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Augusto Guzzo Revista Acadêmica Ione Collado Pacheco DOURADO*/ Regina Célia Almeida Rego PRANDINI ** Henri Wallon: psicologia e educação Resumo É propósito do presente trabalho apresentar uma reflexão sobre as contribuições da teoria de desenvolvimento e das idéias pedagógicas de Henri Wallon para a educação hoje. Para tanto, parte de uma análise dos conceitos fundamentais e princípios gerais da teoria e de seus pressupos- tos, e das principais idéias pedagógicas expressas em seus textos e no Projeto Langevin-Wallon. Ao considerar que Wallon atribui ao professor a função de mediar o acesso do aluno à cultura de seu tempo, e de cultivar nele aptidões com- patíveis com as necessidades sociais, de forma que o ensino por ele ministrado seja uma preparação suficiente para o exercício de qual- quer função que se poderia oferecer mais tarde, perguntamo-nos: que tipo de formação deveria ser oferecida aos professores de nosso tempo para que cumprissem esta função? Abstract It's purpose of the present article presenting for reflection on the contributions of the development theory and Henri Wallon's pedagogical ideas for the education nowadays. For this, it begins from an analysis of the fundamental concepts and the theory 'general principies and presuppositions, and the principal pedagogical ideas expressed in his texts and in Langevin-Wallon' Project. In considering that Wallon attributes to the teacher the function of mediating the access of the stude.r _H to his time culture and him cultivate compatible aptitudes with the social needs, so that the teaching by himself ministered. Be a preparation for the exercise of any function that one could offer later, we ask: what kind of formation shoulcl be offerecl to the teachers of our time so that they can accomplish this function? Introdução Henri Wallon, além de elaborar uma teoria sobre o desenvolvimento humano, em virtude de sua preocupação com a educação, escreveu tam- bém sobre suas idéias pedagógicas apontando bases que a psicologia pode oferecer à atuação pedagógi- ca e o uso que a pedagogia pode fazer dessas bases, além de se nutrir da experiência pedagógica. Além dos textos voltados para a educação, Wallon expressou suas idéias pedagógicas também no Projeto Langevin-Wallon, um plano de reforma para o ensino da França que ele elaborou junta- mente com o físico Paul Langevin, e que não chegou a ser implantado. Apesar disso, a teoria de desenvolvimento de Wallon é ainda hoje pouco divulgada nos meios educacionais. Por acreditar que ela possa con- tribuir para a psicologia da educação, ou para a psicologia e para a educação, esperamos com o presente trabalho lançar algumas sementes, contribuindo para a construção de um espaço de interlocução para os, hoje ainda poucos, edu- cadores wallonianos. Psicogenética, essencialmente sociocultural e relativista, com forte lastro orgânico, a teoria de Wallon considera o desenvolvimento da pessoa completa integrada ao meio em que está imersa, com os seus aspectos afetivo, cognitivo e motor também integrados. Assim, a ênfase é para a integração- entre or- ganismo e meio e entre as dimensões: cognitiva, *Doutoranda em Psicologia da Educação - PUC/ SP. Coordenadora do Centro de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão das Faculdades Integradas "Campos Salles". **Doutoranda em Psicologia da Educação- PUC/ SP. Professora convidada do curso de Especialização em Psicopedagogia das Faculdades Integradas "Campos Salles".

Henri Walon

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psicologia e educação

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  • Augusto Guzzo Revista Acadmica

    I one Collado Pacheco DOURADO*/ Regina Clia Almeida Rego PRANDINI**

    Henri Wallon: psicologia e educao

    Resumo

    propsito do presente trabalho apresentar uma reflexo sobre as contribuies da teoria de desenvolvimento e das idias pedaggicas de Henri Wallon para a educao hoje. Para tanto, parte de uma anlise dos conceitos fundamentais e princpios gerais da teoria e de seus pressupos-tos, e das principais idias pedaggicas expressas em seus textos e no Projeto Langevin-Wallon. Ao considerar que Wallon atribui ao professor a funo de mediar o acesso do aluno cultura de seu tempo, e de cultivar nele aptides com-patveis com as necessidades sociais, de forma que o ensino por ele ministrado seja uma preparao suficiente para o exerccio de qual-quer funo que se poderia oferecer mais tarde, perguntamo-nos: que tipo de formao deveria ser oferecida aos professores de nosso tempo para que cumprissem esta funo?

