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Fritijof Capra - O Ponto de Mutação

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Ttulo do original: "The turning point" 1982 Fritjjof Capra Traduo: lvaro Cabral Consultoria: Newton Roberval Eichemberg Capa: layout de Natanael Longo de Oliveira e colagem de Tide Hellmeister

Ao trmino de um perodo de decadncia sobre vm o ponto de mutao. A luz poderosa que fora banida ressurge. H movimento, mas este no gerado pela fora... O movimento natural, surge espontaneamente. Por essa razo, a transformao do antigo torna-se fcil. O velho descartado, e o novo introduzido. Ambas as medidas se harmonizam com o tempo, no resultando da, portanto, nenhum dano. I Ching

s mulheres de minha vida, especialmente minha av e minha me, por seu amor, apoio e sabedoria.

Nota do autor

Tenho o privilgio e o prazer de agradecer, por sua ajuda e por seus conselhos, a Stanislav Grof, Hazel Henderson, Margaret Lock e Cari Simonton. Como assessores especiais em seus campos de especializao, escreveram ensaios de informao bsica para mim, que foram incorporados ao texto do livro, e passaram muitas horas comigo em discusses que foram gravadas e transcritas com o mesmo fim. Em particular, Stanislav Grof contribuiu desse modo nos captulos 6 e 11, Hazel Henderson nos captulos 7 e 12, e Margaret Lock e Cari Simonton nos captulos 5 e 10. Antes de iniciar a redao final do livro, ns cinco reunimo-nos durante quatro dias com Gregory Bateson, Antnio Dimalanta e Leonard Shlain, para discutir seu contedo e estrutura. Essas discusses, a que no faltaram lances dramticos, foram extremamente estimulantes e esclarecedoras para mim, e permanecero entre os momentos inesquecveis de minha vida. Estou profundamente grato a todas as pessoas acima mencionadas por me ajudarem com seus conselhos e informaes durante toda a redao do livro, bem como por sua leitura crtica de vrias partes do manuscrito. Agradeo especialmente a Leonard Shlain, por esclarecer muitas questes relacionadas com a medicina, e a Antnio Dimalanta, por me apresentar as conquistas recentes em terapia familiar. Estou tambm especialmente grato a Robert Livingston, que, durante uma fase posterior de redao do manuscrito, me ofereceu inestimveis conselhos a respeito das.partes do livro que tratam de biologia.

Gregory Bateson exerceu importante influncia sobre meu pensamento ao longo deste trabalho. Sempre que eu me deparava com uma questo que no conseguia associar a qualquer disciplina ou escola de pensamento, punha uma nota margem do manuscrito: "Perguntar a Bateson!" Lamentavelmente, algumas dessas questes ainda esto sem resposta. Gregory Bateson faleceu antes que eu lhe pudesse mostrar qualquer parte do manuscrito. Os primeiros pargrafos do captulo 9, fortemente influenciado por sua obra, foram escritos no dia seguinte ao seu funeral, nos penhascos da costa de Big Sur, onde suas cinzas foram espalhadas sobre o oceano. Serei sempre grato pelo privilgio de o ter conhecido.

Agradecimentos Gostaria de expressar minha profunda gratido s vrias pessoas que me deram sua ajuda e seu apoio durante os quatro anos em que trabalhei neste livro. Seria impossvel mencionar a todas. Entretanto, estou especialmente grato a: Geoffrey Chew, pela troca permanente de idias, minha fonte mais rica de conhecimento e inspirao, e David Bohm e Henry Stapp, por estimulantes discusses em torno de questes fundamentais da fsica; Jonathan Ashmore, Robert Edgar e Horace Judson, por valiosas discusses e pela correspondncia sobre a biologia contempornea; Erich Jantsch, pelas conversas estimulantes e por compartilhar generosamente comigo suas idias e recursos; Virgnia Reed, por abrir-me os olhos para os movimentos expressivos do corpo e por ampliar minhas idias acerca de sade e cura; Martha Rogers e seus alunos da Universidade de Nova York, com agradecimentos especiais a Gretchen Randolph, pelas discusses esclarecedoras sobre o papel da enfermagem nas artes curativas; Rick Chilgren e David Sobel, por seu generoso oferecimento de literatura mdica; George Vithoulkas, por colocar-me em contato com a teoria da homeopatia e por sua generosa hospitalidade, e Dana Ullman, por seus valiosos conselhos e recursos; Stephen Salinger, pelas estimulantes discusses sobre as relaes entre a fsica e a psicanlise; Virgnia Senders, Verona Font e Craig Brod, por esclarecerem numerosas questes referentes histria da psicologia; R. D. Laing, pelas fascinantes conversas acerca da doena mental e da natureza da conscincia e por desafiar meu pensamento cientfico at o seu mago; Marie-Louise von Franz e June Singer, por elucidativas discusses acerca da psicologia junguiana;

FrancesVaughn, BarbaraGreen, FrankRubenfeld, Lynn KahneMariKrieger, pelasenriquecedorasdiscussessobre psicoterapia; Carl Rogers, por sua inspirao, apoio e generosidade; James Robert e Lucia Dunn, pelas conversas esclarecedoras e a correspondncia sobre economia; E. F. Schumacher, por uma bela tarde de discusses abrangendo vasta gama de tpicos, desde economia e poltica at filosofia, tica e espiritualidade; meu professor de tai ji quan (tai chi chuan), o mestre Chiang Yun-Chung, que tambm meu mdico, por sua experincia em filosofia, arte e cincia chinesas, e por contribuir graciosamente com a caligrafia mostrada na p. 5; John Lennon, Gordon Onslow-Ford e Gary Snyder, por me inspirarem atravs de sua arte e de sua vida, e a Bob Dylan, por duas dcadas de uma msica e poesia poderosas; Daniel Cohn-Bendit, Angela Davis, Victor Jara, Herbert Marcuse e Adrienne Rich, por elevarem minha conscincia poltica; Charlene Spretnak e Miriam Monasch, por sua amizade e apoio e por aguarem minha conscincia feminista, na teoria e na prtica; meu irmo, Bernt Capra, meu editor ingls, Oliver Caldecott, e minha amiga Lenore Weiss, por lerem o manuscrito na ntegra e me darem seus valiosos conselhos e orientao; todas as pessoas que assistiram s minhas conferncias, seminrios e workshops, por me proporcionarem o ambiente estimulante que me levou a escrever este livro; Comunidade Esalen e, particularmente, Rick Tarnas, por seu constante apoio e generosa hospitalidade, e por me permitirem debater muitas idias especulativas num ambiente informal; Macalester College, na pessoa de seu presidente, e do corpo docente, por sua hospitalidade e por me proporcionarem a oportunidade, como professor visitante, de apresentar uma primeira verso de minha tese numa srie de conferncias pblicas; Susan Corrente, Howard Kornfeld, Ken Meter e Annelies Rai-ner, por suas pesquisas e seus conselhos; minhas secretrias, Murray Lamp e Jake Walter, por me auxiliarem em numerosas tarefas com eficincia, imaginao e bom humor, e Alma Taylor, por sua impecvel datilografia e reviso de provas;

e meus editores da Simon and Schuster, Alice Mayhew e John Cox, por sua pacincia, apoio e encorajamento e por me ajudarem a converter um gigantesco manuscrito num livro bem-proporcionado.

ndice Prefcio I. Crise e transformao 1. A inverso da situao II. Os dois paradigmas 2. A mquina do mundo newtoniana 3. A nova fsica III. A influncia do pensamento cartesiano-newtoniano 4. A concepo mecanicista da vida 5. O modelo biomdico 6. A psicologia newtoniana 7. O impasse da economia 8. O lado sombrio do crescimento IV. A nova viso da realidade 9. A concepo sistmica da vida 10. Holismo e sade 11. Jornadas para alm do espao e do tempo 12. A passagem para a Idade Solar Notas Bibliografia

Prefcio Meu principal interesse profissional durante a dcada de 70 concentrou-se na drstica mudana de conceitos e idias que ocorreu na fsica durante os primeiros trinta anos do sculo e que ainda est sendo elaborada nas atuais teorias da matria. Os novos conceitos em fsica provocaram uma profunda mudana em nossa viso do mundo,

passou-se da concepo mecanicista de Descartes e Newton para uma viso holstica* e ecolgica, que reputo semelhante s vises dos msticos de todas as pocas e tradies. * O termo "holstico", do grego "holos", "totalidade", refere-se a uma compreenso da realidade em funo de totalidades integradas cujas propriedades no podem ser reduzidas a unidades menores. (N. do T. ) A nova concepo do universo fsico no foi facilmente aceita, em absoluto, pelos cientistas do comeo do sculo. A explorao do mundo atmico e subatmico colocou-os em contato com uma estranha e inesperada realidade que parecia desafiar qualquer descrio coerente. Em seu esforo de apreenso dessa nova realidade, os cientistas tornaram-se irremediavelmente conscientes de que seus conceitos bsicos, sua linguagem e todo o seu modo de pensar eram inadequados para descrever fenmenos atmicos. Seus problemas no eram meramente intelectuais; remontavam ao significado de uma intensa crise emocional e, poderamos dizer, at mesmo existencial. Foi preciso muito tempo para que superassem essa crise, mas, no final, foram recompensados por profundos insights sobre a natureza da matria e sua relao com a mente humana. Estou convicto de que, hoje, nossa sociedade como um todo encontra-se numa crise anloga. Podemos ler acerca de suas numerosas manifestaes todos os dias nos jornais. Temos taxas elevadas de inflao e desemprego, temos uma crise energtica, uma crise na assistncia sade, poluio e outros desastres ambientais, uma onda crescente de violncia e crimes, e assim por diante. A tese bsica do presente livro de que tudo isso so facetas diferentes de uma s crise, que , essencialmente, uma crise de percepo. Tal como a crise da fsica na dcada de 20, ela deriva do fato de estarmos tentando aplicar os conceitos de uma viso de mundo obsoleta a viso de mundo mecanicista da cincia cartesiana-newtoniana a uma realidade que j no pode ser entendida em funo desses conceitos. Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenmenos biolgicos, psicolgicos, sociais e ambientais so todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecolgica que a viso de mundo cartesiana no nos oferece. Precisamos, pois, de um novo "paradigma'' uma nova viso da realidade, uma mudana fundamental em nossos pensamentos, percepes e valores. Os primrdios dessa mudana, da transferncia da concepo mecanicista para a holstica da realidade, j so visveis em todos os campos e suscetveis de dominar a dcada atual. As vrias

