Gênero e Relações de Poder

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Gênero e Relações de Poder

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GNERO E RELAES DE PODER

GNERO E RELAES DE PODER

Maria Luzia Miranda lvares

Coordenadora do GEPEM/UFPA

Introduo

O meu papel aqui trazer para a reflexo, para debater, dois conceitos relacionados: Gnero e Poder ou pode ser tambm Mulher e Poder. Torna-se impossvel, entretanto, falar de um deles sem identificar suas linhas fundamentais, importantes para uma melhor compreenso da complexa relao que permeia a trajetria da mulher na luta secular que tem empreendido por uma cidadania de qualidade.

As reflexes aqui expostas tendem a utilizar-se de tericos da Cincia Poltica, da Sociologia, da Histria e da Filosofia Poltica, cujas teses so reveladoras do processo de construo do conceito de poder desenvolvido em relao condio do ser mulher na sociedade.

As categorias de anlise so teis para a compreenso da vivncia das mulheres no percurso de suas lutas histricas, embutidas nas relaes sociais. De alguma forma, estas categorias conceituais mulher e poder surgem como abstraes se confrontadas com as prticas e as experincias, vivenciadas pelas mulheres.

1. PODERO significado mais geral da palavra poder indica uma certa capacidade ou possibilidade de ao, de produes de efeitos, quer refira-se a pessoas, grupos humanos, quer a objetos ou fenmenos naturais. Quando digo: eu posso fazer isso, aquilo, o verbo (posso/poder) representa a quebra das dificuldades para a realizao de uma ao a qual, no meu entender, tenho a capacidade de executar. Substantivado, enquanto o poder, o termo recebe, entretanto, uma outra conotao, diferindo em dimenso, da primeira forma expressa, sugerindo, agora, um distanciamento da nossa potencialidade ou capacidade de ao, ao expor um elemento abstrato com vrias significaes. As condies de igualdade, nas relaes de gnero que o verbo eu posso significou, desloca-se para um processo hierarquizado de capacitao. Ter o poder, ento, sexualiza-se, alm de esboar a nfase a mesclagem com as coisas ruins, situaes corruptas, etc., a ponto da mulher pretender-se distanciada desse estado impuro, ela que se considera pura.

O sentido especificamente social do poder, demonstrando-se este no relacionamento com a vida humana em sociedade, torna-o mais preciso e o lugar de sua conceituao tende a determinar-se desde a mais geral capacidade de ao humana at a determinao do comportamento de outro homem. o homem no s o sujeito mas tambm o objeto do poder social. (Stoppino:1995:933-34). Inscreve-se, neste mbito, o poder do pai dar ordens aos filhos ou do governo dar ordens aos cidados.

As mulheres em suas experincias de vida, trazidas de tempos pretritos (desde antepassados), descobriram que os que exerceram o poder danificaram as relaes humanas criando a submisso, a explorao, o autoritarismo e violando os direitos humanos. Tm sido elas as maiores vtimas do autoritarismo, fenmeno poltico que as exclui sumariamente do poder substantivo (o poder).

O sentido poltico do poder incide na conceituao do que seja poltica, atividade garantida pela fora, cujos fundamentos encontram-se nas leis do direito na segurana externa e na concrdia interna de uma unidade poltica particular(Lebrun, 1981:11). A noo de fora tende a garantir a engrenagem do poder. Veja-se um exemplo: ao partido mais votado numa eleio democrtica diz-se que este tem fora poltica para a mobilizao de seus eleitores. Isto no significa necessariamente o uso de meios violentos para a garantia do comportamento do eleitorado (embora em alguns casos isso ocorra, quando h ameaa de rupturas). A fora pode permear uma atitude de seduo do ser amado, numa relao amorosa quando est em jogo o processo de deciso sobre algo. Determinada pela potncia, a fora define o ordenamento das relaes sociais e polticas.

