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GÊNEROS TEXTUAIS E LETRAMENTO GENRE AND LITERACY Maria do Socorro Oliveira – UFRN ([email protected] ) Resumo: Neste painel, pretendemos discutir a relação ‘letramento’ e ‘gênero textual’, considerando a rica complexidade que envolve não apenas esses objetos teóricos mas também a sua aplicação no domínio pedagógico, particularmente no que diz respeito ao ensino-aprendizagem de língua materna. Vincularemos a discussão à nossa experiência de ensino, pesquisa e extensão desenvolvida junto a programas de formação de professores voltados para a mobilização de práticas transdisciplinares de natureza colaborativa e fortalecedora. Nessa direção, indicamos os projetos de letramento como uma alternativa para o desenvolvimento de um trabalho contextualizado com os gêneros textuais. Palavras-chave: Letramento, gênero, formação de professor, ensino-aprendizagem de língua materna, projetos de letramento. Abstract: Our contribution to this panel intends to discuss how ‘literacy’ and ‘genres’ are related, taking into account the complexity involving not only these two theoretical concepts but also their implementation in the pedagogical domain, especially related to mother tongue learning-teaching. We intend to discuss that based on our experience in teaching, research and extension developed at teacher education programs aiming at transdisciplinary practices of colaborative and strengthening nature. To accomplish this task, we suggest literacy projects as an alternative to develop a contextualized work with genres. Keywords: Literacy, genre, teacher education, mother tongue learning-teaching, literacy projects. 1

Gêneros Textuais e Letramento

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Um artigo sobre letramento.

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  • GNEROS TEXTUAIS E LETRAMENTO

    GENRE AND LITERACY

    Maria do Socorro Oliveira UFRN

    ([email protected])

    Resumo: Neste painel, pretendemos discutir a relao letramento e gnero textual,

    considerando a rica complexidade que envolve no apenas esses objetos tericos mas

    tambm a sua aplicao no domnio pedaggico, particularmente no que diz respeito ao

    ensino-aprendizagem de lngua materna. Vincularemos a discusso nossa experincia

    de ensino, pesquisa e extenso desenvolvida junto a programas de formao de

    professores voltados para a mobilizao de prticas transdisciplinares de natureza

    colaborativa e fortalecedora. Nessa direo, indicamos os projetos de letramento como

    uma alternativa para o desenvolvimento de um trabalho contextualizado com os gneros

    textuais.

    Palavras-chave: Letramento, gnero, formao de professor, ensino-aprendizagem de

    lngua materna, projetos de letramento.

    Abstract: Our contribution to this panel intends to discuss how literacy and genres

    are related, taking into account the complexity involving not only these two theoretical

    concepts but also their implementation in the pedagogical domain, especially related to

    mother tongue learning-teaching. We intend to discuss that based on our experience in

    teaching, research and extension developed at teacher education programs aiming at transdisciplinary practices of colaborative and strengthening nature. To accomplish this

    task, we suggest literacy projects as an alternative to develop a contextualized work

    with genres.

    Keywords: Literacy, genre, teacher education, mother tongue learning-teaching, literacy

    projects.

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  • 1. Introduo

    Resultado das discusses empreendidas nas universidades nas dcadas de 70 e 80 e dos

    programas de renovao de ensino introduzidos nas diretrizes curriculares dos estados e

    municpios e nos materiais destinados formao continuada de professores, os

    Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) coleo de documentos publicados pelo

    Ministrio de Educao e Cultura em 1997 inauguram uma importante e desafiadora

    fase na educao brasileira que gera resistncias por parte daqueles mais apegados a

    concepes tradicionais de ensino e se apresenta como uma dificuldade para os

    professores que, por falta de formao adequada, sentem-se inseguros e/ou incapazes de

    implementar prticas didticas inovadoras fundamentadas em um conjunto de teorias at

    ento desconhecidas como objetos de ensino.

    Com vistas preparao de professores e de outros agentes educativos para as

    mudanas propostas nos PCN, bem verdade que o prprio MEC procurou assegurar o

    estudo e o debate dessa proposta curricular mediante a proposio de programas e

    projetos que atendessem, de forma ampla, comunidade educacional brasileira.

    Tambm nesse sentido, outros rgos oficiais (Secretarias de Educao, Diretorias de

    ensino etc.) promoveram, e continuam promovendo, cursos, encontros e debates para

    que os professores se apropriem dessa nova orientao e dos objetos tericos que a

    integram. No Brasil inteiro, instituies formadoras voltaram-se para a educao do

    professor. Dentre os diversos programas institudos para tal fim, serve como exemplo o

    Programa de Qualificao Profissional para a Educao Bsica (PROBSICA).

    Implementado em vrias cidades do Rio Grande do Norte, o PROBSICA tem como

    objetivo desenvolver uma poltica de formao para professores j no exerccio da

    docncia, mas sem titulao acadmica, a qual lhes possibilite a construo de saberes

    tericos e aplicados necessrios a uma prtica reflexiva e crtica em sala de aula.