manifestaes e implicaes dessa "mudana de paradigma" constituem o tema deste livro. Os anos 60 e 70 geraram uma srie de movimentos sociais que parecem caminhar, todos, na mesma direo, enfatizando diferentes aspectos da nova viso da realidade. At agora, a maioria desses movimentos ainda opera separadamente, eles ainda no reconheceram que suas intenes se inter-relacionam. A finalidade deste livro fornecer uma estrutura conceituai coerente que ajude esses movimentos a reconhecer as caractersticas comuns de suas finalidades. Assim que isso acontecer, podemos esperar que os vrios movimentos fluam juntos e formem uma poderosa fora de mudana social. A gravidade e a extenso global de nossa crise atual indicam que essa mudana suscetvel de resultar numa transformao de dimenses sem precedentes, um momento decisivo para o planeta como um todo. Meu exame da mudana de paradigma divide-se em quatro partes. A primeira introduz os principais temas do livro. A segunda descreve o desenvolvimento histrico da viso cartesiana do mundo e a drstica mudana de conceitos bsicos que ocorreu na fsica moderna. Na terceira parte, analiso a profunda influncia do pensamento cartesiano-newtoniano sobre a biologia, a medicina, a psicologia e a economia, e apresento minha crtica ao paradigma mecanicista nessas disciplinas. Enfatizo assim, especialmente, que as limitaes da viso de mundo cartesiana e do sistema de valores em que se assenta esto afetando seriamente nossa sade individual e social. Segue-se a essa crtica, na quarta parte do livro, um exame detalhado da nova viso da realidade. Essa nova viso inclui a emergente viso sistmica de vida, mente, conscincia e evoluo; a correspondente abordagem holstica da sade e da cura; a integrao dos enfoques ocidental e oriental da psicologia e da psicoterapia; uma nova estrutura conceituai para a economia e a tecnologia; e uma perspectiva ecolgica c feminista, que espiritual em sua natureza essencial e acarretar profundas mudanas em nossas estruturas sociais e polticas. Nosso exame abrange uma gama muito ampla de idias e fenmenos, e estou perfeitamente cnscio de que a apresentao das conquistas detalhadas em vrios campos ser fatalmente superficial, dadas as limitaes de espao e tempo e de meus conhecimentos. Entretanto, ao escrever o livro, acabei por ficar fortemente convencido cie que a viso sistmica que nele defendo aplica-se tambm ao prprio livro. Nenhum de seus elementos realmente original, e muitos deles podem estar representados de um modo um tanto simplista. Mas a maneira como as vrias partes esto integradas no todo mais importante do que as prprias partes. As interconexes e interdependncias entre

os numerosos conceitos representam a essncia de minha prpria contribuio. Espero que o resultado, no seu todo, seja mais importante do que a soma de suas partes. Este livro destina-se ao leitor comum. Todos os termos tcnicos so definidos em notas de rodap nas pginas onde aparecem pela primeira vez. Espero, contudo, que ele tambm possa interessar aos profissionais dos vrios campos que analisei. Embora alguns possam achar minha crtica perturbadora, espero que no tomem nada disso em termos pessoais. Minha inteno nunca foi criticar determinados grupos profissionais, mas, antes, mostrar como os conceitos e atitudes dominantes em vrios campos refletem a mesma viso desequilibradora do mundo, que ainda compartilhada pela maioria de nossa cultura, mas que est agora mudando rapidamente. Muito do que digo neste livro um reflexo do meu desenvolvimento pessoal. Minha vida foi decisivamente influenciada pelas duas tendncias revolucionrias da dcada de 60, uma agindo na esfera social, a outra, no domnio espiritual. No meu primeiro livro, The tao of physics*, o que tentei foi estabelecer uma relao entre a revoluo espiritual e meu trabalho como fsico. Ao mesmo tempo, acreditava que a mudana de conceitos na fsica moderna tinha importantes implicaes sociais. Com efeito, no final do livro escrevi: "Acredito que a viso de mundo sugerida pela fsica moderna seja incompatvel com a nossa sociedade atual, a qual no reflete o harmonioso estado de interrelacionamento que observamos na natureza. Para se alcanar tal estado de equilbrio dinmico, ser necessria uma estrutura social e econmica radicalmente diferente: uma revoluo cultural na verdadeira acepo da palavra. A sobrevivncia de toda a nossa civilizao pode depender de sermos ou no capazes de realizar tal mudana. * ''O tao da fsica. " (N. do T. ) Nos ltimos seis anos, essa declarao evoluiu at converter-se no presente livro. Fritjof Capra Berkeley, abril de1981.

I

Crise e transformao1. A inverso da situao As ltimas duas dcadas de nosso sculo vm registrando um estado de profunda crise mundial. uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida a sade e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relaes sociais, da economia, tecnologia e poltica. uma crise de dimenses intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala e premncia sem precedentes em toda a histria da humanidade. Pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaa de extino da raa humana e de toda a vida no planeta. Estocamos dezenas de milhares de armas nucleares, suficientes para destruir o mundo inteiro vrias vezes, e a corrida armamentista prossegue a uma velocidade incoercvel. Em novembro de 1978, quando os Estados Unidos e a Unio Sovitica estavam completando sua segunda rodada de conversaes sobre os Tratados de Limitao de Armas Estratgicas, o Pentgono lanou seu mais ambicioso programa de produo de armas nucleares em duas dcadas; dois anos depois, isso culminou no maior boom militar da histria: um oramento qinqenal de defesa de 1 trilho de dlares. Desde ento, as fbricas norte-americanas de bombas vm funcionando a plena capacidade. Na Pantex, a fbrica do Texas onde so montadas todas as armas nucleares dos Estados Unidos, foram contratados operrios extras para perfazer um segundo e um terceiro turnos dirios adicionais a fim de aumentar a produo de armas cujo poder destrutivo alarmante. Os custos dessa loucura nuclear coletiva so assustadores. Em 1978, antes da mais recente escalada de custos, os gastos militares mundiais oravam em cerca de 425 bilhes de dlares mais de 1 bilho de dlares por dia. Mais de uma centena de pases, a maioria deles do Terceiro Mundo, dedicam-se compra de armas, e as vendas de equipamento militar para guerras nucleares e convencionais so maiores do que a renda nacional de todas as naes do mundo, exceo de apenas uma dezena delas . Enquanto isso, mais de 15 milhes de pessoas em sua maioria crianas morrem anualmente de fome; outros 500 milhes de seres humanos esto gravemente subnutridos. Cerca de 40 porcento da populao mundial no tem acesso a servios profissionais de sade; entretanto, os pases em desenvolvimento gastam trs vezes mais em armamentos do que em assistncia sade da populao. Trinta cinco por cento da

humanidade carece de gua potvel, enquanto metade de seus cientistas e engenheiros dedica-se tecnologia da fabricao de armas. Nos Estados Unidos, onde o complexo militar-industrial converteu-se em parte integrante do governo, o Pentgono tenta persuadir-nos de que construir mais e melhores armas tornar o pas mais seguro. No entanto, ocorre exatamente o oposto: mais armas nucleares significam mais perigo. Nestes ltimos anos, tornou-se notria uma alarmante mudana na poltica de defesa norte-americana, que registra uma tendncia a ampliar um arsenal nuclear que tem por objetivo no a retaliao, mas a iniciativa do primeiro ataque. Existem provas crescentes de que a estratgia de desferir o primeiro ataque deixou de ser uma opo militar para se tornar o objetivo central da poltica de defesa norte-americana 4. Em tal situao, cada novo mssil aumenta a probabilidade de uma guerra nuclear. As armas nucleares no nos trazem segurana, como o establishment militar deseja que acreditemos; elas meramente aumentam a probabilidade de uma destruio global. A ameaa de guerra nuclear o maior perigo com que a humanidade hoje se defronta, mas no absolutamente o nico. Enquanto as potncias militares ampliam seu arsenal letal de armas nucleares, o mundo industrial atarefa-se na construo igualmente perigosa de usinas nucleares que ameaam extinguir a vida em nosso planeta. H 25 anos, lderes mundiais decidiram usar os chamados "tomos para a paz" e apresentaram a energia nuclear como a fonte energtica do futuro: confivel, limpa e barata. Hoje estamos nos tornando, de forma irremedivel, conscientes de que a energia nuclear no segura, nem limpa e nem barata. Os 360 reatores nucleares que operam atualmente no mundo inteiro e as centenas de outros em processo de instalao converteram-se numa gravssima ameaa ao nosso bem-estar 5. Os elementos radiativos liberados por reatores nucleares so exatamente os mesmos que caem sobre a Terra aps a exploso de bombas atmicas. Milhares de toneladas desse material txico j foram descarregados no meio ambiente em conseqncia das exploses nucleares e de vazamentos de reatores. Uma vez que continuam se acumulando no ar que respiramos, nos alimentos que comemos e na gua que bebemos, nosso risco de contrair cncer e doenas genticas continua aumentando. O mais txico desses venenos radiativos, o plutnio, um elemento fssil, empregado na fabricao de bombas atmicas. Assim, a energia nuclear e as armas nucleares esto inextricavelmente ligadas, sendo apenas aspectos diferentes da mesma ameaa humanidade. Com sua proliferao contnua, a probabilidade de extino global da vida na Terra torna-se maior a cada dia. Mesmo pondo de lado a ameaa de uma catstrofe nuclear, o ecossistema global

e a futura evoluo da vida na Terra esto correndo srio perigo e podem muito bem resultar num desastre ecolgico em grande escala. A superpopulao e a tecnologia industrial tm contribudo de vrias maneiras para uma grave deteriorao do meio ambiente natural, do qual dependemos completamente. Por conseguinte, nossa sade e nosso bem-estar esto seriamente ameaados. Nossas principais cidades esto cobertas por camadas de smog* sufocante, cor de mostarda. Aqueles dentre ns que vivem em cidades podem perceber isso todos os dias, na ardncia dos olhos e na irritao dos pulmes. Em Los Angeles, de acordo com uma declarao de sessenta docentes da Escola Mdica da Universidade da Califrnia 6, "a poluio atmosfrica tornou-se agora um importante risco para a sade da maioria das pessoas desta comunidade, durante a maior parte do ano". Mas o smog no est confinado s grandes reas metropolitanas dos Estados Unidos. Ele igualmente irritante, se no pior, na Cidade do Mxico, em Atenas e Istambul. Essa contnua poluio do ar no s afeta os seres humanos, como tambm atinge os sistemas ecolgicos. Ataca e mata plantas, e essa alterao na vida vegetal pode levar a drsticas mudanas em populaes animais que dependem das plantas. No mundo de hoje, o smog no encontrado apenas na vizinhana das grandes cidades, est disperso por toda a atmosfera da Terra, e pode afetar gravemente o clima global. Os meteorologistas j falam de um vu nebuloso de poluio atmosfrica que envolve todo o planeta. * Combinao de fumaa e nevoeiro. (N. do E. ) Alm da poluio atmosfrica, nossa sade tambm ameaada pela gua e pelos alimentos, uma e outros contaminados por uma grande variedade de produtos qumicos txicos. Nos Estados Unidos, aditivos alimentares sintticos, pesticidas, agrotxicos, plsticos e outros produtos qumicos so comercializados numa proporo atualmente avaliada em mais de mil novos compostos qumicos por ano. Assim, o envenenamento qumico passa a fazer parte, cada vez mais, de nossa vida. Alm disso, as ameaas nossa sade atravs da poluio do ar, da gua e dos alimentos constituem meros efeitos diretos e bvios da tecnologia humana sobre o meio ambiente natural. Efeitos menos bvios mas possivelmente muitssimo mais perigosos s recentemente foram reconhecidos, e ainda no foram compreendidos em toda a sua extenso 7. Contudo, tornou-se claro que nossa tecnologia est perturbando seriamente e pode at estar destruindo os sistemas ecolgicos de que depende a nossa existncia.

