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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO UFRJ CENTRO DE CIÊNCIAS MATEMÁTICAS E NATURAIS CCMN PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA PPGG DOUTORADO EM GEOGRAFIA Território Federal e mineração de manganês: gênese do Estado do Amapá Rio de Janeiro 2009 INDIRA CAVALCANTE DA ROCHA MARQUES

gênese do Estado do Amapá

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO UFRJCENTRO DE CINCIAS MATEMTICAS E NATURAIS CCMNPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA PPGG

    DOUTORADO EM GEOGRAFIA

    Territrio Federal e minerao de mangans:

    gnese do Estado do Amap

    Rio de Janeiro

    2009

    INDIRA CAVALCANTE DA ROCHA MARQUES

  • INDIRA CAVALCANTE DA ROCHA MARQUES

    Territrio Federal e minerao de mangans:

    gnese do Estado do Amap

    Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcialpara obteno do grau de Doutor em Geografia

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Clia Nunes Coelho

    Co-orientador: Prof. Dr. Cludio Antonio Gonalves Egler

    Co-orientadora: Prof. Dr. Rosa Acevedo Marins

    Rio de Janeiro

    Maro 2009

  • MARQUES, Indira Cavalcante da Rocha. Territrio Federal e minerao de mangans: gnese do Estado do Amap / Indira Cavalcante da Rocha Marques. 2009. 286 f.: Il.

    Tese (Doutorado em Geografia) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Geocincias, Rio de Janeiro, 2009.Orientadora: Maria Clia Nunes Coelho

    1. Minerao Industrial do Mangans. 2. Autonomia poltica, econmica e financeira. 3. Regionalismo 4. (Re)organizao espacial. Teses. I. COELHO, Maria C. Nunes (Orient.). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps-graduao em Geografia. III. Titulo

  • Maria, Maria um dom

    Uma certa magia

    Uma fora que nos alerta

    (...)

    Mas preciso ter fora

    preciso ter raa

    preciso ter gana sempre

    Quem traz no corpo a marca

    Maria, Maria

    Mistura dor e alegria

    Mas preciso ter manha

    preciso ter graa

    preciso ter sonho sempre

    Quem traz na pele essa marca

    Possui a estranha mania

    De ter f na vida

    (Milton Nascimento e Fernando Brant)

    s Marias

    MARIA do Socorro

    MARIA Clia

  • Todo dia de viver

    para ser o que for

    e ser tudo

    (Beto Guedes e Ronaldo Bastos)

    Ao Gil e Mariana, pela fora e delicadeza de

    mostrar-me que .a vida bela

  • AGRADECIMENTOS

    Chegar a esse momento a certeza da superao de grandes desafios, s possvel porque contamos com o apoio de um enorme nmero de pessoas.

    O apoio no se limitou apenas Academia, mas familiares, instituies, amigos e demais colaboradores.

    Ao agradecermos a alguns seremos injustos com os demais. Mesmo assim, incorreremos nesta injustia. Gostaria, ento, de agradecer a algumas pessoas em especial.

    minha , por entender minha ausncia e por apoiar-me constante e integralmente. No citarei nenhum em especial, justamente porque todos so muito .

    Maria Clia, pela admirao que cultivo e que extrapola a eficincia acadmica rigor cientfico, solidariedade humana e exemplo de perseverana na vida. Muito obrigada.

    queles que a Academia aproximou do corao: Roberta, Neto, Ana Clara, Patrcia, Elis, Rafael, Glria e demais colegas do curso; Toms; Sandro, Andra e aos colegas do CPDA.

    Aos demais membros da banca, em especial Cludio Egler e Rosa Acevedo, pelas colaboraes indispensveis no decorrer do trabalho.

    Ildione e Nildete, fundamentais ao PPGG.

    s Instituies: Governo do Amap, UFRJ, IBGE e, entre tantas, quelas que nos cederam informaes e espao em suas bibliotecas.

    Aqueles que lutam por uma sociedade sem explorao, onde nossas crianas tenham a certeza do futuro; particularmente os amigos militantes do PSTU e aos seus familiares.

    Aos que no mediram colaborao: Luiz Cludio, Edna Alves, Valdirene Picano, Paula,Dbora Saraiva, Graa Leal, Udio Silva.

    Aos amigos que a vida nos presenteou: famlia Cartagnes e demais presenteados pela Mariana.

    queles que o espao e a pressa no nos permitiram citar.

    Famliaespeciais

  • RESUMO

    Territrio Federal e minerao de mangans: gnese do Estado do AmapMARQUES, Indira Cavalcante da Rocha.

    . 2009. Tese (Doutorado em Geografia) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

    Em 1943 o Presidente Getlio Vargas criou o Territrio Federal do Amap e em 1945 foram descobertas as reservas de mangans na Serra do Navio - AP. O minrio foi explorado pela Icomi, numa associao com a multinacional Bethlehem Steel Company. Esta produo mineral deu funo econmica a uma rea onde a economia era muito frgil, reorganizando o espao e colaborando decisivamente para a consolidao do TFA. A elite poltico-administrativa local elaborou o projeto de um estado minerador-industrial, onde a transformao do Territrio Federal em Estado do Amap seria conseqncia de sua autonomia econmico-financeira. Este projeto encontrou muitas contradies e foi sucessivamente sendo fragilizado. Diante das mudanas mercado internacional do mangans, a Icomi e o Grupo Caemi diversificaram suas atividades no Amap, introduzindo novos processos tecnolgicos na produo do minrio e iando outras empresas. Apesar disso, dos pagos e do elevado rendimento econmico da empresa, sua atuao no TFA no foi suficiente para concretizar o progresso nas propores prometidas em torno da minerao industrial. No decorrer da dcada de 1980 as ra do Navio entraram em exausto, levando a companhia mineradora a encerrar formalmente suas atividades em 1997. Anteriormente, desde o final dos anos 1970, o movimento regionalista vinha incorporando elementos de crtica ao governo federal e a busca pela elevao do Amap a estado deixava de ter a minerao como sustentao principal. Diferentemente do senso comum, a relao entre Icomi e TFA foi fundamental para consolidar o Territr Federal e construir as bases para a criao do Estado do Amap, ocorrida com a Constituio de 1988.

    Palavras-chave: Minerao industrial do mangans. Autonomia poltica, econmica e financeira. Regionalismo. (Re)organizao espacial.

    royalties

  • ABSTRACT

    MARQUES, Indira Cavalcante da Rocha. Federal Territory and mining of manganese: genesis of the State of Amap. 2009. Tese (Doutorado em Geografia) - Federal University ofRio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

    In 1943, President Getlio Vargas established the Federal Territory of Amap in 1945 and

    reserves of manganese were discovered in Serra do Navio. The ore was exploited by Icomi, in

    association with the multinational Bethlehem Steel Company. This mineral production

    provided the economic basis in an area where the economy was very fragile. It led to a spatial

    reorganizing and contributed decisively to the consolidation of the Federal Territory of

    Amap (TFA). The political and administrative elite developed a project for a mining-

    industrial state, where the transformation of the Federal Territory of Amap into the State of

    Amap as a consequence of its economic and financial autonomy. This project encountered

    many contradictions and was repeatedly being weakened. Facing the changes in the

    international market of manganese, the Icomi and Caemi Group diversified its activities in

    Amap, introducing new technological processes in the uction of ore and creating others.

    In spite of this, the royalties paid and the high economic return of the company, was not

    sufficient to achieve progress, as promised by the mining industry. During the 1980s the

    mines of Serra do Navio became exhausted, leading to t mining company to formally

    terminate its activities in 1997. Previously, from the late 1970s onwards, the regionalist

    movement was incorporating elements of criticism regarding the federal government and the

    pursuit of statehood of Amap but no longer using the of economic development

    based mainly on mining. Contary to common sense, the relationship between the TFA and

    Icomi was essential to consolidate the Federal Territory and build the foundations for the

    creation of the State of Amap, which took place with the new Constitution of 1988.

    Keywords: Mining industry of manganese. Autonomy of policy, economic and financial.

    Regionalism. Spatial (re)organization.

  • LISTA DE SIGLAS

    AMCEL Amap Florestal e Celulose S. A.

    Arena Aliana Renovadora Nacional

    BASA Banco da Amaznia

    BIRD Intenational Bank for Reconstruction and Development

    BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico

    Brumasa Bruynzeel Madeiras Sociedade Annima

    Cadam Caulim da Amaznia

    Caemi Companhia Auxiliar de Empresas de Minerao

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CEA Companhia de Eletricidade do Amap

    Cepal Comisso Econmica para Amrica Latina e o Caribe

    CINAL Comrcio, Indstria e Navegao

    CFA Companhia de Ferro Ligas do Amap

    CFCE Conselho Federal de Comrcio Exterior

    CFEM Compensao Financeira pela Explorao Mineral

    CME Comisso de Mobilizao Econmica

    CMBEU Comisso Mista Brasil-EUA

    CNG Conselho Nacional de Geografia

    CNI Confederao Nacional da Indstria

    CNMM Conselho Nacional de Minerao e Metalurgia

    CNP Conselho Nacional do Petrleo

    CNPIC Conselho Nacional de Poltica Industrial e Comercial

    CODEPA Companhia de Dend do Amap

    CPE Comisso de Planejamento Econmico

    CPI Comisso Parlamentar de Inquritos

    COPRAM Companhia de Progresso do Amap

    CSN Companhia Siderrgica Nacional

    CTEF Conselho Tcnico de Economia e Finanas

    CVRD Companhia Vale do Rio Doce

    DIP Departamento de Impensa

    DNPM Departamento Nacional de Produo Mineral

    DNC Direo Nacional do Comrcio

    Dasp Departamento Administrativo do Servio Pblico

    EXIMBANK Export Import Bank of Washington

  • FERUSA Ferro, Union Brasil S.A

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    Fiesp Federao das Indstrias do Estado de So Paulo

    GTFA Governo do Territrio Federal do Amap

    GETAT Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IBAD Instituto Brasileiro de Ao Democrtica

    IBRD/BIRD International Bank for Reconstruction e Development / Banco Internacional

    para Reconstruo e Desenvolvimento (Banco Mundial)

    ICM Imposto sobre Circulao de Mercadorias

    ICMS - Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios

    ICOMI Indstria e Comrcio de Minrio S. A.