Max Weber (1994:33) considera o poder como toda a probabilidade de impor a prpria vontade numa relao social, mesmo contra resistncias, seja qual for o fundamento dessa probabilidade. Isto quer dizer que existe poder quando uma certa fora se efetiva atravs de uma ordem que supostamente deve ser cumprida. Deste autor emergem algumas teses:

a) a coero essencial para a obedincia poltica exercida ou pelo temor ou pela perspectiva de uma possvel coao. Um exemplo disso tem-se diariamente ou melhor do dia de pagar as contas de luz, gua, ou outro imposto qualquer. Embora no haja presso alguma para que minhas constas, sejam pagas, caso haja esquecimento de faz-lo no dia marcado, isso vai incidir em multa. E se eu no pagar mesmo, a minha gua ou luz ou telefone ser cortado.

b) A posse do poder s se d s custas do no-poder de outra pessoa. A sociologia norte americana explica isso pela teoria do poder soma-zero. Um exemplo pode ser tomado da relao entre um professor e seus alunos. O tratamento entre eles pode ser num nvel altamente democrtico, entretanto, ao dar-lhes notas, nas provas, o professor demonstra um tipo de poder sobre os alunos que resulta em evidenciar o no poder destes. S se compreender intersubjetivamente as relaes de poder se houver respostas para as questes de identificao de posio inferior/superior numa dada situao. No caso da sala de aula, v-se que a posio superior est com o professor.

H um outro autor, Nicos Poulantzas (1977), que entende o poder como uma das capacidades das classes sociais conquistarem seus interesses especficos. Diz que cada classe social tem seu poder delimitado pelo lugar que outras classes ocupam, sendo que o poder no uma qualidade ligada a uma classe em si, dependendo das relaes que cada agente ocupe nos lugares materiais. O poder poltico que d base ao Estado, liga-se a organizao de poder de uma classe e a posio de classe na conjuntura (entre outros fatores, organizao em partido), com as relaes de classe constitudas como foras sociais, logo com um campo estratgico propriamente falando. O pode poltico de uma classe, sua capacidade de concretizar seus interesses polticos, depende no apenas de seu lugar ( de sua determinao) de classe em relao as outras, mas tambm de sua posio e estratgia diante delas, o que denominei como estratgia do adversrio (1977:169).

O Estado no seria nem o objeto depositrio da essncia instrumental de posse da classe dominante nem o sujeito que detm grande quantidade de per responsvel pela tomada de poder da classes, num confronto entre eles. O Estado o lugar onde a classe dominante organiza suas estratgias de luta em relao as classes dominadas. um espao onde se realiza o exerccio de poder, visto que ele no possui poder prprio. As lutas polticas referentes ao Estado e agindo sobre ele, se inscreveram na sua estrutura, levando a concluses polticas.

O campo de constituio das relaes de poder das classes, liga-se por um mecanismo material de distribuio de lugares, no bojo da diviso social do trabalho, tendo base determinante mas no exclusiva na explorao. Isto explica a diviso da sociedade em classes explicando tambm as lutas de classes e as lutas populares. Desse modo, considera-se que toda a luta, mesmo aquelas heterogneas s lutas de classe (luta entre homens e mulheres, por ex.) s tem sentido numa sociedade em que o poder todo ele utilizado pelo Estado (a falocracia ou a familiar, no caso) como dispositivo do poder de classe na medida em que as lutas de classe existem e permitem assim que outras lutas se desenrolem (o que deixa intata a questo da articulao efetiva ou no, desejvel ou no, destas lutas como as lutas de classe) (1977:180).

As anlise de outro autor, Michel Foucault (1979) sobre o poder molecular e perifrico, mostram que os poderes no se localizam em nenhum ponto particular do sistema social, funcionando como uma rede de mecanismos que a todos atinge; demonstra com isso que o poder no propriedade de ningum; o poder, a rigor, no existe, mas sim prticas ou relaes de poder, quer dizer, o poder algo que se exerce, que se realiza; uma maquinaria sem lugar exclusivo embora seja difundido por todo o sistema social. O exerccio do poder leva s lutas particulares contra suas prticas que podem ser canalizadas de fora, visto que no h iseno de poder. Qualquer luta sempre resistncia dentro da prpria rede de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ningum pode escapar: ele est sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relaes de fora. E como onde h poder, h resistncia, no existe propriamente o lugar de resistncias, mas pontos mveis e transitrios que tambm distribuem por toda a estrutura social. A rejeio de Foucault se d s concepes do poder como mercadoria, base das anlises em torno das relaes do modelo econmico.

