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Rev. TST, Brasília, vol. 72, n” 3, set/dez 2006 87 DANO MORAL DECORRENTE DO TRABALHO EM CONDI˙ˆO AN`LOGA À DE ESCRAVO: ´MBITO INDIVIDUAL E COLETIVO Francisco Milton Araœjo Jœnior * Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente, sereis meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertarÆ.(Joªo Capítulo 8, v. 31/32) SUM`RIO: 1 O surgimento do trabalho escravo e a concepçªo de dignidade da pessoa humana; 2 Ordenamento jurídico vigente e o trabalho em condiçªo anÆloga à de escravo; 3 Trabalho em condiçªo à de escravo na sociedade brasileira atual; 4 Dano moral decorrente do trabalho em condiçªo anÆloga à de escravo; ReferŒncias bibliogrÆficas. 1 O SURGIMENTO DO TRABALHO ESCRAVO E A CONCEP˙ˆO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Analisando o aspecto histórico, verifica-se que o trabalho surgiu como necessidade do homem para garantir a sua subsistŒncia, sendo a mªo-de-obra escrava o sustentÆculo do meio de produçªo utilizado na Idade Antiga. A mªo-de-obra escrava surgiu como recompensa das guerras entre os povos. Os povos vencedores das guerras, inicialmente, matavam os povos vencidos, porØm, com o transcorrer das lutas, começou-se a desenvolver a concepçªo de que seria mais viÆvel economicamente aprisionar os rivais e escravizar, utilizando-os como mªo-de-obra, como moeda de troca e como mercadoria. A partir dessa concepçªo nascia o modo de produçªo escravagista que foi de fundamental importância para o desenvolvimento dos impØrios grego, romano e egípcio. Nessa Øpoca, justificava-se a escravidªo como implementaçªo justa e necessÆria para o desenvolvimento da sociedade e do conhecimento, inclusive Segadas Viana comenta que Aristóteles, um dos pensadores mais expressivos da GrØcia Antiga, afirmava que para se conseguir cultura, era necessÆrio ser rico e * Juiz Federal do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Parauapebas. Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do ParÆ.

Francisco Milton Araújo Júnior - Dano Moral Decorrente Do Trabalho Em Condição Análoga à de Escravo-âmbito Individual e Coletivo

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    DANO MORAL DECORRENTE DO TRABALHOEM CONDIO AN`LOGA DE ESCRAVO:

    MBITO INDIVIDUAL E COLETIVO

    Francisco Milton Arajo Jnior*

    Se vs permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente, sereismeus discpulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertar.(Joo Captulo 8, v. 31/32)

    SUM`RIO: 1 O surgimento do trabalho escravo e a concepo de dignidade dapessoa humana; 2 Ordenamento jurdico vigente e o trabalho em condio anloga de escravo; 3 Trabalho em condio de escravo na sociedade brasileira atual; 4Dano moral decorrente do trabalho em condio anloga de escravo; Refernciasbibliogrficas.

    1 O SURGIMENTO DO TRABALHO ESCRAVO E A CONCEPO DEDIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    Analisando o aspecto histrico, verifica-se que o trabalho surgiu comonecessidade do homem para garantir a sua subsistncia, sendo a mo-de-obra escravao sustentculo do meio de produo utilizado na Idade Antiga.

    A mo-de-obra escrava surgiu como recompensa das guerras entre os povos.

    Os povos vencedores das guerras, inicialmente, matavam os povos vencidos,porm, com o transcorrer das lutas, comeou-se a desenvolver a concepo de queseria mais vivel economicamente aprisionar os rivais e escravizar, utilizando-oscomo mo-de-obra, como moeda de troca e como mercadoria.

    A partir dessa concepo nascia o modo de produo escravagista que foi defundamental importncia para o desenvolvimento dos imprios grego, romano eegpcio.

    Nessa poca, justificava-se a escravido como implementao justa enecessria para o desenvolvimento da sociedade e do conhecimento, inclusiveSegadas Viana comenta que Aristteles, um dos pensadores mais expressivos daGrcia Antiga, afirmava que para se conseguir cultura, era necessrio ser rico e

    * Juiz Federal do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Parauapebas. Mestre em Direito doTrabalho pela Universidade Federal do Par.

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    ocioso e que isso no seria possvel sem a escravido. curioso anotar que o grandeestagirita, com um dom proftico, soube prever que a escravido desapareceriaquando a lanadeira do tear se movimentar sozinha1.

    Domenico de Masi descreve muito bem a realidade da Antigidade clssica:

    A maioria dos gregos livres desprezava o trabalho dependente equalquer atividade que comportasse fadiga fsica ou, de algum modo, aexecuo de uma tarefa. O prprio termo executivo, de que hoje se ornammuitos funcionrios, teria feito arrepiar-se o mais humilde ateniense dapoca de Pricles. Herdoto assinala o desprezo pelo trabalho que reinavaem muitas cidades gregas orientais, exceo de Corinto e poucas outras.

    Aristteles e Plato so drsticos a esse respeito: qualquer produode objetos materiais ainda que obras de arte como as esttuas de Prexteles representava para eles uma atividade de segunda ordem comparada produo de idias. Plato chegaria a dizer: No vais querer dar tua filhacomo esposa a um mecnico ou engenheiro!

    [...]

    Resumidamente, na Grcia dos sculos de ouro apenas uma exguaminoria composta de cidados com plenos direitos, que se dedicavam poltica, filosofia, ginstica e poesia, vivendo materialmente nas costasda maioria escravos, mulheres e metecos a quem cabiam todas asatividades de ordem material e de servio.2

    Nessa perspectiva de justificao do trabalho escravo, a civilizao gregafoi a primeira a realizar anlises sobre os atributos particulares do homem na escalados seres.

