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FILOSOFIA POLÍTICA

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FILOSOFIA POLÍTICA

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CURSOS DE GRADUAÇÃO – EADFilosofia Política – Prof. Dr. Daniel Arruda Nascimento

Daniel Arruda Nascimento é Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é professor do Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política. De 2007 a 2009, contribuiu para o curso de Licenciatura em Filosofia do Centro Universitário Claretiano sendo professor convidado, tendo atuado em diversos polos e elaborado o material didático de Filosofia Política que ora se inicia.e-mail: [email protected]

Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação

Page 3: FILOSOFIA POLÍTICA

FILOSOFIA POLÍTICACaderno de Referência de Conteúdo

Daniel Arruda Nascimento

BatataisClaretiano

2013

Page 4: FILOSOFIA POLÍTICA

Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação

© Ação Educacional Claretiana, 2011 – Batatais (SP)Versão: dez./2013

320.01 N193f

Nascimento, Daniel ArrudaFilosofia política / Daniel Arruda Nascimento – Batatais, SP : Claretiano, 2013.

116 p.

ISBN: 978-85-67425-62-7 1. História da Filosofia Política. 2. Conceitos, períodos e representantes da filosofia política. 3. Introdução à discussão e exame das contribuições filosóficas de alguns expoentes. 4. Filosofia política na Antiguidade: Platão e Aristóteles. 5. Filosofia política na Idade Média: Agostinho e Tomás de Aquino. 6. Filosofia política e a teoria do pacto social: Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau. 7. Filosofia política na modernidade: Kant e Hegel. 8. Filosofia política contemporânea: Arendt, Foucault e Habermas. I. Filosofia política.

CDD 320.01

Corpo Técnico Editorial do Material Didático MediacionalCoordenador de Material Didático Mediacional: J. Alves

Preparação Aline de Fátima Guedes

Camila Maria Nardi Matos Carolina de Andrade Baviera

Cátia Aparecida RibeiroDandara Louise Vieira Matavelli

Elaine Aparecida de Lima MoraesJosiane Marchiori Martins

Lidiane Maria MagaliniLuciana A. Mani Adami

Luciana dos Santos Sançana de MeloLuis Henrique de Souza

Patrícia Alves Veronez MonteraRita Cristina Bartolomeu

Rosemeire Cristina Astolphi BuzzelliSimone Rodrigues de Oliveira

Bibliotecária Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11

RevisãoCecília Beatriz Alves TeixeiraFelipe AleixoFilipi Andrade de Deus SilveiraPaulo Roberto F. M. Sposati OrtizRodrigo Ferreira DaverniSônia Galindo MeloTalita Cristina BartolomeuVanessa Vergani Machado

Projeto gráfico, diagramação e capa Eduardo de Oliveira AzevedoJoice Cristina Micai Lúcia Maria de Sousa FerrãoLuis Antônio Guimarães Toloi Raphael Fantacini de OliveiraTamires Botta Murakami de SouzaWagner Segato dos Santos

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana.

Claretiano - Centro UniversitárioRua Dom Bosco, 466 - Bairro: Castelo – Batatais SP – CEP 14.300-000

[email protected]: (16) 3660-1777 – Fax: (16) 3660-1780 – 0800 941 0006

www.claretianobt.com.br

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SUMÁRIO

CADERNO DE REfERêNCIA DE CONTEúDO

1 iNTRODUçãO ................................................................................................... 92 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO ...................................................................... 113 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 24

UNiDADE 1 – iNTRóiTO

1 OBJETiVOS ........................................................................................................ 252 CONTEúDOS ..................................................................................................... 253 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO DA UNiDADE ............................................... 254 iNTRODUçãO à UNiDADE ............................................................................... 265 EM TORNO DO CONCEiTO DE POLíTiCA ......................................................... 286 POLíTiCA E ORGANiZAçãO DO PODER .......................................................... 297 qUESTÕES AUTOAVALiATiVAS ........................................................................ 338 CONSiDERAçÕES .............................................................................................. 349 E-REFERêNCiA .................................................................................................. 3410 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 34

UNiDADE 2 – FiLOSOFiA POLíTiCA NA ANTiGUiDADE

1 OBJETiVOS ........................................................................................................ 352 CONTEúDOS ..................................................................................................... 353 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO DA UNiDADE ............................................... 354 iNTRODUçãO à UNiDADE ............................................................................... 365 CONCEiTO DE POLíTiCA E ExPERiêNCiA DA DEMOCRACiA .......................... 376 PLATãO E A CiDADE JUSTA ............................................................................... 387 ARiSTóTELES E O BEM COMUM COMO FiNALiDADE DA ViDA POLíTiCA ... 438 qUESTÕES AUTOAVALiATiVAS ........................................................................ 469 CONSiDERAçÕES .............................................................................................. 4710 E-REFERêNCiAS ................................................................................................ 4711 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 47

UNiDADE 3 – FiLOSOFiA POLíTiCA NA iDADE MÉDiA

1 OBJETiVOS ........................................................................................................ 492 CONTEúDOS ..................................................................................................... 493 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO DA UNiDADE ............................................... 494 iNTRODUçãO à UNiDADE ............................................................................... 505 AGOSTiNHO E A CiDADE DE DEUS .................................................................. 526 TOMáS DE AqUiNO E A PEDAGOGiA DA LEi DiViNA .................................... 547 TExTOS COMPLEMENTARES ............................................................................ 578 qUESTÕES AUTOAVALiATiVAS ........................................................................ 59

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9 CONSiDERAçÕES .............................................................................................. 5910 E-REFERêNCiAS ................................................................................................ 5911 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 60

UNiDADE 4 – FiLOSOFiA POLíTiCA E A TEORiA DO PACTO SOCiAL

1 OBJETiVOS ........................................................................................................ 612 CONTEúDOS ..................................................................................................... 613 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO DA UNiDADE ............................................... 624 iNTRODUçãO à UNiDADE ............................................................................... 625 NiCOLAU MAqUiAVEL E O ESTADO FORTE .................................................... 656 THOMAS HOBBES E O PACTO SOCiAL............................................................. 687 JOHN LOCkE E A TEORiA LiBERAL ................................................................... 718 JEAN-JACqUES ROUSSEAU E O CONTRATO SOCiAL ...................................... 749 TExTOS COMPLEMENTARES ............................................................................ 7710 qUESTÕES AUTOAVALiATiVAS ....................................................................... 7911 CONSiDERAçÕES ............................................................................................. 7912 E-REFERêNCiAS ................................................................................................ 8013 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 80

UNiDADE 5 – FiLOSOFiA POLíTiCA NA MODERNiDADE

1 OBJETiVOS ........................................................................................................ 832 CONTEúDOS ..................................................................................................... 833 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO DA UNiDADE ............................................... 834 iNTRODUçãO à UNiDADE ............................................................................... 845 iMMANUEL kANT E A PAZ PERPÉTUA ............................................................ 876 FRiEDRiCH HEGEL E A REALiZAçãO DA RAZãO UNiVERSAL ......................... 917 TExTOS COMPLEMENTARES ............................................................................ 948 qUESTÕES AUTOAVALiATiVAS ........................................................................ 969 CONSiDERAçÕES .............................................................................................. 9710 E-REFERêNCiAS ................................................................................................ 9711 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 97

UNiDADE 6 – FiLOSOFiA POLíTiCA CONTEMPORâNEA

1 OBJETiVOS ........................................................................................................ 992 CONTEúDOS ..................................................................................................... 993 ORiENTAçÕES PARA O ESTUDO DA UNiDADE ............................................... 100

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4 iNTRODUçãO à UNiDADE ............................................................................... 1005 HANNAH ARENDT ............................................................................................ 1026 MiCHEL FOUCAULT .......................................................................................... 1057 JüRGEN HABERMAS ........................................................................................ 1088 TExTOS COMPLEMENTARES ............................................................................ 1119 qUESTÕES AUTOAVALiATiVAS ........................................................................ 11310 CONSiDERAçÕES FiNAiS ................................................................................. 11311 E-REFERêNCiAS ................................................................................................ 11412 REFERêNCiAS BiBLiOGRáFiCAS ..................................................................... 114

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EAD

CRC

Caderno de Referência de Conteúdo

Ementa –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––História da Filosofia Política. Conceitos, períodos e representantes da Filosofia Política. Introdução à discussão e exame das contribuições filosóficas de alguns expoentes. Filosofia Política na Antiguidade: Platão e Aristóteles. Filosofia Polí-tica na Idade Média: Agostinho e Tomás de Aquino. Filosofia Política e a teoria do pacto social: Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau. Filosofia Política na mo-dernidade: Kant e Hegel. Filosofia Política contemporânea: Arendt, Foucault e Habermas. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO

Seja bem-vindo!

Prezado aluno, iniciaremos o estudo do Caderno de Referên-cia de Conteúdo Filosofia Política, que compõe os Cursos de Gra-duação. No Caderno de Referência de Conteúdos, você encontrará as seis unidades básicas que o ajudará a percorrer o longo cami-nho da história do pensamento político.

Observe que o CRC que se inicia cumpre a sua finalidade de ser apenas um instrumento de orientação para que o aluno bus-

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que por si mesmo aprofundar seus conhecimentos. A construção de um Caderno de Referência de Conteúdo sobre a história da fi-losofia política exige um enorme recorte. Se o CRC intitulado Filo-sofia Política possui como objeto específico de análise a vida em comunidade, ela se debruça sobre um objeto que não pode ser medido nem no tempo nem no espaço. Por motivos óbvios, seria impossível abarcar toda a história do pensamento dedicado à con-cepção e à organização da vida comum.

Todo sistema filosófico corre o risco de cometer injustiças irreparáveis, na medida em que faz escolhas diante de um incon-tornável. O que você tem nas mãos não é um compêndio universal de Filosofia Política, nem muito menos um tratado sobre política. Podemos dizer que agora se inicia um CRC "vazado": entre uma unidade e outra poderiam ser incluídas muitas outras. Logo, a lei-tura de cada unidade precisa ser aprofundada com a pesquisa às fontes primárias e secundárias. Aprender a desconfiar do que lê, mesmo que seja um conteúdo orientador, é tarefa do aluno atento e já comprometido com a atitude filosófica fundamental.

As unidades que se seguem estão dispostas de modo a faci-litar a compreensão da história da Filosofia Política. Apresentamos aqui um panorama dos principais representantes do pensamento ocidental no que se refere à política e sua investigação filosófica.

A Unidade 1 traz apenas uma introdução ao estudo. A Unidade 2 é dedicada à Filosofia Política na Antiguidade, com capítulos referentes a Platão e a Aristóteles. A Unidade 3 aborda a Filosofia Política na idade Média e nela reservamos espaço para Agostinho e Tomás de Aquino. A Unidade 4 tem como tema a relação entre a Filosofia Política e as teorias do pacto social: Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau aparecerão aí como os autores principais. A Unidade 5 cuida da Filosofia Política na modernidade e nela priorizamos os estudos de kant e Hegel. A Unidade 6 trata da Filosofia Política contemporânea. Esboçamos, nessa última unidade, uma breve apresentação de alguns dos

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Claretiano - Centro Universitário

11© Caderno de Referência de Conteúdo

filósofos mais importantes da nossa atualidade no que diz respeito à Filosofia Política: Arendt, Foucault e Habermas.

Tendo em vista a natureza de um conteúdo introdutório, atento à finalidade didática capaz de colocá-lo em contato com os textos das fontes primordiais, abusamos das citações. Criar essa proximidade será vital se quisermos atingir nossos objetivos. Para deixar falar os principais representantes da história da Filosofia Po-lítica, cada pequena unidade aparecerá recheada com textos reti-rados das obras respectivas. Ao final de cada unidade, a leitura de um ou dois textos complementares poderá ser sugerida.

Bom estudo!

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral

Prof. Dr. Daniel Arruda Nascimento

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-tudado neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportu-nidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade. Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conheci-mento básico necessário a partir do qual você possa construir um referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para que, no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com com-petência cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos come-çar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos que fundamentam este CRC.

Uma apresentação prefacial merece ser escrita por alguém que tem diante de si uma considerável distância do objeto de es-tudo do que deve apresentar. Se é certo que a distância não pode ser de tal magnitude que impeça o contato cognitivo, parece ser também de conhecimento científico geral que o espaço que sepa-

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© Filosofia Política12

ra observador e observado evite o embaraço entre os dois, ainda que oriente uma influência saliente demais. Mais ou menos como dessas coisas que acontecem nas tramas literárias de operação po-licial, nas quais o detetive se mantém em perseguição em margem segura quanto ao suspeito, sem perder o contato visual, tendo de preferência o cuidado de interpor entre si e o perseguido tantos postes e esquinas quanto forem necessários. Esta apresentação que inaugura o caderno que o aluno tem em mãos não é, con-tudo, inteiramente coerente a si. Ela se afastou do corpo do tex-to no tempo, no espaço, nas condições fisiológicas e no espírito, mas quem a escreve se sente profundamente inserido no olho do furacão da política. Temos diante de nós uma segunda versão da disciplina de Filosofia Política.

O que esperar de um caderno de Filosofia Política além de, em flagrante duplicação ambivalente da mirada da apresentação sobre o corpo do texto, um olhar filosófico lançado sobre a políti-ca? Ou, no mínimo, de uma narrativa história topicalizada que tra-ga consigo companheiros de viagem, pontos de vista alimentados pela matriz filosófica de fina estampa, outros olhares de membros da comunidade humana que ousaram pensar sobre política ou so-bre o melhor modo de se fazer política? Esperaríamos saber ao fi-nal o que vem a ser política ou ficaríamos com impressões diversas que não chegam a tocar o fundo do tacho?

Uma concepção bem próxima das origens do que adotou o nome de "política" seria aquela segundo a qual política designa doutrina da moral e do direito. isto porque as questões atinen-tes às relações humanas de primeira ordem e aos limites a serem impostos ao comportamento de cada um dos envolvidos no con-vívio humano, tais questões, presentes desde sempre, caíram no colo dos humanos. Um homem se apresenta a outro sabendo que seus gestos e suas palavras o cativam ou geram desgosto, sabendo que atos possuem efeitos como resultado, que ações e reações constituirão uma cadeia intrincada sem fim, cujo desenvolvimento será de qualquer maneira determinante para o seu próprio futuro

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e bem-estar. inclui-se aí toda investigação acerca do que deve ser o bem e do que pode ser o bem comum, o bem que pertence a todos. Desta cepa pertence a escolha de princípios e valores, cons-ciente ou não, e, tal como uma necessidade siamesa, a constitui-ção de regras e a fixação da relevância e do alcance dessas regras.

Outra concepção, também bastante original, vincularia a po-lítica à arte ou à ciência do bom governo, ou seja, perguntaria pelo modo de governar que melhor satisfaz os ideais de uma comuni-dade humana. Nesta hipótese, não interessa apenas analisar as diferentes formas de governo que obtiveram realidade ao longo da história, distinguindo-as e avaliando-as segundo critérios de nascimento, força, permanência ou legitimidade. Nem mesmo os diferentes governantes. interessa inquirir, para além inclusive da satisfação dos ideais humanos, se há uma ciência do governo e de quais atributos ela se ocupa. A política, então, evolveria saberes: saber o que é política, saber conduzir-se nos meios políticos, sa-ber governar, saber guiar uma comunidade ao seu destino político. Político é o governante, políticos são os governados naquilo que cooperam com o governante.

Uma terceira concepção geral e originária expande suas ra-ízes até as teorias das instituições de organização e direção, mais ou menos burocráticas, o que podemos provisoriamente chamar de "Estado". Política enquanto teoria do Estado. Aufere-se o que é Es-tado e por que ele se torna necessário politicamente, quais as suas condições de existência, quais os elementos que o compõem, qual o melhor tipo de Estado, qual a sua melhor estrutura, quais as circuns-tâncias históricas que determinam o surgimento de um tipo esta-tal e quais tipos se adequariam melhor a certas geografias, a certas épocas e a certos povos. Recentemente, infere-se se é possível so-ciedade sem Estado, tal o desgaste sofrido pela palavra, tal o amargo paladar que na boca nos restou depois de tantos infortúnios.

Uma quarta concepção, posterior, identifica política e ciên-cia da sociedade humana. Recebendo de vez a beca de uma área

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© Filosofia Política14

científica de conhecimento ou de uma disciplina, terá como objeto a política, os fatos e fenômenos sociais, compreendendo as suas leis de surgimento, sucessão e funcionamento, as suas tendências e possibilidades de influência. De modo complementar, engloba o estudo das relações intersubjetivas e o seu reflexo no contexto maior da comunidade política. Nesse âmbito, todavia, a política, ou a Filosofia Política, não estará mais sozinha: ela contará com interlocutores da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia, da Te-ologia e do Direito.

Vistas assim de uma visão panorâmica, as diversas concep-ções gerais de política permitem notar, talvez muito pouco, o que implica o jogo da definição de política. Definir o que seja política significa, desde cedo, assumir um determinado posicionamento sobre as responsabilidades da política. Se assevero que política é assunto exclusivamente de governo, posso estar querendo dizer com isso que a política não diz respeito a ninguém que não es-teja efetivamente no exercício de um cargo institucionalizado. Se defendo que toda política tem como finalidade necessária o bem de todos e a justiça social, posso estar esquecendo o quanto de ilusões já nos fizeram perder o caminho da paz. quando Otto von Bismarck, um dos líderes nacionais mais destacados do século 19, se refere à política como "arte do possível", pode estar insinuando tanto que ao representante político cabe lidar com as possibilida-des que lhe estão à mão quanto que, na política, tudo é possível, dependendo da competência do agente político. De qualquer ma-neira, argumentar a favor da imparcialidade, mesmo científica, é pretender guardar pedras em saco furado.

Em nossos dias, os debates que mais concernem à Filoso-fia Política se estendem desde a preocupação com a definição do que é propriamente político em distinção a todo o resto, e com o resgate da dignidade da política, às críticas que recaem sobre a notória despolitização do cidadão comum, daquele que se ausenta do espaço público, refugiando-se nos interesses particulares sem consideração aos interesses públicos (ainda que não esteja atento

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a quanto de público tem seus interesses privados e quanto a reali-zação do público interfere na fruição do privado), ou, o que é pior, daquele que envereda pela profissionalização política a reboque de uma má intenção. Muito resta aos estudantes de Filosofia in-vestigar.

Cumpre ressaltar, porém, que a discussão sobre o que se in-sere no âmbito da política e o que está fora de seu campo de ação perdeu, por um lado, toda a inocência, se é que alguma ainda a possuía, e, por outro, todo apelo de extensão restrita. Os proble-mas enfrentados hoje pela comunidade política planetária já não se referem somente à organização da vida comum. Estamos hoje a bordo de um planeta no qual, diante de novos distúrbios naturais de grandes proporções e de conquistas tecnológicas nunca vistas, uma decisão política precipitada pode ameaçar a vida da espécie humana, causando tanto a sua destruição quanto o seu flagelo.

Um último parágrafo introdutório antes de começarmos propriamente a estudar os conteúdos: embora tenhamos ficado, quase unanimemente, nas páginas que se seguem, com a história do pensamento político ocidental, é possível, e até provável, que outras obras, de outros pastos, de outras inspirações, literárias e artísticas, tenham mais a dizer de política e experiências políticas que as que foram consultadas e arroladas à bibliografia. Para dar apenas um exemplo, citamos o Ensaio sobre a lucidez de José Sara-mago. imaginemos que, em uma comunidade política, as pessoas manifestassem, através da participação política, que não querem mais participar do modo habitual. imaginemos que, em uma de-mocracia, os eleitores votassem maciçamente em branco, 83% dos eleitores votassem em branco, mostrando que não estavam contentes com nenhuma das alternativas dadas e impossibilitando a escolha de novos representantes. Suponhamos que este tenha sido já o resultado final depois da repetição de eleições realizadas uma semana antes e canceladas pelo mesmo motivo. Este é o en-redo do romance. Ele é, por si só, bastante político, ou bastante próximo dos temas políticos mais conhecidos. Mas o que nos inte-

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© Filosofia Política16

ressa vem agora. Ao chegar ao meio do livro (precisamente ao dé-cimo primeiro capítulo), o autor tinha que escolher como o levaria ao fim. Até então, tudo indicava que ele daria um fim diferente, pautado em uma concepção de mundo muito diferente, do ante-rior Ensaio sobre a cegueira, no qual não esconde sua percepção da realidade ao transformar homens, homens e mulheres repen-tinamente cegas, em novamente animais, entregues sem pudor à satisfação da fome, dos instintos de sexo e da agressividade. No Ensaio sobre a lucidez, Saramago parece nutrir uma esperança no gênero humano desde as primeiras páginas, parece comovido com uma nova utopia e o livro parecia destinado a converter-se numa parábola da resistência política. A comunidade política criada pelo autor respondia às provocações, perseguições e ataques dissimu-lados dos antigos governantes com tranquilidade, inteligência e heroísmo, num ambiente de profunda fé na lucidez humana. O leitor encontrava-se com a experiência excepcional de superação do egoísmo. Ao chegar ao meio do livro, todavia, perde-se o fio da meada. Saramago transverte o seu livro em um suspense policial, resgatando a antiga história da cegueira branca, mudando os mo-dos da narrativa e abandonando a feliz história da resistência da cidade. Político é o romance, política é a decisão do autor. Estaria ele transmitindo a mensagem de que já havia dito tudo que era preciso sobre a experiência de resistência? Ou teria ele chegado à conclusão de que a experiência não era possível?

