16
FILOSOFIA, CONHECIMENTO E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA Damião Bezerra Oliveira 1 Waldir Ferreira de Abreu 2 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A história da Filosofia fornece uma imagem canônica e bem instituída desse campo de saber ou dessa forma de existência, que é a filosofia, que a coloca numa relação tensa com a sociedade 3 , mormente com a que se organiza em moldes democráticos. Essa tensão é bem representada na clássica contraposição do pensamento filosófico socrático- platônico e também do aristotélico com a sofística ou na distinção derivada que dicotomiza episteme e doxa. O núcleo desse confronto só pode ser enxergado a partir de uma discussão do que seja a racionalidade, o conhecimento e os tipos de finalidades a que devem estar ou não subordinados. Pressupõe, também, a existência de uma sociedade ampla como topos da doxa, por um lado, e de uma comunidade de “sábios” destacada dessa enquanto espaço da episteme, por outro. O ponto de diferenciação seria o saber ou mesmo o desejo específico de conhecer que caracterizaria essa comunidade, identificando-a a um modo de vida específico. 1 Professor de Filosofia da Educação/ UFPA. E-mail: Damiã[email protected] Fone: (91) 3212-9959/ cel.9172-0331. Av. Engenheiro Fernando Guilhon, 2167. Bairro da Cremação. CEP. :66045200. Belém/PA. 2 Professor de Didática/UFPA e aluno do curso de graduação em Filosofia nessa mesma universidade. E-mail: [email protected] . Cel. (91) 9121.6960. 3 Hannah Arendt (1988) afirma que a compreensão de sociedade (“boa sociedade”) como um domínio que incluía apenas as pessoas com tempo para o lazer e desfrute cultural , ampliou-se com o advento da sociedade de massas em que o elemento de compartilhamento e inclusão de todos é o entretenimento. Essa seria a via pela qual se constituiria uma sociedade inclusiva.

Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

FILOSOFIA, CONHECIMENTO E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

Damião Bezerra Oliveira1

Waldir Ferreira de Abreu2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A história da Filosofia fornece uma imagem canônica e bem instituída desse

campo de saber ou dessa forma de existência, que é a filosofia, que a coloca numa

relação tensa com a sociedade3, mormente com a que se organiza em moldes

democráticos. Essa tensão é bem representada na clássica contraposição do pensamento

filosófico socrático-platônico e também do aristotélico com a sofística ou na distinção

derivada que dicotomiza episteme e doxa.

O núcleo desse confronto só pode ser enxergado a partir de uma discussão do

que seja a racionalidade, o conhecimento e os tipos de finalidades a que devem estar ou

não subordinados. Pressupõe, também, a existência de uma sociedade ampla como topos

da doxa, por um lado, e de uma comunidade de “sábios” destacada dessa enquanto

espaço da episteme, por outro. O ponto de diferenciação seria o saber ou mesmo o

desejo específico de conhecer que caracterizaria essa comunidade, identificando-a a um

modo de vida específico.

A expressão canônica dessa questão pode ser perspectivada, ainda, na clássica

divisão aristotélica, pela qual se hierarquizada a atividade humana e cognoscente em

prática, poética e teorética, com as suas respectivas justificativas em termos de interesse

intrínseco ou extrínseco do conhecimento.

Quando a Filosofia assume-se como busca autotélica do conhecimento que teria

compromisso, fundamentalmente, com a verdade enquanto adequação do ente com o

pensamento, ela se afasta da sociedade enquanto um coletivo no qual, inegavelmente,

espera-se “resultados” práticos e produtivos do conhecimento em consonância a uma

diversidade de situações e relações, como tão bem percebeu a sofística.

Pensamos, pois, que essa questão é fundante em qualquer reflexão que relacione

Filosofia e sociedade, não apenas como um dado histórico cujo sentido se circunscreve,

1Professor de Filosofia da Educação/ UFPA. E-mail: Damiã[email protected] Fone: (91) 3212-9959/ cel.9172-0331. Av. Engenheiro Fernando Guilhon, 2167. Bairro da Cremação. CEP. :66045200. Belém/PA. 2Professor de Didática/UFPA e aluno do curso de graduação em Filosofia nessa mesma universidade. E-mail: [email protected]. Cel. (91) 9121.6960. 3 Hannah Arendt (1988) afirma que a compreensão de sociedade (“boa sociedade”) como um domínio que incluía apenas as pessoas com tempo para o lazer e desfrute cultural , ampliou-se com o advento da sociedade de massas em que o elemento de compartilhamento e inclusão de todos é o entretenimento. Essa seria a via pela qual se constituiria uma sociedade inclusiva.

