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Gêneros textuais 1 : definição e funcionalidade Luiz Antônio Marcuschi 1. Gêneros textuais como práticas sócio-históricas Já se tornou trivial a idéia de que os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveisl. dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita. Quanto a esse último aspecto, uma simples observação histórica do surgimento dos gêneros revela que, numa primeira fase, povos de cultura essencialmente oral desenvolveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII A. c., multiplicam-se os gêneros, surgindo os típicos da escrita. Numa terceira fase, a partir do século XV, os gêneros expandem-se com o flores cimento da cultura impressa para, na fase intermediária de industrialização iniciada no século XVlII, dar início a uma grande ampliação. Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a intemet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita. Isto é revelador do fato de que os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem. Caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais. São de difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sóciopragmáticos caracterizados como práticas sócio- discursivas. Quase inúmeros em diversidade de formas, obtêm denominações nem sempre unívocas e, assim como surgem, podem desaparecer. Esta coletânea traz estudos sobre uma variedade de gêneros textuais relacionados a algum meio de comunicação e analisa-os em suas peculiaridades organizacionais e funcionais, apontando ainda aspectos de interesse para o trabalho em sala de aula. Neste contexto, o presente ensaio caracteriza-se como uma introdução geral à investigação dos gêneros textuais e desenvolve uma bateria de noções que podem servir para a compreensão do problema geral envolvido. Certamente, haveria muitas outras perspectivas de análise e muitos outros caminhos teóricos para a definição e abordagem da questão, mas tanto o exíguo espaço como a finalidade didática desta breve introdução impedem que se façam longas incursões pela bibliografia técnica hoje disponível. 2. Novos gêneros e velhas bases Como afirmado, não é difícil constatar que nos últimos dois séculos foram as novas tecnologias, em especial as ligadas à área da comunicação, que propiciaram o surgimento de

Marcuschi gêneros textuais

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Page 1: Marcuschi gêneros textuais

Gêneros textuais1: definição e funcionalidade

Luiz Antônio Marcuschi

1. Gêneros textuais como práticas sócio-históricas

 

Já se tornou trivial a idéia de que os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveisl. dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.

Quanto a esse último aspecto, uma simples observação histórica do surgimento dos gêneros revela que, numa primeira fase, povos de cultura essencialmente oral desenvolveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII A. c., multiplicam-se os gêneros, surgindo os típicos da escrita. Numa terceira fase, a partir do século XV, os gêneros expandem-se com o flores cimento da cultura impressa para, na fase intermediária de industrialização iniciada no século XVlII, dar início a uma grande ampliação. Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a intemet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita.

Isto é revelador do fato de que os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem. Caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais. São de difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sóciopragmáticos caracterizados como práticas sócio-discursivas. Quase inúmeros em diversidade de formas, obtêm denominações nem sempre unívocas e, assim como surgem, podem desaparecer.

Esta coletânea traz estudos sobre uma variedade de gêneros textuais relacionados a algum meio de comunicação e analisa-os em suas peculiaridades organizacionais e funcionais, apontando ainda aspectos de interesse para o trabalho em sala de aula. Neste contexto, o presente ensaio caracteriza-se como uma introdução geral à investigação dos gêneros textuais e desenvolve uma bateria de noções que podem servir para a compreensão do problema geral envolvido. Certamente, haveria muitas outras perspectivas de análise e muitos outros caminhos teóricos para a definição e abordagem da questão, mas tanto o exíguo espaço como a finalidade didática desta breve introdução impedem que se façam longas incursões pela bibliografia técnica hoje disponível.

2. Novos gêneros e velhas bases

Como afirmado, não é difícil constatar que nos últimos dois séculos foram as novas tecnologias, em especial as ligadas à área da comunicação, que propiciaram o surgimento de novos gêneros textuais. Por certo, não são propriamente as tecnologias per se que originam os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas tecnologias e suas interferências nas atividades comunicativas diárias. Assim, os grandes suportes tecnológicos da comunicação tais como o rádio, a televisão, o jornal, a revista, a internet, por terem uma presença marcante e grande centralidade nas atividades comunicativas da realidade social que ajudam a criar, vão por sua vez propiciando e abrigando gêneros novos bastante característicos. Daí surgem formas discursivas novas, tais como editoriais, artigos de fundo, notícias, telefonemas, telegramas, telemensagens, teleconferências, videoconferências, reportagens ao vivo, cartas eletrônicas (e-mails), bate-papos virtuais, aulas virtuais e assim por diante.

Seguramente, esses novos gêneros não são inovações absolutas, quais criações ab ovo, sem uma ancoragem em outros gêneros já existentes. O fato já fora notado por Bakhtin [1997] que falava na 'transmutação' dos gêneros e na assimilação de um gênero por outro gerando novos. A tecnologia favorece o surgimento de formas inovadoras, mas não absolutamente novas. Veja-se o caso do telefonema, que apresenta similaridade com a conversação que lhe pré-existe, mas que, pelo canal telefônico, realiza-se com características próprias. Daí a diferença entre uma conversação face a face e um telefonema, com as estratégias que lhe são peculiares. O e-mail (correio eletrônico) gera mensagens eletrônicas que têm nas cartas (pessoais, comerciais etc.) e nos bilhetes os seus antecessores. Contudo, as cartas eletrônicas são gêneros novos com identidades próprias, como se verá no estudo sobre gêneros emergentes na rnídia virtual.

Aspecto central no caso desses e outros gêneros emergentes é a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal. Em certo sentido, possibilitam a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. Esses gêneros que emergiram no último século no contexto das mais diversas mídias criam formas comunicativas próprias com um certo hibridismoque desafia as relações entre oralidade e escrita e inviabiliza de forma definitiva a velha visão dicotômica ainda presente em muitos manuais de ensino de língua. Esses gêneros também

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permitem observar a maior integração entre os vários tipos de semioses: signos verbais, sons, imagens e formas em movimento. A linguagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais plástica, assemelhando-se a uma coreografia e, no caso das publicidades, por exemplo, nota-se uma tendência a servirem-se de maneira sistemática dos formatos de gêneros prévios para objetivos novos. Como certos gêneros já têm um determinado uso e funcionalidade, seu investimento em outro quadro comunicativo e funcional permite enfatizar com mais vigor os novos objetivos.

Quanto a este último aspecto, é bom salientar que embora os gêneros textuais não se caracterizem nem se definam por aspectos formais, sejam eles estruturais ou lingüísticos, e sim por aspectos sócio-comunicativos e funcionais, isso não quer dizer que estejamos desprezando a forma. Pois é evidente, como se verá, que em muitos casos são as formas que determinam o gênero e, em outros tantos serão as funções. Contudo, haverá casos em que será o próprio suporte ou o ambiente em que os textos aparecem que determinam o gênero presente. Suponhamos o caso de um determinado texto que aparece numa revista científica e constitui um gênero denominado "artigo científico"; imaginemos agora o mesmo texto publicado num jornal diário e então ele seria um "artigo de divulgação científica". É claro que há distinções bastante claras quanto aos dois gêneros, mas para a comunidade científica, sob o ponto de vista de suas classificações, um trabalho publicado numa revista científica ou num jornal diário não tem a mesma classificação na hierarquia de valores da produção científica, embora seja o mesmo texto. Assim, num primeiro momento podemos dizer que as expressões "mesmo texto" e "mesmo gênero" não são automaticamente equivalentes, desde que não estejam no mesmo suporte. Estes aspectos sugerem cautela quanto a considerar o predomínio de formas ou funções para a determinação e identificação de um gênero. 

3. Definição de tipo e gênero textual

Aspecto teórico e terminológico relevante é a distinção entre duas noções nem sempre analisadas de modo claro na bibliografia pertinente. Trata-se de distinguir entre o que se convencionou chamar de tipo textual, de um lado, e gênero textual, de outro lado. Não vamos aqui nos dedicar à observação da diversidade terminológica existente nesse terreno, pois isso nos desviaria muito dos objetivos da abordagem.

