Gastronomia nos Tempos do Barão

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  • 8/14/2019 Gastronomia nos Tempos do Baro

    1/626 Textos do Brasil.

    N 13

    Carlos Kessel e Mnica Tambelli

    Gastronomia nostempos do Baro

    Baro do Rio Branco, Chanceler do Brasil entre 1902 e 1912.Fonte: Caricaturas do Baro Coleo de Recortes do Arquivo Histrico do Itamaraty

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    Final do Imprio e incio da Repblica: tempo marcado

    por riqueza e desenvolvimento proporcionados pelocaf. Jovens da elite brasileira completavam seus estudos

    em Paris. Requinte era sinnimo de hbitos e costumes france-ses. A vida urbana intensicava-se e alterava padres. Em So

    Paulo, senhoras da alta sociedade timidamente comearam afreqentar as ruas fora do horrio da missa. Deslavam seus ela-

    borados vestidos de seda, chapus de tipo cloche, luvas e leques.Sarah Bernhardt, aps uma de suas concorridas apresentaesno Teatro So Jos, armou ser So Paulo a cabea do Brasil e o

    Brasil, a Frana americana. A cidade da garoa viu a chegada dosculo XX enquanto modernizava suas construes. A metrpo-

    le do caf abrigava farto comrcio de itens importados, inme-ras bibliotecas e livrarias como a Casa Ecltica, na So Bento, ea famosa Garraux, originalmente na Rua da Imperatriz. Desde1900, a modernidade circulava pela linha de bondes eltricos

    da cidade. Nos primeiros anos do sculo XX, foram fundadosa Pinacoteca (1905), o Conservatrio Dramtico (1907) e o Tea-tro Municipal (1911), sinais de novas vogas artsticas e musicais.

    O centro da Paulicia era um grande espao de convivnciasocial. Donzelas exibiam elegncia de inspirao europia en-

    quanto faziam o footing na XV de Novembro.

    O Rio de Janeiro, ento capital da recm-proclamada Re-pblica, borbulhava. A Praa Tiradentes era rodeada por bares

    e teatros. Voc, rapaz bomio, certamente seria um assduo fre-qentador da Confeitaria Paschoal, no Largo da Carioca, pon-to de encontro da ertiva mocidade dos tempos de Bilac. Isso

    antes de o poeta criar caso com o gerente...e mudar o ponto deencontro para a novssima Confeitaria Colombo, desde entoinstalada na Gonalves Dias. Alm de Bilac, Martins Fontes e

    Jos do Patrocnio tambm eram habitus... A Rua do Ouvidor

    cou conhecida como Cafedrio , tantos eram os cafs. Para es-pantar o calor do vero carioca, a moda era pedir uma virgem

    loura, normalmente estrangeira, de marca Heineken, Carlsbergou Guiness, mas tambm existia a nacional Gabel. Os mais afei-tos a devaneios poticos eram adeptos do absinto, o prmio do

    cu, conhecido e cobiado comofada verde.

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    E como algumas coisas nunca mudam... o

    assunto preferido nas mesas de bar era reclamardo prefeito: aquele maluco do Pereira Passos,com suas obras desnecessrias... Ora, veja bem,

    as tais obras no eram to desnecessrias assim.Antes das reformas, o Rio era um local evitado.As elites envergonhavam-se. Muitos chegavam a

    abrigar a famlia em outras cidades para protegerseus lhos das epidemias que assombravam a ca-pital federal. Olavo Bilac, em coluna publicada na

    Gazeta de Notcias, aplaudiu as melhorias:

