Formacao Culinaria Brasileira

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    A Formao da Culinria Brasileira

    Leticia Monteiro Cavalcanti

    Mestre Gilberto Freyre foi o pri-meiro pensador a verdadeiramente va-lorizar nossa gente, nossos jeitos de ser,nossas manifestaes culturais dana,canto, musica, pintura, artesanato, reli-gio, sonhos, supersties. Culinriatambm feita de sabores novos, jun-tando temperos, ingredientes tcnicase experincias da cultura do ndio, donegro e do colonizador portugus.

    Celebrando agora os 70 anos deCasa-Grande & Senzala. Livro genero-so, tolerante, forte e belo (Darcy Ribei-ro), de forca revolucionaria e impactolibertador (Antonio Candido). Seguin-do o prprio roteiro traado por Gil-berto Freyre, referimos a seguir os h-bitos alimentares de cada uma dessastrs culturas.

    A cozinha de nossos ndios eracomposta de carne, peixe, legumes,ervas, milho, muita mandioca e algunsgros. Folhas no. A essas folhas cha-mavam cumbari, comida de brincadei-ra leve sem sabor, sem sustana. Asmais de 900 tribos comim o que a terralhes podia oferecer. Nas regies pertodo mar e dos rios peixes, ostras, me-xilhes, ameijoas, cernambis. Mais parao interior animais das florestas, frutose razes. Nas sertanejas mandioca,farinhas, milho e fub. Eram ento 5milhes de ndios, vivendo em territ-rio razoavelmente determinado. No sedeslocavam procura de alimentos,salvo rarssimas excees como notempo do caju ou da pesca de algunspeixes. Colhiam as frutas, mas no asplantavam. Conheciam o fogo e sabi-am acende-lo, pela frico de varas que o choque pelo slex veio s com osportugueses . Esse fogo era usado paraaquecimento de ocas, como instrumen-

    to de defesa ou no preparo da comida.Assavam carnes e peixes no moqum espetos paralelos, sobre a brasa, pre-cursores dos churrascos de hoje. Comotempero usavam pimenta. s vezespura. s vezes numa mistura com sal aque chamavam ionquet colocada di-retamente na boca, junto s carnes.Raramente cozinham os alimentos nagua. Quando o faziam, era emvasilhames de cermica. No conheci-am fritura tcnica aprendida bemdepois, com os portugueses, que usa-vam para isso leos vegetais (de oliva)e gordura animal. O doce em sua cul-tura vinha do mel de abelha. Consumi-do puro, como simples gulodice. Oumisturado a razes e frutas, no preparode bebidas fermentadas como alue,acui e tiquira. Alem do cauim, claro.

    A cozinha dos escravos no con-seguiu, por aqui, reproduzir inteira-mente os sabores da terra distante. Era,com todas as limitaes da condiosocial a que estavam reduzidos, umaculinria de senzala. A partir de mea-dos do sculo XVI, e por mais dois s-culos, 3 milhes e 700 mil negros che-garam por aqui. Os de Pernambucovindos, todos, de Angola. Aos poucosfoi diminuindo a populao indgena,enquanto aumentava a populao ne-gra. Sobretudo porque o estagio cul-tural desses negros era superior ao doindgena em quase tudo agricultura,minerao, criao de animais. No ar-tesanato usavam madeira, ferro e ce-rmica. Na culinria tambm. Domi-navam tcnicas de coco, grelhados,assados, evaporados e defumados.Conservavam as carnes com sal, pi-menta e ervas aromticas. Para elescaca era oficio, orgulho e divertimen-

  • Anais do Seminrio Gastronomia em Gilberto Freyre 43

    to. Caar conferia dignidade ao congo (caador).Faziam pires e farinhas de sorgo. Da fcula fa-ziam papas. E usavam muito arroz. Preferiam oalimento dissolvido ate porque, enquanto nacasa-grande se esfregava os dentes com tiaramagna, restava aos escravos apenas alho. Eracomum, para esses escravos, chegar aos 40 anossem um dente na boca. Tudo como conta noTrattado nico da Constituio Pestilencial dePernambuco do medico Joam Ferreyra da Rosa,provavelmente a primeira referencia bibliogrfi-ca (1653) da nossa alimentao. Como os ndi-os, tambm esses escravos no conheciamfrituras. E bebidas so fermentadas feitas de pal-meira (dend), sorgo e mel de abelha.Alambiqueno, que isso e coisa de europeu. Apesar de to-das as limitaes, uma serie de novas receitas foinascendo jacuba, rapadura ou comidas de mi-lho (e coco) como canjicas, munguzs, angus epamonhas. Faltando so dizer que comida de es-cravo era sobretudo de alegria. Comer acabavasendo um momento de festa, em meio a tantosofrimento. Misturando, na mesa, essa comida acantoria, dana, batuque crenas e saudades.

    A cozinha portuguesa tentou reproduzir, poraqui, os ambientes de sua terra distante. Trouxe-ram curral,quintal e horta. Com tudo que nossosndios nunca haviam visto. No curral boi, porcodomesticado, carneiro, bode, pombo, pato, gan-so. Mais galinha e, com ela, a grande novidadealimentar que foi o ovo. Co tambm sem duvi-da o animal domestico mais disputado por nossosndios. No quintal cidra, limo, laranja, lima,melo,melancia, maca, figo. Na horta acelga,alface, berinjela, cenoura, coentro, cebolinha, cou-ve. As senhoras portuguesas trouxeram com elassuas cozinhas, tal e qual eram em Portugal. Comchamins francesas foges, fumeiros, pesadostachos de cobre, caldeires, alguidares, potes. Mastiveram aqui que fazer grandes adaptaes. Pri-meiro dividindo a beira do fogo, democratica-mente com negras e ndias. Depois aprendendocom os ndios que, nesse nosso clima tropical, omelhor lugar para colocar a cozinha era mesmofora das casas. Embaixo de puxados. Com o queacabaram reproduzindo quase integralmente,meio sem querer, a cozinha indgena com jirau(espcie de mesa com varas de madeira que ser-via para cortar elimpar as carnes e, tambm, paraguardar alimentos) e trempe (trip de pedra ouferro onde se apoiava os paneloes no fogo). Ain-

    da adotando utenslios que os europeus no co-nheciam panelas de barro, colher-de-pau, pi-les, urupemas, cuias, cabaas, ralador de coco.E, sobretudo, tiveram que se adaptar aos ingredi-entes da terra. Esquecendo maca, pra, pssego,amndoas, pinhes, cravo, canela e gengibre. Eadotando novos produtos como castanha, amen-doim, coco, milho, mandioca. Alem das frutas tro-picais caju, goiaba, ara, banana, mangaba,caj. Tudo que a mo da cozinheira portuguesa.Nunca se deixou alargar pela banha de tartaruganem pelo azeite de dend , como disse GilbertoFreyre. Com caractersticas distintas e muito bemdefinidas uma no serto, outra no agreste, maisuma na mata e outra do mar. Mas todas forman-do, em seu conjunto, o retrato de uma cozinhaque e simples, generosa, autentica, refinada,irredenta, forte e afirmativa como nosso povo.