Mesmo uma inscrição aparentemente inofensiva nas paredes de uma academia de ginástica podem revelar mensagens de cunho político. Vejamos esta que encontrei há pouco: "Nós da Academia x estamos aqui para promover um ambiente agradável e descontraí-do, onde todos possamos desenvolver um estilo de vida ativo e sau-dável, sem pressão ou constrangimento. Nós somos um meio e não um fim. Somos um instrumento para você tornar sua vida melhor. Buscamos manter nosso ambiente seguro e estimulante, onde você possa se sentir aceito e respeitado. Nós não estamos aqui para te bajular, mas podemos te dar um empurrãozinho se for isso que você

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precisar. Acreditamos que o mundo não seria o mesmo sem você, por isso, precisamos de você. FAçA PARTE!" O texto termina com uma expressão imperativa dirigida ao consumidor, como não devia deixar de ser. Traz, todavia, em dois movimentos complementares, uma intenção bem definida: espera contribuir para a construção de um pequeno ambiente, que se comunique com outros ambientes maiores, em que as pessoas não se sintam socialmente pressiona-das a ter um corpo perfeito, segundo o modelo atual, nem se sintam constrangidas porque não o possuem ou, fatalmente, nunca virão a possuí-lo. A academia tem a intenção, portanto, de contribuir para alguma transformação do mundo, cujo estilo de vida ativo e sau-dável compartilhe uma vida melhor para todos sem discriminação (apesar da penúltima frase, um tanto contraditória). Política é a ins-crição na parede, política é a filosofia da academia.

Fiquemos, adiante, com nossos companheiros de viagem. De-pois de uma breve introdução ao estudo, vejamos o que nos têm a dizer Platão e Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino, Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, kant e Hegel, Arendt, Foucault e Haber-mas.

Glossário de Conceitos

O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhecimento dos temas tratados no CRC Filosofia Política. Veja, a seguir, a definição de alguns dos principais conceitos deste CRC (elaborados com escólio nos dicionários de política de Bobbio, Matteucci e Pasquino e de análise política de Roberts, citados no tópico Referências Bibliográficas):

1) Bem comum: princípio operativo da edificação da socie-dade humana e fim para o qual ela deve se orientar, com vistas à obtenção da felicidade para todos.

2) Contratualismo: teoria que pretende explicar a for-mação e a legitimidade do poder estatal evocando sua

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© Filosofia Política18

instituição por meio de um contrato social, no qual a constituição de um soberano ocorre em função da trans-ferência de direitos associados a um estado de natureza logicamente anterior.

3) Democracia: sistema político baseado nos princípios de liberdade, igualdade e autogestão, no qual todo poder emana do povo e por ele é exercido, seja diretamente, seja através de representantes escolhidos para tal fim.

4) Direito: conjunto harmônico de princípios declaratórios de direitos fundamentais e obrigações, normas de condu-ta e de organização, dotado de heteronomia e coercitivi-dade, instituído com a finalidade de regular as relações sociais, na manutenção da ordem, da paz e da justiça.

5) Estado: organização que compreende extensão territo-rial, população e governo soberano, cuja coesão é garan-tida pelo monopólio legítimo da força.

6) Ética: ciência que estuda o comportamento humano e seus valores.

7) filosofia: em termos muito gerais, seria o estudo que visa ampliar a compreensão da realidade e dos diferen-tes sentidos de mundo.

8) Governo: organismo institucional responsável pela ge-rência de uma comunidade política, no que diz respeito à tomada de decisões e condução dos negócios públicos.

9) Guerra: período de conflito armado no qual as leis co-muns são suspensas e grupos políticos rivais buscam atingir objetivos específicos ou impedir que outros os atinjam.

10) Igualdade: em termos políticos, a igualdade se diz dos que possuem as mesmas características ou necessida-des pessoais, dos que merecem mesmo tratamento e para fins de distribuição de direitos e bens.

11) Justiça: noção ética fundamental, compreendida classi-camente como o ato de dar a cada um o que é seu, se-gundo seu grau, habilidade e necessidade.

12) Liberdade: em termos políticos, refere-se à interação entre pessoas, grupos e poderes e à relativa força dos

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obstáculos que divisam as ações e omissões em socie-dade.

13) Monarquia: forma de governo em que há um único che-fe de Estado, cujo título é transmitido hereditariamente e cuja atividade envolve funções de governo e, comu-mente, funções religiosas e simbólicas.

14) Moral: ética contextualizada no tempo e no espaço, re-lativa a definições de condutas e hábitos julgados válidos para determinada pessoa ou grupo.

15) Paz: situação política de concórdia, tranquilidade públi-ca e cessação das hostilidades.

16) Poder: capacidade de agir por si ou de afetar, com ou sem o emprego da força, a opinião e o comportamento dos outros, envolvendo, no âmbito estrito da política, questões de autoridade e de distribuição.

17) Política: processo pelo qual os princípios e objetivos de um grupo social são escolhidos, ordenados, executados e garantidos, compreendendo atividades de diversos ti-pos e relevâncias.

18) República: forma de governo de surgimento histórico contrário à monarquia, onde o chefe de Estado é esco-lhido por eleição ou nomeação, geralmente através da participação popular.

19) Soberania: poder político que encarna e decide o desti-no de um povo, vinculado às suas instituições de coman-do e oponível contra todos os outros.

Esquema dos Conceitos-chave

Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas próprias percepções.

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É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino.

Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende--se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu co-nhecimento de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pe-dagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendiza-gem.

Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem pontos de ancoragem.

Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos conceitos devem ser potencialmente significativos para os alunos e as alu-nas, uma vez que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cognitivas, outros serão também relembrados.

Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é você o principal agente da construção do próprio conhecimento, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações internas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por objetivo tor-

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nar significativa a sua aprendizagem, transformando o seu conhe-cimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja, estabele-cendo uma relação entre aquilo que você acabou de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo (adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/edutools/mapascon-ceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em: 11 mar. 2010).

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Filosofia Política.

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© Filosofia Política22

Como pode observar, esse Esquema oferece a você, como dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-portantes deste estudo, citados no glossário anterior. Ao segui-lo, será possível transitar entre os principais conceitos deste CRC e descobrir o caminho para construir o seu processo de ensino--aprendizagem. Por exemplo, o conceito de política depende de como a filosofia age sobre o seu objeto de estudo e do modo como antes foi afetada pelos conceitos de ética, moral e direito. Outro exemplo: os conceitos república, democracia e contratualismo, decorrentes da evolução do conceito de poder, majorado pela in-cidência da filosofia sobre a política, desembocam em teorias que precisam definir e compatibilizar liberdade e igualdade.

O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambiente virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realizadas presen-cialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD, deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio conhecimento.

Questões Autoavaliativas

No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.

Responder, discutir e comentar essas questões, bem como re-lacioná-las com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a resolução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profissional.

As questões de múltipla escolha são as que têm como respos-ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos

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matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada, inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res-posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso, normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma.

Bibliografia Básica

É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-grafias complementares.

figuras (ilustrações, quadros...)

Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)

O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano. É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade.

Você, como aluno ou aluna dos Cursos de Graduação na mo-dalidade EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e con-sistente. Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas.

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Sugerimos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as ativi-dades nas datas estipuladas.

É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produções científicas.

Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.

No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua formação. indague, reflita, conteste e construa resenhas, pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-cimento intelectual.

Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.

Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a este CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para ajudar você.

3. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BOBBiO, N., MATTEUCCi, N.; PASqUiNO, G. Dicionário de política. Tradução de Carmen C. Varrialle et al. Brasília: Ed. da UNB, 1991.DELACAMPAGNE, C. A filosofia política hoje: idéias, debates, questões. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.ROBERTS, G. k. Dicionário de análise política. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.SARAMAGO, J. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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EAD

Intróito

1. OBJETIVOS

• Compreender o contexto da Filosofia Política.• Ambientar-se nas discussões que envolvem a disciplina.

2. CONTEúDOS

• Em torno do conceito de política.• Política e organização do poder.• Uma folha antiga.• Glosa.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

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1) Lembre-se de que há muitos conceitos possíveis para a palavra política. As questões autoavaliativas que se-guem ao final das unidades são abertas e têm a preten-são de ajudá-lo na compreensão das polissemias aqui presentes.

2) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos expli-citados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste CRC. isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho.

3) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli-tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun-damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo.

4) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am-plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate-rial didático apresentado.

5) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci-clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto.

4. INTRODUÇÃO à UNIDADE

Por que estudar Filosofia Política?

qual a relação que existe entre política e Filosofia?

Nada escapa à reflexão filosófica. Se a Filosofia for apenas uma intensidade ou ritmo do pensamento, seu campo de abran-gência não pode ser limitado pela definição de um objeto específi-co. Coisas como desigualdade e poluição, taxas de juros e potência dos motores de veículos são também objetos da reflexão filosófi-ca. A política, como parte relevante da constituição do mundo em que vivemos, não poderia ficar excluída do olhar crítico do filósofo.

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Além disso, quando a Filosofia reflete sobre o exercício da política, reflete sobre as próprias condições do filosofar. Ainda que alguns filósofos tenham escrito importantes obras em situações extremamente adversas, como é o caso de Franz Rosenzweig ou Walter Benjamin, persiste como condição primaz do pensamento o ócio criativo.

Mesmo o nascimento da Filosofia na Grécia Antiga não pa-rece estar isolado da prosperidade política e econômica das cida-des gregas a partir do século 7º a.C. O surgimento de uma robusta classe comerciante e o crescimento no uso da força de trabalho es-cravo auxiliam na liberação da aristocracia agrária para a contem-plação, para o investimento nas ciências e nas artes. Além disso, ao lado das novidades trazidas pelas navegações e de novos métodos de medição do tempo, do espaço e das riquezas, um fator determi-nante para o nascimento da filosofia helênica teria sido justamen-te o aparecimento da Cidade-Estado e a consequente substituição de certas figuras e instituições da tradição mitológica. A Filosofia nasce num ambiente político de fértil diálogo, forjado pelo exercí-cio do pensamento e pela troca de opiniões.

Tratar a política como se fosse um objeto estranho à Filosofia seria, então, no mínimo arbitrário. A Filosofia não se deixa domi-nar nem por uma área do conhecimento nem por grupos que se pretendem titulares do filosofar.

à filosofia encastelada também se aplica a advertência atri-buída a Bertolt Brecht, num pequeno texto que espanta pela sua simplicidade e clareza. O texto chama-se O analfabeto político:

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O anal-fabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e os exploradores do povo (LiGóRiO, 2012).

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Vamos enfrentar o desafio de estudar e refletir sobre a po-lítica!

5. EM TORNO DO CONCEITO DE POLíTICA

O que vem a ser política?A política é uma referência permanente em todas as dimensões do nosso cotidiano na medida em que este se desenvolve como vida em sociedade.

[...] A política surge junto com a própria história, com o dinamismo de uma realidade em constante transformação que continuamente se revela insuficiente e insatisfatória e que não é fruto do acaso, mas resulta da atividade dos próprios homens vivendo em socie-dade.

[...] Entre o voto e a força das armas está uma gama variada de formas de ação desenvolvidas historicamente visando resolver con-flitos de interesses, configurando assim a atividade política em sua questão fundamental: sua relação com o poder (MAAR, 1994, p. 7-9).

Por ser a política o resultado de uma construção histórica dinâmica, ao definir um significado geral para embrutecer o seu conceito, corre-se o risco de fazer tábula rasa das figuras distintas que se apresentam na sua gênese. Podemos, não obstante, en-tender a política simplesmente como meio de organização da vida comunitária, e como tal ela poderia levar uma conotação genérica ou específica de um determinado grupo já inserido no conjunto do corpo social, no tempo e no espaço.

A política exige a sabedoria de dosar e coordenar os inte-resses individuais e coletivos para tornar possível a vida comum; exige a análise meticulosa da realidade que cerca os viventes e a esperança de modificá-la, requisita a intervenção propositiva, cria-tiva e ativa.

Um sentido mais rasteiro e sensibilizado com o que há de vis-ceral na superfície da terra permite compreender a política como via para a realização humana. Todos nós participamos da política ainda que não o façamos no modo do engajamento voluntário.

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6. POLíTICA E ORGANIZAÇÃO DO PODER

Está para nascer uma comunidade sem organização política, sem um mínimo de determinação das modalidades de poder. Mes-mo o mais acalorado dos intelectuais com tendências anarquistas há de convir que não existe, nem nunca existiu, comunidade que não possuísse governo ou pelo menos alguma forma de organiza-ção do poder.

Desde que o homem vive em comunidade, desde que se re-laciona e convive com outros homens dentro de um mesmo espa-ço público, latente se torna a definição do exercício de liderança e do poder de decidir. Seja o processo de escolha consciente ou não, sejam quais forem os critérios de escolha (força física, grau de sabedoria, inteligência, origem familiar, antiguidade, motivação religiosa, contagem de votos etc.), a própria existência da comu-nidade acarreta a necessidade de eleição. às vezes, toda a coisa acontece de forma muito sutil. quando se vive em comunidade, alguma instituição precisa estar disponível para escutar os demais, aglutinar desejos e ideias, construir uma visão de conjunto, tomar decisões, incentivar mudanças de atitude.

Ao longo da história da humanidade, algumas tentativas foram feitas. Algumas obtiveram maior sucesso, outras amarga-ram um prematuro fracasso. De todas as tentativas, a expressão da organização do poder mais próxima a nós é sem dúvida o Es-tado Moderno, surgido como estrutura conceitual no século 16, sobrevivente quase que incólume até os dias atuais. O Estado re-siste às mudanças do tempo – continua a ser o principal modo de organização das sociedades, embora diferentes épocas da história tenham lhe emprestado diferentes rostos.

Todavia, não vamos nos adiantar. Precisamos antes percor-rer a história do pensamento para lá colher contribuições que per-mitam visualizar o conjunto de uma Filosofia Política.

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Ainda como elemento de introdução, sugerimos a leitura de um pequeno conto de Franz kafka e da glosa que a ele se segue. Ambos aparecem aqui com a dupla intenção de provocar e mo-tivar uma reflexão preliminar sobre o objeto de nosso estudo. O conto, intitulado Uma folha antiga, integra o corpo de Um médico rural: pequenas narrativas, livro publicado pelo autor em 1919, numa época de intensos conflitos e desamparo político, e narra a história de um sapateiro inserido no miolo de uma situação políti-ca dramática.

Uma folha antiga ––––––––––––––––––––––––––––––––––––– É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da nossa pátria. Até então não havíamos nos importado com isso, entregues como estávamos ao nosso trabalho; mas os acontecimentos dos últimos tempos nos causam pre-ocupações.Tenho uma oficina de sapateiro na praça em frente ao palácio imperial. Mal abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo ocupado por homens armados as en-tradas de todas as ruas que confluem para cá. Mas não são soldados nossos e sim nômades vindos evidentemente do norte. De uma maneira incompreensível para mim eles penetraram até a capital, que, no entanto, fica muito distante da fronteira. Seja como for já estão aí; parece que a cada manhã se tornam mais numerosos.Seguindo sua natureza eles acampam a céu aberto, pois abominam as casas. Ocupam-se em afiar as espadas, aguçam as lanças e praticam exercícios a ca-valo. Fizeram desta praça tranqüila, mantida sempre escrupulosamente limpa, uma autêntica estrebaria. É verdade que nós tentamos às vezes sair às pressas das nossas lojas para retirar pelo menos o grosso da sujeira, mas isso ocorre com uma freqüência cada vez menor, pois o esforço é inútil e, além disso, corre-mos o perigo de cair sob as patas dos cavalos selvagens e de ser feridos pelos chicotes. Com os nômades não se pode falar. Eles não conhecem a nossa língua, na realidade quase não têm um idioma próprio. Entendem-se entre si de um modo semelhante ao de gralhas. Para eles nossa maneira de viver, nossas institui-ções são tão incompreensíveis quanto indiferentes. Conseqüentemente recusam qualquer linguagem de sinais. Você pode deslocar as mandíbulas e destroncar as mãos que eles não o compreendem nem nunca irão compreender. Muitas ve-zes fazem caretas; mostram então o branco dos olhos e a baba cresce na boca, mas com isso não querem dizer alguma coisa nem assustar ninguém; fazem-no porque é essa a sua maneira de ser. Aquilo de que precisam eles pegam. Não se pode afirmar que empreguem a violência. Ante a sua intervenção as pessoas se põem de lado e deixam tudo para eles.Também das minhas provisões eles levaram uma boa parte. Mas não posso me queixar quando vejo, por exemplo, o que acontece ao açougueiro em frente. Mal ele traz as suas mercadorias, tudo já lhe foi tirado e engolido pelos nômades. Os cavalos deles também comem carne; muitas vezes um cavaleiro fica ao lado do

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seu cavalo e os dois se alimentam da mesma posta de carne, cada qual por uma extremidade. O açougueiro é medroso e não ousa acabar com o fornecimento. Mas nós entendemos o que se passa, recolhemos dinheiro e o ajudamos. Se os nômades não recebessem carne, quem é que sabe o que lhes ocorreria fazer? De qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer, ainda que recebam carne diariamente?Não faz muito o açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei bem uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair já fazia silêncio há muito tempo; como bêbados em torno de um barril de vinho, eles estavam deitados mortos de cansaço em torno dos restos do boi.Justamente nessa época acreditei ter visto o imperador em pessoa numa janela do palácio; em geral ele nunca vem a esses aposentos externos, vive sempre no mais interno dos jardins; mas desta vez, pelo menos assim me pareceu, ele estava em pé junto a uma das janelas olhando de cabeça baixa o movimento diante do seu castelo. – O que irá acontecer? – todos nós nos perguntamos. – Quanto tempo vamos suportar esse peso e tormento? O palácio imperial atraiu os nômades mas não é capaz de expulsá-los. Os portões permanecem fechados; a guarda, que antes entrava e saía marchando festivamente, mantém-se atrás de janelas gradeadas. A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não esta-mos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar (KAFKA, 1999, p. 24-26). ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Glosa

O pequeno conto transcrito, um exemplar típico do universo de kafka, apresenta a situação fictícia protótipo da situação real. Se pudéssemos distender o arquivo da história de modo a deixar sobressair os gritos não ouvidos, as vozes roucas e abafadas, ve-rificaríamos sem muito esforço que ao longo dos séculos muitos oprimidos repetiram a pergunta final do conto do escritor tcheco: "até quando vamos suportar?".

O narrador de Uma folha antiga vive o cotidiano de uma ci-dade dominada por gente estrangeira, desconhecida, despropor-cional. Não que isso fosse de se notar a princípio. O trabalho co-tidiano dos moradores da cidade deve seguir o seu ritmo normal, não há dúvida quanto a isso. O incômodo somente toma corpo quando já não é mais possível ignorar a invasão dada a sujeira e o

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cheiro da praça principal cheia de estrume. Fossem os estrangeiros pouco mais discretos, talvez nem fossem notados. Mas o estarda-lhaço dos cavalos a galope unido ao alvoroço de seus cavaleiros, que afiam espadas e bradam chicotes, não deixa passar desperce-bida a presença infortuna.

Logo de início, o conto deixa entrever a distância que se in-terpõe entre os moradores da cidade e o novo governo instaurado pelos nômades. impossível qualquer comunicação ou mesmo con-tato. impossível resistir à sua força. A experiência tem demonstra-do que nesses casos o melhor a se fazer é aceitar o mais rápido a nova situação, sem perder tempo com perguntas inúteis, sem se deixar levar por sentimentos arredios, e procurar se adaptar ao novo estilo de vida. questões e pulsões, de fato, só resultam em depressão ou castigo, desperdício que é melhor evitar. A gente aguenta, a vida ainda vale a pena.

O conto traz à tona uma relação de poder capilar em que do-minação e opressão reclinam virgens em lados opostos. No novo ambiente da cidade, nenhuma organização política tem lugar. Uma única tentativa tem em vista ajudar um morador que possui ainda maior má sorte. A situação do açougueiro comove, provoca a mo-bilização dos demais comerciantes da praça, mas se obtém desta-que a sua desgraça, isso ocorre por efeito de uma função didática: demonstrar que a situação de um morador da cidade pode sempre piorar. Em todo caso, uma ajudinha sempre é bem-vinda, espe-cialmente se colaborar com o fornecimento de carne e com a paz social.

Os nômades comem carne. Os cavalos também. Comem no mesmo prato, dividindo às vezes uma mesma posta de carne viva ou morta. isto não pode ser ignorado. quem devora um boi vivo por que não iria comer um morador desavisado que atravessasse a praça no momento errado? Aproximar-se de alguém que pode assim engolir assusta até aos mais destemidos. Chicotes e patas de cavalo exercem o fascínio que mantém a distância, mas nem sempre os instrumentos de poder são tão visíveis. Ameaça e as-

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sédio moral assustam as almas mais sensíveis e se encaixam como peças acessórias e móveis nos radicais livres das estruturas que engrossam o poder. quem ousaria desafiar os estrangeiros? quem ousaria levantar a voz? Escutariam, os nômades, algum conselho, pessoas simples, um açougueiro, um sapateiro, um lixeiro? Aí cabe só um tipo de política manca: resignação.

