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255 CAPÍTULO 14 FÍSTULA VESICOVAGINAL RICARDO JOSÉ DE SOUZA FABRICIO BORGES CARRERETTE Introdução As fístulas urogenitais são um grave problema de saúde em todo o mundo. Ocorre com me- nos frequência nos países desenvolvidos. Nestes locais, a origem é principalmente ginecológica e pós-radioterapia, já nos países em desenvolvimento ocorrem com grande frequência e as causas são principalmente obstétricas. Não existe uniformização da classificação das fístulas, entretanto podemos de forma simpli- ficada classificá-las em simples, usualmente pequenas (<0,5cm) e sem irradiação prévia e com- plexas, consideradas após falha de tratamento, grandes (>2,5cm), resultado de doenças crônicas ou irradiação pélvica. Alguns autores consideram fístulas entre 0,5 e 2,5 cm como complexas. Elas também podem ser congênitas ou adquiridas. As primeiras são extremamente raras, enquanto as últimas são, na sua grande maioria, de causa pós cirúrgica, ginecológica, obstétrica e pós-radiote- rapia (Stamatakos et al., 2014). As fístulas podem se originar pós-trauma, pós-cirúrgia (histerectomia abdominal e vaginal), cirurgias para cura de incontinência urinária, biópsias de vagina e bexiga, colporrafia anterior, obs- tétrica, cirurgia colorretal, irradiação pélvica, inflamação e infecção (Ghoniem e Warda, 2014). Nos países desenvolvidos as cirurgias causam 83,2% das fístulas, histerectomia em 62,7% e cirurgia colorretal e urológica em 12,7%. Radioterapia é responsável por 13%. Em países em desenvolvimento a causa obstétrica gira em torno de 95,2%, sendo 9,5% pós- -cesariana. Diagnóstico A apresentação clássica é a perda de urina contínua, geralmente iniciada após alguns dos eventos citados anteriormente, salvo as fístulas pós-irradiação, que podem surgir até 20 anos após o tratamento (Stamatakos et al., 2014).

FÍSTULA VESICOVAGINAL · mente quando há necessidade de reimplante de ureter, ampliação vesical, vagina estreita ou pro-funda, necessidade de grande mobilização vesical ou envolvimento

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CAPÍTULO 14

FÍSTULA VESICOVAGINALRICARDO JOSÉ DE SOUZA

FABRICIO BORGES CARRERETTE

Introdução

As fístulas urogenitais são um grave problema de saúde em todo o mundo. Ocorre com me-nos frequência nos países desenvolvidos. Nestes locais, a origem é principalmente ginecológica e pós-radioterapia, já nos países em desenvolvimento ocorrem com grande frequência e as causas são principalmente obstétricas.

Não existe uniformização da classi� cação das fístulas, entretanto podemos de forma simpli-� cada classi� cá-las em simples, usualmente pequenas (<0,5cm) e sem irradiação prévia e com-plexas, consideradas após falha de tratamento, grandes (>2,5cm), resultado de doenças crônicas ou irradiação pélvica. Alguns autores consideram fístulas entre 0,5 e 2,5 cm como complexas. Elas também podem ser congênitas ou adquiridas. As primeiras são extremamente raras, enquanto as últimas são, na sua grande maioria, de causa pós cirúrgica, ginecológica, obstétrica e pós-radiote-rapia (Stamatakos et al., 2014).

As fístulas podem se originar pós-trauma, pós-cirúrgia (histerectomia abdominal e vaginal), cirurgias para cura de incontinência urinária, biópsias de vagina e bexiga, colporra� a anterior, obs-tétrica, cirurgia colorretal, irradiação pélvica, in� amação e infecção (Ghoniem e Warda, 2014).

Nos países desenvolvidos as cirurgias causam 83,2% das fístulas, histerectomia em 62,7% e cirurgia colorretal e urológica em 12,7%. Radioterapia é responsável por 13%.

Em países em desenvolvimento a causa obstétrica gira em torno de 95,2%, sendo 9,5% pós--cesariana.

Diagnóstico

A apresentação clássica é a perda de urina contínua, geralmente iniciada após alguns dos eventos citados anteriormente, salvo as fístulas pós-irradiação, que podem surgir até 20 anos após o tratamento (Stamatakos et al., 2014).

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No exame vaginal pode-se evidenciar a fístula como uma pequena área granulada, averme-lhada e um orifício. O teste do tampão vaginal é fundamental para avaliar suspeita de fístula, o uso de um corante como o azul de metileno é instilado na bexiga após inserção de três tampões na va-gina. Se o tampão mais externo é corado pode ser incontinência urinária, se os dois mais profundos estiverem corados trata-se de fístula vesicovaginal e se estes tampões estiverem úmidos, mas não corados, pode tratar-se de fístula ureterovaginal. O teste também pode utilizar a fenazopiridina por via oral além do azul por via vesical. Se a gaze estiver corada de azul, sugere fístula vesico vaginal, se for laranja, fístula ureterovaginal.

