociais sobre os direitos individuais, porque os direitos sociais ele são a própria condição objetiva de rezabilidade dos direitos individuais. Então, eu espero com isso haver respondido as provocações.

(Aplausos)

(02:08:43)

Dra. Leila

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Eu queria fazer aqui um agradecimento especial ao Desembargador Manuel Alberto, Presidente do Tribunal de Justiça, e o primeiro Presidente que vem aqui prestigiar o nosso Diálogo com o Supremo, muito obrigada Presidente.

(02:08:52)

Desembargador Manuel Alberto

Um exemplo semelhante ao Ministro Ayres de Britto. Nós temos lá em casa uma moça, uma baiana que trabalha lá, que é uma das pessoas que eu mais admiro na minha vida, uma pessoa incomum. Eu estava um dia na cozinha, ela estava sentada, eu em pé, eu queria até dizer ao Senhor que eu me relaciono muito bem com a Norma, eu não tenho dificuldade em relação à Norma porque a minha esposa chama-se Norma. (risos) Então, eu estava em pé quando a Norma chegou, eu virei pra Norma e falei assim: - Tem um mosquito na sua cabeça, posso matar? Não tinha mosquito nenhum. Ela falou: - Pode. Aí eu fiz assim, como se fosse dar um tapa com força na cabeça da Norma, e a Angelina percebeu a brincadeira começou a rir. Aí eu virei pra Norma e tive a infelicidade de dizer o seguinte: - Norma, a Angelina não está se comportando com você não, porque ela está rindo. Ela virou pra mim e perguntou assim: - O Senhor já ouviu falar na Lei Maria da Penha? (risos) Eu não tinha como negar que tivesse falar na Lei Maria da Penha. Falei: - Já, por quê? Não precisa bater basta ameaçar. (risos)

(02:09:56)

Dr. Joaquim Falcão

Eu agradeço ao Senhor Sales que está aqui, que sua revista presta um serviço imenso não somente no Rio, mas ao Brasil inteiro. Tem várias pessoas que querem perguntar a primo manggere, poi filosofare. Então aí, o nosso Ayub vai encerar em nome da FGV e lhe agradecer.

(02:10:20)

Dr. Ayub

Boa tarde a todos. Ministro foi um prazer recebê-lo aqui em nossa casa, e eu quero fazer uma constatação, talvez o Senhor não tenha a noção, mas o Senhor falou por quase 3 horas, 2 horas e meia e parece que não foram nem 10 minutos dada a leveza da sua linguagem, da sua postura, e ao mesmo tempo aprofundou-se no conteúdo, aí eu me lembrei do Sonrisal. Foi muito bom tê-lo aqui, e uma constatação que eu faço, eu sou Juiz à 17 anos de um concurso que acredito, Professor Joaquim, tem sido um dos melhores concursos, não por mim certamente, mas porque uma das colegas integrantes do meu concurso foi a querida amiga Andrea Pachá. Então, certamente o nosso concurso foi muito bom.

Eu faço o encerramento de maneira bem simples, pedindo, quase que implorando que Vossa Excelência não nos esqueça e volte sempre, o mais rápido possível. Não tenho delegação, não falo em nome do Professor Joaquim Falcão, mas tenho certeza que ele endossa essas palavras no sentido de que a Casa é sua, volte sempre e não nos deixe esperar por mais ensinamentos.

Eu declaro assim encerrada a sessão, agradecendo. Um bom dia a todos! Muito obrigado.

(Aplausos)

FIM