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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO QUINTA CÂMARA CRIMINAL HABEAS CORPUS PROCESSO ELETRÔNICO N.º 0053756-02.2012.8.19.0000 IMPETRANTE/PACIENTE: MARCO ANTONIO GOMES VEIGA AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS RELATOR: DES. CAIRO ÍTALO FRANÇA DAVID EMENTA Habeas Corpus. Execução Penal. Alegação de constrangimento ilegal porquanto foi indeferido o pedido de livramento condicional ao paciente, reincidente específico em crime de tráfico de drogas, com fundamento no artigo 83, inciso V, do Código Penal. Parecer ministerial pelo não conhecimento do writ e, no mérito, pela denegação da ordem. 1. Prefaciais rejeitadas, diante da possibilidade de violação ao status libertatis do paciente. 2. Antes da Lei 11.464/07, a impossibilidade de livramento condicional encontrava amparo na opção legislativa em conferir tratamento mais severo para o reincidente em crime hediondo ou equiparado. Com o julgamento do HC 82.959 pelo STF e com o advento da referida norma, que alterou a Lei de Crimes Hediondos para admitir a progressão de regime aos reincidentes, é possível reconhecer que houve a derrogação tácita do artigo 83, inciso V, parte final, do Código Penal, bem como do artigo 44, parágrafo único, parte final, da Lei 11.343/2006. 3. Em verdade, a progressão de regime e o livramento condicional são institutos autônomos e possuem natureza jurídica diversa, contudo, ambos compõem o sistema progressivo para a execução da pena e visam à regeneração do apenado. Assim, vedar ao reincidente específico o direito ao livramento condicional implica em retirar-lhe o direito de que o juiz da execução penal aprecie sua condição de retornar ao convívio social, ferindo, portanto, o princípio da individualização da pena, previsto no artigo 5.º, XLVI da Constituição da República. 4. Ordem parcialmente concedida, no sentido de ser cassada a decisão impugnada, para que outra seja proferida, com o exame acerca do preenchimento dos requisitos legais, afastando-se a vedação constante no artigo 83, inciso V, última parte, do Código Penal, bem como no artigo 44, parágrafo único, parte final, da Lei 11.343/06.

Habeas Corpus

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HC

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Page 1: Habeas Corpus

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

QUINTA CÂMARA CRIMINAL

HABEAS CORPUS

PROCESSO ELETRÔNICO N.º 0053756-02.2012.8.19.0000

IMPETRANTE/PACIENTE: MARCO ANTONIO GOMES VEIGA

AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE

EXECUÇÕES PENAIS

RELATOR: DES. CAIRO ÍTALO FRANÇA DAVID

EMENTA

Habeas Corpus. Execução Penal. Alegação de

constrangimento ilegal porquanto foi indeferido o pedido de

livramento condicional ao paciente, reincidente específico em

crime de tráfico de drogas, com fundamento no artigo 83, inciso

V, do Código Penal. Parecer ministerial pelo não conhecimento

do writ e, no mérito, pela denegação da ordem. 1. Prefaciais

rejeitadas, diante da possibilidade de violação ao status libertatis

do paciente. 2. Antes da Lei 11.464/07, a impossibilidade de

livramento condicional encontrava amparo na opção legislativa

em conferir tratamento mais severo para o reincidente em crime

hediondo ou equiparado. Com o julgamento do HC 82.959 pelo

STF e com o advento da referida norma, que alterou a Lei de

Crimes Hediondos para admitir a progressão de regime aos

reincidentes, é possível reconhecer que houve a derrogação

tácita do artigo 83, inciso V, parte final, do Código Penal, bem

como do artigo 44, parágrafo único, parte final, da Lei

11.343/2006. 3. Em verdade, a progressão de regime e o

livramento condicional são institutos autônomos e possuem

natureza jurídica diversa, contudo, ambos compõem o sistema

progressivo para a execução da pena e visam à regeneração do

apenado. Assim, vedar ao reincidente específico o direito ao

livramento condicional implica em retirar-lhe o direito de que o

juiz da execução penal aprecie sua condição de retornar ao

convívio social, ferindo, portanto, o princípio da

individualização da pena, previsto no artigo 5.º, XLVI da

Constituição da República. 4. Ordem parcialmente concedida,

no sentido de ser cassada a decisão impugnada, para que outra

seja proferida, com o exame acerca do preenchimento dos

requisitos legais, afastando-se a vedação constante no artigo 83,

inciso V, última parte, do Código Penal, bem como no artigo 44,

parágrafo único, parte final, da Lei 11.343/06.

Page 2: Habeas Corpus

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas

Corpus, processo n.º 0053756-02.2012.8.19.0000, em que é

impetrante/paciente MARCO ANTONIO GOMES VEIGA e autoridade

apontada como coatora o JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE EXECUÇÕES

PENAIS.