Foucault repele o fundamento do fenmeno poder, relativo lei ou represso, quer dizer, ele desenvolve uma concepo no jurdica do poder. Ele procura mostrar que as relaes de poder no tm base nem em nvel do direito, nem na violncia, nem contratuais, nem repressivos. Suas obras procuram demonstrar que falsa a definio de poder como algo que castiga, que limita. concepo de poder de Estado como mecanismo repressor incidindo na violncia, coero, opresso aos cidados, Foucault contrape uma concepo positiva de poder, pretendendo a dissociao entre dominao e represso. Para o autor, a represso exclusiva no teria foras de manter a dominao capitalista. Ele no v s o aspecto negativo desse poder, a fora destrutiva dele, mas a reflexo ao seu lado positivo, ou seja, o que ele tem de transformador, de produtivo, aspecto explicativo para o fato do corpo humano ser o alvo desta positividade, com vistas ao aprimoramento, ao adestramento deste corpo.

A ao positiva do poder segundo Foucault, gerir a vida dos homens, control-los em suas aes para que seja possvel e vivel utiliza-los ao mximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeioamento gradual e contnuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econmico e poltico: aumento do efeito do seu trabalho, isto , tornar os homens fora de trabalho dando-lhes uma utilidade econmica mxima; diminuio de sua capacidade de revolta, de resistncia de luta, de insurreio contra as ordens do poder, neutralizao dos efeitos do contra-poder, isto , tornar os homens dceis politicamente. Portanto aumentar a utilidade econmica e diminuir a fora poltica(p.58).

Em todas estas teorias que foram expostas, procurando criar subsdios para mostrar a insero da mulher como sujeito tendente ao domnio social, familiar, profissional e poltico, observa-se que, cada uma dessas teorias trs subsdios para a investigao e anlise de como se realizam esses mecanismos de submisso, internalizados e aceitos pela maioria das mulheres. H, sem dvida, responsabilidade do Estado nessa questo, porque legitima certas formas de dominao, criando mecanismos inconscientes de aceitao da mulher submisso. A disseminao de aparelhos ideolgicos elaborados pela sociedade civil, que contribuem para a persistncia ao conservadorismo e aos comportamentos formais espectantes pela sociedade de um poder de Estado, interessado na sua estabilidade, mas tambm assumido pelo poder de classe que procura apoiar o rgo legitimador das ideologia desta classe.

Na relao de dominao microfsica entre os gneros, ou seja entre o homem e a mulher, ao mesmo tempo em que os mecanismos do poder institucionalizado mantm uma ao socializadora comprometendo o comportamento entre ambos, dentro de suas relaes mais ntimas, h formas de dominao que no so exclusividade dos mecanismos dos aparelhos ideolgicos de Estado. Trata-se de efeitos do micro-poder que muitas vezes vo tornar-se elementos importantes na rede de mecanismo ou no sistema central de poder da estrutura social.

2. A luta da mulheres pela igualdade nas relaes de poderNa histria das mulheres, a presena permanente do controle como funo norteadora dos comportamentos, suscita pensar em uma forma de planejamento da vida de cada uma, nas suas atividades, nos seus gostos e saberes, usando-se modelos inscritos na estrutura formal dos costumes. Mas, para cada mecanismo desses inscreve-se uma forma de resistncia.

Xenofonte (Sec. IV. A C), ao tratar da educao da mulher, revela a coero e a tica de aprendizado das funes naturais desta:

...que viva sobre uma estreita vigilncia, veja o menor nmero de coisas possvel, oua o menor nmero de coisas possvel, faa o menor nmero de perguntas possvel. (Pitanguy & Alves, 1985:12).