    Quem viu o Rio, h trs anos, maltrata-

    do e sujo, com seus taciturnos jardins murados

    e sem ores, com suas tristes vielas povoadas

    de cachorros vagabundos e agora, o v com

    as novas avenidas em vias de edifcao, com os

    jardins viando, abertos e oridos, com as ruas

    alargadas enchendo-se de edifcaes elegantes,

    com a variedade dos novos tipos de calamento

    adorados reconhece, sem difculdade que, nes-

    te curto espao de tempo, muito mais se fez aqui

    do que em So Paulo num espao de tempo trs

    ou quatro vezes maior.Os olhos humanos no tm memria vi-

    vaz. Os nossos olhos j no se lembram do que

    eram a Prainha, a rua Treze de Maio, a rua do

    Sacramento, a praia de Botafogo e principal-

    mente, o que era a praa da Glria, com aquele

    hediondo Mercado, agonia dos meus dias, pesa-

    delo das minhas noites, torturas e tormentos da

    minha vida!

    Daqui a pouco tempo, dentro de dois

    anos, quando a avenida Central e a avenida

    Beira-Mar estiverem concludas; quando o Rio

    de Janeiro se encher de carruagens e de autom-

    veis; quando comearmos a possuir a vida civi-

    lizada e elegante que Buenos Aires j h tanto

    tempo possui tambm nessa poca j no nos

    lembraremos do que era a nossa vida tediosa e

    vazia, sem teatros, sem passeios, de distraes

    limitadas maledicncia dos homens na rua do

    Ouvidor e pasmaceira das senhoras nas ja-

    nelas.

    Rio de cafs e botequins, ou como diria

    Joo do Rio, bodegas reles, lugares bizarros, bo-tequins inconcebveis.1 O mesmo Joo, o do Rio,cou certa vez intrigado com uma tabuleta: Caf

    B.T.Q.2, l na Rua do Catete. O estranho nome,explicou o proprietrio, vinha das iniciais de bo-tequim. Criatividade carioca! Nomes inusitados

    no faltavam nos estabelecimentos do Rio de an-tigamente: havia o Depsito de Aves de Penas, na

    Rua do Senhor dos Passos; o armazm PlanetaProvisrio... Era assim o Rio da Belle poque, sem-pre seguindo os conselhos do Binculo: chapuna cabea e botas nos ps.

    O Baro do Rio Branco viveu seus anosde glria exatamente no Rio de Janeiro daquelestempos de Rodrigues Alves e Pereira Passos, pre-

    sidente e prefeito responsveis por um programade obras que, a partir de 1902, modernizou a ci-

    dade e transformou decisivamente a vida de seushabitantes. Abertura de ruas e avenidas, demo-lio de cortios, construo de prdios pblicoscom formas arquitetnicas de inspirao france-sa, extenso e eletricao de linhas de bonde e

    um cdigo de posturas que proibia as pessoas decuspirem em pblico e andarem descalas: tudoisso reetia a vontade do poder republicano re-centemente fortalecido, aps as crises militares

    1 Joo do Rio: A alma encantadora das ruas, Gazeta de Notcias,28 de janeiro de 1907.

    2 Joo do Rio: Tabuletas, Gazeta de Notcias , 07 de maro de1907.

    3 O Binculo era a coluna de Figueiredo Pimentel, no jornalcarioca Gazeta de Notcias, na dcada de 1890. So de Pimentelexpresses como O Rio Civiliza-se e a ditadura do smartis-mo.

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    e econmicas. Todos empenhavam-se em trans-

    formar a capital do Brasil numa cidade moderna,

    deixando para trs a antiga urbe colonial, som-bria e insalubre.

    Entre os costumes tomados como alvo dasmedidas civilizatrias, estavam alguns ligados alimentao. Proibiu-se a venda de leite nas ruas,

    com vacas ordenhadas na porta dos fregueses. Ini-ciou-se uma perseguio ao prspero comrcio demidos de carne nas caladas. Tudo em nome da

    promoo de medidas de higiene e do combate s

    epidemias que, desde o sculo XVI, assolavam oRio de Janeiro e promoviam mortandades espan-

    tosas. Oswaldo Cruz, diretor-geral de Sade P-blica, atacou a peste bubnica, a varola e a febreamarela, promovendo caa de ratos, extermnio

    de mosquitos e vacina obrigatria. O Rio civili-za-se!, expresso popularizada pela imprensa da

    poca, era o slogan smbolo do assalto aos antigos

    hbitos caractersticos do Rio colonial.

