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 14. AS FORMAS LITERÁRIAS DA FILOSOFIA Para Salma, isto é, uma grande amiga! O título desta palestra é emprestado a uma coletânea preciosa, organizada por Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht, 1  já há al- guns anos. Este tema permite um recorte instigante dentro da proble- mática muito ampla das relações recíprocas entre literatura e filosofia, filosofia e literatura. Tal recorte tem a vantagem de não colocar de antemão uma questão normativa sobre as diferenças, os direitos, os domínios respectivos dos discursos literários e filosóficos — o que pressuporia ter, a priori,  definições claras daquilo que é literatura e daquilo que é filosofia para poder, justamente, distingui-las com cla- reza e determinação. Mesmo que existam definições claras a esse res- peito, me parece imprescindível refletir criticamente sobre a constitui- ção histórica destas definições mesmas, isto é, refletir sobre as trans- formações históricas destas "partilhas" do saber, como diz Foucault, sobre as cambiantes definições de "filosofia" e de "literatura", antes de querer proceder ao estabelecimento de novas distinções mais finas. Uma abordagem bastante comum da problemática filosofia/lite- ratura consiste em analisar a presença de teorias ou de doutrinas filo- sóficas na obra de um escritor ou de um poeta: por exemplo, a pre- sença de Spinoza em Goethe, de Schopenhauer ou Bergson em Proust, de Adorno ou Nietzsche em Thomas Mann, de Heidegger em Clarice Lispector. Não nego o interesse dessas análises quando apontam para a elaboração estética de elementos históricos singulares, retomados e transformados pela escritura literária. Mas trata-se, então, de também mostrar como se dão, na obra literária específica, tal retomada e tal transformação, isto é, não só quais "conteúdos filosóficos" estão pre- sentes ali, mas como são transformados em "conteúdos literários". 1  Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht,  Literarische Formen der Phi- losophie, Stuttgart, J. B. Metzler, 1990. In: Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34. 2006. Jeanne Marie Gagnebin

Gagnebin, J.M. as Formas Literárias Da Filosofia [Lido]

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Texto sobre a relação entre forma e conteúdo na expressão filosófica.

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  • 14. AS FORMAS LITERRIAS DA FILOSOFIA

    Para Salma, isto , uma grande amiga!

    O ttulo desta palestra emprestado a uma coletnea preciosa, organizada por Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht,1 j h al-guns anos. Este tema permite um recorte instigante dentro da proble-mtica muito ampla das relaes recprocas entre literatura e filosofia, filosofia e literatura. Tal recorte tem a vantagem de no colocar de antemo uma questo normativa sobre as diferenas, os direitos, os domnios respectivos dos discursos literrios e filosficos o que pressuporia ter, a priori, definies claras daquilo que literatura e daquilo que filosofia para poder, justamente, distingui-las com cla-reza e determinao. Mesmo que existam definies claras a esse res-peito, me parece imprescindvel refletir criticamente sobre a constitui-o histrica destas definies mesmas, isto , refletir sobre as trans-formaes histricas destas "partilhas" do saber, como diz Foucault, sobre as cambiantes definies de "filosofia" e de "literatura", antes de querer proceder ao estabelecimento de novas distines mais finas.

    Uma abordagem bastante comum da problemtica filosofia/lite-ratura consiste em analisar a presena de teorias ou de doutrinas filo-sficas na obra de um escritor ou de um poeta: por exemplo, a pre-sena de Spinoza em Goethe, de Schopenhauer ou Bergson em Proust, de Adorno ou Nietzsche em Thomas Mann, de Heidegger em Clarice Lispector. No nego o interesse dessas anlises quando apontam para a elaborao esttica de elementos histricos singulares, retomados e transformados pela escritura literria. Mas trata-se, ento, de tambm mostrar como se do, na obra literria especfica, tal retomada e tal transformao, isto , no s quais "contedos filosficos" esto pre-sentes ali, mas como so transformados em "contedos literrios".

    1 Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht, Literarische Formen der Phi-losophie, Stuttgart, J. B. Metzler, 1990.