Excluda das atividades consideradas mais nobres como a filosofia, a poltica e as artes, o campo dito masculino, a mulher grega v demarcado seu campo de atuao para as funes domsticas, com a afirmao de que os deuses a teriam criado para essas tarefas. H uma exceo, contudo: as cortess cultivam as artes objetivando agradar os companheiros nos momentos de lazer. A poetisa Safo (626 A C) nascida na ilha de Lesbos, inclui-se entre as dissidentes submissas domesticidade, criando um centro para formao intelectual da mulher. Seus poemas, fragmentos de cnticos aos deuses e ao amor, incluem-se entre as obras dos ilustres da literatura da Grcia Antiga.

Entre os romanos, o discurso de sujeio feminina encontra-se legitimado pelo cdigo legal que institui o poder do paterfamlia. Mas no se pode dizer que a instituio jurdica tenha assegurado a sujeio. notria a passeata organizada pelas mulheres romanas, em 1195 a.C., em protesto contra a excluso do uso dos transportes pblicosprivilgio masculinoe a obrigatoriedade de se locomoverem a p. (Idem, p. 14).

O Manifesto do Senador Marco Porcio Cato aponta o nvel de resistncia dessas mulheres e a relao de poder existente entre os sexos:

Lembrem-se do grande trabalho que temos tido para manter nossas mulheres tranqilas e para refrear-lhes a licenciosidade, o que foi possvel enquanto leis nos ajudaram. Imaginem o que suceder, daqui por diante, se tais leis forem revogadas e se as mulheres se puserem legalmente considerando, em p de igualdade com os homens! Os senhores sabem como so as mulheres: faam-nas suas iguais, e imediatamente elas querero subir s suas costas para govern-los. (Idem, p. 14-15).

Na Glia e na Germnia a comunidade formada por homens e mulheres convivia num mesmo espao de atuao, guerreando, participando dos Conselhos Tribais, da agricultura, construindo suas casas e apascentando o rebanho. Constituam-se at em juzas dos prprios homens.

Na Amrica do sculo XVI, os escritos dos cronistas europeus apontam para uma restrita diviso entre a economia domstica e a economia social, nas sociedades de caadores e coletoras. Dizem estes que inexistia a hierarquia e o controle entre os sexos na tomada de decises. As mulheres participavam ativamente das discusses em que estavam em jogo o interesse da comunidade. (Idem, p.16).

Estes exemplos, desmistificam a idia de um destino irrevogvel nico submetendo as mulheres que procuram estabelecer suas prprias prticas em confronto com as aspiraes do outro ( homens, leis, cultura).

Nos primeiros sculos da Idade Mdia quase todas as profisses eram acessveis s mulheres, assim como o direito de propriedade de sucesso, participao das assemblias (as mulheres da burguesia nascente), com direito a voto, ou das discusses comunitrias. O contigente feminino adulto predominava e assumia os negcios da famlia devido ao afastamento dos homens pelas constantes guerras, longas viagens ou a recluso aos mosteiros. Para essa atividade, era necessrio que as mulheres entendessem de contabilidade e legislao, sendo elas as responsveis pelas transaes comerciais e defesa em juza. Nas corporaes de ofcio elas atuavam como aprendizes e, excepcionalmente (morte do marido), como mestres. A insero nessa atividade levava-as a probabilidade de receber instruo profissional, direito que elas viriam a perder nos sculos posteriores e que seria uma de suas bandeira de luta. (Idem, p. 17). Havia mulheres serralheiras, carpinteiras, comerciantes. A indstria domstica, principalmente a de alimentos e a de tecelagem, era dominada pelas mulheres, constituindo-se na principal fonte de renda ou ento uma complementao renda familiar.

O trabalho feminino sempre foi desvalorizado e mal pago, entretanto a insero delas no mercado provoca a hostilidade dos homens devido a competio causando a queda do nvel salarial geral. Este trabalho no lhes dava prestgio social, visto que o valor medieval concentrava-se na posse da terra e no ascenso espiritual..