Page 2: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

em grande parte ao pensamento grego, mas especialmente enquanto uma inscrição que,

de modos diversos, mantém o seu vigor contemporaneamente.

Acrescente-se que a problemática supramencionada constituiu-se em íntima

relação com o importante questionamento do que é ou não possível de ensinar para o

exercício da cidadania democrática, o que inclui a atividade filosófica como forma de

conhecimento e modo de vida.

Com base nesse quadro teórico apresentado, procurar-se-á entender de que modo

a racionalidade e o existir filosófico precisariam ser pensados para atender as

expectativas de uma sociedade democrática4.

2 O CONFLITO ENTRE FILOSOFIA E SOCIEDADE

Jean-Pierre Vernant (1989) sustentou a tese de que na Grécia Antiga

estabeleceu-se uma tradição de relação extremamente ambígua da Filosofia e do

filósofo com a polis democrática5. Ao mesmo tempo em que nesse tipo de organização

social, o debate público, o questionamento e a argumentação constituíam-se nas regras

do jogo intelectual e político - favorecendo a racionalidade filosófica -, essa tenderia a

se isolar e desqualificar a experiência comum da sociedade6.

Desse modo, uma Filosofia emblemática como a platônica, por exemplo, ao

exaltar o conhecimento universal e necessário de uma realidade estável em detrimento

da opinião acerca do aparente, acaba, inevitavelmente, por apresentar argumentos que

fortalecem visões não democráticas das relações sociais. Sabe-se que a democracia

funda-se nesse saber flutuante, mutável e feito de uma diversidade de opiniões sem os

quais não haveria abertura da vida política ao futuro como tempo ao qual se refere às

deliberações.

Assim, o existir sócio-político não se subordinaria a uma lógica universal na

qual, presente, passado e futuro fossem indiscerníveis, embora deva transcender o que é

absolutamente inapreensível. Colocar-se-ia entre a universalidade identitária e fixa e o

fluxo incessante, a igual distância de uma verdade fundada no definitivo e do desespero

de uma completa ausência de quaisquer consensos provisórios.

4O que se pretende defender é que a estreita conexão que a Filosofia estabelece entre virtude/ética e saber/racionalidade, ocorre igualmente com relação à sociedade e à política. 5Para Vernant, A Filosofia jamais teria resolvido satisfatoriamente essa dificuldade.6Tal sentimento mostra-se estranho às representações comuns a respeito da Filosofia e do seu ensino no Brasil, vistos como ameaças históricas aos regimes ditatoriais e, portanto, enquanto uma poderosa arma da democracia, especialmente no que concerne aos debates públicos e às decisões políticas.

2

Page 3: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

Tal valorização da contingência do mundo, afirma-se contra a “onto-

gnosiologia” da identidade que remonta a Parmênides e se solidifica em imagem

privilegiada da filosofia na qualidade de saber que transcenderia a cosmovisão comum.

A fundamentação gnosiológica do exercício de discussão e decisão dos problemas

sociais numa sociedade democrática não poderá ser, também, qualquer saber ou

racionalidade especializada que concedam uma competência própria a grupos

particulares.

Tanto a racionalidade filosófica na sua busca do universal e necessário quanto os

saberes especializados na sua particularidade técnica, quando reivindicam o privilégio

de serem fundamento das relações sociais ou das decisões políticas, trazem como

conseqüência o ofuscamento do vigor democrático.

Daí porque se constata que apesar do questionamento da cultura mito-poética

comum, ela continuou fornecendo inspiração à vida social da democracia inaugural7,

mesmo no auge do processo de racionalização político-social, como uma espécie

linguagem pela qual se torna possível a comunicação, o debate e, conseqüentemente,

alguns consensos provisórios sem os quais não haveria sociedade democrática.