Se os estrangeiros, todavia, quiserem se perpetuar no gover-no da cidade por um período longo de tempo devem ser mais es-pertos e aprender a falar a língua do povo, de modo a discursarem e convencerem que o seu domínio é necessário. Não custa nada lembrar a lição de Hobbes: mesmo os mais fortes podem sucumbir diante dos mais fracos se estes são capazes de atacar os primei-ros num momento de desatenção ou fragilidade (Leviatã, Primeira Parte, capítulos xiii e xiV). A garantia de conservação do poder de-pende da sagacidade dos nômades, que devem até chegar ao cú-mulo de incentivar a participação popular nos negócios públicos, quiçá através do sufrágio. Assim, os moradores se sentirão úteis e reconhecerão na dominação o reflexo de sua vontade soberana.

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS

Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta unidade.

A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-bertas com os seus colegas.

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Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade:

1) O que é política?

2) qual a diferença entre política e politicagem?

8. CONSIDERAÇÕES

Procuramos, nesta unidade, introduzir nosso tema. Na pró-xima unidade, ficaremos com a Filosofia Política na Antiguidade. Conheceremos os pensamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles a respeito da política.

9. e-referênCia

LiGóRiO, S. Eleição é coisa séria. Disponível em: <http://www.vidaempoesia.com.br/linguagemeleicao.htm>. Acesso em: 28 mar. 2012.

10. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

CHAUí, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.CORBiSiER, R. Filosofia política e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.DALLARi, D. A. O que é participação política. São Paulo: Brasiliense, 1994.kAFkA, F. Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.MAAR, W. L. O que é política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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EAD

2Filosofia Política na Antiguidade

1. OBJETIVOS

• Compreender as condições de nascimento da Filosofia Política e o seu estatuto.

• Analisar os principais pensamentos filosóficos do período no que concerne à política.

2. CONTEúDOS

• O conceito de política e a experiência da democracia.• Platão e a cidade justa.• Aristóteles e o bem comum como finalidade da vida po-

lítica.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

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1) Lembre-se de que há muitas maneiras de pensar o con-ceito de política. As questões autoavaliativas que se-guem ao final das unidades são abertas e querem ajudar na compreensão das polissemias aí presentes.

2) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli-tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun-damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo.

3) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am-plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate-rial didático apresentado.

4) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci-clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto.

5) Embora não tenhamos, neste CRC, dedicado espaço a correntes filosóficas do período helênico, tais como o epicurismo, o estoicismo ou o ceticismo, aquele que quiser estudar a fundo a experiência política na filosofia antiga não pode negligenciá-las. Muito menos esquecer as influências que marcaram a passagem da Antiguidade à idade Medieval, tais como os discursos de Marco Túlio Cícero e outros pensadores do império Romano.

4. INTRODUÇÃO à UNIDADE

Na primeira unidade, procuramos compreender o contexto da Filosofia Política, bem como nos ambientar com as discussões sobre o conceito de política e a organização do poder. Nesta unida-de, a partir das vicissitudes da história grega, veremos como estão vinculados o conceito de política e a experiência da democracia. Estudaremos, ainda, os dois principais filósofos do período que costumamos denominar como Antiguidade: Platão e Aristóteles. Por fim, veremos como esses dois pensadores abordaram os te-mas relacionados à política e à organização da vida em sociedade.

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5. CONCEITO DE POLíTICA E ExPERIêNCIA DA DEMO-CRACIA

Se quisermos ser fiéis aos principais livros de história uni-versal, precisamos indicar a Grécia Antiga como o berço do que atualmente entendemos por política. O próprio conceito de políti-ca está atrelado à experiência grega de fundação da pólis e de sua coordenação e organização.

A partir dos fins do século 8º a.C., certos agrupamentos ini-ciam a construção de cidadelas para proteção contra inimigos, constituindo governos centralizados. A passagem de uma cultura agrária desarticulada e fundada sob a propriedade territorial à ins-tituição de uma oligarquia urbana, fundada economicamente sob o artesanato e o comércio, auxilia a constituição de novas cidades. Um novo modelo de organização política surge então: a Cidade--Estado.

O período clássico da cultura política grega virá, no entan-to, somente alguns séculos depois. Do século 6º a.C. ao século 5º a.C., algumas reformas realizadas por Clístenes, Efialtes e Péricles inauguram um novo regime de governo que será conhecido pelo nome de democracia. Em Atenas, surge o governo do povo pelo povo, pautado por princípios de liberdade e igualdade. As decisões importantes são tomadas em assembleias populares nas quais to-dos têm o direito à palavra e ao voto – todos aqueles que eram considerados cidadãos, isto é, os homens livres atenienses. Os car-gos de magistratura e administração da cidade tornam-se acessí-veis a todos os cidadãos interessados, preenchidos mediante um procedimento de sorteio e prova de habilidades. Mesmo os mais pobres podem a eles concorrer, uma vez que a investidura garantia a sobrevivência da família por meio de uma remuneração. Surgem, ainda, as obrigações para os governantes na medida em que ne-cessitam prestar contas das suas administrações.

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Aliadas ao desenvolvimento político e de um império marí-timo, tanto a economia como a vida intelectual e artística passam por um período de grande efervescência. Este é o século de sofis-tas ilustres como Protágoras e Górgias, o século de Sócrates, e o século de renomados escritores trágicos como Ésquilo, Sófocles e Eurípides.

O período perdura até o esgotamento com a Guerra do Pe-loponeso e o domínio final por Filipe e Alexandre da Macedônia. Tucídides, historiador grego incomodado com os acontecimentos da época, constatando a degeneração do regime democrático ateniense e sua incapacidade em conduzir a guerra e gerir seus problemas internos, registra suas impressões num livro intitulado História da Guerra do Peloponeso, livro que será posteriormente traduzido para a língua inglesa por Thomas Hobbes. Platão, nasci-do na segunda metade do século 5º a.C., assiste ao declínio da ex-periência democrática grega e sua filosofia levará em consideração o sabor amargo que dela restou.

Vamos, agora, nos ocupar de Platão e Aristóteles.

6. PLATÃO E A CIDADE JUSTA

Consternado pela condenação à mor-te do mais justo dos cidadãos de Atenas e pela corrupção que assolava a cidade grega e a levaria definitivamente à ruína, Platão pre-tende erigir uma Filosofia Política sob uma base científica sólida. Os acontecimentos de sua época exigem um esforço para se pen-sar uma política distinta daquela preconiza-da pelos sofistas, amantes da retórica e das

técnicas de oratória, mas negligentes com relação ao compromisso com a verdade. A constituição de uma cidade em que se possa bem viver supõe uma ciência do político.

Figura 1 Platão (428/427-348/347).

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Platão expõe sua teoria sobre a política basicamente em três obras: na República, no Político e nas Leis. Contudo, podemos no-tar que sua Filosofia Política possui uma relação visceral tanto com a sua ética, quanto com toda a sua teoria do conhecimento. Neste momento, vamos nos ater somente aos aspectos mais importan-tes para compreendermos a teoria política platônica. Para aqueles que desejarem um estudo mais aprofundado do tema, aconselha-mos que recorram à história da filosofia antiga.

No Político, ao final de uma longa discussão que segue o ca-minho de uma dialética ascendente, Platão traz uma definição até hoje muito utilizada. Política seria a ciência que sabe reunir os con-trários, separar os diferentes e juntar os semelhantes, e transfor-mar a discórdia em concórdia. O político seria, então, aquele que domina a ciência da proporção e da harmonia. Será na República, no entanto, que Platão exporá de modo detalhado o que entende por política e por justiça, oferecendo um modelo de cidade ideal.

Para facilitar a compreensão da Filosofia Política platônica, propomos iniciar o seu estudo pela leitura do seguinte parágrafo do Livro ii da República (369b-370c). Sócrates assim conduz o seu diálogo com Adimanto:

– Ora – disse eu – uma cidade tem a sua origem, segundo creio, no fato de cada um de nós não ser auto-suficiente, mas sim ne-cessitado de muita coisa. Ou pensas que uma cidade se funda por qualquer outra razão?

– Por nenhuma outra – respondeu.

– Assim, portanto, um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda para outra, e, como precisariam de muita coisa, reú-nem numa só habitação companheiros e ajudantes. A essa associa-ção pusemos o nome de cidade. Não é assim?

– Absolutamente.

– Mas se uma pessoa participa numa sociedade com outra, se dá ou recebe algo, é na convicção de que isso é melhor para ela?

– Certamente.

– Ora vamos lá! – disse eu – Fundemos em imaginação uma cidade. Serão, ao que parece, as nossas necessidades que hão de fundá-la.

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– Como não?

– Mas por certo que a primeira e a maior de todas as necessidades é a obtenção de alimentos, em ordem a existirmos e a vivermos.

– inteiramente.

– A segunda é a habitação; a terceira, o vestuário e coisas no gê-nero.

– Assim é.

– Ora – prossegui. Como é que a cidade bastará para a obtenção de tantas coisas? Existirá outra solução que não seja haver um que seja lavrador, outro pedreiro, outro tecelão? Acrescentar-lhes--emos também um sapateiro e qualquer outro artífice que se ocu-pe do que é relativo ao corpo.

– Com toda certeza.

– Logo, o mínimo que se pode chamar uma cidade compõe-se de quatro ou cinco homens?

– Assim parece.

– E agora? Deve cada um destes homens executar o seu trabalho próprio, para ser comum a todos? Por exemplo, o lavrador, sozinho, fornecerá trigo para quatro e gastará o quádruplo do tempo e do esforço com a obtenção do trigo para partilhar com os outros, ou preocupar-se-á apenas consigo, e preparará a quarta parte deste trigo, na quarta parte do tempo, e os outros três quartos gastá--los-á um na construção de uma casa, outro na confecção de um manto, outro ainda de calçado, e, sem partilhar com os outros, terá as suas coisas, fazendo por si mesmo o que é seu?

Adimanto declarou: – Talvez seja mais fácil do primeiro modo que do segundo, ó Sócrates.

– Por Zeus, que nada me admira! – disse eu – Ao ouvir-te falar, pen-so também que, em primeiro lugar, cada um de nós não nasceu igual ao outro, mas com naturezas diferentes, cada um para a exe-cução de sua tarefa. Ou não te parece?

– Parece-me.

– Como assim? Uma pessoa fará melhor em trabalhar sozinho em muitos ofícios, ou quando for só um a executar um?

– quando for só um a executar um.

– Mas julgo eu que é também evidente que, se alguém deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa, perde-a.

– É evidente.

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– É que, creio eu, a obra não espera pelo lazer do obreiro, mas força é que o obreiro acompanhe o seu trabalho, sem ser à maneira de um passatempo.

– É forçoso.

– Por conseguinte, o resultado é mais rico, mais belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo com a natureza e na ocasião própria, deixando em paz as outras (2001).

O texto fala por si mesmo. De acordo com Platão, uma cida-de existe para que os homens possam coordenar os seus traba-lhos e viver melhor. quanto mais correta for a divisão de ofícios no interior de uma cidade, melhor ela estará organizada e de maior harmonia gozará.

A conclusão encontrada por Sócrates e seu interlocutor le-vará a uma série de outras consequências teóricas. O conceito de justiça será definido tendo em vista o cenário de uma cidade justa. Nela, cada um desempenha a sua função. Uma ordem proporcio-nal nos leva a crer que numa cidade justa, cada um deve ocupar-se de uma tarefa, aquela para a qual está mais preparado. E, numa cidade assim concebida, a finalidade da política não será o exercí-cio puro e simples do poder, mas a realização da justiça para o bem comum da comunidade de homens reunidos pela cidade.

A quem Platão entregaria o governo de uma cidade que se pretenda justa? quem poderia conhecer a totalidade das funções, coordenar as diferenças, saber em que consiste o bem da cidade? O governo de uma cidade deverá ser exercido por aquele que es-teja mais preparado para a função: o filósofo.

Já podemos entender então por que o conceito de uma ci-dade justa está aliado ao conceito de alma justa. O princípio é o mesmo: a melhor parte deve governar a pior. Assim como a parte racional deve dominar a parte irracional da alma, coisa que se con-clui, por exemplo, da leitura do Mito do Cocheiro exposto no Fe-dro, uma elite intelectual deve orientar o funcionamento de uma cidade para que ela atinja a sua finalidade, qual seja, proporcionar uma vida boa a seus componentes.

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Tendo em vista o seu conceito de uma cidade justa e as dife-rentes classes de uma sociedade, Platão sugere um extenso pro-grama educacional para que se determine a que função deve cada um se dedicar. Embora pareça anacrônico o projeto platônico, po-demos nele visualizar certas inovações importantes: não há mais distinção entre crianças de diferentes classes sociais, nem entre meninos e meninas. Uma mesma educação deve ser dada a todas as crianças, que serão selecionadas segundo sua natureza e suas habilidades ao final de cada etapa do curso de aprendizado. As menos dotadas pertencerão à classe dos agricultores, artesãos e comerciantes, outras pertencerão à classe dos guardiães e guerrei-ros, e apenas as que se saírem melhor poderão estudar as ciências de formação do raciocínio e se tornarem magistrados para a admi-nistração pública.

Se notarmos bem, o programa para a educação das crianças em uma cidade justa está intimamente vinculado à teoria do co-nhecimento. As etapas de formação seguem não somente a divi-são interna de classes de uma cidade organizada, como a estrutura dos modos de conhecer, a preparação do espírito para que con-temple a verdade. De início, todas as crianças recebem a mesma educação: ginástica e dança, jogos pedagógicos para iniciação na leitura e na matemática, poesia épica. Aos sete anos, passando por um processo de seleção, as mais bem dotadas seguirão seus estu-dos, sendo alfabetizadas e aprendendo artes marciais e técnicas de luta. Aos vinte anos, uma nova seleção distingue as mais bem dotados. Alguns seguirão pelo estudo das matemáticas, astrono-mia e da música, ciências das grandezas proporcionais estáveis. Aos trinta e cinco anos, serão submetidos a nova prova e somente os que se mostrarem mais aptos deverão seguir adiante, estudan-do ética, física, política, dialética. Aos cinquenta anos, se aprova-dos, os alunos estarão aptos a pertencerem à classe dos magistra-dos e dirigentes políticos.

Esses são os filósofos, capazes de usar a razão com todo o seu esplendor, conhecer as ideias perfeitas, conhecer o bem em si. O

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amor à verdade e o esforço pelo conhecimento do mundo inteligível serão os traços distintivos de uma classe apta a organizar o funcio-namento de uma cidade e conduzi-la pelos caminhos do bem.

Essa é a conclusão de Sócrates em República (473d-473e): – Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fa-zer, não haverá trégua dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descreve-mos. Mas isto é o que eu há muito hesitava em dizer, por ver como seriam paradoxais essas afirmações. Efetivamente, é penoso ver que não há outra felicidade possível, particular ou pública (2001).

7. ARISTóTELES E O BEM COMUM COMO fINALIDA-DE DA VIDA POLíTICA

Ética e política possuem uma vigorosa im-bricação em Aristóteles. A cidade será o local privilegiado da vida virtuosa e o político exem-plar será aquele afeto à disposição da prudên-cia. As páginas de Ética a Nicômaco serão não somente a principal referência para a compre-ensão de uma ética prática, segundo a qual a virtude consiste na escolha do justo meio en-tre dois extremos, encontrado pela prudência,

educado pelo hábito, mas também serão responsáveis pela passa-gem da ética à política.

Essa passagem é realizada pela introdução de um conceito que parece ter sido esquecido ao longo da história da filosofia: a amizade. Já não acreditamos mais no amor desinteressado e a gasta palavra amizade, usada à exaustão por discursos maliciosos, já não comove tanto quanto no seu frescor inicial. Para os gregos, no entanto, a amizade continha ainda um sabor especial.

Figura 2 Aristóteles (384-322).

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Os livros Viii e ix da Ética a Nicômaco a ela se dedicam, distinguindo o vício da virtude: akrasía, a incontinência, falta de domínio sobre si, e philía, amizade. Enquanto a amizade consiste na benevolência, na busca do prazer do outro, na entrega desin-teressada, o vício busca obter o próprio prazer, sempre de modo imoderado e arbitrário, por vezes mascarando-se de amizade para ludibriar e conseguir uma maior vantagem. Por isso, para Aristóte-les, a amizade só pode existir entre prudentes e virtuosos, entre aqueles que são semelhantes no desejo de fazer bem a outrem.

Assim entendemos o porquê da passagem da vida ética à vida política. Muito natural que os homens virtuosos e dados à amizade se unam em busca de um bem comum. A amizade será, então, ao mesmo tempo condição e consequência da vida em co-munidade, "argamassa" na construção da vida justa e feliz.

A principal obra de Aristóteles no que diz respeito à Filosofia Política, no entanto, traz como título A Política. No decorrer dos livros que integram o corpo da obra, o filósofo oferece uma análise detalhada do que vem a ser a constituição de uma sociedade polí-tica e quais são as suas características.

Entre os mais relevantes princípios legados à história do pensamento político do Ocidente, encontra-se aquele segundo o qual o homem é um animal político por natureza – zóon poliktikon. Sendo um animal gregário, como as abelhas e as formigas, todo homem possui uma inclinação natural à vida em comunidade. Po-demos ler no livro primeiro, capítulo 1, de A Política:

Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as socie-dades, pois, se propõem qualquer lucro – sobretudo a mais impor-tante delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política.

(...) É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem (1988).

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Há uma tendência natural no homem para a vida comunitá-ria. Sendo carente, ele precisa da companhia dos outros homens, não somente para suprir suas necessidades básicas, mas para al-cançar a completude a que aspira. Não é possível ao homem ser feliz sozinho. O ser humano só se realiza em comunidade.

Ainda que existam comunidades cronologicamente anterio-res às cidades, tais como as famílias ou as pequenas aldeias, Aris-tóteles acredita que a comunidade propriamente dita só se cons-titua na cidade, na comunidade política. Será a cidade constituída com a finalidade do bem comum e da vida justa o paradigma do seu programa político.

Mas atente para o seguinte:Embora a Cidade seja natural, isso não significa que a natureza a produza espontaneamente. Assim como a phýsis dá ao indivíduo o desejo, isto é, a inclinação natural para o bem – mas a ética precisa intervir como ação voluntária e deliberada para que essa finalidade seja alcançada por meio das virtudes –, assim também o Estado (ou pólis) nasce da ação deliberada e voluntária dos homens, e por isso a política não é uma ciência teorética e sim uma ciência prática, em que a ação tem a si mesma como seu fim. Assim como ninguém nasce virtuoso, mas se torna virtuoso, assim também ninguém nasce cidadão, mas se torna cidadão pela educação, que atualiza a inclinação potencial e natural dos homens à vida comunitária ou social (CHAUí, 2002, p. 467).

O homem precisa, então, tornar-se um cidadão. Mas note que, para Aristóteles, a palavra cidadão difere substancialmente em sentido do que entendemos atualmente pelo termo. Para o filósofo, cidadão era aquele que efetivamente participava da polí-tica, excluídos as mulheres, as crianças, os idosos, os estrangeiros e os escravos. Os direitos políticos só eram destinados a uma mi-noria que participava diretamente do governo, seja participando das discussões públicas, seja decidindo rumos para a condução dos negócios públicos.

A adoção de um regime de governo será definida pela quan-tidade de cidadãos que ocuparem o poder soberano. Se for o go-verno de um só cidadão, será ele a realeza. Se for de alguns, será a

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aristocracia. Se for de todos, será a república. A degeneração pelos vícios gera, contudo, versões corrompidas dos governos perfeitos. A realeza converte-se em tirania, a aristocracia em oligarquia, a república em democracia.

Antes de terminarmos esta unidade, convém salientar um aspecto do pensamento aristotélico caro às teorias da justiça que se seguirão.

independentemente de sua constituição, a cidade existe para que os homens tenham condições de gozar de uma vida jus-ta e harmoniosa. Na avaliação das cidades, um critério tem proe-minência: a justiça. Uma cidade justa, segundo Aristóteles, deve tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade. Tratar a todos com absoluta igualdade não contempla as exigên-cias da justiça. Uma distribuição proporcional dos bens deve ter o princípio da justiça como fio condutor.

Por isso, duas instituições de justiça são necessárias às cida-des: uma justiça distributiva e outra comutativa. A primeira realiza a partilha dos bens disponíveis, tratando a cada um segundo os ditames da proporcionalidade. A segunda corrige os erros da pri-meira, estabelecendo leis e aplicando regras do direito e penalida-de aos delinquentes.

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade:

1) quais os principais elementos do surgimento da democracia na Grécia An-tiga?

2) Como pensar o conceito de política para Platão?

3) Como pensar o conceito de política para Aristóteles?

4) É possível comparar democracia contemporânea e democracia clássica?

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9. CONSIDERAÇÕES

Nesta unidade, trabalhamos com a Filosofia Política na Anti-guidade. Na próxima unidade, estudaremos a Filosofia Política na idade Média. Conheceremos os pensamentos de Agostinho e To-más de Aquino a respeito da política.

10. e-referênCias

Lista de figurasfigura 1 Platão (428/427-348/347). Disponível em: <http://www.dialogocomosfilosofos.com.br/category/platao/>. Acesso em: 26 jun. 2012.figura 2 Aristóteles (384-322). Disponível em: <http://www.filosofiaonline.com/filosofia/?tag=aristoteles>. Acesso em: 26 jun. 2012.

11. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

ARiSTóTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.______. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973. v. 4. (Coleção Os pensadores).CHâTELET, F., DUHAMEL, O.; PiSiER-kOUCHNER, E. História das idéias políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.CHAUí, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.COULANGES, F. A cidade antiga. Tradução de Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998.HATZFELD, J. História da Grécia Antiga. Tradução de Cristóvão dos Santos. 3. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. PLATãO. A república. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.______. O político in diálogos. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os pensadores).______. Leis in diálogos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1980. v. xii-xiii.REALE, G. História da filosofia antiga: das origens a Sócrates. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993. v. 1. ______. História da filosofia antiga: Platão e Aristóteles. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994. v. 2.

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______. História da filosofia antiga: os sistemas da era helenística. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994. v. 3.RUBY, C. Introdução à filosofia política. Tradução de Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 1998.VERNANT, J. P. Entre mito e política. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

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EAD

3Filosofia Política na Idade Média

1. OBJETIVOS

• Compreender o desenvolvimento da Filosofia Política na idade Média.

• Analisar os principais pensamentos filosóficos do período no que concerne à política.

2. CONTEúDOS

• Agostinho e a Cidade de Deus.• Tomás de Aquino e a pedagogia da lei divina.• Texto complementar: Agostinho.• Texto complementar: Tomás de Aquino.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

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1) Lembre-se de que há muitas maneiras de pensar o con-ceito de política. As questões autoavaliativas que se-guem ao final das unidades são abertas e querem ajudar na compreensão das polissemias aí presentes.

2) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli-tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun-damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo.

3) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am-plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate-rial didático apresentado.

4) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci-clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto.

5) Uma prática reflexiva integral, englobando leitura aten-ta, pesquisa bibliográfica e hábito de questionamento são alguns dos atributos que você precisa adquirir e cul-tivar para que possa expandir seus conhecimentos. Cabe ressaltarmos que cada exercício realizado representa um momento em que você exercita o seu poder de compre-ensão e análise de conceitos, de interpretação de textos e de síntese, seu senso crítico e suas habilidades inter-pessoais.

4. INTRODUÇÃO à UNIDADE

Na unidade anterior, pudemos compreender as condições de nascimento da Filosofia Política e o seu estatuto. Discutimos o conceito de política e a experiência da democracia. Analisamos também do ponto de vista político os principais pensamentos filo-sóficos do período: a cidade justa (Platão) e o bem comum como finalidade da vida política (Aristóteles).

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Vamos, agora, iniciar o estudo da Filosofia Política no perío-do medieval da história. Mas por que dedicar uma unidade à filo-sofia medieval? Não é ela toda obscura, fundada sob uma metafí-sica improvável, dominada pelos interesses do poder eclesiástico? àqueles que possuem uma tendência a suprimi-la uma advertên-cia se faz oportuna: é estupidez tratar toda a idade Média como uma grande vala da história, ou acreditar que todos os pensadores do seu período disseram o mesmo.

Adiante! Vamos ver como dois dos principais filósofos da idade Média pensaram a política. Embora suas teorias pouco se-jam utilizadas pelos filósofos que atualmente se dedicam aos pro-blemas da política contemporânea, veremos como foram impor-tantes na história do pensamento ocidental.

Ao final da unidade, você encontrará dois textos comple-mentares. Sugerimos a leitura de ambos.

Trata o primeiro texto de um capítulo retirado do livro A ci-dade de Deus, de Agostinho. O filósofo refere-se à ética enquanto condição e fundamento de uma cidade perfeita, à busca do bem e à relação entre filosofia e felicidade. Notemos como Agostinho se utiliza da obra platônica para os seus próprios fins, e como a filo-sofia ainda aparece atrelada à procura da felicidade.

O segundo texto complementar reproduz um trecho de Suma Teológica de Tomás de Aquino. Por ele, podemos visualizar o método pedagógico do filósofo e compreender a utilidade das leis humanas para organização do espaço coletivo. Notemos aí como a política já está efetivamente dominada pelo jurídico e pela prima-zia da confecção das leis.

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5. AGOSTINhO E A CIDADE DE DEUS

A influência do pensamento de Agostinho não pode ser desmerecida. Poucos escritores marcaram de modo tão decisivo a história e a cul-tura de uma época. A sua imensa obra intitulada A cidade de Deus foi, durante um longo período, durante séculos, uma referência inescusável não somente quanto a pontos controversos da teo-logia, mas, também, quanto à compreensão da história universal e da Filosofia Política.

Agostinho preocupa-se menos com a constituição política das cidades onde viviam os homens e mais com estabelecer dis-tinções entre as realidades materiais e espirituais. No prefácio de A cidade de Deus, capítulo que pretende definir o motivo e o ar-gumento da obra, lemos o anúncio da existência de uma cidade diversa da cidade fundada pelos homens:

A gloriosíssima Cidade de Deus – que no presente decurso do tem-po, vivendo da fé, faz sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabilidade da eterna morada com paciência até o dia em que será julgada com justiça, e que graças à sua santida-de, possuirá então, por uma suprema vitória, a paz perfeita – tal é, Marcelino, meu caríssimo filho, o objeto desta obra.

Todos os homens vivem numa realidade temporal e terrena, mas há alguns que se destacam por um vínculo especial e formam assim uma cidade eterna e celeste.

Os homens que amam a Deus são unidos pelo amor que têm por ele e unidos entre si pelo vínculo do mesmo amor, indepen-dentemente das fronteiras criadas pelos povos e línguas. Assim como os homens unidos pelo vínculo civil se organizam em cida-des tendo em vista um mesmo bem, os bens necessários à vida e a paz, os homens unidos pela busca de um mesmo bem superior, o amor divino e a beatitude, sejam eles do tempo presente, passa-do ou futuro, formam uma cidade diversa, cidade que receberá o nome de Cidade de Deus.

Figura 1 Agostinho de Hipona (354-430).

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Para melhor compreender o que quer dizer Agostinho com a expressão que dá o título da obra, vejamos alguns trechos do Livro xi, capítulo i:

Chamamos Cidade de Deus àquela de que dá testemunho a Escritu-ra que, não devido a movimentos fortuitos dos ânimos, mas antes devido a uma disposição da Suma Providência, ultrapassando pela sua divina autoridade todas as literaturas de todos os povos, aca-bou por subjugar toda espécie de humanos engenhosos. (...)

Com estes testemunhos e outros que tais, que seria longo citar, sa-bemos que há uma Cidade de Deus da qual aspiramos ser cidadãos movidos pelo amor que o seu fundador infundiu em nós. A este fundador da cidade santa preferem os cidadãos da Cidade Terrestre os seus próprios deuses (...).

Vou tratar de expor a origem, o desenvolvimento e os fins destas duas cidades, a terrena e a celeste, que estão, como disse, interliga-das e de certo modo misturadas uma na outra no século presente.

A história da humanidade é a história das relações entre as duas cidades. Os grandes acontecimentos aparecem aí como fa-ses de um longo percurso conduzido por um plano de Deus com vistas à plenitude dos tempos. Toda a história é atravessada por um mistério insondável, reflexo de uma atuação ininterrupta da Providência Divina.

Embora as duas cidades permaneçam mescladas, há uma realidade espiritual que as distingue. Aqueles que se entregam ao amor divino vivem como eleitos no seio da sociedade terrena. Segundo Agostinho, as duas cidades permanecem juntas e serão separadas e distintamente constituídas no dia do Juízo Final.

Aqueles que pertencem à cidade divina são unidos por um sentimento que possui uma força capaz de criar laços comunitá-rios: o amor. Um amor dirigido antes de tudo a Deus, expressão do renunciar ao egoísmo que o pode contaminar. Diz o Livro xiV, capítulo xxViii, da mesma obra:

Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus – a terrestre; o amor de Deus até o desprezo de si – a celeste.

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Os homens foram criados por Deus e possuem uma vital ca-pacidade de amar. Os vícios, frutos de uma vontade corrompida, são contrários à natureza boa do homem. Por isso, todos os ho-mens podem encontrar em si os fundamentos do amor e perten-cer à cidade celeste. Para que se tornem cidadãos de uma cidade magistral, precisam descobrir o amor que há em si e dirigi-lo para a fonte do bem.

Agostinho sabe, contudo, que as exigências do amor não são fáceis de acolher. O amor dirigido a Deus é também o que une os homens no século. Ninguém pode utilizar o amor a Deus como desculpa para negligenciar a relação com aquele que está ao seu lado como membro de uma mesma comunidade humana e, por que não dizer, política. Amar a Deus é amar aos homens e o Deus que neles habita.

6. TOMÁS DE AQUINO E A PEDAGOGIA DA LEI DIVINA

Tomás de Aquino quer basear sua Filoso-fia Política em princípios de legalidade. Há di-versidade de leis e a relação entre leis de natu-rezas distintas deve estabelecer os parâmetros da vida política e social.

Seguindo o rastro da metafísica aristotéli-ca, Tomás de Aquino pensará a ética do homem tendo como premissa que todo ser traz em si uma causa final, toda forma possui um apetite

natural que a direciona para determinado fim. Observando os mo-vimentos da natureza, o filósofo acredita numa ordenação univer-sal e racional: todo ser criado possui uma finalidade.

Tal acontece com o homem. O objeto necessário de sua von-tade é o bem. Todo homem deseja o bem, todos os homens são iguais no desejo do fim último: a beatitude. Há, porém, uma ca-racterística humana que o distingue dos outros seres. O homem

Figura 2 Tomás de Aquino (1225-1274).

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possui uma vontade livre, podendo escolher livremente os meios que conduzam àquele fim.

Ocorre que o homem, na procura do bem que concretize seu fim beatífico, pode escolher meios inadequados. Sendo imperfeito, o homem pode escolher voluntariamente um mau caminho ou pode errar quanto à escolha do melhor caminho, desviando-o de sua fina-lidade. Essa é a dinâmica da vida humana. Há vícios que corrompem tanto a inteligibilidade quanto a fidelidade da vontade.

Aí vemos mais uma vez como a confiança na razão marca a história do pensamento ocidental. Na dinâmica da vida humana, a virtude primordial seria a disposição para o agir conforme a razão. Pelo uso da razão, o homem chega ao caminho das virtudes e sua liberdade, antes de dificultar o seu acesso à beatitude, o auxilia. inteligência e vontade obedecem à reta finalidade e aprendem das três virtudes morais basilares: justiça, temperança e fortaleza. Elas devem regular toda conduta humana, seja ela interna ou externa.

Como entender, então, o papel das leis humanas? Segundo Tomás de Aquino, as leis cumprem uma relevante função na me-dida em que visam nortear a vida externa do homem que vive em comunidade. Uma comunidade sem leis seria uma comunidade caótica, fadada ao fracasso. Frutos da razão, as leis devem tornar a terra habitável. Tendo como finalidade uma comunidade perfeita, as leis devem servir ao bem comum: a felicidade e o bem-estar de toda a coletividade. Mas ainda que exista um fundo comum no qual se apóiem todas as leis, elas devem emanar de cada comuni-dade distinta ou de uma pessoa que legitimamente a represente. Cada comunidade possui características próprias que não podem ser desprezadas na elaboração das leis.

Dito isso, poderíamos perguntar: o que vem a ser esse fundo comum de toda lei humana? Como defini-lo? O rosto da filosofia de Tomás de Aquino somente aparecerá na resposta à questão: sendo Deus o governador da primeira e maior das comunidades, há uma lei eterna da qual devem emanar todas as leis humanas.

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Há uma lei eterna proveniente de Deus e essa lei se manifes-ta na natureza humana de um modo particular. O homem, dota-do de consciência, participa da razão divina pelo que conhecemos como lei natural. Todo homem possui em si uma inscrição da lei eterna conhecida como lei natural.

Vejamos como a tese aparece na Suma Teológica, Parte ii, questão 91, Artigos 1 e 2:

Suposto que o mundo seja regido pela providência divina, como se mostrou na Parte i, é manifesto que toda a comunidade do univer-so é governada pela razão divina. E assim, a própria razão do go-verno das coisas em Deus, como existindo no príncipe do universo, tem razão de lei.

[...] Como acima foi dito, a lei, dado que é regra e medida, pode estar duplamente em algo: de um modo, como no que regula e mede, de outro, como no regulado e medido, porque enquanto participa algo da regra e medida, assim é regulado e medido. Por isso, como todas as coisas que estão sujeitas à providência divina, são reguladas e medidas pela lei eterna, como se evidencia do que foi dito, é manifesto que todas participam, de algum modo, da lei eterna, enquanto por impressão dessa têm inclinações para os atos e fins próprios. Entre as demais, a criatura racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente, enquanto a mes-ma se torna participante da providência, promovendo a si mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural.

Todas as leis derivam de uma mesma fonte: a lei eterna. As leis humanas devem, na medida do possível, refluir da lei natural inscrita no coração do homem por Deus. Assim teremos uma so-ciedade humana organizada conforme o seu fim. Como lei natural suprema, temos aquela que determina simplesmente: faz o bem e evita o mal – de uma regra assim constituída decorre o dever da autoconservação e da conservação da humanidade.

quanto à necessidade de uma lei eterna e divina, Tomás de Aquino conclui na sua Suma Teológica, Parte ii, questão 91, Artigo 4:

Além da lei natural e da lei humana, foi necessário para a direção da vida humana ter a lei divina. E isso por quatro razões. Em primeiro lugar, porque pela lei é dirigido o homem aos atos próprios em or-dem ao fim último (...).

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Em segundo lugar, porque, em razão da incerteza do juízo humano, precipuamente sobre as coisas contingentes e particulares, aconte-ceu haver a respeito dos diversos atos humanos juízos diversos, dos quais também procedem leis diversas e contrárias (...).

Em terceiro lugar, porque o homem pode legislar sobre aquelas coi-sas das quais pode julgar. O juízo do homem, com efeito, não pode ser sobre movimentos interiores, que estão ocultos, mas apenas sobre os atos exteriores, que aparecem (...).

Em quarto lugar, como diz Agostinho, a lei humana não pode punir ou proibir todas as coisas que se praticam mal (...).

Os argumentos do filósofo são claros. Uma lei divina é neces-sária porque possui o homem um fim último e o seu fim excede a sua potencialidade humana; para que o homem possa conhecer com segurança os melhores caminhos; para que não somente os atos ex-teriores, mas os atos humanos interiores também sejam ordenados pela retidão; porque não seria possível à lei humana prever todos os casos possíveis de males sem prejudicar a prática de atos bons.

Na visão de Tomás de Aquino, para que tenhamos uma co-munidade política ideal, basta que os homens aprendam a escutar as leis naturais inscritas em sua razão e que as leis humanas sai-bam exaurir sua força da lei divina.

7. TExTOS COMPLEMENTARES

Texto 1 – Agostinho –––––––––––––––––––––––––––––––––––A Cidade de Deus, Livro VIII, capítulo VIII:Também na filosofia moral os platônicos têm a primazia

Resta a parte moral, a Ética, como se diz em grego, que trata do Bem supremo: a ele referimos tudo o que fazemos; apetecêmo-lo não por ou-tro, mas por si mesmo, pela sua posse termina toda a busca posterior de felicidade. É por isso que também se chama fim porque é para ele que queremos os outros bens, mas àquele queremo-lo por si mesmo.Este bem beatífico, uns dizem que vem ao homem do corpo, outros da alma e outros dos dois conjuntamente. Como viam que o homem é forma-do de corpo e alma, julgavam que quer o corpo, quer a alma, quer os dois conjuntamente é que podiam ser a origem do seu bem, dum bem definitivo, princípio da felicidade ao qual se reportava tudo o que faziam – e não tive-ram que buscar outra coisa a que referi-lo.

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Aqueles pois que, diz-se, acrescentaram uma terceira categoria de bens chamados extrínsecos, como a honra, a glória, o dinheiro e outros que tais, não se propunham de forma alguma fazer deles um bem final, isto é, de-sejável por si próprio, mas sim um bem desejado na mira de outro; e assim este gênero de bens seria bom para os bons e mau para os maus. Desta forma este bem do homem que uns exigem da alma, outros do corpo, ou-tros do corpo e da alma, todos eles pensaram que haveria de procurá-lo unicamente no homem. Os que o esperavam do corpo, esperavam-no da parte menos nobre; os que o esperavam da alma, esperavam-no da parte melhor; os que o esperavam do corpo e da alma conjuntamente, espera-vam-no do homem todo. Mas quer seja duma parte ou do todo, é apenas do homem que o esperam. Estas diferenças, embora sejam três, não de-ram origem a três, mas a muitos sistemas ou seitas filosóficas – porque acerca do bem do corpo, acerca do bem da alma, acerca do bem dos dois conjuntamente, diversos filósofos emitiram diversas opiniões.Cedam, portanto, todos estes filósofos que disseram que feliz não é o ho-mem que goza do seu corpo, que feliz não é o que goza da sua alma, mas feliz é o que goza de Deus – não como o espírito goza do seu corpo ou de si próprio, nem como um amigo goza de um amigo, mas como o olhar goza da luz (se é que entre estas coisas alguma semelhança pode existir): qual seja a sua natureza, ver-se-á em outro lugar na medida em que, com a ajuda de Deus, nos for possível. Basta por agora recordar que, segun-do Platão, o bem supremo consiste em viver conforme a virtude – o que só pode ser alcançado por quem tem o conhecimento de Deus e procura imitá-lo: não há outra causa que possa torná-lo feliz. Também não hesita em dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se segue que o desejoso de sabedoria (que o mesmo é que dizer: o filósofo) só se torna feliz quando começa a gozar de Deus. Certamente que se não é feliz pelo simples fato de que goza do que se ama, (muitos de fato são infelizes por amarem o que não deviam amar e mais infelizes ainda por dele gozarem). Todavia ninguém é feliz se não goza do que ama. Mesmo aqueles que amam o que não deve ser amado não se julgam felizes por amarem, mas por gozarem. Portanto, quem goza daquele que ama e ama o verdadeiro e supremo bem – quem senão o mais desgraçado negará que esse é feliz? A esse verdadeiro e supremo bem dá Platão o nome de Deus. Por isso é que diz que o filósofo é o que ama a Deus; e porque a filosofia tende para a vida feliz, é gozando de Deus que quem o ama é feliz (1993).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Texto 2 – Tomás de Aquino ––––––––––––––––––––––––––––Suma teológica, Parte II, Questão 95, Artigo I:Foi útil que algumas leis tenham sido impostas pelos homens?

Respondo. Como fica claro pelo que foi dito, está presente no homem, natu-ralmente, a aptidão para a virtude; ora, é necessário que a própria aptidão da virtude sobrevenha ao homem por meio de alguma disciplina. Assim como vemos que o homem recorre a alguma indústria em suas necessidades, por exemplo, no alimento e no vestir, cujos inícios tem ele por natureza, a saber, a razão e as mãos, mas não o próprio complemento, como os demais ani-mais, aos quais a natureza deu suficientemente cobertura e alimento. Para essa disciplina, porém, o homem não se acha por si mesmo suficiente, com

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facilidade. Porque a perfeição da virtude consiste principalmente em afas-tar o homem dos prazeres indevidos, aos quais os homens são inclinados principalmente e maximamente os jovens em relação aos quais a disciplina é mais eficaz. E assim é necessário que os homens obtenham tal disciplina por outro, por meio da qual se chega à virtude. E certamente quanto àqueles jovens inclinados aos atos da virtude em razão de uma boa disposição da natureza, do costume ou, mais ainda, do dom divino, é suficiente a discipli-na paterna, que se faz mediante os conselhos. Mas, porque se encontram alguns imprudentes e inclinados ao vício, os quais não podem ser movidos facilmente com palavras, foi necessário que pela força e pelo medo fossem coibidos do mal, de modo que, ao menos desistindo assim de fazer o mal, aos outros tornassem tranqüila a vida, e os mesmos, por fim, por força de tal costume, fossem conduzidos a fazer voluntariamente o que antes cum-priam por medo, e assim se tornassem virtuosos. Tal disciplina, obrigando por medo da pena, é a disciplina das leis. Portanto, foi necessário que as leis fossem impostas para a paz dos homens e a virtude (2005).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade:

1) Como pensar o conceito de política para Agostinho?

2) Como pensar o conceito de política para Tomás de Aquino?

3) qual a atualidade dos problemas levantados pela Filosofia Política medieval?

9. CONSIDERAÇÕES

Nesta unidade, trabalhamos com a Filosofia Política na idade Média. Na próxima unidade, ficaremos com a teoria do pacto social e conheceremos os pensamentos de Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau a respeito da política.

10. e-referênCias

Lista de figurasfigura 1 Agostinho de Hipona (354-430). Disponível em: <http://investigacao-filosofica.blogspot.com.br/2012/01/deus-homem-mundo-em-agostinho-de-hipona.html>. Acesso em: 26 jun. 2012.

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figura 2 Tomás de Aquino (1225-1274). Disponível em: <http://cesaraugustoliveira.blogspot.com.br/2012/01/santo-tomas-de-aquino.html>. Acesso em: 26 jun. 2012.

11. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

AGOSTiNHO, S. A cidade de Deus. Tradução de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. v. 1.______. A Cidade de Deus. Tradução de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. v. 2.AqUiNO, T. Suma teológica: a bem-aventurança, os atos humanos, as paixões da alma. Tradução de Aldo Vannucchi e outros. São Paulo: Loyola, 2003. v. 3.______. Suma teológica: os hábitos e as virtudes, os dons do Espírito Santo, os vícios e os pecados, a pedagogia divina pela lei, a lei antiga e a lei nova, a graça. Tradução de Aldo Vannucchi e outros. São Paulo: Loyola, 2005. v. 5.______. Suma teológica: justiça, religião, virtudes sociais. Tradução de Aldo Vannucchi e outros. São Paulo: Loyola, 2005. v. 6.BOEHNER, P.; GiLSON, E. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Tradução de Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1982.CHâTELET, F., DUHAMEL, O.; PiSiER-kOUCHNER, E. História das idéias políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.GiLSON, E. A filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.kOBUSCH, T. (Org.). Filósofos da Idade Média: uma introdução. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005.

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EAD

4Filosofia Política e a Teoria do Pacto Social

1. OBJETIVOS

• Compreender o desenvolvimento da Filosofia Política no Renascimento e na era das revoluções clássicas.

• Analisar os principais pensamentos filosóficos do período no que concerne à política.

2. CONTEúDOS

• Nicolau Maquiavel e o Estado forte.• Thomas Hobbes e o pacto social.• John Locke e a teoria liberal.• Jean-Jacques Rousseau e o Contrato Social.• Texto complementar: Thomas Hobbes.• Texto complementar: Thomas Jefferson.

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3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

1) Lembre-se de que há muitas maneiras de pensar o con-ceito de política. As questões autoavaliativas que se-guem ao final das unidades são abertas e querem ajudar na compreensão das polissemias aí presentes.

2) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli-tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun-damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo.

3) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am-plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate-rial didático apresentado.

4) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci-clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto.

5) Um número considerável de autores da época teve como objeto de análise a complexidade dos fenômenos que envolveram a Revolução Francesa de 1789 e a emer-gência do Estado-Nação. Vale a pena conhecer os escri-tos de alguns deles, tais como os de Sieyès, Robespierre, Saint-Just e Edmund Burke.

4. INTRODUÇÃO à UNIDADE

Na unidade anterior, vimos como se deu o desenvolvimen-to da Filosofia Política na idade Média com Agostinho, cujo pen-samento a este respeito está formulado na sua obra A cidade de Deus. Outro pensador representativo da Filosofia Política medieval foi Tomás de Aquino, com a sua tese sobre a pedagogia da lei di-vina.

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Ao longo dos séculos 16, 17 e 18, um incontável número de pensadores dedicou-se à compreensão dos fenômenos políticos que remexiam o panorama público europeu e americano. Uma intensa produção de tratados políticos acompanha as transforma-ções que determinam o início do que costumamos chamar de mo-dernidade.

Nesta unidade, priorizando o estudo de alguns dos seus principais representantes, veremos como a teoria do pacto social marcou a história do pensamento político ocidental. Cuidaremos, em tópicos, de Hobbes, de Locke e de Rousseau, conhecidos como contratualistas. Embora não seja Maquiavel propriamente um pensador da teoria do pacto social, iniciaremos esta unidade com um tópico a ele dedicado, por considerá-lo um inescusável ante-cedente de uma corrente que até hoje influencia o modo como entendemos as instituições políticas.

Trata-se evidentemente de um recorte. Alguns relevantes autores do período não estão aqui contemplados, por isso suge-rimos que o estudo desse fértil momento da história da Filosofia Política não se restrinja aos dados coletados neste material. Tere-mos uma visão bastante limitada se negligenciarmos obras de vital importância para a compreensão do contexto filosófico em pauta, tais como as citadas a seguir.

No século 16, a Utopia de Thomas More, livro de inspiração platônica em que o autor tenta redefinir a imagem de uma cidade ideal, o Discurso da servidão voluntária de Etienne de La Boétie, com sua crítica da obediência, e os Seis livros da República de Jean Bodin, uma grande obra de legitimação do poder político estatal, fundamental ancestral teórica do princípio da soberania e do po-der de legislar, da concepção segundo a qual deve a lei se impor sobre direitos naturais ou costumeiros.

No século 17, Do direito da guerra e da paz de Hugo Grotius, um livro de parentesco contratualista já preocupado com as rela-ções do direito internacional, relações entre Estados soberanos, e com o respeito aos direitos do homem natural.

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No século 18, O espírito das leis de Charles de Montesquieu e Investigações sobre a natureza e as causas das riquezas das na-ções de Adam Smith. Montesquieu contribui para a revitalização da distinção entre as espécies de governo e defende o princípio da separação dos poderes como única solução institucional para a garantia da liberdade política – somente a descentralização e o controle múltiplo podem conter os abusos de poder. Adam Smith isola o fenômeno da distribuição das riquezas, iniciando o estudo da economia e da administração dos recursos disponíveis à viabili-zação da vida em sociedade, fundando as bases teóricas do libera-lismo econômico e da divisão do trabalho.

Também o século 18 pertence ao grupo de homens que mais influenciou a definição do conceito de democracia que temos hoje. Logo após a Revolução Americana de 1776, com o objetivo de contribuir para a ratificação de uma nova Constituição para os Estados Unidos da América (que viria a ser promulgada em 1789), Alexander Hamilton, James Madison e John Jay publicam uma sé-rie de artigos que reunidos receberam o nome de O federalista. Trata-se de um esforço de superação do paradigma grego de de-mocracia e de eliminação da incompatibilidade entre governo po-pular e modernidade: na visão dos revolucionários americanos, a democracia não depende da virtude do povo nem do tamanho do território governado. Mais: a democracia não torna frágil o Estado. Com o movimento impulsionado por O federalista, torna-se viável a formação da Federação e a convivência de dois entes estatais de estatura diversa dentro de um mesmo território, sem prejuízo do relacionamento direto de cada um deles com os indivíduos. O federalista reforça ainda a defesa do princípio da tripartição dos poderes e do sistema bicameral para o poder legislativo. Surge uma nova forma de pensar a política: os republicanos não querem eliminar a formação de facções e o conflito, uma vez que eles são saudáveis à manutenção das instituições democráticas. É preciso, tão somente, que a legislação previna a coordenação entre os di-versos interesses, evitando que qualquer grupo venha a controlar

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o poder para satisfazer unicamente seus objetivos, mesmo que esse grupo seja a maioria.

Ao final da unidade, sugerimos a leitura de dois textos com-plementares. O primeiro de Thomas Hobbes, retirado de sua prin-cipal obra. O segundo de Thomas Jefferson, notável articulador político e pensador do movimento democrático norte-americano. Uma pequena coletânea de escritos e cartas daquele que se tor-nou presidente de um país ainda em consolidação nos permitirá ver como as novas concepções se opõem às clássicas e se afirmam como a solução para um novo mundo.

5. NICOLAU MAQUIAVEL E O ESTADO fORTE

Estamos acostumados com a relação que a linguagem comum estabelece entre o adjeti-vo maquiavélico e o sentido que gira em torno da imagem de um homem sórdido, traiçoeiro, mesquinho. Mas aí é preciso ter um pouco de cuidado. Embora seja o nome de Maquiavel citado como a encarnação do mal, o pensador renascentista foi um notável teórico e articula-dor político de um cenário conturbado, no qual

reviravoltas e sucessões de governos geravam tal instabilidade que impedia qualquer meio de vida protegido por um mínimo de se-gurança.

impressionado pelas disputas que assolavam a cidade de Florença e toda a península itálica, Maquiavel se dá conta da inu-tilidade em esperar de fórmulas mágicas a solução de problemas tão reais. Opondo-se radicalmente ao idealismo político, ocupado apenas com uma ordem ideal – imaginando como o mundo deve-ria ser – mas desatento à realidade concreta, seus esforços terão como ponto de partida e chegada a verdade extraída inteiramente dos fatos. Com Maquiavel, a política perde a auréola de qualidade

Figura1 Nicolau Maquiavel (1469-1527).

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natural ou divina, sendo substituída por uma atividade humana e racional constitutiva da existência coletiva. Daí a necessidade do planejamento de um programa político que atenda às exigências de um quadro tortuoso e complexo. E o pensador florentino o re-dige na sua principal obra: O príncipe.

Escrito em 1513, O príncipe é dedicado a Lorenzo de Médicis, go-vernador de Florença, o que vale a Maquiavel o retorno ao cenário político e sua nomeação como historiógrafo oficial. O pensador florentino ainda escreveria os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e História de Florença.

Aprendendo com a história universal, com as lutas que deter-minaram um movimento cíclico de estabilidade e caos, cabe aos ho-mens a tentativa de superar a sorte para encontrar um estado que garanta a ordem e a segurança. O estudo do passado deve iluminar o presente. Os ensinamentos apreendidos dos eventos históricos que determinaram períodos de guerra e de paz podem ser utilizados pelo homem para que fundamente na sua realidade efetiva uma ordem confiável. Vemos, então, como a liberdade humana se insurge contra as forças da predestinação. Lemos no capítulo xxV de O príncipe:

Para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser ver-dade que a sorte seja o arbítrio da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase (...) a sorte demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não fo-ram construídos diques e anteparos para contê-la (1976).

Como vencer os auspícios da instabilidade dos governos das cidades e assegurar uma vida tranquila aos homens? Para compre-ender a resposta de Maquiavel, precisamos perceber como o pen-sador entendia a natureza humana. Observando os homens que o cercavam, Maquiavel conclui que a vida em comunidade nunca ocorre sem dificuldades e isto por um motivo claro: os homens são volúveis e simuladores, egoístas e ávidos de lucro. Numa socieda-de fragilizada, a luta pelo poder pode ser interminável. Somente um governo centralizado e forte pode garantir a estabilidade de uma comunidade humana.

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Maquiavel não recusa inteiramente que o governo de uma cidade seja organizado sob a forma de uma república, desde que o povo dessa cidade seja suficientemente virtuoso para tanto, o que é raro. O governo de um único príncipe parece ser sempre melhor: este é o Estado forte, mais unido e menos sujeito à corrupção, ca-paz de gerir os bens públicos, mais resistente contra as invasões estrangeiras.

quem é o príncipe? quais suas qualidades indispensáveis? O príncipe é o homem virtuoso que se mantém no poder pelo sá-bio uso da força. Enquanto nas sociedades desorganizadas politi-camente o mais forte apenas conquista, não persevera no poder, o príncipe, guiado pela necessidade, sabe se utilizar dos recursos disponíveis e salvar o Estado das investidas inimigas. Cito o capítu-lo xV de O príncipe:

Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a neces-sidade (...)

Sei que cada um confessará que seria sumamente louvável encon-trarem-se em um príncipe, de todos os atributos acima referidos, apenas aqueles que são considerados bons; mas, desde que não os podem possuir nem inteiramente observá-los em razão das con-tingências humanas não o permitirem, é necessário seja o príncipe tão prudente que saiba fugir à infâmia daqueles vícios que o fariam perder o poder (1976).

Para Maquiavel, o príncipe não precisa ser bom, comportar--se segundo as regras da moralidade, nem precisa ser amado pelos seus súditos – basta possuir a sabedoria de agir conforme as cir-cunstâncias e o respeito dos governados, saber resistir aos inimi-gos e assegurar a manutenção do Estado, baluarte da ordem e da paz. Esta é a finalidade da política.

Vejamos como Maquiavel orienta o proceder do príncipe numa importante passagem do capítulo xViii de O príncipe:

A um príncipe, portanto, não é essencial possuir todas as qualida-des acima mencionadas, mas é bem necessário parecer possuí-las. Antes, ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre, elas são danosas, enquanto que, aparentando possuí-las, são úteis; por

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exemplo: parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas estar com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando não sê-lo, possas e saibas tornar-te o contrário. Deve-se compreender que um príncipe, e em particular um prín-cipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez que, freqüentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a carida-de, contra a humanidade, contra a religião (1976).

Os meios para o triunfo das dificuldades e manutenção do Estado nunca deixarão de ser julgados honrosos. Segundo o pen-sador florentino, deve o governante usar da inteligência e ao mes-mo tempo aprender dos animais: deve o príncipe ser um leão e uma raposa.

6. ThOMAS hOBBES E O PACTO SOCIAL

Se Maquiavel dá o pontapé inicial à concepção do Estado Moderno, restará a outro pensador o papel de principal referência quando se procura pelas raízes da sistematização da doutrina estatal. Na primavera do século 17, Thomas Hobbes de Malmesbury publica três livros que marcam definitivamente a ruptura com a teoria de inspiração aristotélica e delimitam os caracteres constituintes do

Estado Moderno: Elementos do direito natural e político, De cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão e, o mais conhecido de seus escritos e provavelmente a melhor compilação de suas ideias proeminentes, Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. O Estado seria, de acordo com os argumentos do pensador inglês, não somente o resultado de uma natural tendência do homem à vida coletiva, mas o fruto de um pacto realizado entre os homens, escolhido de modo inteiramente racional.

Figura 2 Thomas Hobbes (1588-1679).

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Com Hobbes, surge a teoria do pacto social. A origem da so-ciedade civil estaria vinculada à celebração de um pacto que divide a história da humanidade em duas partes, sendo a primeira rela-tiva a um estado de natureza sem governo e a segunda a um esta-do de direitos garantidos por um poder soberano. Vejamos como acontece a passagem de um cenário ao outro.

Hobbes desmistifica a imagem do homem inocente e bom, enfatizando que suas paixões determinam o seu comportamento. Não que sejam os homens maus em si: eles simplesmente preci-sam satisfazer os seus desejos e a experiência demonstra que os indivíduos, com vistas à própria conservação da vida, terminam por desejar as mesmas coisas. No estado de natureza, todo ho-mem seria inimigo de qualquer outro homem na medida em que compete pelas mesmas coisas na busca da satisfação do desejo – daí a famosa frase hobbesiana: o homem é um lobo para o homem. A guerra se generaliza. O estado do homem em liberdade natural seria necessariamente um estado de guerra e de medo, porque embora os mais fortes, rápidos e habilidosos consigam evidente-mente vantagem sobre os demais, nenhum homem pode preva-lecer sobre o outro de maneira integral, isto é, os menos afortu-nados podem ainda se aproveitar de um momento de desatenção ou fraqueza dos primeiros e matá-los. No estado de natureza, a relação entre os homens não pode ser nem um pouco prazerosa, uma vez que não há ordem e o que impera é um estado de guerra de todos contra todos.

Ocorre que os homens desejam a vida e a paz. Como esta-belecer então uma ordem para que o homem possa gozar do seu objeto de desejo? Pelo uso da razão, os homens percebem que somente por uma espécie de trégua poderiam garantir a paz social e viver na felicidade. Pela celebração do pacto, o Estado é criado e erigido à categoria de protetor universal. Cada homem transfere espontaneamente uma parcela dos seus direitos ao soberano e as-sim o Estado se constitui.

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Lemos no capítulo xVii do Leviatã:O acordo dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto, não é de admirar que seja necessária al-guma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e dura-douro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefício comum. A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê--los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, ga-rantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens (...) (1983).

Assim surge o nosso Estado e o conceito de soberania atre-lado à noção de poder absoluto e ilimitado. Ao soberano compete a proteção do povo e a defesa da paz, o poder de prescrever re-gras e julgar as controvérsias, o direito de escolher os ministros e funcionários do governo, a distribuição da propriedade privada, as decisões quanto à política externa.

Observemos o capítulo xViii do Leviatã:São estes os direitos que constituem a essência da soberania, e são as marcas pelas quais se pode distinguir em que homem, ou as-sembléia de homens, se localiza e reside o poder soberano. Porque esses direitos são incomunicáveis e inseparáveis. (...)

Mas poderia objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em suas mãos poder tão ilimitado. (...)

A condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra in-comodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompa-nham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança (1983).

Precisamos evitar a guerra a qualquer custo. Por isso, Hobbes conclui ser o Estado imprescindível na garantia dos direitos naturais do homem e julga necessária a centralização do poder nas mãos de um soberano. Somente um governo forte pode impedir a guerra e assegurar a paz. Hobbes permite entrever, contudo, um resquício de liberdade que será explorado e desenvolvido por Locke alguns

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anos mais tarde. Percebendo a incompatibilidade entre os meios e fins do estado de natureza, o homem havia renunciado aos seus direitos e celebrado o pacto com um claro objetivo: preservar a sua própria vida. Se o soberano deixa de proteger os fins de sua instituição, desaparece a razão do pacto social e o direito de obedecer.

7. JOhN LOCkE E A TEORIA LIBERAL

A obra política de John Locke nutre-se de um século marcado não somente pelo espírito científico fundado na luz natural e na experiên-cia e pelas transformações ocorridas nas estrutu-ras do comércio e no mercado de trabalho, mas, sobretudo, pelo intenso conflito entre o poder monárquico absolutista e as camadas burguesas em ascensão. Teórico do empirismo, defensor da individualidade, do jusnaturalismo, do liberalis-

mo econômico e da tolerância religiosa, Locke deixou importantes contribuições à história do pensamento político, tais como Cartas sobre a tolerância e Dois tratados sobre o governo civil.

Concordando com Hobbes, Locke aponta a teoria do pacto social como fonte das origens das sociedades. Mas embora pense no horizonte do trinômio estado de natureza - contrato social - estado civil, isto é, identifique um estado de natureza limite das relações humanas e considere que a passagem ao estado civil seja mediada por um contrato firmado espontaneamente, o filósofo chega a conclusões diversas e refuta a necessidade de submissão incondicional ao poder soberano.

No Primeiro tratado sobre o governo civil, Locke combate o absolutismo divino contestando os argumentos de uma tese se-gundo a qual os monarcas modernos descenderiam da linhagem de Adão, sendo herdeiros legítimos da autoridade patriarcal. No Segundo tratado sobre o governo civil, o filósofo esclarece o que

Figura 3 John Locke (1632-1704).

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entende por poder político, explicando em que consiste a consti-tuição e a extensão do governo civil, estabelecendo parâmetros que viriam a influenciar todo um conjunto de revoluções liberais.

Originalmente, os homens viviam num estado de liberdade e igualdade, estado de relativa paz e harmonia, em que seus di-reitos naturais eram preservados. No estado de natureza, todos possuíam direito à vida, à liberdade e à propriedade, uma vez que os bens adquiridos pelo trabalho eram considerados uma exten-são do próprio corpo. Ocorre, todavia, que uma sociedade sem governo instituído pode encerrar uma série de inconvenientes: a ausência de uma lei e de uma força de coerção que obrigue ao respeito dos direitos do outro pode incentivar que os indivíduos se voltem uns contra os outros, favorecendo o surgimento do estado de guerra.

Daí a celebração do contrato, firmado para solucionar os abu-sos do convívio e proteger a propriedade e a comunidade contra os inimigos internos e externos. Por meio de um pacto de consen-timento, o contrato aparece como um meio artificial de aperfei-çoamento do estado de natureza, o governo surge para preservar direitos naturais preexistentes e colocá-los sob o amparo da lei.

A intenção de Locke aparece nitidamente na introdução ao Segundo tratado sobre o governo. Nem a força, nem a tradição, apenas o consentimento dos governados é fonte do poder legíti-mo. Vejamos o que diz o filósofo sobre a origem e o estatuto do poder político:

Tendo todas essas premissas sido, como me parece, claramente demonstradas, é impossível que os soberanos ora existentes sobre a Terra devam haurir algum benefício ou derivar que seja a menor sombra de autoridade daquilo que é considerado a fonte de todo o poder, o domínio particular e a jurisdição paterna de Adão (...).

Julgo não ser descabido estabelecer o que considero como poder político – de modo a distinguir o poder de um magistrado sobre um súdito do de um pai sobre os filhos, de um amo sobre seu servidor, do marido sobre a esposa e de um senhor sobre seus escravos. Por estarem ocasionalmente todos esses diferentes poderes enfeixa-dos num mesmo homem, se este for considerado sob essas dife-

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rentes relações, será útil distinguir esses poderes entre si e mostrar a diferença entre o soberano de uma sociedade política, um pai de família e o capitão de uma galera.

Considero, portanto, que o poder político é o direito de editar leis com pena de morte e, conseqüentemente, todas as penas meno-res, com vistas a regular e a preservar a propriedade, e de empre-gar a força do Estado na execução de tais leis e na defesa da socie-dade política contra os danos externos, observando tão-somente o bem público (1998).

No capítulo Viii da mesma obra, intitulado Do início das so-ciedades políticas, Locke explica claramente como se dá o pacto social:

Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio con-sentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamen-te uns com outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte. qual-quer número de homens pode fazê-lo, pois tal não fere a liberdade dos demais, que são deixados, tal como estavam, na liberdade do estado de natureza. quando qualquer número de homens consen-tiu desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por esse ato, logo incorporados e formam um único corpo político, no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar pelos demais (1998).

Uma vez instituído o contrato pelo consentimento, podem os homens escolher como lhes aprouver a forma de governo para a consecução dos seus fins.

E se o governo deixar de cumprir o seu fim, descumprir as leis ou desrespeitar o bem comum – o que equivale a um retorno ao estado de natureza? E se o governo se degenerar em tirania? Locke salienta que todo homem possui um direito de resistência à opressão. Contra o exercício ilegal do poder, podem os homens legitimamente resistir e até depor o governo, se preciso for.