Note-se que h uma presena histrica e reveladora das mulheres nas atividades histricas da sociedade, mas a sua imagem, romantismo de cavalaria converte-se numa mulher frgil e indolente, entretida em bordados e bandolins a espera de seu cavaleiro andante. (Idem, p. 19) . So imagens distorcidas da realidade e da experincia concreta vivida pelas mulheres, que entretanto exclui a grande massa (o retrato de uma mulher da classe alta ou da nobreza), que vive o seu cotidiano na fbrica nos bastidores dos castelos e nas ruas.

nessa poca medieval que o discurso religioso vai desvelar-se mais aterrador contra a s mulheres cujos conhecimentos sobre as ervas medicinais a alquimia, amedrontaram o poder da Igreja Catlica que por esse e outros fatores institui a chamada Santa Inquisio iniciando a caa as bruxas. Estas, marcadas pela figura diablica de Eva, surgem contraditrias e contrapostas a outra figura, a de Maria, exaltada como modelo a seguir. O estigma de Eva, responsvel pela queda do homem torna-se a imagem instigadora do mal, cuja sexualidade considerada a fonte de malefcios.

A perseguio s bruxas expressa uma preocupao nas rupturas enfrentadas pela hierarquia de poder que via abalada a posio social por reconhecer, no saber das mulheres, uma fonte de novos conhecimentos.

O controle sobre a mulher, ser o mote do discurso cientfico da poca. O organismo feminino, apontado constitudo de elementos comprovadores da inferioridade do gnero.

Juntos discurso religioso e discurso mdico encarregam-se de excluir a mulher dos espaos que ela circulava. Por exemplo, a medicina instaura-se como uma instituio masculina que advoga o monoplio do saber e do poder de cura. E o advoga sobretudo pela perseguio prtica feminina com tratos com ervas e do atendimento aos partos. Era a mulher, curandeira e parteira, secularmente encarregada da sade da populao, o principal concorrente a ser eliminado para o estabelecimento da hegemonia da medicina. (Idem, p.22).

Questiona-se o corpo da mulher, o saber da mulher, os elementos orgnicos e mentais que constituem o ser mulher. Reduz-se seus direitos civis e polticos reintroduzindo-se no renascimento medieval, a Legislao Romana. Ela excluda dos bens por herana e do espao do trabalho ento valorizado.

Este discurso, entretanto, no foi bastante para restringi-la ao espao do lar. O discurso de desvalorizao do trabalho feminino, alijou-a de determinadas reas de atividades embora a sua permanncia em outras, consideradas femininas, menos qualificadas e onde a remunerao era mais baixa. Inscrevem-se neste mbito os trabalhos a domiclio, para os quais era contratada e ainda hoje muito usada nas indstrias de confeco.

Quanto educao, estimulava-se a instruo masculina, e criava-se obstculos insero das mulheres. As escolas pblicas favoreceram aos homens enquanto constam dos currculos das escolas femininas, as prendas domsticas tornando-as carente de uma formao que as preparasse para o ensino superior.

Com este quadro, seria impossvel permanecer no silncio.

A norte americana Ann Hutchinson, no sculo XVII, em pregaes na sua comunidade, afirma que Deus criou homens e mulheres no mesmo nvel de igualdade, discurso que rompe a hegemonia dos dogmas calvinistas da supremacia masculina. Ann Hutchinson foi condenada ao banimento, em 1637.

Abigail Adams escreve ao marido John Quincy Adams, lder da guerra de Independncia americana, reivindicando s mulheres os direitos contidos na Declarao da Independncia, recebendo deste a seguinte resposta: quanto ao seu extraordinrio cdigo de Leis, eu s posso rir. Nossa Luta, na verdade, afrouxou os laos de autoridade em todo o pas. Crianas e aprendizes desobedecem, escolas e universidades se rebelam, ndios afrotam seus guardies e negros se tornam insolentes com os seus senhores. Mas a sua carta a primeira intimao de outra tribo, mais numerosa, e poderosa do que todos estes decorrentes (...) esteja certa, ns somos suficientemente lcidos para no abrir mo de nosso sistema masculino. (Idem, p. 31).