Pode-se dizer, portanto, que o senso comum enquanto um pressuposto da

democracia, não resultaria de um exercício reflexivo sobre o conhecimento popular que

o traduziria numa linguagem filosófica, técnica ou científica. Consistiria, antes, no saber

imediato e vivido, compartilhado espontaneamente, nas relações sociais. Se alguma

tradução tiver importância aqui, ela deverá fazer-se da linguagem onto-gnosiológica

para a expressão mito-poética, como recurso próprio da filosofia, cujo exemplo

paradigmático pode ser encontrado em Platão ao conceder um lugar especial às

expressões alegóricas8.

O conflito histórico da filosofia com a sociedade democrática, explica-se,

também, pela dicotomização ontológica da realidade em essência e aparência,

interessando ao pensamento filosófico o supra-sensível, enquanto o jogo sócio-político

constitui-se neste último plano, na imanência do qual se deseja encontrar as suas

7Um exemplo privilegiado do que se afirma é o “Protágoras” de Platão (1980). 8Em Platão, tal tradução possui um sentido eminentemente político-pedagógico, pois, no fundo a verdade enquanto tal só poderá ser realmente experimentada no plano da intuição noética, apreensão própria do exercício filosófico e condição de possibilidade para que o discurso não seja um mero jogo com as palavras, vício atribuído em tom de recriminação à sofística. Com relação à linguagem técnica e científica, pode-se defender igualmente, ainda hoje, a necessidade de tradução ou mesmo transposição didático-pedagógica como exigência para que se cumpram certos objetivos de uma educação geral.

3

Page 4: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

próprias razões sem o auxílio de qualquer fundamentação transcendente que se

concretize numa “dialética descendente”.

Wolff (1983) apresenta uma leitura de obras de Platão e Aristóteles que ajuda a

sustentar a tese dessa incompatibilidade entre a clássica compreensão de filosofia e o

ideal de sociedade democrática9. Mostra que tanto a filosofia platônica quanto a

aristotélica ocupou-se da política, mas não da sua especificidade enquanto prática

democrática. Contudo, seria possível apreender a contrario que tais autores tendem a

negar o jogo democrático, na medida em que para participação nele, não se poderia

exigir qualquer competência especial para além da experiência de um viver em comum.

Com isso se exclui, evidentemente, a filosofia da condição gnosiológica de exercício

esclarecido da cidadania.

Ora, na medida em que a filosofia é vista enquanto emersão da aparência em

busca da essência de todos os entes, inclusive da sociedade e da política, passa a se

confrontar seriamente com o viver democrático e o saber comum compartilhado no

cotidiano. Consequentemente, ela tende a não se adequar às instituições democráticas.

Isso ocorre em razão não apenas de se caracterizar, por um lado, como uma

atividade instituinte10 e demolidora das aparências, mas especialmente em função de a

lógica identitária que a sustenta pretender instituir o conhecimento do ser definitivo,

inclusive o da sociedade política11.

Diante disso, o relativismo ambivalente12 e humanístico da sofística13 , assim

como o seu “pragmatismo”, com os quais procurava refutar a “ontologia” da identidade

- e o conceito transcendental de verdade-, parecem adequados a justificar o “caos”

potencial e a abertura crítica sem os quais a sociedade democrática seria impossível ou

desnecessária.

Essa visão sofística que procura refutar a lógica e a ontologia da identidade,

talvez seja o primeiro ensaio de um pensamento democrático da democracia, na medida

em que aceita a contingência social, a finitude humana e a positividade de uma validade

provisória do conhecimento que, a rigor, não ultrapassaria o horizonte hipotético e nem

9Essa tese encontra-se desenvolvida, também, em Hannah Arendt (1995) e em menor grau no pensamento de Vernant (1989) e no de Jaeger (1989). 10As noções de instituinte e instituído foram tomadas de Castoriadis (1982,1987). 11 Em se admitindo a possibilidade de a Filosofia e o filósofo atingir a essência da política, a discussão e o debate públicos, características da democracia, consistiriam em um ritual sem sentido, pois de um lado ter-se-ia alguém sabedor da verdade a priori, e do outro um coletivo que precisaria ser esclarecido.12Romeyer-Dherbey (1986) mostra a extensão de tal ambigüidade, fosse ela desejada ou não, na indefinição de termos como pragma, chrema e métron, na “antropologia” de Protágoras, por exemplo.13Jaeger (1989) fala de humanismo sofístico cuja melhor tradução é a tese do “homem-medida” que se contrapõe à ontologia que remonta à Parmênides.