    Graas a esse esforo, no h dvida de que uma gama de conceitos, oriundos de vrias

    reas, especialmente da lingstica terica e aplicada, instalou-se no discurso do

    professor. No apenas nos grandes centros educacionais mas tambm naqueles situados

    nos mais afastados rinces desse Brasil, a fala dos educadores brasileiros nunca esteve

    to recheada de modismos tericos quanto agora. Na voz dos professores, o que se

    ensina agora so os gneros textuais, sugeridos e explorados pelos livros didticos

    segundo uma perspectiva de letramento. Os professores tambm dizem que preciso

    alfabetizar letrando e no h dvida de que a linguagem uma prtica social. Esse

    discurso, embora revelador de que o professor fez ecoar a voz dos PCN, no se tem

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  • efetivado na prtica do professor. Nesse sentido, temos nos perguntado se, de fato, esses

    professores se apropriaram de tais conceitos ou se no houve apenas uma

    popularizao de determinados referenciais tericos. A nossa experincia em

    contextos de formao indica que a apropriao dessas noes no se tem efetivado do

    modo esperado ou desejvel. Quando averiguamos a atribuio de sentido que

    construda por grande parte dos professores, depreendemos que se trata de um discurso

    vazio, com significaes distorcidas e banalizadas.

    Desse modo, se, por um lado, podemos confirmar que os professores passaram a falar,

    por exemplo, de noes como letramento e gnero textual, graas divulgao

    desses termos pelos PCN e ao impacto de processos formativos oferecidos aos

    professores, por outro lado, a mobilizao desses saberes no contexto de sala de aula

    mostra-se problemtica. Na busca de uma apropriao que no se efetivou, o professor

    acaba desenvolvendo um trabalho intuitivo que mistura prticas tradicionais com um

    discurso pretensamente inovador caracterizado por entendimentos equivocados. E no

    poderia ser de outra maneira! Como poderiam ter um entendimento claro e se sentirem

    seguros acerca desses novos princpios se a prpria Academia os reconhece como to

    complexos, sendo ainda foco de acirrados debates por parte da comunidade cientfica?

    Transformar saberes cientficos em saberes a serem ensinados na prxis escolar,

    naturalmente no um trabalho fcil!

    Tendo em vista essa problemtica, as perguntas que orientam a nossa reflexo neste

    painel so: 1) Que contribuies podem trazer os estudos de letramento e gnero para o

    letramento do professor? 2) Como desenvolver com os professores prticas de

    letramento acadmicas (formao inicial e continuada) que sejam significativas para o

    trabalho cognitivo, social e poltico no letramento escolar? 3) Uma viso cannica do

    letramento aliada a uma abordagem de gneros centrada no ensino explcito dos textos

    valorizados nas culturas dominantes assegura o desenvolvimento da competncia leitora

    e escritora de aprendizes oriundos de variados contextos sociais? O letramento cultural

    impacta de igual forma ou garante, de modo integral, a incluso?

    Em suma: Em face do reconhecimento da diversidade social, dos inmeros contextos

    em que as prticas de leitura e escrita ocorrem, dos diferentes modos que as constituem

    e dos diversos valores que a ela so atribudos, como tratar o letramento e os gneros

    textuais, de modo a provocar impactos na formao docente e na apropriao de prticas

    letradas significativas pelo aprendiz de lngua, favorecendo, naturalmente, a incluso

    social?

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  • Responder a essas perguntas, fundamentados no modo como os professores tm

    significado as orientaes dos PCN e atuado na sala de aula, implica discutir a rica

    complexidade que envolve no apenas os objetos tericos letramento e gnero mas

    tambm a aplicao desses conceitos no domnio pedaggico, particularmente no que

    diz respeito ao ensino-aprendizagem de lngua materna.

    Faremos isso a partir da nossa histria de ensino, pesquisa e extenso desenvolvida

    junto a professores que trabalham em favor de grupos desfavorecidos social e

    economicamente crianas moradoras de favelas ou pertencentes zona rural e jovens

    e adultos que lutam para ter acesso a bens culturais e oportunidades sociais que se

    oferecem num mundo em constante transformao, palco da ps-modernidade e das

    novas Tecnologias da Informao e Comunicao (TIC).

    2. Situando a questo

    Como qualquer iniciativa de natureza oficial (apesar de se preocupar com os interesses e

    necessidades da comunidade escolar a quem destinada, ao levar em conta a cultura

    local dos seus membros os alunos e os professores , como interlocutores), a

    aplicao dos PCN (aqui falo de lngua portuguesa) apresenta um carter generalizante,

    prescritivo e hegemnico, na medida em que se constitui numa iniciativa de carter

    amplo, nacional que visa oferecer princpios tericos e diretrizes gerais para o ensino-

    aprendizagem de prticas letradas desejadas por determinados grupos que detm o

    poder disciplinar. No de se estranhar que a colocao dessa nova ordem posta em

    circulao nos documentos oficiais das reformas de maneira hegemnica e prescritiva

    traga dificuldades para os seus interlocutores.

    A principal implicao o reconhecimento do letramento como um fenmeno neutro,

    natural, singular, autnomo, visvel. Neutro no sentido de que pode ser

    indiferentemente aplicado a qualquer aluno: da regio norte/da regio sul, pobre/rico, da

    zona urbana/da rural, criana/jovem/adulto etc. Natural porque resulta de um consenso

    social que segue a ordem regular das coisas, ignorando o diferente e o inadequado.

    Singular porque est equacionado a uma prtica universalizante cujo interesse

    homogeneizar o saber do aluno conduzindo-o a um nico lugar o da cultura letrada,

    cannica, dominante, sem atender aos interesses e necessidades comunicativas de

    grupos especficos. Autnomo porque ocorre de modo descontextualizado, atribuindo

    escrita caractersticas intrnsecas, responsveis pelo desenvolvimento cognitivo. Visvel

    pelo poder e legitimao que ao letramento cannico (letramento cultural) atribudo.