    Abstract

    It's purpose of the present article presenting for reflection on the contributions of the development theory and Henri Wallon's pedagogical ideas for the education nowadays. For this, it begins from an analysis of the fundamental concepts and the theory 'general principies and presuppositions, and the principal pedagogical ideas expressed in his texts and in Langevin-Wallon' Project. In considering that Wallon attributes to the teacher the function of mediating the access of the stude.r_H to his time culture and him cultivate compatible aptitudes with the social needs, so that the teaching by himself ministered . Be a preparation for the exercise of any function that one

    could offer later, we ask: what kind of formation shoulcl be offerecl to the teachers of our time so that they can accomplish this function?

    Introduo

    Henri Wallon, alm de elaborar uma teoria sobre o desenvolvimento humano, em virtude de sua preocupao com a educao, escreveu tam-bm sobre suas idias pedaggicas apontando bases que a psicologia pode oferecer atuao pedaggi-ca e o uso que a pedagogia pode fazer dessas bases, alm de se nutrir da experincia pedaggica.

    Alm dos textos voltados para a educao, Wallon expressou suas idias pedaggicas tambm no Projeto Langevin-Wallon, um plano de reforma para o ensino da Frana que ele elaborou junta-mente com o fsico Paul Langevin, e que no chegou a ser implantado.

    Apesar disso, a teoria de desenvolvimento de Wallon ainda hoje pouco divulgada nos meios educacionais. Por acreditar que ela possa con-tribuir para a psicologia da educao, ou para a psicologia e para a educao, esperamos com o presente trabalho lanar algumas sementes, contribuindo para a construo de um espao de interlocuo para os, hoje ainda poucos, edu-cadores wallonianos.

    Psicogentica, essencialmente sociocultural e relativista, com forte lastro orgnico, a teoria de Wallon considera o desenvolvimento da pessoa completa integrada ao meio em que est imersa, com os seus aspectos afetivo, cognitivo e motor tambm integrados.

    Assim, a nfase para a integrao- entre or-ganismo e meio e entre as dimenses: cognitiva,

    *Doutoranda em Psicologia da Educao - PUC/SP. Coordenadora do Centro de Ps-Graduao, Pesquisa e Extenso das Faculdades Integradas "Campos Salles". **Doutoranda em Psicologia da Educao- PUC/SP. Professora convidada do curso de Especializao em Psicopedagogia das Faculdades Integradas "Campos Salles".

  • afetiva e motora na constituio da pessoa. A pes~ soa vista como o conjunto funcional resultante da integrao de suas dimenses, cujo desenvolvi~ mento se d na integrao de seu aparato orgnico com o meio, predominantemente o social.

    O organismo em desenvolvimento na constituio da pessoa

    O desenvolvimento tem seu incio na relao do organismo do beb recm~nascido, essencial~ mente reflexos e movimentos impulsivos, tambm chamados descargas motoras, com o meio humano que as interpreta. Nesta fase distingue~se apenas estados de bem~estar ou desconforto. So as reaes do ambiente humano, representado pela me, motivadas pela interpretao da mmica do beb que permitem distinguir as emoes bsicas. Essa mmica no casual, mas um recurso biol~ gico da espcie, essencialmente social, que faz do beb um ser capaz de produzir, no ambiente hu~ mano, ainda representado pela me, um efeito mobilizador para sobreviver.

    Desta forma a dimenso motora que d a condio inicial ao organismo para o desenvolvi~ mento da dimenso afetiva.

    A criana atua primeiro no ambiente humano, no no mundo fsico. A mobilizao do outro se faz pela emoo. da protoconscincia, emocional, subjetiva que ir se desenvolver a conscincia reflexiva. A vida psquica resul~ tante do encontro da vida orgnica com o meio social.

    Esse processo est ancorado no desenvol~ vimento neurolgico, como sua condio e limite. A maturao orgnica considerada condio para o desenvolvimento e permite

    descrev~lo e~ __ estgios sucessivos e integrados. ''A maturao orgnica indispensvel evo~ luo funcional".

    Os primeiros meses de vida caracterizam~se por uma fuso total com o meio e pelo desen~ volvimento rpido e completo dos automatismos emocionais responsveis pela mobilizao do meio humano para a satisfao das necessidades do beb. Estes automatismos dependem de cen~

    tros nervosos especiais e aparecem na criana como fato de maturao.