    Os gregos, na Antigidade, acreditavam que os homens se diferenciavamdos animais pelo uso da razo ou do logos, ou seja, pela capacidade de elaborar opensamento lgico e transformar o mundo a partir da transformao da natureza eda elaborao de produtos manufaturados. Sendo, portanto, esse o fundamento dadignidade.

    Registra-se que o uso da razo no era prprio de todo ser humano, masapenas e to-somente do homem livre.

    Desse modo, os gregos firmaram entendimento de que a sociedade formadapor dois plos: o primeiro, pelos homens livres que deliberavam acerca do bemcomum (cidados gregos) e o segundo, pelas pessoas que eram apenas instrumentosde trabalho para realizao do bem comum (escravos e mulheres).

    Eduardo Ramalho Rabenhorst comenta a justificao da civilizao gregapela utilizao da mo-de-obra escrava a partir do pensamento de Aristteles:

    1 SEGADAS, Viana et al. Instituies de direito do trabalho. 17. ed. So Paulo: LTr, v. I, 1997. p. 30.

    2 DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e cio na sociedade ps-industrial. 6. ed. Rio deJaneiro: Jos Olympio, 2001. p. 75-80.

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    Aristteles no v, pois, qualquer contradio nessa repartio depapis e dignidade. Com efeito, diz-nos Solange Vergnires, o que define ohomem, para Aristteles no a liberdade, mas o logos. Isso no significa,obviamente, que a concepo aristotlica da diviso de papis sociais estejaao abrigo de certas ambigidades. Muito pelo contrrio. Identificar a naturezasingular das mulheres no oferece grandes dificuldades ao filsofo grego. Adiferena entre os sexos, marcada no corpo, simplifica em muito a tarefa. Apassagem dessa distino biolgica a uma distino quanto dignidadepoltica que parece ser falaciosa (aos nossos olhos, claro): ainda quesejam livres, as mulheres, acredita Aristteles, no podem participar davida pblica, por serem conduzidas, em suas deliberaes, no pela razo,mas pelas emoes.

    A situao dos escravos mais complicada e impe certas dificuldadespara o prprio estatuto acordado por Aristteles aos estrangeiros (metecos).No h nada de corporal que possa distinguir os escravos dos cidados livres(nem mesmo nos seus trajes ou penteados, como acontecia em Roma). Adiferena s pode se dar em um plano interior. Assim, para Aristteles, anatureza servil de um homem origina-se de uma deficincia quanto manifestao do logos. Como diz Vergnires, o escravo participa do logos,mas s participa de maneira indireta: percebe-o em outro, sem possu-lo eleprprio. O escravo se manifesta, pois, primeiro por deficincia intelectual.3

    Eduardo Ramalho Rabenhorst afirma tambm que as sociedades antigas,de modo geral, so baseadas na hierarquia, sendo que a razo dessa hierarquia quase sempre, transcendente. A sociedade islmica, por exemplo, fundamenta asua estratificao social na vontade de Al: Ns criamos alguns acima dos outros,para que aqueles faam destes servos, diz o Coro. O mesmo acontece com o sistemade castas na ndia, na qual os brmanes, por razo religiosa, ocupam o topo dahierarquia4 .

    Coube ao pensamento cristo, tendo como base o monotesmo judaico e afraternidade, provocar a mudana de mentalidade em direo igualdade dos sereshumanos.

    A partir da Bblia, constata-se que o homem foi criado por um Deus suaimagem e semelhana, como coroa da criao, para ter domnio sobre os peixesdo mar, sobre as aves dos cus, sobre os animais domsticos, sobre toda a Terra esobre todos os rpteis que rastejam sobre a Terra (Gnesis Captulo 1, versculo26).

    Assim, conforme o pensamento cristo, os homens, como criaturas de Deus,foram feitos sua imagem e semelhana, compostos de um corpo e de uma alma,

    3 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrtica. Braslia: BrasliaJurdica, 2001. p. 18-19.

    4 Op. cit., p. 21.

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    sendo, portanto, livres e iguais, de modo que as eventuais desigualdades entre oshomens so apenas aparentes.

    Com o cristianismo, passou-se a considerar que todo ser humano possui amesma dignidade frente aos demais em razo da idntica estrutura espiritual (todohomem possui corpo e esprito), superando-se a idia de que apenas algunsindivduos (cidados livres) poderiam ter uma vida digna.

    Pode-se constatar, tambm, que o cristianismo no limitou a dignidadehumana como valor moral ou apenas no plano moral, uma vez que ressalta tambma materializao da dignidade humana (Todos os que criam juntos e tinham tudoem comum. Vendiam suas propriedades e fazendas e repartiam com todos, segundocada um tinha necessidade. E, perseverando unnimes todos os dias no templo epartindo o po em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de corao Atos,Captulo 2, versculos 44/46).

    Cabe lembrar que a religio crist, apesar de ter desempenhado um papelfundamental na construo da dignidade humana, legitimou, por meio da IgrejaCatlica, todo o sistema de estratificao social que vigorou durante o perodofeudal (Castas hierarquizadas: os membros do clero rezavam, os nobres lutavam, eos servos trabalhavam).

    A partir da Revoluo Francesa (1789), a estratificao social do sistemafeudal comeou a perder espao na comunidade europia, e a Igreja Catlica, comas transformaes socioeconmicas proporcionadas com o nascimento e odesenvolvimento do modo de produo capitalista, passou a adotar um novoposicionamento sobre a dignidade humana, materializando-se com a Encclica doPapa Leo XXIII, chamada de Rerum Novarum, em 1891.

    A Encclica Rerum Novarum, conforme citao de Segadas Viana, questionao valor social dos meios de produo, valoriza a dignidade humana, critica aconcentrao de renda e atribui ao Estado o dever de zelar pela harmonia social, ouseja, nas prprias palavras do Papa Leo XXIII, na proteo dos direitosparticulares, o Estado deve preocupar-se, de uma maneira especial, dos fracos edos indigentes. A classe rica faz das suas riquezas uma espcie de baluarte, e temmenos necessidade da tutela pblica. A classe indigente, ao contrrio, sem riquezasque a ponham a coberto das injustias, conta principalmente com a proteo doEstado5.

