Gilles Gaston Granger - Ciência, técnica e produção de massa

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  • 8/7/2019 Gilles Gaston Granger - Cincia, tcnica e produo de massa

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    CINCIA, TCNICA E PRODUO DE MASSA*Gilles Gaston GRANGER

    Quando os saberes tcnicos ainda no estoimpregnados de conhecimento cientfico, otrabalho artesanal que os desenvolve leva

    produo de obras muito individuadas. Isso porqueesses saberes comportam no s esquemas comunsde produo, tcnicas bsicas indispensveis reali-zao de um determinado efeito, criao de umdeterminado tipo de objeto, mas tambm receitas emanhas cuja posse no estritamente necessria,mas do ao arteso a possibilidade de singularizar oseu produto, nele exprimindo, por assim dizer, al-

    guma coisa de si mesmo. esta utilizao dos aspec-tos e dos elementos primeira vista suprfluos, comvista a tornar significativo o produto de um trabalho,que chamo de efeito de estilo. Ora, o progresso dastcnicas, na maioria das vezes, leva, ao contrrio, auma normalizao cada vez mais rigorosa das aese dos produtos, condio indispensvel da baixa doscustos e da produo em massa. O ator tcnico j no, ento, o arteso, e sim, por um lado, o engenheiroe, por outro, o executante, operrio ou tcnico.

    No h dvida de que essa normalizaoseja ao mesmo tempo a consequncia e osinal de uma penetrao das tcnicas pelo

    conhecimento cientfico. Pois a cincia que, primei-ro, exige uma reduo de seus objetos a esquemasabstratos, em teoria perfeitamente substituveis, e,por exemplo, na qumica, introduz a noo de corpopuro. Para poder aplicar conhecimentos estabeleci-dos pela cincia, os tcnicos devem selecionar cadavez mais os materiais de acordo com normas estri-

    tas, codificar os procedimentos, ordenar os ciclos deexecuo. Sem dvida, tambm aqui um motor pode-roso dessa tendncia de natureza econmica, ex-trnseca, por conseguinte, s consideraes tantotcnicas quanto cientficas: ganhar tempo, produzircada vez mais Mas a necessidade de normalizaono deixa de ser, em primeiro lugar, uma condioda aplicao das cincias.

    * In Gilles Gaston GRANGER,A cincia e as cincias. So Paulo, Editora

    da UNESP,1994,pp.36-39.Traduo de Roberto Leal Ferreira. Materi-

    al para uso didtico, disponvel no blog CRNICAS DE ESCOLA:

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    H de se observar que uma das primeiras conse-quncias dessa situao foi o taylorismo, doutrina deracionalizao das produes mediante uma frag-

    mentao e uma especializao extremas das tarefas,e uma cronometragem rigorosa de seu encadeamen-to, sendo tudo concebido e planificado de antemo,com vistas a obter as melhores condies possveisde rendimento (cf. Frederick W. TAYLOR,Princpios deorganizao cientfica, 1911). Trata-se, portanto, desuprimir toda operao, todo gesto no estritamentenecessrio, e de negar toda iniciativa aos executan-tes: Vocs no esto aqui para pensar, costumavadizer-lhes Taylor. Essa formulao extremista danormalizao representa, evidentemente, o exato

    oposto das tcnicas artesanais, e se pretendia a rea-lizao mais perfeita do assdio da tcnica pela cin-cia.

    A evoluo posterior das tcnicas, porm,demonstrou, especialmente em nosso per-odo bem contemporneo, que uma tal con-

    cepo era, pelo menos parcialmente, inadaptada auma Idade da cincia. Alm dos grandes inconveni-entes que ela comporta no plano humano, a taylori-

    zao j no corresponde corretamente s condiesde funcionamento timo das mquinas. Se a caracte-rstica mais evidente da tcnica impregnada de cin-cia a universal extenso do emprego de mquinascada vez mais poderosas, complexas e refinadas, bvio que o progresso tcnico recente consistiu, emprimeiro lugar, numa verdadeira mutao de suaespcie. Podemos dizer, simplificando muito, que amquina foi primeiramente um instrumento detransformao dos movimentos: a alavanca, a rolda-na, mquinas simples por excelncia, e at a m-

    quina de tecer. Depois ela se tornou meio de produ-o, ou seja, tambm de transformao, de energia: amquina a vapor, o motor eltrico ou exploso.Mais recentemente, enfim, apareceram as mquinasde processar informao, cujo antepassado a m-quina de calcular de Pascal, e o primeiro exemplarmoderno, o computador monstruoso ENIAC, da Fila-dlfia [nos Estados Unidos], que em 1946 ainda ocu-pava toda uma sala, com suas 18 mil vlvulas e suamagra memria ativa de 200 bits Hoje, fantastica-mente aperfeioadas e miniaturizadas, essas mqui-

    nas esto associadas cada vez mais intimamente soutras mquinas energticas, de que garantem a

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    regulao e o funcionamento diversificado. Cada vezmais, a mquina ganha espao nas funes e nastarefas do executante. Graas s aplicaes da cin-cia em diferentes reas, elas se torna, num sentidosem dvida muito modesto, inteligente, ou seja,

    capaz de discernir posies e formas no espao, demanipular e deslocar adequadamente objetos, pal-par e reconhecer certas propriedades fsicas, desco-brir anomalias. De modo que o aspecto mais repeti-tivo das tarefas, h pouco justamente codificado pelotaylorismo, em grande medida transferido para amquina, e o papel do executante consiste cada vezmais no exerccio de uma tecnicidade de segundograu: um saber de superviso, de manuteno dobom andamento, de reconhecimento das falhas e dosincidentes de funcionamento, de conserto das m-

    quinas. No limite, ocorre at uma comunicao entreo homem e a mquina que ele utiliza. A parte infor-macional desta ltima dotada de uma funo desimbolizao que lhe permite fornecer ao operadorinformaes sobre o seu prprio funcionamento. ocaso do piloto de avio moderno em seu cockpit, dousurio de um computador diante do seu equipa-mento. O executante tcnico deve, assim, ser capazde interpretar essas mensagens e responder a elas,tomando decises.

    Decorre desta nova tecnicidade uma tenso, presen-

    te na sociedade atual, entre uma exigncia de especi-

    alizao tcnica, resultante do cada vez maior refi-namento das mquinas, e uma exigncia aparente-mente oposta de polivalncia, de competncia gene-ralizada, ou antes de capacidade de adaptao dosexecutantes tcnicos, consequncia da rapidez evo-

    lutiva das tcnicas existentes e da criao de tcnicasnovas.

    Assinalaremos aqui, apenas para registro, o proble-ma assim proposto aos polticos pela formao dosjovens. Limitar-nos-emos a observar que a relaodo tcnico com mquinas cada vez mais aperfeioa-das, embora seja consequncia de uma cincia oculta, no entanto , dispensa de certa maneira quese recorra ao conhecimento cientfico. Por certo, issono ocorre no nvel mais alto da hierarquia tcnica,onde, pelo contrrio, tendem a se unir o cientista e o

    engenheiro. Mas nos nveis de execuo, mesmomuito altos na hierarquia tcnica, o esprito cientfi-co corre o risco de se apagar ante um esprito estri-tamente tcnico, que daria preferncia ao sucesso emdetrimento da explicao. Assim, para contrabalan-ar esse efeito negativo, convm, sem dvida, res-ponder ao problema de formao que acabamos demencionar, aceitando dar um lugar importante noensino a uma cultura cientfica geral, aparentementedesinteressada e no diretamente eficiente, e at,sem dvida, a uma cultura humanista, cultura em

    sentido estrito.