    O desenvolvimento das funes depende tan~ to de condies de maturao como de exerccios capazes de desenvolv~las, portanto condies do meio. No estgio sensrio~motor, a criana realiza um extenso e diferenciado acordo entre as per~ cepes e os movimentos. Esta relao em sua for~ ma mais simples o ato reflexo, ou seja, a uma de~ terminada excitao corresponde um determinado movimento. Com a maturao neurolgica, os re~ flexos so inibidos e a criana se torna capaz de realizar exerccios sensrio~motores que conduzem a um duplo resultado: ligar o efeito perceptvel aos movimentos prprios para produzi~los, e diversi~ ficar os movimentos e os efeitos possveis. Coor~ denando mutuamente os campos sensorial e mo~ tor, completa~se o arranjo funcional da atividade conforme as suas atividades objetivas.

    a ao motriz que regula o aparecimento e o desenvolvimento das funes mentais. O mo~ vimento espontneo transforma~se aos poucos em gesto, que, ao ser realizado a partir de uma inteno, se reveste de significao ligada ao, voltada para a realizao da cena, fora da qual nada significa.

    O desenvolvimento das funes psicolgicas superiores se d, portanto, a partir do desen~ volvimento das dimenses motora e afetiva. a comunicao emocional que d acesso ao mun~ do adulto, ao universo das representaes coleti~ vas. A inteligncia surge depois da afetividade, e a partir das condies de desenvolvimento motor, se alterna e conflita com ela.

    A cognio vista como parte da pessoa com~ pleta que s pode ser compreendida integrada a ela, cujo desenvolvimento se d a partir das condies orgnicas da espcie, e resultante da integrao entre seu organismo e o meio, pre~ dominantemente o social. Assim, o desenvolvi~ mento condicionado tanto pela maturao orgnica, como pelo exerccio funcional, pro~ piciado pelo meio. Segundo Wallon (1979):

    "O que permite inteligncia essa transferncia do plano motor para o plano especulativo no evi~

  • dentemente explicvel no desenvolvimento do indiv-duo (. . .) mas nele pode ser identificada [a trans-ferncia] (. .. ) so as aptides da espcie que esto em jogo, em especial as que fazem do homem um ser essencialmente social". (p.l31)

    A evoluo da espcie humana fez do homem um ser geneticamente social, desenvolvendo nele aptides especficas. A funo simblica a apti-do especfica da espcie humana que se refere ao poder de encontrar, para um objeto, a sua repre-sentao e, para esta representao, um signo. O desenvolvimento deste potencial pela espcie tem na sua base a vida em sociedade que pressupe objetivos comuns e necessidade de comunicao. Assim, o desenvolvimento da inteligncia se processa em um organismo a priori capaz disso, dependendo para tanto de seu encontro com o meio social.

    Partes da pessoa completa, as funes psicolgi-cas superiores, que se desenvolvem a partir de exer-ccios funcionais motores, sero mais tarde nutridas da sua inibio e no de sua estimulao. O movi-mento que se encontra na gnese da representao e a acompanha durante sua evoluo inicial, ter-mina por ser inibido por ela, condio necessria ao desenvolvimento das funes mentais especficas da representao pura.

    O desenvolvimento no se d de maneira linear e contnua, mas por integrao de novas funes e aquisies s anteriores. A acumulao quantitativa de funes culmina na evoluo qualitativa das mesmas a partir de uma nova organizao em que as dimenses motora, afeti-va e cognitiva se integram de maneira diversa da fase anterior, alternando-se no exerccio de predominncia de uma sobre as demais. A prepondernc_iJ. de um dos aspectos sobre os demais decorrente da sua integrao, que plstica, dinmica e resultante da superao da oposio de um em relao aos outros.

    Uma viso de conjunto, em que as dimenses da pessoa se integram de forma dinmica, alter-nando-se em relao predominncia de uma frente s demais, necessria para a compreenso da concepo de desenvolvimento walloniana. A

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    integrao no um estado alcanado ao final de um processo, mas define a condio plstica, o equilbrio dinmico da pessoa em desenvolvi-mento.

    Wallon admite a existncia de trs leis que regulam o processo de desenvolvimento da crian-a em direo ao adulto: a lei da alternncia funcional, a da preponderncia funcional e a da integrao funcional.

    A primeira, chamada lei da alternncia fun-cional, indica duas direes opostas que se alternam ao longo do desenvolvimento: uma centrpeta, voltada para a construo do eu e a outra centrfuga, voltada para a elaborao da rea-lidade externa e do universo que a rodeia. Essas duas direes se manifestam alternadamente, cons-tituindo o ciclo da atividade funcional.

    A segunda a lei da sucesso da prepondern-cia funcional, na qual as trs dimenses ou sub-conjuntos preponderam, alternadamente, ao longo do desenvolvimento do homem: motora, afetiva e cognitiva. A funo motora predomina nos primeiros meses de vida da criana, enquanto as funes afetiva e cognitiva se alternam ao longo de todo o desenvolvimento, ora visando formao do eu (predominncia afetiva), ora visando ao conhecimento do mundo exterior (predominncia cognitiva).

