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1 do estudante Núm. XVIII - ANO II 1ª quinzena - Maio/2013 Folhetim do estudante é uma publicação de cunho cultural e educacional com artigos e textos de Professores, alunos, membros da comunidade da “E.E. Miguel Maluhy” e de pensadores humanistas. Acesse o BLOG do folhetim http://folhetimdoestudante.blogspot.com.br Sugestões e textos para: [email protected] ESPECIAL pós GREVE Autoritarismo e democracia Socialpág. 2/3 Aos professores que lutam por uma escola melhor, Iniciei o ano letivo em licença médica, sofri um derrame em meu olho esquerdo. Temeroso com a perspectiva de perda da visão, pedi a amigos que ampliassem minha jornada de trabalho, pois doente ao menos teria algum vencimento que garantisse minha proteção social. Ontem visitando escolas junto ao comando de greve, encontrei colegas professores adoecidos diante de agressões sistemáticas e a esgotante jornada dupla de trabalho em duas redes, os mais jovens conseguem esgotar o seu corpo em três redes, também fui jovem. Um professor fez um relato ao comando de greve, trabalhando em uma escola, sofreu várias agressões: dois assaltos armados no interior da escola, após um conselho final de ano, alunos revoltados vão ao estacionamento e pisoteiam os carros dos professores. O professor no dia seguinte é apontado por alunos, como o dono do carro que eles ‘detonaram’. Alterado o professor agarra e agride o aluno, afastado e readaptado sofreu as seguintes punições. O professor readaptado perde sua condição de aposentadoria especial e passa a ser um indesejável pelos gestores que o tratam como um ‘doente’. Esse professor é obrigado a fazer terapias e apresentar dois laudos mensais para poder continuar a frequentar como trabalhador a escola. A escola faz muito tempo perdeu sua herança humanista e hoje convivemos com burocratas indiferentes as condições bárbaras em que se realiza o ensino em sala de aula. Encontramos um grande número de gestores deformados em sala de aula, com diplomas comprados em instituições mercantis de ensino, agem como capitães do mato, perseguindo e ofendendo professores. Apoiados por supervisores e dirigentes que compactuam com essa mesma visão deturpada de gestão de escola pública. Há muito tempo não compartilho com colegas a leitura de um livro, a emoção de uma música, à alegria de uma dança. A jornada esgotante impede ações de generosidade singelas, abrindo caminho para o embrutecimento e a indiferença na sala dos professores. E nesse ambiente embrutecido surgem os maiores inimigos da infância e da educação digna: o autoritarismo e a indiferença as dificuldades de aprendizagem de crianças e jovens abandonados socialmente. Voltei ao trabalho antes de estar com a saúde recuperada, trabalhando em três escolas, para completar a jornada. Trabalhando manhã, tarde e noite. Em certas noites, quando me sento em um sofá, tenho o corpo inteiramente dolorido, suado, com fome e sem forças para abrir um chuveiro e aliviar a tensão no corpo. Não reclamo, pois sempre estive e estarei em combate por uma escola pública decente. Agradeço imensamente a minha professora primária Maria Alice, competente alfabetizadora que não tinha nojo de seus alunos negros, filhos de migrantes nordestinos a quem ofereceu o melhor de si, na escola pública de tábuas do Jabaquara. Dez anos depois, bati em sua porta, orgulhoso para mostrar o jornal com minha aprovação na USP. Este caminho que eu mesmo escolhi não é fácil seguir, sou professor em todas as horas da vida, mas é na greve que me refaço em horizontes e caminhos de luta. Não teremos tempo para outro sonho, a hora é essa! Viva a Greve, Viva os que combatem! Fraternalmente, Rubão Prof. Rubens Santos - Geografia Folhetim

Folhetim do Estudante - Ano II - Núm. XVIII

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Page 1: Folhetim do Estudante - Ano II - Núm. XVIII

1

do estudante Núm. XVIII - ANO II

1ª quinzena - Maio/2013

Folhetim do estudante é uma

publicação de cunho cultural e

educacional com artigos e textos

de Professores, alunos, membros

da comunidade da “E.E. Miguel

Maluhy” e de pensadores

humanistas.