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    PriscillaTypewriterIn: Lembrar escrever esquecer. So Paulo: Editora 34. 2006.

    PriscillaTypewriterJeanne Marie Gagnebin

  • Usei de propsito a noo, discutvel, de "contedo", para apon-tar o que me parece o grande perigo dessas anlises, a saber: tornar os filsofos especialistas na inveno de "contedos tericos", mais ou menos incompreensveis, e os escritores, especialistas em "formas lingsticas", mais ou menos rebuscadas. Assim, s caberia aos escrito-res e aos poetas traduzir de maneira mais agradvel aquilo que os fil-sofos j teriam pensado de maneira complicada ou "abstrata", como se diz s vezes. No limite, isso significa que os filsofos sabem pensar, mas no conseguem comunicar seus pensamentos, que no sabem nem falar nem escrever bem; e que os escritores sabem falar bem, sabem se expressar, mas no tm nenhum pensamento prprio consistente. Apesar da descrio caricatural, o leitor certamente concordar que esses clichs constituem ainda representaes corriqueiras das figuras e dos ofcios respectivos do filsofo e do escritor/poeta.

    A imagem da literatura como sendo uma linguagem bela, mas vazia, que precisa de "recheio filosfico" para no se reduzir a uma brincadeira to graciosa quanto ftil, tem seu oposto simtrico numa representao da filosofia como "pura" atividade intelectual, sria, profunda, complicada e incompreensvel para o comum dos mortais (que, alis, passa muito bem sem ela, o que torna questionvel sua reiterada importncia). Nesta estranha atividade, reservada a poucos, a comunicabilidade no importa tanto. At no prprio meio filosfi-co, por exemplo na academia, reina certa desconfiana em relao aos aspectos formais mais apurados de uma palestra oral ou de um texto escrito de filosofia. Geralmente, estes aspectos so vistos como conces-ses ao pblico, ornamentos estilsticos prescindveis, ou, ainda, como algo meramente metafrico ou meramente retrico. Ora, a afirmao implcita da existncia de uma dimenso "meramente metafrica" ou "meramente retrica" repousa numa concepo acrtica, dogmtica e mesmo trivial das relaes entre pensamento e linguagem: como se o pensamento se elaborasse a si mesmo numa altivez soberana sem o tatear na temporalidade das palavras que, no entanto, o constitui. Dito de maneira mais simples: a concepo da literatura como algo belo, mas ornamental, superficial, suprfluo, e a concepo da filosofia co-mo algo verdadeiro, mas difcil, incompreensvel e profundo, esses dois clichs complementares perpetuam, no mais das vezes, privilgios es-tabelecidos e territrios de poder no interior de uma partilha, social e historicamente constituda, entre vrios tipos de saber. Assim, os es-critores e os poetas poderiam se dedicar ao sucesso e ao entretenimen-

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  • to, enquanto os filsofos continuariam aureolados pela bus< i desin teressada da verdade.

    Na introduo ao livro citado no incio deste artigo, Gottfried Gabriel afirma que a filosofia, desde seu nascimento, oscila entre dllftl formas de saber/sabedoria, entre a Dichtung (a criao potica no sen tido amplo) e a Wissenschaft, a cincia no sentido mais rigoroso. No decorrer de sua histria, podemos, ento, observar um movimento pendular: quando se aproxima demais da poesia, a filosofia envereda novamente para o lado da cincia e quando esta ltima ameaa abocanh-la, ela se volta novamente para uma dimenso de sabedo-ria mais potica. Esta observao tem o mrito de apontar para o es-tatuto ambguo da atividade filosfica, desde seu incio grego. Mareei Dtienne^ lembra que a figura do filsofo uma formao hbrida, oriunda da tradio religiosa de sabedoria, em particular do pitago-rismo, e, simultaneamente, da afirmao, na polis democrtica, da dignidade e do poder da palavra racional logos e da autonomia da organizao poltica. Esta ambigidade tambm pode ser vista co-mo fonte de riqueza; ela perdura at hoje, sob configuraes e refigu-raes histricas diversas.