    O direito natural, que teve suas primeiras formulaes na Grcia, tambmrealiza estudos sobre a dignidade humana, porm, esses estudos, num primeiromomento, encontram-se prejudicados, uma vez que a prpria escravido erajustificada pelo direito natural.

    Foi com as teorias jusnaturalistas modernas que o direito natural passou acompreender a dignidade humana a partir da igualdade entre os homens.

    5 Apud SEGADAS, Viana et al. Instituies de direito do trabalho. 17. ed. So Paulo: LTr, v. I, 1997.p. 99-100.

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    O filosofo ingls John Lock, partindo do princpio que existe um elo entre odireito natural e a igualdade, entende que a dignidade humana alicera-se na razohumana, sendo o homem digno no porque foi criado a imagem e semelhana deDeus, mas pelo fato de Este ter-lhe conferido a razo e autonomia6.

    O intelectual alemo Immanuel Kant, dentro da tica da concepojusnaturalista, entende que a dignidade humana se alicera na posio em que ohomem ocupa na escala dos seres. Diferentemente das outras criaturas vivas, ns,humanos, podemos ultrapassar o estgio da simples animalidade e identificar, tantoem ns mesmos como nos nossos semelhantes, uma mesma essncia livre e racional,isto , uma idntica humanidade. E precisamente o reconhecimento dessahumanidade aquilo que Kant chama de respeito, ou seja, uma mxima de restrioque nos obriga a no rebaixar os nossos semelhantes ao estado de mero instrumentopara a consecuo de uma finalidade qualquer7.

    Cabe destacar, ainda, que Kant entende que a liberdade concebida comindependncia do arbtrio de outrem e na medida em que pode compaginar-se coma liberdade de todos, de acordo com uma lei universal, a formula do imperativocategrico e o princpio da moralidade. o direito nico, primitivo e original,prprio de cada homem, s pelo fato de s-lo8.

    Confrontando o pensamento cristo e o pensamento de Kant sobre aconcepo de dignidade, o filsofo francs Jean-Marc Ferry observa que h umadiferena notvel entre a viso crist da dignidade humana que vimos anteriormentee a concepo desenvolvida por Kant. Ambas atribuem uma dignidade intrnsecaao homem em funo da posio que este ocupa no mundo. Contudo, na perspectivacrist, tal dignidade encontra sua justificao em uma certa representao danatureza divina do homem, isto , no fato de este representar uma unidadesubstancial entre matria e esprito, criada conforme a imagem e semelhana deDeus. J para Kant, a dignidade se alicera na prpria autonomia do sujeito, isto ,na capacidade humana de se submeter s leis oriundas de sua prpria potncialegisladora e de formular um projeto de vida de forma consciente e deliberada. essa autonomia, escreve Ferry, o motivo do respeito e o conceito fundador dahumanidade9.

    A partir da anlise da dignidade da perspectiva do cristianismo e naperspectiva kantiana, destaca-se que dignidade da pessoa humana muito bemconceituada por Ingo Wolfgang Sarlet, que estabelece como: a qualidade intrnsecae distintiva de cada ser humano que faz merecedor do mesmo respeito e consideraopor parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo dedireitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer

    6 Apud RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., p. 32.

    7 Apud RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., p. 34.

    8 OLEA, Manoel Alonso. Da escravido ao contrato de trabalho. Curitiba: Juru, 1990. p. 99-100.

    9 Apud RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., p. 34.

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    ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condiesexistenciais mnimas para a vida saudvel, alm de promover sua participaoativa e co-responsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunhocom os demais seres humanos10.

    O conceito estabelecido por Ingo Wolfgang Sarlet bastante didtico eestabelece os principais aspectos concernentes dignidade humana, que podemser enumerados da seguinte forma: primeiro, estabelece que a dignidade inerentee prpria da espcie humana; segundo, retornando aos estudos de Kant, reconheceque a dignidade decorre do respeito, que a essncia da identidade humana; terceiro,a dignidade fruto do Estado de Direito estabelecido pela comunidade; quarto,estabelece que a dignidade deve ser materializada a partir da garantia das condiesmnimas de vida saudvel ao homem, sendo essa materializao da dignidadehumana de responsabilidade do Estado e da sociedade.

    De uma maneira simples, entendo que a dignidade humana um direitopersonalssimo inerente natureza humana, podendo ser definida pela frase deJesus Cristo: tenham vida e a tenham em abundncia (Evangelho de Joo Captulo 19, versculo 10).

    A dignidade humana, portanto, vincula-se qualidade de vida, ou seja, vida abundante de amor, sade, educao, lazer, alimento, liberdade, moradia digna,remunerao justa, dentre outros benefcios.

    2 ORDENAMENTO JURDICO VIGENTE E O TRABALHO EM CONDIOAN`LOGA DE ESCRAVO

    A utilizao do trabalho forado ou em condio anloga de escravo, vedadano Brasil em 13 de maio de 1888, por meio da edio de Lei n 3.353 (Lei `urea), universalmente condenvel, conforme demonstram as normas internacionais.

    Analisando o ordenamento internacional, verifica-se que a DeclaraoUniversal dos Direitos do Homem11, nos arts. I, III, IV, V, e XXIII, assegura comodireitos mnimos aos trabalhadores:

    Artigo I. Todas as pessoas nascem livres em dignidade e direitos.So dotadas de razo e conscincia e devem agir em relao umas s outrascom esprito de fraternidade.

    []

    Artigo III. Toda pessoa tem direito vida, liberdade e seguranapessoal.

    10 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na ConstituioFederal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 60.

    11 Adotada e proclamada pela Resoluo n 217 A (III) da Assemblia Geral das Naes Unidas, em 10de dezembro de 1948. Disponvel em: . Acesso em: 21 jun. 2006.