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  • No que diz respeito aos gneros textuais, a compreenso deflagrada a de que estes so

    unidades textuais dadas, estticas, descontextualizadas, com caractersticas facilmente

    identificveis, prontas para serem ensinadas. O gnero, porm, no se constitui num

    fenmeno simples e puro. Conforme atestam estudos de vrios autores (JOHNS, 2006),

    ele afetado por uma rede de variveis que juntas operam, tornando-o complexo e

    multifacetado.

    3. Letramento: complexidades

    Enxergar o letramento como algo singular esquecer que a vida social permeada por

    linguagem de mltiplas formas e destinada a diferentes usos. Nela, so veiculados

    gneros diversos que so praticados por diferentes pessoas nas mais diversas atividades

    sociais orientadas a partir de propsitos, funes, interesses e necessidades

    comunicativas especficas, no obstante a compreenso de que alguns textos so

    considerados cannicos e, por isso, mais legitimados que outros, socialmente. E

    exatamente porque se constitui como algo plural que vale a pena problematiz-lo,

    examinando as diversas facetas que o constituem e as razes por que esse fenmeno tem

    se tornado um verdadeiro campo de batalha no domnio pedaggico.

    Para entender essa guerra de letramentos (SNYDER, 2008), reflitamos sobre alguns

    princpios que so centrais perspectiva dos novos estudos de letramento, conforme

    referidos por pesquisadores estrangeiros. Aqui no Brasil, so denominados,

    simplesmente, estudos de letramento (OLIVEIRA; KLEIMAN, 2008, p. 7).

    Esses estudos argumentam que os letramentos, vistos como prticas sociais, necessitam

    ser melhor entendidos nos seus contextos sociais e histricos; so fruto de relaes de

    poder; servem a propsitos sociais na construo e troca de significados; formatam e

    so formatos pela cultura; sofrem interferncia de posies ideolgicas podendo estas

    serem explcitas e implcitas; so dinmicos na medida que so determinados por

    injunes de natureza econmica (globalizao), tecnolgica (recursos da mdia e da

    internet), poltica (polticas pblicas de educao) e histrica (certas prticas valorizadas

    numa determinada poca que perdem o seu valor noutro tempo). So, enfim, mltiplos,

    diticos, ideolgicos e crticos (BAYNHAM, 1995; LEU et al., 2004). Analisemos

    alguns desses princpios.

    3.1 Os letramentos so mltiplos

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  • A valorizao dos usos da leitura e da escrita como prticas sociais por oposio

    compreenso do letramento visto como um modelo autnomo e homogeneizante,

    encapsulado unicamente no processo de escolarizao que enfatiza o ler e o escrever

    como uma habilidade, deu lugar compreenso de um novo conceito, de natureza plural

    letramentos. Fruto da virada social nas pesquisas sobre linguagem (GEE, 2000), os

    estudos de letramento reenquadraram-se, passando a destacar a complexidade da vida

    social, a pluralidade dos contextos sociais e culturais, a fora das mudanas sociais e a

    implicao dessas mudanas nas prticas de letramento cotidianas. Nesse novo quadro,

    os letramentos locais ganharam importncia terica e, em conseqncia, diferentes

    mundos de letramento (BARTON, 2000) tm sido explorados e tornados visveis. Uma

    compreenso sistemtica de toda a complexidade e multiplicidade a que as prticas de

    letramento esto vinculadas pode ser percebida em trs dimenses: 1) os diferentes

    contextos de atividade; 2) as atividades particulares da vida cultural e 3) as diferentes

    sistemas simblicos.

    No h dvida de que as prticas de letramento que ocorrem nos variados contextos:

    casa, escola, igreja, rua, lojas, empresas, rgos oficiais, dentre outros, atendem a

    funes e propsitos diferentes. Um bilhete que circula no ambiente familiar no

    apresenta as mesmas caractersticas de outro que produzido, por exemplo, num local

    de trabalho, ou mesmo, na escola. O que se l e o como se l, fortemente

    determinado pelo lugar onde lemos. No lemos, por exemplo, a bblia em famlia do

    mesmo modo que a lemos na igreja. Nesta, o carter evangelizador supera o interesse

    formativo, moral, tico que na famlia esperado e alimentado.

    Sabemos que o mundo textualizado. Leitura e escrita esto em toda parte. O que

    circula, portanto, na rua ou em ambientes comunitrios so modos de inscrio

    especficos (placas, propagandas, faixas, outdoors, fachadas etc.) de grande fora

    comunicativa e que, por isso, merecem ateno. Consumir e saber produzir os inmeros

    textos que se distribuem nos mais variados contextos sociais significa no apenas ter

    acesso a essas prticas comunicativas mas tambm assumir uma forma de poder que

    negada a muitos.

    Entender que o letramento mediado por textos implica naturalmente ter conscincia de

    que o uso de determinados textos depende do sistema de atividades nas quais as pessoas

    esto inseridas, noutros termos, depende dos papis que as pessoas exercem e do que

    elas necessitam fazer por meio desses textos em determinadas situaes. esse sistema,

    gerado nas instituies e domnios particulares da vida cultural (academia, unidades de

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  • trabalho, entidades religiosas, sindicatos, clubes etc.), que determina que gneros

    escolher e usar em certas situaes comunicativas para atingir determinados propsitos.

    Nesse sentido, os gneros, conforme afirma Bazerman (2005, p. 31) so parte do modo

    como os seres humanos do forma s atividades sociais. Nessas atividades, os papis

    que as pessoas exercem determinam que competncia leitora e escritora elas devam

    possuir.