Acesse o BLOG do folhetim http://folhetimdoestudante.blogspot.com.br

Sugestões e textos para:

[email protected]

ESPECIAL pós GREVE

“Autoritarismo e

democracia Social” pág. 2/3

Aos professores

que lutam por uma

escola melhor,

Iniciei o ano letivo em licença

médica, sofri um derrame em meu

olho esquerdo. Temeroso com a

perspectiva de perda da visão, pedi

a amigos que ampliassem minha

jornada de trabalho, pois doente ao

menos teria algum vencimento que

garantisse minha proteção social.

Ontem visitando escolas junto ao

comando de greve, encontrei

colegas professores adoecidos

diante de agressões sistemáticas e a

esgotante jornada dupla de trabalho

em duas redes, os mais jovens

conseguem esgotar o seu corpo em

três redes, também fui jovem. Um

professor fez um relato ao comando

de greve, trabalhando em uma

escola, sofreu várias agressões: dois

assaltos armados no interior da

escola, após um conselho final de

ano, alunos revoltados vão ao

estacionamento e pisoteiam os

carros dos professores. O professor

no dia seguinte é apontado por

alunos, como o dono do carro que

eles ‘detonaram’. Alterado o

professor agarra e agride o aluno,

afastado e readaptado sofreu as

seguintes punições. O professor

readaptado perde sua condição de

aposentadoria especial e passa a ser

um indesejável pelos gestores que o

tratam como um ‘doente’. Esse

professor é obrigado a fazer

terapias e apresentar dois laudos

mensais para poder continuar a

frequentar como trabalhador a

escola.

A escola faz muito tempo perdeu

sua herança humanista e hoje

convivemos com burocratas

indiferentes as condições bárbaras

em que se realiza o ensino em sala

de aula. Encontramos um grande

número de gestores deformados em

sala de aula, com diplomas

comprados em instituições

mercantis de ensino, agem como

capitães do mato, perseguindo e

ofendendo professores. Apoiados

por supervisores e dirigentes que

compactuam com essa mesma

visão deturpada de gestão de escola

pública.

Há muito tempo não compartilho

com colegas a leitura de um livro, a

emoção de uma música, à alegria

de uma dança. A jornada esgotante

impede ações de generosidade

singelas, abrindo caminho para o

embrutecimento e a indiferença na

sala dos professores. E nesse

ambiente embrutecido surgem os

maiores inimigos da infância e da

educação digna: o autoritarismo e a

indiferença as dificuldades de

aprendizagem de crianças e jovens

abandonados socialmente.

Voltei ao trabalho antes de estar

com a saúde recuperada,

trabalhando em três escolas, para

completar a jornada. Trabalhando

manhã, tarde e noite. Em certas

noites, quando me sento em um

sofá, tenho o corpo inteiramente

dolorido, suado, com fome e sem

forças para abrir um chuveiro e

aliviar a tensão no corpo. Não

reclamo, pois sempre estive e

estarei em combate por uma escola

pública decente.

Agradeço imensamente a minha

professora primária Maria Alice,

competente alfabetizadora que não

tinha nojo de seus alunos negros,

filhos de migrantes nordestinos a

quem ofereceu o melhor de si, na

escola pública de tábuas do

Jabaquara. Dez anos depois, bati

em sua porta, orgulhoso para

mostrar o jornal com minha

aprovação na USP. Este caminho

que eu mesmo escolhi não é fácil

seguir, sou professor em todas as

horas da vida, mas é na greve que

me refaço em horizontes e

caminhos de luta. Não teremos

tempo para outro sonho, a hora é

essa! Viva a Greve, Viva os que

combatem!