    A ltima lei, chamada de lei da diferenciao e integrao funcional, diz respeito s novas possi-bilidades que no se suprimem ou se sobrepem s conquistas dos estgios anteriores, mas, pelo con-trrio, integram-se a elas no estgio subseqente.

    A integrao dos trs subconjuntos funcionais - motor, afetvo e cognitivo - constitui o ltimo e quarto subconjunto funcional, denominado por Wallon pessoa. Para Wallon, em qualquer mo-mento, ou fase do desenvolvimento, a pessoa sempre uma pessoa completa.

    Outra tendncia apontada por Wallon, mani-festa no desenvolvimento da pessoa completa, a de caminhar do sincretismo em direo diferenciao. Movimentos, sentimentos e idias so a princpio vividos de maneira global, at mesmo confusa, quando a pessoa no tem clareza da situao. Aos poucos, tornam-se mais claros e

  • adequados s necessidades que a situao apre-senta. Sobre esta questo, nos diz Mahoney (2000): "Desenvolver-se ser capaz de responder com reaes cada vez mais especficas a situaes cada vez mais variadas". (p. 14)

    A Teoria das Emoes de grande importn-cia na obra de Wallon. Segundo o autor, a emoo a exteriorizao da afetividade, um fato fisiolgico nos seus componentes humorais e motores e, ao mesmo tempo, um comporta-mento social na sua funo de adaptao do ser humano ao seu meio:

    " ... As emoes so a exteriorizao da afetivi-dade(. .. .) Nelas que assentam os exerccios gregrios, que so uma forma primitiva de comunho e de comunidade. As relaes que elas tomam possveis afinam os seus meios de expresso, e fazem deles instrumentos de sociabilidade cada vez mais especiali-zados". (Wallon, 1995, p. 143)

    A emoo, antes da linguagem, o meio uti-lizado pelo recm-nascido para estabelecer uma relao com o mundo humano. Gradativamente, os movimentos de expresso, primeiramente fisio-lgica, evoluem at se tornarem comportamentos afetivos mais complexos, nos quais a emoo, aos poucos, cede terreno aos sentimentos e depois s atividades intelectuais.

    As emoes so instantneas e diretas e po-dem expressar-se como verdadeiras descargas de energia. Quando isto ocorre, elas tm o poder de se sobrepor ao raciocnio e ao conhecimento.

    A afetividade evolui conforme as condies maturacionais de cada pessoa e com formas de expresses diferenciadas, que se configuram como um conjunto de significados que o indivduo adquire nas rel~_es com o meio, com a cultura, ao longo da vida. Os significados representam para cada pessoa as diferentes situaes e expe-rincias vivenciadas num determinado momento e ambiente social. Por este motivo, afetividade no permanece imutvel ao longo da trajetria da pessoa.

    A afetividade corresponde energia que mo-biliza o ser em direo ao ato, enquanto a in-

    teligncia corresponde ao poder estruturante que o modela a partir dos esquemas disponveis naquele momento.

    Para Wallon, a emoo precede nitidamente o aparecimento das condutas do tipo cognitivo e um processo corporal que, quando intenso, pode impulsionar a conscincia a se voltar para as al-teraes proprioceptivas, prejudicando a per-cepo do exterior. Em virtude de seu poder de sobrepor-se preponderncia da razo, neces-srio, segundo Wallon, manter-se uma "baixa temperatura emocional", para que se possa tra-balhar as funes cognitivas.

    A emoo capaz de preponderar sobre a razo sempre que ltima faltem recursos para controlar a primeira. O desenvolvimento deve conduzir predominncia da razo, pois, para Wallon, "a razo o destino final do homem".

    A integrao entre as dimenses motora, afe-tiva e cognitiva, conceito central da teoria de Wallon, claramente descrito por Mahoney (2000):

    "O motor, o afetivo, o cognitivo, a pessoa, embo-ra cada um desses aspectos renha idencidade estru-tural e funcional diferenciada, esto to integrados que cada um parte constitutiva dos outros. Sua separao se faz necessria apenas para a descrio do processo. Uma das conseqncias dessa interpre-tao de que qualquer atividade humana sempre in-terfere em todos eles. Qualquer atividade motora tem ressonncias afetivas e cognitivas; toda disposio afetiva tem ressonncias motoras e cognitivas; toda operao mental tem ressonncias afetivas e motoras. E todas essas ressonncias tm um impacto no quar-to conjunto: a pessoa". (p. 15)