4

Page 5: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

os limites da doxa. Esse pensamento sofístico encontra na tradição mito-poética a sua

inspiração para atingir os objetivos de sua racionalidade prática a serviço da

democracia, deixando em segundo plano a filosofia da natureza (Jaeger, 1989).

Daí porque a concepção sofística é eminentemente antropológica e nela se

encontram sociedade, política e conhecimento, irmanados nos mesmos princípios

ontológicos e gnosiológicos que escandalizaram filósofos como Platão e Aristóteles e

talvez, em menor grau, Sócrates também.

Esse conflito com a sociedade mais ampla pelas razões acima apresentadas,

constitui-se numa característica profundamente incorporada à compreensão da filosofia

e ao fazer filosófico que, por ter adquirido o estatuto de tradição, não deixa de manter o

seu vigor como aquilo que precisa ser levado em conta na discussão do tema.

3 TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO DO CONFLITO

Marx e Engels (1986) reconhecem que a filosofia é pródiga em prescrições do

que deveriam ser as formações sócio-políticas, mas estéril na interferência nesses

domínios com vistas a transformá-los. A racionalidade interpretativa ou contemplativa

que marcaria o fazer filosófico, seria, por ela mesma, incapaz de servir aos interesses de

uma parte da sociedade que deveria se constituir em sujeitos históricos com

potencialidade para instalar efetivamente os ideais de justiça e liberdade, de modo a

realizar, na prática, o humanismo apenas pensado pela filosofia.

Esse modo de resolver o conflito entre filosofia e sociedade faz-se pela crítica a

ontologia e a gnosiologia clássicas e está mais próximo, teoricamente, dos ensinamentos

sofísticos por reconhecer a realidade na sua dinamicidade, mas principalmente por

valorizar a dimensão pragmática da razão. Certamente esse pragmatismo marxista

possui uma motivação revolucionária e pretende engajar a filosofia, não em prol da

sociedade existente, mas da do porvir; orienta-se pela praxis, reunido pensamento e ação

e produção, de modo a efetivar uma intervenção visando instituir, efetivamente, o que é

somente pensado como dever-ser14.

Outro exemplo significativo da tentativa de superação do conflito entre filosofia

e sociedade democrática é o pensamento de Dewey (1979). Procurou desenvolver uma

filosofia adequada a esse tipo de sociedade na sua feição moderna, partindo de uma

crítica ao essencialismo do pensamento clássico e á chamada racionalidade

contemplativa que o acompanha.

14Pode-se observar a tendência não democrática de valorização da vanguarda nas tomadas de decisão, com base na idéia de que essa - ao contrário da maioria dos sujeitos que só estarão esclarecidos no final do processo revolucionário – conhece os pressupostos da ciência da história.

5

Page 6: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

Sem negar o princípio “estético” do conhecer por amor ao conhecimento e nem

a necessidade de criticar o pensamento instituído e estabilizado como hábito, defende o

caráter social e político da filosofia e a importância de se reconhecer que o homem é

essencialmente um ente social voltado à prática.

Esse “pragmatismo” moderno presente em Marx e Dewey, mas que remonta a

Francis Bacon (1999), esforça-se por redefinir o sentido do conhecimento e da própria

racionalidade que o sustenta, introduzindo como valor a ser observado o compromisso

do filósofo/cientista com as necessidades de desenvolvimento mais prementes da

sociedade, na defesa da célebre conjugação entre saber e poder.