Olympe de Gouges, que fora analfabeta at a idade adulta liderou as mulheres francesas no processo da Revoluo Francesa, reclamando o direito de voto as mulheres e o direito destas exercerem um ofcio, procura interferir nos debates e nas lutas de outras causas sociais. Ao perceber que a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado proclamada em 1789 no contemplava a cidadania das mulheres denuncia as teias do discurso, procurando reformular a carta redigindo ento a Declarao dos Direitos da Mulher e da Cidad, em 17 artigos, reivindicando o mesmo nvel de tratamento para os dois sexos. Isso em 1791. Uma segunda proposta sua para que fosse escolhido atravs de referendum um sistema de governo federativo ou monrquico, para a Frana, carreou-lhe a inimizade de Marat e Robespierre. Por ter cometido o delito de haver esquecido as virtudes de seus sexo e intrometer-se nos assuntos da Repblica foi denunciada pelo procurador Chaumette, sendo presa e guilhotinada em 3 de novembro de 1793.

Em 1792, a inglesa Mary Wollstonecrafft lana suas Reivindicaes aos Direitos da Mulher pleiteando a cidadania feminina. Contesta as diferenas naturais que pontuam o carter e a inteligncia de meninos e meninas.

Com o sistema capitalista consolidado, no sculo XIX, o processo produtivo institui novas formas de organizao de trabalhos, com profundas conseqncias para a mo-de-obra feminina, principalmente. Tecnologias sofisticadas para a poca e introduo de novos maquinrios no sistema manufatureiro e fabril, deslocam as tarefas executas a domiclio, paras as fbricas fazendo crescer a mo-de-obra operria que vai ser obrigada a suportar de 14 a 18 horas/dia de trabalho, em pssimas condies com a super explorao s diferenas salariais. Desqualifica-se e subalterniza-se o trabalho feminino na produo fabril, sintoma da deteriorao e da formao profissional da mulher desqualificada desde o Renascimento. O operariado feminino organiza-se. Reclama, greva e luta pela educao necessria s melhorias de sua qualificao profissional. Nomes como o de Jeanne Deroin e Flora Tristan emergem como liderana desses movimentos, na Frana, criam-se associaes sindicais mas, nos confrontos, as mulheres e seus companheiros so presos.

Em NY as operrias da indstria txtil organizam uma passeata pela ruas da cidade protestando pelos baixos salrios e contra a pesada carga horria de trabalho (reivindicam 12 horas). So reprimidas violentamente pela polcia, algumas so presas, outras saem feridas. O dia 8 de maro de 1857.

Em outro 8 de maro, 51 anos depois (1908), tambm em NY, novamente as operrias saem s ruas exigindo uma legislao de proteo ao trabalho infantil e o direito ao voto da mulher. Mais uma vez so reprimidas, feridas e presas.

Percebe-se que h uma histria das lutas que as mulheres empreenderam por melhores condies de vida, de trabalho e pelo direito cidadania, sendo estas as duas frentes reivindicatrias que vo marcar os seus protestos no sculo XIX. Trata-se de um percurso significativo nessa histria de lutas e conquistas pelo direito ao trabalho, s decises polticas, cujos os acontecimentos eclodiram nos variados pontos do mundo.

E no Brasil, como esto as brasileira nesse cenrio? Revista, jornais, panfletos, surgem no Brasil desde o sculo XIX com nomes dos mais expressivos circulando no meio das denncias e protestos. conhecido e reconhecido o de Bertha Lutz, criando, em 1919, a Liga Feminina pela Emancipao da Mulher, mais tarde transformada em Federao Brasileira pelo Progresso Feminino que vai lutar pelo sufragismo.