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    Artigo IV. Ningum ser mantido em escravido ou servido, aescravido e o trfico de escravos sero proibidos em todas as suas formas.

    Artigo V. Ningum ser submetido tortura, nem a tratamento oucastigo cruel, desumano ou degradante.

    []Artigo XXIII. Todo homem tem direito ao trabalho, livre escolha

    de emprego, a condies justas e favorveis de trabalho e proteo contrao desemprego.Analisando o contedo dos arts. I, III, IV, V e XXIII, da Declarao dos

    Direitos do Homem, verifica-se que, embora no englobe todas as garantias mnimasindisponveis para manuteno do equilbrio das relaes laborais, especialmentepor reconhecer apenas de forma indireta como direitos indisponveis do trabalhadora proteo da sade, higiene e segurana no meio ambiente laboral, fixa os princpiosbsicos para o alcance da harmonia na relao entre o capital e o trabalho.

    Restringindo ao contexto da proteo do obreiro contra a utilizao dotrabalho forado, constata-se que a prtica do trabalho em condio anloga deescravo viola de forma incisiva a Declarao dos Direitos do Homem, especialmenteno que se refere dignidade do homem (art. I), liberdade e segurana pessoal(arts. III, IV e V) e s condies justas e favorveis de trabalho (art. XXIII),configurando-se, portanto, em ato que deve ser definitivamente banido das relaessociais, haja vista que afronta flagrantemente os direitos intrnsecos do ser humano.

    Cabe destacar que a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), atravsdas Convenes n 29 (1930) e n 105 (1957)12, obteve o compromisso dos pases-membros, mediante a ratificao dos respectivos instrumentos normativos, de abolira utilizao do trabalho forado.

    Guilherme Augusto Caputo Bastos comenta que a edio das Convenesn 29 e 105 da OIT foram pactuadas em momentos histricos distintos, ou seja, aprimeira foi firmada num momento em que o trabalho forado era uma prticaamplamente aplicada nas grandes potncias coloniais13 e a segunda foi firmadanuma poca em que foi caracterizada por uma imposio do trabalho forado porrazes ideolgicas, polticas e de outras ndoles, em particular durante a SegundaGuerra Mundial14.

    Na rbita jurdico-constitucional brasileira, constata-se que a Carta Magnade 1988 veda peremptoriamente a utilizao do trabalho forado ou em condioanloga de escravo, especialmente quando se verifica que o Texto Constitucional

    12 A Conveno n 29 foi ratificada pelo Brasil em 25 de abril de 1957 e promulgada pelo Decreto n41.721, de 25 de junho de 1957, e a Conveno n 105 foi ratificada pelo Brasil em 18 de junho de1965 e promulgada pelo Decreto n 58.822, de 14 de julho de 1966.

    13 BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho escravo: uma chaga humana. Revista LTr, So Pau-lo: LTr, a. 70, p. 368, mar. 2006.

    14 BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Op. cit., p. 368.

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    estabelece como princpios fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1,inciso III) e os valores sociais do trabalho (art. 1, inciso IV), bem como reconhece,dentre os seus valores supremos, a garantia da segurana e do bem-estar de todosos membros da sociedade (Prembulo) e, ainda, assegura direitos e garantiasfundamentais o direito vida, liberdade e igualdade (art. 5, caput).

    Na esfera infraconstitucional, verifica-se que a Lei n 10.803, de 11 dedezembro de 2003, ao alterar o art. 149 do Cdigo Penal (Decreto-Lei n 2.848, de7 de dezembro de 1940), estabeleceu o tipo penal reduo a condio anloga deescravo, que passou a possuir a seguinte redao:

    Art. 149. Reduzir algum a condio anloga de escravo, quersubmetendo-o a trabalhos forados ou jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condies degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio,sua locomoo em razo de dvida contratada com o empregador ou preposto.

    Pena recluso, de dois a oito anos, e multa, alm da penacorrespondente violncia.

    1 Nas mesmas penas incorre quem:I cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do

    trabalhador, com o fim de ret-lo no local de trabalho;II mantm vigilncia ostensiva no local de trabalho ou se apodera

    de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de ret-lo nolocal de trabalho.

    2 A pena aumentada de metade, se o crime cometido:I contra criana ou adolescente;II por motivo de preconceito de raa, cor, etnia, religio ou origem.

    Com base na redao do art. 149 do Cdigo Penal, constata-se que a normalegal estabeleceu o trabalho em condio anloga de escravo como gnero, podendoocorrer em duas espcies: trabalhos forados ou condies degradantes de trabalho.

    A norma penal, ao consagrar que o trabalho em condio anloga deescravo caracteriza-se pela ocorrncia do trabalho forado ou pelas condiesdegradantes de trabalho, demonstra que a definio jurdica moderna de trabalhoescravo no se limita apenas restrio da liberdade de locomoo e da liberdadede utilizao das potencialidades do obreiro (fsicas e mentais), podendo ocorrertambm quando o obreiro submetido a condies laborais degradantes quepossibilitem a afetao da dignidade do ser humano.

    Nesse aspecto, Jos Claudio Monteiro de Brito Filho comenta que no somente a falta de liberdade de ir e vir, o trabalho forado, ento, que agoracaracteriza o trabalho em condies anlogas de escravo, mas tambm o trabalhosem as mnimas condies de dignidade15, passando a definir o trabalho em

    15 BRITO FILHO, Jos Claudio Monteiro. Trabalho decente. Anlise jurdica da explorao do traba-lho trabalho forado e outras formas de trabalho indigno. So Paulo: LTr, 2004. p. 72.

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    condies anlogas de escravo como o exerccio do trabalho humano em que hrestrio, em qualquer forma, liberdade do trabalhador, e/ou quando no sorespeitados os direitos mnimos para o resguardado da dignidade do trabalhador16.

