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1 RELAÇÕES DE GÊNERO E DIREITOS HUMANOS: UMA ABORDAGEM SÓCIO- HISTÓRICA Andréia de Fátima Guimarães 1 RESUMO: O presente artigo apresenta os resultados de estudos e pesquisa de natureza bibliográfica realizados em um projeto de iniciação científica. O objetivo foi refletir e analisar a trajetória sócio- histórica da construção dos direitos humanos, demarcada pelo contexto de organização política dos povos e das sociedades, das contradições presentes nos modos de produção, das ideologias e das expressões de preconceito e discriminações embutidas e presentes nas relações sociais. Observa-se que os debates que circundam a construção e as buscas de efetivação dos direitos humanos são permeados de embates e conflitos, por transformações e expressão de contradições. Os estudos realizados mostram que o posicionamento das mulheres enquanto sujeitos políticos, caracteriza-se pelas buscas da construção da igualdade nas relações de gênero, compreendida como a construção social com base no sexo e que não se separa das lutas com conotação de classe e de raça/etnia. Foram realizados estudos sobre a trajetória social dos direitos humanos, tendo por referência básica o texto de Trindade (2002) e outros que favoreceram os entendimentos sobre as questões das mulheres e das relações de gênero (ALMEIDA, 2005; NOBRE, 2003; SAFFIOTI 1999, 2003, 2004; SILVA, 2011). O processo de apropriação teórica do debate sobre os direitos humanos, das lutas das mulheres e da construção teórica de gênero, demonstrou que os conceitos, categorias e noções subsidiárias ao debate sobre o machismo, o sexismo e o patriarcado, são os mesmos que explicam as desigualdades sociais (classes sociais, raça/etnia e gerações) numa perspectiva de totalidade, da dinâmica que rege a vida em sociedade. PALAVRAS-CHAVE Direitos humanos, gênero, mulheres INTRODUÇÃO: A proposta deste artigo é apresentar os resultados de estudos e pesquisa de natureza bibliográfica realizados no Projeto de Iniciação Científica PIBIC, com os objetivos de analisar o percurso sócio-histórico dos direitos humanos, buscando verificar como se deu o movimento que gerou condições históricas de uma abordagem sobre a desigualdade entre homens e mulheres para a proposição de uma igualdade de gênero. Destaca-se assim, que para dar conta desta proposta de pesquisa foram realizadas leituras, estudos, fichamento dos textos e a análise de documentos selecionados. Na primeira 1 Acadêmica do 4º ano do curso de Serviço Social da Unioeste/ campus Toledo/Pr. [email protected] , (45) 9856 3572. Texto decorrente do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC): Serviço Social, gênero e diversidade humana, orientação da Professora Dra. Rosana Mirales (Unioeste Campus de Toledo/PR), com bolsa da Fundação Araucária/PR. Como conclusão do projeto, foi apresentado texto no Encontro de Iniciação Científica de 2013.

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RELAÇÕES DE GÊNERO E DIREITOS HUMANOS: UMA ABORDAGEM SÓCIO-

HISTÓRICA

Andréia de Fátima Guimarães1

RESUMO: O presente artigo apresenta os resultados de estudos e pesquisa de natureza bibliográfica

realizados em um projeto de iniciação científica. O objetivo foi refletir e analisar a trajetória sócio-

histórica da construção dos direitos humanos, demarcada pelo contexto de organização política dos

povos e das sociedades, das contradições presentes nos modos de produção, das ideologias e das

expressões de preconceito e discriminações embutidas e presentes nas relações sociais. Observa-se que

os debates que circundam a construção e as buscas de efetivação dos direitos humanos são permeados

de embates e conflitos, por transformações e expressão de contradições. Os estudos realizados

mostram que o posicionamento das mulheres enquanto sujeitos políticos, caracteriza-se pelas buscas

da construção da igualdade nas relações de gênero, compreendida como a construção social com base

no sexo e que não se separa das lutas com conotação de classe e de raça/etnia. Foram realizados

estudos sobre a trajetória social dos direitos humanos, tendo por referência básica o texto de Trindade

(2002) e outros que favoreceram os entendimentos sobre as questões das mulheres e das relações de

gênero (ALMEIDA, 2005; NOBRE, 2003; SAFFIOTI 1999, 2003, 2004; SILVA, 2011). O processo

de apropriação teórica do debate sobre os direitos humanos, das lutas das mulheres e da construção

teórica de gênero, demonstrou que os conceitos, categorias e noções subsidiárias ao debate sobre o

machismo, o sexismo e o patriarcado, são os mesmos que explicam as desigualdades sociais (classes

sociais, raça/etnia e gerações) numa perspectiva de totalidade, da dinâmica que rege a vida em

sociedade.