    O papel do meio na constituio da pessoa

    O conceito de meio fundamental na teoria walloniana. Nela, como j foi acima referido, a pessoa constitui-se na integrao de seu organis-mo com o meio, estando o social sobreposto ao natural. As atitudes da pessoa so consideradas complementares s do meio, tanto quanto deter-

  • minadas pelas suas disposies individuais e pelo papel e lugar que ocupa no grupo social. Portan-to, a pessoa deve ser vista integrada ao meio do qual parte constitutiva e no qual, ao mesmo tempo, se constitui. A este respeito nos diz Wallon (1975):

    "Sem dvida que o papel e o lugar que a ocupa [a criana] so em parte determinados pelas suas prprias disposies, mas a existncia do grupo e as suas exigncias no se impem menos sua condu-ta. Na natureza do grupo, se os elementos mudam, as suas reaes mudam tambm". (p.20)

    A constituio da pessoa se d de acordo com suas condies de existncia. O meio social e a cultura constituem as condies, as possibilidades e os limites de desenvolvimento para o organismo.

    Durante a primeira etapa, denominada por Wallon de Estgio Impulsivo, os atos da criana tm o objetivo de chamar a ateno do adulto por meio de gestos, gritos e expresses, para que ele satisfaa as suas necessidades e garanta assim a sua sobrevivncia.

    Durante o desenvolvimento, a simbiose respi-ratria do feto se transforma em simbiose ali-mentar no recm-nascido e, por volta dos trs meses, em simbiose afetiva, caracterstica espec-fica da espcie humana. A esta fase Wallon chama de Estgio Emocional.

    A criana aos poucos aprende a contagiar o adulto com sorrisos e sinais de contentamento, o que caracteriza laos de carter afetivo com aque-les que esto a sua volta, e demonstra necessi-dade de manifestaes afetivas, necessidade que precisa ser atendida para que tenha um desen-volvimento satisfatrio.

    Para que a hl\p:1anidade possa sobreviver, necessrio que a impercia do recm-nascido afete o outro e provoque nele sentimentos de soli-dariedade: a garantia de sobrevivncia da esp-cie. Este, para Wallon, o maior indicador de que o meio social privilegiado para a criana em desenvolvimento e para o homem adulto, em re-lao ao meio fsico.

    A criana, que est primeiramente ligada

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    me, aos poucos diferencia outras pessoas que desempenham papis significativos em relao a ela, como, por exemplo, pai, avs, tios e padri-nhos. Sua sociabilidade se amplia rapidamente quando comea a andar e a falar. Andando, a criana pode interagir mais com o ambiente que a cerca. A aquisio da linguagem possibilita-lhe ao nomear objetos e pessoas, diferenci-los.

    Nesta etapa, denominada por Wallon de Est-gio Sensrio-Motor, a criana aprende a conhecer os outros como pessoas em oposio sua prpria existncia.

    o tempo dos jogos espontneos de alternn-cia, do interesse por atos que unem duas pessoas ou, principalmente, papis diferentes, como, por exemplo, o jogo de dar e receber tapinhas, de esconder e ser escondido pela almofada etc.

    Esses jogos alargam o horizonte e a vivncia da criana, pois fazem com que ela conceba relaes mais ricas. Nesse perodo, a criana ainda est estreitamente dependente do outro, pois seu processo de individuao est apenas se ini-ciando. Ela ainda vive sua relao com o outro de maneira bastante sincrtica, sem se diferenciar claramente dele.

    somente no Estgio do Personalismo, que vai dos trs aos cinco anos, que a criana real-mente se diferencia do outro, toma conscincia de sua autonomia em relao aos demais. Ela percebe as relaes e os papis diferentes dentro do universo familiar, ao mesmo tempo que se percebe como um elemento fixo, como ser o filho mais velho ou o mais novo, ser filho e irmo, assim por diante.

    Nessa idade, a criana tambm costuma in-gressar na escola maternal, inserindo-se numa comunidade de crianas semelhantes a ela, onde as relaes sero diferentes das relaes familia-res. As necessidades dessa faixa etria ainda exi-gem do professor cuidados de carter pessoal, di-retos, quase como os de me.

    Na etapa seguinte, denominada Categorial, idade de escolaridade obrigatria na maioria dos pases, o desenvolvimento cognitivo da criana est aguado e a sua sociabilidade ampliada. A criana se v capaz de participar de vrios grupos

  • com graus e classificaes diferentes, segundo as atividades de que participa. Esta etapa impor-tante para o desenvolvimento das aptides inte-lectuais e sociais da criana.