Partimos do pressuposto básico de que é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto. Em outros termos, partimos da idéia de que a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual. Essa posição, defendida por Bakhtin [1997] e também por Bronckart (1999) é adotada pela maioria dos autores que tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não em suas peculiaridades formais. Esta visão segue uma noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. Privilegia a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da língua. Afirma o caráter de indeterminação e ao mesmo tempo de atividade constitutiva da língua, o que equivale a dizer que a língua não é vista como um espelho da realidade, nem como um instrumento de representação dos fatos.

Nesse contexto teórico, a língua é tida como uma forma de ação social e histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem contudo cair num subjetivismo ou idealismo ingênuo. Fugimos também de um realismo externalista, mas não nos situamos numa visão subjetivista. Assim, toda a postura teórica aqui desenvolvida insere-se nos quadros da hipótese sácio-interativa da língua. É neste contexto que os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o' de algum modo.

Para uma maior compreensão do problema da distinção entre gêneros e tipos textuais sem grande complicação técnica, trazemos a seguir uma definição que permite entender as diferenças com certa facilidade. Essa distinção é fundamental em todo o trabalho com a produção e a compreensão textual. Entre os autores que defendem uma posição similar à aqui exposta estão Douglas Biber (1988), John Swales (1990.), Jean-Michel Adam (1990), JeanPaul Bronckart (1999). Vejamos aqui uma breve definição das duas noções: 

a. Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção.

b. Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante.

 

Para uma maior visibilidade, poderíamos elaborar aqui o seguinte quadro sinóptico:  

TIPOS TEXTUAIS 

1. constructos teóricos definidos por propriedades lingüísticas intrínsecas;

Page 3: Marcuschi gêneros textuais

 2. constituem seqüências lingüísticas ou seqüências de enunciados e não são textos empíricos

  

3. sua nomeação abrange um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal;

 4. designações teóricas dos tipos: narração, argumentação, descrição, injunção e exposição

 

GÊNEROS TEXTUAIS

 1. realizações lingüísticas concretas definidas por propriedades sócio-comunicativas;

 2. constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em situações comunicativas;

  

3. sua nomeação abrange um conjunto aberto e praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composição e função;

 4. exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, aula expositiva, reunião de

condomínio, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta.eletrônica, bate-papo virtual, aulas virtuais etc.

 

Antes de analisarmos alguns gêneros textuais e algumas questões relativas aos tipos, seria interessante definir mais uma noção que vem sendo usada de maneira um tanto vaga. Trata-se da expressão domínio discursivo.

 c. Usamos a expressão domínio discursivo para designar uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana.

Esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um gênero em particular, mas dão origem a vários deles. Constituem práticas discursivas dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes} lhe são próprios (em certos casos exclusivos) como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas.

 

Veja-se o caso das jaculatórias, novenas e ladainhas, que são gêneros exclusivos do domínio religioso e não aparecem em outros domínios. Tome-se este exemplo de uma jaculatória que parecia extinta} mas é altamente praticada por pessoas religiosas.

 

Exemplo (1) jaculatória (In: Rezemos o Terço. Aparecida} Editora Santuário, 1977, p.54)

Senhora Aparecida, milagrosa padroeira, sede nossa guia nesta mortal carreira! á Virgem Aparecida, sacrário do redentor, dai à alma desfalecida vosso poder e valor. á Virgem Aparecida, fiel e seguro norte, alcançai-nos graças na vida, favorecei-nos na morte!

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A jaculatória é um gênero textual que se caracteriza por um conteúdo de grande fervor religioso} estilo laudatório e invocatório (duas seqüências injuntivas ligadas na sua formulação imperativa)} composição curta com poucos enunciados, voltada para a obtenção de graças ou perdão} a depender da circunstância.

Em relação às observações teóricas acima, deve-se ter o cuidado de não confundir texto e discurso como se fossem a mesma coisa. Embora haja muita discussão a esse respeito} pode-se dizer que texto é uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância discursiva. Assim, o discurso se realiza nos textos. Em outros termos} os textos realizam discursos em situações institucionais} históricas, sociais e ideológicas. Os textos são acontecimentos discursivos para os quais convergem ações lingüísticas} sociais e cognitivas} segundo Robert de Beaugrande (1997).

Observe-se que a definição dada aos termos. aqui utilizados é muito mais operacional do que formal. Assim} para a noção de tipo textual predomina a identificação de seqüências lingüísticas típicas como norte adoras; já para a noção de gênero textual} predominam os critérios de ação prática} circulação sócio-histórica} funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade, sendo que os domínios discursivos são as grandes esferas da atividade humana em que os textos circulam. Importante é perceber que os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos.

 

4. Algumas observações sobre os tipos textuais

  Em geral, a expressão "tipo de texto", muito usada nos livros didáticos e no nosso dia-a-dia, é equivocadamente empregada e não designa um tipo, mas sim umgênero de texto. Quando alguém diz, por exemplo, "a carta pessoal é um tipo de texto informa!", ele não está empregando o termo "tipo de texto" de maneira correta e deveria evitar essa forma de falar. Uma carta pessoal que você escreve para sua mãe é um gênero textual, assim como um editorial, horóscopo/ receita médica, bula de remédio, poema, piada, conversação casual, entrevista jomalística, artigo científlco, resumo de um artigo, prefácio de um livro. É evidente que em todos estes gêneros também se está realizando tipos textuais, podendo ocorrer que o mesmo gênero realize dois ou mais tipos. Assim, um texto é em geral tipologicamente variado (heterogêneo). Veja-se o caso da carta pessoal, que pode conter uma seqüência narrativa (conta uma historinha), uma argumentação (argumenta em função de algo), uma descrição (descreve uma situação) e assim por diante.

  Já que mencionamos o caso da carta pessoal, tomemos este breve exemplo de uma carta entre amigos. Aqui foram suprimidos alguns trechos e mudados os nomes e as siglas para não identificação dos atores sociais envolvidos:

Exemplo (2): NELFE-003 - Carta pessoal

 

Seqüências tipológicas

Descritiva

 

Injuntiva

  

Descritiva

    

Expositiva

   

Page 5: Marcuschi gêneros textuais

     

Narrativa

   

Expositiva

      

Narrativa

 

Injuntiva

 

Expositiva

    

Injuntiva

 

Gênero textual: carta pessoal

  Rio, 11/08/1991

 

  AmigaA.P.

  Oi!

 

  Para ser mais preciso estou no meu quarto, escreveno na escrivaninha, com um Micro System ligado na minha frente (bem alto, por sinal).

 

  Está ligado na Manchete FM - ou rádio dos funks - eu adoro funk, principalmente com passos marcados.

Page 6: Marcuschi gêneros textuais

  Aqui no Rio é o ritmo do momento ... e você, gosta? Gosto também de house e dance music, sou fascinado por discotecas!

  Sempre vou à K.I,

 

ontem mesmo (sexta-feira) eu fui e cheguei quase quatro horas da madrugada.

 

 Dançar é muito bom, principalmente em uma discoteca legal. Aqui no condomínio onde moro têm muitos jovens, somos todos muito amigos e sempre vamos todos juntos. É muito maneiro!

 

C. foi três vezes à K. 1.,

 

pergunte só a ele como é!

 

 Está tocando agora o "Melô da Mina Sensual", super demais!

 Aqui ouço também a Transamérica e RPC}M.

 

 E você, quais rádios curte?

 

Expositiva

                

 Expositiva

     

Page 7: Marcuschi gêneros textuais

          

 Narrativa

  

 Injuntiva

      

 Injuntiva

    

  Demorei um tem pão pra responder, espero sinceramente que você não esteja chateada comigo. Eu me amarrei de verdade em vocês aí, do Recife, principalmente a galera da ET, vocês são muito maneiros! Meu maior sonho é viajar, ficar um tempo por aí, conhecer legal vocês todos, sairmos juntos ... Só que não sei ao certo se vou realmente no início de 1992. Mas pode ser que dê, quem sabe! /........../

 Não sei ao certo se vou ou não, mas fique certa que farei de tudo para conhecer vocês o mais rápido possível. Posso te dizer uma coisa? Adoro muito vocês!