    IEPA Instituto de Pesquisas Cientficas e Tecnolgicas do Estado do Amap

    IPES Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

    IRDA Instituto Regional de Desenvolvimento do Amap

    IUM Imposto nico sobre Minerais

    JPE Jaakko Poyry Engenharia

    JK Jucelino Kubitschek

    MDB Movimento Democrtico Brasileiro

    MDC Movimento Democrtico Brasileiro

    MECOR Ministrio Extraordinrio para a Coordenao dos Organismos Regionais

    MINTER Ministrio do Interior

    MPPEA Movimento Popular Pr-Estado do Amap

    ONU Organizaes das Naes Unidas

    PDA Plano de Desenvolvimento da Amaznia

    PDC Partido Democrtico Cristo

    PDT Partido Democrtico Trabalhista

    PGC Programa Grande Carajs

    PIB Produto Interno Bruto

    PIN Programa de Integrao Nacional

    PMDB Partido do Movimento Democrtico Nacional

    PNB Produto Nacional Bruto

    PND II Plano Nacional de Desenvolvimento

    Proterra Programa de Redistribuio de Terras

    PSD Partido Social Democrtico

    PT Partido dos Trabalhadores

  • PTB Partido Trabalhista Brasileiro

    Sema Secretaria Estadual de Meio Ambiente

    SPVEA Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

    Sudam Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia

    Suframa Superintendncia da Zona Franca de Manaus

    TF Territrios Federais

    TFA Territrio Federal do Amap

    TCU Tribunal de Contas da Unio

    UDN Unio Democrtica Nacional

    UFPA Universidade Federal do Par

    UHCN Usina Hidreltrica Coaracy Nunes

    URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Reservas de mangans conhecidas no bloco ocidental 127

    Tabela 2: Mangans exportado em 1958-1959 por unidades da federao, em

    toneladas 138

    Tabela 3: Evoluo da produo da Icomi e dos pagos, em 1957-

    1997 168

    Tabela 4: Exportao da regio Norte para o exterior, 1958 (Valores FOB a

    preos de 1974) 169

    Tabela 5: Renda interna da indstria da regio Norte e do Amap, 1959 e

    1970, em Cr$ 1.000 173

    Tabela 6: Destino do mangans amapaense (toneladas), 1957-1997, Anos

    selecionados. 177

    Tabela 7: Distribuio do valor da produo do mangans amapaense (%) 182

    Tabela 8: Reinvestimentos da Icomi/Caemi no Amap US$ 1.000 de 2003 183

    Tabela 9: Recursos programados no I Plano de Desenvolvimento do Amap/

    II Plano Nacional de Desenvolvimento, 1975-1979 201

    Tabela 10: Participao do Imposto nico sobre Minerais (IUM) na receita

    total arrecadada em Macap, em Cr$ 215

    Tabela 11: Valor da produo mineral e do IUM, 1988 216

    Tabela 12: Participao percentual do Amap nas exportaes minerais

    brasileiras, 1957-2000, intervalos selecionados 217

    Tabela 13: Saldo comercial e participao do Amap nas exportaes da

    regio Norte, US$ 1.000 FOB 218

    Tabela 14: Participao do PIB amapaense em relao ao PIB do Norte; da

    Indstria do Amap em relao a do Norte e da Indst. Amap em

    relao do PIB do Amap (em %) 219

    Tabela 15: Evoluo do funcionalismo pblico no Amap, 1944-1993 (anos

    selecionados) 220

    Tabela 16: Empregados diretos no Amap da Icomi e de empreendimentos

    associados, 1957-1999 (anos selecionados) 220

    Tabela 17: Evoluo demogrfica amapaense, 1950-2000 224

    royalties

  • Tabela 18: Produo da economia amapaense, a partir da somatria dos

    principais produtos de cada ramo produtivo, 1962, em Cr$ 230

    Tabela 19: Receita arrecadada por municpio, anos selecionados 236

  • LISTA DE MAPAS E FIGURAS

    Mapa 1: Localizao do Amap 2

    Mapa 2: Brasil e seus territrios federais em 1945 67

    Figura 1: reas fronteirias de conflito territorial entre o Brasil e outros

    pases 69

    Figura 2: Organograma do Plano de Organizao Administrativa do TFA de

    1944 84

    Figura 3: Futuro da Amaznia dependeria da explorao do ferro do Amap 123

    Figura 4: Complexo Icomi no Amap 150

    Figura 5: Localizao das minas de mangans da Serra do Navio 151

    Figura 6: Manchete principal do prometendo transformar o

    TFA num grande parque industrial 160

    Figura 7: Emprstimo do Eximbank seria, primeiramente, para o ogresso

    do Amap 161

    Figura 8: Proporo dos principais produtos da produo amapaense por

    municpio, 1962 229

    Figura 7: Relao entre a populao rural e urbana do Amap, 1950-1990 233

    Figura 8: Diviso poltico-administrativa do Amap 1943, 1956 e 2000 228

    Figura 9: Depsito de rejeitos de mangans em Santana 241

    Figura 10: Lago artificial surgido da extrao de mangans na mina

    Terezinha-6 243

    Figura 11: Minrio de baixo teor descartado na Serra do Navio 244

    Figura 12: Aterro para onde seriam transferidos os rejeitos do de

    Santana 245

    Jornal Amap

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1: Principais produtos da produo dos municpios amapaenses em

    1962 231

    Grfico 2: Evoluo da populao urbana e rural do Amap, 1940-1990 234

    Grfico 3: Comparativo da populao do TFA e de Macap, 1950-2000 234

  • ANEXOS

    Anexo 1: Figura do Contestado Franco-BrasileiroAnexo 2: Figura do esboo das reas de ocorrncia mineral no Amap, anos

    1940

    283

    284Anexo 3: Quadro de ocorrncias minerais divulgadas no Amap 285Anexo 4: Canteiro de obras da hidreltrica de Paredo (Icoaracy Nunes),

    anos 1960 286

  • SUMRIO

    1 INTRODUO

    2 O REGIONALISMO COMO QUESTO IMPORTANTE NO ESTUDO

    DO AMAP

    3 DA SITUAO COLONIAL FUNDAO DO TERRITRIO

    FEDERAL DO AMAP

    4 DO FERRO AO MANGANS

    1

    1.1 LOCALIZANDO O AMAP E ESTUDOS J REALIZADOS 1

    1.2 A MINERAO NO AMAP 6

    1.3 PROBLEMATIZAO 7

    1.4 PERSPECTIVAS TERICO-METODOLGICAS: UNIDADE HISTRICA

    E REGIONALISMO 11

    1.5 SOBRE AS FONTES 15

    18

    2.1 REGIONALISMO COMO DISCUSSO TERICA 18

    2.2

    2.3

    REGIONALISMO E AUTONOMIA NO AMAP

    IDENTIDADE E REGIONALISMO NO AMAP

    29

    33

    41

    3.1 O AMAP NO PERODO COLONIAL E NO BRASIL IMPERIAL 41

    3.2 DO REORDENAMENTO TERRITORIAL CENTRALIZAO

    POPULISTA VARGUISTA 46

    3.3 CENTRALIZAO, REORDENAMENTO TERRITORIAL E

    SEGURANA NACIONAL: O AMAP NA FUNDAO DOS

    TERRITRIOS FEDERAIS 59

    3.4 FRAGILIDADE DOS ESTADOS AMAZNICOS E A RELAO ENTRE

    PAR E AMAP 71

    3.5 A INSTABILIDADE DOS TERRITRIOS FEDERAIS 75

    3.6 QUESTES ECONMICAS E ADMINISTRATIVAS NO NOVO

    TERRITRIO FEDERAL 82

    3.7 POPULISMO E DISPUTAS POLTICAS LOCAIS 87

    3.8 AUTONOMIA COMO PRODUTO DO PROGRESSO ECONMICO 94

    97

    4.1 POLMICAS EM TORNO DA INDUSTRIALIZAO, DO ESTADO, DO

    CAPITAL ESTRANGEIRO E DA MINERAO 97

    4.2 O AMAP NO CENRIO AMAZNICO DAS DCADAS DE 1940 E 1950 108

  • 4.3 O CONTRATO COM A HANNA EXPLORATION COMPANY NO

    AMAP 112

    4.4 O MANGANS AMAPAENSE NO CENRIO DAS DISPUTAS

    INTERNACIONAIS 125

    4.5 DA DESCOBERTA DO MANGANS AO CONTRATO COM A ICOMI 129

    4.6 A ICOMI E O PROJETO DE ESTADO MINERADOR-INDUSTRIAL 153

    4.7 A ICOMI COMO RECURSO POLTICO DESENVOLVIMENTISTA 160

    165

    5.1 A EVOLUO DA PRODUO DA ICOMI 166

    5.2 ICOMI, DISPUTAS LOCAIS, LIMITAES ECONMICAS E

    INTENSIFICAO DA CAMPANHA AUTONOMISTA 185

    5.2.1 A Produo do Mangans e o Cenrio Poltico Amapaense no Perodo de 1960

    a 1964 185

    5.2.2 Do Golpe Militar ao Final dos Anos de 1970: Diversificao da Produo da

    Icomi e Enfraquecimento da Campanha Autonomista 194

    5.2.3 As Contradies do Projeto do Estado Minerador-Industrial 203

    5.2.4 A Retomada da Campanha pela Transformao do Amap em Estado e a

    Diminuio da Importncia Relativa da Minerao no Movimento

    Autonomista 206

    5.3 A ICOMI NO MOMENTO DE CRIAO DO ESTADO DO AMAP 213

    223

    6.1 A PRESENA DA ICOMI NA (RE)ORGANIZAO ESPACIAL DO

    AMAP 223

    6.2 A QUESTO FSICO-SCIO-AMBIENTAL NA EXPLORAO DO

    MANGANS

    240

    248

    260

    282

    5 PRODUO DA ICOMI E A AUTONOMIA DO TFA: DAS

    CONTRADIES TRANSFORMAO DO AMAP EM ESTADO

    6 ICOMI, (RE)ORGANIZAO ESPACIAL E QUESTO FSICO-

    SCIO-AMBIENTAL NA EXPLORAO DO MANGANS

    AMAPAENSE

    7 CONCLUSO

    REFERNCIAS

    ANEXOS

  • 1

    Que papel teve a empresa Indstria e Comrcio de Minr S.A. (Icomi) na

    consolidao do Territrio Federal do Amap (TFA) e na sua transformao em estado da

    Federao brasileira? Eis a questo que nos intrigou nesta tese.

    1.1 LOCALIZANDO O AMAP E ESTUDOS J REALIZADOS

    O Amap, com seus 142.814,585 km, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica (IBGE, 2008), est situado numa rea de fronteira internacional do Brasil, mais

    especificamente na Amaznia Oriental e na desembocadura do rio Amazonas, tendo o Estado

    do Par como limite ao sul/sudeste (rio Amazonas) e ao sul/sudoeste (rio Jari); ao

    norte/nordeste, seu limite o oceano Atlntico e, ao oeste, faz fronteira com a

    Guiana Francesa, havendo ainda uma pequena parcela de territrio ao extremo-oeste que

    tem como limite o Suriname (Mapa 1).

    Diversos estudos j foram realizados sobre o Amap. Co objetivos e pontos de

    origem diferentes, eles nos ajudaram no apenas a contextualizar o desenvolvimento desse

    estado como tambm nos serviram de referncia para a construo de outra perspectiva

    analtica diferente da linha condutora comum presente nesses trabalhos.