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8. Jean-JaCques rousseau e o Contrato soCial

O que a história do Ocidente conta como verdade, um órfão suíço do século 18, que se tor-naria um dos pensadores de maior influência no desenrolar dos acontecimentos, soube expressá--lo em discursos críticos das desigualdades polí-ticas já tão fortemente enraizadas na sua época. Jean-Jacques Rousseau aparece aí como uns dos primeiros a enfrentar seriamente as questões do regime absolutista e sugerir substanciais mudan-ças no modo de pensar o Estado.

Escolado no século das luzes e ao mesmo tempo crítico do iluminismo, Rousseau oscila entre a confiança na razão e o ceti-cismo tanto para conhecer a realidade quanto para solucionar os problemas cotidianos por ela oferecidos. Em seu Discurso sobre as ciências e as artes, o filósofo não poupa esforços para demonstrar como o uso maléfico das artes e das ciências podem corromper os costumes e as virtudes. No seu Contrato social, o filósofo compõe o projeto que justifica uma real passagem do estado de natureza para o estado civil.

O estado originário do homem é a felicidade, a liberdade e a igualdade. Mas as disputas e guerras ao longo da história trouxe-ram o homem a um estado de coisas em que sociedade e servidão se equivalem. Lemos na abertura do Contrato social:

O homem nasceu livre e em toda parte se encontra sob ferros. De tal modo acredita-se o senhor dos outros, que não deixa de ser mais escravo que eles (1965).

Dialogando com a tradição da Filosofia Política, especial-mente com aquela filiada à concepção do pacto, Rousseau ressalta que a sociedade política até então instituída nada mais era que o fruto de uma história de dominação. Para o filósofo suíço, o pacto perde sua aura de hipótese da realidade política para se converter em argumento do domínio. A sociedade surge com a desigualdade

Figura 4 Jean-Jaques Rousseau (1712-1778).

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e os discursos que pregavam a alienação dos direitos em função da associação e união de todos nada disfarçavam da sua intenção de submeter.

Em Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualda-de entre os homens, encontrado na obra O contrato social e outros escritos, o autor afirma:

Bastou muito menos que o equivalente deste discurso para sedu-zir homens grosseiros, fáceis de convencer (...). Todos correram a submeter-se aos grilhões, crendo que se asseguravam a liberdade, porque, possuindo demasiadas razões para sentir as vantagens de uma formação política, não possuíam suficiente experiência para prever os seus perigos; os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente os que contavam tirar proveito disso; e mes-mo os mais talentosos compreenderam que era preciso decidir-se a sacrificar uma parte de sua liberdade a fim de conservar a outra, como um ferido que se faz cortar o braço com o intuito de salvar o restante do corpo. Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis que criaram novas peias para o fraco e novas forças para o rico, destruíram sem possibilidade de retorno a liberdade natural, fixaram para sempre a ordem da propriedade e da desigualdade, que, de uma astuciosa usurpação, fizeram o direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram, daí por diante, todo o gênero humano ao trabalho, à servidão, à miséria (1965, p. 189-190).

Rousseau concebe o contrato social enquanto projeto. Com o seu planejamento, o filósofo pretende estabelecer as condições de possibilidade de um pacto legítimo, em que a liberdade natural, se não pode ser recuperada integralmente, seja ao menos substi-tuída pela liberdade civil. Os homens precisam encontrar uma for-ma de associação que proteja a todos sem, contudo, constranger a liberdade de cada associado, um modo de associação em que cada um só tenha que obedecer a si mesmo.

Como encontrar a solução que atenda aos requisitos do con-trato? Como respeitar plenamente a condição de igualdade dos contratantes e assegurar a liberdade antes e depois do contrato? Aí está a principal novidade proposta pelo filósofo suíço: o exercí-cio da soberania pelo povo.

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Numa sociedade assim constituída, haverá apenas uma úni-ca submissão: à vontade geral. Os indivíduos passam a integrar um sujeito coletivo dotado de uma vontade geral. Pela formação de uma vontade geral que extrapole as vontades individuais, ao povo será atribuída a soberania e somente ele será a parte ativa e passi-va na elaboração e obediência às leis.

Ademais, o processo de legitimação do governo não se dá pontualmente e de uma vez por todas, ele perdura após a funda-ção do corpo político – todo poder governamental deve ser limi-tado pelo poder do povo, tendo em vista que a vontade geral não pode ser transmitida, a soberania é inalienável e indivisível. Se, por motivos operacionais, precisamos reconhecer a necessidade de representantes para o exercício do governo, esses representan-tes nunca serão titulares da soberania ou de seus cargos e devem ser trocados permanentemente. Do início do Livro ii do Contrato social, temos a seguinte passagem:

A primeira e mais importante conseqüência dos princípios acima estabelecidos está em que somente a vontade geral tem possibili-dade de dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua institui-ção, isto é, o bem comum; pois, se a oposição dos interesses parti-culares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi a conciliação desses mesmos interesses que a tornou possível.

(...) Digo, pois, que outra coisa não sendo a soberania senão o exer-cício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o po-der, não porém a vontade.

(...) Pela mesma razão que a torna inalienável, a soberania é indivi-sível, porque a vontade é geral, ou não o é; é a vontade do corpo do povo, ou apenas de uma de suas partes (1965).

Rousseau não é somente um pensador político de notável envergadura. O forte apelo revolucionário de seus textos viria a influenciar as insurreições francesas do final do século 18 e dar fôlego às aspirações democráticas do outro lado do oceano. Bem vinculado ao espírito da época, um parágrafo retirado do final do Livro ii do Contrato social demonstra como filosofia e política ca-minhavam pela mesma vereda:

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Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar--se-á que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda independência particular é ou-tra tanta força subtraída a corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela (1965).

9. TExTOS COMPLEMENTARESTexto 1 - Thomas Hobbes ––––––––––––––––––––––––––––––Leviatã, capítulo XIII:Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem for-ça suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (...)Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à espe-rança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mes-ma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro. (...)Tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; conseqüentemente não há cultivo de terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há reconhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. (...)Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus senti-dos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade,

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não na solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão. As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere ade-quadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo (1983).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Texto 2 - Thomas Jefferson ––––––––––––––––––––––––––––Escritos políticosCarta a George Washington, Paris, 2 de maio de 1788.

Eu era um inimigo ferrenho de monarquias antes de minha vinda à Europa. Sou dez mil vezes mais desde que vi o que elas são. Não há, dificilmente, um mal que conheça nestes países, cuja origem não possa ser atribuída a seus reis, nem um bem que não derive das pequenas fibras de republi-canismo existente entre elas. Posso acrescentar, com segurança, que não há, na Europa, cabeça coroada cujo talento ou cujos méritos lhe dessem o direito a ser eleito, pelo povo, conselheiro de qualquer paróquia da Amé-rica.

Opinião do Gabinete, 28 de abril de 1793.Considero o povo que constitui a sociedade ou nação como a fonte de toda a autoridade nessa nação; como sendo livre para conduzir seus interesses comuns através de quaisquer órgãos que julgue adequados; para modifi-car esses órgãos individualmente ou sua organização na forma ou função sempre que lhe apraz; que todos os atos praticados por esses órgãos sob a autoridade da nação constituem atos dela, são obrigatórios para o povo e em vigor seu uso, não podendo, de forma alguma, ser anulados ou afe-tados por quaisquer mudanças na forma do governo ou das pessoas que o administram.

Carta a François d’Ivernois, Monticello, 6 de fevereiro de 1795.Suspeito que a doutrina de que somente pequenos Estados se acham ap-tos para ser repúblicas será arrasada pela experiência juntamente com outras brilhantes falácias apregoadas por Montesquieu e outros escritores políticos. Talvez se descobrirá que, para se conseguir uma república justa (e é para assegurar nossos justos direitos que recorremos de qualquer modo ao governo), é preciso que ela tenha tal amplitude de modo a que egoísmos locais jamais atinjam a maior parcela; que em cada questão par-ticular se encontre, em seus conselhos, uma maioria livre de interesses privados que dê, portanto, uma prevalência uniforme aos princípios de justiça.

Carta a Adamantios Coray, Monticello, 31 de outubro de 1823.

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Por possuirmos combinadas as bênçãos de liberdade e ordem, desejamos o mesmo para outros países e para nenhum país mais que o vosso (Gré-cia), que foi a primeira das nações civilizadas a apresentar exemplos do que o homem deve ser. Na verdade, não que as formas de governo adap-tadas a sua época e seu país sejam praticáveis ou devam ser imitadas em nossos dias, embora preconceitos a seu favor fossem bastante naturais a nosso povo. As circunstâncias do mundo modificaram-se muito para isso. (...) A igualdade de direitos para o homem e a felicidade de cada indivíduo são agora reconhecidas como os únicos objetivos legítimos do governo. Os tempos modernos têm agora também esta vantagem evidente, a de ter descoberto o único processo pelo qual esses direitos podem ser assegu-rados, a saber: governo pelo povo, agindo não em pessoa, mas por meio de representantes eleitos pelo povo, isto é, por todo homem maduro e são de espírito que contribua, quer com sua bolsa, quer com sua pessoa, para suporte do país (1973).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade:

1) Como pensar o conceito de política para Maquiavel?

2) Como pensar o conceito de política para Hobbes?

3) Seria o pacto social uma referência ficcional ou uma realidade histórica?

4) Como pensar o conceito de política para Locke?

5) Como pensar o conceito de política para Rousseau?

11. CONSIDERAÇÕES

Nesta unidade, estudamos a teoria do pacto social. Na pró-xima unidade, estudaremos a Filosofia Política na Modernidade e conheceremos os pensamentos de kant e Hegel a respeito da po-lítica.

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12. e-referênCias

Lista de figurasfigura 1 Nicolau Maquiavel (1469-1527). Disponível em: <http://www.kuniyoshi.name/blog/index.php/mental/.../27-maquiavel?..>. Acesso em: 26 jun. 2012.figura 2 Thomas Hobbes (1588-1679). Disponível em: <http://www.one-eternal-day.com/2010_07_01_archive.html>. Acesso em: 26 jun. 2012.figura 3 John Locke (1632-1704). Disponível em: <http://www.portalsophia.org/index.php/blog/john-locke-1632-1704-sintese-entre-empirismo-e-liberalismo.html>. Acesso em: 26 jun. 2012.figura 4 Jean-Jaques Rousseau (1712-1778). Disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/rousseau.htm. Acesso em: 26 jun. 2012.

13. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

BOBBiO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.______. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.BORON, A. A. (Org.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales. São Paulo: USP, 2006.CHâTELET, F.; DUHAMEL, O.; PiSiER-kOUCHNER, E. História das idéias políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.CHEVALLiER, J.-J. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. Rio de Janeiro: Agir, 1995.HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os pensadores).______. De cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão. Tradução de ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993.______. Elementos do direito natural e político. Tradução de Fernando Couto. Porto: Resjurídica, s/d.JEFFERSON, T. Escritos políticos in Federalistas. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os pensadores).LEFORT, C. Le travail de l’oeuvre de Machiavel. Paris: Gallimard, 1972.LOCkE, J. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.MAqUiAVEL, N. O príncipe. Tradução de Roberto Grassi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.______. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de Sergio Fernando

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Guarischi Bath. Brasília: UnB, 1982.ROUSSEAU, J.-J. O contrato social e outros escritos. Tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1965.SkiNNER, q. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, "O Federalista". São Paulo: ática, 2000. v. 1. ______. Os clássicos da política: Burke, kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill, Marx. São Paulo: ática, 2002. v. 2.

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EAD

5Filosofia Política na Modernidade

1. OBJETIVOS

• Compreender o desenvolvimento da Filosofia Política na Modernidade.

• Analisar os principais pensamentos filosóficos do período no que concerne à política.

2. CONTEúDOS

• immanuel kant e a paz perpétua.• Friedrich Hegel e a realização da razão universal.• Texto complementar: Alexis de Tocqueville.• Texto complementar: Marx e Engels.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

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1) Lembre-se de que há muitas maneiras de pensar o con-ceito de política. As questões autoavaliativas que se-guem ao final das unidades são abertas e querem ajudar na compreensão das polissemias aí presentes.

2) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli-tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun-damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo.

3) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am-plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate-rial didático apresentado.

4) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci-clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto.

5) Uma prática reflexiva integral, englobando leitura aten-ta, pesquisa bibliográfica e hábito de questionamento: estes são alguns dos atributos que você precisa adqui-rir e cultivar. Cabe ressaltar que cada exercício realiza-do representa um momento em que você exercita o seu poder de compreensão e análise de conceitos, de inter-pretação de textos e de síntese, seu senso crítico, suas habilidades interpessoais.

4. INTRODUÇÃO à UNIDADE

Na Unidade 4, tratamos do desenvolvimento da Filosofia Política no Renascimento e na era das revoluções clássicas. Ana-lisamos os principais pensamentos filosóficos no que concerne à política: Nicolau Maquiavel e o Estado forte; Thomas Hobbes e o pacto social; John Locke e a teoria liberal; Jean-Jacques Rousseau e o contrato social.

Poucos autores influenciaram tanto a história do pensamen-to como kant e Hegel. Não somente por suas próprias produções,

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extensas e de grande relevância, mas principalmente pelo desdo-bramento que souberam delas auferir um notável número de filó-sofos, historiadores e sociólogos, entre outros. As transformações que advieram ao longo do fecundo século 19, sejam elas na esfera do pensamento, sejam na esfera da realidade prática, devem em boa parte à leitura de kant e de Hegel. Nesta unidade, veremos como são expostas as filosofias políticas de cada um deles.

Novamente, precisamos realizar um grande recorte. Há uma série de pensadores que ocupam o cenário multiforme do sécu-lo 19. Esquecer deles seria ignorar uma fundamental parcela da história do pensamento político. Não poderíamos desprezar, por exemplo, as contribuições do início do século oferecidas por Ben-jamin Constant e por Alexis de Tocqueville.

Benjamin Constant, na corrente do liberalismo revisitado, foi um ardente defensor das liberdades individuais e da limitação da autoridade do conjunto, tanto quanto à autoridade estatal, quanto à autoridade dos direitos da maioria contra os da minoria. Nenhum poder poderia ser ilimitado – mesmo os poderes fundados sob o conceito de uma soberania popular não poderiam violar direitos que existem independentemente de qualquer organização social ou política. Levando às últimas consequências a reflexão liberal, promovendo a cisão definitiva entre o público e o privado, Benja-min Constant chegará à conclusão de que um único princípio deve conduzir as nações novas e antigas: liberdade em tudo, na religião, na literatura, na filosofia, na indústria, na política; o direito de ser submetido apenas às leis, não ser preso nem morto em decorrên-cia de qualquer vontade arbitrária, o direito de emitir opinião, de se associar a outros homens, de escolher sua indústria e exercê-la, de dispor da propriedade, o direito de ir e vir sem precisar prestar contas de seus motivos.

A Alexis de Tocqueville, historiador e pensador francês, de-vemos um dos principais registros históricos dos períodos que su-cederam as grandes revoluções do século anterior, da consolida-ção de novos regimes de governo e novas convicções políticas. A

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observação das experiências democráticas na América e na Europa o deixou bem impressionado. Mas, a partir da análise de dados concretos de tais experiências, ele pode, mesmo oscilando entre a inocência e a perspicácia, enumerar traços de avanço e contra-dições, percebendo que mesmo altos princípios nutridos de um longo processo histórico não constituíam impedimento para a vio-lência e a submissão. Tocqueville estava consciente da inevitabili-dade do fenômeno democrático para as nações do Ocidente, mas isso não o impediu de explorar os elementos conflituais da aliança entre igualdade e liberdade e compreender que muitos dos princí-pios elencados pelos pensadores políticos da época não passavam de realidades metafísicas ou falácias da argumentação.

Para que o estudo não fique demasiado incompleto, é preciso que você, aluno interessado, busque em outras fontes uma adequa-da referência a importantes autores que deixaram de ser aqui con-templados. O século 19 é também o século do utilitarismo de John Stuart Mill, do positivismo de Auguste Comte, da teoria crítica de karl Marx e Friedrich Engels e da filosofia crepuscular de Friedrich Nietzsche.

Ao final desta unidade, você encontrará um texto complementar retirado da Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, e outro do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels.

Navegando por uma corrente contrária ao espírito da época, Marx prevê a ruína da sociedade capitalista. Suas análises estão, contudo, longe de terem um efeito exclusivamente diagnóstico. Os notáveis escritos de Marx são de grande contribuição para que possamos compreender conceitos como materialismo histórico, dialética, luta de classes, divisão do trabalho, alienação, mercado-ria etc. A repercussão da atividade intelectual de Marx, tanto na teoria, quanto na prática, não só influenciou um profícuo número de pensadores, como até hoje ocupa uma considerável parcela da tarefa de cientistas políticos e economistas.

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5. IMMANUEL kANT E A PAZ PERPÉTUA

No contorno de toda produção intelec-tual de kant – um filósofo que dispensa apre-sentações para todos aqueles que buscam na modernidade as raízes do quadro político atual – primazia do indivíduo e filosofia moral têm ro-bustas implicações políticas. Se compreender-mos bem em que consiste a moralidade e a sua relação com o direito na obra kantiana, podere-mos daí extrair uma série de consequências te-

óricas para a organização do Estado e para a vida política em geral.

Tomando como fundamento o inato direito à liberdade do homem, esforçando-se para definir a esfera inviolável da consci-ência individual, kant oferece à humanidade um peculiar conceito de moralidade: moralidade pode ser entendida como a confor-midade com a norma do dever ser dada pelo próprio indivíduo. Todo homem pode, enquanto ser dotado das faculdades da razão, conhecer e ditar normas de conduta para si mesmo, normas que viabilizariam tanto a vida particular quanto a vida em sociedade.

A organização do direito e da política provêm do adequado uso da razão, de comandos assumidos a priori, metafísicos no que concerne à experiência concreta. O imperativo categórico, defini-do por kant na Fundamentação da metafísica dos costumes como o agir sempre segundo princípios que devem ser tomados como lei universal, mostra-se aqui como o alicerce de todo o edifício em construção. O homem moral obedece ao imperativo categórico apreendido de modo objetivo e universal.

Do conceito kantiano de moralidade, subtraímos duas con-sequências:

Em primeiro lugar, enquanto ser moral, o homem só obe-dece a leis dadas por ele mesmo – nisso consiste a dignidade e a liberdade do homem: agir sempre conforme a sua razão. O que

Figura 1 Immanuel Kant (1724-1804).

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antes havia sido definido como a espontaneidade que extrapola as relações de causalidade presentes na natureza, toma na filoso-fia moral kantiana uma dupla coloração que se exprime tanto no conceito negativo de liberdade, manifesto pela ausência de limita-ções eternas do comportamento, quanto do conceito positivo de liberdade, materializado como autonomia, isto é, a propriedade de legislar para si próprio.

A segunda consequência é a seguinte: enquanto ser huma-no, o homem é um fim em si mesmo, sua dignidade não depende de qualquer juízo de valor utilitário, não depende de dados cole-tados da sensibilidade empírica e auferidos por seja lá quem for.

qual, então, a relação entre a moralidade, o direito e a po-lítica?

Assim como os princípios da moralidade, os princípios do di-reito devem ser conhecidos de modo objetivo e universal. Diz um parágrafo retirado da introdução à teoria do direito de Primeiros princípios metafísicos da doutrina do direito:

que é o Direito em si? Esta questão, se não for pra mergulhar numa tautologia ou referir-se à legislação de determinado país ou tempo, em lugar de dar uma solução geral, é tão grave para o jurisconsulto como o é para o lógico a questão que é a verdade? Seguramente pode-se dizer que é o direito, isto é, que prescrevem ou prescreve-ram as leis determinadas do lugar ou tempo. Porém, a questão de saber se o que prescrevem essas leis é justo, a questão de dar por si o critério geral através do qual possam ser reconhecidos o justo e o injusto jamais poderá ser resolvida a menos que se deixe à parte esses princípios empíricos e se busque a origem desses juízos na razão somente (ainda que essas leis possam muito bem se dirigir a ela nessa investigação), para estabelecer os fundamentos de uma legislação positiva possível.

Se a razão controlasse perfeitamente as paixões humanas, haveria sempre conformidade entre as leis morais e as leis posi-tivas do direito, aquelas de obediência sugerida, estas de cumpri-mento exigido coercitivamente. Mas tal não é a condição humana: nem sempre os homens estão aptos a escutarem e seguirem os ditames da razão, muitos se deixam frequentemente ser arrasta-

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dos pelas paixões. Por isso, o direito precisa regular as relações externas entre os indivíduos de modo a tornar possível a vida em sociedade e o exercício da liberdade por cada um.

A fórmula do princípio universal do direito será dada nos Pri-meiros princípios metafísicos da doutrina do direito: é justa toda ação ou máxima da ação que permita a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade do outro segundo uma lei universal. Sur-ge o Estado como necessário agente regulador das liberdades indi-viduais. A seguir, um pequeno trecho do suplemento primeiro de A paz perpétua:

O problema do estabelecimento do Estado, por mais áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de demônios (contanto que tenham entendimento), e formula-se assim: ordenar uma mul-tidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem con-juntamente leis universais, às quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas dis-posições privadas, se contêm no entanto reciprocamente, de modo que o resultado da conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más.