    Analisando as espcies de trabalho em condio anloga de escravo,verifica-se que a caracterizao do trabalho forado bastante simples, haja vistaque a sua essncia consiste na restrio da liberdade de locomoo e da liberdadede utilizao das potencialidades do obreiro (fsicas e mentais), porm, quanto segunda espcie, observa-se que o termo condies degradantes bastantegenrico, o que dificulta sua definio.

    Conforme especificou Jos Claudio de Brito Filho ao conceituar trabalhoem condio anloga de escravo, verifica-se que as condies degradantesconsistem na violao da dignidade humana, ou seja, configura-se na violao dascondies mnimas de vida saudvel do homem.

    Nesse sentido, verifica-se que as condies degradantes de trabalho, naprtica, ocorrem quando o empregador no cumpre com as normas de sade,segurana e higiene do trabalho, submetendo o trabalhador ao exerccio de suasatividades sem a prvia realizao de exames mdicos admissionais, sem a utilizaode equipamentos de proteo individual, sem o fornecimento de abrigos paraproteo das intempries, utilizao de alojamentos sem as mnimas condiessanitrias, fornecimento de alimentao fora dos padres mnimos de qualidade,dentre outros aspectos.

    Assim, com base nos parmetros legais fixados no art. 149 do Cdigo Penal,pode-se definir trabalho em condio anloga de escravo como o desempenho deatividade profissional mediante restrio da liberdade de locomoo e da liberdadede utilizao das potencialidades do obreiro (fsicas e mentais), e/ou mediante asubmisso do obreiro a condies inadequadas de higiene, sade e segurana queafetem a dignidade do trabalhador.

    3 TRABALHO EM CONDIO AN`LOGA DE ESCRAVO NASOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL

    As circunstncias que envolvem o trabalho em condies anlogas deescravo no Brasil demonstram que existe uma rede organizada de explorao detrabalhadores composta, basicamente, pelos aliciadores de mo-de-obra (gatos),pelos que disponibilizam os locais para permanncia temporria dos trabalhadoresno seu local de captao at o seu deslocamento ao local de trabalho (penses),pelos que utilizam a mo-de-obra escrava (donos ou grileiros da terra) e mantmlocais onde so comercializados bens de consumo com valores superfaturados(cantinas), proporcionando a reteno ilcita do empregado no local de trabalho

    16 BRITO FILHO, Jos Claudio Monteiro. Op. cit., p. 86.

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    em decorrncia de dvidas ilegais e interminveis em decorrncia das supostasdespesas com os gatos, penses e cantinas.

    Nesse crculo vicioso, o obreiro tenta pagar as dvidas contradas com asua contratao por meio do trabalho em condies subumanas, porm, com opassar do tempo, no obtm xito em razo do crescente aumento de seus dbitos,haja vista que no apenas tem que arcar com as despesas ilegais decorrentes da suacontratao, como tambm obrigado a arcar com as despesas do consumo deprodutos para sua subsistncia em valores exorbitantes, cobrados na cantina, ecom os custos que envolvem a sua atividade profissional, inclusive com osinstrumentos de trabalho.

    Cabe destacar que a atuao dessas organizaes criminosas infelizmente favorecida pela ineficincia do Estado, que, alicerado na desigualdade social e mdistribuio de renda do Pas, no combate o principal problema social, qual seja,a misria da populao.

    De qualquer forma, ressalta-se que o Ministrio do Trabalho e do Emprego,juntamente com o Ministrio Pblico e a Polcia Federal, com poucos recursosoramentrios destinados ao combate do trabalho em condies anlogas de escravo,vem promovendo a libertao e a regularizao desses trabalhadores por meio daao do Grupo de Fiscalizao Mvel, conforme demonstra o quadro a seguir:

    Quadro Resumo dos Resultados da Fiscalizao de Combate ao Trabalho Escravo17

    Ano Nmero de Nmero Trabalhadores Trabalhadores Pagamento

    Operaes de Fazendas Registrados Libertados de Indenizao

    Fiscalizadas

    2006* 23 44 1.289 922 1.906.340,58

    2005 84 188 4.218 4.310 7.584.420,66

    2004 72 275 3.643 2.887 4.905.613,13

    2003 66 187 5.985 5.090 6.085.918,49

    2002 30 85 2.805 2.285 2.084.406,41

    2001 26 149 2.164 1.305 957.936,46

    2000 25 88 1.130 516 472.849,69

    1999 19 56 - 725 -

    17 Disponvel em: . Acesso em: 21 jun.2006.

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    Ano Nmero de Nmero Trabalhadores Trabalhadores Pagamento

    Operaes de Fazendas Registrados Libertados de Indenizao

    Fiscalizadas

    1998 18 47 - 159 -

    1997 20 95 - 394 -

    1996 26 219 - 425 -

    1995 11 77 - 84 -

    Total 420 1.510 21.234 19.102 23.997.485,42

    * Atualizado em 17.05.2006.

    A Justia do Trabalho tambm vem assumindo importante papel no combate utilizao do trabalho em condio anloga de escravo por meio da fixao, emaes civis pblicas ou coletivas ajuizadas pelo Ministrio Pblico do Trabalho, deseveras condenaes de ordem pecuniria (multas e de indenizaes pelos danoscausados ao trabalhador e a sociedade).

    Nesse aspecto, Jorge Antnio Ramos Vieira comenta que a sanopecuniria assume relevo fundamental para erradicao do trabalho escravo, poisquebra a lucratividade desse tipo de empreendimento criminoso e impeobservncia da legislao trabalhista, impedindo que o trabalhador continue aser entendido como meio de ganho fcil, na mo daqueles que pensam estaracima das leis. Impe ainda aos donos da terra responsabilidade social para comseus empregados, eis que, por fora de medidas judiciais, inclusive liminares,so obrigados a respeitar os direitos dos trabalhadores, com fiscalizao efetivado cumprimento das decises do Estado-Juiz, com a participao do MinistrioPblico do Trabalho, Equipe de Fiscalizao Mvel do Ministrio do Trabalho edo Emprego e Polcia Federal, que acompanham e atuam nas chamadas varasmveis da Justia do Trabalho18.