Fraternalmente, Rubão

Prof. Rubens Santos - Geografia

Folhetim

Page 2: Folhetim do Estudante - Ano II - Núm. XVIII

2

do estudante ano II maio/2013

OPINIÃO

Democracia e autoritarismo

social

Estamos acostumados a aceitar a definição

liberal da democracia como regime da lei

e da ordem para a garantia das liberdades

individuais. Visto que o pensamento e a

prática liberais identificam a liberdade

com a ausência de obstáculos à

competição, essa definição da democracia

significa, em primeiro lugar, que a

liberdade se reduz à competição

econômica da chamada “livre iniciativa” e

à competição política entre partidos que

disputam eleições; em segundo, que

embora a democracia apareça justificada

como “valor” ou como “bem”, é encarada,

de fato, pelo critério da eficácia, medida

no plano do poder executivo pela

atividade de uma elite de técnicos

competentes aos quais cabe a direção do

Estado. A democracia é, assim, reduzida a

um regime político eficaz, baseado na

ideia de cidadania organizada em partidos

políticos, e se manifesta no processo

eleitoral de escolha dos representantes, na

rotatividade dos governantes e nas

soluções técnicas para os problemas

econômicos e sociais.

Ora, há, na prática democrática e nas

ideias democráticas, uma profundidade e

uma verdade muito maiores e superiores

ao que liberalismo percebe e deixa

perceber.

Podemos, em traços breves e gerais,

caracterizar a democracia ultrapassando a

simples ideia de um regime político

identificado à forma do governo,

tomando-a como forma geral de uma

sociedade e, assim, considerá-la:

1. forma sociopolítica definida pelo

princípio da isonomia ( igualdade dos

cidadãos perante a lei) e da isegoria

(direito de todos para expor em público

suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou

recusadas em público), tendo como base a

afirmação de que todos são iguais porque

livres, isto é, ninguém está sob o poder de

um outro porque todos obedecem às

mesmas leis das quais todos são autores

(autores diretamente, numa democracia

participativa; indiretamente, numa

democracia representativa). Donde o

maior problema da democracia numa

sociedade de classes ser o da manutenção

de seus princípios – igualdade e liberdade

– sob os efeitos da desigualdade real;

2. forma política na qual, ao contrário de

todas as outras, o conflito é considerado

legítimo e necessário, buscando

mediações institucionais para que possa

exprimir-se. A democracia não é o regime

do consenso, mas do trabalho dos e sobre

os conflitos. Donde uma outra dificuldade

democrática nas sociedades de classes:

como operar com os conflitos quando

estes possuem a forma da contradição e

não a da mera oposição?

3. forma sociopolítica que busca enfrentar

as dificuldades acima apontadas

conciliando o princípio da igualdade e da

liberdade e a existência real das

desigualdades, bem como o princípio da

legitimidade do conflito e a existência de

contradições materiais introduzindo, para

isso, a ideia dos direitos ( econômicos,

sociais, políticos e culturais). Graças aos

direitos, os desiguais conquistam a

igualdade, entrando no espaço político

para reivindicar a participação nos

direitos existentes e sobretudo para criar

novos direitos. Estes são novos não

simplesmente porque não existiam

anteriormente, mas porque são diferentes

daqueles que existem, uma vez que fazem

surgir, como cidadãos, novos sujeitos

políticos que os afirmaram e os fizeram

ser reconhecidos por toda a sociedade.

4. graças à ideia e à prática da criação de

direitos, a democracia não define a

liberdade apenas pela ausência de

obstáculos externos à ação, mas a define

pela autonomia, isto é, pela capacidade

dos sujeitos sociais e políticos darem a si

mesmos suas próprias normas e regras de

ação. Passa-se, portanto, de uma definição

negativa da liberdade – o não obstáculo

ou o não constrangimento externo – a uma

definição positiva – dar a si mesmo suas

regras e normas de ação. A liberdade

possibilita aos cidadãos instituir

contrapoderes sociais por meio dos quais

interferem diretamente no poder por meio

de reivindicações e controle das ações

estatais.