PALAVRAS-CHAVE Direitos humanos, gênero, mulheres

INTRODUÇÃO: A proposta deste artigo é apresentar os resultados de estudos e pesquisa de

natureza bibliográfica realizados no Projeto de Iniciação Científica – PIBIC, com os objetivos

de analisar o percurso sócio-histórico dos direitos humanos, buscando verificar como se deu o

movimento que gerou condições históricas de uma abordagem sobre a desigualdade entre

homens e mulheres para a proposição de uma igualdade de gênero.

Destaca-se assim, que para dar conta desta proposta de pesquisa foram realizadas

leituras, estudos, fichamento dos textos e a análise de documentos selecionados. Na primeira

1 Acadêmica do 4º ano do curso de Serviço Social da Unioeste/campus Toledo/Pr. [email protected], (45)

9856 3572. Texto decorrente do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC): Serviço Social, gênero e diversidade

humana, orientação da Professora Dra. Rosana Mirales (Unioeste – Campus de Toledo/PR), com bolsa da

Fundação Araucária/PR. Como conclusão do projeto, foi apresentado texto no Encontro de Iniciação Científica

de 2013.

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fase do projeto, realizou-se a leitura do livro de Trindade (2002) e dos textos de Saffioti

(1999) e de Silva (2011), sendo realizados estudos, discussões, a formulação de fichamentos e

de uma resenha. Foram lidos e fichados também os textos de Almeida (2005) e de Saffioti

(2003), sendo que nesse texto, para além do fichamento, foi elaborada uma síntese

interpretativa, a partir do conceito de gênero exposto pela autora.

Desta forma, a partir das leituras e estudos realizados, partindo do pressuposto de que

os direitos humanos são universais, interrelacionados e indivisíveis, observa-se que a

trajetória sócio-histórica destes, expressa as correlações de força que tem fonte nas lutas entre

as classes sociais, que não se separa da luta por mudanças na sociedade, e pelo fim do

capitalismo, do racismo, do machismo. Ou seja, pela alteração das relações sociais, que são

exigentes de formas de consciência e posicionamentos dos sujeitos políticos diante da

exploração e da desigualdade. Essas lutas, levadas historicamente em torno da construção dos

direitos humanos, geraram condições para concretização de mudanças sociais, políticas,

econômicas e culturais, como aquelas iniciadas na Europa, mais especificamente na França e

na Inglaterra, continente que se configurou o movimento revolucionário do século XVII e

XVIII.

Um dos marcos de abrangência em torno dessas discussões foi a Revolução Francesa

deflagrada em 1789 e a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em

1791, a qual também desencadeou, em diferentes países, a mobilização, organização e a busca

por mudanças, que foram de significativa importância para a sociedade e a concepção de

mundo, de homem e dos direitos.

Esta Declaração de 1791 foi um mecanismo que se posicionou contra a sociedade

hierárquica de privilégios, mas não como um manifesto em favor de uma sociedade

democrática e igualitária, no sentido de que a igualdade foi mencionada somente no aspecto

civil, sem o propósito de sua extensão social, política ou econômica.

No século XX, modelos de governos extremos, ditatoriais, nazistas e fascistas

instauraram-se na Europa, suscitando uma grave crise dos direitos humanos, abalando

fortemente os princípios pelos quais as organizações populares lutavam – liberdade e

igualdade. Após o término da Primeira Guerra Mundial, foi tomada a iniciativa de um

consenso entre os países por meio do Tratado de Versalhes, formulado pela Liga das Nações e

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firmado entre Alemanha, os Aliados e Potências Associadas, com o intuito de manter a paz

mundial como proposta de evitar disputas pela conquista de mercado entre as grandes

potências econômicas e futuras guerras mundiais.

Este Tratado tinha como objetivo também assegurar os direitos humanos, porém não

vigorou, uma vez que, em seguida, a Segunda Guerra demonstrou ser um dos momentos

históricos de maior crueldade e desumanização, distanciando-se de qualquer possibilidade de

respeito aos direitos humanos.