    Vivenciar a necessidade de se perceber como indivduo, e, ao mesmo tempo, de medir sua fora em relao ao grupo social a que pertence, faz desta fase um perodo crtico do processo de socializao, pois, segundo Wallon (1975):

    "H tomada de conscincia pelo indivduo do grupo de que faz parte, h tomada de conscincia pelo grupo da importncia que pode ter em relao aos indivduos". (p.215)

    A adolescncia, que para Wallon tem incio aos 12 anos com a puberdade, marcada por transformaes de ordem fisiolgica, mudanas corporais impostas pelo amadurecimento sexual, assim como transformaes de ordem psquica com preponderncia afetiva.

    Nesse estgio, os sentimentos se alternam procurando buscar a conscincia de si na figura do outro, contrapondo-se a ele, alm de incor-porar uma nova percepo temporal.

    O meio social e cultural passam a ser de grande importncia. Os adolescentes tornam-se intolerantes em relao s regras e ao controle exercido pelos pais, e necessitam identificar-se com seu grupo de amigos.

    Na adolescncia torna-se bastante visvel a forma como o meio social condiciona a existn-cia da pessoa, configurando-se a personalidade de maneiras diversas. Enquanto os adolescentes de classe mdia exteriorizam seus sentimentos e questionam valores e padres morais, os de clas-ses operrias, que enfrentam precocemente a rea-lidade social dq_ adulto, a necessidade de trabalho, vivem essa fase de outra maneira, pois tm de contribuir para a subsistncia da famlia.

    Para Wallon, o processo de socializao da pessoa no se d apenas no seu contato com o outro nas diversas etapas do desenvolvimento e da vida adulta, mas tambm no contato com a produo do outro. O encontro com o texto, com a pintura ou com a msica produzida pelo outro,

    proptcta a identificao como homem genrico e, ao mesmo tempo, a diferenciao como homem concreto, o que contribui ao processo de individuao e constituio do eu. por isso que, segundo Wallon, a cultura geral aproxima os homens, medida que permite a identificao de uns com outros, enquanto a cultura especfica e o conhecimento tcnico os afastam, ao individua-liz-los e diferenci-los.

    A cultura , para Wallon, ao mesmo tempo, fator constituinte da pessoa e representante das aptides totais do homem genrico, medida que constituda pela totalidade dos homens de de-terminada poca e lugar.

    Contribuies da teoria Educao

    Wallon chama de humanismo ampliado a con-cepo que implica a plena realizao do homem em cada indivduo. O homem completo s con-cebido em sua forma universal atribuindo-lhe o poder de compreender, ponderar e escolher.

    Uma educao humanista, segundo Wallon, deve considerar todas as disposies que cons-tituem o homem completo, mesmo estando desi-gualmente repartidas entre os indivduos, pois qualquer indivduo potencialmente pode se desen-volver em qualquer direo, a depender de seu aparato biolgico e das condies em que vive.

    Segundo Wallon, uma aptido s se manifes-ta se encontrar ocasio favorvel e objetos que lhes respondam. Muitas aptides novas poderiam manifestar-se no encontro das necessidades psico-lgicas das crianas e as necessidades crescentes da sociedade.

    Assim, o acesso cultura funo primordial da educao formal, pois ela a expresso do flo-rescimento das criaes e das aptides do homem genrico, universal, sejam manuais, corporais, es-tticas, intelectuais ou morais. A escola parte das condies de existncia na qual a pessoa se desenvolve e constitui, devendo intervir neste processo de maneira a promover o desenvolvi-mento de tantas aptides quantas forem possveis.

    O Projeto Langevin-Wallon propunha uma educao integral do pr-escolar at a universi-

  • dade e tinha na sua gnese a preocupao com a formao dos valores ticos e morais, pois con-siderava a escola um espao social adequado para tal. Visando a uma educao preocupada com a formao geral slida, para a autonomia, a cidadania e a orientao profissional, fundamen-tadas pelos princpios de justia, igualdade e res-peito diversidade, o projeto sistematizou e suge-riu etapas consecutivas que priorizassem aspectos e necessidades especficas de cada faixa etria, respeitando o desenvolvimento afetivo, cognitivo de socializao e maturao biolgica de cada in-divduo.

    Os programas educacionais deveriam ser re-formados de maneira que toda aptido pudesse ser orientada, cultivada segundo sua natureza, de forma que o ensino recebido fosse uma pre-parao suficiente para o exerccio de qualquer funo que se poderia oferecer mais tarde.