    Arthur Reis (1949) estudou os primeiros anos logo aps a criao do Territrio

    Federal do Amap (TFA), comparando as informaes disponveis sobre o que existia antes

    dessa criao com as primeiras transformaes que ocorriam. O autor enalteceu a fundao

    desse e de outros Territrios Federais (TF) colocando-a como expresso do progresso para a

    regio.

    1 INTRODUO

  • 2

    : Digital Chart of the World (www.maproom.psu.edu/dew), Arruda (1997), Esri (www.esri.com/lega/copyright-tradmarls.html), Anurio Estatstico IBGE, 1992. Elaborao de Luiz Barbosa e Indira Marques.

    Fonte

    Mapa 1: Localizao do Amap.

  • 3

    A obra de Arthur Reis foi publicada em 1949, pouco dep da assinatura do contrato

    de explorao do mangans amapaense pela Icomi e, na prtica, antes da instalao da

    empresa no Amap. Portanto, a Icomi inexistia por ocasio deste trabalho. Isso ,

    evidentemente, um elemento que ajuda a entender as limitaes do estudo, pois as

    informaes disponveis eram incipientes e frgeis, dadas as fragilidades dos levantamentos

    feitos pelo Territrio. Outra limitao deve-se ao objetivo de necessariamente enaltecer o

    novo Territrio, de construir um discurso performtico que o justificasse, o que obscureceu

    em parte a possibilidade de uma interpretao crtica a criao do TFA e sobre seus

    primeiros anos de existncia. Em todo caso, se desconsiderarmos o relatrio feito pelo

    governador Janary Nunes no final de 1944, o trabalho de Reis foi o primeiro estudo de maior

    envergadura feito sobre o Amap.

    Fernando Santos (1998), por sua vez, estudou a histria do Amap concentrando-se na

    figura do primeiro governador do Territrio, Janary Nunes, e no fenmeno dele decorrente: o

    janarismo. A Icomi foi abordada no trabalho, mas com um elemento bastante secundrio

    na histria amapaense do perodo, de modo que a empresa representava muito mais um dado

    do que um elemento a ser estudado e problematizado. Assim, as variveis explicativas dos

    fenmenos que marcaram o TFA foram localizadas, por esse autor, nos processos em torno da

    figura do ex-governador amapaense, perdendo-se a possibilidade de localizar-se na frtil

    interseco entre Icomi e governo do Amap.

    Daniel Brito (1994) estudou criticamente a Icomi e as s nas relaes

    socioambientais introduzidas pela empresa, entretanto u seu estudo na empresa em si,

    relegando ao segundo plano, por exemplo, a elite poltico-administrativa. Esse autor seguiu,

    assim, um movimento inverso ao de Santos. Apesar disso e ainda que de forma secundria,

    analisou o papel do governo no desenvolvimento do processo de explorao mineral a partir

    da Icomi, discutindo, alm dos impactos sociais e ambientais, as limitaes do projeto para o

  • 4

    desenvolvimento regional. Porm, quando se props a fazer uma anlise da relao entre

    governo do Territrio e empresa, ele tomou essa relao como algo dado, e no como um

    processo que foi construdo e, ao mesmo tempo, construiu o estado amapaense.

    Jadson Porto (2003) estudou as transformaes econmico-institucionais, em cujo

    contexto analisou a Icomi e a consolidao do TFA. Ele constatou que a presena da Icomi

    produziu transformaes, contudo essa constatao apareceu muito mais como um dado do

    que como uma problematizao da relao entre o Territrio e a Icomi. Alm disso, Porto

    efetuou uma periodizao que, na prtica, separou o TFA do Estado do Amap, como se

    fossem dois processos diversos e distintos.1 Afora isso, localizou e destacou a gnese do

    Territrio, mas no a problematizou, tampouco examinou a relao Icomi-Amap com a

    ateno necessria para o entendimento daquilo que ele prprio props-se a fazer: estudar as

    principais transformaes econmicas e institucionais no intervalo temporal que vai da

    fundao do Territrio ao ano de 2000.

    Jos Drummond e Maringela Pereira (2007) procuraram fazer correlaes entre a

    Icomi e o TFA, chegando a falar rapidamente de um papel fundador da empresa em relao

    ao Amap. O estudo desses dois autores foi bem fundamentado em informaes quantitativas,

    mas tornou-se fundamentalmente descritivo e pouco problematizou os dados disponveis. O

    resultado foi que, apesar de afirmarem que fariam uma anlise isenta, acabaram em inmeros

    momentos tendo como preocupao central enaltecer a presena e o papel desempenhado pela

    empresa no Amap.

    Evidentemente que cada autor citado se props objetivos e focos especficos, de modo

    que isso marcou cada trabalho em si. No colocamos em questo a importncia desses

    estudos, inclusive recorremos a eles sempre que necessrio, mas, para alcanarmos os

    propsitos desta tese, tivemos de questionar as interpretaes que analisaram a Icomi a

    1 Evidentemente no deixamos de constatar que h fases especificidades diferentes entre o TFA e o Estado do Amap, mas buscaremos comprovar que so partes compone e um processo longo, no linear.

  • 5

    fundao do estado amapaense como processos distintos. Partimos justamente daquilo que

    elas negaram e o transformamos em objeto de estudo, ou seja, reexaminamos o processo

    histrico e a evoluo geogrfica amapaense, evidenciando a relao entre TFA e Icomi como

    a gnese do Estado do Amap. Nesse movimento de construo, no se poderia examinar a

    histria da formao poltica e econmico-financeira do Amap de forma linear. A anlise

    deveria necessariamente ser complexa. Fomos ao passado para entender as relaes que

    explicavam o presente, na tentativa de desconstruir mitos.2

    O perodo da fundao do Territrio Federal do Amap e da instalao local da Icomi

    ganhou destaque como ponto de partida para compreender a busca das autonomias

    econmico-financeira e poltica do Amap,3 que se configuraram tambm como

    manifestaes regionalistas. No objetivamos fazer um balano da atuao da empresa no

    Amap de modo a enveredar pelo caminho da crtica exacerbada de sua presena, tampouco

    fazer sua defesa ufanista. Por outro lado, no poderamos nem negar a importncia da

    empresa na configurao da realidade existente no que oje constitui essa unidade federativa,

    nem sequer deixar de observar os srios problemas decorrentes dessa presena, entre os quais

    se destacava o fato de que a riqueza por ela extrada pouco promoveu em termos de

    desenvolvimento local duradouro sociedade amapaense. Esse mesmo procedimento tambm

    foi adotado no tocante ao governo do Territrio Federal do Amap.

    Assim, examinamos privilegiadamente a relao entre empresa e governo do Amap

    no processo de autonomia dessa unidade federativa. A busca por esse processo de

    emancipao poltica e econmico-administrativa foi um elemento fundamental na

    constituio do movimento regionalista.

    2 O que no quer dizer que o presente explica-se apenas pelo passado; se pensssemos assim, estaramos desconsiderando os fenmenos e atores atuais na compreenso da realidade hoje existente.3 Apesar de falarmos em autonomias (no plural), compreendemos o processo como um s. Depende do perodo em anlise, a busca da autonomia do Amap (e o discurso em torno dela) sustentou-se mais em elementos econmico-financeiros ou em polticos. Nos primeiros anos de criao do TFA, foram os elementos econmico-financeiros que se destacaram.

  • 6

    1.2 A MINERAO NO AMAP

    O Amap desde h muito j contava com uma produo mineral, destacando-se a

    explorao artesanal de ouro. Em 1934, o Departamento de Produo Mineral

    (DNPM) constatou a presena de mangans no rio Amapari. Quando o governo do Territrio,

    na figura de Janary Nunes, assumiu a administrao do Amap, desenvolveu-se uma poltica

    ativa no sentido de descobrir e explorar reservas minerais. Em 1945, anunciou-se a descoberta

    de reservas de ferro no rio Vila Nova, o que originou contrato de pesquisa e explorao

    entre o governo do Territrio e a empresa estadunidense Hanna Exploration Company, que

    no evoluiu para uma produo mineral efetiva. Ainda em 1945, descobriram-se reservas de

    mangans na Serra do Navio. O governo do Territrio abriu licitao para a sua explorao, e

    a Icomi, sediada em Minas Gerais, saiu vitoriosa.

    O contrato de estudo de viabilidade da explorao das foi assinado em 1947

    entre a Icomi e o Governo do Territrio Federal do Amap (GTFA), sendo que em 1950, ele

    foi revisado e por meio de tal reviso a empresa passou a ter a prerrogativa de explorao

    dessas reservas e, tambm, a possibilidade de associar-se a empresas estrangeiras para tal.

    Logo em seguida reviso contratual, a Icomi associou-se norte-americana Bethlehem Steel

    Company num contexto de polmicas acerca da participao do capital estrangeiro na

    economia brasileira.

    As primeiras exportaes de mangans ocorreram em 1957 e constituram o principal

    elemento propulsor da produo econmica amapaense e, at meados dos anos 1960 pelo

    menos, a principal fonte, para a regio amaznica, de isas oriundas do mercado

    internacional.

  • 7

    Afirmamos desde j que a presena da Icomi foi um elemento importante para a

    consolidao econmica do novo Territrio. De outro lado, o governador Janary atuou

    ativamente junto ao Congresso Nacional e Presidncia da Repblica a fim de reunir os

    elementos necessrios ao incio e continuidade da explorao de mangans do Amap. A

    partir de meados dos anos 1960, a Icomi procurou diversificar sua produo, recorrendo a

    outros produtos e atividades. A produo de mangans entrou em crise nos anos 1980,

    exaurindo-se na dcada seguinte. Em 1997, a empresa solicitou oficialmente ao DNPM o

    encerramento dessa produo no Amap.4

    Ainda na dcada de 1960, surgiram propostas de elevao do TFA categoria de

    estado, prolongando-se essa discusso pelas dcadas seguintes. Isso culminou no debate no

    Amap sobre a sua manuteno como territrio federal ou sua ascenso federativa, formando-

    se correntes defendendo argumentos favorveis a uma e a outra posio. Em 1988, o Amap e

    os demais territrios, exceo de Fernando de Noronha, foram transformados em estados.

    1.3 PROBLEMATIZAO

    Com a descoberta do mangans, o Amap, para alm de fronteira internacional,

    transformou-se em fronteira econmica. Estendemos nossa pesquisa at o final dos anos 1980,

    quando se criou o estado. Nossa anlise norteou-se principalmente pelas seguintes questes:

    quando, como e por que o Amap se transformou em um estado, em uma unidade federativa

    autnoma? O Amap foi desde o incio uma realidade geogrfica e histrica (pr-existente) ou

    trata-se de uma unidade socialmente construda, imposta por decreto? No processo de

    inveno do Amap, qual era o significado das riquezas minerais, ento recm-descobertas?