Contraditoriamente, este mesmo contexto demonstrou e inseriu, como necessidade

histórica, a retomada da institucionalização desses direitos, quando foi criada a Organização

das Nações Unidas (ONU), dando movimento aos trabalhos e discussões sobre direitos

humanos, concretizando-se na formulação e proclamação pela Assembleia Geral das Nações

Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948.

Salienta-se, porém que, desde as primeiras formas de organização política na luta por

direitos humanos, sobretudo no processo que deflagrou a Revolução Francesa, marco dos

debates sobre a temática, as mulheres se colocaram como força na busca por garantia dos

direitos humanos, civis e políticos. No entanto, não houve apoio da organização masculina e

nem política, e aquelas que lideravam as lutas e reivindicavam por igualdade entre homens e

mulheres, acabaram sendo guilhotinadas. Assim, evidenciou-se que em nenhum momento,

naquela circunstância histórica, houve inclinação de estender às mulheres, direitos iguais aos

dos homens.

Com ampliação do capitalismo, que em seus momentos de crise conta com o processo

de fragilização em torno dos direitos trabalhistas, materializam-se os mecanismos que

demonstram as disparidades entre homens e mulheres. O desenvolvimento das relações

sociais, embute os mecanismos que demonstram as desigualdades entre homens e mulheres, e

que se expressam nas condições desiguais na oferta e acesso à educação e nos postos de

trabalho, de independência econômica, de representação política. Fato a dominação e

discriminação exercida pelos homens sobre as mulheres nos níveis econômico, social e

político, incorpora-se ao controle sobre sua sexualidade e consequentemente sua capacidade

reprodutiva.

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Assim, historicamente, o que ocorre é que, no contexto das relações de gênero,

engendram-se às formas de dominação-exploração capitalistas, outras formas de opressão

como os homens sobre a mulher, dos brancos sobre os negros e indígenas, dos adultos sobre

as crianças e os idosos. As diferenciações devido ao sexo geraram condições para que

mulheres sofressem com a discriminação de variadas maneiras, dentre elas a violência,

caracterizando uma das formas mais claras da imposição e expressão da opressão e do medo,

ocorrendo com intensidade no âmbito privado, no qual o marido/companheiro utiliza-se da

força ou de ameaças para impor o que ele considera como controle. Ocorre um mecanismo de

naturalização cultural desse fenômeno que é histórico e se transpõe para a esfera pública.

Contudo, onde há dominação-exploração, desenvolve-se também a resistência. Assim,

através da organização e mobilização das mulheres, na luta por direitos e chamando a atenção

para as expressões de discriminação, exclusão e poder envoltas nas relações de gênero, com

destaque para os atos violentos sofridos pelas mulheres e da impunidade aos agressores,

mudanças significativas passam a ocorrer a partir do século XX, com lutas e conquistas

referentes aos seus direitos, de medidas para o enfrentamento das relações de violência, bem

como a responsabilização do Estado na adoção de políticas de combate e de prevenção à

violência contra as mulheres.

No decorrer da década de 1970 o movimento das mulheres ganhou maior visibilidade,

sendo que na situação brasileira isso se fez juntamente com a reorganização dos trabalhadores

e dos movimentos sociais, na luta pela democracia.

A partir deste momento, discussões e encontros de abrangência internacional e

nacional passaram a ser realizados, conquistando espaços de representatividade, refletindo em

uma agenda de preocupações cada vez mais ampla.

No entanto, mesmo após conquistas, a perspectiva de direitos, de cidadania das

mulheres e de igualdade de gênero engatinha lentamente, tendo um longo caminho a ser

percorrido, porém não é possível segui-lo sem lutas e mobilizações para que estes direitos

permaneçam em discussão e sejam garantidos a todos.

DIREITOS HUMANOS E RELAÇÕES DE GÊNERO

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O processo histórico e a necessidade apresentada na/pela sociedade para a discussão e

construção dos direitos humanos, bem como a proteção em torno dos direitos civis, políticos,

econômicos, culturais e sociais, foi demarcado por transformações na conjuntura política,

econômica, cultural e social.

Foi possível observar que as ideias de direitos humanos originaram-se no conceito

filosófico de direitos naturais, que tem base racional, na perspectiva do jusnaturalismo2,

ligados aos interesses da burguesia. Ou seja, a burguesia revolucionária, naquela

circunstância, buscava demonstrar ser a classe portadora legítima de interesses universais e

era impedida de defender a ampla liberdade econômica, devido as amarras feudais.