    Se, no exerccio do seu trabalho, cabe a um mdico preencher pronturios com

    informaes de seus pacientes, prescrever receitas com indicao de medicamentos, ler

    bulas de remdios, ler literatura especializada a respeito de casos clnicos que lhe

    interessem, registrar ordens e ocorrncias hospitalares, escrever artigos cientficos etc.,

    um professor, ao ministrar uma disciplina, assume a tarefa de elaborar programas,

    exerccios, fichamentos de textos para apresentao didtica, planos de aula, testes de

    avaliao, comentrios e notas sobre a produo dos alunos, boletins de notas e registros

    de contedo, avisos, textos para apresentao em aula (no recurso de power point), e-

    mails etc., ler material impresso (livros, revistas, jornais), pesquisar na internet textos

    informativos relativos ao contedo da aula etc. (devo a ltima ilustrao a Bazerman,

    2005). Os exemplos aqui focalizados salientam a natureza relacional existente entre

    situao, atividade e participantes em eventos de letramento.

    Nos dias atuais, o que as pessoas fazem com o letramento e o modo como este

    formatado tem sido largamente afetado pelo processo de globalizao, pelas exigncias

    de uma economia altamente competitiva, pelos meios de comunicao de massa e,

    naturalmente, pelo aparecimento da internet, vista como elemento central no fluxo e

    acesso da informao. Na chamada era da informao, a disponibilidade cada vez

    maior de recursos de comunicao e a rpida expanso das tecnologias a servio da

    informao e da ao social colocam o indivduo frente necessidade de buscar,

    localizar, sintetizar e avaliar informaes teis resoluo de problemas do cotidiano

    (sacar dinheiro, pagar contas, comprar via internet, solicitar informaes e servios via

    celular e/ou computador etc.).

    Especificamente no domnio do trabalho, ambiente altamente competitivo, a busca de

    estratgias efetivas para interagir, ganhar acesso informao e dela fazer uso para

    solucionar problemas ligados ao funcionamento e produtividade da organizao aponta

    para a necessidade de novos letramentos que permitam aos jovens em geral agir e

    interagir na era do conhecimento cujo tom recai nas idias dos indivduos ou na sua

    capacidade para pensar e criar, o que exige o desenvolvimento de vrias competncias

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  • do ponto de vista profissional. Em funo disso, pases desenvolvidos tm dado

    prioridade a padres de excelncia na escola, investindo em polticas pblicas que

    valorizam o capital humano, o que indica a necessidade de re-inventar o currculo

    escolar no que diz respeito s competncias de linguagem para as demandas de um

    letramento diferente. Afinal, conforme Leu et al. (2004), ensinar algum a ler e a

    escrever para os letramentos do futuro uma experincia de transformao.

    Nesse quadro caracterizador de uma sociedade do futuro, que tem como base os meios

    de comunicao de massa e o desafio de ser criativo, o letramento grfico une-se ao

    letramento visual. Nessa combinao de mltiplas formas semiticas, a imagem deixa

    de atuar como um elemento que complementa ou ilustra a palavra para ser um modo

    estruturante do texto. Dessa forma, ela integra a mensagem, carregando em si mesma

    um valor semntico. Nesse tipo de gramtica textual, o sentido que se atribui ao texto

    resulta de um design mais amplo no qual se incluem caracteres alfabticos, imagens,

    cores, texturas, formas em movimento, apresentados todos de modo linear, ou seja,

    alocados no mesmo espao textual.

    Se essa configurao textual e/ou modo de significar no texto traz um grau de

    complexidade maior para a formao de leitores e escritores na contemporaneidade (p.

    ex., leitura de grficos, mapas, textos miditicos), a dificuldade crescente no chamado

    letramento eletrnico em que, diferentemente do letramento impresso, informaes em

    rede so interconectadas (linked) de forma no linear hipertexto , o que aponta para

    a construo de novos cenrios de letramento e novos perfis de profissionais na

    educao.

    Ainda que se reconhea no contexto escolar o desejo de explorar o mundo virtual em

    sala de aula, motivado por polticas de incluso digital, o que se nele observa,

    entretanto, uma espcie de bricolagem. No dizer de Lankshear e Knobel (2000), a

    escolarizao dos letramentos ps-modernos d-se como velhos vinhos em novas

    garrafas. o caso de recontar velhas estrias atravs do uso de uma nova tecnologia,

    por exemplo, power point. Consideremos que apenas fazer uso desse recurso, ainda que

    interessante, no possibilita entender a funcionalidade e o valor das novas tecnologias

    digitais.

    3.2 Os letramentos so diticos

    Amplamente discutidos nos estudos da linguagem, palavras como agora, hoje, aqui, l,

    ir, vir assumem diferentes significados dependendo do lugar e tempo em que so

    enunciados. Tambm segundo as abordagens etnogrficas de letramento, a considerao

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  • desses aspectos enunciativos indica a natureza ditica das prticas de letramento ou o

    seu carter situacional, sua dimenso histrica e topogrfica. Essa natureza explica por

    que as prticas de leitura e escrita so dinmicas. Mudam em termos de forma e funo.

    Evoluem e se transformam segundo condies scio-histricas. Reflexo interessante

    nesse sentido elabora Orlandi (1988), ao argumentar a imprevisibilidade e pluralidade

    possvel da leitura. A variao de leitura a que ela se refere contempla, por exemplo, a

    questo de como um nico texto permite possveis leituras em certas pocas e no em

    outras; textos sagrados (em snscrito) so lidos hoje como pertencentes ao domnio da

    literatura; classes sociais e instituies selecionam, apreciam e legitimam certos textos

    diferentemente de outras (textos cannicos ou no); certos modos de ler circulam em

    determinados domnios e no em outros (ler em voz alta ou em voz baixa, para estudo,

    para ocupar o tempo, para se divertir etc.); determinadas leituras e textos sofrem

    restrio por parte de quem l (jovem, criana, tipo de profissional etc.).