Contudo, a versão degenerada dessa conexão pode colocar-se contra a

democracia como um tipo de exercício baseado num conhecimento “comungado”

provisoriamente pela maioria e fortalecer as tecnocracias que procuram justificar as

restrições ao debate público e as decisões pelos cidadãos de questões fundamentais do

existir comum com base numa pretensa competência especializada de cientistas sociais

e economistas para antecipar o horizonte do possível.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conhecimento técnico-científico, assim como o filosófico, vem

contemporaneamente se restringindo a serem domínios de especialistas que se

congregam em “comunidades” nas quais se partilham formas de vida próprias, valores

ontológicos e gnosiológicos específicos, comunicáveis em linguagens altamente

elaboradas que, como tais, necessitam de tradução para que sejam compreendidas fora

do seu “território”.

Apesar disso, a imagem recorrente da filosofia como um tipo de vida especial e

do conhecimento filosófico enquanto fonte e fundamento do edifício do saber tende a

perder o seu vigor com o advento da crise do ideal de conhecimento universal e

necessário atestado na epistemologia, tornando pensável a aproximação entre filosofia e

democracia.

A crise do ideal de episteme e a reabilitação da doxa nos discursos

epistemológicos mais recentes favorecem o novo olhar sobre a incerteza, fluidez,

diversidade e pluralidade. O “relativismo” próprio aos tempos modernos e

historicamente inerentes à sociedade democrática, faz a filosofia pender para a tradição

6

Page 7: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

sofística, pois a ontologia identitária e a idéia de fundamento têm grandes dificuldades

para encontrar argumentos que as sustentem.

Juntamente com essa fluidez e redefinição do tipo de racionalidade filosófica,

verifica-se cada dia mais, as solicitações da sociedade no sentido de enquadrar a

filosofia à sua lógica, de atualizá-la de acordo com os seus objetivos, de fazer circular o

pensamento pelos canais de usuais de comunicação e informação.

Entretanto, não se pretende instituir uma sociedade de filósofos, assim como

seria impensável uma organização social composta de cientistas, artistas ou que

assumisse universalmente qualquer uma das atividades de grupos específicos.

Seguindo à orientação da filosofia clássica para a qual, como queria Platão, ou o

rei se tornaria filósofo ou esse rei - para que se tivesse um governo justo e ético-, numa

sociedade democrática, se teria que chegar a conclusão por essa linha de raciocínio, que

a totalidade da população teria que se transformar em filósofos.

Deve-se dizer, talvez, que isso não é mesmo possível. Assim como o

conhecimento científico não se transformou em “senso comum” fora da comunidade

científica, também a atividade filosófica tem sido circunscrita, a rigor, às práticas

educativas formais. Desenvolve-se muito fortemente no interior de instituições

especialmente destinadas ao ensino e à investigação, portanto não é uma experiência

comum e generalizada partilhada pela maioria no exercício da democracia.

A apropriação da cultura científico-tecnológica pela maioria da população ocorre

no âmbito da educação geral, por um tipo de apreensão intelectual elementar, e a grande

justificativa do valor dessa cultura é de cunho “pragmático” e se traduz pelos seus

possíveis usos.

Dessa perspectiva, seria possível justificar a racionalidade filosófica na

atualidade de acordo com quais valores? De acordo com uma razão técnica ou

tecnológica? Por sua importância prática? Como reflexão ou construção teórica? Ou se

deveria pensá-la enquanto uma filosofia da práxis?

Qualquer que sejam as respostas a essas interrogações, é preciso levar em conta

qual seria o alcance de tal racionalidade filosófica para os interesses reconhecidos pela

sociedade ampla, e legitimada pela sua própria racionalidade e conhecimento

comungados no exercício da atividade democrática.

Diante dessa sociedade da forma como ela existe na sua aparência, qual seria o

papel da educação filosófica no exercício da cidadania democrática? De acordo com a

lógica do jogo democrático, o professor de filosofia não poderia apresentar-se como

7

Page 8: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

alguém que se encontra além do mundo da aparência, desqualificando o chamado

“senso comum”.

Assim, uma das grandes dificuldades da atividade filosófica seria abandonar a

sua representação de conhecimento de uma essência, de portadora de uma verdade

incomum, acessível a um pequeno número daqueles que se dispõem a um grande e

heróico esforço de iniciação como uma espécie de prova.

