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[www.dEsEnrEdoS.com.br - ISSN 2175-3903 - ano I - nmero 03 - teresina - piau - novembro dezembro 2009]
FORMA E CONTEDO NA AO DO ENGAJAMENTO LITERRIO
Francigelda Ribeiro1
RESUMO: Este artigo versa sobre literatura engajada, envolvendo a tica de diversos pesquisadores que discutem desde o conceito at a relao entre forma e contedo no processo do engajamento literrio. Marcam o centro desta discusso as idias do francs Benot Denis que se dedica a estudar o engajamento literrio no perodo francs que vai de Pascal a Sartre. Palavras-chave: forma, contedo e engajamento literrio. ABSTRACT: This article focuses on engaged literature which includes the vision of several authors that discuss this concept, along with form and content within this process. The heart of this discussion follow the ideas of the French Benot Denis who dedicated this study of engaged literature during the period of the French literaries Pascal to Sartre. Keywords: form, content and engaged literature.
Analisar um projeto literrio, sem incorrer em concepes bifurcantes
que isolam, de modo decisivo, forma e contedo, tarefa que requer a
conscincia de que um elemento remete, inexoravelmente, ao outro. Se um
deles se torna absoluto, a obra sancionar, incontestavelmente, ou a hipstase
panfletria ou a manipulao reificadora da arte pela arte. As inmeras
pesquisas que, no entanto, tm revelado o carter dialtico da questo seriam
suficientes para desconstruir os discursos que asseguram tal dicotomia, no
fosse o pathos remanescente de uma frao da crtica literria insistente em
validar a contraposio entre purismo esttico e arte de cunho social. O filsofo
Ernest Fischer combate essa bipartio argumentando que o contedo e a
1 Mestra em Estudos Literrios pela Universidade Federal do Piau. Atualmente professora
titular da Secretaria Municipal de Educao e Cultura de Teresina bem como da Secretaria de Educao e Cultura do Estado do Maranho. Autora de dois livros de poesias: Estrada virgem (1997) e Gel em chamas (2008).
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forma (o significado e a forma) so conexos e intimamente ligados em
interao dialtica (1979, p. 151). Alerta, ainda, para a necessidade de que
seja fixada uma concepo mais exata acerca do termo contedo, desse modo,
suscita o questionamento acerca da sua natureza: afinal, o contedo remete ao
tema, ao assunto, ao significado ou mensagem da obra de arte? Fischer
afirma que lcito falar somente em significado da obra de arte como algo que
no se revela apenas nos detalhes, mas no seu conjunto. O tema, por seu
turno, somente se eleva ao status de contedo quando considerada a postura
do artista diante dele; visto que, obviamente, dois artistas podem tratar de um
mesmo tema de maneiras diversas.
O crtico francs Benot Denis, considerando o contedo das obras
literrias no perodo francs que vai de Pascal a Sartre e a postura do
escritor, prope uma discusso acerca do fenmeno do engajamento literrio.
Para Denis (2002, p. 25), a literatura engajada no a que abdica da atividade
sobre o trabalho da forma, sem a qual ele [o autor] faria literatura de
propaganda; antes uma questo de [...] modificar-lhe o sentido, deixando de
fazer disso um fim em si para tentar faz-la servir [s causas sociais].
Partindo do contexto francs, focalizando questes polticas e sociais,
ele opta por conceber como literatura engajada na esteira das proposies de
Jean-Paul Sartre somente as produes circunscritas ao sculo XX, por ser o
perodo em que o engajamento se define de forma mais profcua no campo
literrio. De acordo com Denis, inegvel que sempre existiu uma literatura de
combate preocupada em tomar parte nas controvrsias polticas (2002, p. 10),
porm o engajamento literrio, na forma precisa do termo, no se torna uma
possibilidade literria transhistrica, que se encontra sob outros nomes e com
outras formas ao longo de toda a histria da literatura (2002, p. 18).