 

 Agora, a minha rotina: às segundas, quartas e sextas-feiras trabalho de 8:00 às 17:00h, em Botafogo . De lá vou para o T., minha aula vai de 18;30 às 10:40h. Chego aqui em casa quinze para meianoite. E às terças e quintas fico 050 em F. só de 8:00 às 12:30h. Vou para o T.; às 13:30 começa o meu curso de Francês (vou me formar ano que vem) e vai até IS:30h. 16:ooh vou dar aula e fico até 17:30h. 17:40h às 18:30h faço natação (no T. também) e

      até 22:40h tenho aula. 1  ./ Ontem eu e

 Simone fizemos três meses de namoro;

 

 você sabia que eu estava namorando?

 

 Ela mora aqui mesmo no «ilegível)) (nome do condomínio). A gente se gosta muito, às vezes eu acho que nunca vamos terminar, depois eu acho que o namoro não vai durar muito, entende?

 

Page 8: Marcuschi gêneros textuais

 O problema é que ela é muito ciumenta, principalmente porque eu já fui afim da B., que mora aqui também. Nem posso falar com a garota que S. já fica com raiva.

 Expositiva

 

 Argumentativa

   

 Injuntiva

   

 Narrativa

    

 É acho que vou terminando ...

 

 escreva!

 Faz um favor? Diga pra M., A. P. e C. que esperem, não demoro a escrever

 

 Adoro vocês!

 

 Um beijão!

 

 Do amigo

 P. P.

  15:16hÉ notável a variedade de seqüências tipológicas nessa carta pessoal, em que predominam descrições e exposições, o que é muito comum para esse gênero. Não há espaço aqui para maiores detalhes, mas esse modo de análise pode ser desenvolvido com todos os gêneros e, de uma maneira geral, vai-se notar que há uma grande heterogeneidade tipológica nos gêneros textuais.

  Portanto, entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles serem definidos por seus traços lingüísticos predominantes. Por isso, um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma seqüência e não um texto. A rigor, pode-se dizer que o segredo da coesão textual está precisamente na habilidade demonstrada em fazer essa "costura" ou tessitura das seqüências tipológicas como uma armação de base, ou seja, uma malha infraestrutural do texto. Como tais, os gêneros são uma espécie de armadura comunicativa geral preenchida por seqüências tipológicas de base que podem ser bastante heterogêneas mas relacionadas entre si.2 Quando se nomeia um certo texto como "narrativo", "descritivo" ou "argumentativo", não se está nomeando o gênero e sim o predomínio de um tipo de seqüência de base.

Page 9: Marcuschi gêneros textuais

 Para concluir essas observações sobre os tipos textuais, vejamos a sugestão de Werlich (1973), que propõe uma matriz de critérios, partindo de estruturas lingüísticas típicas dos enunciados que formam a base do texto. Werlich toma a base temática do texto representada ou pelo título ou pelo início do texto como adequada à formulação da tipologia. Assim, são desenvolvidas as cinco bases temáticas textuais típicas que darão origem aos tipos textuais (o que foi utilizado acima para a segmentação das seqüências observadas na carta acima analisada). Vejamos isto na figura abaixo:

 

  Tipos textuais segundo Werlich (1973)Bases temáticas

 1. Descritiva

        

2. Narrativa

        

3. Expositiva

                   

4. Argumentativo

        

Page 10: Marcuschi gêneros textuais

 Exemplos

 

 “Sobre a mesa havia milhares de vidros.”

       

 “”Os passageiros aterrissaram em Nova York no meio da noite.””

     

a. “” Uma parte do cérebro é o órtex.””b. “” O cérebro tem 10 milhões de neurônios””

             

 “” A obsessão com a durabilidade de nas Artes não é permanente.””

     

 Traços lingüísticos

 

 Este tipo de enunciado textual tem uma estrutura simples com um verbo estático no presente ou imperfeito, um complemento e uma indicação circunstancial de lugar

 

 Este tipo de enunciado textual tem um verbo de mudança no passado, um circunstancial de tempo e lugar. Por sua referência temporal e local, este enunciado é designado como enunciado indicativo de ação.

 Em (a) temos uma base textual denominada de exposição sintética pelo processo da composição. Aparece um sujeito, um predicado (no presente) e um complemento com um grupo nominal. Trata-se de um enunciado de identificação de fenômenos.

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 Em (b) temos uma base textual denominada de exposição análítica pelo processo de decomposição. Também é uma estrutura com um sujeito, um verbo da família do verbo ter (ou verbos como: ""contém'''', “”consiste””, “”compreende””) e um complemento que estabelece com o sujeito uma relação parte-todo. Trata-se de um enunciado de ligação de fenômenos.

 

 Tem-se aqui uma forma verbal com o verbo ser no presente e um complemento (que no caso é um adjetivo). Trata-se de um enunciado de atribuição de qualidade.

   

5. Injuntiva

             

 “” pare!””, “” seja razoável!””

           

 Vem representada por um verbo no imperativo. Estes são os enunciados incitadores à ação. Estes textos podem sofrer certas modificações significativas na forma e assumir por exemplo a configuração mais longa onde o imperativo é substituído por um ""deve"". Por exemplo; ""Todos os brasileiros na idade de 18 anos do sexo masculino devem comparecer ao exército para alistarem-se." "

  Um elemento central na organização de textos narrativos é a seqüência temporal. Já no caso de textos descritivos predominam as seqüências de localização. Os textos expositivos apresentam o predomínio de seqüências analíticas ou então explicitamente explicativas. Os textos argumentativos se dão pelo predomínio de seqüências contrastivas explícitas. Por fim, os textos injuntivos apresentam o predomínio de seqüências imperativas.

  Se voltarmos agora ao exemplo (2) da carta pessoal apresentada acima, veremos que cada uma daquelas seqüências lá identificadas realiza os traços lingüísticos aqui apresentados. Não é difícil tomar os gêneros textuais e analisálos com esses critérios, identificando-lhes as seqüências. Para o caso do ensino, pode-se chamar a atenção da dificuldade que existe na organização das seqüências tipológicas de base, já que elas não podem ser simplesmente justapostas. Os alunos apresentam dificuldades precisamente nesses pontos e não conseguem realizar as relações entre as seqüências. E os diversos gêneros seqüenciam bases tipológicas diversas.

5. Observações sobre os gêneros textuais

  Como já lembrado, os gêneros textuais não se caracterizam como formas estruturais estáticas e definidas de uma vez por todas. Bakhtin [1997] dizia que os gêneros eram tipos "relativamente estáveis" de enunciados elaborados pelas mais diversas esferas da atividade

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humana. São muito mais famílias de textos com uma série de semelhanças. Eles são eventos lingüísticos, mas não se definem por características lingüísticas: caracterizam-se, como já dissemos, enquanto atividades sóciodiscursivas. Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis, não há como fazer uma lista fechada de todos os gêneros. Existem estudos

, feitos por lingüistas alemães que chegaram a nomear mais de 4000 gêneros, o que à primeira vista parece um exagero (Veja-se Adamzik, 1997). Daí a desistência progressiva de teorias com pretensão a uma classificação geral dos gêneros.

  Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma lingüística e sim uma forma de realizar lingüisticamente objetivos espeáficos em situações sociais particulares. Pois, como afirmou Bronckart (1999:103), "a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas", o que permite dizer que os gêneros textuais operam, em: certos contextos, como formas de legitimação discursiva, já que se situam numa relação sócio-histórica com fontes de produção que lhes dão sustentação muito além da justificativa individual.

A expressão "gênero" sempre esteve, na tradição ocidental, especialmente ligada aos gêneros literários, mas já não é mais assim, como lembra Swales (1990:33), ao dizer que "hoje, gênero é facilmente usado para referir uma categoria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias". Éassim que se usa a noção de gênero em Etnografia, Sociologia, Antropologia, Folclore, Retórica e, evidentemente, na Lingüística.