    Verifica-se, portanto, que neste momento de represso das prticas deexplorao do trabalho em condio anloga de escravo, importante a aofiscalizatria do Ministrio Pblico do Trabalho, do Ministrio do Trabalho e doEmprego e da Polcia Federal, como tambm importante a prestao jurisdicionalrpida e eficaz da Justia do Trabalho. Entretanto, para efetiva soluo dessa chagasocial, torna-se fundamental a ao conjunta da sociedade e do Estado em busca daconcreta soluo do problema, que consiste na diminuio das desigualdades sociaisa partir da equnime distribuio das riquezas produzidas em nosso Pas.

    18 VIEIRA, Jorge Antnio Ramos. Trabalho escravo: quem o escravo, quem escraviza e quem liberta.Disponvel em: . Acesso em:22 jun. 2006.

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    4 DANO MORAL DECORRENTE DO TRABALHO EM CONDIOAN`LOGA DE ESCRAVO

    Ao lado das condutas que provocam leses ao patrimnio material, existemaes que apenas violam valores, sentimentos ou direitos personalssimos que nopossuem equivalncia econmica, desencadeando o dano de natureza moral navtima.

    O dano moral conceituado por Walmir Oliveira da Costa como aqueleque atinge o ser humano em seus valores mais ntimos, causando-lhes leses emseu patrimnio imaterial, como a honra, a boa fama, a dignidade, o nome etc., bensesses que, em sua essncia, isto , considerados em si mesmos (do ponto de vistaontolgico), no so suscetveis de aferio econmica, mas, sim, seus efeitos oureflexos na esfera lesada19.

    Antonio Jeov Santos define dano moral como a alterao no bem-estarpsicofsico do indivduo. Se do ato de outra pessoa resultar alterao desfavorvel,aquela dor profunda que causa modificaes no estado anmico20.

    O dano moral, portanto, a leso sofrida pela vtima de natureza extrapa-trimonial, afetando os valores, os sentimentos e os direitos personalssimos inerentesao homem, como a liberdade, a igualdade, a segurana, o bem-estar, a cidadania, adignidade humana, a vida, a intimidade, a honra, a imagem, dentre outros que,embora no possuam equivalncia econmica, so objetos da tutela jurdica.

    O sentido abstrato da definio do dano moral pode erroneamente demonstrarque qualquer incmodo de carter pessoal ou o simples mal-estar possam caracterizara ocorrncia da leso de natureza moral.

    Observa-se que no convvio social, inclusive no desempenho das relaestrabalhistas, comum surgirem pequenas discusses ou cobranas que apenascaracterizam-se como simples desconforto e, por conseguinte, no chegam ademonstrar a existncia do dano moral.

    Nesse sentido, Antonio Jeov Santos comenta que, conquanto existampessoas cuja suscetibilidade aflore na epiderme, no se pode considerar que qualquermal-estar seja apto para afetar o mago, causando dor espiritual. Quando algumdiz ter sofrido prejuzo espiritual, mas este conseqncia de uma sensibilidadeexagerada ou de uma suscetibilidade extrema, no existe reparao. Para que existadano moral necessrio que a ofensa tenha alguma grandeza e esteja revestida decerta importncia e gravidade21.

    Marcus Vincius Lobregat tambm comenta que no qualquer alegaode dor ntima e/ou de suposta ofensa sofrida que caracteriza a existncia de dano

    19 COSTA, Walmir Oliveira da. Dano moral nas relaes laborais. Curitiba: Juru, 1999. p. 33.

    20 SANTOS, Antonio Jeov. Dano moral indenizvel. 3. ed. So Paulo: Mtodo, 2001. p. 100.

    21 Op. cit., p. 120.

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    moral, ou a ocorrncia de efetivo prejuzo extrapatrimonial. Para tanto, entendemosque necessrio que a ofensa ao patrimnio moral do indivduo venha acarretar-lhe uma perturbao psicolgica geradora de angstia e de alterao comportamen-tal22.

    Desse modo, verifica-se que o dano moral, como prejuzo de ordem extrapa-trimonial, caracteriza-se pela efetiva repercusso no psicolgico e no comportamentoda vtima, que passa a sentir sensaes de dor, angstia, infelicidade, impotncia,menosprezo, como tambm passa a agir de forma desordenada, insegura, aptica,de modo a demonstrar que a leso efetivamente afetou os valores, os sentimentos eos direitos personalssimos inerentes ao homem.

    Observa-se que o dano moral pode afetar o indivduo e, concomitantemente,a coletividade, haja vista que os valores ticos do indivduo podem ser amplificadospara a rbita coletiva.

    Xisto Tiago de Medeiros Neto comenta que no apenas o indivduo,isoladamente, dotado de determinado padro tico, mas tambm o so os grupossociais, ou seja, as coletividades, titulares de direitos transindividuais. A simplesobservao da orbe social demonstra, com clareza, que determinadas coletividadescomungam de interesses ideais, cuja traduo se concretiza em valores afetos dignidade edificada e compartilhada no seu mbito, por todos os integrantes23.

    Nessa perspectiva, verifica-se que o trabalho em condies anlogas deescravo afeta individualmente os valores do obreiro e propicia negativas repercussespsicolgicas em cada uma das vtimas, como tambm, concomitantemente, afetavalores difusos, a teor do art. 81, pargrafo nico, inciso I, da Lei n 8.078/1990,haja vista que o trabalho em condio anloga de escravo atinge objeto indivisvele sujeitos indeterminados, na medida em viola os preceitos constitucionais, comoos princpios fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1, inciso III) edos valores sociais do trabalho (art. 1, inciso IV), de modo que no se pode declinarou quantificar o nmero de pessoas que sentir o abalo psicolgico, a sensao deangstia, desprezo, infelicidade ou impotncia em razo da violao das garantiasconstitucionais causada pela barbrie do trabalho escravo.