    As rpidas transformaes tecnolgicas que hoje se do afetam profundamente o

    letramento, na medida em que requerem do indivduo novas habilidades e estratgias

    para se adaptar e adquirir os letramentos que emergem, alm de abrir possibilidades

    para o uso criativo da tecnologia como uma ferramenta til para exercer novas funes e

    propsitos na formatao e composio de mensagens. A natureza ditica do letramento

    suscita, assim, uma nova concepo ou (re)definio do que significa tornar-se letrado.

    3.3 Os letramentos so ideolgicos

    A postulao das noes de letramento autnomo em oposio a letramento

    ideolgico, sendo entendido o primeiro como uma tecnologia neutra e universal cuja

    aquisio, por si mesma, produz efeitos sobre o desenvolvimento cognitivo e social, e a

    segunda como um posicionamento sensvel ao carter sociocultural das prticas de

    letramento e s estruturas de poder na sociedade (STREET, 1994), suscita uma rica

    discusso sobre a natureza ideolgica dos letramentos.

    Embora se possa entender, a partir desse contraponto, que apenas esse modelo

    alternativo est atravessado de ideologias, como a prpria adjetivao indica,

    apresentando-se o modelo autnomo como neutro, no sentido de que busca a

    universalizao das prticas de letramento, e como hegemnico, por estar a servio do

    poder de um grupo particular, no se trata de uma relao to simples. Com vistas a essa

    relao, importante entender que mesmo as concepes que se apresentam como

    neutras (letramento autnomo) camuflam pressuposies culturais e vises particulares

    9

  • do mundo social, interessadas em sustentar determinadas relaes de poder, sendo, por

    isso, ideolgicas.

    H distintas formas de entender a ideologia. Conforme a teoria social crtica

    (THOMPSON, 1995, apud RESENDE; RAMALHO, 2006), a ideologia , por natureza,

    hegemnica no sentido de que serve para produzir, reproduzir e transformar a ordem

    social que favorece certos indivduos, ou mesmo, grupos dominantes. Uma vez que as

    ideologias se materializam nas prticas discursivas, a investigao destas incluir

    sempre um componente ideolgico.

    No que diz respeito s prticas de letramento, os diferentes grupos sociais buscam

    continuamente assegurar, por meio da agncia humana, seus interesses ou valorizar as

    formas de ler e escrever que lhes trazem benefcios ou se constituem como um bem

    social compartilhado entre eles. As crenas a respeito do modo como as comunidades

    elegem seus bens sociais apontam necessariamente para um tipo de ideologia (GEE,

    1994). No h, nesse sentido, nenhuma orientao de letramento que no seja

    ideolgica.

    3.4 Os letramentos so culturais

    O entendimento de que as prticas de letramento esto sempre encaixadas em

    especficos contextos culturais tem sido um recorrente tema de estudo particularmente

    no campo da pesquisa etnogrfica. Esses estudos salientam a natureza situada dos

    letramentos e discutem o fato de alguns serem invisveis em relao a outros

    considerados visveis/dominantes (BAYNHAM, 1995, p. 246). evidente que o

    letramento escolar goza de legitimao e, em razo disso, visto como um parmetro

    para avaliao dos letramentos locais. Nesse sentido, as grandes crticas dirigidas aos

    letramentos locais referem-se s limitaes desses letramentos, forma romntica

    como estes so olhados e s relaes que so estabelecidas entre eles e os letramentos

    distantes, noutros termos, entre o local e o global.

    Em resposta aparente pobreza dos letramentos locais, inmeros pesquisadores

    (STEET, 2001; 2003; BAYNHAN, 2004) observam que, embora vozes dominantes

    caracterizem as populaes locais como iletradas, uma rica variedade de prticas de

    letramento pode ser deflagrada em comunidades marginalizadas, sejam elas situadas em

    ambientes rurais ou urbanos. Defendem, por isso, a necessidade de tornar visveis as

    prticas de letramento cotidianas em toda a sua complexidade. Eles argumentam que o

    respeito que se deve ter por esses letramentos no deve ser confundido com uma

    abordagem romntica. A verdadeira inteno no isolar essas prticas de outras que

    10

  • esto fora, mantendo-as puras, mas t-las como ponto de partida para introduzir

    letramentos hegemnicos, comprometidos com o progresso e a modernizao. Nesse

    sentido, a relao local/global no excludente. O global se imbrica ao local na medida

    em que essas comunidades tencionam garantir os seus direitos e necessidades locais.

    Assim (re) inventada, a questo da instruo passa a ser entendida como uma prtica

    de ensino-aprendizagem situada (BAYNHAN, 2004; BARTON, HAMILTON &

    IVANIC, 2000; SZWED, 2001), em que a escrita (e, naturalmente, a leitura), por si

    mesma, incapaz de resolver problemas que so inerentes prtica social.

    Ainda a respeito dessa articulao prticas de letramento locais/prticas de letramento

    dominantes , h quem discuta que os letramentos universalizantes e os modos de

    produzir conhecimento na academia (letramento acadmico) so, em sentido restrito,

    profundamente locais (BAYNHAN, 2004; LATOUR, 2000).

    Trabalhar nessa (re)inveno requer a implementao de programas de letramento que

    respondam s aspiraes do grupo a que se destina, oferecendo a eles a possibilidade de

    usar a leitura e a escrita de forma funcional, ou seja, como um instrumento que busque

    alternativas para resolver problemas de mbito local ou que esteja sintonizado com os

    desejos e sentimentos daqueles a quem est endereado. Escutar esse outro exige do

    professor e/ou do pesquisador na rea atitudes de engajamento e de responsabilidade

    social, alm da habilidade para se colocar como insider nesses contextos.