Recuado no tempo v-se o papel destacado da riograndense do Norte, Nsia Floresta Brasileira Augusta com atuao nos movimentos indigenistas, abolicionista e republicano. Escreve cerca de quatorze obras publicadas, escritas em francs e italiano. Seus 28 anos de vida na Europa trouxeram-lhe o respaldo intelectual e a aproximao com George Sands, Alexandre Herculano, Augusto Comte, entre outros. Fez publicar em Recife, em 1832, os Direitos das Mulheres e Injustias dos Homens traduo livre da famosa Vindication of the Rights of Woman,, da inglesa Mary Wollstonecrafft. Nisia pode ser considerada a primeira brasileira a reinvindicar os direitos da mulher.

O fluxo e o defluxo dos movimentos reivindicatrios organizados pelas mulheres brasileiras marcaram calendrio vasto.

1932 conquista do direito do voto.

1960 efervescncia das lutas em outras fontes, alm de reivindicaes pelas igualdade de direitos polticos, trabalhistas, civis, corroborando os questionamentos sobre as razes culturais das desigualdades, denncias aos modelos institudos do eterno feminino ou naturalizao de uma condio calcada em fatores biolgicos. Questiona-se o nascer mulher e demonstra-se, parafraseando Simone de Beavoir que no se nasce mulher, torna-se mulher sendo o masculino e o feminino construes culturais.

Ao investirem nas suas frentes de luta as mulheres passaram a ter uma dcada, um ano internacional, um dia. Passaram a ser rea de estudos nas universidades e passaram a engajar-se na identificao de uma teoria feminista, utilizando-se de correntes tericas as mais variadas, que sem dvida contriburam para um maior discernimento e uma desconstruo do discurso de um destino nico. Assuntos como sade, sexualidade, violncia, ideologia, formao profissional e mercado de trabalho, alm de educao, passaram a fazer parte dos temas levantados de forma geral, por se constiturem nas reivindicaes fundamentais de suas lutas atuais. O jargo da cidadania ainda no arrefeceu de denncias levantadas pelas mulheres que hoje exigem uma cidadania de qualidade.

E as paraenses, estas no estiveram de fora do processo de transfornmao porque passou o gnero feminino ao longo desta histria de lutas, de conquistas. H dados que apontam para o percurso de lutas e conquistas destas mulheres, no mbito da Sade, da profissionalizao, da poltica e da cidadania.

Pioneiras, percursos, lutas e conquistas, reivindicaes, resistncias submisso so partes do processo de conscientizao e que nos levam a questionar os mecanismos das relaes de poder.

No queremos mais o olhar que discrimina mas o olhar perifrico aquele que inclui na cidade, no campo, os sujeitos que constrem esse espao, o olhar que percebe o meio ambiente mas que sabe que a poltica e o poder tm que levar em conta a pobreza e a misria, os usos, os hbitos do/a cidado/. O olhar perifrico inclui, no plano poltico os que so tendentes, no discurso oficial, a ficar de fora.

No processo de esclarecer sobre as marcas de um passado de lutas e conquistas, torna-se mais fcil entender a frase que encima esta minha interveno: mulher e poder. A luta pela cidadania de qualidade sempre esteve ao alcance das bandeiras levantadas pelas mulheres, quer pioneiras ou as de ltima hora que vem sempre oscilar sua frente o pndulo para a valorizao/desvalorizao, de acordo com as intempries indigestas do sistema econmico hierarquizado. Toma-se aqui o exemplo das pioneiras que se desviaram do modelo institudo e seguiram em frente com os resultados disso, fazendo-nos questionar o meio ainda hoje masculinizado, o do poder e o das relaes de gnero mostrando que as mulheres esto atentas ao futuro que querem para si e para o seu espao social.

Espero que saiamos daqui com o compromisso de no deixar a vontade de inovar, de criar, de surpreender, para que no definhe, se dilua, se extinga a vontade de querer. um compromisso que temos que firmar entre ns prprias, com as nossas filhas e filhos, nossas netas e netos, com as geraes futuras. As cartas esto lanadas. Faamos o nosso prprio jogo.