Nessa perspectiva, Denis destaca que as idias do filsofo francs
Roland Barthes (1915-1980), quanto ao engajamento literrio (que divergem
das de Sartre2), propostas, no artigo Kafkas Answer, de 1960, apiam-se na
2 Segundo Denis, Barthes dissocia literatura e poltica, promulgando a necessidade de uma crtica
engajada que, assuma, deliberadamente e no lugar da literatura, a necessidade de tomar posio no terreno ideolgico (2002, p.298). Barthes conserva algumas contribuies da viso satriana, mas no que tange primazia da idia sobre a forma, defende a autonomia da forma e sua faculdade de ter significado
independente. , portanto, a exigncia da lucidez e de domnio reflexivo, aos quais Sartre submetia o escritor engajado, que se encontra contestada pela premncia que Barthes atribui forma: o escritor no
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acepo do engajamento entendido como um fenmeno que se estende por
toda a histria literria. Para Barthes,
Um momento passou, o da literatura engajada. O fim do romance sartriano, a pobreza imperturbvel da fico socialista, as falhas do teatro poltico, tudo que, como uma onda que est quase morrendo, deixa exposto um objeto singular e singularmente resistente: a literatura. Alm do mais, uma onda oposta lava-a, a onda de uma separao declarada: o renascimento da histria de amor, a hostilidade s "idias", o culto boa composio literria, a recusa preocupao com os sentidos do mundo: toda uma nova tica da arte est sendo proposta, e ela consiste em um novo movimento entre o romantismo e o inalcanvel, entre os (mnimos) riscos da poesia e a proteo (eficaz) da inteligncia. Estar a nossa literatura para sempre condenada a essa oscilao exaustiva entre o realismo poltico e a arte pela arte, entre uma tica de engajamento e um purismo esttico, entre o engajamento e ausncia de arte? Ela deve ser sempre pobre (se ela for simplesmente ela mesma) ou envergonhada (se ela for qualquer coisa, a no ser ela mesma). Ela no pode ter um lugar prprio neste mundo? (1981, p. 133, traduo nossa).3
Comentando Barthes, Denis alerta que seu acento interrogativo, ao
passo que aponta para o carter transhistrico do seu posicionamento, permite
entrever a evoluo do fenmeno literrio reduzido ao movimento de oscilao
mecnica entre realismo poltico e arte pela arte fato que produz uma
viso muito simplista da literatura e de sua evoluo (2002, p. 19). Contra essa
acepo de Barthes, argumenta Denis que somente partindo da tica sartriana
acerca do engajamento literrio
Que se pode tentar retornar no tempo e examinar de que maneira escritores ou homens de letras quiseram desenvolver uma concepo e uma prtica engajada de escritura, num
totalmente senhor do seu propsito, porque ele no pode medir os efeitos induzidos pela escritura que ele
assume ou inventa (DENIS, 2002, p. 295). 3 A moment has passed, the moment of committed literature. The end of the Sartrean novel, the
imperturbable indigence of socialist fiction, the defects of political theater-all that, like a receding wave,
leaves exposed a singular and singularly resistant object: literature. Already, moreover, an opposing wave
washes over it, the wave of an asserted detachment: revival of the love story, hostility to ideas, cult of fine writing, refusal to be concerned with the world's significations: a whole new ethic of art is being
proposed, consisting of a convenient swivel between romanticism and off-handedness, between the
(minimal) risks of poetry and the (effective) protection of intelligence. Is our literature forever doomed to
this exhausting oscillation between political realism and art-for-art's-sake, between an ethic of
commitment and an esthetic purism, between compromise and asepsis? Must it always be poor (if it is
merely itself) or embarrassed (if it is anything but itself)? Can it not have a proper place in this world? (BARTHES, 1981, p. 133).
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tempo em que a noo de engajamento no existia ainda como tal (2002, p. 19).
Para Denis, o engajamento literrio encontra-se associado figura de
Jean-Paul Sartre, enquanto ficcionista e terico, estando ligada tambm
emergncia de uma nova ordem social anunciada a partir da Revoluo Russa.
O refluxo do engajamento literrio, conforme o concebeu Denis, foi preconizado
pelos escritos de Barthes, em meados dos anos de 1950, e acentua-se com o
esmaecimento da utopia revolucionria. Portanto, para ele, caracterizar um
escritor que antecede ao sculo XX como engajado significa conferir-lhe uma
experincia que ele no possua, haja vista as constantes mutaes do
contexto em que se encontra cada escritor, de forma que se deve considerar a
configurao de um perfil singular a cada perodo da histria literria.