    Neste contexto, falar das formas literrias da filosofia adquire um sentido preciso. No se trata de estudar alguns aspectos formais episdicos, mas sim de refletir sobre este estatuto ambguo do dis-curso filosfico e, mais especificamente, de explicitar a ntima rela-o entre formas de exposio, de apresentao, de enunciao Darstellungsformen e a constituio de conhecimento(s) ou de verdade(s) em filosofia. A hiptese de princpio consiste em afirmar que tais formas no so indiferentes ou exteriores aos enunciados fi-losficos, mas, como formas de exposio ou de apresentao (Dar-

    1 "Die Philosophie steht von Anfang an zwischen Dichtung und Wissen schaft. Sie hat nicht nur die Poesie immer wieder ablsen wollen, sie sollte aucfa ihrerseits immer wieder in Wissenschaft aufgehen. In ihrem Versuch, sich von der Dichtung zu unterscheiden, hat sie sich verwissenschaftlicht, und in ihrer Sorge, von dieser vereinnahmt zu werden, hat sie sich poetisiert", Gottfried Gabriel, " 1 111 leitendes Vorwort", op. cit. p. VII. Devemos mencionar aqui que Gabriel n io discpulo de Heidegger ou de Hlderlin, mas sim especialista em Wittgerutein I Frege, cuja cadeira ocupa na Universidade de Iena.

    3 Mareei Dtienne, Les maitres de vrit dans Ia Grce archaique, Ptril , Maspro, 1981.

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  • stellung), que participam inseparavelmente da transmisso de conhe-cimento ou da busca de verdade que visa o texto filosfico.4 Um exem-plo torna esta hiptese mais clara: qual seria a "verdade" que alme-jam os Dilogos de Plato? Se esquecermos a forma literria "dilo-go" para procurar estabelecer um "sistema" de afirmaes platnicas e, a partir delas, extrair algumas proposies essenciais que formas-sem a verdade procurada, encontraremos muitas contradies, mui-tas incoerncias, poucas certezas e poucas evidncias. Mas se levarmos a srio a forma dilogo, isto , a renovao constante do contexto e dos interlocutores, o movimento de idas e vindas, de avanos e regres-sos, as resistncias, o cansao, os saltos, as aporias, os momentos de elevao, os de desnimo etc , ento perceberemos que aquilo que Plato nos transmite no nenhum sistema apodtico, nenhuma ver-dade proposicional, mas, antes de mais nada, uma experincia: a do movimento incessante do pensar, atravs da linguagem racional (lo-gos) e para alm dela "para alm do conceito atravs do concei-to", dir tambm Adorno.5

    O movimento auto-reflexivo da filosofia sobre seu carter de lin-guagem, seu carter lingstico no sentido amplo do termo, isto , sobre sua forma literria, permite, em termos de histria da filosofia, uma leitura renovada, mais atenta singularidade dos textos. Gott-fried Gabriel cita o exemplo do texto da "prova ontolgica": quando se lembra que o escrito de Anselmo um tipo de orao (proslogion), o carter de prova (onto)lgica no desaparece, mas passa a ter um outro peso, porque tratar-se-ia aqui muito mais de confirmar a pr-pria f do que de provar logicamente a necessidade da existncia de Deus. Poderamos tambm dizer que ler o Zaratustra de Nietzsche co-mo um poema teatral, com indicaes de ritmo e de palco, suscita uma nova compreenso do papel dos animais ou mesmo do alm-do-ho-mem. Sem falar de todos os mal-entendidos oriundos de uma leitura que faz do Tractatus de Wittgenstein um manual de epistemologia, ou das Teses de Walter Benjamin, lies de filosofia da histria.

    4 Gottfried Gabriel, "Literarische Form und nicht-propositionale Erkenntnis in der Philosophie", op. cit., pp. 1-4.

    5 "Die Anstrengung, ber den Begriff durch den Begriff hinauszugelangen." Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1970, p. 25.