    Qual foi o papel desempenhado pela Icomi no processo? Como foi construda a perspectiva

    4 A exausto de uma mina de explorao superficial acontece todas as vezes que a relao entre estril e minrio torna-se desfavorvel para a empresa que a explora, face ao preo baixo do minrio.

  • 8

    autonomista no Amap? Mais especificamente: qual foi o papel da Icomi na construo da

    autonomia econmico-financeira e poltica do Amap?

    Evidentemente no queremos reduzir a consolidao do TFA e sua transformao em

    estado somente ao papel da Icomi; queremos, antes, destacar a devida importncia da

    empresa, pois ela estabeleceu uma relao de funcional com o espao do TFA,

    implantando, por exemplo, a infraestrutura para a extrao e a transformao do minrio de

    mangans (dinamizando a economia e a demografia locais) e, com isso, tornou-se elemento

    importante para a construo da perspectiva autonomista, tanto pelo seu contedo concreto

    quanto pelo seu vis simblico.

    Como o Estado foi criado com a Constituio de 1988, pode parecer contraditrio

    ressaltar a importncia da Icomi no processo de autonomia do Amap justamente na fase de

    encerramento de suas atividades, quando seu papel econmico e simblico no acalantava,

    nem sustentava mais a perspectiva antes propagandeada grandiosidade e de

    desenvolvimento do Amap a partir do discurso do projeto mineral-industrial. Ao contrrio. A

    empresa despertava crticas e ressentimentos em grande parte dos amapaenses, fosse em

    funo dos problemas fsico-ambientais ou do fato de ela havia levado as reservas

    mangans exausto. O Amap ficara longe da propaganda desenvolvimentista feita em torno

    desse empreendimento. Quando apresentamos nossa problemtica a amapaenses e

    pesquisadores, de imediato surgiu um questionamento e crtica: como voc quer fazer

    tal anlise, se o papel de destaque da Icomi foi anter ao perodo em que o TFA se

    transformou em estado? Desse modo, a Icomi s teria sido importante para o Territrio do

    Amap, e no para a sua constituio em estado. Foi justamente isso que quisemos descortinar

    comprovando que a empresa foi to importante para o TFA quanto para sua transformao

    futura em estado.

  • 9

    Foi com a significativa explorao do mangans pela Icomi que o Amap consolidou-

    se como um Territrio Federal e depois reuniu condies para afirmar-se como estado.

    Tratava-se de fazer existir um territrio visto como uma entidade social e economicamente

    vivel, mas em processo de construo como instituio que tinha um projeto de progresso

    que se materializaria no futuro estado.

    Como ento foi possvel destacar tal importncia da Icomi nos projetos de

    transformao do Amap em estado? Primeiro, devemos compreender que a transformao do

    Territrio Federal do Amap em estado no foi algo repentino, fruto do presente,

    simplesmente. O estado amapaense, com seu territrio geogrfico, sua identidade e

    organizao espacial, administrativa e institucional, fruto de uma construo histrico-

    geogrfica de longa durao. Faz-se assim necessrio entender o passado no sentido de refletir

    sobre a consolidao do Territrio e sua transformao em estado, reconstruindo e

    problematizando a sua gnese, o significado das suas riquezas naturais e o papel

    desempenhado pela Icomi.

    Um instrumento importante que nos ajudou neste movimento analtico foi a

    perspectiva de unidade histrica aplicada Europa por Febvre (2004),5 que nos permitiu

    pensar o Amap e refletir sobre quando se achavam reunidos seus elementos constitutivos

    enquanto organizao poltica, econmica e geogrfica. Mais precisamente, refletimos quando

    se teve a gnese histrica do estado amapaense. O estudo da gnese histrica permitiu-nos

    analisar e destacar dois elementos, que acreditamos fundamentais, pr-condicionais

    elevao do Amap condio de estado, unidade da Federao: o TFA e a Icomi. Assim, no

    compreendemos o processo de formao histrica do TFA um fenmeno parte do

    Estado do Amap. Territrio e estado amapaense so partes da evoluo de um mesm

    processo histrico-geogrfico, com momentos e particularidades prprios, verdade, mas um

    5 Publicado primeiramente na Europa em 1999.

  • 10

    mesmo processo. Estudamos, portanto, a gnese do Estado do Amap na relao entre a Icomi

    e o TFA desde o estabelecimento da empresa no espao amapaense.

    Na tentativa de entender e descortinar as relaes entre TFA e Icomi, entre seus

    elementos sociais e o projeto poltico regionalista, recorremos, entre outros, ao discurso dos

    governantes e dos empresrios, o que nos possibilitou observar a movimentao das foras

    polticas e econmicas no desenvolvimento do Amap at sua culminncia em estado. Mais

    que isso: como a Icomi e o projeto de um estado sustentado na promessa da industrializao

    mineral serviram, primeiro, proposta desenvolvimentista e autonomista e, depois, deixaram

    de ser importantes para tal. Utilizamos o conceito de regionalismo como mais um elemento

    para estudar a gnese histrico-geogrfica da autonomia amapaense.

    No estudo das polticas autonomistas, evidenciamos as relaes externas

    (particularmente, entre TFA e governo federal) e internas (entre TFA e Icomi, por exemplo)

    nestas ltimas, as relaes entre aes e propagandas o governo local e da Icomi, visando,

    por um lado, unir objetivos e suscitar na sociedade do TFA o sentimento de se ver como

    amapaense (fator importante na sua individualizao em relao s demais unidades da

    Federao brasileira) e, por outro, despertar o interesse pela autonomia dessa unidade

    federativa. Assim, nosso campo de estudo partiu da geografia e dialogou com a histria e a

    poltica.

    Em sntese, as questes centrais que nortearam a construo da tese proposta foram:

    quando, como e por que o Amap se constituiu em unidade autnoma da Federao? Qual foi

    o papel desempenhado pela Icomi nesse processo? Para tal, trabalhamos, entre outras, com a

    premissa de que a Icomi desempenhou papel fundamental na viabilizao econmica e

    poltica do Territrio Federal do Amap e, nesse processo, em sua transformao em estado

    da Federao.

  • 11

    No perodo em anlise, a problemtica amapaense em questo pode ser resumida em

    dois problemas interligados: o de gnese de um territrio federal, associado localizao e

    ocorrncia mineral, ou seja, de um territrio federal (cuja criao foi politicamente imposta

    pela sua condio de fronteira internacional) que tinha a meta de viabilizar-se como uma

    entidade financeira e administrativamente mais autnoma possvel; outro de cunho

    regionalista, subjetivo, bem como de organizao poltica do espao interno e regional. Esses

    dois aspectos de um mesmo processo compunham a luta por uma entidade social, territorial e

    administrativamente autnoma. Em outras palavras, a problemtica amapaense em questo

    estava situada na interseco da poltica, do desenvolvimento extrativo mineral e das

    aspiraes regionalistas de fazer-se ver e tornar-se autnomo, do ponto de vista tanto

    econmico-financeiro quanto poltico.

    1.4 PERSPECTIVAS TERICO-METODOLGICAS: UNIDADE HISTRICA E REGIONALISMO

    Com base no levantamento histrico que realizamos, foi possvel afirmar que o Amap

    foi muito menos um fato em si (a criao do Territrio Federal e depois do estado) e muito

    mais um processo socialmente construdo, entendido na perspectiva das relaes estabelecidas

    entre os atores envolvidos nessa construo. Para o fim deste muito nos ajudou a

    perspectiva metodolgica da unidade histrica6 apresentado por Lucien Febvre (2004).

    Objetivamos entender que o Amap estado foi uma construo social, real, e no algo dado

    por natureza ou conseqncia simples do presente.

    Tal como Febvre, que procurou destacar que a noo de Europa era uma noo real e

    viva (FEBVRE, 2004, p. 61), portadora de uma solidariedade comum, de uma civilizao

    6 Enquanto uma construo social que se pode saber quando surgiu e com quais foras sociais, ou seja, que se pode precisar sua gnese histrica. Neste sentido, no devemos confundir com uma unidade federativa, que uma diviso poltico-administrativa de um pas.

  • 12

    comum,7 interessou-nos saber com quais elementos geogrficos e sociais foi constitudo o

    Amap. Quais eram as foras polticas e sociais que o de fora e de dentro, que lhe

    deram, entre outras, sua forma poltica, econmica e cultural? O que queremos evidenciar

    com esta perspectiva metodolgica que a compreenso do presente necessita de um

    conhecimento preciso do passado, no sentido de desvendar uma gnese que no se inicia com

    um fato em si, tal qual a data de criao do Estado do Amap, por exemplo.

    Um movimento terico que buscou analisar o movimento histrico da sociedade, mas

    partindo da geografia e, portanto, do territrio (enquanto conceito geogrfico), foi realizado

    por Moraes (2000). Esse autor usou como objeto emprico a categoria formao territorial

    para apreender o movimento histrico da sociedade. O conceito de territrio, no contexto do

    Estado-Nao, destacou-se como uma escala analtica que objetivou uma relao entre

    sociedade e espao, uma viso angular especfica da histria. Nessa abordagem o territrio foi

    apresentado como um espao dotado de uma historicidade prpria, que corresponderia

    espacialidade de uma dada formao econmica e social, ou seja, todo territrio tem uma

    histria que explica sua conformao e sua estrutura atual. Para apreend-la necessrio

    equacion-la como um processo (MORAES, 2000, p. 21).

    A formao territorial foi, assim, apresentada por Moraes (2000) como um objeto de

    pesquisa de anlise histrica retrospectiva, uma vez que o autor buscou a gnese dos

    conjuntos espaciais contemporneos que no passado no necessariamente possuam unidade

    e integrao. Tomaram-se os territrios atuais como resultado de uma histria cuja lgica foi

    atribuda e os estudos dos processos de formao territorial indicaram que

    seus resultados foram construes de natureza diversas: blicas, jurdicas, ideolgicas e

    polticas. O territrio, enquanto uma construo poltica teve tambm de ser reintegrado por

    meio de pactos e disputas sociais. At por isso, a formao territorial apresentou ainda uma

    7 Na perspectiva do autor, a civilizao era algo que por natureza tendia ao universal uma homogeneizao no sentido de se ver como iguais.

    post festum

  • 13

    face ideolgica, resultando em construes discursivas que comandam tanto a conscincia dos

    lugares quanto sua produo material. A questo federativa, o regionalismo e a

    municipalizao exemplificaram bem o contedo de tais sociais de ordenamento

    poltico do poder no espao que, por sua vez, expressaram pactos territoriais.