    Anteriormente, a famlia carioca tinha porhbito comprar carne, leite, verduras e frutas de

    vendedores ambulantes que passavam de portaem porta. Na Paris Tropical idealizada por Ro-drigues Alves, no havia mais espao para esse

    comrcio precrio. As adjacncias da Rua do Ou-vidor passaram a abrigar sosticadas casas de va-rejo. Ao redor da Praa XV de Novembro estavam

    localizadas as principais casas de gneros alimen-

    tcios e bebidas, geralmente de propriedade deportugueses. Os produtos? Um verdadeiro festi-val de importados. Caldos, cozidos, feo e fari-nha, entre outros pratos de inspirao portuguesaadaptados aos gneros alimentcios aqui dispo-

    nveis foram dando espao para criaes gastro-nmicas mais complexas. Desde a intensicao

    dos uxos imigratrios que trouxeram italianos,

    Caricaturas do Baro Coleo de Recortes do Arquivo Histrico do Itamaraty

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    franceses e ingleses ao Brasil no sculo XIX, SoPaulo e Rio de Janeiro passaram a contar com ser-vios de confeitaria que sosticaram a culinria

    local e introduziram uma gama maior de utens-lios domsticos adequados aos novos pratos e cerimnia do jantar. O ch, antes considerado um

    remdio, ganhou status de bebida elegante, gra-

    as convivncia com os ingleses. Pouco a pouco,os chefs ocuparam o espao das quituteiras.

    Na Belle poque , o brasileiro descobriu osprazeres de comer fora de casa. Era elevado o n-mero de botequins e casas de pasto (restaurantes,

    meu caro, simples restaurantes... at hoje os por-tugueses os chamam assim...) com muitos ann-cios de salgadinhos e petiscos dos mais variados.

    O Gamb do Saco do Alferes, conhecida casa

    de pasto da regio porturia carioca, anunciava:todos os dias e a toda hora, muita variedade de

    comida, tanto de peixe como de carne, feita como maior asseio e prontido; o caf simples ou comleite; os doces em calda e de massa. Pastis de

    Santa Clara, de viva e outras qualidades de pas-tis. O Hotel Universo, no Largo do Pao, tinhaanncios bilnges, em portugus e ingls, isso

    alm de servir refrigerantes cidos e oferecer jor-nais estrangeiros um luxo em tempos distantesda Internet! A Padaria Aurora, na Rua da Lapa,

    propagandeava empanadas muito bem traba-lhadas, po-doce, biscoitos e tudo o mais quecompete ter um estabelecimento desta ordem.

    O restaurante favorito do Baro era o Rio

    Minho, mais tarde notabilizado pela Sopa LeoVeloso (mas essa uma outra histria, de outro

    diplomata, em outra poca... talvez assunto paraoutro texto...). Fundado em 188 e ainda hoje emfuncionamento no mesmo nmero 10 da Rua do

    Ouvidor, o Rio Minho era o lugar para onde o Ba-ro se dirigia depois do trabalho, para lautos jan-tares. Ele tinha cadeira cativa. Entre seus pratos

    favoritos estavam os peixes e frutos do mar. Hoje

    em dia, o restaurante tem no cardpio um pratoem homenagem ao Baro bom de garfo. Trata-se

    de um bacalhau que leva vinho do porto, alm deazeitona e pimento. s vezes, o chanceler varia-va e ia jantar no Brio, onde seu apetite devasta-

    dor tambm era muito conhecido.

    Vide bloco de receitas anexo.

    Baro do Rio Branco.