A deteriorao de nosso meio ambiente natural tem sido acompanhada de um correspondente aumento nos problemas de sade dos indivduos. Enquanto as doenas nutricionais e infecciosas so as maiores responsveis pela morte no Terceiro Mundo, os pases industrializados so flagelados pelas doenas crnicas e degenerativas apropriadamente chamadas "doenas da civilizao", sobretudo as enfermidades cardacas, o cncer e o derrame. Quanto ao aspecto psicolgico, a depresso grave, a esquizofrenia e outros distrbios de comportamento parecem brotar de uma deteriorao paralela de nosso meio ambiente social. Existem numerosos sinais de desintegrao social, incluindo o recrudescimento de crimes violentosacidentes e suicdios; o aumento do alcoolismo e do consumo de drogas; e um nmero crescente de crianas com deficincia de aprendizagem e distrbios de comportamento. O aumento de crimes violentos e de suicdios de pessoas jovens to elevado que foi classificado como epidemia. Ao mesmo tempo, a taxa de mortalidade de jovens devido a acidentes, sobretudo os de trnsito, e vinte vezes superior resultante da poliomielite, quando esta se encontrava em sua pior fase. De acordo com o economista da rea de sade Victor Fuchs, "epidemia" uma palavra suave demais para se descrever essa situao8. A par dessas patologias sociais, temos presenciado anomalias econmicas que parecem confundir nossos principais economistas e polticos. Inflao galopante, desemprego macio e uma distribuio grosseiramente desigual da renda e da riqueza passaram a ser caractersticas estruturais da maioria das economias nacionais. A consternao e o desalento resultantes disso so agravados pela percepo de que a energia e nossos recursos naturais os ingredientes bsicos de toda a atividade industrial esto sendo rapidamente exauridos. Em face dessa trplice ameaa de esgotamento energtico, inflao e desemprego, os polticos j no sabem para onde se voltar a fim de minimizar o perigo. Eles, e os meios de comunicao de massa, argumentam a respeito de prioridades devemos tratar primeiro da crise energtica ou combater a inflao? , sem se aperceberem de que ambos os problemas, assim como todos os outros aqui mencionados, so apenas facetas diferentes de uma s crise. Quer falemos de cncer, criminalidade, poluio, energia nuclear, inflao ou escassez de energia, a dinmica subjacente a esses problemas a mesma. O objetivo central deste livro esclarecer essa dinmica e apontar para direes que mudem a situao atual. Um sinal impressionante do nosso tempo o fato de as pessoas que se presume serem especialistas em vrios campos j no estarem capacitadas a lidar com os

problemas urgentes que surgem em suas respectivas reas de especializao. Os economistas so incapazes de entender a inflao, os oncologistas esto totalmente confusos acerca das causas do cncer, os psiquiatras so mistificados pela esquizofrenia, a polcia v-se impotente em face da criminalidade crescente, e a lista vai por a afora. Nos Estados Unidos, os presidentes costumavam recorrer a pessoas do mundo acadmico em busca de assessoramento, fosse diretamente ou atravs dos brain trusts e think tanks criados explicitamente para aconselhar o governo em vrias questes polticas. Essa elite intelectual responsvel pela "tendncia predominante do pensamento acadmico" quase sempre esteve de acordo sobre o mbito conceituai bsico subentendido em seus pareceres. Hoje, no entanto, esse consenso deixou de existir. Em 1979, o Washington Post publicou uma histria com o ttulo "O armrio de idias est vazio", na qual pensadores preeminentes admitiam ser incapazes de resolver os mais urgentes problemas polticos da nao9. Segundo o Post, "conversas com destacados intelectuais em Cambridge, Massachusetts e Nova York, de fato, no s confirmam que a corrente principal das idias se dividiu em dzias de riachos, mas que, em algumas reas, secou por completo". Um dos entrevistados, Irving Kristol, professor de urbanismo do Henry R. Luce, na Universidade de Nova York, declarou estar se demitindo de sua ctedra porque "j no tenho nada a dizer. Penso que ningum tem. Quando um problema se torna extremamente difcil, perdemos o interesse por ele". Como causas de sua confuso ou renncia os intelectuais citaram "novas circunstncias" ou "o curso dos acontecimentos" Vietnam, Watergate e a persistncia de favelas, pobreza e criminalidade. Nenhum deles, entretanto, identificou o verdadeiro problema subjacente nossa crise de idias: o fato de a maioria dos intelectuais que constituem o mundo acadmico subscrever percepes estreitas da realidade, as quais so inadequadas para enfrentar os principais problemas de nosso tempo. Esses problemas, como veremos em detalhe, so sistmicos, o que significa que esto intimamente interligados e so interdependentes. No podem ser entendidos no mbito da metodologia fragmentada que caracterstica de nossas disciplinas acadmicas e de nossos organismos governamentais. Tal abordagem no resolver nenhuma de nossas dificuldades, limitar-se- a transferi-las de um lugar para outro na complexa rede de relaes sociais e ecolgicas. Uma resoluo s poder ser implementada se a estrutura da prpria teia for mudada, o que envolver transformaes profundas em nossas instituies sociais, em nossos valores e idias. Quando examinarmos as fontes de nossa crise cultural, ficar evidente que a maioria de nossos principais pensadores usa modelos

conceituais obsoletos e variveis irrelevantes. Ficar tambm evidente que um aspecto significativo do nosso impasse conceituai est em que a totalidade dos eminentes intelectuais entrevistados pelo Washington Post era constituda de homens. Para entender nossa multifacetada crise cultural, precisamos adotar uma perspectiva extremamente ampla e ver a nossa situao no contexto da evoluo cultural humana. Temos que transferir nossa perspectiva do final do sculo XX para um perodo de tempo que abrange milhares de anos; substituir a noo de estruturas sociais estticas por uma percepo de padres dinmicos de mudana. Vista desse ngulo, a crise apresenta-se como um aspecto da transformao. Os chineses, que sempre tiveram uma viso inteiramente dinmica do mundo e uma percepo aguda da histria, parecem estar bem cientes dessa profunda conexo entre crise e mudana. O termo que eles usam para "crise", wei-ji, composto dos caracteres: "perigo" e "oportunidade". Os socilogos ocidentais confirmaram essa intuio antiga. Estudos de perodos de transformao cultural em vrias sociedades mostraram que essas transformaes so tipicamente precedidas por uma variedade de indicadores sociais, muitos deles idnticos aos sintomas de nossa crise atual. Incluem uma sensao de alienao e um aumento de doenas mentais, crimes violentos e desintegrao social, assim como um interesse maior na prtica religiosa; tudo isso foi tambm observado em nossa sociedade na dcada passada. Em tempos de mudana cultural histrica, esses indicadores tendem a manifestar-se de uma a trs dcadas antes da transformao central, aumentando em freqncia e intensidade medida que a transformao se avizinha, e novamente declinando aps sua ocorrncia 10. As transformaes culturais desse gnero so etapas essenciais ao desenvolvimento das civilizaes. As foras subjacentes a esse desenvolvimento so complexas, e os historiadores esto longe de elaborar uma teoria abrangente da dinmica cultural; mas parece que todas as civilizaes passam por processos cclicos semelhantes de gnese, crescimento, colapso e desintegrao. O grfico seguinte mostra esse padro nas principais civilizaes em torno do Mediterrneo . Entre os mais notveis, ainda que mais hipotticos, estudos dessas curvas de ascenso e queda de civilizaes cumpre citar a importante obra A study of history * , de Arnold Toynbee. Segundo Toynbee, a gnese de uma civilizao consiste na transio de uma condio esttica para a atividade dinmica. Essa transio pode ocorrer espontaneamente, atravs da influncia de alguma civilizao j existente, ou atravs da desintegrao de uma ou mais civilizaes de uma gerao mais antiga. Toynbee v o

padro bsico na gnese das civilizaes como um padro de interao a que chama "desafio-e-resposta". Um desafio do ambiente natural ou social provoca uma resposta criativa numa sociedade, ou num grupo social, a qual induz essa sociedade a entrar no processo de civilizao. * "Um estudo de histria. (N. do T.) A civilizao continua a crescer quando sua resposta bem-sucedida ao desafio inicial gera um mpeto cultural que leva a sociedade para alm de um estado de equilbrio, que ento se rompe e se apresenta como um novo desafio. Desse modo, o padro inicial de desafio-e-resposta repetido em sucessivas fases de crescimento, pois cada resposta bem-sucedida produz um desequilbrio que requer novos ajustes criativos.

Grfico de ascenso e queda das principais civilizaes em torno do Mediterrneo.

O ritmo recorrente no crescimento cultural parece estar relacionado com

processos de flutuao que tm sido observados ao longo dos tempos e sempre foram considerados parte da dinmica fundamental do universo. Segundo os antigos filsofos chineses, todas as manifestaes da realidade so geradas pela interao dinmica entre dois plos de fora: o yin e o yang. Herclito, na Grcia antiga, comparou a ordem do mundo a "um fogo eternamente vivo que se acende e apaga conforme a medida". Empdocles atribuiu as mudanas no universo ao fluxo e refluxo de duas foras complementares, a que chamou "amor" e "dio". A idia de um ritmo universal fundamental tambm foi expressa por numerosos filsofos dos tempos modernos13. Saint-Simon via a histria das civilizaes como uma srie de perodos "orgnicos" e "crticos" que se alternavam; Herbert Spencer considerava que o universo passa por uma srie de "integraes" e "diferenciaes"; e Hegel entendia a histria humana como um desenvolvimento em espiral que parte de uma forma de unidade, passa por uma fase de desunio e desta para a reintegrao num plano superior. Com efeito, a noo de padres flutuantes parece ser sempre extremamente til para o estudo da evoluo cultural. Depois de atingirem o apogeu de vitalidade, as civilizaes tendem a perder seu vigor cultural e declinam. Um elemento essencial nesse colapso cultural, segundo Toynbee, a perda de flexibilidade. Quando estruturas sociais e padres de comportamento tornam-se to rgidos que a sociedade no pode mais adaptar-se a situaes cambiantes, ela incapaz de levar avante o processo criativo de evoluo cultural. Entra em colapso e, finalmente, desintegra-se. Enquanto as civilizaes em crescimento exibem uma variedade e uma versatilidade sem limites, as que esto em processo de desintegrao mostram uniformidade e ausncia de inventividade. A perda de flexibilidade numa sociedade em desintegrao acompanhada de uma perda geral de harmonia entre seus elementos, o que inevitavelmente leva ao desencadeamento de discrdias e ruptura social. Entretanto, durante o doloroso processo de desintegrao, a criatividade da sociedade sua capacidade de resposta a desafios no se acha completamente perdida. Embora a corrente cultural principal tenha se petrificado aps insistir em idias fixas e padres rgidos de comportamento, minorias criativas aparecero em cena e daro prosseguimento ao processo de desafio-e-resposta. As instituies sociais dominantes recusar-se-o a entregar seus papis de protagonistas a essas novas foras culturais, mas continuaro inevitavelmente a declinar e a desintegrar-se, e as minorias criativas podero estar aptas a transformar alguns dos antigos elementos, dando-lhes uma nova