A sociedade civil decorre do imperativo moral e realiza a ideia de liberdade.

quais as características do Estado pensado por kant?

O Estado kantiano é liberal porque garante tão somente o bem público: a manutenção da juridicidade das relações interpessoais, a constituição que permita a cada um exercer sua liberdade sem con-trariar a lei. Convém a cada indivíduo buscar sua felicidade como lhe aprouver contanto que não viole os direitos dos demais membros da sociedade.

A fim de que a vontade geral não seja usurpada pelas von-tades particulares, deve o poder estatal obedecer à já consagrada tripartição dos poderes: legislativo, executivo e judiciário.

kant refere-se ainda à constituição de um contrato originá-rio para justificar a legitimidade do governo político. Mas, ao con-trário dos expoentes da tradição do pacto social, a sua intenção

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parece estar bem definida e delimitada: instituir a ideia metafísica de fundamento da sociedade civil, negando qualquer direito de resistência por parte dos governados. Não estão os consorciados de uma sociedade autorizados nem à resistência, nem à revolu-ção – isso geraria uma contradição interna insanável no corpo da sociedade. As reformas necessárias ao aperfeiçoamento da ordem constitucional só podem ser realizadas pelo próprio poder sobe-rano, por meio do legislativo. Não podemos, todavia, confundir competência com participação: segundo o filósofo prussiano, para que a vontade geral seja melhor conhecida, a publicidade e o alar-gamento do espaço público são basilares como modo de assegurar a liberdade de expressão e o debate.

Afeito ao culto do progresso, kant alimentou a convicção de que há na história da humanidade uma evolução racional (Ideia de uma história universal a partir de um ponto de vista cosmopoli-ta), embora parecesse saber que a forma de uma sociedade ideal permaneceria sempre distante da realização concreta na história. isso não o impediu de contribuir para que novos caminhos para a paz fossem encontrados. No âmbito do direito internacional, a paz deve ser estabelecida porque a guerra não interessa aos Estados: este é também um princípio da razão.

kant foi um dos primeiros a conceber teoricamente uma liga das nações como meio de favorecer a concórdia entre diferentes países. Cabe à confederação de Estados, enquanto expressão de vontades livres, a manutenção da paz. Lemos no Segundo artigo definitivo sobre a paz perpétua:

O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres. Os povos podem, enquanto Estados, considerar-se como ho-mens singulares que no seu estado de natureza (isto é, na indepen-dência de leis externas) se prejudicam uns aos outros já pela sua simples coexistência e cada um, em vista da sua segurança, pode e deve exigir do outro que entre com ele numa constituição seme-lhante à constituição civil, na qual se possa garantir a cada um o seu direito. isso seria uma federação de povos que, no entanto, não deveria ser um Estado de povos.

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6. fRIEDRICh hEGEL E A REALIZAÇÃO DA RAZÃO UNIVERSAL

Ao final de sua vida, Hegel publica o pro-duto de seus cursos sobre a filosofia do direito ministrados na Universidade de Berlim sob o tí-tulo Princípios da filosofia do direito – trata-se de um longo e vasto estudo que viria a ser con-siderado posteriormente como a principal refe-rência de sua obra no que concerne à Filosofia Política. Mas não é fácil entender o seu pensa-mento. Se por um lado a Filosofia Política hege-liana se alimenta de conceitos que possuem um

elevado grau de abstração, por outro está intimamente atrelada à sua peculiar acepção de história.

Conhecer a intenção de Hegel com a publicação da obra que viria a coroar toda a sua produção filosófica pode nos auxiliar na compreensão do seu pensamento político. Com Massimiliano Tomba, em Poder e constituição em Hegel, poderíamos começar dizendo que:

A leitura do Prefácio aos Lineamentos de filosofia do direito permite perceber que o objetivo da filosofia política hegeliana é a compre-ensão da racionalidade do Estado como forma específica do Espíri-to, numa época determinada (DUSO, 2005, p. 305).

O Estado aparece então como a realização da história da ra-zão universal, do saber absoluto. Não se pode tomar a natureza humana e a constituição de sua organização política fora do desen-volvimento histórico, o que segundo o filósofo fariam os contratu-alistas clássicos. A base do Estado não reside no contrato, mesmo que auferido de modo puramente lógico, mas na vontade univer-sal e no seu curso histórico. O homem é fruto do seu tempo e a sua organização política, como modo de expressão do seu modo de ser, também deve ser assim compreendida.

Figura 2 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).

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Hegel pensa o Estado soberano como modo de organização necessário à existência da vida social. O indivíduo só pode se de-senvolver plenamente no Estado. O sujeito moral, pela mediação da família e da atividade profissional que exerce, reconhece que a sua existência depende do Estado.

Lemos nos parágrafos 257 e 258 dos Princípios da filosofia do direito:

O Estado é a realidade em ato da idéia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se co-nhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém a sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade. [...]

O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o ra-cional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio abso-luto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever. [...]

Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o in-divíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos in-divíduos está em participar de uma vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial e universal.

Fiel ao conceito de história como um movimento de negati-vidade e reconciliação, a Filosofia Política de Hegel possui também um forte apelo dialético. O Estado aparece como o fruto dialético entre particularidade e universalidade, na procura da totalidade. O Estado, enquanto realidade que extrapola o cenáculo individual, constitui o limite externo e formal para a liberdade do indivíduo, mas assume, ao mesmo tempo, a própria realização do seu direito à liberdade. Diz Hegel no parágrafo 260 subsequente:

É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liber-dade consiste em a liberdade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse univer-

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sal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular espírito substancial e para ele elegem como seu últi-mo fim. (...) O princípio dos Estados modernos tem esta imensa for-ça e profundidade: permitem que o espírito da subjetividade che-gue até a extrema autonomia da particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz à unidade substancial, assim mantendo esta unidade no seu próprio princípio.

Hegel distingue em três esferas a família, a sociedade civil e o Estado.

Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do direito é o primei-ro – e não Marx – a fixar o conceito de sociedade civil como algo distinto e separado do Estado político (...). A sociedade civil é de-finida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependên-cias recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si. A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interes-ses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão me-diatizadas e superadas (BRANDãO in WEFFORT, 2002, p. 105-106).

A rigor, não há liberdade fora do Estado, porque não há povo se desprovido de constituição – antes da organização estatal temos apenas uma multiplicidade inorgânica de indivíduos. A instituição da constituição representa e realiza a unidade. Se o movimento dialético faz da história a expressão da superação e absorção das formas políticas, devem as fases históricas anteriores à instituição da constituição estatal serem entendidas apenas como fases.

Hegel extrai dos seus próprios conceitos algumas conclusões de notória relevância e implicações práticas. Vamos a elas.

As distinções clássicas quanto aos tipos de governo – monar-quia, aristocracia, democracia – são assumidas como momentos da articulação do Estado.

A divisão dos poderes de um Estado político deve compre-ender o poder legislativo, responsável pela determinação do uni-versal, o poder de governo, capaz de absorver o particular no uni-versal, e o poder do príncipe, ao qual cumpre a decisão última e a

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reunificação dos poderes na unidade individual, concebida como a cúpula e o início do todo que constitui a monarquia constitucional – esta, por sua vez, o aperfeiçoamento do Estado na forma infinita da ideia (cf. Princípios da filosofia do direito, parágrafo 273).

Se a última palavra compete ao monarca, sua decisão não é arbitrária porque se encontra subordinada à unidade da consti-tuição. A soberania não transcende à articulação dos poderes. O monarca dá racionalidade à constituição, mas é menos que uma figura do poder absolutista e mais que uma figura supérflua que apenas encena.

Hegel defende a participação popular no governo e os prin-cípios da publicidade. Os integrantes dos poderes públicos devem ser recrutados em função de sua competência, capacidade de ra-cionalmente calcular as intervenções necessárias à vida civil e à consciência do universal.

Para que o Estado não se torne uma estrutura engessada e desprovida de sentido, deve estar sempre disponível à modifica-ção, de modo que ao desenvolvimento do Espírito corresponda o desenvolvimento das instituições. Em última instância, o poder le-gislativo absoluto e supremo seria a história.

Embora os acontecimentos que o cerquem não o incentivem a pensar de modo inteiramente otimista, Hegel ainda acredita que os conflitos mundiais levarão à superação dos mesmos conflitos e à instau-ração de um Estado universal, como realização final da razão universal.

7. TExTOS COMPLEMENTARESTexto 1 - Alexis de Tocqueville ––––––––––––––––––––––––––Introdução de A democracia na América

Dentre as coisas novas que, durante minha estada nos Estados Unidos, chamaram-me a atenção, nenhuma impressionou-me tão intensamente quanto a igualdade de condições. Descobri, sem dificuldades, a influência prodigiosa exercida por este fator na marcha da sociedade; dá ao espírito público certa direção; às leis, um ar especial; aos governantes, novos prin-cípios, e aos governados, hábitos particulares. (...)

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Desse modo, à medida que estudava a sociedade americana, via, cada vez mais, na igualdade de condições o fato originário de que cada aspecto parecia provir e reencontrava-o, incessantemente, como o ponto central a que chegavam todas as minhas observações.Levei, então, o pensamento ao nosso hemisfério e pareceu-me que aí en-contrava algo semelhante ao espetáculo oferecido pelo Novo Mundo. Via igualdade de condições que, sem atingir, como nos Estados Unidos, seus limites extremos, aproximava-se deles cada dia mais; esta mesma demo-cracia, que reinava nos Estados Unidos, pareceu-me avançar rapidamente em direção ao poder na Europa.Desde este instante, concebi a idéia do livro que se vai ler.Uma grande revolução democrática opera-se entre nós; todos a vêem, mas nem todos a julgam da mesma maneira. Uns consideram-na algo de novo e, tomando-a por coisa acidental, esperam poder ainda sustá-la, en-quanto outros julgam-na irresistível, pois lhes parece o fato mais contínuo, mais antigo e mais permanente que se conhece na história. (...)Não há povo na Europa em que a grande revolução social a que fiz alusão tenha feito progressos mais rápidos do que entre nós; mas a revolução, neste país, desenvolveu-se sempre ao acaso. Nunca os chefes de Es-tado pensaram em preparar, previamente, o que quer que fosse em seu favor; fez-se apesar deles ou sem que tivessem conhecimento. As classes mais poderosas, mais inteligentes e mais honestas da nação não busca-ram apoderar-se dessa revolução para dirigi-la. A democracia foi, portan-to, abandonada a seus instintos selvagens; cresceu como essas crianças privadas dos cuidados paternos, que se criam sós nas ruas das cidades, que só conhecem da sociedade os vícios e as misérias. Parecia-se ignorar, ainda, a existência da revolução, quando apoderou-se, inopinadamente, do poder. Então, cada qual se submeteu servilmente a seus mínimos de-sejos; adoraram-na como imagem da força; quando, depois, enfraqueceu por culpa de seus próprios excessos, os legisladores conceberam o projeto imprudente de destruí-la, ao invés de buscar instruí-la e corrigi-la e, sem pensar em ensiná-la a governar, só quiseram expulsá-la do governo.O resultado foi que a revolução democrática operou-se no plano material da sociedade, sem que houvesse, nas leis, nas idéias, nos hábitos e cos-tumes, a mudança que teria sido necessária para torná-la útil. Assim temos a democracia, menos o que deve atenuar seus vícios e realçar-lhe as van-tagens naturais; já conhecendo os males que provoca, ignoramos os bens que pode proporcionar (1973).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Texto 2 - Marx e Engels ––––––––––––––––––––––––––––––––Manifesto do Partido Comunista, capítulo I: Burgueses e proletários

A história de todas as sociedades até hoje é a história das lutas de classes.Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de cor-poração e companheiro, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em cons-tante antagonismo entre si, travando uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, outras aberta – uma guerra que sempre terminou ou com a transformação revo-lucionária de toda a sociedade ou com a destruição das classes em luta.

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Nas épocas anteriores da história encontramos, quase por toda parte, uma completa estruturação da sociedade em estados ou ordens sociais, uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga, temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassa-los, mestres das corporações, aprendizes, servos e, além disso, gradações particulares no interior dessas classes.A sociedade burguesa moderna, que surgiu do declínio da sociedade feu-dal, não aboliu os antagonismos de classes. Limitou-se a estabelecer no-vas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das anteriores.A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, porém, por ter sim-plificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade está se dividindo, cada vez mais, em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado.(...) As armas que a burguesia empregou para abater o feudalismo voltam--se hoje contra a própria burguesia.Mas a burguesia não se limitou a forjar apenas as armas que lhe trarão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – os operários modernos, os proletários.(...) Todas as sociedades até hoje existentes assentaram, como vimos, no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas, para oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe ao menos as condições mínimas em que possa ir arrastando a sua existência servil. O servo da gleba, sem deixar de ser servo, chegou a membro da comuna, da mesma forma que o pequeno-burguês, sob o absolutismo feudal, chegou a grande burguês. O operário moderno, ao contrário, longe elevar-se com o desen-volvimento da indústria, afunda-se cada vez mais, indo abaixo das condi-ções de sua própria classe. O operário passa a indigente e a indigência cresce mais rapidamente que a população e a riqueza. Torna-se evidente que a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a clas-se dominante e impor à sociedade, como lei suprema, as condições de existência da sua classe.(...) A condição essencial para a existência e o domínio da classe burgue-sa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e a multiplicação do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado baseia-se exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora indi-ferente e involuntária, substitui o isolamento dos operários, resultante da concorrência, pela sua união revolucionária, resultante da associação. O desenvolvimento da grande indústria, assim, retira da burguesia a própria base sobre a qual assentou o seu regime de produção e apropriação. A burguesia produz, sobretudo, os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis (1998).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade:

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1) Como pensar o conceito de política para kant?

2) Como pensar o conceito de política para Hegel?

3) É possível conciliar fim da história e estado final de paz?

9. CONSIDERAÇÕES

Estudamos, nesta unidade, a Filosofia Política na Moderni-dade. Na próxima unidade, ficaremos com a Filosofia Política na Contemporaneidade, quando conheceremos os pensamentos de Arendt, Foucault e Habermas a respeito da política.

10. e-referênCias

Lista de figurasfigura 1 Immanuel Kant (1724-1804). Disponível em: <http://www.substantivoplural.com.br/bacterias-cameras-e-kant/>. Acesso em: 26 jun. 2012. figura 2 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Disponível em: <http://ast-tok.wikispaces.com/Biographical+information>. Acesso em: 26 jun. 2012.

11. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

BOBBiO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.______. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. BORON, A. A. (Org.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. São Paulo: USP, 2006.BRANDãO, G. M. Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. in: WEFFORT, F, C. Os clássicos da política: Burke, kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill, Marx. São Paulo: ática, 2002. v. 2.CHâTELET, F., DUHAMEL, O.; PiSiER-kOUCHNER, E. História das idéias políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.CONSTANT, B. Escritos de política. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.______. Cours de politique constitutionnelle. New York: Arno Press, 1979. v. 2, 3.DUSO, G. (Org.). O poder: história da filosofia política moderna. Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005.

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HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Orlando Vittorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.kANT, i. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995.______. Doutrina do direito. Tradução de Edson Bini. São Paulo: ícone, 1993.MARx, k.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Prólogo de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez, 1998. RAMOS, C. A. Liberdade subjetiva e Estado na filosofia política de Hegel. Curitiba: Editora da UFPR, 2000.TERRA, R. R. A política tensa: idéia e realidade na filosofia da história de kant. São Paulo: iluminuras, 1995.TOCqUEViLLE, A. A democracia na América in Federalistas. Tradução de J. A. G. Albuquerque. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os pensadores). ______. O antigo regime e a revolução. Tradução de Yvonne Jean. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, "O Federalista". São Paulo: ática, 2000. v. 1. ______. Os clássicos da política: Burke, kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill, Marx. São Paulo: ática, 2002. v. 2.

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EAD

6Filosofia Política Contemporânea

1. OBJETIVOS

• Compreender o desenvolvimento da Filosofia Política na contemporaneidade.

• Analisar os principais pensamentos filosóficos do período no que concerne à política.

• identificar os desafios que atualmente envolvem a refle-xão filosófica sobre a política e a sua prática.

2. CONTEúDOS

• Hannah Arendt.• Michel Foucault.• Jürgen Habermas.• Texto complementar: Claude Lefort.• Texto complementar: Norberto Bobbio.

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3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE

Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

1) Lembre-se de que há muitas maneiras de pensar o con-ceito de política. As questões autoavaliativas que se-guem ao final das unidades são abertas e querem ajudar na compreensão das polissemias aí presentes.

2) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli-tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun-damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo.

3) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am-plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate-rial didático apresentado.

4) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci-clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto.

5) Uma prática reflexiva integral, englobando leitura aten-ta, pesquisa bibliográfica e hábito de questionamento: estes são alguns dos atributos que você precisa adqui-rir e cultivar. Cabe ressaltar que cada exercício realiza-do representa um momento em que você exercita o seu poder de compreensão e análise de conceitos, de inter-pretação de textos e de síntese, seu senso crítico, suas habilidades interpessoais.

4. INTRODUÇÃO à UNIDADE

Na Unidade 5, abordamos os principais pensamentos filosó-ficos relacionados à política na Modernidade. Dentre os principais pensadores da política moderna, destacamos immanuel kant (a paz perpétua) e Friedrich Hegel (a realização da razão universal).

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Agora, procuraremos entender como se desenvolveu a Filosofia Política na contemporaneidade.

Como encontrar um fundamento seguro no terreno ainda movediço da filosofia contemporânea, especialmente no que con-cerne ao seu pensamento político? Podemos visualizar, nesse con-texto, uma profícua e desconjunta série de tentativas destinadas não somente a dialogar com a tradição e oferecer novas leituras para textos que se tornaram clássicos, mas a diagnosticar a realida-de política atual, pensar novas soluções para questões persisten-tes, arriscar previsões, entender a relação entre teoria e prática.

A tarefa de elaborar uma lista dos filósofos que precisam ser lidos envolve um risco muito grande, na medida em que se pode escolher arbitrariamente uns em detrimento de outros e deixar de citar nomes de relevância para o cenário da história da Filosofia Política. Os autores citados a seguir aparecem aqui para motivar um início de leitura.

Do início do século 20, não podemos esquecer as contribui-ções de Max Weber, na vertente do pensamento sociológico, ou de Hans kelsen e Carl Schmitt, no confronto que reavalia teorias do direito e da justiça. Nem as diferentes perspectivas ligadas a fontes do pensamento marxista, tais como as encampadas por Lukács, Gramsci e Althusser, ou por importantes pensadores liga-dos à Escola de Frankfurt, tais como Horkheimer e Adorno, e numa linha menos próxima, Benjamin e Marcuse.

Seria de bom alvitre ainda conhecer os recentes e díspares esforços de karl Popper, com A sociedade aberta e seus inimigos, John Rawls, com sua Teoria da Justiça, e Claude Lefort, com suas reflexões sobre totalitarismo e democracia. Ou as recentíssimas intervenções de Antonio Negri e Michael Hardt, com Império, na tentativa de oferecer oposição ao processo de globalização capita-lista, e Giorgio Agamben, com o original diagnóstico da realidade que identifica o estado de exceção como paradigma do político moderno.

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Vamos, então, apontar três nomes, mostrando como o complexo do quadro atual pode gerar diferentes leituras: Arendt, Foucault e Habermas. Ao final, indicamos dois textos complementares. O primeiro de Claude Lefort, sobre a remanescente tarefa da Filosofia Política: o pensar das relações entre democracia e totalitarismo, e o segundo de Norberto Bobbio, sobre a democracia e as esperanças que restam.

5. hANNAh ARENDT

Entre os principais expoentes da Filosofia Política contemporânea, reservamos um lugar para Hannah Arendt. A sua obra não somente tenta responder aos escândalos e vicissitudes do nosso tempo, encarando-os diretamente e sem receio de ser por isso desqualificada, como oferece uma nítida contribuição à reflexão filo-sófica engajada em encontrar alternativas do pensamento para os dias atuais.

Para aqueles que presenciaram os acontecimentos do sécu-lo 20, não é possível iniciar qualquer reflexão filosófica ignorando o terror das experiências políticas pelas quais passou o universo planetário. As duas grandes guerras e o colapso político arranca-ram teóricos protegidos por castelos e os levaram a reavaliar os fundamentos do mundo conhecido. Para aqueles inseridos no co-ração dos acontecimentos que consumaram o fim da história será urgente compreender o totalitarismo.

Hannah Arendt esteve muito próxima dos eventos que mar-caram o século. Como alemã e filha de uma família judia, viveu sob a forte impressão de um conflito que se iniciava dentro de sua própria casa, suprimindo qualquer exigência de privacidade em face da penetração pública das ideologias vicinais. Tendo conclu-ído seus estudos em Teologia e Filosofia na universidade alemã, teve vedado o acesso ao ensino na mesma universidade pela sua

Figura 1 Hannah Arendt (1906-1975).

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condição indesejável. Para escapar do Terceiro Reich, precisou mi-grar para os Estados Unidos, onde permaneceu por toda a vida.

impressionada pela experiência do totalitarismo, espelhada tanto pela vertente nazista quanto pela soviética, Arendt escreve um grosso volume reunindo dados históricos e fecunda reflexão filosófica. A ele dá o título de Origens do totalitarismo. As suas páginas permitem ao leitor compreender a gênese de ideologias nutridas pelo antissemitismo e pelo imperialismo e os traços de um movimento sem precedentes.