Segundo Trindade,

[...] Nos séculos XV e XVI, essa classe burguesa em sentido estrito já era muito

ativa e influente na maioria das cidades da Europa ocidental. [...] a sociedade feudal

não combinava com as possibilidades que os burgueses viam diante de si. Os laços

senhoriais e a ideologia que os legitimavam eram camisas-de-força para expansão do

mercado, crescimento do trabalho assalariado, florescimento da produção de

mercadorias [...] Essa nova classe social tinha, pois, boas razões para ver com

interesse as reivindicações dos camponeses, porque também sentia, a seu modo, as

amarras do feudalismo (TRINDADE, 2002, p. 25).

Assim, o conjunto de contradições internas ao modo de produção feudal foi elemento

central de transformação, tornando-se concreto o desenvolvimento e consolidação do modo de

produção capitalista.

Ao longo da história e como contradição do próprio desenvolvimento capitalista, a

classe trabalhadora encontra meios de colocar-se com consciência para si, demarcando o

desenvolvimento da “questão social”3. Cabe ressaltar que é o século XX que marca ao mesmo

2 Para Mello (2002), jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecida como “direito

natural”, ou seja, um sistema de normas de condutas intersubjetivas diverso do sistema constituído pelas normas

fixadas pelo Estado (direito positivo, sendo entendido como o conjunto de princípios e regras que regem a vida

social de determinado povo em determinada época, abrangendo as leis, os regulamentos e as demais disposições

normativas). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior do direito positivo e, em caso de

conflito é ele que deve prevalecer. 3 De acordo com Netto (2010), Iamamotto (2011), a “questão social” é o resultado do antagonismo de classe, da

contradição capital e trabalho, onde o processo de acumulação do capital rebate diretamente na configuração

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tempo, um dos maiores conflitos que demarcou a violação dos direitos humanos (a Segunda

Guerra) e o começo de um período extremamente significativo na história, marcado ao longo

dos anos por mudanças, revoluções, avanços em diferentes aspectos, e principalmente no que

diz respeito aos direitos humanos e a incorporação de formas de entendimentos e conceitos

que garantiram os direitos das mulheres.

O autor Trindade (2002) destaca que, com a criação da ONU em 1945, pela Carta de

São Francisco, ao término da Segunda Guerra Mundial, buscou-se retomar o caminho da

extinta Liga das Nações, consolidando em 1948 a proclamação e adoção pela Assembleia

Geral das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, inaugurando o

direito internacional dos direitos humanos.

Esta Declaração objetivou-se como uma posição estratégica, não sendo possível

ignorar os pontos de vista da União Soviética, de seus aliados na Europa e do renascido

movimento dos trabalhadores, no sentido de aplacar a ofensiva capitalista.

De acordo com Almeida,

[...] A concepção oficial e formal de direitos humanos compreende o conjunto de

direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e é pautada nos princípios

da universalidade, indivisibilidade e interdependência. São princípios constitutivos

da sua dimensão filosófica, que amalgamam o discurso legal, mas provocam

polêmicas no debate político (ALMEIDA, 2005, p. 16).

Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, demarcou e

reconheceu que o âmbito que compõe os direitos humanos são todas as dimensões

relacionadas à vida com dignidade, sendo uma unidade universal, indivisível, interdependente

e inter-relacionada (TRINDADE, 2002).

No Brasil, com a efervescência dos movimentos sociais nas décadas de 1960-19704, há

a retomada do movimento feminista e os debates em torno das situações vivenciadas pelas

social e expressões da desigualdade vivenciadas pelo conjunto da classe trabalhadora, oprimidas pela disputa de

interesses, gerando impactos na conjuntura, isto é, na realidade histórica. 4 De acordo com Raichelis (1988), o Estado no pós-[19]64 no Brasil, submetido ao capital monopolista, revela

seu novo caráter: perdendo a ambiguidade que o caracteriza como populista, passa a operar como uma empresa

capitalista com objetivos de lucro, agenciando o capital e drenando o excedente econômico para os fins da

acumulação. Esse processo leva a um aprofundamento da crise em todos os níveis da sociedade: nas relações de

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mulheres e a luta por igualdade de direitos, pautados na DUDH, a qual estabeleceu que todos

têm capacidade de usufruir os direitos e liberdades fundamentais, independente de raça/etnia,

cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra condição, aumentando também

as pressões a iniciativas de discussões sobre as temáticas referentes às mulheres e a

responsabilização do Estado para a adoção de políticas.