Por essa imagem, a educação filosófica afasta-se da sociedade democrática na

qual só possui valor o que pode ser amplamente compartilhado. Sabe-se que como

qualquer atividade cognoscente altamente especializada, as dificuldades da investigação

filosófica são iguais ou superiores às exigidas na ciência. Sendo assim, uma educação

filosófica como contribuição à cultura geral, teria que circunscrever-se, como no caso

das ciências, ao que é elementar, não saindo de certo plano de

superficialidade/aparência.

Mas como pensar, legitimamente, a educação filosófica enquanto uma limitada

contribuição à sociedade, sem a radicalidade inerente ao questionamento filosófico?

Certamente uma educação geral não pode objetivar alcançar a profundidade de acordo

com a qual, habitualmente, os filósofos constroem as suas reflexões. Uma questão a ser

pensada na relação entre Filosofia e sociedade democrática com a mediação do ensino

diz respeito a como pensar a atividade filosófica enquanto uma construção de conceitos

ou uma reflexão crítica sem limites e, simultaneamente, ter que atender aos objetivos de

uma educação geral, comum. A tendência desse ensino, por conta das suas condições

dadas, é fazer o pensamento parar na superfície elementar, o que pode trair esse impulso

irresistível da crítica inerente ao pensamento filosófico.

Ao mesmo tempo em que há a recusa de dogmatizar o ensino num esforço

contra essa tendência institucional, é preciso reconhecer que o ideal de crítica sem

limites não encontra condições propícias nas práticas cotidianas dos grupos sociais, de

modo que dificilmente essa forma de enxergar a filosofia iria se transformar em uma

forma de vida, numa atitude generalizada dos sujeitos sociais.

Assim, a cultura do ensino não coincide com o jogo de linguagem que marca o

fazer filosófico no seu rigor, com a sua forma de vida sui generis e limitada; difere,

também, da forma de vida em que se inscrevem os cidadãos no seu cotidiano, no qual

ocorrem as suas decisões com maior ou menor urgência.

A barreira lingüística é um obstáculo insuperável que separa a prática filosófica

stricto sensu das práticas sociais democráticas mais amplas. Desse modo, a tensão entre

8

Page 9: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

sociedade e comunidade de filósofos é semelhante àquela existente entre comunidade

científica de determinada especialidade e a coletividade mais ampla, a menos que a seja

verdadeira a solução postulada de que para além da filosofia stricto sensu, haveria uma

atitude filosófica inscrita na natureza humana, independente da educação formal ou do

ensino sistematizado.

De qualquer modo, parece inegável que a filosofia instituiu-se, hoje, como

campo de saber altamente especializado, ao ponto de se ter especialista em subárea,

tema, num autor ou fase do seu pensamento ou até em uma única obra. Os “filósofos”

são formados, via de regra, em cursos de pós-graduação, especialmente em nível de

doutorado.

Diante disso tudo fica a interrogação: em que sentido se poderia falar ainda em

uma filosofia como atitude que se desenvolveria fora da universidade ou de alguma

instituição formal de ensino, com rigor e alcance suficientes para se transformar em

cultura comum nas práticas sócio-políticas de orientação democrática?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENTD, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectivas, 1988.

_________. A Vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. 3ª. Ed. Rio de Janeiro:

Relume-Dumará, 1995.

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade. 3ª. Ed. Rio de

janeiro: Paz e Terra, 1982.

__________. As Encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1987.

BACON, Francis. Novo organum; nova atlântida. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

DEWEY, John. Democracia e educação. 4ª. Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2ª. Ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1989.

MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia alemã (Feuerbach). 5ª. Ed. São Paulo: HUCITEC, 1986.

PLATÃO. Protágoras. Belém: UFPA, 1980.

ROMEYER-DHERBEY, Gilbert. Os Sofistas. Lisboa: Edições 70, 1986.

9

Page 10: Filosofia, conhecimento e sociedade democrática

VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Bertrand do

Brasil, 1989.

WOLFF, Francis. Filosofia grega e democracia. Discurso 14, Revista do Departamento

de Filosofia da FFLCH da USP. São Paulo: Editora Polis, 1983 (p. 7- 48).

10