O totalitarismo não pode ser visto como um acontecimento previsível, embora tenha como fonte certos produtos da cultura ocidental, tais como o racismo e o nacionalismo. Há traços da ex-periência totalitária nunca contemplados: os regimes totalitários eliminam a possibilidade da ação humana. Por meio do funciona-mento de uma máquina burocrática digna do imaginário fabuloso, de um refinado processo de massificação da comunidade humana e do descarte da experiência pessoal, o totalitarismo, enquanto movimento que engendra o domínio total, abole a individualidade e a liberdade, suprimindo o espaço público e colocando a esfera privada sob constante suspeita. Os sistemas totalitários diferem de outros sistemas de dominação surgidos ao longo da história hu-mana porque não visam somente à maximização do poder sobre os homens; eles têm como finalidade a fabricação de uma huma-nidade específica. A eliminação da individualidade e da liberdade é tática: criar uma massa para convertê-la em outra massa.

Para isso, o totalitarismo utiliza-se de mecanismos já conhe-cidos pela experiência política, mas agora tomados de um novo ângulo valorativo, tais como a propaganda e o terror. Como adular as massas, como minar qualquer chance de reação? A ideologia que o alimenta quer convencer que toda medida adotada obedece aos ditames de uma ordem estrita inescusável: há forças do desti-no que conduzem a história da humanidade e o seu curso se deter-mina pela obediência a uma lei natural inevitável.

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O diagnóstico não é encorajador. Não obstante, mesmo ten-do como pano de fundo esse horizonte cinzento, Hannah Arendt não se limita ao diagnóstico da experiência totalitária. Após o co-lapso da história humana pelo evento totalitário, resta uma tarefa aos pensadores: recuperar o sentido da política e o estatuto da ação humana. O poder, costumeiramente concebido como instru-mento de dominação, pode ser realizado na experiência de resis-tência ou na fundação democrática da convivência.

Arendt confia na capacidade humana de inaugurar algo novo. A conclusão de Origens do totalitarismo traz a seguinte passagem:

A crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como potenciali-dade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar co-nosco de agora em diante, como ficaram, a despeito das derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes mo-mentos históricos e baseadas em experiências fundamentais – mo-narquias, repúblicas, tiranias, ditaduras e despotismos.

Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a pro-messa, a única "mensagem" que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. (...) "o ho-mem foi criado para que houvesse um novo começo", disse Agosti-nho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verda-de, cada um de nós (1989).

O processo de recuperação da dignidade da política passa pela análise da condição humana e pelo exame minucioso do seu espírito. O homem, por meio de sua ação política, possui sempre a capacidade de iniciar algo novo. A vida do homem não se resu-me no seguimento do fluxo, nem somente no trabalhar para o seu sustento e no consumir para garantir o mínimo de sobrevivência. O homem possui ele próprio uma dignidade política e ao exercê-la, por meio da ação e do discurso, singulariza sua existência e interfe-re positivamente na realidade.

Lemos no quinto capítulo de A condição humana:Na ação e no discurso os homens revelam quem são, revelam ativa-mente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam--se ao mundo humano. (...)

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Esta qualidade reveladora do discurso e da ação vem à tona quando as pessoas estão com outras, isto é, no simples gozo da convivência humana (...). Dada a tendência intrínseca de revelar o agente jun-tamente com o ato, a ação requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora tinha o nome de glória e que só é possível na esfera pública (2004).

Na recuperação da dignidade política, a categoria da ação humana possui um papel nuclear e germinal. Toda a obra de Arendt parece a ela afluir, ainda que escritos posteriores permitam perceber novos aspectos de seu pensamento. A mediação entre ação e política pode ser realizada pela reavaliação da faculdade do juízo (na valorização da pluralidade, da opinião e da publicidade), do querer (a capacidade humana de dizer não, de escolher e resistir mesmo que sob o efeito de coerção) e do fazer (há uma parcela da realidade sujeita à intervenção humana).

O esforço de Hannah Arendt conjuga política e afirmação da liberdade humana. Precisamos saber se a transformação da reali-dade ainda está em poder dos homens. O que podem os homens diante dos cenários adversos do nosso tempo? Veja a seguir um pequeno trecho do final do quinto capítulo de A condição humana:

Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destrui-ção, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar (2004).

6. MIChEL fOUCAULT

A Filosofia Política contemporânea vem assistindo à transladação da pura imposição descendente do poder soberano à criação de uma malha de relações de poder em cuja tra-ma a vida se prende. O poder antes emanado de um único e claro ponto de irradiação se faz sentir nas relações cotidianas – algumas ve-zes, pode um cidadão buscar participar politi-Figura 2 Michel Foucault

(1926-1984).

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camente da organização da comunidade em que vive e ver seus esforços minarem sem auferir qualquer resultado, sem ao menos saber onde sua ação se perdeu.

Fora dos esquemas delimitados através de séculos por uma tradição filosófica, Michel Foucault encara o desafio de pensar no-vamente o estatuto do poder político. O poder deixa então de ser um atributo do soberano ou da elaboração e aplicação da lei, uma propriedade que pode ser adquirida e cedida, para se tornar um exercício difuso no corpo social. As instituições que aparecem sob o verniz da centralização do poder são não o início, mas o acaba-mento das relações de poder disseminadas na sociedade.

O projeto do filósofo francês manifesta-se de modo bem de-finido em Soberania e disciplina, texto inserido no conjunto Micro-física do poder:

Trata-se, ao contrário, de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, princi-palmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra nas instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de interven-ção material, eventualmente violento (FOUCAULT, 1979, p. 182).

Foucault não compreende poder como um sistema comple-to de dominação, em que fácil seria visualizar uma fonte única da qual ele emanaria. O poder é exercido a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis no interior da sociedade organizada. As relações de poder não são ditadas uniformemente por uma superestrutura, elas são integradas aos processos eco-nômicos, relações de conhecimento, discursos de sexualidade, construção de casas de detenção, e desempenham aí um papel produtor. Encontramos em Microfísica do poder, numa entrevista intitulada como Verdade e poder, a seguinte passagem:

O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simples-mente que ele não pesa só como uma força que diz sempre não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (FOUCAULT, 1979, p. 8).

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Foucault percebe a cumplicidade que pode haver entre saber e poder (há uma conexão silenciosa entre produção de saberes e estratégias do poder), entre poder e instituições, entre poder e prá-ticas disciplinares (resta investigar se não há uma matriz comum en-tre história das ciências humanas e história do direito penal).

indo mais além, trilhando a analítica das relações de poder na sociedade contemporânea, o filósofo francês levanta a hipó-tese segundo a qual política e guerra não consistiriam em duas estratégias diametralmente opostas – política em tempos de paz e guerra podem estar mais próximas do que se imagina e prontas a se transformar uma na outra. Lemos em Genealogia e poder, texto que compõe a obra já citada:

Se é verdade que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade civil, não o faz para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilíbrios que se manifestam na batalha fi-nal, mas para reinscrever perpetuamente estas relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indiví-duos (FOUCAULT, 1979, p. 176).

Foucault quer estar atento à pluralidade das relações de do-minação, ao jogo das relações de força e à efusão das micropena-lidades que planejam adestrar corpos e palavras, na complexidade da sociedade política atual.

Nessa linha de pensamento, o filósofo vai dizer que o que interessa à classe burguesa, que ascende a partir da Revolução Francesa e permanece até hoje com o papel dominante, é desco-brir como as técnicas de exclusão podem ser vantajosas, política ou economicamente lucrativas. De modo a distender estruturas de poder menos ruidosas, certos mecanismos vão sendo criados e o poder soberano dá lugar ao poder disciplinar. Surge uma nova economia do poder.

Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos ter-mos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade bur-guesa. Ele foi um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspon-dente; este poder não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar (FOUCAULT, 1979, p. 188).

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Uma extensa cadeia de vigilância permite um minucioso sis-tema de controle e coerções. O poder disciplinar, mais adaptado às exigências do regime democrático, ocupa o lugar do poder sobera-no cru, mas este não desaparece inteiramente, na medida em que a teoria da soberania permanece como ideologia e como princípio organizador dos grandes códigos jurídicos. isto por dois motivos, de acordo com a argumentação do filósofo francês: primeiro, por-que dita teoria persiste como um valoroso argumento de oposição contra a monarquia e os obstáculos que ela poderia impor ao pro-gresso; segundo, porque a citada teoria permite camuflar técnicas de dominação, recobrindo-as de legitimidade plasmada num siste-ma perfeito de direito:

Os sistemas jurídicos – teorias ou códigos – permitiram uma de-mocratização da soberania, através da constituição de um direito público articulado com a soberania coletiva, no exato momento em que esta democratização fixava-se profundamente, através dos mecanismos de coerção disciplinar (FOUCAULT, 1979, p. 188-189).

Poder e liberdade não se excluem, implicam-se reciproca-mente. Para que a assimetria da relação de poder se mantenha, sua tensão não deve eliminar a possibilidade de ação do polo su-bordinado, uma vez que poder só pode ser propriamente exercido sobre o que se apresenta como livre. Por isso, os pontos de resis-tência atualizam o poder, seja pela confirmação institucional, seja pela polarização da revolução.

7. JüRGEN hABERMAS

Herdeiro da Escola de Frankfurt, aliado à crítica do Positivismo, Habermas procede à análise do desenvolvimento da sociedade in-dustrial e da crise de legitimidade do capitalis-mo tardio. Caberia ainda aos filósofos enfrentar certas questões persistentes da política con-temporânea, sem ignorar os fatos históricos e sem criar um fosso entre teoria e prática, dian-te do avanço cada vez maior da racionalidade

Figura 3 Jürgen Habermas (1929-).

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científica em todos os âmbitos da vida social, inclusive quanto às técnicas governamentais.

Entretanto, ao longo de sua vida acadêmica, Habermas vai paulatinamente deslocando a problemática marxista para a abor-dagem do uso social da linguagem e da noção de comunicação. Partindo de uma combinação entre teoria sociológica e filosofia da linguagem, Habermas propõe-se a discutir as condições de legi-timação das relações éticas e sociais no contexto da sociedade do século 20, privilegiando os pressupostos de possibilidade da ação comunicativa. Habermas está consciente nesse ínterim da impor-tância de superar a oposição entre filosofia e ciência e criar novas bases para o interlúdio com as ciências sociais.

Na esteira de uma crítica ao saber absoluto da metafísica, a teoria habermasiana busca destranscendentalizar a razão, a fim de trazê--la ao chão do mundo vivido e às condições concretas e contingen-tes da prática, sem perder, entretanto, o horizonte das idealizações inevitáveis e necessárias que se abre em cada ato de fala, realizado argumentativamente. Finalmente, será crucial a explosão do clás-sico primado da teoria frente à prática. Esse processo é acolhido dentro da teoria do agir comunicativo não nos termos de uma li-quidação da pretensão racional do pensamento filosófico e sim de um encolhimento dos seus papéis tradicionais. à filosofia não cabe mais o papel de indicador de lugar relativo às ciências e nem o de juiz frente à cultura, mas ela pode e deve assumir o posto de coo-peradora das ciências e de intérprete, trazendo para o horizonte do mundo vivido, realimentando-o através da linguagem argumenta-tiva da crítica, as estruturas de pensamento envolvidas num am-biente cultural cada vez mais especializado (ARAúJO in OLiVEiRA, 2003, p. 216).

Habermas toma como premissa para a sua teoria do agir co-municativo que a observação empírica tenha a comunidade co-municativa como um dado objetivo. Há uma comunidade que se comunica e os participantes dos debates assumem, ao iniciá-lo, a existência de normas lógicas que viabilizam o entendimento mú-tuo.

Pressuposto da ação seria ter por base uma realidade dia-lógica, forjada pela relação entre ao menos dois sujeitos capazes de falar e agir, inseridos num contexto socialmente apreciável. A

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existência de tal relação permite pensar uma razão comunicativa, antes de uma razão que tem no sujeito o seu ambiente centrali-zado e isolado. A razão comunicativa seria o reflexo do confronto dos participantes da comunicação mediada pela linguagem e pela argumentação, leitura que admite a fragilidade e insuficiência da razão, sempre plural e desprovida de fundamento absoluto.

As implicações de sua teoria para a Filosofia Política são cla-ras: o agir comunicativo aparece como o único meio de intercom-preensão e elemento de ligação entre facticidade e validade jurí-dica. Diz Habermas no primeiro capítulo de Direito e democracia:

O conceito "agir comunicativo", que leva em conta o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a cons-trução e manutenção de ordens sociais: pois estas mantêm-se no modo do reconhecimento de pretensões de validades normativas. isso significa que a tensão entre facticidade e validade, embutida na linguagem e no uso da linguagem, retorna no modo de integra-ção de indivíduos socializados – ao menos indivíduos socializados comunicativamente – devendo ser trabalhada pelos participantes (1997).

A linguagem exerce aí a função de promotora do agir na complexidade do mundo moderno, deflagrando a articulação en-tre autonomia privada e autonomia pública.

Pela releitura do imperativo categórico kantiano, mas sob uma ótica conduzida pelo desejo de superação da perspectiva sub-jetivista do agente moral, Habermas elege o princípio do discurso como base possível do direito. A fórmula está expressa no terceiro capítulo de Direito e democracia:

Serão válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingi-dos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participan-tes de discursos racionais (1997).

Ou ainda:Somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capa-zes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva. (1997).

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Uma rápida passada de olhos sobre a fórmula lapidar do princípio do discurso permite compreender a amplitude de sua ressonância política. Todos os envolvidos na intenção de estabe-lecer normas para a convivência entre os homens devem ter voz.

Vemos quão forte pode ser o vínculo que une democracia e estado constitucional. Enquanto filósofo do século 20, frente ao recuo da esperança na capacidade do homem em conduzir a vida comum, mas ainda confiante nos princípios da democracia por vir, Habermas acredita num projeto de modernidade que:

[...] se caracteriza, entre outra coisas, por uma avaliação positi-va, ainda que crítica, da racionalidade e de seus progressos, por uma defesa clara da democracia como forma madura de resolu-ção dos conflitos e, finalmente, pela convicção inabalável de que as questões normativas são suscetíveis de discussão argumentativa (ARAúJO in OLiVEiRA, 2003, p. 223).

8. TExTOS COMPLEMENTARES

Texto 1- Claude Lefort –––––––––––––––––––––––––––––––––Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdadeA questão da democracia

Gostaria agora de chamar a atenção para o que significa repensar o polí-tico em nosso tempo.A emergência do totalitarismo, tanto na variante fascista, presentemente destruída, mas sobre a qual nada nos permite dizer que não reaparecerá no futuro, quanto na variante que se acoberta sob o nome de socialismo, cujo sucesso só ganhou em extensão, coloca-nos na posição de reinterro-gar a democracia. Contrariamente à opinião difundida, o totalitarismo não resulta de uma transformação do modo de produção. Inútil demonstrá-lo a partir do caso do fascismo alemão ou italiano, que se adaptou à ma-nutenção de uma estrutura capitalista, seja qual for a mudança ocorrida com o recrudescimento da intervenção do Estado na economia. (...) O to-talitarismo moderno surgiu de uma mutação política – mutação de ordem simbólica – que atesta, da melhor maneira possível, a mudança de esta-tuto do poder. Nos fatos, um partido se eleva, apresentando-se com uma natureza diferente da dos partidos tradicionais, como portador de todas as aspirações do povo e detentor de uma legitimidade que o coloca acima das leis; ele toma o poder destruindo todas as oposições; o novo poder não tem de prestar contas a ninguém, subtraindo-se a todo controle legal. Mas, pouco importa, para o nosso propósito, o desenrolar dos acontecimentos, interessam-me os traços mais característicos da nova forma de sociedade. Opera-se uma condensação entre a esfera do poder, a esfera da lei e a es-

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fera do saber. O conhecimento dos fins últimos da sociedade – das normas que regem as práticas sociais – torna-se propriedade do poder, ao passo que esse poder mostra-se como órgão de um discurso que enuncia o real enquanto tal. (...)O esquema até agora apenas esboçado já permite reexaminar a demo-cracia. A partir do conteúdo do totalitarismo é que a democracia ganha um novo relevo, mostra que é impossível reduzi-la a um sistema de insti-tuições. Aparece, por sua vez, como uma forma de sociedade; e a tarefa que se impõe é compreender no que consiste sua singularidade, e o que contém que permite o seu contrário, isto é, o advento da sociedade totali-tária (1991).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Texto 2 - Norberto Bobbio –––––––––––––––––––––––––––––O futuro da democraciaApelo aos valores

É preciso dar uma resposta à questão fundamental, aquela que ouço fre-qüentemente repetida, sobretudo pelos jovens, tão inclinados às ilusões quanto às desilusões. Se a democracia é predominantemente um con-junto de regras de procedimento, como pode pretender contar com "cida-dãos ativos"? Para ter os cidadãos ativos será que não são necessários alguns ideais? É evidente que são necessários os ideais. Mas como não dar-se conta das grandes lutas de idéias que produziram aquelas regras? Tentemos enumerá-las? Primeiro de tudo nos vem ao encontro, legado por séculos de cruéis guerras de religião, o ideal da tolerância. Se hoje existe um ameaça à paz mundial, esta vem ainda uma vez do fanatismo, ou seja, da crença cega na própria verdade e na força capaz de impô-la. Inútil dar exemplos: podemos encontrá-los a cada dia diante dos olhos. Em segundo lugar, temos o ideal da não-violência: jamais esqueci o ensinamento de Karl Popper segundo o qual o que distingue essencialmente um governo de-mocrático de um não-democrático é que apenas no primeiro os cidadãos podem livrar-se de seus governantes sem derramamento de sangue. As tão freqüentemente ridicularizadas regras formais da democracia intro-duziram pela primeira vez na história as técnicas de convivência, desti-nadas a resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência. Apenas onde essas regras são respeitadas o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar. Terceiro: o ideal da renovação gradual da sociedade através do livre debate de idéias e da mudança das mentalidades e do modo de viver: apenas a democracia permite a formação e a expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nessas últimas décadas a transformação das relações entre os sexos – que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos. Por fim, o ideal da irmandade (a fraternité da revolução francesa). (...) Em nenhum país do mundo o método demo-crático pode perdurar sem tornar-se um costume. Mas pode tornar-se um costume sem o reconhecimento da irmandade que une todos os homens num destino comum? Um reconhecimento ainda mais necessário hoje,

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quando nos tornamos a cada dia mais conscientes deste destino comum e deveríamos, por aquele pequeno facho de razão que clareia nosso caminho, agir de modo conseqüente (2000).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade:

1) Como pensar o conceito de política para Arendt?

2) Como pensar o conceito de política para Foucault?

3) Como pensar o conceito de política para Habermas?

4) quais os principais desafios do pensamento político hoje?

5) Como compreender os avanços e os desafios da experiência democrática brasileira?

10. CONSIDERAÇÕES fINAIS

Não são poucas as angústias que acometem àqueles que de-cidem se enveredar pelos caminhos da Filosofia Política. As ques-tões que logo se interpõem não dizem respeito unicamente à lei-tura da história ou à interpretação das apropriações históricas dos dispositivos políticos – tais questões interferem no modo como vi-vemos em sociedade e determinam todo o invólucro da existência.

A Filosofia Política deve enfrentar com afinco os desafios que lhe são propostos. Há questões de suma importância para os dias de hoje.

qual a natureza e a finalidade dessa estrutura que continu-amos chamando de Estado? Seria possível ventilar a hipótese de uma sociedade organizada para além das instituições estatais? Se-ria possível reavaliar o conceito de soberania?

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quais as relações entre direitos individuais e direitos insti-tuídos juridicamente – há equivalência ou dessimetria entre eles? Seria possível reavaliar o conceito de cidadania?

qual a melhor forma de governo? qual o melhor regime de governo? Como estreitar os laços da representação política de modo a garantir uma maior participação de todos? qual o papel dos novos atores globais na persecução dos objetivos coletiva-mente definidos?

Pode existir paz sem justiça? Ainda podemos falar em justiça?

insatisfeitos com os rumos da política do nosso tempo, preo-cupados com a exigência de transformar a sociedade em que vive-mos e tornar o mundo habitável para todos, muitos acreditam que uma revolução seja a única solução possível, outros acreditam na recuperação e revalorização das instituições democráticas. Pode-mos optar pelo caminho que melhor preencher nossas expectati-vas. O que não podemos é ficar indiferentes.

11. e-referênCias

Lista de figurasfigura 1 Hannah Arendt (1906-1975). Disponível em: <http://hannaharendt.wordpress.com/galeria-de-fotos-harendt/hannaharendt_byfredstein/>. Acesso em: 26 jun. 2012. figura 2 Michel Foucault (1926-1984). Disponível em: <http://www.dialogocomosfilosofos.com.br/2010/03/michel-foucault/>. Acesso em: 26 jun. 2012.figura 3 Jürgen Habermas (1929-). Disponível em: <http://afilosofia.no.sapo.pt/habermas1.htm>. Acesso em: 26 jun. 2012.

12. REfERêNCIAS BIBLIOGRÁfICAS

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