  Os gêneros não são entidades naturais como as borboletas, as pedras, os rios e as estrelas, mas são artefatos culturais construídos historicamente pelo ser humano. Não podemos defini-Ios mediante certas propriedades que lhe devam ser necessárias e suficientes. Assim, um gênero pode não ter uma determinada propriedade e ainda continuar sendo aquele gênero. Por exemplo, uma carta pessoal ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha esquecido de assinar o nome no final e só tenha dito no início: "querida mamãe". Uma publicidade pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos em oferta; o que conta é que divulgue os produtos e estimule a compra por parte dos clientes ou usuários daquele produto. A título de exemplo, observe-se este artigo de opinião da Folha de São Paulo, que, embora escrito na forma de um poema, continua sendo um artigo de opinião:

Exemplo (3) NELFE - 350 - artigo de opinião

 

Um novo José

Josias de Souza

-São Paulo- Diga: ora, Drummond, Agora FMI.

Calma José. Se você gritasse,

A festa não começou, se você gemesse,

a luz não acendeu, se você dormisse,

a noite não esquentou, se você cansasse,

o Malan não amoleceu, se você morresse ...

mas se voltar a pergunta: O Malan nada faria,

e agora José? mas já há quem faça.

Diga: ora Drummond,    

agora Camdessus. Ainda só, no escuro,

Continua sem mulher, qual bicho-do-mato,

continua sem discurso, ainda sem teogonia,

continua sem carinho, ainda sem parede nua,

ainda não pode beber, para se encostar,

ainda não pode fumar, ainda sem cavalo preto,

cuspir ainda não pode, Que fuja a galope,

a noite ainda é fria, você ainda marcha, José!

o dia ainda não veio, Se voltar a pergunta:

o riso ainda não veio, José, para onde?

não veio ainda a utopia, Diga: ora Drummond,

o Malan tem miopia, por que tanta dúvida?

Page 13: Marcuschi gêneros textuais

mas nem tudo acabou, Elementar, elementar,

nem tudo fugiu, sigo pra Washington

nem tudo mofou. e, por favor, poeta,

Se voltar a pergunta: não me chame de José.

E agora José? Me chame Joseph.

 Fonte: Folha de São Paulo, Caderno 1, pág. 2 - Opinião, 04/10/1999

 

Aspecto interessante no texto acima é que ele apresenta uma configuração híbrida, tendo o formato de um poema para o gênero artigo de opinião. Isso configura uma estrutura inter-gêneros de natureza altamente híbrida e uma relação intertextual com alusão ao poema e ao poeta autor do poema no qual se inspira e do qual extrai elementos: "E agora]oséJJ, de Carlos Drummond de Andrade. Essa característica pode ser analisada de acordo com a sugestão de Ursula Fix (1997:97), que usa a expressão "intertextualidade inter-gênerosJJ para designar o aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero assume a função de outro. Esta violação de cânones subvertendo o modelo global de um gênero poderia ser visualizada num diagrama tal como este:INTERTEXTUALIDADE TIPOLÓGICA

Função do gênero A

    

/

artigo de opinião

/

Formado gênero A

   

Forma do gênero B

/

poema

/

           Função do gênero B

 

  A questão da intertextualidade inter-gêneros evidencia-se como uma mescla de funções e formas de gêneros diversos num dado gênero e deve ser distinguida da questão da heterogeneidade tipológica do gênero, que diz respeito ao fato de um gênero realizar várias seqüências de tipos textuais (por exemplo, o caso da carta pessoal citada). No exemplo acima, temos um gênero funcional (artigo de opinião) com o formato de outro (poema). Em princípio, isto não deve trazer dificuldade interpretativa, já que o predomínio da função supera a forma na determinação do gênero, o que evidencia a plasticidade e dinamicidade dos gêneros.

Resumidamente, em relação aos gêneros, temos:

1. intertextualidade inter-gêneros == um gênero com a função de outro

Page 14: Marcuschi gêneros textuais

2. heterogeneidade tipológica  == um gênero com a presença de vários tipos

 

 o exemplo do artigo de opinião analisado é um caso para a situação (1) da hibridização textual com inter-gêneros; já a carta pessoal analisada anteriormente é um exemplo para (2), com uma heterogeneidade tipolÇ>gica muito grande. No geral, este segundo caso é mais comum que o primeiro. Contudo, se tomarmos alguns gêneros, veremos que eles são mais propensos a uma intertextualidade inter-gêneros. Veja, por exemplo, a publicidade que se caracteriza por operar de maneira particularmente produtiva na subversão da ordem genérica instituída, chamando atenção para a venda de um produto. Desenquadrar o produto de seu enquadre normal é uma forma de enquadrá10 em novo enfoque, para que o vejamos de forma mais nítida no mar de ofertas de produtos.

 É esta possibilidade de operação e maleabilidade que dá aos gêneros enorme. capacidade de adaptação e ausência de rigidez e se acha perfeitamente de acordo com Miller (1984:151), que considera o gênero como "ação social", lembrando que uma definição retoricamente correta de gênero "não deve centrar-se na substância nem na forma do discurso, mas na ação em que ele aparece para realizarse". Este aspecto vai ser central na designação de muitos gêneros que são definidos basicamente por seus propósitos (funções, intenções, interesses) e não por suas formas. Contudo, voltamos a frisar que isto não significa eliminar o alto poder organizador das formas composicionais dos gêneros. O próprio Bakhtin [1997] indicava a "construção composicional", ao lado do "conteúdo temático" e do "estilo" como as três características dos gêneros.

 De igual modo, para Eija Ventola (1995:7), os "gêneros são sistemas semióticos que geram estruturas particulares que em última instância são captadas por comportamentos lingüísticos mediante os registros". Enquanto resultado convencional numa dada cultura, os gêneros se definiriam como "ações retóricas tipificadas baseadas em situações recorrentes" (Miller, 1984:159). As formas tornam-se convencionais e com isto genéricas precisamente em virtude da recorrência das situações em que são investidas como ações retóricas típicas. Os gêneros são, em última análise, o reflexo de estruturas sociais recorrentes e típicas de cada cultura. Por isso, em princípio, a variação cultural deve trazer conseqüências significativas para a variação de gêneros, mas este é um aspecto que somente o estudo intercultural dos gêneros poderá decidir.

 6. Gêneros textuais e ensino

Tendo em vista que todos os textos se manifestam sempre num ou noutro gênero textual, um maior conhecimento do funcionamento dos gêneros textuais é importante tanto para a produção com para a compreensão. Em certo sentido, é esta idéia básica que se acha no centro dos PCN (Parâmetros CurricularesNacionais), quando sugerem que o trabalho com o texto deve ser feito na base dos gêneros, sejam eles orais ou escritos. E esta é também a proposta central dos ensaios desta coletânea de textos que pretende mostrar como analisar e tratar alguns dos gêneros mais praticados nos diversos meios de comunicação.

 As observações teóricas expostas não só visam a esclarecer conceitos como também a apontar a diversidade de possibilidades de observação dos gêneros textuais. Por certo, não estamos aqui em condições de nos dedicarmos a todos os problemas envolvidos, mas é possível indicar alguns. Em especial seria bom ter em mente a questão da relação oralidade e escrita no contexto dos gêneros textuais, pois, como sabemos, os gêneros distribuem-se pelas duas modalidades num contínuo, desde os mais informais aos mais formais e em todos os contextos e situações da vida cotidiana. Mas há alguns gêneros que só são recebidos na forma oral apesar de terem sido produzidos originalmente na forma escrita, como o caso das notícias de televisão ou rádio. Nós ouvimos aquelas notícias, mas elas foram escritas e são lidas (oratizadas) pelo apresentador ou locutor.