5. pela criação dos direitos, a democracia

surge como o único regime político

realmente aberto às mudanças temporais,

uma vez que faz surgir o novo como parte

de sua existência e, conseqüentemente, a

temporalidade é constitutiva de seu modo

de ser, de maneira que a democracia é a

sociedade verdadeiramente histórica, isto

é, aberta ao tempo, ao possível, às

transformações e ao novo. Com efeito,

pela criação de novos direitos e pela

existência dos contrapoderes sociais, a

sociedade democrática não está fixada

numa forma para sempre determinada,

pois não cessa de trabalhar suas divisões e

diferenças internas, de orientar-se pela

possibilidade objetiva de alterar-se pela

própria práxis;

6. única forma sociopolítica na qual o

caráter popular do poder e das lutas tende

a evidenciar-se nas sociedades de classes,

na medida em que os direitos só ampliam

seu alcance ou só surgem como novos

pela ação das classes populares contra a

cristalização jurídico política que favorece

a classe dominante. Em outras palavras, a

marca da democracia moderna,

permitindo sua passagem de democracia

liberal á democracia social, encontra-se no

fato de que somente as classes populares e

os excluídos (as “minorias”) reivindicam

direitos e criam novos direitos;

7. forma política na qual a distinção entre

o poder e o governante é garantida não só

pela presença de leis e pela divisão de

várias esferas de autoridade, mas também

pela existência das eleições, pois estas (

contrariamente do que afirma a ciência

política) não significam mera “alternância

no poder”, mas assinalam que o poder está

sempre vazio, que seu detentor é a

sociedade e que o governante apenas o

ocupa por haver recebido um mandato

temporário para isto. Em outras palavras,

os sujeitos políticos não são simples

votantes, mas eleitores. Eleger significa

não só exercer o poder, mas manifestar a

origem do poder, repondo o princípio

afirmado pelos romanos quando

inventaram a política: eleger é “dar a

alguém aquilo que se possui, porque

ninguém pode dar o que não tem”, isto é,

eleger é afirmar-se soberano para escolher

ocupantes temporários do governo.

Dizemos, então, que uma sociedade — e

não um simples regime de governo — é

democrática quando, além de eleições,

partidos políticos, divisão dos três poderes

da república, respeito à vontade da

maioria e da minoria, institui algo mais

profundo, que é condição do próprio

regime político, ou seja, quando institui

direitos e que essa instituição é uma

criação social, de tal maneira que a

atividade democrática social realiza-se

folhetim

Page 3: Folhetim do Estudante - Ano II - Núm. XVIII

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do estudante ano II maio/2013

como uma contrapoder social que

determina, dirige, controla e modifica a

ação estatal e o poder dos governantes.

Se esses são os principais traços da

sociedade democrática, podemos avaliar

as enormes dificuldades para instituir a

democracia no Brasil. De fato, a

sociedade brasileira é estruturalmente

violenta, hierárquica, vertical, autoritária e

oligárquica e o Estado é patrimonialista e

cartorial, organizado segundo a lógica

clientelista e burocrática. O clientelismo

bloqueia a prática democrática da

representação — o representante não é

visto como portador de um mandato dos

representados, mas como provedor de

favores aos eleitores. A burocracia

bloqueia a democratização do Estado

porque não é uma organização do trabalho

e sim uma forma de poder fundada em três

princípios opostos aos democráticos: a

hierarquia, oposta à igualdade; o segredo,

oposto ao direito à informação; e a rotina

de procedimentos, oposta à abertura

temporal da ação política.