    Analisando casos concretos, verifica-se, por exemplo, que a ao realizadapelo Grupo de Fiscalizao Mvel composto pelo Ministrio Pblico do Trabalho,do Ministrio do Trabalho e do Emprego e da Polcia Federal, no interior da Bahia,constatou que os trabalhadores submetidos a condies anlogas de escravorecebiam pouca alimentao e, ainda, de pssima qualidade, causando vriasenfermidades nos trabalhadores, conforme consta no relatrio do mdico do trabalhointegrante da equipe de fiscalizao:

    Inmeros empregados esto apresentando quadro de diarriasanguinolenta, vmitos e no conseguem se alimentar. Ressaltamos que a

    22 LOBREGAT, Marcus Vincius. Dano moral nas relaes de trabalho. So Paulo: LTr, 2001. p. 44.

    23 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. So Paulo: LTr, 2004. p. 137.

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    qualidade da comida servida, quando de nossa primeira vistoria, era depssima qualidade e em quantidade insuficiente para satisfazer asnecessidades dos empregados. A alimentao servida era confeccionada semqualquer controle ou higiene e os empregados tinham os seus pratos emarmitas com comidas expostas ao de poeira, fumaa e moscas. Esteconjunto de fatores nos levou a temer por uma epidemia.24

    Em outra ao, realizada pelo Grupo de Fiscalizao Mvel no sul do Par,tambm se constatou que os trabalhadores submetidos a condies anlogas deescravo eram cerceados de diversos direitos fundamentais fixados no TextoConstitucional, conforme consta no relatrio do Ministrio Pblico do Trabalho:

    Fomos verificar as condies colocadas disposio dos trabalha-dores contratados para o desmatamento florestal. L chegando, pudemosconstatar que os trabalhadores contratados no tinham direito:

    a) a consumirem gua encanada, pois eram impingidos a consumirgua, tomar banho, lavar roupas e loua num igarap situado muito prximoao barraco onde dormiam;

    b) a dormir em alojamentos com paredes construdas de alvenaria detijolo comum, em concreto ou madeira, pois ficavam alojados num barracorstico, edificado com troncos de madeiras fincados no cho, sem proteolateral e coberto de plstico preto, adquirido pelos prprios trabalhadores;

    c) intimidade, uma vez que compartilhavam o barraco ondedormiam com todos os trabalhadores, inclusive, com uma famlia compostapor um casal e mais cinco crianas (moradia coletiva);

    d) instalao sanitria, sendo obrigados a realizar suas necessidadesfisiolgicas no mato a cu aberto, sem as mnimas condies de higiene;

    e) a uma cozinha equipada para preparem o alimento, pois o fogoera de pedra feito no cho;

    f) a um refeitrio, pois consumiam os alimentos produzidos no prpriobarraco no cho ou em tronco de rvores.25

    Com base na anlise dos relatrios dos Grupos de Fiscalizao Mvelsupramencionados, verifica-se que as condies degradantes e subumanas a queso submetidos os trabalhadores, como a precariedade da alimentao, das condiessanitrias e dos alojamentos, efetivamente violam a dignidade e as garantiasconstitucionais conferidas ao trabalhador no mbito individual e coletivo, desen-cadeando, por via de conseqncia, dano moral individualmente no trabalhador ecoletivamente na sociedade.

    24 Disponvel em: .Acesso em: 21 jun. 2006.

    25 O relatrio parte integrante do Processo n 1693/2003 que tramita na MM Vara do Trabalho deParauapebas/PA.

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    Desse modo, resta demonstrado que o trabalho em condio anloga deescravo propicia, concomitantemente, dano moral de natureza individual, que possuicomo titular o prprio obreiro vtima das condies subumanas de trabalho, e danomoral de natureza coletiva de titularidade da sociedade.

    Cabe destacar que o dano moral, como violao dos sentimentos, valores edireitos personalssimos do homem e da sociedade, no possibilita a recomposioda vtima ao estado anterior ao da leso, o que torna extremamente difcil a utilizaode mecanismos de compensao pela afetao dos bens imateriais.

    A indenizao do dano moral surge como instrumento capaz de abrandar osofrimento da vtima, por meio de compensao pecuniria e/ou do reconhecimentoem pblico pelo agressor da inocncia do ofendido, como tambm se caracterizapela natureza pedaggica, na medida em que a fixao da indenizao por danomoral tambm objetiva inibir novas prticas ofensivas.

    Caio Mrio da Silva Pereira comenta que a funo da indenizao do danomoral converge para duas foras: carter punitivo, para que o causador do dano,pelo fato da condenao, se veja castigado pela ofensa que praticou, e o cartercompensatrio para a vtima, que receber uma soma que lhe proporcione prazerescomo contrapartida do mal sofrido26.

    A reparao do dano moral, consoante Antonio Jeov Santos, pode ocorrerin natura, no primeiro caso de danos contra a honra ou erros cometidos por rgosde comunicao, em que a vtima pode entender como suficiente a publicao daretratao, ou in pecunia, em que a reparao do dano moral ocorre por meio dopagamento em dinheiro27.

    Na prtica, verifica-se que a elaborao de notas de desagravo ou de retrataopblica apenas utilizada quando o dano moral decorre de injria, difamao oucalnia, e possui pouca ou nenhuma eficcia na restaurao do dano, o queimpulsiona a utilizao da reparao pecuniria como o melhor meio paraefetivamente compensar a vtima pelo dano moral.

    A Constituio Federal de 1988, como forma de melhor garantir a reparaoda vtima de dano moral, reconheceu a possibilidade da adoo cumulativa dareparao in natura, por meio do direito de resposta, e da reparao in pecunia,por meio da indenizao pecuniria (art. 5, inciso V28).