 Assim, é bom ter cautela com a idéia de gêneros orais e escritos, pois essa distinção é complexa e deve ser feita com clareza. Veja-se o caso acima citado das jaculatórias, novenas e ladainhas. Embora todas tenham sido escritas, seu uso nas atividades religiosas é sempre oral. Ninguém reza por escrito e sim oralmente. Por isso dizemos que oramos e não que escrevemos a Deus.

 Tudo o que estamos apontando neste momento deve-se ao fato de os eventos a que chamamos propriamente gêneros textuais serem artefatos lingüísticos concretos. Esta circunstância ou característica dos gêneros tornaos, como já vimos, fenômenos bastante heterogêneos e por vezes híbridos em relação à forma e aos usos. Daí dizer-se que os gêneros são modelos comunicativos. Servem, muitas vezes, para criar uma expectativa no interlocutor e prepará-Io para uma determinada reação. Operam prospectivamente, abrindo o caminho da compreensão, como muito bem frisou Bakhtin (1997).

 Muitas vezes, em situações orais, os interlocutores discutem a respeito do gênero de texto que estão produzindo ou que devem produzir. Trata-se de uma negociação tipológica. Segundo observou o lingüista alemão Hugo Steger (1974), as designações sugeridas pelos falantes não são suficientemente unitárias ou claras, nem fundadas em algum critério geral para serem consistentes. Em relação a isso, lembra a lingüista alemã Elizabeth Gülich (1986) que os interlocutores seguem em geral três critérios para designarem seus textos:

a. canal! meio de comunicação: (telefonema, carta, telegrama)b. critérios formais: (conto, discussão, debate, contrato, ata, poema)c. natureza do conteúdo: (piada, prefácio de livro, receita culinária, bula de remédio)

Page 15: Marcuschi gêneros textuais

 

  Contudo, isso não chega a oferecer critérios para formar uma classificação nem constituir todos os nomes. Para Douglas Biber (1988), por exemplo, os gêneros são geralmente determinados com base nos objetivos dos falantes e na natureza do tópico tratado, sendo assim uma questão de uso e não de forma. Em suma, pode-se dizer que os gêneros textuais fundam-se em critérios externos (sócio-comunicativos e discursivos), enquanto os tipos textuais fundam-se em critérios internos (lingüísticas e formais).

  Elizabeth Gülich (1986) observa que as situações e os contextos em que os falantes ou escritores designam os gêneros textuais são em geral aqueles em que parece relevante designá-Ias para chamar a atenção sobre determinadas regras vigentes no caso. É assim que ouvimos pessoas dizendo: "nessa reunião não cabe uma piada, mas deixem que eu conte uma para descontrair um pouco". Ou então ouvimos alguém dizer: "fulano não desconfia e discursa até na hora de tomar uma cerveja". Por outro lado, notamos que há casos institucionalmente marcados que exigem, no início, a designação do gênero de texto e a informação sobre suas regras de desenvolvimento. Este é o caso de uma tomada de depoimento na Justiça, em que o Juiz lê as regras e expõe direitos e deveres de cada indivíduo.

  Assim, contar piadas fora de lugar é um caso de inadequação ou violação de normas sociais relativas aos gêneros textuais. Isso quer dizer que não há só a questão da produção adequada do gênero, mas também um uso adequado. Esta não é uma questão de etiqueta social apenas, mas é um caso de adequação tipo lógica, que diz respeito à relação que deveria haver, na produção de cada gênero textual, entre os seguintes aspectos:

natureza da informação ou do conteúdo veiculado; nível de linguagem (formal, informal, dialetal, culta etc.) tipo de situação em que o gênero se situa (pública, privada, corriqueira, solene etc.) relação entre os participantes (conhecidos, desconhecidos, nível social, formação etc) natureza dos objetivos das atividades desenvolvidas

É provável que esta relação obedeça a parâmetros de relativa rigidez em virtude das rotinas sociais presentes em cada contexto cultural e social, de maneira que sua inobservância pode acarretar problemas. Assim, numa reunião de negócios, por exemplo, um empresário que se pusesse a cantar o Hino Nacional seria considerado um tanto esquisito e talvez pouco confiável para uma parceria de negócios. Ou alguém que, durante um culto e no meio de uma oração, começasse a esbravejar contra o sacerdote ou o pastor não ia ser bem-visto. Neste sentido, os indicadores aqui levantados serviriam para identificar as condições de adequação genérica na produção dos gêneros, espedalmente os orais.

  Considerando que os gêneros independem de decisões individuais e não são facilmente manipuláveis, eles operam como geradores de expectativas de compreensão mútua. Gêneros textuais não são fruto de invenções individuais, mas formas socialmente maturadas em práticas comunicativas. Esta era também a posição central de Bakhtin [1997] que, como vimos, tratava os gêneros como atividades enunciativas "relativamente estáveis".

  No ensino de uma maneira geral, e em sala de aula de modo particular, pode-se tratar dos gêneros na perspectiva aqui analisada e levar os alunos a produzirem ou analisarem eventos lingüísticos os mais diversos, tanto escritos como orais, e identificarem as características de gênero em cada um. É um exercício que, além de instrutivo, também permite praticar a produção textual. Veja-se como seria produtivo pôr na mão do aluno um jornal diário ou uma revista semanal com a seguinte tarefa: "identifique os gêneros textuais aqui presentes e diga quais são as suas características centrais em termos de conteúdo, composição, estilo, nível lingüístico e propósitos". É evidente que essa tarefa pode ser reformulada de muitas maneiras, de acordo com os interesses de cada situação de ensino. Mas é de se esperar que por mais modesta que seja a análise, ela será sempre muito promissora.

7. Observações finais

  Em conclusão a estas observações sobre o tema em pauta, pode-se dizer que o trabalho com gêneros textuais é uma extraordinária oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia. Pois nada do que fizermos lingüisticamente estará fora de ser feito em algum gênero. Assim, tudo o que fizermos lingüisticamente pode ser tratado em um ou outro gênero. E há muitos gêneros produzidos de maneira sistemática e com grande incidência na vida diária, merecedores de nossa atenção. Inclusive e talvez de maneira fundamental, os que aparecem nas diversas mídias hoje existentes, sem excluir a mídia virtual, tão bem conhecida dos internautas ou navegadores da Internet.

A relevância maior de tratar os gêneros textuais acha-se particularmente situada no campo da Lingüística Aplicada. De modo todo especial no ensino de língua, já que se ensina a produzir textos e não a produzir enunciados soltos. Assim, a investigação aqui trazida é de interesse aos que trabalham e militam nessas áreas. Uma análise dos manuais de ensino de língua portuguesa mostra que há uma relativa variedade de gêneros textuais presentes nessas obras. Contudo, uma observação mais atenta e qualificada revela que a essa variedade não corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que aparecem nas seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os mesmos. Os demais gêneros figuram apenas para 11 enfeite" e até para distração dos alunos. São poucos os casos de tratamento dos gêneros de maneira sistemática. Lentamente, surgem novas perspectivas e novas abordagens que incluem até mesmo aspectos da

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oralidade. Mas ainda não se tratam de modo sistemático os gêneros orais em geral. Apenas alguns, de modo particular os mais formais, são lembrados em suas características básicas.

  No entanto, não é de se supor que os alunos aprendam naturalmente a produzir os diversos gêneros escritos de uso diário. Nem é comum que se aprendam naturalmente os gêneros orais mais formais, como bem observam Joaquim Dolz e Bemard Schneuwly (1998). Por outro lado, é de se indagar se há gêneros textuais ideais para o ensino de língua. Tudo indica que a resposta seja não. Mas é provável que se possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante.

Enfim, vale repisar a idéia de que o trabalho com gêneros será uma forma de dar conta do ensino dentro de um dos vetares da proposta oficial dos Parâmetros Curriculares Nacionais que insistem nesta perspectiva. Tem-se a oportunidade de observar tanto a oralidade como a escrita em seus usos culturais mais autênticos sem forçar a criação de gêneros que circulam apenas no universo escolar. Os trabalhos incluídos neste livro buscam oferecer sugestões bastante claras e concretas de observação dos gêneros textuais na perspectiva aqui sugerida e com algumas variações teóricas que cada autor dos textos adota em função de seus interesses e de suas sugestões de trabalho. No conjunto, a diversidade de observações deverá ser um benefício a mais para quem vier a usufruir dessas análises.