Neste sentido, foi possível a incorporação das mulheres e de gênero nas discussões e

encontros ocorridos em âmbito internacional. Ocorreu, também, a incorporação de novos

conceitos e formas de entendimentos sobre os direitos das mulheres nos documentos

relacionados aos direitos humanos.

Ressalta-se que principalmente nas últimas três décadas, discussões e encontros de

abrangência internacional e nacional passaram a ser realizados, conquistando espaços de

representatividade, refletindo “[...] em uma agenda de preocupações cada vez mais ampla. As

mulheres participaram de forma organizada de todas as conferências promovidas pela

Organização das Nações Unidas (ONU) nos últimos anos [...]”. (NOBRE, 2003, p. 39).

Destacam-se nesse contexto: as Conferências realizadas pela ONU (principalmente as

de 1979 e 1995) e pela Organização dos Estados Americanos – OEA (1994), as quais

abordaram questões como: discriminação, desigualdade e violência enfrentadas pelas

mulheres; bem como a criação de mecanismos de controle e fiscalização para efetivar os

direitos das mulheres, como, por exemplo, o CEDAW - Comitê para a Eliminação de todas as

Formas de Discriminação contra a Mulher, que foi criado na ONU em 1979 (ONU, 1979).

Foi importante também, para entender o processo de lutas travadas pelo movimento

das mulheres enquanto sujeito político pela garantia e efetivação de direitos e as condições

que viabilizaram a realização das Conferências pelos organismos internacionais, o

desenvolvimento do conceito de gênero, a qual possibilitou a compreensão sobre o contexto

trabalho, nas esferas de consumo e da reprodução, nas relações de classe e nas suas expressões econômicas e

políticas. A reorganização do movimento popular após o intenso refluxo ocorrido basicamente no período do

milagre econômico (1969-1973) quando se intensifica os mecanismos de repressão e de enquadramento das

relações de classe às necessidades da reprodução do capital exigidas pela grande indústria multinacional. As

classes sociais reaparecem no cenário político, assumindo novos papéis, rearticuladas em movimentos sociais.

As classes populares iniciam seu processo de reorganização criando novas formas de manifestação, que muitas

vezes não se expressam às formas tradicionais de lutas e processos utilizados no passado. Começam a surgir

pequenas ações que levam a população a romper seu isolamento e se organizar em manifestações coletivas.

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histórico das relações sociais e das condições socioculturais, que ocasionaram a desigualdade

de gênero, perpassadas por ideologias, preconceitos, discriminação e opressão.

Segundo Saffioti (2003) gênero é a construção social que se faz em torno do sexo e

não expressa ou normatiza somente as relações sociais entre homens e mulheres, mas também

como o ser se coloca como sujeito, por meio de sua subjetividade, da identidade, na expressão

de si mesmo - de ser homem, mulher, gay, lésbica, bissexual, travesti, defender um ou outro

grupo, etc.

A autora, ao analisar o processo permanente da construção social de gênero, considera

gênero como uma categoria ontológica e histórica, e nesse sentido, concordando com Scott, e

considera ser um conceito relacional. Observa-se que historicamente, desenvolveram-se

na/pela sociedade concepções, ideais e padrões de comportamentos específicos para homens e

mulheres, principalmente ao se considerar a divisão técnica e sexual do trabalho, bem como

relações de poder e hierarquia dos homens sobre as mulheres. Determinou-se ao homem a

proteção e o provimento de condições materiais de sobrevivência para a família e à mulher a

responsabilidade de cuidar da casa, do marido e da educação dos filhos, com se essas

atividades e serviços, fossem extensão de sua condição física.

Saffioti (2003), utilizando-se da terminologia empregada por Lauretis (1987) –

“tecnologia de gênero”, refere-se à atribuição destas concepções como mecanismos

ideológicos, discursos hegemônicos, ou seja, práticas sociais e culturais, sendo desenvolvidas

e propagadas através do cinema, programas televisivos, de posturas epistemológicas, críticas,

etc.