    Wallon acreditava que as aptides eram culti-vadas, desenvolvidas em contato com a cultura, e no inatas, embora elas dependam tambm de condies orgnicas. Por isso atribuiu escola, como funo primordial, dar acesso a cultura visando ao cultivo das aptides, pois s podem exercer as disposies que constituem o homem completo - compreender, ponderar e escolher -aqueles aos quais for dado a conhecer a cultura de seu tempo.

    Wallon acreditava que todos deveriam ter oportunidades iguais, inclusive ao respeito singularidade, e para isso seria necessrio haver escola para todos, na qual cada um pudesse encontrar, segundo suas aptides, todo o desen-volvimento intelectual, esttico e moral que fosse capaz de assimilar. Oferecida uma base comum, dever-se-ia tambm propiciar condies para que a crian, experimentando, descobrisse suas tendncias de acordo com seu estgio de desenvolvimento:

    - dos trs aos onze anos, as aptides parecem no contribuir de maneira eficiente. Exatamente por este motivo, o momento seria propcio, segundo Wallon, para orientar e cultivar todas elas, cada uma de acordo com sua natureza: manual, corporal, esttica, intelectual e moral.

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    - entre onze e quinze anos, sobre um fundo de aquisies comuns, emergem aptides mais particulares, mais pessoais, mais originais que devem encontrar tarefas que ajudem no desen-volvimento. A oferta de alternativas deveria ser ampla o suficiente para permitir criana, ao exercitar e desenvolver novas funes, reconhe-cer suas preferncias e suas dificuldades.

    - universidade caberia a formao profis-sional, a investigao cientfica e a difuso da cultura, associando uma cultura geral superior a uma especializao muito avanada.

    Wallon afirma que o meio e a cultura condi-cionam os valores morais e sociais que a criana incorporar, e que devem ser cultivados os valo-res de solidariedade e justia. Insiste na im-portncia de o professor conhecer as condies de existncia de seu aluno, para saber quais os valores que nela esto sendo cultivados, nos outros meios em que est imersa, e saber como cultivar aque-les que so seu objetivo.

    A partir de sete anos, a criana vive, ao mes-mo tempo, sentimentos e situaes de coopera-o, excluso e rivalidade. Caberia ao professor intervir, propondo atividades que privilegiassem trabalhos em grupo e atitudes de cooperao, em relao aos trabalhos individuais, uma vez que, nessa poca, podem acirrar-se rivalidades em detrimento da solidariedade. Alm disso, o mo-mento propcio para preparar a criana para a etapa seguinte que a adolescncia.

    Diante do adolescente, compreendendo as caractersticas de seu estgio de desenvolvimen-to, o professor pode atuar no sentido de ajud-lo a distinguir valores sociais e morais.

    A responsabilidade um dos sentimentos que o educador deve buscar promover no adoles-cente, uma vez que ela tem ingredientes capazes de mobilizar essa faixa etria graas as suas carac-tersticas especficas, pois responsabilidade repre-senta, segundo Wallon (1975):

    "Tomar a seu cargo o xito de uma ao que executada em colaborao com outros ou em proveito de uma coletividade. A responsabilidade confere um direito de domnio por uma causa, mas tambm um

  • dever de sacrifcio, o que significa que o adolescente responsvel aquele que deve se sacrificar mais por tarefas sociais que contribuem para o crescimento e desenvolvimento da coletividade e do grupo". (p. 222)

    O professor pode, desta forma, auxiliar o ado-lescente em suas indecises e angstias, propon-do atividades que propiciem o reconhecimento de suas tendncias e o cultivo de aptides orien-tando a proposio de metas e objetivos futuros.

    Consideraes finais

    Com certeza, a tarefa de educar demanda pos-turas e conhecimentos diferenciados da parte do professor, pois ele desempenha o papel de media-dor do processo escolar de aquisio da cultura pelo aluno, e, portanto, de cultivador de aptides. Desta forma, apresenta-se-nos uma tarefa com-plexa, que requer habilidades e conhecimentos especficos, autoconhecimento e conhecimento do universo social do professor e do aluno, para a ento tomar decises comprometidas com a constituio da pessoa do aluno.

    O conhecimento do desenvolvimento do alu-no, das necessidades especficas de cada etapa, deve pautar a prtica pedaggica, que uma interveno nesse processo em determinada direo, a ser feita de maneira consciente e res-ponsvel, em consonncia com valores morais e sociais, objetivos e metas educacionais.