Além disso, social e economicamente

nossa sociedade está polarizada entre a

carência absoluta das camadas populares e

o privilégio absoluto das camadas

dominantes e dirigentes, bloqueando a

instituição e a consolidação da

democracia. Um privilégio é, por

definição, algo particular que não pode

generalizar-se nem universalizar-se sem

deixar de ser privilégio. Uma carência é

uma falta também particular ou específica

que se exprime numa demanda também

particular ou específica, não conseguindo

generalizar-se nem universalizar-se. Um

direito, ao contrário de carências e

privilégios, não é particular e específico,

mas geral e universal, seja porque é o

mesmo e válido para todos os indivíduos,

grupos e classes sociais, seja porque

embora diferenciado é reconhecido por

todos (como é caso dos chamados direitos

das minorias). Assim, a polarização

econômico-social entre a carência e o

privilégio ergue-se como obstáculo à

instituição de direitos, definidora da

democracia.

A esses obstáculos, podemos acrescentar

ainda aquele decorrente do

neoliberalismo, qual seja o encolhimento

do espaço público e o alargamento do

espaço privado. Economicamente, trata-se

da eliminação de direitos econômicos,

sociais e políticos garantidos pelo poder

público, em proveito dos interesses

privados da classe dominante, isto é, em

proveito do capital; a economia e a

política neoliberais são a decisão de

destinar os fundos públicos aos

investimentos do capital e de cortar os

investimentos públicos destinados aos

direitos sociais, transformando-os em

serviços definidos pela lógica do mercado,

isto é, a privatização dos direitos

transformados em serviços, privatização

que aumenta a cisão social entre a

carência e o privilégio, aumentando todas

as formas de exclusão. Politicamente o

encolhimento do público e o alargamento

do privado colocam em evidência o

bloqueio a um direito democrático

fundamental sem o qual a cidadania,

entendida como participação social,

política e cultural é impossível, qual seja,

o direito à informação.

Marilena Chaui – Professora livre

docente da Universidade de São

Paulo

debate

Vulnerabilidade Social e

o abandono da escola

“O lance é assim, os amigos

oferecem cigarro, fuma um

pouquinho, fuma vai..., na

primeira vez ele te dá de graça, na

segunda, até a terceira, com o

passar do tempo, as coias vão

ficando difícil para conseguir

cigarros para fumar, sem dinheiro,

sem meios, é onde ocorre o roubo,

o assalto (...). (Adorno, 2001,

p.45).”

Os depoimentos obtidos

por Adorno (2001) afirmam que

nas ruas o jovem “se junta com

outros e faz o que não deve”. As

más companhias são os amigos que

chamam para o assalto, oferecem

arma ou tóxico, e assim o jovem

acaba entrando para o mundo do

crime. Fazem por falta de afeto no

meio familiar, pela exploração dos

adultos e pela fala de oportunidade

para entrarem no mercado de

trabalho.

No Brasil estudos mostram

que o viver nas ruas apresenta-se

como uma rota alternativa na

trajetória de desenvolvimento de

alguns adolescentes, exigindo-lhes

estratégias de adaptação e

sobrevivência para vier sob a

vulnerabilidade e o risco. Entende-

se por situação de risco não aquele

jovem que está nas drogas, no

crime, mas aquele que está em

situação de miséria, pobreza, pouca

oportunidade de ir para a escola, de

enfrentar outros cursos e até

mesmo carente de lazer.

É papel dos educadores

tentar compreender como a

violência estrutural provoca o

êxodo de crianças e jovens de seus

lares em busca de sobrevivência,

aliada à delinquência adulta,

“tornando-as parceiras precoces do

crime organizado, concedendo-as à

mendicância, aos roubos, ao uso de

drogas, aos traficantes, ao

extermínio físico e à morte

política”. A mesma sociedade que

deveria lhes oferecer segurança e

proteção as abandona “ao ventre

da mãe rua”.