A esta forma ideológica de organização da sociedade, estabeleceu-se, como um caso

específico de relação de gênero, o patriarcado, onde “as relações são hierarquizadas entre

seres socialmente desiguais” (SAFFIOTI, 2004, p. 119), elevando os homens às condições de

seres superiores, donos das mulheres, dos filhos, da produção, dos saberes e dos poderes, nos

espaços públicos e domésticos, recusando qualquer direito e potencialidade de igualdade.

Este sistema é carregado de heranças culturais, no qual os valores e a moral,

construídos social e historicamente pelos indivíduos sociais, “com determinações impostas

pelos antagonismos de classe e por densas e hierarquizadas relações de poder” (SILVA, 2011,

p, 52) incluindo as desigualdades advindas da condição de pertencimento de gênero, classe

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social, raça/etnia, contribuem para a manutenção da subalternidade das mulheres em relação

aos homens, expressando-se em relações de dominação e exploração. Porém, “o valor central

da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é o controle, valor que perpassa todas

as áreas da convivência social” (SAFFIOTI, 2004, p, 122).

Desta forma, nas relações de gênero, instituídas em nossa sociedade, constituíram-se

valores dominantes, colocando a mulher em situação de subordinação, sendo as diferenças

biológicas transformadas em desigualdade. As desigualdades de gênero se expressam das

mais variadas formas, seja no campo econômico, com discriminação de cargos de trabalho, de

remuneração e sobrecarga de funções; no campo político com pouca participação e

representação em cargos políticos ou no âmbito dos direitos.

Ressalta-se assim, que construir possibilidade de realização dos direitos humanos

significa dar passos efetivos ao acirramento das condições históricas que poderão ampliar as

perspectivas de igualdade de gênero, sem perder de vista que interior a esse debate há

diferentes visões de mundo que expressam concepções variadas sobre o ser social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A partir do proposto pode-se analisar que os direitos humanos

não se remetem somente a ideia da formulação de documentos, declarações e instrumentos

jurídicos para sua defesa, mas também ao processo e as condições históricas e objetivas que

perpassaram sua construção.

Observa-se que as lutas e revoluções deflagradas nas buscas de igualdade e a garantia

dos direitos humanos, que pressupõem os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e

culturais, bem como o jogo de poder, de interesses, visões de mundo como as socialistas e as

capitalistas, rebatem principalmente na resistência em discutir e garantir a efetivação destes

direitos.

A luta por garantia de direitos e igualdade de gênero tiveram expressões nas medidas

dos órgãos internacionais, como a realização de Conferências e a formulação de documentos

os quais abordaram as condições cotidianas e sociais vivenciadas pelas mulheres. Estes

eventos e documentos deles resultantes (Declarações, Plataformas, Cartas), serviram de base

para o fortalecimento da mobilização e organização política nacional, com propósito da

construção e a implementação de políticas, mudanças na ótica penal, jurídica e administrativa

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e possibilitaram condições objetivas para a realização de Conferências em âmbito nacional e a

formulação de Planos e políticas específicas, o que somente se efetivou a partir dos anos

2000.

No entanto, nota-se que, mesmo após importantes conquistas referentes aos direitos

humanos e às situações de violência vivenciadas pelas mulheres, como a realização das

Conferências, a incorporação da violência de gênero na pauta das organizações internacionais

e dos países disporem de instrumentos jurídicos para a garantia dos direitos humanos e das

mulheres, ainda há um abismo para sua real efetivação. Mais do que o direito formal, é

necessário e decisivo a dinâmica das relações sociais que os envolvem para lhes imprimir

eficácia.

Não serão apenas os aparatos legais, formais que terão condições para assegurar e

promover plena igualdade entre homens e mulheres, mas são necessárias mudanças materiais

que movam as perspectivas ideológicas e culturais, voltadas a forma de se pensar as relações

de gênero, pois estas relações são construídas e modificam-se na sociedade, por meio das

relações sociais.

É necessário romper com os limites postos pelas relações capitalistas, ressaltando-se o

compromisso do Estado em prover e assegurar que os direitos humanos não sejam violados,

observando as particularidades e transformações políticas, econômicas, culturais e sociais,

buscando a real efetivação dos mecanismos que primam pela igualdade, tendo em vista um

projeto societário emancipatório, apontando para a construção de uma sociedade sem

desigualdades de classe, gênero e raça/etnia.

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