GÊNERO TEXTUAL E TIPOLOGIA TEXTUAL: COLOCAÇÕES SOB DOIS ENFOQUES TEÓRICOS

 

 

Sílvio Ribeiro da Silva

 

 

A diferença entre Gênero Textual e Tipologia Textual é, no meu entender, importante para direcionar o trabalho do

professor de língua na leitura, compreensão e produção de textos  [1]   . O que pretendemos neste pequeno ensaio é

apresentar algumas considerações sobre Gênero Textual e Tipologia Textual, usando, para isso, as considerações feitas

por Marcuschi (2002) e Travaglia (2002), que faz apontamentos questionáveis para o termo Tipologia Textual. No final,

apresento minhas considerações a respeito de minha escolha pelo gênero ou pela tipologia.

Convém afirmar que acredito que o trabalho com a leitura, compreensão e a produção escrita em Língua Materna

deve ter como meta primordial o desenvolvimento no aluno de habilidades que façam com que ele tenha capacidade de usar

um número sempre maior de recursos da língua para produzir efeitos de sentido de forma adequada a cada situação

específica de interação humana.

Luiz Antônio Marcuschi (UFPE) defende o trabalho com textos na escola a partir da abordagem do Gênero

Textual  [2]   . Marcuschi não demonstra favorabilidade ao trabalho com a Tipologia Textual, uma vez que, para ele, o

trabalho fica limitado, trazendo para o ensino alguns problemas, uma vez que não é possível, por exemplo, ensinar narrativa

em geral, porque, embora possamos classificar vários textos como sendo narrativos, eles se concretizam em formas

diferentes – gêneros – que possuem diferenças específicas.

Por outro lado, autores como Luiz Carlos Travaglia (UFUberlândia/MG) defendem o trabalho com a Tipologia

Textual. Para o autor, sendo os textos de diferentes tipos, eles se instauram devido à existência de diferentes modos de

interação ou interlocução. O trabalho com o texto e com os diferentes tipos de texto é fundamental para o desenvolvimento

da competência comunicativa. De acordo com as idéias do autor, cada tipo de texto é apropriado para um tipo de interação

Page 17: Marcuschi gêneros textuais

específica. Deixar o aluno restrito a apenas alguns tipos de texto é fazer com que ele só tenha recursos para atuar

comunicativamente em alguns casos, tornando-se incapaz, ou pouco capaz, em outros. Certamente, o professor teria que

fazer uma espécie de levantamento de quais tipos seriam mais necessários para os alunos, para, a partir daí, iniciar o

trabalho com esses tipos mais necessários.

Marcuschi afirma que os livros didáticos trazem, de maneira equivocada, o termo tipo de texto. Na verdade, para ele,

não se trata de tipo de texto, mas de gênero de texto. O autor diz que não é correto afirmar que a carta pessoal, por

exemplo, é um tipo de texto como fazem os livros. Ele atesta que a carta pessoal é um Gênero Textual.

O autor diz que em todos os gêneros os tipos se realizam, ocorrendo, muitas das vezes, o mesmo gênero sendo

realizado em dois ou mais tipos. Ele apresenta uma carta pessoal  [3]   como exemplo, e comenta que ela pode apresentar as

tipologias descrição, injunção, exposição, narração e argumentação. Ele chama essa miscelânea de tipos presentes em um

gênero de heterogeneidade tipológica.

Travaglia (2002) fala em conjugação tipológica. Para ele, dificilmente são encontrados tipos puros. Realmente é raro

um tipo puro. Num texto como a bula de remédio, por exemplo, que para Fávero & Koch (1987) é um texto injuntivo, tem-se

a presença de várias tipologias, como a descrição, a injunção e a predição  [4]   . Travaglia afirma que um texto se define

como de um tipo por uma questão de dominância, em função do tipo de interlocução que se pretende estabelecer e que se

estabelece, e não em função do espaço ocupado por um tipo na constituição desse texto.

Quando acontece o fenômeno de um texto ter aspecto de um gênero mas ter sido construído em outro, Marcuschi dá

o nome de intertextualidade intergêneros.Ele explica dizendo que isso acontece porque ocorreu no texto a configuração

de uma estrutura intergêneros de natureza altamente híbrida, sendo que um gênero assume a função de outro.

Travaglia não fala de intertextualidade intergêneros, mas fala de um intercâmbio de tipos. Explicando, ele afirma

que um tipo pode ser usado no lugar de outro tipo, criando determinados efeitos de sentido impossíveis, na opinião do autor,

com outro dado tipo. Para exemplificar, ele fala de descrições e comentários dissertativos feitos por meio da narração.

Resumindo esse ponto, Marcuschi traz a seguinte configuração teórica:

a)       intertextualidade intergêneros    =          um gênero com a função de outro

b)       heterogeneidade tipológica        =          um gênero com a presença de vários tipos

Travaglia mostra o seguinte:

a) conjugação tipológica      =          um texto apresenta vários tipos

b) intercâmbio de tipos        =          um tipo usado no lugar de outro

Aspecto interessante a se observar é que Marcuschi afirma que os gêneros não são entidades naturais, mas artefatos

culturais construídos historicamente pelo ser humano. Um gênero, para ele, pode não ter uma determinada propriedade e

ainda continuar sendo aquele gênero. Para exemplificar, o autor fala, mais uma vez, da carta pessoal. Mesmo que o autor da

Page 18: Marcuschi gêneros textuais

carta não tenha assinado o nome no final, ela continuará sendo carta, graças as suas propriedades necessárias e

suficientes   [5]   . Ele diz, ainda, que uma publicidade pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos em oferta.

O que importa é que esteja fazendo divulgação de produtos, estimulando a compra por parte de clientes ou usuários daquele

produto.

Para Marcuschi, Tipologia Textual é um termo que deve ser usado para designar uma espécie de seqüência

teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição. Em geral, os tipos textuais abrangem as categorias

narração, argumentação, exposição, descrição e injunção (Swales, 1990; Adam, 1990; Bronckart, 1999). Segundo ele, o

termo Tipologia Textual é usado para designar uma espécie de seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística

de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) (p. 22).

Gênero Textual é definido pelo autor como uma noção vaga para os textos materializados encontrados no dia-a-dia e

que apresentam características sócio-comunicativas definidas pelos conteúdos, propriedades funcionais, estilo e

composição característica.

Travaglia define Tipologia Textual como aquilo que pode instaurar um modo de interação, uma maneira de

interlocução, segundo perspectivas que podem variar. Essas perspectivas podem, segundo o autor, estar ligadas ao

produtor do texto em relação ao objeto do dizer quanto ao fazer/acontecer, ou conhecer/saber, e quanto à inserção destes

no tempo e/ou no espaço. Pode ser possível a perspectiva do produtor do texto dada pela imagem que o mesmo faz do

receptor como alguém que concorda ou não com o que ele diz. Surge, assim, o discurso da transformação, quando o

produtor vê o receptor como alguém que não concorda com ele. Se o produtor vir o receptor como alguém que concorda

com ele, surge o discurso da cumplicidade. Tem-se ainda, na opinião de Travaglia, uma perspectiva em que o produtor do

texto faz uma antecipação no dizer. Da mesma forma, é possível encontrar a perspectiva dada pela atitude comunicativa de

comprometimento ou não. Resumindo, cada uma das perspectivas apresentadas pelo autor gerará um tipo de texto. Assim,

a primeira perspectiva faz surgir os tipos descrição, dissertação, injunção e narração. A segunda perspectiva faz com que

surja o tipo argumentativo stricto sensu  [6]   e não argumentativo stricto sensu. A perspectiva da antecipação faz surgir o

tipopreditivo. A do comprometimento dá origem a textos do mundo comentado (comprometimento) e do mundo

narrado (não comprometimento) (Weirinch, 1968). Os textos do mundo narrado seriam enquadrados, de maneira geral, no

tipo narração. Já os do mundo comentado ficariam no tipo dissertação.