    Na prtica, sabemos que articular o local ao global no tarefa fcil. Se, por um lado, o

    professor enfrenta hoje o desafio de promover o conhecimento junto a grupos

    especficos que cultivam prticas e vises do mundo muito particulares (jovens de

    periferia, crianas e jovens de zona rural, adultos com interesses prprios em

    determinadas prticas de letramento), por outro lado, h que se considerar que, com a

    democratizao e a globalizao, chegam escola indivduos completamente clivados

    pelo processo de modernizao. Fazem parte de grupos cujos valores, crenas e prticas

    so bem especficas, mas, ao mesmo tempo se inserem em uma comunidade global

    cuja demanda de informao e trabalho exige deles novas competncias, favorecendo ou

    no possibilidades de incluso. A esses aspectos se acrescenta a dificuldade, a que esto

    submetidos os professores, relativa imposio de uma grade de contedos a ser

    ministrada no decorrer do ano letivo.

    O multiculturalismo impe ao professor uma agenda desafiadora a de incluir numa

    sociedade grafocntrica educandos pertencentes a uma tradio oral. Nesses contextos, a

    imposio de letramentos exgenos acaba, muitas vezes, por expuls-los da escola ou

    11

  • desinteress-los pelas prticas escolares, uma vez que fazer parte dessa cultura letrada

    oferecer um fardo muito pesado para quem se sente incapaz ou almejar um futuro

    para quem no tem futuro. A compreenso desse quadro exige do professor e do

    pesquisador outro enquadre no h possibilidade de agir sobre esse mundo se no

    somos capazes de dialogar com ele. As pesquisas crticas e as pedagogias

    culturalmente sensveis podem oferecer respostas mais efetivas para uma pedagogia do

    letramento, julgamos.

    3.5 Os letramentos so crticos

    Na atualidade, o que se tem considerado como crtico diz respeito ao modo como as

    pessoas usam textos e discursos para construir e negociar identidade, poder e capital

    (LUKE, 2004). A teoria crtica est preocupada em entender as relaes entre poder e

    conhecimento e em teorizar o papel da linguagem na produo e reproduo do poder

    na vida cotidiana, na comunidade e nas instituies.

    Assim pensando, a linguagem no simplesmente um meio de expresso ou

    comunicao; antes uma prtica a partir da qual os aprendizes conhecem-se a si

    mesmos, o seu contexto scio-cultural e as suas possibilidades para o futuro. Trabalhar

    a linguagem nesta direo envolve decodificar a dimenso ideolgica dos textos,

    instituies, prticas sociais, formas culturais (por exemplo, a televiso, o cinema), para

    revelar seus interesses seletivos. Para isso, faz-se necessrio destacar a importncia das

    pedagogias multimodais variedade de modos, formas locais de comunicao e dos

    letramentos multivocais que capacitam aprendizes a cruzar fronteiras discursivas, sem

    ser penalizado pelo dominante.

    Tratando do letramento crtico, estudiosos afirmam que o propsito maior dessa

    orientao formar o cidado crtico capaz de analisar e desafiar as foras opressoras da

    sociedade, de forma a torn-la mais justa, igualitria e democrtica; lutar contra a

    cultura do silncio e defender a produo de um conhecimento cultural como um

    elemento de fora no jogo de discursos conflitantes (FREIRE, 1973; McLAREN, 1988;

    GIROUX, 1997).

    Essa concepo de letramento exerce grande poder e influncia nas polticas

    educacionais voltadas para a formao do cidado crtico, tanto no mbito nacional

    quanto internacional. Entretanto, a sua aplicao em sala de aula impe grandes

    dificuldades, principalmente no que se refere conciliao do local no global. Essa

    parece ser uma tarefa desafiadora para o professor e para as escolas interessadas em

    buscar alternativas de transformao.

    12

  • O grande entrave tem sido romper com um currculo prescrito, prprio da orientao do

    letramento cultural (McLAREN, 1988). Neste, as unidades de estudo so selecionadas a

    priori, sendo o desempenho de leitura, de escrita e de outras habilidades submetido a

    avaliaes quantitativas por programas que tencionam produzir indicadores sobre a

    efetividade dos sistemas educacionais (testes do ENEN, do PISA, do vestibular, entre

    outros). J no letramento crtico, o currculo se define no processo de produo do

    conhecimento, ou seja, ele se (re)desenha a partir de questes que emergem das prticas

    de letramento escolar organizadas em eventos que objetivam atender necessidades de

    linguagem especficas de uma comunidade de aprendizes envolta em propsitos tambm

    particulares. Por exemplo: algum que est interessado em desenvolver sua competncia

    leitora e escritora para prticas do cotidiano ler a bblia, escrever para parentes

    distantes, compreender instrues em situaes de trabalho, ou ainda, exercitar seus

    direitos como cidado etc. certamente se sentir excludo em programas de letramento

    cuja ateno est voltada para o domnio dos discursos de poder ou de assimilao das

    prticas cannicas. O atendimento a esse aprendiz envolve trabalhar com especficos

    gneros, focalizando determinadas habilidades e mecanismos textuais.