configurao. O processo de evoluo cultural continuar ento, mas em novas circunstncias e com novos protagonistas. Os padres culturais descritos por Toynbee parecem ajustar-se muito bem nossa situao atual. Ao observarmos a natureza dos nossos desafios no os vrios sintomas de crise, mas as mudanas subjacentes ao nosso meio ambiente natural e social , podemos reconhecer a confluncia de diversas transies 4. Algumas delas esto relacionadas com os recursos naturais, outras com valores e idias culturais; algumas so partes de flutuaes peridicas, outras ocorrem dentro de padres de ascenso-e-queda. Cada um desses processos tem uma periodicidade distinta, mas todos eles envolvem perodos de transio que acontece estarem coincidindo no presente momento. Entre essas transies existem trs que abalaro os alicerces de nossas vidas e afetaro profundamente o nosso sistema social, econmico e poltico. A primeira transio, e talvez a mais profunda, deve-se ao lento, relutante, mas inevitvel declnio do patriarcado 15. A periodicidade associada ao patriarcado de, pelo menos, trs mil anos, um perodo to extenso que no podemos dizer se estamos diante de um processo cclico ou no, pois so mnimas as informaes de que dispomos acerca das eras pr-patriarcais. O que sabemos que, nestes ltimos trs mil anos, a civilizao ocidental e suas precursoras, assim como a grande maioria das outras culturas, basearam-se em sistemas filosficos, sociais e polticos "em que os homens pela fora, presso direta, ou atravs do ritual, da tradio, lei e linguagem, costumes, etiqueta, educao e diviso do trabalho determinam que papel as mulheres devem ou no desempenhar, e no qual a fmea est em toda parte submetida ao macho" 16. O poder do patriarcado tem sido extremamente difcil de entender por ser totalmente preponderante. Tem influenciado nossas idias mais bsicas acerca da natureza humana e de nossa relao com o universo a natureza do "homem" e a relao "dele" com o universo, na linguagem patriarcal. Era o nico sistema que, at data recente, nunca tinha sido abertamente desafiado em toda a histria documentada, e cujas doutrinas eram to universalmente aceitas que pareciam constituir leis da natureza; na verdade, eram usualmente apresentadas como tal. Hoje, porm, a desintegrao do patriarcado tornou-se evidente. O movimento feminista uma das mais fortes correntes culturais do nosso tempo, e ter um profundo efeito sobre a nossa futura evoluo. A segunda transio, que ter um profundo impacto sobre nossa vida, nos imposta pelo declnio da era do combustvel fssil. Os combustveis fsseis * carvo, petrleo e gs natural tm sido as principais fontes de energia da moderna era

industrial, e, quando se esgotarem, essa era chegar ao fim. Numa ampla perspectiva histrica da evoluo cultural, a era do combustvel fssil e a era industrial so apenas um breve episdio, um pico estreito em torno do ano 2000 em nosso grfico. Os combustveis fsseis estaro esgotados por volta de 2300, mas os efeitos econmicos e polticos desse declnio j esto sendo sentidos. Esta dcada ser marcada pela transio da era do combustvel fssil para uma era solar, acionada por energia renovvel oriunda do Sol; essa mudana envolver transformaes radicais em nossos sistemas econmicos e polticos. * Combustveis fsseis so resduos de plantas fossilizadas que foram enterradas na crosta da terra e chegaram a seu atual estado atravs de reaes qumicas ocorridas durante longos perodos de tempo. (N. do A. ) A terceira transio tambm est relacionada com valores culturais. Envolve o que hoje freqentemente chamado de "mudana de paradigma'' * uma mudana profunda no pensamento, percepo e valores que formam uma determinada viso da realidade 17. O paradigma ora em transformao dominou nossa cultura durante muitas centenas de anos, ao longo dos quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o resto do mundo. Esse paradigma compreende um certo nmero de idias e valores que diferem nitidamente dos da Idade Mdia; valores que estiveram associados a vrias correntes da cultura ocidental, entre elas a revoluo cientfica, o Iluminismo e a Revoluo Industrial. Incluem a crena de que o mtodo cientfico a nica abordagem vlida do conhecimento; a concepo do universo como um sistema mecnico composto de unidades materiais elementares; a concepo da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existncia; e a crena do progresso material ilimitado, a ser alcanado atravs do crescimento econmico e tecnolgico. Nas dcadas mais recentes, concluiu-se que todas essas idias e esses valores esto seriamente limitados e necessitam de uma reviso radical. * Do grego "paradeigma", "padro". (N. do A. )

A era do combustvel fssil no contexto de evoluo cultural.

A partir de nossa ampla perspectiva da evoluo cultural, a atual mudana de paradigma faz parte de um processo mais vasto, uma flutuao notavelmente regular de sistemas de valores, que pode ser apontada ao longo de toda a civilizao ocidental e da maioria das outras culturas. Essas mudanas flutuantes de valores e seus efeitos sobre todos os aspectos da sociedade, pelo menos no Ocidente, foram mapeados pelo socilogo Pitirim Sorokin numa monumental obra em quatro volumes escrita entre 1937 e 1941 18. O grandioso esquema de Sorokin para a sntese da histria ocidental baseia-se na ascenso e declnio cclicos de trs sistemas fundamentais de valores, subjacentes a todas as manifestaes de uma cultura. Sorokin denomina esses trs sistemas de valores de o "sensualis-ta", o "ideacional" e o "idealstico". O sistema sensualista de valores * sustenta que s a matria a realidade ltima e que os fenmenos espirituais nada mais so do que uma manifestao da matria. Professa que todos os valores ticos so relativos e que a percepo sensorial a nica fonte de conhecimento e verdade. O sistema ideacional de valores profundamente diferente. Sustenta que a verdadeira realidade se situa alm do mundo material, do domnio espiritual, e que o conhecimento pode ser obtido atravs da experincia interior. Subscreve valores ticos absolutos e padres sobre-humanos de justia, verdade e beleza. As representaes ocidentais do conceito ideacional de

realidade espiritual incluem idias platnicas, a alma e as imagens judaico-crists de Deus, mas Sorokin sublinha que idias semelhantes so expressas no Oriente, de forma diferente, nas culturas hindu, budista e taosta. * Sistema emprico, baseado nas cincias naturais. (N. do T. ) Sorokin afirma que os ritmos cclicos de interao entre expresses sensualistas e ideacionais de cultura humana tambm produzem um estgio intermdio, sintetizador o idealstico , o qual representa sua combinao harmoniosa. De acordo com as crenas idealsticas, a verdadeira realidade tem aspectos sensoriais e super-sensoriais que coexistem numa unidade que abrange tudo. Assim, os perodos culturais idealsticos tendem a alcanar as mais elevadas e mais nobres expresses dos estilos ideacionais e sensualistas, produzindo equilbrio, integrao e plena realizao esttica em arte, filosofia, cincia e tecnologia. Exemplos de tais perodos idealsticos so a Grcia dos sculos V e IV a. C. e a Renascena europia. Esses trs padres bsicos da expresso cultural humana produziram, segundo Sorokin, ciclos identificveis na civilizao ocidental, que ele plotou em dezenas de mapas de sistemas de crenas, guerras e conflitos intestinos, desenvolvimento cientfico e tecnolgico, instituies jurdicas e vrias outras instituies sociais. Ele tambm mapeou flutuaes de estilos em arquitetura, pintura, escultura e literatura. No modelo de Sorokin, a atual mudana de paradigma e o declnio da Era Industrial constituem um outro perodo de maturao e declnio da cultura sensualista. A ascenso da nossa atual era sensualista foi precedida pela ascendncia da cultura ideacional durante a ascenso do cristianismo e o desenrolar da Idade Mdia, e pelo florescimento subseqente de um estgio idealstico durante a Renascena europia. Foi o lento declnio. dessas pocas ideacional e idealstica nos sculos XV e XVI que abriu caminho para um novo perodo sensualista nos sculos XVII, XVIII e XIX, uma era marcada pelo sistema de valores do Iluminismo, pelas concepes cientficas de Descartes e Newton, e pela tecnologia da Revoluo Industrial. No sculo XX, esses valores e idias sensualistas esto novamente em declnio; assim, em 1937, com grande previso, Sorokin apontou como o crepsculo da cultura sensualista a mudana de paradigma e as convulses sociais que hoje estamos testemunhando 19. A anlise de Sorokin sugere, de modo sumamente convincente, que a crise que estamos hoje enfrentando no uma crise qualquer, mas uma grande fase de transio, como as que ocorreram em ciclos anteriores da histria humana. Essas

profundas transformaes culturais no ocorrem com muita freqncia. Segundo Lewis Mumford, podem ter sido menos de meia dzia em toda a histria da civilizao ocidental, entre elas, o surgimento da civilizao com o advento da agricultura no comeo do Neoltico, a ascenso do cristianismo na poca da queda do Imprio Romano e a transio da Idade Mdia para a Idade Cientfica20. A transformao que estamos vivenciando agora poder muito bem ser mais dramtica do que qualquer das precedentes, porque o ritmo de mudana em nosso tempo mais clere do que no passado, porque as mudanas so mais amplas, envolvendo o globo inteiro, e porque vrias transies importantes esto coincidindo. As recorrncias rtmicas e os padres de ascenso e declnio que parecem dominar a evoluo cultural humana conspiraram, de algum modo, para atingir ao mesmo tempo seus respectivos pontos de inverso. O declnio do patriarcado, o final da era do combustvel fssil e a mudana de paradigma que ocorre no crepsculo da cultura sensualista, tudo est contribuindo para o mesmo processo global. A crise atual, portanto, no apenas uma crise de indivduos, governos ou instituies sociais; uma transio de dimenses planetrias. Como indivduos, como sociedade, como civilizao e como ecossistema planetrio, estamos chegando a um momento decisivo. Transformaes culturais dessa magnitude e profundidade no podem ser evitadas. No devem ser detidas mas, pelo contrrio, bem recebidas, pois so a nica sada para que se evitem a angstia, o colapso e a mumificao. Necessitamos, a fim de nos prepararmos para a grande transio em que estamos prestes a ingressar, de um profundo reexame das principais premissas e valores de nossa cultura, de uma rejeio daqueles modelos conceituais que duraram mais do que sua utilidade justificava, e de um novo reconhecimento de alguns dos valores descartados em perodos anteriores de nossa histria cultural. Uma to profunda e completa mudana na mentalidade da cultura ocidental deve ser naturalmente acompanhada de uma igualmente profunda alterao nas relaes sociais e formas de organizao social transformaes que vo muito alm das medidas superficiais de reajustamento econmico e poltico que esto sendo consideradas pelos lderes polticos de hoje. Durante essa fase de reavaliao e renascimento cultural, ser importante minimizar as agruras, a discrdia e as rupturas que inevitavelmente ocorrem em perodos de grandes mudanas sociais, a fim de tornar a transio to indolor quanto possvel. Portanto, essencial que se v alm dos meros ataques a determinados grupos ou instituies sociais, mostrando que suas atitudes e comportamento refletem um sistema