Travaglia diz que o Gênero Textual se caracteriza por exercer uma função social específica. Para ele, estas funções

sociais são pressentidas e vivenciadas pelos usuários. Isso equivale dizer que, intuitivamente, sabemos que gênero usar em

momentos específicos de interação, de acordo com a função social dele. Quando vamos escrever um e-mail, sabemos que

ele pode apresentar características que farão com que ele “funcione” de maneira diferente. Assim, escrever um e-mail para

um amigo não é o mesmo que escrever um e-mail para uma universidade, pedindo informações sobre um concurso público,

por exemplo.

Observamos que Travaglia dá ao gênero uma função social. Parece que ele diferencia Tipologia

Textual de Gênero Textual a partir dessa “qualidade” que o gênero possui. Mas todo texto, independente de seu gênero ou

tipo, não exerce uma função social qualquer?

Page 19: Marcuschi gêneros textuais

Marcuschi apresenta alguns exemplos de gêneros, mas não ressalta sua função social. Os exemplos que ele traz são

telefonema, sermão, romance, bilhete, aula expositiva, reunião de condomínio, etc.

Já Travaglia, não só traz alguns exemplos de gêneros como mostra o que, na sua opinião, seria a função social

básica comum a cada um: aviso, comunicado, edital, informação, informe, citação (todos com a função social de dar

conhecimento de algo a alguém). Certamente a carta e o e-mail entrariam nessa lista, levando em consideração que o aviso

pode ser dado sob a forma de uma carta, e-mail ou ofício. Ele continua exemplificando apresentando a petição, o memorial,

o requerimento, o abaixo assinado (com a função social de pedir, solicitar). Continuo colocando a carta, o e-mail e o ofício

aqui. Nota promissória, termo de compromisso e voto são exemplos com a função de prometer. Para mim o voto não teria

essa função de prometer. Mas a função de confirmar a promessa de dar o voto a alguém. Quando alguém vota, não promete

nada, confirma a promessa de votar que pode ter sido feita a um candidato.

Ele apresenta outros exemplos, mas por questão de espaço não colocarei todos. É bom notar que os exemplos dados

por ele, mesmo os que não foram mostrados aqui, apresentam função social formal, rígida. Ele não apresenta exemplos de

gêneros que tenham uma função social menos rígida, como o bilhete.

Uma discussão vista em Travaglia e não encontrada em Marcuschi  [7]   é a de Espécie. Para ele, Espécie se define e

se caracteriza por aspectos formais de estrutura e de superfície lingüística e/ou aspectos de conteúdo. Ele

exemplifica Espécie dizendo que existem duas pertencentes ao tipo narrativo: a história e a não-história. Ainda do tipo

narrativo, ele apresenta as Espécies narrativa em prosa e narrativa em verso. No tipo descritivo ele mostra

as Espécies distintas objetiva x subjetiva, estática x dinâmica e comentadora x narradora. Mudando para gênero, ele

apresenta a correspondência com as Espécies carta, telegrama, bilhete, ofício, etc. No gênero romance, ele mostra

as Espécies romance histórico, regionalista, fantástico, de ficção científica, policial, erótico, etc. Não sei até que ponto

a Espécie daria conta de todos os Gêneros Textuais existentes. Será que é possível especificar todas elas? Talvez seja

difícil até mesmo porque não é fácil dizer quantos e quais são os gêneros textuais existentes.

Se em Travaglia nota-se uma discussão teórica não percebida em Marcuschi, o oposto também acontece. Este autor

discute o conceito de Domínio Discursivo. Ele diz que os domínios discursivos são as grandes esferas da atividade

humana em que os textos circulam (p. 24). Segundo informa, esses domínios não seriam nem textos nem discursos, mas

dariam origem a discursos muito específicos. Constituiriam práticas discursivas dentro das quais seria possível a

identificação de um conjunto de gêneros que às vezes lhes são próprios como práticas ou rotinas comunicativas

institucionalizadas. Como exemplo, ele fala do discurso jornalístico, discurso jurídico e discurso religioso. Cada uma dessas

atividades, jornalística, jurídica e religiosa, não abrange gêneros em particular, mas origina vários deles.

Travaglia até fala do discurso jurídico e religioso, mas não como Marcuschi. Ele cita esses discursos quando discute o

que é para ele tipologia de discurso. Assim, ele fala dos discursos citados mostrando que as tipologias de discurso

usarão critérios ligados às condições de produção dos discursos e às diversas formações discursivas em que podem estar

inseridos (Koch & Fávero, 1987, p. 3). Citando Koch & Fávero, o autor fala que uma tipologia de discurso usaria critérios

ligados à referência (institucional (discurso político, religioso, jurídico), ideológica (discurso petista, de direita, de esquerda,

cristão, etc), a domínios de saber (discurso médico, lingüístico, filosófico, etc), à inter-relação entre elementos da

exterioridade (discurso autoritário, polêmico, lúdico)). Marcuschi não faz alusão a uma tipologia do discurso.

Page 20: Marcuschi gêneros textuais

Semelhante opinião entre os dois autores citados é notada quando falam que texto e discurso não devem ser

encarados como iguais. Marcuschi considera o textocomo uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada

em algum Gênero Textual [grifo meu] (p. 24). Discurso para ele é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma

instância discursiva. O discurso se realiza nos textos (p. 24). Travaglia considera o discurso como a própria atividade

comunicativa, a própria atividade produtora de sentidos para a interação comunicativa, regulada por uma exterioridade

sócio-histórica-ideológica (p. 03). Texto é o resultado dessa atividade comunicativa. O texto, para ele, é visto como

uma unidade lingüística concreta que é tomada pelos usuários da língua em uma situação de interação comunicativa específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente de sua extensão (p. 03).

Travaglia afirma que distingue texto de discurso levando em conta que sua preocupação é com a tipologia de textos, e

não de discursos. Marcuschi afirma que a definição que traz de texto e discurso é muito mais operacional do que formal.

Travaglia faz uma “tipologização” dos termos Gênero Textual, Tipologia Textual e Espécie. Ele chama esses

elementos de Tipelementos. Justifica a escolha pelo termo por considerar que os elementos tipológicos (Gênero Textual,

Tipologia Textual e Espécie) são básicos na construção das tipologias e talvez dos textos, numa espécie de analogia com

os elementos químicos que compõem as substâncias encontradas na natureza.

Para concluir, acredito que vale a pena considerar que as discussões feitas por Marcuschi, em defesa da abordagem

textual a partir dos Gêneros Textuais, estão diretamente ligadas ao ensino. Ele afirma que o trabalho com o gênero é uma

grande oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia. Cita o PCN, dizendo que

ele apresenta a idéia básica de que um maior conhecimento do funcionamento dos Gêneros Textuais é importante para a

produção e para a compreensão de textos. Travaglia não faz abordagens específicas ligadas à questão do ensino no seu

tratamento à Tipologia Textual.

O que Travaglia mostra é uma extrema preferência pelo uso da Tipologia Textual, independente de estar ligada ao

ensino. Sua abordagem parece ser mais taxionômica. Ele chega a afirmar que são os tipos que entram na composição da

grande maioria dos textos. Para ele, a questão dos elementos tipológicos e suas implicações com o ensino/aprendizagem

merece maiores discussões.

Marcuschi diz que não acredita na existência de Gêneros Textuais ideais para o ensino de língua. Ele afirma que é

possível a identificação de gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais privado ao

mais público e assim por diante. Os gêneros devem passar por um processo de progressão, conforme sugerem Schneuwly

& Dolz (2004).