    4. Gnero textual: teorizaes

    Aberto a variados campos disciplinares, os estudos sobre gnero textual tem-se

    ampliado, favorecendo reflexes variadas provenientes de epistemologias diversas das

    quais floresceram estudos cognitivistas, enunciativos, interacionista scio-discursivos,

    pragmtico-textuais, semiticos, scio-retricos etc., ocasionando o crescimento de um

    corpo de estudos empricos situados em domnios diversos, por exemplo: no escolar, no

    profissional, no acadmico, no pblico, no privado, no digital, entre outros.

    Colidem, nesses estudos, um espao unificador, revelado pelo entendimento

    compartilhado entre pesquisadores de que o gnero uma entidade complexa e

    multidimensional, com outro dispersor, observado pela utilizao de terminologias

    flutuantes e pelos cruzamentos de construtos tericos diferentes. Em razo disso, esse

    construto se mostra bastante controverso e de difcil abordagem tanto para aqueles que

    o analisam no nvel terico quanto para os que esto interessados na sua aplicabilidade.

    Em face da sua complexidade, prev-se que o gnero textual nem um tipo de texto

    nem um tipo de situao. Antes, constitui-se numa relao funcional entre texto e

    contexto, ou seja, entre um tipo de texto e uma situao retrica (COE, 2002, p. 197).

    Por ser multidimensional, o gnero inclui o textual, o social e o poltico, devendo ser

    analisado a partir de diferentes aspectos: formal, retrico, processual e temtico. Essas

    13

  • dimenses interagem e se sobrepem fornecendo ao usurio da lngua experiente um

    conhecimento sofisticado que lhe permite manipul-los conforme propsitos variados.

    Numa anlise multidimensional de um gnero cumpre destacar vrios elementos:

    contedo (tema), linguagem, estilo, formato, organizao retrica (esquemtica ou

    cognitiva), tom, aspectos visuais (cores, imagens) etc.

    Um gnero , em suma, um modo prprio de dizer que revela quem fala e de que lugar

    fala, conforme observa Hyland (2005 apud JOHNS, 2006, p. 245) falar de um gnero

    significa adaptar-se a uma estncia apropriada, manifestando uma voz que leitores

    experientes consideram apropriada.

    Como fenmenos histricos, vinculados vida cultural e social, os gneros textuais so

    profundamente dinmicos, plsticos e imprevisveis. Eles se transformam, se

    entrecruzam, surgem e desaparecem conforme determinaes scio-comunicativas.

    5. Gnero textual: implicaes para o ensino

    No domnio pedaggico, os professores tm-se colocado num mar de incertezas frente

    adoo de um conceito em relao ao qual possuem pouco esclarecimento e respaldo

    terico, apesar das orientaes dos PCN, e frente necessidade de sustentao do seu

    trabalho com esta categoria na sala de aula. Nesta atividade, os professores continuam

    estabelecendo a indevida correspondncia entre gnero e tipo textual, apesar de se

    ampararem no discurso de que esto ensinando gneros.

    No que diz respeito didatizao desse conceito, tambm no h, por parte das

    diferentes abordagens de gnero, um consenso. Os diferentes posicionamentos

    registrados pouco esclarecem o professor ou o ajudam na tarefa didtica. H quem

    afirme que o objetivo no tornar os gneros objetos reais de ensino, mas utiliz-los

    como quadros de atividade social em que as aes de linguagem se realizam

    (BRONCKART, 1999). Alguns defendem o ensino explcito dos gneros argumentando

    que estes se constituiriam em instrumentos de mudana social e empoderamento

    (CHRISTIE, 1999; ROTHERY, 1996). Outros problematizam o ensino prescritivo e

    formalstico (pedagogia explcita) dos gneros, ao entend-los como dinmicos,

    plsticos, sujeitos a mudanas, transformaes ou at ao desaparecimento. Por

    respeitarem o conhecimento situado e o papel do contexto na linguagem, julgam que

    difcil (ou impossvel) montar um modelo ou currculo com base em gneros.

    Defendem, desse modo, uma pedagogia da imerso (JOHNS et al. 2006; KERN,

    2000), argumentando que o estudo de gneros ajuda os escreventes a descobrirem o que

    pode ou no ser dito ou feito atravs deles. Estudos voltados para a instruo de escrita

    14

  • relacionam diversas abordagens de ensino orientadas para diferentes funes:

    abordagem funcional e comportamental escrita para assimilao; abordagem cognitiva

    escrita para auto-expresso e construo de significado; abordagem de prticas scio-

    culturais escrita para afirmao; abordagem de gneros escrita para acesso aos

    discursos de poder; abordagem crtica escrita para mudana social (AUERBACH,

    2005). Essa disperso terica, resultante de escolhas funcionais, indica a necessidade de

    novos questionamentos e posicionamentos a respeito da relao gnero e ensino.

    6. Voltando s questes iniciais (novos questionamentos)

    Parece-nos, desse modo, que pensar sobre a questo dos gneros no contexto escolar

    requer antes compreender o que seja gnero e os fenmenos que a esse construto esto

    vinculados, por exemplo, o do letramento, entendido como uma prtica social plural e

    motivada por princpios de natureza ideolgica. Estabelecer essa relao implica,

    necessariamente, perguntar: gnero segundo que tipo de abordagem terica? gnero

    para quem (no caso, que aluno)? gnero com vistas a que concepo de letramento e,

    conseqentemente, a que projeto poltico-pedaggico?