    Sobre a maior viabilidade da reparao in pecunia do dano moral, MariaHelena Diniz comenta que a reparao do dano moral , em regra, pecuniria,ante a impossibilidade do exerccio do jus vindicatae, visto que ele ofenderia osprincpios da coexistncia e da paz sociais. A reparao em dinheiro viria aneutralizar os sentimentos negativos de mgoa, dor, tristeza, angstia, pela

    26 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 62.

    27 Op. cit., p. 171-174.

    28 Art. 5 [...]. V assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, alm da indenizao pordano material, moral ou imagem.

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    supervenincia de sensaes positivas, de alegrias, satisfao, pois possibilitariaao ofendido algum prazer, que, em certa medida, poderia atenuar seu sofrimento.Ter-se-ia, ento, como j dissemos, uma reparao do dano moral pela compensaoda dor pela alegria. O dinheiro seria to-somente um lenitivo, que facilitaria aaquisio de tudo aquilo que possa concorrer para trazer ao lesado uma compensaopor seus sofrimentos29.

    No Brasil, adota-se, como regra geral, o sistema aberto para fixao daindenizao por dano moral.

    O critrio aberto ou por arbitramento para quantificao econmica do danomoral consiste na individualizao da reparao da ofensa por meio da aplicaode elementos subjetivos estabelecidos prudentemente pelo magistrado.

    O critrio por arbitramento encontra-se expressamente reconhecido pelo novoCdigo Civil, que estabelece de forma clara que se o ofendido no puder provarprejuzo material, caber ao juiz fixar, eqitativamente, o valor da indenizao, naconformidade das circunstncias do caso (art. 953, pargrafo nico).

    O Cdigo de Processo Civil tambm estabelece que a quantificao econmicada leso imaterial, como o caso do dano moral, deve ser realizada por arbitramentoem razo da prpria natureza do objeto da liquidao (art. 606, inciso II).

    Analisando especificamente a aplicao da liquidao da leso moral porarbitramento, verifica-se que o juiz deve utilizar-se de toda a sua sensibilidadecomo ser humano e como magistrado para externalizar o justo valor da reparaopecuniria, ou seja, deve sopesar elementos como a dimenso da repercusso dodano, os prejuzos causados pelo abalo moral nas relaes familiares e sociais, oalcance econmico do valor da condenao na vida da vtima e do ofensor, a situaoque ensejou o dano (conduta culposa, dolosa ou acidental), dentre outros elementosprprios do caso concreto.

    O arbitramento da indenizao do dano moral exige do magistrado, portanto,a fixao de estimativa prudente e equnime, de modo que o quantum da indenizaodeve conjuntamente compensar o abalo (psicolgico e comportamental) da vtimasem se transformar em fonte de enriquecimento ilcito, como tambm devedesestimular a prtica de novas condutas danosas sem causar a runa do ofensor oua frustrao do ofendido.

    Nesse sentido, Rui Stoco comenta que, na hiptese em que a lei noestabelece os critrios de reparao, impe-se obedincia ao que podemos chamarde binmio do equilbrio, de sorte que a compensao pela ofensa irrogada nodeve ser fonte de enriquecimento para quem recebe, nem causa de runa para quemd. Mas tambm no pode ser to insignificante que no compense e satisfaa oofendido, nem console e contribua para a superao do agravo recebido30.

    29 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. Responsabilidade civil. 9. ed. So Paulo: Saraiva, v. 7,1995. p. 75.

    30 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 1709.

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    Os critrios bsicos de orientao do juiz para fixao do valor da reparaopor arbitramento, de acordo com doutrinadores como Xisto Tiago de MedeirosNeto31 e Marcus Vincius Lobregat32, assentam-se, de modo geral, na observaodos seguintes fatores: 1) a intensidade da dor sofrida pelo ofendido, levando emconsiderao a pessoa que reclama a indenizao, sua posio social, seu grau deeducao e temperamento, seus princpios morais e religiosos, o meio ambiente emque se deu a ofensa e no que ela repercutiu, bem como a influncia que teria aofensa se produzida numa pessoa de padro mdio (normalidade); 2) a gravidade,a natureza e a repercusso da ofensa, se surtiu efeitos somente no mbito do direitocivil ou se tambm gerou conseqncias na esfera criminal, devendo ser de maiorvalor a parcela indenizatria nesse ltimo caso; 3) a intensidade do dolo ou o graude culpa responsvel pela leso; 4) a situao econmica do ofensor, de tal formaque o valor da indenizao no constitua fator de empobrecimento indevido; 5) aexistncia de retratao ou desmentimento, como meio de minorar a leso causadaao ofendido.

    No caso especfico da leso moral proveniente de submisso do trabalhadora condio anloga de escravo, seja essa de natureza individual ou de naturezacoletiva, entendo que o magistrado, para arbitrar o valor da indenizao, deve,basicamente, analisar a gravidade da leso (as condies subumanas a que sosubmetidos trabalhadores, a existncia de enfermidades entre os obreiros e suaspossveis seqelas na integridade fsica); a dimenso do abalo psquico (verificar amanifestao entre os trabalhadores de distrbios psicolgicos como depresso,sndrome do pnico, dentre outras); os aspectos pessoais da vtima (idade, sexo,situao familiar, grau de instruo etc.); as circunstncias do evento danoso (formade aliciamento da mo-de-obra, manuteno de locais onde so comercializadosbens de consumo com valores superfaturados), e a situao econmica do ofensor(estrutura financeira do empreendimento econmico causador do dano).

    Assim, a reparao pecuniria do dano moral individual reverte para oprprio trabalhador vtima da submisso s condies anlogas de escravo, e areparao do dano moral coletivo, em razo de possuir objeto indivisvel e sujeitosindeterminados, reverte-se em benefcio de toda a sociedade por meio do depsitoda condenao pecuniria no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

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    31 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. So Paulo: LTr, 2004. p. 81.

    32 Op. cit., p. 122.

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