Travaglia, como afirmei, não faz considerações sobre o trabalho com a Tipologia Textual e o ensino. Acredito que um

trabalho com a tipologia teria que, no mínimo, levar em conta a questão de com quais tipos de texto deve-se trabalhar na

escola, a quais será dada maior atenção e com quais será feito um trabalho mais detido. Acho que a escolha pelo tipo, caso

seja considerada a idéia de Travaglia, deve levar em conta uma série de fatores, porém dois são mais pertinentes:

a) O trabalho com os tipos deveria preparar o aluno para a composição de quaisquer outros textos (não sei ao certo se isso

é possível. Pode ser que o trabalho apenas com o tipo narrativo não dê ao aluno o preparo ideal para lidar com o tipo

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dissertativo, e vice-versa. Um aluno que pára de estudar na 5ª série e não volta mais à escola teria convivido muito mais

com o tipo narrativo, sendo esse o mais trabalhado nessa série. Será que ele estaria preparado para produzir, quando

necessário, outros tipos textuais? Ao lidar somente com o tipo narrativo, por exemplo, o aluno, de certa forma, não deixa de

trabalhar com os outros tipos?);

b) A utilização prática que o aluno fará de cada tipo em sua vida.

 

Acho que vale a pena dizer que sou favorável ao trabalho com o Gênero Textual na escola, embora saiba que todo

gênero realiza necessariamente uma ou mais seqüências tipológicas e que todos os tipos inserem-se em algum gênero

textual.

Até recentemente, o ensino de produção de textos (ou de redação) era feito como um procedimento único e global,

como se todos os tipos de texto fossem iguais e não apresentassem determinadas dificuldades e, por isso, não exigissem

aprendizagens específicas. A fórmula de ensino de redação, ainda hoje muito praticada nas escolas brasileiras – que

consiste fundamentalmente na trilogia narração, descrição e dissertação – tem por base uma concepção voltada

essencialmente para duas finalidades: a formação de escritores literários (caso o aluno se aprimore nas duas primeiras

modalidades textuais) ou a formação de cientistas (caso da terceira modalidade) (Antunes, 2004). Além disso, essa

concepção guarda em si uma visão equivocada de que narrar e descrever seriam ações mais “fáceis” do que dissertar, ou

mais adequadas à faixa etária, razão pela qual esta última tenha sido reservada às séries terminais - tanto no ensino

fundamental quanto no ensino médio.

O ensino-aprendizagem de leitura, compreensão e produção de texto pela perspectiva dos gêneros reposiciona o

verdadeiro papel do professor de Língua Materna hoje, não mais visto aqui como um especialista em textos literários ou

científicos, distantes da realidade e da prática textual do aluno, mas como um especialista nas diferentes modalidades

textuais, orais e escritas, de uso social. Assim, o espaço da sala de aula é transformado numa verdadeira oficina de textos

de ação social, o que é viabilizado e concretizado pela adoção de algumas estratégias, como enviar uma carta para um

aluno de outra classe, fazer um cartão e ofertar a alguém, enviar uma carta de solicitação a um secretário da prefeitura,

realizar uma entrevista, etc. Essas atividades, além de diversificar e concretizar os leitores das produções (que agora deixam

de ser apenas “leitores visuais”), permitem também a participação direta de todos os alunos e eventualmente de pessoas

que fazem parte de suas relações familiares e sociais. A avaliação dessas produções abandona os critérios quase que

exclusivamente literários ou gramaticais e desloca seu foco para outro ponto: o bom texto não é aquele que apresenta, ou só

apresenta, características literárias, mas aquele que é adequado à situação comunicacional para a qual foi produzido, ou

seja, se a escolha do gênero, se a estrutura, o conteúdo, o estilo e o nível de língua estão adequados ao interlocutor e

podem cumprir a finalidade do texto.

Acredito que abordando os gêneros a escola estaria dando ao aluno a oportunidade de se apropriar devidamente de

diferentes Gêneros Textuais socialmente utilizados, sabendo movimentar-se no dia-a-dia da interação humana, percebendo

que o exercício da linguagem será o lugar da sua constituição como sujeito. A atividade com a língua, assim, favoreceria o

exercício da interação humana, da participação social dentro de uma sociedade letrada.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADAM, J. M. (1990). Élements de linguistique textuelle. Theorie et pratique de l’analyse. Liège, Mardaga.

ANTUNES, I. (2004). Aula de português: encontros e interação. São Paulo: Parábola.

BRONCKART, J.-P. (1999). Atividades de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo:

Editora da PUC/SP.

FÁVERO, L. L. & KOCH, I. V. (1987). “Contribuição a uma tipologia textual”. In Letras & Letras. Vol. 03, nº 01. Uberlândia:

Editora da Universidade Federal de Uberlândia. pp. 3-10.

MARCUSCHI, L. A. (2002). “Gêneros textuais: definição e funcionalidade” In DIONÍSIO, Â. et al. Gêneros textuais e ensino.

Rio de Janeiro: Lucerna.

SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. (2004). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras

SWALES, J. M. (1990). Genre analysis. English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press.

TRAVAGLIA, L. C. (1991). Um estudo textual-discursivo do verbo no português. Campinas, Tese de Doutorado / IEL /

UNICAMP, 1991. 330 + 124 pp.

___ (2002). Tipelementos e a construção de uma teoria tipológica geral de textos. Mimeo.

WEIRINCH, H. (1968). Estrutura e función de los tiempos em el lenguaje. Madrid: Gredos.

[1]   Penso que quando o professor não opta pelo trabalho com o gênero ou com o tipo ele acaba não tendo uma maneira muito clara para selecionar os textos com os quais trabalhará.

[2]   Outra discussão poderia ser feita se se optasse por tratar um pouco a diferença entre Gênero Textual e Gênero Discursivo.

[3]   Travaglia (2002) diz que uma carta pode ser exclusivamente descritiva, ou dissertativa, ou injuntiva, ou narrativa, ou argumentativa. Acho meio difícil alguém conseguir escrever um texto, caracterizado como carta, apenas com descrições, ou apenas com injunções. Por outro lado, meio que contrariando o que acabara de afirmar, ele diz desconhecer um gênero necessariamente descritivo.

[4]   Termo usado pelas autoras citadas para os textos que fazem previsão, como o boletim meteorológico e o horóscopo.

[5]   Necessárias para a carta, e suficientes para que o texto seja uma carta.

[6]   Segundo Travaglia (1991), texto argumentativo stricto sensu é o que faz argumentação explícita.

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[7]   Pelo menos nos textos aos quais tive acesso.

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 Diferença entre tipo e gêneros textuais - Marcuschi  Ana Paula em Seg Jun 16, 2008 5:27 pm

Em seu texto Marcuschi afirma que nos últimos dois séculos foram as novas tecnologias, em especial as

ligadas à área de comunicação, que propiciaram o surgimento de novos gêneros textuais, exemplo disso é o

e-mail, uma modernização do bilhete e da carta, gênero que tem sido discutido e inserido na sala de aula.

A definição de tipo e gênero textual sempre foi muito discutida, principalmente entre os professores, pois

para que ensinemos precisamos saber definí-los pelo menos para nós mesmos, visto que nos livros didáticos

essas definições são colocadas, na maioria das vezes, de maneira equivocada. Marcuschi define de forma

clara e objetiva tipo e gênero textual para designar uma construção teórica definida pela natureza lingüística

de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Em geral, os tipos

textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias como narração, argumentação, exposição, descrição,

injunção. Isso não quer dizer que um texto narrativo não poderá ter elementos descritivos, mas o que contará

será a predominância de um sobre o outro.

Já a expressão gênero textual é usada como uma noção propositalmente vaga para referir os textos

materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas.

Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros, incontáveis, um telefonema, um e-mail,

uma carta e assim por diante. Durante o dia fazemos uso de diversos gêneros textuais quando enviamos um

e-mail, ou deixamos um bilhete na porta da geladeira, os gêneros estão presentes em nossa vida a todo

momento.

Ana Paula

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