de valores que sustenta toda a nossa cultura mas est ficando agora obsoleto. Ser necessrio reconhecer e comunicar amplamente o fato de que as nossas mudanas sociais correntes so manifestaes de uma transformao cultural muito mais ampla e inevitvel. Somente ento estaremos aptos a abordar a espcie de . transio cultural harmoniosa e pacfica descrita num dos mais antigos livros de sabedoria da humanidade, o I Ching chins, ou O livro das mutaes: "O movimento natural, surge espontaneamente. Por essa razo, a transformao do antigo torna-se fcil. O antigo descartado, e o novo introduzido. Ambas as medidas se harmonizam com o tempo, no resultando da, portanto, nenhum dano" 21. O modelo de dinmica cultural que ser usado em nosso exame da transformao social em curso baseia-se em parte nas idias de Toynbee sobre a ascenso e queda das civilizaes; na antiqssima noo de um ritmo universal fundamental, que resulta em padres culturais flutuantes; na anlise de Sorokin da flutuao dos sistemas de valores; e no ideal de transies culturais harmoniosas retratado no I Ching. A principal alternativa para esse modelo, que est relacionada com ele mas diferente em vrios aspectos, a concepo marxista da histria, conhecida como materialismo dialtico ou histrico. Segundo Marx, as razes da evoluo social no se situam numa mudana de idias ou valores, mas nos fatos econmicos e tecnolgicos. A dinmica da mudana a de uma interao "dialtica" de opostos decorrente de contradies que so intrnsecas a todas as coisas. Marx tirou essa idia da filosofia de Hegel e adaptou-a sua anlise da mudana social, afirmando que todas as transformaes que ocorrem na sociedade provm de suas contradies internas. Considerou que os princpios contraditrios da organizao social esto consubstanciados nas classes da sociedade e que a luta de classes uma conseqncia de sua interao dialtica. A concepo marxista da dinmica cultural, baseada na noo hegeliana de mudana rtmica recorrente, no difere, nesse aspecto, dos modelos de Toynbee, Sorokin e do I Ching22. Entretanto, diverge significativamente desses modelos em sua nfase no conflito e na luta, Para Marx, a luta de classes era a fora propulsora da histria. Ele sustentava que todo progresso histrico importante nasce do conflito, da luta e da revoluo violenta. O sofrimento e o sacrifcio humanos eram um preo que tinha de ser pago para se chegar mudana social. A nfase dada luta na teoria de Marx sobre a evoluo histrica paralela

nfase de Darwin na luta dentro da evoluo biolgica. De fato, diz-se que a imagem favorita de Marx sobre si mesmo era a de "o Darwin da sociologia". A idia da vida como uma luta constante pela existncia, que tanto Darwin quanto Marx ficaram devendo ao economista Thomas Malthus, foi vigorosamente promovida no sculo XIX pelos darwinistas sociais, que influenciaram, se no Marx, certamente muitos de seus seguidores23. Creio que sua viso da evoluo social enfatiza exageradamente o papel da luta e do conflito, esquecendo o fato de que toda luta ocorre na natureza dentro de um contexto mais amplo de cooperao. Embora, no passado, o conflito e a luta tenham ocasionado importantes progressos sociais, e constituam, com freqncia, uma parte essencial da dinmica de mudana, isso no significa que sejam a fonte dessa dinmica. Portanto, adotando a filosofia do I Ching ao invs da concepo marxista, acredito que o conflito deve ser minimizado em pocas de transio social. Em nosso estudo dos valores e atitudes culturais, ao longo deste livro, faremos extenso uso de uma estrutura que desenvolvida em detalhes no I Ching e constitui a prpria base do pensamento chins. Tal como a estrutura conceituai de Sorokin, baseiase na idia de contnua flutuao cclica, mas envolve a noo muito mais ampla de dois plos arquetpicos o yin e o yang que sustentam o ritmo fundamental do universo. Os filsofos chineses viam a realidade, a cuja essncia primria chamaram tao, como um processo de contnuo fluxo e mudana. Na concepo deles, todos os fenmenos que observamos participam desse processo csmico e so, pois, intrinsecamente dinmicos. A principal caracterstica do tao a natureza cclica de seu movimento incessante; a natureza, em todos os seus aspectos tanto os do mundo fsico quanto os dos domnios psicolgico e social exibe padres cclicos. Os chineses atribuem a essa idia de padres cclicos uma estrutura definida, mediante a introduo dos opostos yin e yang, os dois plos que fixam os limites para os ciclos de mudana: "Tendo yang atingido seu clmax, retira-se em favor do yin; tendo o yin atingido seu clmax, retira-se em favor do yang" 24. Na concepo chinesa, todas as manifestaes do tao so geradas pela interao dinmica desses dois plos arquetpicos, os quais esto associados a numerosas imagens de opostos colhidas na natureza e na vida social. importante, e muito difcil para ns, ocidentais, entender que esses opostos no pertencem a diferentes categorias, mas so plos extremos de um nico todo. Nada apenas yin ou apenas yang. Todos os fenmenos naturais so manifestaes de uma contnua oscilao entre os dois plos; todas as transies ocorrem gradualmente e numa progresso ininterrupta.

A ordem natural de equilbrio dinmico entre o yin e o yang. Os termos yin e yang tornaram-se recentemente muito populares no Ocidente, mas raramente so usados em nossa cultura na acepo chinesa. Quase sempre refletem preconceitos culturais que distorcem seriamente seu significado original. Uma das melhores interpretaes dada por Manfred Porkert em seu estudo abrangente da medicina chinesa 25. Segundo Porkert, o yin corresponde a tudo o que contrtil, receptivo e conservador, ao passo que o yang implica tudo o que expansivo, agressivo e exigente. Outras associaes incluem, por exemplo:

YIN TERRA LUA NOITE INVERNO UMIDADE FRESCOR INTERIOR

YANG CU SOL DIA VERO SECURA CALIDEZ SUPERFCIE

Na cultura chinesa, o yin e o yang nunca foram associados a valores morais. O que bom no yin ou yang, mas o equilbrio dinmico entre ambos, o que mau ou nocivo o desequilbrio entre os dois. Desde os tempos mais remotos da cultura chinesa, o yin est associado ao feminino e o yang, ao masculino. Essa antiga associao extremamente difcil de avaliar hoje, por causa de sua reinterpretao e distoro em subseqentes eras patriarcais. Em biologia humana, as caractersticas masculinas e femininas no esto nitidamente separadas, mas ocorrem, em propores variveis, em ambos os sexos 26. Da mesma forma, os antigos chineses acreditavam que todas as pessoas, homens ou mulheres, passam por fases yin e yang. A personalidade de cada homem e de cada mulher no uma entidade esttica, mas um fenmeno dinmico resultante da interao entre elementos masculinos e femininos. Essa concepo da natureza humana est em

contraste flagrante com a da nossa cultura patriarcal, que estabeleceu uma ordem rgida em que se supe que todos os homens so masculinos e todas as mulheres, femininas, e distorceu o significado desses termos ao conferir aos homens os papis de protagonistas e a maioria dos privilgios da sociedade. Em virtude dessa predisposio patriarcal, a freqente associao do yin com passividade e do yang com atividade particularmente perigosa. Em nossa cultura, as mulheres tm sido tradicionalmente retratadas como passivas e receptivas, e os homens, como ativos e criativos. Essas imagens remontam teoria da sexualidade de Aristteles, e tm sido usadas ao longo dos sculos como explicao "cientfica" para manter as mulheres num papel subordinado, subserviente, em relao aos homens 27. A associao do yin com passividade e do yang com atividade parece ser ainda uma outra expresso de esteretipos patriarcais, uma moderna interpretao ocidental que est longe de refletir o significado original dos termos chineses. Um dos mais importantes insights da antiga cultura chinesa foi p reconhecimento de que a atividade "o constante fluxo de transformao e mudana", como o chama Chuang-ts28 um aspecto essencial do universo. A mudana, segundo esse ponto de vista, no ocorre como conseqncia de alguma fora, mas uma tendncia natural, inata em todas as coisas e situaes. O universo est empenhado em um movimento e uma atividade incessantes, num contnuo processo csmico a que os chineses chamaram tao o "caminho". A noo de repouso absoluto, ou inatividade, estava quase inteiramente ausente da filosofia chinesa. De acordo com Hellmut Wilhelm, um dos principais intrpretes ocidentais do I Ching, "o estado de imobilidade absoluta uma abstrao tal que os chineses (... ) no podiam conceb-lo"29. O termo wu-wei freqentemente usado na filosofia taosta e significa literalmente "no-ao". No Ocidente, o termo usualmente interpretado como referncia passividade. Isso inteiramente errado. O que os chineses entendem por wu-wei no a absteno de atividade, mas a absteno de uma certa espcie de atividade, a qual no est em harmonia com o processo csmico em curso. O eminente sinologista Joseph Needham define wu-wei como "absteno de ao contrria natureza" e justifica sua traduo com uma citao de Chuang-ts: "A no-ao no significa nada fazer e manter o silncio. Que se permita a todas as coisas fazerem o que elas naturalmente fazem, de modo que sua natureza fique satisfeita" 30. Se uma pessoa se abstm de agir contra a natureza ou, como diz Needham, de "ir contra a essncia das coisas", ela est em harmonia com o tao e, portanto, suas aes sero bem sucedidas. Este o significado da

afirmao aparentemente desconcertante de Lao-ts: "Pela no-ao tudo pode ser feito"31. Na concepo chinesa, portanto, parecem existir duas espcies de atividade: uma, em harmonia com a natureza e outra, contrria ao fluxo natural das coisas. No alimentada a idia de passividade, a ausncia completa de qualquer ao. Logo, a freqente associao ocidental do yin e do yang com os comportamentos passivo e ativo, respectivamente, no parece compatvel com o pensamento chins. Em vista das imagens originais associadas aos dois plos arquetpicos, diramos que o yin pode ser interpretado como correspondente atividade receptiva, consolidadora, cooperativa; o yang, ativivalores e atitudes culturais. Para os nossos propsitos, sero sumamente teis as seguintes associaes de yin e yang: YIN FEMININO CONTRTIL CONSERVADOR RECEPTIVO COOPERATIVO INTUITIVO SINTTICO YANG MASCULINO EXPANSIVO EXIGENTE AGRESSIVO COMPETITIVO RACIONAL ANALTICO