    Falar sobre infncia e adolescncia representa, de incio, uma dificuldade, por serem elas, antes de mais nada, construes culturais, situadas, datadas, cujas contraposies com o universo do adulto podem ser diversificadas.

    Para compreendermos a criana e o adolescente de hoje, til .s:,ompreendermos como esses con-ceitos, desde a sua origem, evoluram atravs dos tempos, chegando at ns. Necessrio tambm procurar conhecer e compreender em que circuns-tncias o referencial terico que norteia o nosso olhar foi produzido, para, ao analis-lo, sermos capazes de verificar o que precisa ser revisto e readaptado em funo de condies existenciais distintas daquelas em que a teoria foi produzida.

    Alm disso, faz-se ainda necessrio termos clareza dos pressupostos que norteiam a nossa viso de criana e adolescente constituda ao lon-go de nossa trajetria pessoal, como pessoas e sujeitos histricos. Conhecer esses pressupostos, a princpio, tomar-se capaz de redimension-los para maior adequao realidade objetiva e s nossas metas e objetivos como professores e, portanto, interventores no processo de desen-volvimento de nossos alunos.

    As novas geraes levantam a necessidade de outra avaliao das relaes interpessoais e da relao com o conhecimento. H necessidade de pesquisas capazes de proporcionar uma melhor compreenso dessas relaes, gerando bases para novas prticas pedaggicas.

    Costumamos ouvir dos professores discursos sobre a importncia de formarmos alunos conscientes, cujos valores ticos e morais lhes possibilitem exercer o papel de cidados. Mas, como faz-lo?

    Acreditamos que a teoria de Wallon, por seu forte lastro orgnico, o que a ancora nas aptides caractersticas da espcie, e por sua essncia so-ciocultural relativista, capaz de contribuir para a compreenso do desenvolvimento das crianas e dos adolescentes de nossos tempos e cultura, ao mesmo tempo em que suas idias pedaggicas nos parecem bastante adequadas ao tipo de escola capaz de atender aos interesses e necessidades de nossos alunos da era digital.

    Uma reflexo extremamente relevante sobre as implicaes da teoria de Wallon para a edu-cao, especificamente sobre o papel do professor, nos apresentada por Almeida (2000):

    "Wallon, psiclogo e educador, legou-nos muitas outras lies. A ns, professores, duas so particu-larmente importantes. Somos pessoas completas: com afeto, cognio e movimento, e nos relacionamos com um aluno, tambm pessoa completa, integral, com afeto, cognio e movimento. Somos componentes privilegiados do meio de nosso aluno". (p.86)

    Conseqncia da presente interpretao da teoria e princpios wallonianos, a concepo do

  • professor como pessoa completa e de seu papel como mediador da cultura de seu tempo e, por-tanto, um cultivador das novas aptides possibili-tadas por ela.

    Impe-se-nos desta forma uma importante questo: estaremos ns preparados para sermos mediadores da cultura digital? Temos ns prprios, professores-pessoas, desenvolvidas as aptides prprias desta cultura? Estamos aptos a exercer nosso papel como interventores no processo de desenvolvimento de nossos alunos no sentido de promover a aquisio de conhecimentos e valores adequados formao do cidado desta nova era?

    Que tipo de formao deve ser propiciada pessoa do professor, para que, em seu encontro com a pessoa do aluno, seja capaz de desem-penhar bem o seu papel de mediador da cultura de seu tempo, que chamamos aqui de cultura

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Augusto Guzzo Revista Acadm ica

    digital, cultivando nele aptides compatveis com ela, de forma que o ensino ministrado por ele seja uma preparao suficiente para o exerccio de qualquer funo que se poder oferecer mais tarde?

    Temos pela frente ainda um longo caminho a percorrer at que sejamos capazes de dar alguma resposta a esta pergunta, mas acreditamos que para faz-lo necessrio investir na formao da pessoa do professor, principalmente na formao contnua, considerando a sua experincia na es-cola, diante do aluno, lugar em que se constitui professor. A este respeito nos diz Wallon (1975):

    'f\ formao psicolgica dos professores no pode ficar limitada aos livros. Deve ter referncia perptua nas experincias pedaggicas que eles prprios podem pessoalmente realizar". (p.366)

    ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Wallon e a Educao. ln: Henri Wallon: Psicologia e educao. So Paulo: Loyola, 2000. MAHONEY, Abigail Alvarenga. Introduo. ln: Henri Wallon: Psicologia e educao. So Paulo: Loyola, 2000. WALLON, Henri. Psicologia e educao da infncia. Lisboa: Estampa, 1975. ___ .Do acto ao pensamento. Lisboa: Moraes, 1979.