    A anlise de Moraes (2000) e, particularmente, a de Febvre (2004), chamam a ateno

    para a discusso da identidade. Featherstone (1998) interpretou-a a partir da anlise da

    comunidade/nao no contexto da globalizao. A comunidade nacional foi inveno, porm

    no foi criada do nada, ao contrrio, sustentava-se necessariamente em um estoque comum de

    mitos, heris, eventos, paisagens e memrias que deveriam ser organizados e que assumiam

    um papel crucial na construo do nacional. A relao diferenciao externa entre ns e

    eles unificava as estruturas internas dos grupos; aparentando para quem visse de fora a

    localidade de fora uma imagem unificada e homognea dessa cultura. A cultura local era

    internamente sedimentada pelas experincias cotidianas e pelas crenas comuns, mas a

    integrao dessas crenas e do sentimento de pertencimento, de particularidade tornava-se

    mais definida no contato com o outro. Foi por meio do contato que os grupos criaram,

    recriaram smbolos e formaram uma imagem unificada sua, afirmando sua identidade em

    relao ao outro.

    Ortiz (2005), ao estudar a cultura brasileira e a identidade nacional, afirmou que toda

    identidade define-se em relao a algo que lhe externo. Alm da dimenso exterior, a

    identidade possui outra dimenso interna, que o que os identifica. Identidade foi entendida,

    nessa compreenso terica, como algo que se construiu, como uma construo simblica. Ela

    no espontnea. Essa viso eliminou da anlise questes sobre falsidade ou verdade do que

    era produzido, pois, existiria no uma identidade autntica, mas uma pluralidade de

    identidades, construdas por diferentes grupos em diferentes momentos histricos.

  • 14

    Entender a identidade significava, ento, compreend-la como projeto que se vincula

    s formas sociais que a sustentam (ORTIZ, 2005, p. 13 . Foi dessa forma que o autor

    entendeu o que seria a identidade nacional. Na sua tica, foi o Estado que delimitou o

    quadro de construo dessa identidade, constituda por meio de uma relao poltica. Isso

    implicava afirmar que existia a histria da identidade e da cultura brasileira que correspondia

    aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relao com o Estado. A questo

    fundamental a respeito da identidade nacional consiste em saber quem o artfice desta

    identidade e desta memria que se querem nacionais? A que grupos sociais elas se vinculam e

    a que interesses elas servem? (ORTIZ, 2005, p. 39). Tudo isso deve ser considerado quando

    se analisa o processo de autonomia do Amap.

    A elaborao da identidade regional foi um elemento importante no movimento

    regionalista. Assim, as questes levantadas por Ortiz foram tambm pertinentes para a anlise

    do regionalismo no Amap, reforando a compreenso colocada por Featherstone (identidade

    relacional) e tornando mais complexa, a partir de sua incorporao, a noo de unidade

    histrica.

    No Amap, a construo da identidade foi importante para a existncia de um

    movimento regionalista, e particularmente autonomista, conduzido por uma elite poltica em

    formao, cujas aes e cujo discurso buscaram, primei afirmar o TFA como uma unidade

    da Federao brasileira e, posteriormente, elev-lo condio de estado brasileiro. O estudo

    do regionalismo possibilitou-nos visualizar a ao poltica na relao entre o governo do TFA

    e a Icomi. Pela importncia do tema, o regionalismo ser abordado em seo especfica.

  • 15

    1.5 SOBRE AS FONTES

    Nossa abordagem do objeto de estudo partiu de uma caracterizao dos processos

    histrico-geogrficos, polticos e econmico-financeiros, incluindo elementos da organizao

    administrativa, espacial, demogrfica, simblica e cultural do Amap. Desse modo, o trabalho

    situou-se na fronteira entre a geografia, a economia e a histria do Amap e manteve dilogos

    com a poltica. Destacamos, portanto, duas rbitas que se interligaram: a gnese e a

    organizao do espao, ou seja, a relao entre tempo e espao.8

    A busca das autonomias polticas e econmico-financeiras foram fundamentais para

    a construo do Estado do Amap. Assim, para alcanar nossos objetivos, trabalhamos com

    trs fontes de informaes, alm do levantamento da literatura e da consulta de documentos

    oficiais. Primeiro, estudamos a evoluo e a diversificao da produo da Icomi (exportao,

    receita, pagos e novos empreendimentos), relacionando-as, em diversos momentos,

    com o desenvolvimento da demografia local, a arrecadao fiscal, o valor dos principais

    ramos produtivos do Territrio e a (re)organizao espacial (originando novos ncleos

    populacionais ou dinamizando outros j existentes). Recorremos a uma srie de dados

    secundrios (anurios, censos, estatsticas e publicaes da Icomi, Receita Federal e outros),

    analisando-os no sentido de compreender a dinmica da relao entre o TFA e a Icomi na

    construo do Amap estado.

    A respeito dos dados sobre a produo do mangans (qua exportada, receita e

    ), constatamos algumas diferenas entre os montantes dos valores divulgados pela

    8 Nossa ateno especial concentrou-se naquele que foi o maior empreendimento produtivo do setor privado no Amap o complexo Icomi. Sua importncia para a transformao do Amap em estado levou-nos a no dar a mesma ateno a outro projeto de explorao de recursos naturais implantado no Territrio: o projeto Jari. Esse projeto foi significativo no ltimo perodo do Amap como territrio federal, porm no teve o mesmo impacto sobre a dinmica econmico-espacial amapaense. Por conta disso e da nossa concentrao no objeto proposto para a tese, o projeto Jari foi abordado apenas superficial e rapidamente. Alm disso, outro tema abordado de forma bastante secundria foi a questo ambiental. A r m se deve a que nosso objeto no enfatizar essa temtica com destaque.

    royalties

    royalties

  • 16

    empresa e aqueles registrados pela Receita Federal. Alm disso, os dados colhidos na empresa

    apresentaram uma srie histrica menor. Por causa disso, optamos por seguir os dados da

    Receita Federal.

    As informaes sobre a evoluo demogrfica (quantidade de habitantes, populao

    rural e urbana, concentrao populacional) e sobre a formao de novos municpios foram

    retiradas dos censos demogrficos e dos anurios estatsticos do IBGE e dos anurios

    estatsticos do governo do Amap.

    Em relao arrecadao fiscal, no foi possvel construir uma srie histrica

    confivel. A razo principal, mas no nica, foi que, muitos anos, a Receita Federal e os

    anurios do IBGE no apresentaram nmeros especficos o TFA, incluindo sua

    arrecadao tributria na arrecadao do Estado do Par. Nesse caso, optamos por fazer um

    levantamento, ainda que incompleto, nos anurios estatsticos do Amap.

    Os demais dados sobre a economia (valor da produo dos setores produtivos,

    produo do extrativismo mineral em relao economia amapaense e do Norte e outros)

    foram levantados juntos aos anurios do IBGE e do Amap, do Atlas do Amap de 1966

    (elaborado tambm pelo IBGE) e dos planos de desenvolvimento do Amap.

    Eventualmente, na impossibilidade de ter acesso a outras fontes, recorremos a

    informaes presentes em outros trabalhos realizados sobre o Amap: Porto (2003),

    Drummond e Pereira (2006) e Leal (2007a, 2007b).

    A segunda fonte em que nos apoiamos foi o , que foi fundado pelo

    governo do Territrio em 1945 e se manteve at o final dos anos 1970. Ele funcionava, na

    prtica, como o rgo oficial desse governo, apresentando posies governamentais,

    discursos, documentos (como os contratos de explorao mineral) e reprodues do

    e de matrias de jornais do Rio de Janeiro, de So Paulo e de Belm do Par.

    Por meio dele, tivemos acesso a documentos at ento inacessveis, estatsticas e posies dos

    Jornal Amap

    Dirio

    Oficial da Unio

  • 17

    principais atores polticos envolvidos diretamente com a idia de autonomia, relacionados

    com o nosso objeto de pesquisa. Essa fonte foi de enor importncia para nossa pesquisa,

    dada a falta de informaes estatsticas, documentais histricas registradas sobre o Amap.

    Embora a Biblioteca Pblica de Macap no conte com alguns de seus exemplares, o vasto

    levantamento que realizamos (trs dcadas contnuas) ajudou-nos muito a fazer a anlise

    histrica necessria complementada por outros jornais, como o (incio dos

    anos 1960), o e o na dcada de 1980, entre outros.

    Finalmente, como terceira fonte, alm do dilogo com pesquisadores,9 entrevistamos

    algumas pessoas que viveram e atuaram no intervalo temporal que compreendeu nosso objeto

    de estudo: familiares de personalidades polticas dos anos 1940 a 1970, funcionrios da

    Icomi, o ex-governador do Amap Annibal Barcellos e o ex-governador do Par e ex-ministro

    Jarbas Passarinho. As entrevistas foram conduzidas no ntido de perceber-se o movimento

    dos principais atores presentes no processo de emancipao poltica do Amap, a relao

    destes com a populao em geral, os discursos e interesses em questo e, ainda, a utilizao

    do aparato governamental para alcanar o objetivo autonomista.

    Alm de Macap, nossa pesquisa incluiu instituies de Belm do Par (Arquivo

    Pblico, jornais locais, Universidade Federal do Par UFPA), IBGE, etc.), do Rio de Janeiro

    (Ministrio da Fazenda, IBGE, Ministrio do Exrcito e bibliotecas de universidades) e de

    Braslia (Senado e Cmara Federal).

    9 Maria Clia Coelho, Alusio Leal, Rosa Acevedo, Gilberto Marques, Maurlio Monteiro e outros.

    Voz Catlica

    Informativo Amap Jornal do Dia

  • 18

    O regionalismo possui diferentes dimenses, como a econmica, a poltica, a

    simblica. Privilegiamos aqui aquelas que facilitam o do Amap como uma

    construo poltica, histrica, geogrfica e cultural.

    2.1 REGIONALISMO COMO DISCUSSO TERICA

    A discusso sobre regio e regionalismo bastante variada em suas abordagens e

    assume diferentes perspectivas metodolgicas em diversas correntes tericas e em diferentes

    campos do conhecimento cientfico.10

    No seu sentido mais comum para a economia, em grande medida regionalismo a

    reao de uma regio que se atrasou no desenvolvimento econmico que, para muitos,

    foi sinnimo de industrializao capitalista. A regio tornou-se, nessa abordagem, o lugar das

    reivindicaes, e tanto ela quanto o regionalismo foram apresentados como se fossem

    homogneos, de onde se retirou a vontade regional, representao do interesse de todos.

    Furtado (1999), apesar das suas contribuies para a economia poltica brasileira,

    incorreu, pelo menos nas suas primeiras elaboraes, na estreiteza da elaborao acima

    exposta. Para os que raciocinaram segundo esse esquema, o regionalismo reduziu-se a um

    conjunto de reivindicaes da regio atrasada com o objetivo de alcanar o nvel de

    desenvolvimento (ou de industrializao) das regies que se industrializaram. O progresso e a

    superao do atraso e da desigualdade dependeriam da ao estatal e, em particular, do

    planejamento pblico. Evidentemente, dependendo da corrente terica, o papel do Estado

    10 A ttulo de constatao rpida da diversidade de abordagens, basta lembrar a elaborao de Werlen (2001), queanalisou o regionalismo, no com base no espao ou na regio, mas a partir do sujeito. Sustentado nos conceitos de Giddens (1991), Werlen incorporou o regionalismo aos quadros da globalizao, numa relao contraditria entre moderno e pr-moderno, destacando uma modernidade tardia.