Se atentarmos para esta lista de opostos, fcil ver que nossa sociedade tem favorecido sistematicamente o yang em detrimento do yin o conhecimento racional prevalece sobre a sabedoria intuitiva, a cincia sobre a religio, a competio sobre a cooperao, a explorao de recursos naturais em vez da conservao, e assim por diante. Essa nfase, sustentada pelo sistema patriarcal e encorajada pelo predomnio da cultura sensualista durante os trs ltimos sculos, acarretou um profundo desequilbrio cultural que est na prpria raiz de nossa atual crise um desequilbrio em nossos pensamentos e sentimentos, em nossos valores e atitudes e em nossas estruturas sociais e polticas. Ao descrever as vrias manifestaes desse desequilbrio cultural, dedicarei especial ateno aos seus efeitos sobre a sade, e quero usar o conceito de sade numa acepo muito ampla, incluindo nele no s a sade individual mas tambm a sade social e ecolgica. Esses trs nveis de sade esto intimamente relacionados, e nossa

atual crise constitui uma sria ameaa aos trs. Ela ameaa a sade dos indivduos, da sociedade e dos ecossistemas de que somos parte integrante. Tentarei, ao longo deste livro, mostrar como a preferncia flagrantemente sistemtica por valores, atitudes e padres de comportamento yang resultou num sistema de instituies acadmicas, polticas e econmicas que se apiam mutuamente, e que acabaram virtualmente cegas para o perigoso desequilbrio do sistema de valo-__res que motiva suas atividades. De acordo com a sabedoria chinesa, nenhum dos valores defendidos pela nossa cultura intrinsecamente mau; no entanto, ao isol-los de seus opostos polares, ao focalizar o yang e investi-lo de virtude moral e de poder poltico, ocasionamos o atual e melanclico estado de coisas. Nossa cultura orgulha-se de ser cientfica; nossa poca apontada como a Era Cientfica. Ela dominada pelo pensamento racional, e o conhecimento cientfico freqentemente considerado a nica espcie aceitvel de conhecimento. No se reconhece geralmente que possa existir um conhecimento (ou conscincia) intuitivo, o qual to vlido e seguro quanto o outro. Essa atitude, conhecida como cientificismo, muito difundida, e impregna nosso sistema educacional e todas as outras instituies sociais e polticas. Quando o presidente Lyndon Johnson necessitou de conselhos acerca da guerra no Vietnam, seu governo recorreu a fsicos tericos no porque eles fossem especialistas em mtodos de guerra eletrnica, mas por serem considerados os sumos sacerdotes da cincia, os guardies do conhecimento supremo. Podemos agora dizer, em retrospecto, que Johnson teria sido muito mais bem servido se procurasse os conselhos de alguns poetas. Mas isso, naturalmente, era e ainda impensvel. A nfase dada ao pensamento racional em nossa cultura est sintetizada no clebre enunciado de Descartes, "Cogito, ergo sum" "Penso, logo existo" , o que encorajou eficazmente os indivduos ocidentais a equipararem sua identidade com sua mente racional e no com seu organismo total. Veremos que os efeitos dessa diviso entre mente e corpo so sentidos em toda a nossa cultura. Na medida em que nos retiramos para nossas mentes, esquecemos como "pensar" com nossos corpos, de que modo us-los como agentes do conhecimento. Assim fazendo, tambm nos desligamos do nosso meio ambiente natural e esquecemos como comungar e cooperar com sua rica variedade de organismos vivos. A diviso entre esprito e matria levou concepo do universo como um sistema mecnico que consiste em objetos separados, os quais, por sua vez, foram reduzidos a seus componentes materiais fundamentais cujas propriedades e interaes,

acredita-se, determinam completamente todos os fenmenos naturais. Essa concepo cartesiana da natureza foi, alm disso, estendida aos organismos vivos, considerados mquinas constitudas de peas separadas. Veremos que tal concepo mecanicista do mundo ainda est na base da maioria de nossas cincias e continua a exercer uma enorme influncia em muitos aspectos de nossa vida. Levou bem conhecida fragmentao em nossas disciplinas acadmicas e entidades governamentais e serviu como fundamento lgico para o tratamento do meio ambiente natural como se ele fosse formado de peas separadas a serem exploradas por diferentes grupos de interesses. A explorao da natureza tem andado de mos dadas com a das mulheres, que tm sido identificadas com a natureza ao longo dos tempos. Desde as mais remotas pocas, a natureza e especialmente a terra tem sido vista como uma nutriente e benvola me, mas tambm como uma fmea selvagem e incontrolvel. Em eras prpatriarcais, seus numerosos aspectos foram identificados com as mltiplas manifestaes da Deusa. Sob o patriarcado, a imagem benigna da natureza converteu-se numa imagem de passividade, ao passo que a viso da natureza como selvagem e perigosa deu origem idia de que ela tinha de ser dominada pelo homem. Ao mesmo tempo, as mulheres foram retratadas como passivas e subservientes ao homem. Com o surgimento da cincia newtoniana, finalmente, a natureza tornou-se um sistema mecnico que podia ser manipulado e explorado, o que coincidiu com a manipulao e a explorao das mulheres. Assim, a antiga associao de mulher e natureza interliga a histria das mulheres e a do meio ambiente e a fonte de um parentesco natural entre feminismo e ecologia que est se manifestando hoje em grau crescente. Eis as palavras de Carolyn Merchant, historiadora na rea das cincias na Universidade da Califrnia, Berkeley: "Ao investigarmos as razes de nosso atual dilema ambiental e suas conexes com a cincia, a tecnologia e a economia, cumpre-nos reexaminar a formao de uma viso do mundo e de uma cincia que, ao reconceituar a realidade mais como uma mquina do que como um organismo vivo, sancionou a dominao da natureza e das mulheres. Tm que ser reavaliadas as contribuies de tais 'patriarcas' da cincia moderna como Francis Bacon, William Harvey, Ren Descartes, Thomas Hobbes e Isaac Newton" 32. A noo do homem como dominador da natureza e da mulher e a crena no papel superior da mente racional foram apoiadas e encorajadas pela tradio judaicocrist, que adere imagem de um deus masculino, personificao da razo suprema e fonte do poder ltimo, que governa o mundo a partir do alto e lhe impe sua lei divina. As

leis da natureza investigadas pelos cientistas eram vistas como reflexos dessa lei divina, originada no esprito de Deus. Hoje, est ficando cada vez mais evidente que a excessiva nfase no mtodo cientfico e no pensamento racional, analtico, levou a atitudes profundamente antiecolgicas. Na verdade, a compreenso dos ecossistemas dificultada pela prpria natureza da mente racional. O pensamento racional linear, ao passo que a conscincia ecolgica decorre de uma intuio de sistemas no-lineares. Uma das coisas mais difceis de serem entendidas pelas pessoas em nossa cultura o fato de que se fazemos algo que bom, continuar a faz-lo no ser necessariamente melhor. Essa , em minha opinio, a essncia do pensamento ecolgico. Os ecossistemas sustentam-se num equilbrio dinmico baseado em ciclos e flutuaes, que so processos no-lineares. Os empreendimentos lineares, como o crescimento econmico e tecnolgico indefinido ou, para dar um exemplo mais especfico, a armazenagem de lixo radiativo durante grandes perodos de tempo , interferiro necessariamente no equilbrio natural e, mais cedo ou mais tarde, causaro graves danos. Portanto, a conscincia ecolgica somente surgir quando aliarmos ao nosso conhecimento racional uma intuio da natureza no-linear de nosso meio ambiente. Tal sabedoria intuitiva caracterstica das culturas tradicionais, no-letradas, especialmente as culturas dos ndios americanos, em que a vida foi organizada em torno de uma conscincia altamente refinada do meio ambiente. Na corrente principal de nossa cultura, por outro lado, foi negligenciado o cultivo da sabedoria intuitiva. Isso pode estar relacionado com o fato de que, em nossa evoluo, ocorreu uma crescente separao entre os aspectos biolgicos e culturais da natureza humana. A evoluo biolgica da espcie humana parou h uns 50 000 anos. Da em diante, a evoluo processou-se no mais gentica, mas social e culturalmente, enquanto o corpo e o crebro humanos permaneceram essencialmente os mesmos em estrutura e tamanho33. Em nossa civilizao, modificamos a tal ponto nosso meio ambiente durante essa evoluo cultural que perdemos o contato com nossa base biolgica e ecolgica mais do que qualquer outra cultura e qualquer outra civilizao no passado. Essa separao manifesta-se numa flagrante disparidade entre o desenvolvimento do poder intelectual, o conhecimento cientfico e as qualificaes tecnolgicas, por um lado, e a sabedoria, a espiritualidade e a tica, por outro. O conhecimento cientfico e tecnolgico cresceu enormemente depois que os gregos se lanaram na aventura cientfica no sculo VI a. C. Mas durante estes 25 sculos no houve virtualmente qualquer progresso na conduta das questes sociais. A

espiritualidade e os padres morais de Lao-ts e Buda, que tambm viveram no sculo VI a. C, no eram claramente inferiores aos nossos. Nosso progresso, portanto, foi uma questo predominantemente racional e intelectual, e essa evoluo unilateral atingiu agora um estgio alarmante, uma situao to paradoxal que beira a insanidade. Podemos controlar os pousos suaves de espaonaves em planetas distantes, mas somos incapazes de controlar a fumaa poluente expelida por nossos automveis e nossas fbricas. Propomos a instalao de comunidades utpicas em gigantescas colnias espaciais, mas no podemos administrar nossas cidades. O mundo dos negcios faz-nos acreditar que o fato de gigantescas indstrias produzirem alimentos especiais para cachorros e cosmticos um sinal de nosso elevado padro de vida, enquanto os economistas tentam dizer-nos que no dispomos de recursos para enfrentar os custos de uma adequada assistncia sade, os gastos com educao ou transportes pblicos. A cincia mdica e a farmacologia esto pondo em perigo nossa sade, e o Departamento de Defesa tornou-se a maior ameaa segurana nacional. So esses os resultados da exagerada nfase dada ao nosso lado yang, ou masculino conhecimento racional, anlise, expanso , e da negligncia a que ficou sujeito o nosso lado yin, ou feminino sabedoria intuitiva, sntese e conscincia ecolgica. A terminologia yin/yang especialmente til na anlise do desequilbrio cultural que adota um amplo ponto de vista ecolgico, um ponto de vista que tambm poderia ser chamado de concepo sistmica, no sentido da teoria geral dos sistemas34. Essa teoria considera o mundo em funo da inter-relao e interdependncia de todos os fenmenos; nessa estrutura, chama-se sistema a um todo integrado cujas propriedades no podem ser reduzidas s de suas partes. Organismos vivos, sociedades e ecossistemas so sistemas. fascinante perceber que a antiga idia chinesa do yin e do yang est relacionada com uma propriedade essencial dos sistemas naturais que s recentemente comeou a ser estudada pela cincia ocidental. Os sistemas vivos so organizados de tal modo que formam estruturas de mltiplos nveis, cada nvel dividido em subsistemas, sendo cada um deles um "todo" em relao a suas partes, e uma "parte" relativamente a "todos" maiores. Assim, as molculas combinam-se para formar as organelas, as quais, por seu turno, se combinam para formar as clulas. As clulas formam tecidos e rgos, os quais formam sistemas maiores, como o aparelho digestivo ou o sistema nervoso. Estes, finalmente, combinam-se para formar a mulher ou o homem vivos; e a "ordem estratificada" * no termina a. As pessoas formam