    Fonte: PARANHOS, Jos Maria da Silva. Baro do Rio Branco: Uma biografia fotogrfica. Braslia: FUNAG, 2002, p. 43 e 95

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    Ocupadssimo durante o dia, Rio Brancocostumava almoar na conhecida desorganizao

    de seu escritrio. O Pascoal, santo empregado doItamaraty, estendia uma toalha sobre os muitoslivros e papis na mesa de trabalho do gabinete

    e servia ali mesmo generosas pores de ensopa-do de camaro com quiabo. Nosso Juca Paranhosadorava a iguaria. J seu mdico... queria mesmo que ele casse s na canja de galinha... O gluto

    tinha uma resposta perfeita: Doutor, no se pre-ocupe, o camaro a galinha do mar!

    Quando dispunha de um pouquinho maisde tempo, Rio Branco corria para o Brahma: te-nho vinte minutos para almoar!. Quando o re-

    lgio no colaborava, o apetite era controlado porlitros e litros de caf.

    Na gesto Rio Branco no Itamaraty, recep-es passaram a gurar no apenas como oportu-nidades de socializao, mas tambm como ins-trumento de poltica externa. Lima Barreto, em

    uma de suas crnicas para os dirios da poca,enfatizou as mudanas na corte do Itamaraty:

    Veio, porm, o Baro do Rio branco, e o

    vulgar palcio da Rua Marechal Floriano pas-

    sou a ser um dos centros da nossa vida e um foco

    de irradiao de graas e privilgios. Vieram os

    banquetes, as recepes, os bailes, aos quais os

    cotidianos no deixavam nunca de aludir com

    os melhores adjetivos. Houve uma reforma no

    protocolo; as regras de precedncia foram esta-

    belecidas; os tratamentos marcados nas tabelas

    solenes; e a pobreza da cidade, a massa de oper-

    rios, de pequenos empregados, de funcionrios,comeou a ter diariamente notcias do Aubus-

    son famoso, da baixela, dos quadros, etc. 5

    fato. Os arquivos do Itamaraty do Rio de

    Janeiro at hoje guardam pginas e pginas deanotaes, muitas feitas de prprio punho peloBaro, listas de convidados, ordem de precedn-

    cia, organizao de cerimonial, planos de mesa,cardpios... Estes, invariavelmente em francs.

    Verdadeiros banquetes com direito a boeuf bour-guignon, foie gras, cassoulet, bouillabaisse... e sobre-mesas de dar gua na boca. A Colombo e a Pas-choal eram fornecedoras do Itamaraty. As duas j

    eram famosas desde os tempos da Monarquia. NoBaile da Ilha Fiscal6, por exemplo, a Paschoal for-neceu iguarias, servidas em pratos ornamentadoscom ores e frutas exticas, em quantidades as-sustadoras: foram consumidos mais de oitocentos

    quilos de camaro; trs mil bandejas de doces; dezmil litros de cerveja e quase quinhentas caixas devinho. , comia-se bem nos tempos do Baro...

    Carlos Kessel e Mnica TambelliJ estudaram muito. Ele vem da rea de

    Histria. Ela andava pelas Letras. Hoje sodiplomatas, mas gostam mesmo de uma boa

    mesa rodeada de amigos e regada a muito vinho.

    5 LIMA BARRETO. A Corte do Itamaraty. In: Lima BarretoToda Crnica, volume 1 (1890-1919). Rio de Janeiro, Ed. Agir,

    2004, pp. 394-397.6 ltima grande festa do Imprio Brasileiro, a homenagem aos

    ociais do navio Almirante Cochrane cou conhecida como

    Baile da Ilha Fiscal. Sem saber, a Monarquia fazia, em 9 denovembro de 1889, uma extravagante despedida do poder. Em15 de novembro do mesmo ano, foi proclamada a Repblica.

    Na gesto Rio Brancono Itamaraty, recepes

    passaram a figurar noapenas como oportunidadesde socializao, mas

    tambm como instrumentode poltica externa.

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