    6 Gottfried Gabriel, op. cit., p. 16.

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  • A auto-reflexo da filosofia sobre sua "literalidade" 11,10 11.1/ apenas proveitos metodolgicos ou hermenuticos. Mais do c|iic isso, remete a trs conjuntos de questes que sempre acompanli.ii.nn .1 li losofia, desde seu nascimento em Plato cuja obra pode ser vista como o palco privilegiado deste embate. Trata-se de questes ligadas filosofia enquanto gnero discursivo diferente de outros gneros discursivos em vigor.

    Na poca de Plato, a filosofia tentava se distinguir de dois ti-pos principais de discursos muito importantes do ponto de vista cultu-ral e poltico em Atenas: primeiro, a poesia pica e trgica encar-nada por Homero (a poesia pica), o Mestre da Grcia, estudado pelos meninos em seu aprendizado de futuros cidados; e por Sfocles e Eurpides (a poesia trgica), encenados anualmente para o conjunto dos cidados (as crticas de Plato s prticas pedaggicas vigentes e aos saberes artsticos e mimticos de seu tempo pressupem esse pa-pel central da poesia na formao pedaggica dos cidados e na vida poltica da cidade,7 papel que, hoje, a poesia deixou totalmente de ter). Em segundo lugar, a retrica e a sofistica, ambas prticas discursivas ligadas ao nascimento de formas jurdicas codificadas, instituio do tribunal e de uma esfera do direito (instituio da acusao e da defe-sa) diferente do domnio de poder do soberano; prticas igualmente relacionadas com o peso crescente da palavra, do saber falar e do sa-ber persuadir (isto , tambm do saber "manipular" pela palavra li-sonjeira e enganadora), na assemblia democrtica dos cidados. A luta incessante de Plato contra os "sofistas", estes mestres de retri-ca em particular suas reiteradas tentativas, da Apologia de Scrates at O Sofista, de estabelecer uma diferenciao essencial entre o "fi-lsofo" e o "sofista",8 d provas do prestgio do qual gozavam retrica e sofistica em Atenas.

    7 Ver a este respeito as instigantes pesquisas de Eric Havelock em Prefcio a Plato (Campinas, Papirus, 1996).

    8 A necessidade desta diferenciao por Plato no mostra somente o quantl 1 a filosofia seria, ontologicamente, diferente da sofistica, como a histria (Inin comportada!) da filosofia sempre repete; se esta diferenciao era uma tarefa t io necessria assim, que ela no era nem clara nem evidente para o povo ateniense, que, alis, condenou Scrates em termos e por motivos muito semelhante! aos dl condenao de... Protgoras!

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  • Hoje a filosofia no precisa se diferenciar, em primeiro lugar, do epos, da tragdia, da retrica ou da sofistica; nem da teologia como na Idade Mdia. Ela tenta muito mais afirmar sua especificidade dis-cursiva e conceituai em contraposio aos discursos das cin-cias naturais e de seu pretenso ou autntico "rigor", aos discursos das cincias humanas e seus territrios de pesquisas prticas, ao discurso da literatura e de sua ficcionalidade. Essas transformaes histricas ressaltam a hiptese principal desta comunicao: a saber, que uma reflexo sobre as formas literrias, isto , tambm sobre as formas lin-gsticas (no sentido amplo de sprachlich, que inerente Sprache, lngua e linguagem) da filosofia significa tambm uma reflexo sobre sua historicidade como gnero especfico de discurso e de saber.

    Dizia h pouco, seguindo aqui tambm as indicaes de Gott-fried Gabriel, que podemos determinar trs conjuntos de questes que esta auto-reflexo da filosofia sobre seu carter de linguagem, sobre sua literalidade, levanta. Enumero estes trs conjuntos para, depois, retom-los em detalhe. H, primeiro, o fato de que, em filosofia, no se trata somente de analisar linguagem, mas, mais precisamente, de analisar textos escritos. Em segundo lugar, a diversidade das formas literrias dos textos filosficos tambm indica uma separao entre dois tipos de exerccio da filosofia: uma filosofia ligada especificamen-te ao ensino e uma filosofia como exerccio de meditao ou de refle-xo, sem relao obrigatria com prticas pedaggicas institucionais. Enfim, em terceiro lugar, a multiplicidade destas formas tambm in-dica que h vrias maneiras possveis de tentar abordar, em filosofia, aquilo que excede a linguagem racional discursiva [logos), linguagem por excelncia da filosofia.