famlias, tribos, sociedades, naes. Todas essas entidades das molculas aos seres humanos e destes aos sistemas sociais podem ser consideradas "todos" no sentido de serem estruturas integradas, e tambm "partes" de "todos" maiores, em nveis superiores de complexidade. De fato, veremos que "partes" e "todos", num sentido absoluto, no existem. * Ver captulo 9. Arthur Koestler criou a palavra "holons" para designar esses subsistemas que so, simultaneamente, "todos" e "partes", e enfatizou que cada holon tem duas tendncias opostas: uma tendncia integrativa, que funciona como parte do todo maior, e uma tendncia auto-afirmativa, que preserva sua autonomia individual35. Num sistema biolgico ou social, cada holon deve afirmar sua individualidade a fim de manter a ordem estratificada do sistema, mas tambm deve submeter-se s exigncias do todo a fim de tornar o sistema vivel. Essas duas tendncias so opostas mas complementares. Num sistema saudvel um indivduo, uma sociedade ou um ecossistema existe equilbrio entre integrao e auto-afirmao. Esse equilbrio no esttico, mas consiste numa, interao dinmica entre duas tendncias complementares, o que torna todo o sistema flexvel e aberto mudana. A relao entre a moderna teoria geral dos sistemas e o antigo pensamento chins torna-se agora evidente. Os sbios chineses parecem ter reconhecido a polaridade bsica caracterstica dos sistemas vivos. A auto-afirmao conseguida atravs do comportamento yang: exigente, agressivo, competitivo, expansivo, e no tocante ao comportamento humano atravs do pensamento linear, analtico. A integrao proporcionada pelo comportamento yin: receptivo, cooperativo, intuitivo e consciente do meio ambiente. As tendncias yin e yang, integrativas e auto-afirmativas, so ambas necessrias obteno de relaes sociais e ecolgicas harmoniosas. A auto-afirmao excessiva manifesta-se como poder, controle e dominao de outros pela fora; e so esses, de fato, os padres predominantes em nossa sociedade. O poder poltico e econmico exercido por uma classe organizada dominante; as hierarquias sociais so mantidas de acordo com orientaes racistas e sexistas, e a violao tornou-se uma metfora central de nossa cultura violao de mulheres, de grupos minoritrios e da prpria terra. Nossa cincia e nossa tecnologia baseiam-se na crena seiscentista de que uma compreenso da natureza implica sua dominao pelo

homem. Combinada com o modelo mecanicista do universo, que tambm se originou no sculo XVII, e com a excessiva nfase dada ao pensamento linear, essa atitude produziu uma tecnologia que mals e inumana; uma tecnologia em que o habitat natural, orgnico, de seres humanos complexos substitudo por um meio ambiente simplificado, sinttico e pr-fabricado 36. Essa tecnologia tem por meta o controle, a produo em massa e a padronizao, e est sujeita, a maior parte do tempo, a uma administrao centralizada que busca a iluso de um crescimento ilimitado. Assim, a tendncia auto-afirmativa continua crescendo, e, com ela, a exigncia de submisso, que no o complemento da auto-afirmao, mas o reverso desse fenmeno. Enquanto o comportamento autoafirmativo apresentado como o ideal para os homens, espera-se das mulheres o comportamento submisso, mas tambm se espera esse comportamento submisso dos empregados e executivos, de quem se exige que neguem suas identidades individuais e adotem a identidade e os padres de comportamento do grupo. Situao semelhante existe em nosso sistema educacional, no qual a auto-afirmao recompensada no que se refere ao comportamento competitivo mas desencorajada quando se expressa em termos de idias originais e questionamento da autoridade. A promoo do comportamento competitivo em detrimento da cooperao uma das principais manifestaes da tendncia auto-afirmativa em nossa sociedade. Tem suas razes na concepo errnea da natureza, defendida pelos darwinistas sociais do sculo XIX, que acreditavam que a vida em sociedade deve ser uma luta pela existncia regida pela "sobrevivncia dos mais aptos". Assim, a competio passou a ser vista como a fora impulsora da economia, a "abordagem agressiva" tornou-se um ideal no mundo dos negcios, e esse comportamento combinou-se com a explorao dos recursos naturais a fim de criar padres de consumo competitivo. evidente que o comportamento agressivo, competitivo, se fosse absolutamente o nico, tornaria a vida impossvel. Mesmo os indivduos mais ambiciosos, mais orientados para a realizao de determinadas metas, necessitam de apoio compreensivo, contato humano, e de momentos de espontaneidade e descontrao. Em, nossa cultura, espera-se e, com freqncia, fora-se a mulher a satisfazer essas necessidades. Assim, secretrias, recepcionistas, aeromoas, enfermeiras e donas-de-casa, executam tarefas que tornam a vida mais confortvel e criam a atmosfera em que os competidores podem triunfar. Elas alegram seus patres e fazem cafezinho para eles; ajudam a apaziguar conflitos no escritrio; so as primeiras a receber visitantes e a entret-los com conversas

amenas. Nos consultrios mdicos e hospitais, so as mulheres que estabelecem contato humano com pacientes que iniciam o processo de cura. Nos departamentos de fsica, as mulheres fazem ch e servem bolinhos, em torno dos quais os homens discutem suas teorias. Todos esses servios envolvem atividades yin, ou integrativas, e como tm um status inferior, em nosso sistema de valores, ao das atividades yang, ou auto-afirmativas, quem as desempenha recebe salrios inferiores. Na verdade, muitas dessas mulheres nem sequer so pagas, como as donas-de-casa e as mes. Por esta breve panormica de atitudes e valores culturais, podemos ver que nossa cultura promoveu e recompensou sistematicamente os elementos yang, masculinos ou auto-afirmativos da natureza humana, e desprezou os aspectos yin, femininos ou intuitivos. Hoje, porm, estamos testemunhando o comeo de um grande movimento evolutivo. O momento decisivo que estamos prestes a atingir marca, entre muitas outras coisas, uma inverso na flutuao entre o yin e o yang. Como diz o texto chins: "O yang, tendo atingido seu clmax, retira-se em favor do yin". As dcadas de 60 e 70 geraram uma srie de movimentos filosficos, espirituais e polticos que parecem todos caminhar na mesma direo. Eles contrariam a excessiva nfase nas atitudes e valores yang e tentam restabelecer um equilbrio entre os aspectos masculino e feminino da natureza humana. H uma preocupao crescente com a ecologia, expressa por movimentos de cidados que esto se organizando em torno de questes sociais e ambientais, apontando os limites para o crescimento, advogando uma nova tica ecolgica e desenvolvendo apropriadas tecnologias "brandas" (soft). Na arena poltica, o movimento antinuclear est combatendo o crescimento extremo de nossa tecnologia "machista", auto-afirmativa, e, assim fazendo, provvel que se converta numa das mais poderosas foras polticas desta dcada. Ao mesmo tempo, observa-se o comeo de uma significativa mudana de valores passemos da valorizao das empresas e instituies em grande escala para a noo de que "o negcio ser pequeno" (small is beautiful), do consumo material simplicidade voluntria, do crescimento econmico e tecnolgico para o crescimento e o desenvolvimento interiores. Esses novos valores esto sendo promovidos pelo movimento do "potencial humano", pelo movimento da "sade holstica" e vrios movimentos espirituais. Talvez o mais importante em tudo isso seja o fato de o antigo sistema de valores estar sendo desafiado e profundamente modificado pelo surgimento da conscincia feminista que se originou no movimento das mulheres. Esses vrios movimentos formam o que o historiador cultural Theodore Roszak denominou contracultura37. At agora, muitos deles vm atuando separadamente e ainda

no se deram conta de como seus objetivos se inter-relacionam. Assim, o movimento do "potencial humano" e o movimento da "sade holstica" carecem freqentemente de uma perspectiva social, ao passo que os movimentos espirituais tendem a ser falhos em relao conscincia ecolgica, com gurus orientais que ostentam smbolos; ocidentais de status capitalistas e se dedicam construo de seus imprios econmicos. Entretanto, alguns movimentos comearam recentemente a formar coalizes. Como era de se esperar, o movimento ecolgico e o movimento feminista esto juntando foras em numerosas questes, notadamente a energia nuclear, e grupos ambientais, grupos de consumidores e movimentos de libertao tnica esto comeando a estabelecer contatos. de se prever que, uma vez reconhecido o carter comum de seus objetivos, todos esses movimentos passem a fluir juntos e formem uma poderosa fora de transformao social. Chamarei a essa fora de cultura nascente, de acordo com o modelo persuasivo de Toynbee de dinmica cultural: "Durante a desintegrao de uma civilizao, duas peas separadas, com diferentes enredos, so representadas simultaneamente. Enquanto uma imutvel minoria dominante est perpetuamente repetindo o espetculo de sua prpria derrota, novos desafios esto constantemente suscitando novas respostas criativas das minorias recmrecrutadas, que proclamam seu prprio poder criativo mos-trando-se progressivamente altura da situao. O drama do desafio-e-resposta continua sendo representado, mas em novas circunstncias e com novos atores" 38. Dessa ampla perspectiva histrica, assiste-se chegada e partida rtmica de culturas, e a preservao de tradies culturais nem sempre constitui o objetivo mais desejvel. O que temos de fazer para minimizar as agruras e provaes da mudana inevitvel reconhecer o mais claramente possvel as novas condies e transformar nossas vidas e nossas instituies sociais de acordo com elas. Quero salientar que os fsicos podem desempenhar um importante papel nesse processo. Desde o sculo XVII, a fsica tem sido o exemplo brilhante de uma cincia "exata", servindo como modelo para todas as outras cincias. Durante dois sculos e meio, os fsicos se utilizaram de uma viso mecanicista do mundo para desenvolver e refinar a estrutura conceituai do que conhecido como fsica clssica. Basearam suas idias na teoria matemtica de Isaac Newton, na filosofia de Ren Descartes e na metodologia cientfica defendida por Francis Bacon, e desenvolveram-nas de acordo com a concepo geral de realidade predominante nos sculos XVII, XVIII e XIX. Pensava-se que a matria era a base de toda a existncia, e o mundo material era visto como uma profuso de objetos separados,

montados numa gigantesca mquina. Tal como as mquinas construdas por seres humanos, achava-se que a mquina csmica tambm consistia em peas elementares. Por conseguinte, acreditava-se que os fenmenos complexos podiam ser sempre entendidos desde que se os reduzisse a seus componentes bsicos e se investigasse os mecanismos atravs dos quais esses componentes interagem. Essa atitude, conhecida como reducionismo, ficou to profundamente arraigada em nossa cultura, que tem sido freqentemente identificada com o mtodo cientfico. As outras cincias aceitaram os pontos de vista mecanicista e reducionista da fsica clssica como a descrio correta da realidade, adotando-os como modelos para suas prprias teorias. Os psiclogos, socilogos e economistas, ao tentarem ser cientficos, sempre se voltaram naturalmente para os conceitos bsicos da fsica newtoniana. No sculo XX, entretanto, a fsica passou por vrias revolues conceituais que revelam claramente as limitaes da viso de mundo mecanicista e levam a uma viso orgnica, ecolgica, que mostra grandes semelhanas com as vises dos msticos de todas as pocas e tradies. O universo deixou de ser visto como uma mquina, composta de uma profuso de objetos distintos, para apresentar-se agora como um todo harmonioso e indivisvel, uma rede de reaes dinmicas que incluem o observador humano e sua conscincia de um modo essencial. O fato de a fsica moderna, a manifestao de uma extrema especializao da mente racional, estar agora estabelecendo contato com o misticismo, essncia da religio e manifestao de uma extrema especializao da mente intuitiva, mostra de uma bela forma a unidade e a natureza complementar dos modos racional e intuitivo de conscincia, do yang e do yin. Portanto, os fsicos podem fornecer o background cientfico para as mudanas de atitudes e de valores de que nossa sociedade to urgentemente necessita. Numa cultura dominada pela cincia, ser muito mais fcil convencer nossas instituies sociais da necessidade de mudanas fundamentais se pudermos apoiar nossos argumentos em uma base cientfica. justamente nesse particular que os fsicos podem hoje atuar. A fsica moderna pode mostrar s outras cincias que o pensamento cientfico no tem que ser necessariamente reducionista e mecanicista, que as concepes holsticas e ecolgicas tambm so cientificamente vlidas. Uma das principais lies que os fsicos tiveram que aprender neste sculo foi o fato de que todos os conceitos e teorias que usamos para descrever a natureza so limitados. Em virtude das limitaes essenciais da mente racional, temos de aceitar o fato de que, como disse Werner Heisenberg, "toda palavra e todo conceito, por mais claros