ACORDAM os Desembargadores que integram a Quinta

Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por

unanimidade, em conceder parcialmente a ordem, para cassar a decisão

impugnada, para que outra seja proferida, com o exame sobre o preenchimento

dos requisitos legais, afastando-se a vedação constante no artigo 83, inciso V,

última parte, do Código Penal, bem como no artigo 44, parágrafo único, parte

final, da Lei 11.343/06, nos termos do voto do Relator.

Sessão de Julgamento, 22 de novembro de 2012.

DES. CAIRO ÍTALO FRANÇA DAVID

Relator

Page 3: Habeas Corpus

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

QUINTA CÂMARA CRIMINAL

HABEAS CORPUS

PROCESSO ELETRÔNICO N.º 0053756-02.2012.8.19.0000

IMPETRANTE/PACIENTE: MARCO ANTONIO GOMES VEIGA

AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE

EXECUÇÕES PENAIS

RELATOR: DES. CAIRO ÍTALO FRANÇA DAVID

RELATÓRIO

Habeas Corpus impetrado por MARCO ANTONIO

GOMES VEIGA em seu favor, sendo apontado como autoridade coatora o

JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS, alegando que

possui direito líquido e certo ao deferimento do Livramento Condicional, mas

não lhe foi concedido esse direito pela autoridade coatora.

A inicial (fls.1/4 da peça 00002) não veio acompanhada

com nenhum documento.

Na peça 00014, a autoridade apontada como coatora

informou que indeferiu o pleito defensivo porquanto o apenado é reincidente

específico, sendo vedado o benefício nos termos do artigo 83, inciso V do

Código Penal.

A liminar foi indeferida (peça 00019).

O Procurador de Justiça, Dr. MARCELO ROCHA

MONTEIRO, às fls. 1/12, da peça 00021, opinou pelo não conhecimento do

habeas corpus e, no mérito, pela denegação da ordem.

É o relatório.

VOTO

Ação constitucional alegando constrangimento ilegal na

medida em que, apesar de possuir direito líquido e certo à obtenção do

livramento condicional, o seu pedido não foi deferido pela autoridade coatora.

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não conhecimento e,

no mérito, pela denegação da ordem.

Inicialmente destaco que o remédio heroico foi redigido

pelo próprio paciente ou por um terceiro que não demonstra possuir

conhecimentos jurídicos adequados e possui uma linguagem dúbia, não se

podendo identificar sem boa vontade se o paciente está impugnando uma

ilegalidade ou se faz um requerimento de apreciação do seu pedido.

Page 4: Habeas Corpus

Numa hipótese como esta, em que se aponta, ainda que de

forma não muito clara, a violação ao direito de ir e vir do paciente, penso que

seria melhor conhecer o pedido e apreciá-lo, muito embora uma interpretação

com maior rigor formal recomendasse que simplesmente não se conhecesse a

ordem.

Feitas estas colocações, registro que a autoridade impetrada

indeferiu o pedido de livramento condicional tendo em vista que se trata de

apenado reincidente específico em crime equiparado a hediondo, entendendo

que o mesmo não possui direito ao benefício, nos termos do artigo 83, inciso

V do Código Penal1.

Ouso divergir de tal entendimento.

O apenado é de fato reincidente específico. A autoridade

impetrada informou que ele possui duas cartas de execução de sentença, uma

por infração ao art.12, caput, da Lei 6.368/76 e outra por infração ao art.33 da

Lei 11.343/06 (histórico penal-fls. 3/4 da peça 00014).

Todavia, entendo que deve ser afastado o óbice contido no

artigo 83, inciso V, parte final do Código Penal e no artigo 44, parágrafo

único, parte final, da Lei 11.343/06, para viabilizar a concessão do livramento

condicional ao paciente, pelos motivos que passo a expor.

Antes da Lei 11.464/07, uma vez que a progressão de

regime não era admitida na Lei de Crimes Hediondos, justificava-se a

impossibilidade de livramento condicional em razão da opção do legislador

em conferir tratamento mais severo para o reincidente em crime hediondo ou

equiparado.

Contudo, a referida lei deu nova redação ao artigo 2º,

parágrafo 2º da Lei 8.072/90 para admitir a progressão de regime aos

reincidentes, sem indicar se específicos ou não, após o cumprimento de 3/5

(três quintos) da pena. Trata-se de lei benéfica, pois passou a admitir a

progressão de regime nos crimes hediondos e equiparados.

Assim, criou-se uma situação curiosa e desarrazoada, eis

que o sentenciado reincidente específico tem direito à progressão de regime,

mas não tem direito ao livramento condicional.

Embora a progressão de regime e o livramento condicional

não se confundam, visto serem institutos autônomos e possuírem natureza

diversa, ambos compõem o sistema progressivo para a execução da pena e

visam à ressocialização do apenado.