O diagnóstico de� nitivo é realizado pela cisto-vaginoscopia, que além de avaliar o tamanho, localização e relação das fístulas também avalia a qualidade do tecido, o grau de in� amação, o es-tado hormonal e a presença ou não de infecção local. O tempo endoscópico é o principal parâmetro para decidir sobre o tempo, a técnica e a via da correção cirúrgicas.

O diagnóstico diferencial deve ser feito com a incontinência urinária, principalmente por transbordamento, ureter ectópico e raramente, descargas aquosas do colo uterino, útero e trompas de Falópio.

Resultado do tratamento

Existem três possibilidades:

1. Fechamento anatômico da fístula sem perda de urina,

2. Fechamento anatômico da fístula com perda residual de urina,

3. Falência da cirurgia.

Tratamento conservador

Deve ser restrito às fístulas pequenas, limpas e não irradiadas, com cateterismo prolongado (6 a 8 semanas). Os resultados variam de 6,9 a 16,2%. Alguns autores utilizam drogas anticolinérgi-cas para relaxamento da bexiga e hormônio tópico nas mulheres na pós-menopausa.

Tem-se obtido sucesso com cistoscopia e fulguração de pequenas fístulas e aplicação local de cola a base de � brina. Entretanto, trata-se ainda de poucos relatos de casos.

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Tratamento cirúrgico

O melhor momento para o reparo vai depender do tempo endoscópico. Tecidos sadios (pós--cirúrgico) podem ser reparados imediatamente, enquanto tecidos com necrose, in� amação e in-fecção (irradiação – obstétricas) devem ser reparadas mais tardiamente. A via de abordagem e a técnica cirúrgica empregadas depende da habilidade e preferência do cirurgião, tipo e localização da fístula e concordância da paciente, e os resultados positivos giram em torno de 95%.

Via vaginal

A via vaginal está relacionada com menor morbidade, melhor recuperação e menor sangra-mento que a via abdominal, sendo os resultados de sucesso um pouco inferiores. A cirurgia de Laztko é a mais utilizada. Em fístulas complexas, pode ser adicionado o retalho de Martius, que consiste na interposição da gordura do grande lábio entre a bexiga e a mucosa vaginal (Ghoniem e Warda, 2014). Segundo revisão sistemática realizada por Christopher J. Hillary, 2016, de 71 a 84% das fís-tulas vesicovaginais são corrigidas por esta via com resultado de 90,8%. A � gura 1 mostra o passo a passo da cirurgia de fístula vesicovaginal com abordagem pela vagina, podendo ser utilizado ou não a interposição de um retalho pediculado de gordura do grande lábio (Martius), último quadro do esquema.

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Figura 1 – Abordagem via vaginal de fístula vesicovaginal retrotrigonal. A dissecção da fístula é realizada sem macerar a borda, deixando a borda para a bexiga e separando esta da vagina. A borda endurecida pela � brose melhora a sustentação da

sutura. Idealmente a fístula é fechada em três planos os dois primeiros perpendiculares e coberto pelo terceiro plano que é o � ap da parede vaginal derivado da incisão de abordagem da fístula (linha tracejada no primeiro esquema). Finalmente, pode ser utilizado

um retalho vascularizado, neste caso o retalho do grande lábio vulvar (Martius � ap).

Via abdominal

Esta via pode ser realizada por laparotomia, laparoscopia e robótica. É recomendada geral-mente quando há necessidade de reimplante de ureter, ampliação vesical, vagina estreita ou pro-funda, necessidade de grande mobilização vesical ou envolvimento uterino.

A técnica foi descrita inicialmente por Trendelenburg, porém se tornou popular com O’Co-nor, sendo atualmente utilizado como referência para técnica. É realizada a secção longitudinal da bexiga para identi� car a fístula e realizar o reparo. No � nal dos anos 1990, a técnica laparoscópica foi realizada por Nezhat et al., 1994, e a robótica por Melamud et al., 2005. Nas fístulas complexas, pode-se utilizar um retalho do grande omento cobrindo a área de correção do trajeto � stuloso (Fi-

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gura 2). O Sucesso do tratamento laparoscópico está em torno de 80% a 100%, com os benefícios da cirurgia minimamente invasiva.

Figura 2 – Abordagem via abdominal com bipartição da bexiga e interposição de retalho do omento cobrindo a área de correção do trajeto � stuloso. É importante mencionar que na dissecção da fístula por abordagem vaginal a borda � ca para a bexiga

enquanto na abordagem abdominal a borda � ca para a vagina.

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