    2 O REGIONALISMO COMO QUESTO IMPORTANTE NO ESTUDO DO AMAP

  • 19

    recebeu mais ou menos destaque na soluo dos desequilbrios no caso das vertentes

    liberais, esse papel foi mais discreto, pelo menos teoricamente.11

    Nas diversas abordagens do regionalismo, trs esferas assumem maior importncia.

    Alguns autores destacaram muito mais uma em detrimento de outra. Estes elementos eram:

    (1) a dimenso poltica, que inclua o debate sobre po dominao, opresso/alienao e

    ideologia; (2) a dimenso territorial, expressada na definio de regio, ponto de partida para

    os diversos autores, que ora a negam, ora tentam conceitu-la; (3) finalmente, a dimenso da

    cultura, abordada sob o aspecto da representao, que destacava a identidade e o simblico.

    Gottman (1952) entendeu o regionalismo como a tendncia de um setor para

    individualizar-se em um espao habitado. Mas a capacidade de individualizar-se, prpria

    dessa viso do regionalismo, permitiu geografia regional incorporar a iconografia (dimenso

    simblico-cultural) s suas anlises. O autor destacou a importncia do estudo do sistema de

    movimento (circulao no espao, que podia ser de ordem poltica, econmica, cultural, etc.)

    e do sistema de resistncia ao movimento (iconografia) para a criao da diferenciao na

    superfcie do globo. Para Gottman, o movimento constante de multides no parecia catico;

    pelo contrrio, o movimento tornava um pas suficientemente dinmico, permitindo organizar

    o espao. Ao longo desse processo, o espao diferenciou-se, regionalizou-se. Entretanto, essa

    diferenciao por meio do movimento teve de incorporar princpios abstratos, ou seja, fez-se

    necessrio acrescentar smbolos nos quais os indivduos acreditavam. Esses smbolos foram

    ignorados ou negados por outros indivduos.12

    11 Qual o problema da abordagem economicista? Foi justamente cair no determinismo econmico, depositando uma expectativa exacerbada e uma neutralidade inexistente no planejamento e nos planejadores, deixando de levantar questionamentos bsicos de grande significncia. Quem ou o que produziu aquela realidade desigual? Quem tem a prerrogativa do ato de planejar?12 Foi assim que a iconografia tornou-se, em geografia regional, uma barreira de resistncia ao movimento, possibilitando a criao de plo de diferenciao. Neste sentido, o autor ressaltou que no h fronteira escrita na natureza que separe dois povos de maneira completamente eficiente. Da a importncia dos princpios abstratos (lembranas coletivas) que so responsveis pelos cdigos sociais comuns, que unem os indivduos, estabelecendo laos e fixando-os no espao, criando unidades (regies) numa rea de circulao.

  • 20

    Na concluso de Gottman, foi a trplice associao de circulao, movimento e

    iconografia que explicou a diferenciao do espao e sua organizao, pois essa trplice

    associao permitiu compreender que a delimitao do mundo devia-se mais s barreiras que

    estavam na subjetividade dos indivduos do que a todas as caractersticas fsic presentes no

    espao.

    Para Bourdieu (1989), os critrios de identidade regional ou tnica na prtica social

    eram objetos de uma dupla representao. Eram (lngua, sotaque e

    outros elementos), ou seja, eram atos de representao e de apreciao, de conhecimento e de

    reconhecimento, aos quais os indivduos aplicavam seus interesses e seus pressu stos. Eram

    tambm , coisas (emblemas, bandeiras, insgnias, etc.) ou atos, que

    seriam estratgias destinadas manipulao simblica tinham por objetivo determinar a

    representao mental que o grupo podia ter destas propriedades e de seus portadores. Assim,

    as lutas em defesa da identidade tnica ou regional seriam um caso particular das lutas de

    classificaes, luta pelo monoplio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer

    reconhecer, de impor a definio legitima das divises do mundo social e, por este meio, de

    fazer e de desfazer os grupos (BOURDIEU, 1989, p. 113).

    Nessa luta, o que estava em jogo era o poder de impor uma viso do mundo social por

    meio dos princpios de di-viso, que no grupo realizavam o sentido e o consenso sobre o

    sentido, em particular sobre a identidade e a unidade o grupo. O princpio de di-viso, tal

    como apresentado por Bourdieu, era um ato propriamente social que introduzia uma ruptura,

    uma fronteira, que separava ns e eles no mundo social. Mas o ato de traar as fronteiras

    deveria ser realizado pelo indivduo de maior autoridade, que, ao faz-lo, traria existncia

    aquilo por ele enunciado.

    representaes mentais

    representaes objetivas

  • 21

    Em Bourdieu, o discurso regionalista era um discurso ,13 que buscava

    impor como legtima uma nova definio das fronteiras, de conhecer e de se fazer reconhecer

    a regio contra a definio dominante. Desse modo, o ato de classificar, quando conseguia

    fazer-se reconhecer, institua uma realidade usando do poder de revelao e de construo

    exercido pela objetivao no discurso. Mas a eficcia discurso performativo, que pretendia

    fazer existir o que ele enunciava no prprio ato de enunciar, era proporcional autoridade

    daquele que enuncia. Porm, essa eficcia no dependia apenas do reconhecimento dessa

    autoridade, dependia tambm do nvel em que o discurso, ao apresentar ao grupo a sua

    identidade, estava fundamentado na objetividade desse grupo, isto , nas propriedades

    econmicas ou culturais que seus membros tinham em comum.14

    Nesse movimento terico, o regionalismo foi apenas mais um caso das lutas

    propriamente simblicas, na qual os atores podiam estar em estado de disperso,

    individualmente, ou em estado coletivo, organizados. O que estava em jogo era a conservao

    ou a transformao das relaes de foras simblicas. os atores entravam na luta

    simblica de forma isolada, eles no tinham outra alternativa a no ser aceitar a definio

    dominante da sua identidade ou buscar a assimilao da identidade dominante como sendo a

    sua. J a luta em estado coletivo pela transformao das relaes de fora simblica tem como

    objetivo, no a eliminao das caractersticas estigmatizadas/negativas, mas a apropriao

    coletivamente do poder sobre os princpios de construo e de avaliao da sua prpria

    identidade, do qual o grupo tinha abdicado em favor do dominante enquanto aceitava ser

    negado ou negar-se. Desse modo, o estigma produz a revolta contra o estigma

    (BOURDIEU, 1989, p. 125).

    13 A representao foi comparada ao desempenho teatral.14 Para Bourdieu, a oficializao teve a sua realizao na manifestao, ato pelo qual o grupo tornava-se visvel, manifesto para com ele prprio, comprovando assim sua existncia como grupo conhecido e reconhecido que aspirava institucionalizao. Desse modo, o mundo social tambm representao e vontade, e existir socialmente tambm ser percebido como distinto (BOURDIEU, 1989, p. 118).

    performativo

  • 22

    A reivindicao regionalista seria, assim, uma resposta ao estigma que produzia o

    territrio do qual aparentemente ela fora produto, ou seja, se a regio no existisse como

    espao estigmatizado, como atrasado, definido pela distncia econmica e social em relao

    ao centro, no teria de reivindicar sua existncia.

    O movimento regionalista visava sustentar sua prtica identidade regional que

    foi simblica e historicamente construda por diferentes atores sociais interessados em fazer

    valer sua existncia. Essa existncia, como assinalou urdieu, era produto do discurso

    regionalista (diramos ns: era tambm produto desse discurso), ou seja, de um discurso

    performativo que buscava impor como legtima uma nova definio das fronteiras e dava a

    conhecer e fazia reconhecer a regio. Assim, o regionalismo tinha em vista universalizar

    valores, constituindo-se a universalizao como a estratgia de legitimao.

    Do que apresentamos de Bourdieu, podemos concluir que smbolos eram

    instrumentos de integrao social, e o regionalismo era um exemplo de luta simblica, na qual

    o grupo dominante construa a imagem da regio como algo do interesse de todos; porm esse

    grupo falava da regio de acordo com sua viso e seus interesses e esforava-se para fazer

    dessa viso particular a viso de todo o grupo (identidade), buscando desse modo a integrao

    social de que falamos.

    Castro (1989a) analisou a prtica regionalista no Nordeste brasileiro tendo como um

    dos objetivos evidenciar a importncia do territrio como base para a ao poltica. Tal estudo

    definiu o espao como produto e mediador das relaes sociais e destacou que este, para

    realizar-se, precisou de uma base territorial concreta o territrio, suporte fsico fornecido

    pela natureza, em que a sociedade organizou-se e construiu o seu espao.

    Para a autora, a dimenso territorial era ao mesmo tempo uma unidade geogrfica,

    uma unidade social e uma unidade poltica (CASTRO, 1989a, p. ). O espao era definido

    como espao-territorial. Ele era pensado com base em seu contedo e social, mas a

  • 23

    materializao dos processos histricos (a produo do espao) no era homognea, pois a

    sociedade relacionava-se de forma diferente e com recursos diferentes com a ureza,

    produzindo espaos diferenciados. Essa compreenso impunha a existncia da noo de

    fraes de espao dentro do espao total. A regio, partindo dessa compreenso, seria uma

    frao do espao total, constituiria um nvel de anlise do territrio. Esse nvel no era

    estabelecido de forma arbitrria; pelo contrrio, era fruto do acontecer particular do fato

    social, ou seja, fazia parte da totalidade socioespacial, embora fosse definido pelo lugar em

    que ela ocorria. Nesse sentido, a compreenso da regio deve apoiar-se na contextualizao da

    identidade regional.15

    Havia dois nveis de identidade em Castro: um era o imediato, estruturado

    individualmente (topofilia) e o outro era o coletivo, estruturado na dinmica das relaes

    sociais denominado pela autora regio de vivncia ou identidade regional. Nesses termos, a

    regio era uma frao estruturada do territrio. Por apresentar estrutura, uma regio

    especfica possua uma identidade que a diferenciava das demais regies. Essa frao

    personalizada possibilitava a sua delimitao com base na compreenso da especificidade que

    ela continha. Assim, a regio era concreta, observvel, delimitvel e socialmente construda

    (CASTRO, 1989b, p. 391). A regio era, ento, o espao vivido da identidade fsica, cultura

    econmica. Contudo, Castro lembrou que esse carter especfico e diferenciado da regio no

    significava o seu isolamento, pelo contrrio, a regio era o espao da interao com a

    sociedade global.16

    15 De modo geral, a identidade territorial, em Castro, foi um fundamento extremamente importante para a anlise da regio, pois a diferenciao espacial define-se na identidade que se realiza nas relaes homem-meio (CASTRO, 1989a, p. 15). Partindo dessa compreenso e apoiada no conceito de topofilia de Bachelard, que evidenciou a relao afetiva entre o indivduo e o lugar, a autora procurou mostrar que o espao em sendo a morada do homem estabelece com ele os seus laos (CASTRO, 1989b, p. 390).16 Santos (1985) evidenciou o carter especfico da regio, onde ela apresentava uma combinao localizada de uma estrutura especfica de demografia, de estruturas sociais, de receitas, de consumo, etc. Ela um local que tem seguimentos e momentos, pois evolui na histria. Contudo, apesar de destacar as especificidades da regio, Santos no a concebeu como um ente autnomo; ao contrrio, para ele, a regio seria parte do sistema nacional, uma subunidade do todo nacional.