    Retomemos estes trs complexos de questes. O primeiro e o segundo podem ser abordados em conjunto. Tratar da filosofia como gnero discursivo distinto e analisar suas diversas formas literrias, seus diversos modos de apresentao, restringe, pois, a pesquisa a um corpus de textos, isto , ao territrio da escrita. Tal restrio pode nos parecer evidente porque estamos acostumados a ela, em particular no contexto do ensino da filosofia que, no mais das vezes, se confunde com o ensino da histria da filosofia, com o estudo de textos dos "grandes filsofos", ensino e estudo baseados, portanto, na transmis-so escrita. Mas se pensarmos na constituio da filosofia em Plato, autor de dilogos escritos, copiados e transmitidos por escrito at ns, e, simultaneamente, autor de crticas contundentes s pretenses de

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  • verdade da escritura, defensor da transmisso oral atravl dl di$CUS' so viva, se lembrarmos disso, ento perceberemos que esti relao entre filosofia, texto e escritura advm de uma partilha anterior entre tradio oral, mtica ou potica, transmisso oral da sabedoria, e transmisso escrita, no seio de instituies socioculturais diversas.9 A questo da prevalncia da transmisso escrita em filosofia recorta, portanto, a questo da progressiva separao entre uma filosofia li-gada especificamente a seu ensino, da Academia de Plato at as uni-versidades de hoje, uma Schulpbilosophie, diz Kant, mais tcnica e erudita, e uma Weltphilosopbie (Kant igualmente) ou filosofia univer-sal, isto , um exerccio de meditao, de reflexo, uma prtica teri-ca que retoma os problemas fundamentais da existncia humana e, em particular, pode assumir uma posio tico-poltica no debate da ci-dade, no espao pblico comum aos cidados.

    Podemos estabelecer uma lista provisria de algumas formas li-terrias em filosofia; perceberemos, ento, que estas formas so liga-das a dois fatores principais: a pocas histricas precisas e separa-o entre Schulpbilosophie e Weltphilosopbie. Hoje, ningum mais escreve uma summa formada por uma srie de questiones; antes de Montaigne, no parece ter havido necessidade de escrever ensaios. O ensino e o aprendizado acadmicos da filosofia passam pela redao de monografias, trabalhos, dissertaes, teses, apostilas, aulas, resu-mos, lies e manuais cujas regras cientficas estritas acarretam con-seqncias estilsticas e literrias especficas. No se usam citaes, por exemplo, da mesma maneira numa dissertao de mestrado, restrita ao rastreamento claro de uma temtica bem definida, exerccio tpico de Schulpbilosophie, ou num ensaio mais amplo, obra de maturidade de um pensador singular, meditao prpria de Weltphilosopbie. No h o mesmo tipo de argumentao nas Confisses de Santo Agostinho, na Crtica da v,azo pura ou em Alm do bem e do mal e isso no s porque Agostinho, Kant e Nietzsche so trs pensadores individuais diferentes, mas tambm porque as formas literrias confessional, sis-temtica e aforstica implicam exigncias especficas. Como entender,

    9 Talvez assistamos hoje a uma reconfigurao de formas orais na transmis-so da filosofia ("caf-philo", entrevistas e bate-papos televisivos etc). A anlise dessas formas deveria se inscrever numa anlise (crtica!) das transformaes dos meios de comunicao social e no se restringir defesa irada de uma nica for-ma autntica.