Cadernos de Pesquisa em Serviço

Social – Vol. Pág.14 – Bibl. 24 H

Vera L. Ignácio Molina /

Denise Cristina Guelfi /

Mariângela Faggionato do

Santos

folhetim

Page 4: Folhetim do Estudante - Ano II - Núm. XVIII

4

do estudante ano II maio/2013

POÉTICAS

RESENHAS

Texto extraído da Revista de

História da Biblioteca Nacional

O texto é curto e direto: “Fica

abolida a escravidão no Brasil.

Revogam-se as disposições em

contrário”. Onze palavras que

mudariam o nosso futuro. Com o

fim do cativeiro, o país entraria em

uma nova fase, próspera e

igualitária. Festa, júbilo, comoção

coletiva nas ruas.

Cento e vinte anos depois, a

promessa sugerida naquele belo

pedaço de papel soa envelhecida

como o próprio. Em que ponto do

caminho as coisas deram errado?

Provavelmente, antes mesmo

daquele, 13 de maio de 1888. Para

voltar no tempo e tentar entender o

modo como a Abolição foi

concebida e se desdobrou,

convidamos você a refletir sobre

esse momento histórico utilizando

as abordagens da Profª. Lilia

Schwarcz.

A santa e a dádiva “Meu caro barão (de Penedo). Está

feita a abolição! Ninguém podia

esperar tão cedo tão grande fato e

também nunca um fato nacional

foi comemorado tanto entre nós.

(...) Isabel ficou como a última

acoitadora de escravos que fez do

trono um quilombo (...) A

monarchia está mais popullar do

que nunca”. Assim Joaquim

Nabuco descreveu os dias de

júbilo que se seguiram ao 13 de

maio de 1888.

A Lei Áurea era mesmo popular, e

conferia nova visibilidade à

princesa Isabel e à monarquia. No

entanto, politicamente, o Império

tinha seus dias contados, ao perder

o apoio dos fazendeiros do Vale

do Paraíba. Apesar do clima de

euforia reinante, parecia ser o

último ato do teatro imperial.

Mas, às vezes, o último é também

o primeiro. Em meio a uma

sociedade de marcas pessoais e de

culto ao personalismo, a abolição

foi entendida e absorvida como

uma “dádiva”. Um belo presente

que merecia, portanto, troco e

devolução. Isabel converte-se em a

“Redentora” e o ato transforma-se

em mérito de “dono único”.

Decadente e falida como sistema,

a monarquia recuperava força no

imaginário ao vincular-se ao ato

mais popular do Império. A

“realeza política” associava-se a

uma “realeza mitificada”, quase

mágica, senhora da justiça e da

segurança.

Nos jornais e nas imagens de

época, Isabel passa a ser retratada

como uma santa a redimir os

escravos, que aparecem sempre

descalços e ajoelhados, como a

rezar e a abençoar a padroeira. Já a

princesa surge de pé e ereta,

contrastada com a posição curvada

e humilde dos ex-escravos, que

parecem manter a sua situação —

se não mais real, ao menos

simbólica. Aos escravos recém-

libertos só restaria a resposta servil

e subserviente, reconhecedora do

tamanho do “presente” recebido.

Estava inaugurada uma maneira

complicada de lidar com a questão

dos direitos civis. Sem a

compreensão de que a abolição era

resultado de um movimento

coletivo, permanecíamos atados ao

complicado jogo das relações

pessoais, suas contraprestações e

deveres: chave do personalismo e

do próprio clientelismo. Nova

versão para uma estrutura antiga,

em que as relações privadas se

impõem sobre as esferas públicas

de atuação.

Como se fôssemos avessos a

qualquer associação com a

violência, apenas reproduzimos

hierarquias que, de tão assentadas,

pareciam legitimadas pela própria

natureza. Péssima lição de

cidadania: a liberdade combinada

com humildade e servidão,

distante das noções de livre-

arbítrio e de responsabilidade

individual.

Lilia Moritz Schwarcz - Professora

titular da Universidade de São Paulo e

autora do livro Espetáculo das raças.

(São Paulo: Companhia das Letras,

2004).

folhetim