  • 24

    Castro tambm destacou a diferena entre a regio de vivncia e a r io definida por

    critrios poltico-administrativos. A regio de vivncia era construda pelas relaes

    territoriais, econmicas, sociais e culturais. Por outro lado, a regio administrativa estava

    relacionada com os nveis administrativos de poder territorial. Essa escala administrativa

    podia englobar diferentes regies de vivncia, como poderia inibir ou incentivar identidades

    regionais. Assim, a regio moldada pelas imposies objetivas da natureza e da sociedade e

    redefinida pelas imposies subjetivas das relaes de poder (CASTRO, 1989a, p. 19).

    Esses dois nveis de regio no eram necessariamente excludentes, ao contrrio, eles

    podiam complementar-se e mascarar-se entre si, dando legitimidade regio poltica. A

    integrao entre esses dois nveis decorria da arbitragem das alianas e coalizes das elites

    das diferentes regies de vivncia que compunham a regio poltica. Logo, a regio enquanto

    construo histrica era forjada pelos atores mais importantes desse processo. Assim, o papel

    desempenhado pelas elites era fundamental, tanto para definir o carter da regio como para a

    projeo de sua imagem.

    A questo da imagem evidenciou que a regio, alm de uma forma concreta, foi

    tambm representao e ideologia. Essa representao foi apropriada e reelaborada pela elite,

    que construiu um conjunto de idias que foi reassimilado coletivamente como ideologia. Essa

    ideologia, elaborada a partir da base regional com um fim especfico, constituiu uma

    dimenso do regionalismo, que se manifestou como conscincia regional.

    Castro destacou ainda que as opes ideolgicas das el laes com o poder

    central eram elementos fundamentais dos meios de articulao da poltica regional. As elites

    tanto podiam estabelecer alianas com o poder central o que as tornava beneficirias da

  • 25

    situao de marginalidade econmica ou poltica quanto confrontar-se com ele, se isso lhes

    trouxesse benefcios.17

    Qual a importncia da elite local no processo em anlise? Pa Castro, a elite tinha a

    tarefa de remover as barreiras que dificultavam a atuao do Estado entendido pela autora

    como facilitador da expanso do capital. Assim, o Estado apoiava-se nas elites locais,

    estabelecendo alianas com elas ou captando-as; elas, por sua vez, utilizavam o seu poder de

    barganha para direcionar, mesmo que em parte, as decises de acordo com seus interesses.

    As caractersticas regionais referem-se, ento, a uma tendncia histrica patrocinada

    pelos interesses localmente dominantes famlia, religio, poltica e empreendimentos no

    sentido de favorecer prticas compatveis, e tornar-se parte da mesma estrutura de percepo

    cultural (CASTRO, 1989a, p. 26). Desse modo, a identidade regional era influenciada pelo

    comportamento da elite local em relao prpria regio, ao poder central e s outras

    regies.18

    A anlise regionalista era, assim, bastante complexa, pois envolvia identificao e

    coeso no interior da regio, como tambm articulao com o poder central e competio

    externa tendo em vista a defesa, a preservao ou a obteno de condies mais vantajosas.

    Dessa forma, o regionalismo era simultaneamente intrnseco, relativo e relacional. De acordo

    com Castro, a investigao sobre o regional evidenciou, de modo geral, a espacializao do

    sistema poltico; por isso, a autora buscou compreender suas articulaes e interaes tanto no

    17 Nesse sentido, as questes regionais poderiam ser tratadas de diferentes formas, fazendo-se necessrio analisar os recursos e a materializao da expresso poltica d diferenas. Um exemplo: nos pases com problemas de diferenas tnicas e culturais bem definidas, essas diferenas serviam como recursos para tornar visvel o confronto desencadeado por um poder poltico e econmico desigual.18 Interpretar o regionalismo dessa forma supunha ter como referncia a interao entre espao e poltica, na qualcada um era reciprocamente determinante e determinado. Logo, a ao poltica, enquanto atividade governamental, definia espaos, mas era tambm definida por eles. Assim, o regionalismo do Nordeste, segundo Castro, era produto da especificidade do carter poltico das interaes sociais regionais, e sua existncia resultava tanto dos fatores histricos locais como das relaes da regio com o poder central. O confronto de interesses regionais apontava para a questo do regionalismo entendido como mobilizao poltica de grupos dominantes numa regio que lutam para defender interesses especficos, contra outros grupos dominantes de outras regies ou contra o prprio governo central. Assim, o regionalismo seria um conceito poltico, vinculado aos interesses territoriais. Desse modo, o regionalismo referia-se tanto ao tema da participao poltica, como ao da organizao espacial, pois a manipulao poltica supunha tambm interveno espacial.

  • 26

    mbito local quanto com o poder central. Essa deciso implicou analisar o regionalismo com

    base na complexa relao entre espao, ideologia e poltica.

    Pelo que foi exposto, foi possvel constatar que o regionalismo foi tomado como a

    expresso poltica de uma regio, particularmente na tica do conflito (apesar de poder haver

    coalizo de interesses, quando a regio poltica fundia-se com a regio de vivncia) entre os

    da regio e os de fora. A elite conduzia a defesa da regio, mas, para que a regio fosse

    considerada um espao da ao poltica, fez-se necessria a constituio de uma identidade

    regional. Por conseguinte, a regio apresentava-se como representao (que tinha base

    concreta) e ideologia e como um espao que possibilitava a disputa pelo poder.

    A anlise centrada na elite pressupunha uma desigualdade de poder, um desnvel entre

    os setores componentes da sociedade. Sendo assim, ficava implcita a existncia do conflito,

    apesar de que a anlise de Castro centrava-se muito mais no estudo da elite e os conflitos

    quando emergiam se apresentavam, principalmente como disputa entre grupos dominantes.

    Diferentemente, na anlise de Gottman, o conflito ou desaparecia, ou perdia importncia, de

    modo que o carter reivindicatrio que marcou o regionalismo perdeu evidncia. Assim, a

    dimenso poltica perdeu importncia, apresentando-se como um carter organizacional.19

    Sustentada no marxismo e na anlise com base em conflitos, Markusen (1981) afirmou

    que o significado de uma regio encontrava-se, no na realidade emprica denominada regio,

    mas nas lutas que nela ocorriam. Enquanto Castro (1989a) fez da regio um problema de

    anlise o regionalismo seria um de seus contedos possveis , Markusen evitou abordar a

    19 Diferentemente de Gottmam (1952), Castro (1989a) sustentou que a identidade estava intimamente relacionada ao conflito. Sua concepo de identidade diferenciava-se da concepo adotada pela antropologia tradicional, que considera o contato entre as diferentes culturas como o elemento essencial da construo de identidade. A autora no negou o contato entre culturas presente na identidade, porm procurou problematizar o aspecto cultural ligado noo de identidade ao conceb-lo como recurso poltico. Ela concluiu que o conflito entre identidades diferentes remete-nos disputa de poder, ou seja, o confronto com o outro (com o diferente culturalmente) um confronto de interesses, refletindo um desnvel de poder. Isso expressava ainda uma superposio de escala de poder no territrio (o regional e o Estado central). Nesse processo, a delimitao daregio e da identidade no podia ser rgida, ela era uma construo social poltica e era arbitrria e concreta ao mesmo tempo.

  • 27

    regio, que, segundo sua anlise, no evidenciava as relaes sociais. Desse modo, a autora

    centrou seu estudo, no na regio, mas no regionalismo, por entender que ele expressava as

    lutas sociais, e a regio no.20

    Entre as instituies da sociedade humana, Markusen (1981) afirmou que o Estado

    Nacional foi a instituio central para a anlise do regionalismo. Para a autora, o Estado

    Nacional foi uma forma de opresso e serviu como meio de manuteno da explorao de

    uma classe social por outra. Enquanto instrumento de o poltica, o Estado usa o poder

    poltico para negar a um grupo o direito plena parti na vida poltica de uma

    sociedade ou mesmo o controle de seu futuro coletivo atravs do exerccio de mecanismo

    poltico.

    Markusen enfatizou, portanto, a dimenso poltica em seu estudo sobre o

    regionalismo. Segundo a autora, mesmo uma questo regional de causa econmica teria

    objetivo poltico, uma vez que se tornaria regionalizada precisamente por meio da

    reivindicao contra uma instituio do Estado. Desse do, o regionalismo seria uma

    reivindicao poltica de um grupo de pessoas identificado territorialmente contra um ou

    muitos mecanismos do Estado Nacional.

    Em Markusen, a natureza territorial de uma luta regional, a diferenciao territorial,

    por si s, no seria a base para a definio regional para a luta regional. A diferenciao

    era legitimada e expandida pelo Estado, de tal maneira que alguns grupos sociais

    reivindicavam melhor tratamento para seu territrio com a finalidade de eliminar fontes

    adversas de diferenciao.

    Em Castro, o conflito no esteve dissociado da base territorial, j que a regio era um

    elemento importante na definio da identidade regional. Assim como Anne Markusen, 20 Para investigar os conflitos sociais que constituem o regionalismo, a autora utilizou a definio marxista de alienao. Porm, enquanto no marxismo clssico a alienao desenvolveu-se na relao capital-trabalho, em Markusen, essa alienao encontra-se nas diversas instituies da sociedade humana, e no apenas na produo. Est no lar, no Estado Nacional e no conjunto de instituies culturais. Em qualquer uma dessas instituies, a opresso ou a explorao ocorre em comum com uma forma de alienao da sociedade humana.

  • 28

    Castro destacou a dimenso poltica, mas a Markusen abordou a esfera poltica no sentido de

    evidenciar que as reivindicaes regionalistas eram uma reao ao Estado. Nessa abordagem,

    o Estado ganhou uma centralidade no encontrada em outros autores at aqui abordados.