O prprio Sartre, no ensaio Que a literatura?, de 1948, concebe o
engajamento literrio enquanto fenmeno essencialmente ligado conscincia
lcida do escritor em reconhecer-se como pertencente ao mundo. Tal
conscincia leva aquele a uma reao fundamentada na intencionalidade de
modificar este. Sartre esclarece que
Um escritor engajado quando trata de tomar a mais lcida e integral conscincia de ter embarcado, isto , quando faz o engajamento passar, para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor mediador por excelncia, e o seu engajamento a mediao. Mas, se verdade que se deve pedir contas sua obra a partir da sua condio, preciso lembrar ainda que a sua condio no apenas a de um homem em geral, mas tambm, precisamente, a de um escritor (1993, p. 61-62).
Portanto, para ele, o engajamento se firma no desvendamento da
realidade, processo que possibilita despertar a conscincia crtica do leitor.
Abdicando de todo halo de imparcialidade em torno do qual orbitam aqueles
essencialmente formalistas, Sartre argumenta que palavra implica ao e que o
desvelamento do mundo por meio da literatura tenciona mudana social.
Segundo ele, o escritor desvenda
O mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. [...] Do mesmo modo, a funo do escritor com que ningum possa ignorar o mundo e
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considerar-se inocente dele (1993, p. 21).
Nesse sentido, o engajamento literrio prima por uma libertao
concreta e, embora uma obra transcenda o tempo da sua escrita, para seus
contemporneos que o autor se volta. Denis enfatiza que, para Sartre, a
literatura engajada, ainda que circunscrita a um domnio localizado e
temporrio, renuncia a ela mesma como um fim especfico, rumo a uma ao
universal. Essa bastardia, que sublinha fortemente a instabilidade da noo de
literatura engajada, constitui, talvez, a grandeza desse empreendimento, na
qual o escritor arrisca-se inteiro (DENIS, 2002, p. 74).
Com efeito, o engajamento literrio reporta-se conscincia do modo
como a obra urge, porque baseada na causa da participao social. Aspecto
que assegura historicidade escrita literria no s pelo contedo mas
tambm pelas escolhas formais. E o escritor, como elucida Sartre (1993, p. 22),
no se constitui por ter decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido
diz-las de determinado modo. Em consonncia com as proposies
sartrianas, Denis esclarece que a forma tambm portadora de sentido,
participando do engajamento literrio. O que ele recusa sumariamente a
autonomia da forma: esta no pode significar independentemente do contedo
e deve [...] permanecer a servio deste (DENIS, 2002, p. 73).
Georg Lukcs, ao estudar a esttica de Goethe, destaca neste a
primazia do contedo na arte, o que se justifica por uma viso materialista do
sujeito, ou seja, para Goethe, na vida, na cincia e na arte o homem inteiro se
engaja do mesmo modo, com todas as suas capacidades espirituais, e o
sujeito necessrio para a recepo e a reproduo da realidade objetiva
(1968a, p. 152). De acordo com Lukcs, no obstante a prioridade do
contedo, no se pode menosprezar a forma, em que pese a sua defesa de
que se deve primar por um desenvolvimento fecundo e orgnico da forma e do
contedo (1968b, p. 261).
Considerando ou no a literatura engajada como uma prxis
historicamente situada, convm enfatizar que o engajamento literrio no se
reporta mera demonstrao de teses sociolgicas, tampouco pode soerguer-
se como proscnio de exibies formais, excepcionalmente. Configuraes de
forma e de contedo, em equilbrio, devem conduzir a obra integrao com a
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matria histrico-social, constituindo esteios que lhe outorguem o dilogo com
os diversos contextos, a fim de que ela no seja subsumida s coibies
anacrnicas.
REFERNCIAS
BARTHES, Roland. Critical Essays. Northwestern University Press, 1981.
DENIS, Benot. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. So Paulo: EDUSC, 2002.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
LUKCS, Georg. Introduo a uma esttica marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968a.
______. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968b.
SARTRE, Jean-Paul. Que a literatura? So Paulo: tica, 1993.