    Afinal, o que o professor ensina e como ele ensina so conseqncia da compreenso

    que ele tem dos fenmenos lingsticos e do entorno que o envolve no qual se incluem

    os alunos com suas especificidades. Diferentes concepes de gnero e de letramento

    resultam em diferentes prticas. Se no letramento cultural h um acordo no sentido de

    que o aluno domine o maior nmero de gneros, a fim de que circule, de modo

    legtimo, em variadas esferas discursivas, no letramento crtico, a inteno que o aluno

    se aproprie daqueles gneros (e no de muitos) que lhes sejam teis para agir no mundo

    ou para fazer uso de determinadas prticas que lhes convm em termos de necessidade

    comunicativa.

    importante salientar que a efetivao dessas prticas no contexto escolar vai depender

    das possibilidades e interesses de cada educando. Numa turma, por exemplo, de alunos

    com avanada idade, o interesse pela leitura e escrita est orientado por propsitos bem

    especficos: escrever para um filho, solicitar um servio, reivindicar um direito, fazer

    uma reclamao, ler uma conta a pagar, ler a bblia etc. J numa turma de jovens, o

    grande interesse pelas prticas que abrem portas para o trabalho ou para capacitao

    profissional, incluindo-se tambm o desejo de um dia participar de cursos universitrios.

    Nesse grupo, as prticas de letramento que favorecem a conscincia poltica mostram-se

    15

  • muito significativas, na medida em que desenvolvem o senso crtico e a vontade de

    participar e se engajar em causas sociais, funcionando tambm como um recurso que

    eleva a auto-estima de alunos que, dada a extrema pobreza em que vivem, no

    acreditam na vida ou na possibilidade de participar dos bens sociais materiais e

    intelectuais. Programas de letramento, nesse sentido, assumem um carter

    transformador.

    Entendendo-se que os gneros so os elementos estruturadores da vida social, no

    letramento crtico, a prtica social o componente orientador para o trabalho didtico.

    A natureza performativa dos gneros coloca em questo: os gneros podem ser

    ensinados? Se podem, que sentido devemos atribuir palavra ensino? Se entendemos

    ensino como instruo, evidente que no poderemos ensinar os gneros. O que

    nesse sentido se ensina a sua dimenso textual os textos e fazer isso ter uma

    viso parcial dos gneros. Se o entendemos como imerso, assumimos que os gneros

    podem ser objetos de ensino, uma vez que a sua apropriao ocorre de modo situado,

    orientado por propsitos reais. Esse modo de ensinar com os gneros e no sobre os

    gneros requer inserir os alunos numa verdadeira etnografia das prticas de linguagem

    (DEVITT, A; REIFF, M. J.; BAWARSHI, A., 2004) ou, conforme a proposta de Swales

    (1998), num trabalho textogrfico.

    Revelam-se como uma alternativa produtiva para o trabalho com os gneros, na direo

    descrita, os projetos de letramento nos quais as prticas de letramento decorrem de um

    interesse real na vida dos alunos, servindo para atingir algum outro fim que vai alm da

    mera aprendizagem da lngua, no seu aspecto formal (KLEIMAN, 2000, p. 238).

    Consideraes finais

    A reflexo que pomos em destaque neste trabalho se inicia pelo impacto que os PCN

    tm provocado nos professores de lngua materna. A nossa experincia em programas

    de formao de professores indica-nos que, apesar de os professores ecoarem o discurso

    desse documento oficial, aludindo a vrias noes nele contempladas, por exemplo,

    letramento e gnero, a apropriao (se assim podemos chamar) desses conceitos e a sua

    aplicao na sala de aula apresentam-se de forma bastante problemtica. Com o foco

    nessa questo refletimos sobre a complexidade terica que inerente a esses conceitos,

    relacionando-a sempre com a atividade de ensino-aprendizagem.

    Inicialmente, discutimos a natureza plural do letramento, sistematizando as

    caractersticas que o integram e os aspectos que a ele esto relacionados: cultura,

    ideologia, poder, poltica, globalizao, tecnologia. Nesta sistematizao,

    16

  • argumentamos que os letramentos so mltiplos, diticos, ideolgicos e crticos. A

    anlise desses quatro princpios feita a partir de mltiplos olhares que contribuem para

    a compreenso de questes de natureza terica, formativa e didtica vinculadas s

    prticas de letramento no contexto escolar e de formao.

    Com vistas aos gneros textuais, centramos nossa reflexo na disperso que se observa

    relativamente a esse construto, tanto no nvel terico quanto prtico. Embora haja um

    consenso de que o gnero uma entidade complexa, exatamente essa complexidade

    que dificulta uma tomada de posio quanto a abord-lo como um objeto de ensino no

    contexto escolar. Nesse sentido, defendemos que trabalhar com os gneros no contexto

    escolar exige compreender este conceito conforme as variadas tendncias tericas, sua

    relao com as diferentes concepes de letramento e sua articulao com a audincia a

    quem est destinado. Diferentes concepes de gnero e de letramento resultam em

    diferentes prticas.

    O fechamento da discusso feito com a pergunta: podem os gneros ser ensinados? A

    esse respeito, nossa posio a de que tal questionamento requer antes perguntar: Qual

    o sentido de ensinar? Se entendermos ensinar como instruo, julgamos que no

    podemos ensinar os gneros textuais. O objeto que permite ser ensinado o texto, ou

    talvez melhor, os mecanismos constitutivos do texto. Se ensinar visto como um

    processo de imerso na prtica social, a resposta positiva, tarefa que exige uma

    abordagem contextualizada, ou mesmo, etnogrfica. Nesta perspectiva, sugerimos os

    projetos de letramento como prticas que contextualizam a leitura e a escrita,

    possibilitando abordar os gneros no como um fim, mas como um meio.

    Corresponde, noutros termos, a ensinar com os gneros e no sobre os gneros, o que

    significa consider-los como o elemento organizador da ao de ensinar.

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