    Muito mais que em Castro, na segunda autora o Estado foi abordado como uma forma de

    opresso poltica. Desse modo, a alienao era elemento de dominao ao mesmo tempo em

    que impulsionava as lutas pelo fim da opresso. Em Castro, como vimos, o poltico foi

    problematizado a partir do confronto, segundo a tica elite, e a identidade foi, ao mesmo

    tempo, recurso de coeso interna e de dominao da elite em relao sociedade local; foi

    tambm recurso poltico usado no confronto com outro grupo ou poder central.21

    Tambm partindo do marxismo, Massey (1981) discutiu o gionalismo enquanto

    produto da acumulao de capital. Essa acumulao, responsvel por uma diviso espacial do

    trabalho, produziu uma diferenciao espacial desigual no capitalismo.22 Diferentemente de

    quem parte da regio para definir e analisar o regionalismo, Massey defendeu que o estudo

    deveria comear, no pela regio, mas pela acumulao de capital. Desse modo, a autora

    priorizou a acumulao de capital na anlise da diferenciao espacial e, por conseguinte, do

    prprio regionalismo. O desenvolvimento regional apresentou-se, ento, como um

    desenvolvimento desigual. Problemas aparentemente especficos de uma regio estiveram

    relacionados com um contexto mais amplo da dinmica econmico-social intraestatal.

    Massey enfatizou a esfera econmica (enquanto acumulao capitalista) entendeu a

    regio, sobretudo, como produto e desdobramento da div territorial do trabalho realizada

    pelo capital. Nesse caminho, mas partindo da sociologia, Oliveira (1977) definiu regio com

    21 Markusen (1981) teve o mrito de tornar mais complexo o estudo do conflito social, pela nfase dada opresso, mas, ao negar a regio, deixou de perceber que a base fsico-material de um territrio pode em alguma medida influenciar as relaes sociais e, portanto, o regionalismo. Ao colocar toda capacidade de determinao nas relaes sociais em si, independentemente da realidade fsica e/ou de outras dimenses, incorreu num certo determinismo que limitou a riqueza de sua anlise.22 Mesmo tratando dessa caracterizao, Massey chamou a ateno para o fato de que as formas de diferenciao espacial relevantes para a acumulao no se restringem economia pura. Vrios outros tambm podem influir na diferenciao espacial, como questes fundirias, luta de classes, polticas estatais, etc.

  • 29

    base na especificidade da reproduo de capital, nas formas assumidas pela acumulao, nas

    estruturas de classes relacionadas a elas e nas formas da luta de classes e do conflito social no

    plano mais geral. A regio era o espao onde se imbricam a reproduo de capital e a luta de

    classes, onde econmico e poltico se fundiam, assumindo uma forma especial de apario no

    produto social e nos pressupostos de reposio. Mesmo dizendo que no queria criar uma

    tipologia de regies a partir de uma tipologia de formas de capitais, Oliveira afirmou que as

    diversas formas de acumulao do capital produziam diferentes regies.23

    Ao apresentarmos a necessidade de incorporar uma anlise das relaes da

    acumulao capitalista, no estamos propondo reduzir a regio e o regionalismo a um simples

    movimento de homogeneizao ou de concentrao de capital. Queremos somente alertar para

    o fato de que o regionalismo, a autonomia, o discurso, a identidade e a representao no

    esto de todo isolados da realidade capitalista.

    2.2 REGIONALISMO E AUTONOMIA NO AMAP

    A anlise de Bourdieu (1999) ajudou-nos a compreender como foi construda a

    imagem da regio amapaense, pois o Amap, enquanto regio poltico-administrativa era

    produto da ao do governo federal, que criou o Territrio Federal do Amap, porm a

    identidade desta regio no era fruto de um decreto-lei, mas de um processo mais complexo,

    onde o simblico passava a ser elemento constituinte.

    Por outro lado, se discordamos da geografia tradicional de Ratzel (1990a, 1990b), que

    apresentou o ser humano como passivo diante do meio, tambm temos de constatar que as

    construes sociais no so puro simbolismo abstrato. Elas so feitas em um territrio 23 Assim, a constituio das regies decorria do modo de produo capitalista, a partir do qual as regies eramespaos socioeconmicos aos quais se sobrepunha uma das formas de capital homogeneizando a regio por conta de sua preponderncia e pela formao de classes sociais e tanto a hierarquia quanto o poder eramdeterminados pelo lugar e pela forma em que eram do capital e de sua contradio bsica(OLIVEIRA, 1977).

    personas

  • 30

    concreto.24 No podemos deixar de constatar, por exemplo, que a realidade amaznica, por

    causa do grande volume de guas, de alguma forma interagiu nas relaes que os seres

    humanos estabeleceram entre si nesse espao, contribuindo para a conformao da identidade

    do ribeirinho (aquele que vive margem do rio).

    No Amap, a ao da elite poltico-administrativa foi fundamental para forjar

    simblica e objetivamente o carter regional e tambm a imagem de progresso do TFA como

    predestinado ao futuro estado.

    O debate sobre regionalismo em Castro foi importante para nossa investigao, mas,

    no caso do Amap, devemos considerar algumas especificidades. Por isso, nosso ponto de

    partida afasta-se do objeto prtico de Castro (1989a). Em nossa anlise, no partimos de uma

    regio j estabelecida (por exemplo, o Nordeste), que ia sofrendo mudanas, assim como sua

    elite, j estabelecida e consolidada; partimos do prprio processo de constituio da regio (o

    Amap). Nesse sentido, o estudo da gnese histrica do Amap possibilitou-nos compreender

    como foi constituda a especificidade regional, assim como os prprios sentidos de

    regionalismo.

    Recorremos ao regionalismo para enfatizar a ao poltica de base territorial na

    construo da autonomia do Amap. A mobilizao regionalista foi analisada em distintos

    momentos, o que nos permitiu perceber formas diferentes de relao da elite poltico-

    administrativa local com o poder central. O regionalismo amapaense foi fortemente marcado

    pela ao direta do poder central. Essa ao especfica foi determinante para a diferenciao

    inicial da regio amapaense, a criao da nova unidade federativa, a constituio de suas

    fronteiras e da prpria identidade local. No primeiro to, foi o governo federal que

    impulsionou a formao da elite no Amap que no se colocava numa posio de confronto

    24 Pdua (1997) partiu da interpretao de natureza e mundo natural como construes sociais, mas reconheceuque a continuidade da vida humana depende da sua relao com elementos no-humanos (geomorfologia e clima, por exemplo) que possuem dinmica e constituio prprias. Assim, constatou a importncia dos elementos biofsicos como componentes intrnsecos do jogo de interao entre a sociedade e a natureza.

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    com o primeiro, ao contrrio, havia associao direta e imediata com ele. Posteriormente, essa

    relao assumiu outros contornos. O poder central passou a ser alvo de questionamento, e a

    busca da autonomia sustentou-se na crtica da falta de apoio ao TFA por parte do prprio

    governo federal.

    Neste nosso estudo sobre o regionalismo, a elite, enquanto recurso conceitual e prtico

    foi considerada elemento importante, mas devemos, desde j, fazer algumas observaes

    necessrias a esse respeito. Primeiro, elite um termo com diversos sentidos, que variam

    dependendo de quem e de como manipulado, o que o deixa, em alguns casos, com um

    contedo impreciso e vago. A elite a expresso de uma dominao intelectual e econmico-

    poltica que guarda proximidade ou relao direta com setores economicamente

    dominantes da sociedade. Isso significa que a elite era a burguesia diretamente no poder? No

    necessariamente, entretanto esteve diretamente ligada aos esquemas de dominao poltica

    que envolviam diferentes classes e atores sociais.25

    Afora isso, quando se examina a elite na tica do confronto interregional ou com o

    poder central, normalmente se incorre em dois problemas: primeiro, minimizam-se ou

    desconsideram-se os conflitos internos da regio (grandes proprietrios pequenos

    produtores descapitalizados, por exemplo) essa minimizao diminui a capacidade de

    compreender a complexidade de uma realidade marcada pelo conflito entre diversos nveis e

    setores da sociedade, no apenas entre quem domina, mas tambm entre dominantes e

    dominados; segundo, tende-se (at pelo silncio do pesquisador) a considerar a sociedade

    local como totalmente passiva e receptora das aes da elite.

    25 Para Bobbio a teoria da elite era aquela que afirmava que em toda sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por vrias formas, detentora de poder, contraposio a uma maioria que dele est privada. [...] Ela pode ser redefinida como a teoria segundo a qual, em cada sociedade, o poder poltico pertence sempre a um restrito crculo de pessoas: o poder de tomar e impor cises vlidas para todos os membros do grupo, mesmo que tenha que recorrer fora, em ltima instncia (BOBBIO, 1984, p. 5). Poulantzas (1977) afirmou que as elites so diversas e suas fontes de dominao residem no poder econmico e no Estado. Elas influenciam e participam do poder poltico institucionalizado. O autor destacou ainda que a burocracia, como uma das elites, possui um poder poltico prprio, que esta manteria pelo simples fato do seu controle sobre o aparelho de Estado.

    versus

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    Por que, ento, recorremos elite no estudo do regionalismo na conformao do

    Amap em estado? Porque ali as classes no estavam plenamente constitudas; estavam em

    construo e ainda muito fragilizadas. No havia um significativo sistema de pequena

    produo descapitalizada, muito menos um operariado forte e organizado, longe disso. At

    mesmo os proprietrios de terra e os comerciantes eram frgeis, em relao aos quadros no

    apenas nacionais, mas tambm regionais (quando comparados com outros do Par).

    O Territrio Federal sob a imagem de progresso, recurso da ideologia que orientou a

    busca da autonomia, foi potencializado com a presena Icomi que, por sua vez, foi

    determinante na definio da funcionalidade da regio amapaense.26 A ao poltica no

    caso, a mobilizao regionalista deu nitidez identidade regional e perspectiva

    autonomista a partir dos elementos que a estruturaram: a Icomi e o TFA. Mais do que isso: a

    ao poltica foi fundamental na construo concreta da regio, (re)organizando o espao, ou

    seja, desestruturando-o e reestruturando-o. A regio representou-se, assim, como um produto

    poltico, e no apenas fsico e econmico.

    Tambm a perspectiva metodolgica de unidade histrica de Lucien Febvre (2004) foi

    til para compreendermos a constituio do Amap como ente federativo brasileiro. O Amap

    vivo, real e humano, enquanto unidade histrica, remeteu-nos questo da gnese: quando

    surgiu este Amap? Procuramos compreender a gnese histrica do Amap no como algo

    simples, produto de um ato repentino de um determinado momento (o decreto-lei que criou o

    TFA ou a Constituio brasileira de 1988, que o transformou em estado), mas, ao contrrio,

    26 A funo foi aqui entendida com base no conceito de espao como construo social de Milton Santos (1991), que o definiu como o meio, o lugar material da possibilidade de ocorrncia dos o meio onde a vida se torna possvel. O espao um conjunto de objetos (naturais e artificiais) e de relaes que se realizam