que possam parecer, tm apenas uma limitada gama de aplicabilidade" 39. As teorias cientficas no estaro nunca aptas a fornecer uma descrio completa e definitiva da realidade. Sero sempre aproximaes da verdadeira natureza das coisas. Em termos claros: os cientistas no lidam com a verdade; eles lidam com descries da realidade limitadas e aproximadas. No incio do sculo, quando os fsicos estenderam o alcance de suas investigaes aos domnios dos fenmenos atmicos e subatmicos, tomaram subitamente conscincia das limitaes de suas idias clssicas e tiveram que rever radicalmente muitos de seus conceitos bsicos acerca da realidade. A experincia de terem de questionar a prpria base de sua estrutura conceituai e de se verem forados a aceitar profundas modificaes de suas mais caras idias foi marcante e, freqentemente, dolorosa para esses cientistas, sobretudo durante as primeiras trs dcadas do sculo, mas foi recompensada por insights profundos da natureza da matria e da mente humana. Acredito que essa experincia pode servir como lio til para outros cientistas, muitos dos quais chegaram agora aos limites da viso de mundo cartesiana em seus respectivos campos. Tal como os fsicos, eles tambm tero que aceitar o fato de que devemos modificar ou mesmo abandonar alguns de nossos conceitos ao ampliarmos a esfera de nossa experincia ou de nosso campo de estudo. Os captulos seguintes mostraro como as cincias naturais, assim como as humanas e as sociais, tomaram por modelo a fsica newtoniana clssica. Agora que os fsicos ultrapassaram largamente os limites desse modelo, chegado o momento de as outras cincias ampliarem suas filosofias subjacentes. Entre as cincias que foram influenciadas pela viso de mundo cartesiana e pela fsica newtoniana, e que tero de mudar para serem coerentes com as concepes da fsica moderna, concentrar-nos-emos naquelas que se ocupam da sade, em sua mais ampla acepo ecolgica: da biologia e da cincia mdica psicologia e psicoterapia, sociologia, economia e cincia poltica. Em todos esses campos, as limitaes da viso de mundo cartesiana, clssica, esto ficando agora evidentes. Para transcender os modelos clssicos, os cientistas tero de ir muito alm da abordagem mecanicista e reducionista, tal como se fez na fsica, e adotar enfoques holsticos e ecolgicos. Embora suas teorias precisem ser compatveis com as da fsica moderna, os conceitos da fsica no serviro sempre como modelos apropriados para as outras cincias. Entretanto, podero ser muito teis. Os cientistas no tero por que relutar em adotar uma estrutura holstica,

como freqentemente o fazem hoje em dia, por temor de serem anticientficos. A fsica moderna pode mostrar-lhes que tal estrutura no s cientfica, mas est de acordo com as mais avanadas teorias cientficas sobre a realidade fsica.

II Os dois paradigmas

2. A mquina do mundo newtoniana A viso d mundo e o sistema de valores que esto na base de nossa cultura, e que tm de ser cuidadosamente reexaminados, foram formulados em suas linhas essenciais nos sculos XVI e XVII. Entre 1500 e 1700 houve uma mudana drstica na maneira como as pessoas descreviam o mundo e em todo o seu modo de pensar. A nova mentalidade e a nova percepo do cosmo propiciaram nossa civilizao ocidental aqueles aspectos que so caractersticos da era moderna. Eles tornaram-se a base do paradigma que dominou a nossa cultura nos ltimos trezentos anos e est agora prestes a mudar. Antes de 1500, a viso do mundo dominante na Europa, assim como na maioria das outras civilizaes, era orgnica. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e vivenciavam a natureza em termos de relaes orgnicas, caracterizadas pela interdependncia dos fenmenos espirituais e materiais e pela subordinao das necessidades individuais s da comunidade. A estrutura cientfica dessa viso de mundo orgnica assentava em duas autoridades: Aristteles e a Igreja. No sculo XIII, Toms de Aquino combinou o abrangente sistema da natureza de Aristteles com a teologia e a

tica crists e, assim fazendo, estabeleceu a estrutura conceituai que permaneceu inconteste durante toda a Idade Mdia. A natureza da cincia medieval era muito diferente daquela da cincia contempornea. Baseava-se na razo e na f, e sua principal finalidade era compreender o significado das coisas e no exercer a predio ou o controle. Os cientistas medievais, investigando os desgnios subjacentes nos vrios fenmenos naturais, consideravam do mais alto significado as questes referentes a Deus, alma humana e tica. A perspectiva medieval mudou radicalmente nos sculos XVI e XVII. A noo de um universo orgnico, vivo e espiritual foi substituda pela noo do mundo como se ele fosse uma mquina, e a mquina do mundo converteu-se na metfora dominante da era moderna. Esse desenvolvimento foi ocasionado por mudanas revolucionrias na fsica e na astronomia, culminando nas realizaes de Coprnico, Galileu e Newton. A cincia do sculo XVII baseou-se num novo mtodo de investigao, defendido vigorosamente por Francis Bacon, o qual envolvia a descrio matemtica da natureza e o mtodo analtico de raciocnio concebido pelo gnio de Descartes. Reconhecendo o papel crucial da cincia na concretizao dessas importantes mudanas, os historiadores chamaram os sculos XVI e XVII de a Idade da Revoluo Cientfica. A revoluo cientfica comeou com Nicolau Coprnico, que se ops concepo geocntrica de Ptolomeu e da Bblia, que tinha sido aceita como dogma por mais de mil anos. Depois de Coprnico, a Terra deixou de ser o centro do universo para tornar-se meramente um dos muitos planetas que circundam um astro secundrio nas fronteiras da galxia; e ao homem foi tirada sua orgulhosa posio de figura central da criao de Deus. Coprnico estava plenamente cnscio de que sua teoria ofenderia profundamente a conscincia religiosa de seu tempo; ele retardou sua publicao at 1543, ano de sua morte, e, mesmo assim, apresentou a concepo heliocntrica como mera hiptese. A Coprnico seguiu-se Johannes Kepler, cientista e mstico que se empenhava em descobrir a harmonia das esferas, e terminou por formular, atravs de um trabalho laborioso com tabelas astronmicas, suas clebres leis empricas do movimento planetrio, as quais vieram corroborar o sistema de Coprnico. Mas a verdadeira mudana na opinio cientfica foi provocada por Galileu Galilei, que j era famoso por ter descoberto as leis da queda dos corpos quando voltou sua ateno para a astronomia. Ao dirigir o recm-inventado telescpio para os cus e aplicar seu extraordinrio talento na observao cientfica dos fenmenos celestes, Galileu fez com que a velha cosmologia

fosse superada, sem deixar margem para dvidas, e estabeleceu a hiptese de Coprnico como teoria cientfica vlida. O papel de Galileu na revoluo cientfica supera largamente suas realizaes no campo da astronomia, embora estas sejam mais conhecidas por causa de seu conflito com a Igreja. Galileu foi o primeiro a combinar a experimentao cientfica com o uso da linguagem matemtica para formular as leis da natureza por ele descobertas; , portanto, considerado o pai da cincia moderna. "A filosofia"*, acreditava ele, "est escrita nesse grande livro que permanece sempre aberto diante de nossos olhos; mas no podemos entend-la se no aprendermos primeiro a linguagem e os caracteres em que ela foi escrita. Essa linguagem a matemtica, e os caracteres so tringulos, crculos e outras figuras geomtricas. " Os dois aspectos pioneiros do trabalho de Galileu a abordagem emprica e o uso de uma descrio matemtica da natureza tornaram-se as caractersticas dominantes da cincia no sculo XVII e subsistiram como importantes critrios das teorias cientficas at hoje. * Da Idade Mdia at o sculo XIX, o termo "filosofia" foi usado numa acepo muito ampla e inclua o que hoje chamamos "cincia". (N. do A. ) A fim de possibilitar aos cientistas descreverem matematicamente a natureza, Galileu postulou que eles deveriam restringir-se ao estudo das propriedades essenciais dos corpos materiais formas, quantidades e movimento , as quais podiam ser medidas e qualificadas. Outras propriedades, como som, cor, sabor ou cheiro, eram meramente projees mentais subjetivas que deveriam ser excludas do domnio da cincia2. A estratgia de Galileu de dirigir a ateno do cientista para as propriedades quantificveis da matria foi extremamente bem sucedida em toda a cincia moderna, mas tambm exigiu um pesado nus, como nos recorda enfaticamente o psiquiatra R. D. Laing: "Perderam-se a viso, o som, o gosto, o tato e o olfato, e com eles foram-se tambm a sensibilidade esttica e tica, os valores, a qualidade, a forma; todos os sentimentos, motivos, intenes, a alma, a conscincia, o esprito. A experincia como tal foi expulsa do domnio do discurso cientfico"3. Segundo Laing, nada mudou mais o nosso mundo nos ltimos quatrocentos anos do que a obsesso dos cientistas pela medio e pela quantificao. Enquanto Galileu realizava engenhosos experimentos na Itlia, Francis Bacon descrevia explicitamente na Inglaterra o mtodo emprico da cincia. Bacon foi o primeiro

a formular uma teoria clara do procedimento indutivo realizar experimentos e extrair deles concluses gerais, a serem testadas por novos experimentos , e tornou-se extremamente influente ao defender com vigor o novo mtodo. Atacou frontalmente as escolas tradicionais de pensamento e desenvolveu uma verdadeira paixo pela experimentao cientfica. O "esprito baconiano" mudou profundamente a natureza e o objetivo da investigao cientfica. Desde a Antigidade, os objetivos da cincia tinham sido a sabedoria, a compreenso da ordem natural e a vida em harmonia com ela. A cincia era realizada "para maior glria de Deus" ou, como diziam os chineses, para "acompanhar a ordem natural" e "fluir na corrente do tao"4. Esses eram propsitos yin, ou integrativos; a atitude bsica dos cientistas era ecolgica, como diramos na linguagem de hoje. No sculo XVII, essa atitude inverteu-se totalmente; passou de yin par