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  • por exemplo, o florescimento do gnero "dilogo" ou "carta" na An-tigidade, sua transformao no Renascimento e seu quase comple-to desaparecimento na filosofia contempornea? Podemos observar igualmente que, no interior da obra de um mesmo filsofo, a passa-gem de uma forma para outra tambm assinala transformaes nada acidentais do pensamento: o Wittgenstein do Tractatus e o Wittgenstein das Investigaes filosficas o mesmo pensador em termos de pes-soa individual, mas no o mesmo pensador em termos de concep-o filosfica. Enfim, uma reflexo mais apurada sobre a historicidade das formas literrias da filosofia nos ajuda a compreender melhor a historicidade da prpria filosofia, este estranho exerccio em torno de algumas questes e de alguns conceitos, sempre retomados e recolo-cados, sempre deslocados e reinventados.

    Estas observaes me levam ao terceiro e ltimo complexo de questes, com o qual gostaria de concluir. A multiplicidade das for-mas literrias em filosofia tambm assinala as diversas tentativas fi-losficas de abordar aquilo que excede a linguagem discursiva ra-cional, o logos, linguagem da filosofia por excelncia, mesmo que as definies deste logos tambm variem no decorrer de sua histria. Desde a Carta VII de Plato at o Tractatus de Wittgenstein o tema do dizvel e do indizvel na linguagem, e pela linguagem, constitutivo da filosofia. Mas esta questo assume vrias figuras. Aquilo que no pode ser dito foi, muitas vezes, interpretado como sendo a fonte divi-na da linguagem e da existncia humanas, seu fundamento to neces-srio como inacessvel, como a figura de Deus ou do Bem supremo que, a rigor, nem pode ser nomeada, j que a nomeao restringiria sua infinitude. Esse motivo teolgico primordial, comum tradio judaica e tradio platnica, percorre toda a tradio filosfica at, digamos, a tentativa de ruptura operada por Nietzsche (se Nietzsche conseguiu realmente operar esta ruptura uma outra questo). Esse motivo caracteriza, segundo a famosa expresso de Derrida, que se apoia em Heidegger, o teologocentrismo da metafsica. Ao chamar este indizvel de "Deus" e ao saber da insuficincia desta nomeao, o discurso da metafsica tambm afirma, de inmeras maneiras, que seu fundamento ltimo, fonte da linguagem e da razo, do logos, nele est presente e, simultaneamente, lhe escapa. Tal afirmao parado-xal assume vrias formas de apresentao, vrias formas literrias: o dilogo aportico no chega a nenhum resultado e, atravs dessa fa-lha, indica que se negligenciou o fundamento inatingvel do qual, no

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  • entanto, dever-se-ia ter partido (concluso do Crtilo); ou o liltemi se edifica e se totaliza, mas nunca se aquieta num resultado definiti vo, j que somente o movimento em busca da transcendncia deli consegue dar uma representao imanente (conforme a Fenomcimlo gia do Esprito).

    Ora, a filosofia moderna, e mais ainda a contempornea, sofre um processo de secularizao que caracteriza toda a modernidade cm sentido poltico amplo. Assim, chamar este indizvel, fundamento e fonte de nossa existncia e de nossa linguagem, de "Deus" no pare-ce mais ser adequado. Mas a questo persiste. Tenta-se transform-la, surgem outras tentativas de respostas, outros nomes (re)surgem: o Ser, o Sublime, o Real. E, numa vertente mais ligada herana cr-tica, tambm se afirma, simplesmente, que a linguagem humana no pode dizer sua origem, no pode dizer, definir, explicitar sua relao realidade do mundo, j que no podemos sair nem da linguagem nem do mundo para observar e descrever como se relacionam. Entre a palavra que enuncia e a realidade que ela quer apreender, sempre haver um abismo que ela pode, sim, atravessar (Blanchot), mas nun-ca abolir.

    Algumas formas literrias bastante fortes da filosofia contempo-rnea como o ensaio, o aforismo, o fragmento tentam, em oposio crtica concepo totalizante dos grandes sistemas clssicos, tema-tizar na prpria exposio, na prpria apresentao do pensamento, este real que s se mostra (conforme a expresso de Wittgenstein) quando se desenha a figura de sua ausncia. Ali, neste lugar parado-xal, nesta figurao da ausncia, filosofia e literatura contemporneas, com todas as suas diferenas, certamente se encontram.

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