Nosso ordenamento jurídico adotou um sistema progressivo

para a execução da pena, do qual o livramento condicional é a etapa anterior à

reinserção do sentenciado na vida em comunidade.

1 Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou

superior a 2 (dois) anos, desde que: (...) V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação

por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o

apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza. (Incluído pela Lei nº 8.072, de

25.7.1990).

Page 5: Habeas Corpus

Assim, na medida em que a lei veda o livramento

condicional ao reincidente específico, retira-se dele o direito de que o juiz da

execução aprecie se possui condições de retornar ao convívio social, ferindo,

portanto, o princípio da individualização da pena, previsto no artigo 5.º, XLVI

da Constituição da República.

Os Ministros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento

do HC 82.959, que, por seis votos a cinco, decidiu pela inconstitucionalidade

do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos),

enxergando como o sistema carcerário pode ser perverso, analisaram a política

criminal com um viés garantista, imbuindo o Direito Penal de valores

humanísticos, em contraponto à letra fria da lei, de forma que reconheceram

que o obstáculo contido em relação à progressão de regime violava os

princípios da isonomia e da individualização da pena, previstos na

Constituição da República.

Sobre o tema o doutrinador Luiz Flávio Gomes2 observa

com propriedade:

“Réu reincidente (específico) em crimes hediondos: não pode ter

progressão de regime nem livramento condicional (CP, art.83, V). Mas diante

da posição do STF (HC 82.959) de que é inconstitucional a norma que proíbe

progressão de regime, porque violadora do princípio da individualização da

pena, parece que está afetado também esse dispositivo legal. A reincidência do

condenado pode conduzir a que se lhe dê um tratamento mais rigoroso, mas não

pode impedir a progressão de regime (tampouco o livramento condicional).”.

No entanto, a decisão que declarou a inconstitucionalidade

do artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei nº 8.072/90, não tratou do livramento

condicional.

Em tal contexto, diante da missão inerente ao Poder

Judiciário de garantir a eficácia dos direitos fundamentais, é possível

reconhecer que a Lei 11.464/2007 derrogou tacitamente o artigo 83, inciso V,

parte final, do Código Penal, bem como o 44, parágrafo único, parte final, da

Lei 11.343/06, porquanto não se pode admitir a vedação abstrata de concessão

de benefícios em favor dos acusados.

No mesmo sentido, colaciono a ementa do acórdão

proferido pela 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São

Paulo, nos autos do HC n.º 0111928-39.2012.8.26.0000, in verbis:

“HABEAS CORPUS Execução Penal – Visando reforma da decisão que

indeferiu pedido de livramento condicional Alegação de que o indeferimento do

livramento condicional a reincidentes específicos em crime hediondo ou

assemelhado com base nos termos do art. 83, V, do CP não pode prosperar

porque a Lei nº 11.464/07 modificou os requisitos para a progressão exigindo

somente o cumprimento de três quintos da pena, tendo ocorrido a derrogação

2 GOMES, Luiz Flávio e outro. Direito penal: parte geral: volume 2 / Luiz Flávio Gomes, Antonio Garcia-

Pablos de Molina; coordenação Luiz Flávio Gomes. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2007. Pág.

872.

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tácita do inciso V, do artigo 83 do Código Penal - ADMISSIBILIDADE. Ordem

parcialmente concedida.” (Grifos nossos)

Portanto, entendo ser cabível, em tese, a concessão do

livramento condicional ao reincidente específico em crime hediondo ou

equiparado. Ressalto, no entanto, que seu deferimento nesta via estreita se

mostra inviável, haja vista a impossibilidade de se fazer a análise do

preenchimento dos requisitos legais, aliados ao fato de que sua concessão

importaria em supressão de instância.

O direito pleiteado depende do preenchimento do requisito

de natureza objetiva, que o impetrante alega estar satisfeito, bem como da

satisfação do requisito de natureza subjetiva, que será brevemente aferido pelo

juízo competente, qual seja, o da Vara de Execuções Penais.

Além disso, constata-se, ainda, que o impetrante/paciente

não instruiu o pedido com qualquer documento, de forma que não comprovou

suas alegações.

Diante de todo o exposto, concedo parcialmente a ordem

para cassar a decisão que indeferiu o livramento condicional ao paciente,

determinando que outra seja proferida pelo Juízo Executor, afastada a

proibição do artigo 83, inciso V, parte final, do Código Penal e do artigo 44,

parágrafo único, parte final, da Lei 11.343/06, devendo-se examinar o

atendimento aos pressupostos objetivos e subjetivos.

É como voto.

Sessão de Julgamento, 22 de novembro de 2012.

DES. CAIRO ÍTALO FRANÇA DAVID

Relator

Revista