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JBG, J. bras. gastroenterol., Rio de Janeiro, v.6, n.2, p.59-68, out./dez. 2006 59 Carlos Sandoval Gonçalves, Maria da Penha Zago Gomes, Patrícia Lofêgo Gonçalves, Luciana Lofêgo Gonçalves, Fausto Edmundo Lima Pereira Centro Biomédico. Universidade Federal do Espírito Santo e Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes, Vitória (ES) ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO Hepatite alcoólica Alcoholic hepatitis INTRODUÇÃO O alcoolismo é um importante problema de saúde pública em todo o mundo, especialmente nos paises ocidentais e industrializados, causando grande impac- to social e elevados custos financeiros. Aproximada- mente 7,5% da população dos Estados Unidos preen- chem critérios de uso abusivo de álcool (11% em ho- mens e 4% em mulheres). Os custos de todos os even- tos associados ao uso abusivo do álcool naquele país foram estimados em 184 bilhões de dólares em 1998, dos quais 26 bilhões foram gastos diretamente com saúde. O problema é crescente em países em desen- volvimento. No Brasil, um dos principais produtores mundiais de destilados, a bebida mais produzida é a aguardente de cana, que tem alto teor alcoólico e bai- xo custo, podendo ser consumida em larga escala pela população de baixa renda. O alcoolismo deve ser visto como uma doença com- plexa, que pode acometer praticamente todos os órgãos, e não como um comportamento irresponsável do indiví- duo. Dentre as inúmeras doenças relacionadas ao alcoo- lismo crônico, a hepatopatia alcoólica se destaca, pela sua freqüência e mortalidade. 2 Basta citar que a cirrose hepática de etiologia alcoólica é uma das principais cau- sas de morte em homens entre 25-64 anos de idade, nos grandes centros urbanos dos Estados Unidos, Canadá e México. No nosso meio, o alcoolismo é um dos fatores etiológicos mais comuns de hepatopatias crônicas. Na casuística do Ambulatório de Hepatologia do Hospital Uni- versitário Cassiano Antonio Moraes, da Universidade Fe- deral do Espírito Santo, que tem um programa de atendi- mento a alcoolistas crônicos e que é centro de referência em hepatites virais no estado, o alcoolismo continua sen- do a causa mais comum de cirrose hepática: em mais de mil casos de cirrose hepática, estudados prospectiva e consecutivamente no período de janeiro de 1993 a setem- bro de 2005, o álcool foi fator etiológico isolado em apro- ximadamente 40% dos casos. Mesmo nas regiões do Brasil e do mundo em que a principal etiologia da cirrose é a infecção crônica pelo vírus C, o álcool tem também importante papel na gênese da doença. HEPATOPATIA ALCOÓLICA Existem três formas principais de doença hepática al- coólica: esteatose, hepatite alcoólica e cirrose. Essa divi- são é esquemática, já que os limites entre as formas anatomoclínicas não são bem definidos, e com freqüência as três lesões coexistem no mesmo paciente. Mais que entidades separadas, a esteatose, a hepatite alcoólica e a cirrose representam etapas evolutivas de um mesmo pro- cesso patológico. Na primeira etapa, o aspecto histológico característico é a esteatose, depois predominam a necrose e inflamação, com surgimento de fibrose (hepatite alcoóli- ca), que nas fases mais avançadas subvertem a arquitetu- ra hepática, com formação de cirrose e desenvolvimento de hipertensão portal e insuficiência hepática. A hepatite alcoólica é a fase intermediária da doença hepática alcoólica e considerada lesão pré-cirrótica. Atu- almente se admite a possibilidade de evolução para cirro- se sem passar obrigatoriamente pelo estádio de hepatite alcoólica. Nesses casos, ainda na fase de esteatose, haveria formação de fibrose perivenular, que poderia evo- luir para fibrose septal e cirrose, na ausência de quadro histológico típico de hepatite alcoólica. O assunto é con- trovertido, mas parece não haver dúvidas de que a pre- sença de fibrose perivenular, em fase de esteatose, sem evidências nítidas de necrose e inflamação, pode indicar tendência evolutiva para formas mais graves e fibrosantes da doença. CONCEITO E ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS DA HEPATITE ALCOÓLICA A hepatite alcoólica é conceituada como uma altera- ção degenerativa e inflamatória do fígado, causada por uso abusivo e prolongado de etanol. Geralmente a ingestão de álcool é superior a 160 gramas por dia, e por mais de dez anos. No entanto, a quantidade pode ser menor, en-

hepatite alcoolica

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JBG, J. bras. gastroenterol., Rio de Janeiro, v.6, n.2, p.59-68, out./dez. 2006 59

Carlos Sandoval Gonçalves, Maria da Penha Zago Gomes,Patrícia Lofêgo Gonçalves, Luciana Lofêgo Gonçalves, Fausto Edmundo Lima Pereira

Centro Biomédico. Universidade Federal do Espírito Santo e Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes, Vitória (ES)

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

Hepatite alcoólicaAlcoholic hepatitis

INTRODUÇÃO

O alcoolismo é um importante problema de saúdepública em todo o mundo, especialmente nos paisesocidentais e industrializados, causando grande impac-to social e elevados custos financeiros. Aproximada-mente 7,5% da população dos Estados Unidos preen-chem critérios de uso abusivo de álcool (11% em ho-mens e 4% em mulheres). Os custos de todos os even-tos associados ao uso abusivo do álcool naquele paísforam estimados em 184 bilhões de dólares em 1998,dos quais 26 bilhões foram gastos diretamente comsaúde. O problema é crescente em países em desen-volvimento. No Brasil, um dos principais produtoresmundiais de destilados, a bebida mais produzida é aaguardente de cana, que tem alto teor alcoólico e bai-xo custo, podendo ser consumida em larga escala pelapopulação de baixa renda.

O alcoolismo deve ser visto como uma doença com-plexa, que pode acometer praticamente todos os órgãos,e não como um comportamento irresponsável do indiví-duo. Dentre as inúmeras doenças relacionadas ao alcoo-lismo crônico, a hepatopatia alcoólica se destaca, pelasua freqüência e mortalidade.2 Basta citar que a cirrosehepática de etiologia alcoólica é uma das principais cau-sas de morte em homens entre 25-64 anos de idade, nosgrandes centros urbanos dos Estados Unidos, Canadá eMéxico. No nosso meio, o alcoolismo é um dos fatoresetiológicos mais comuns de hepatopatias crônicas. Nacasuística do Ambulatório de Hepatologia do Hospital Uni-versitário Cassiano Antonio Moraes, da Universidade Fe-deral do Espírito Santo, que tem um programa de atendi-mento a alcoolistas crônicos e que é centro de referênciaem hepatites virais no estado, o alcoolismo continua sen-do a causa mais comum de cirrose hepática: em mais demil casos de cirrose hepática, estudados prospectiva econsecutivamente no período de janeiro de 1993 a setem-bro de 2005, o álcool foi fator etiológico isolado em apro-ximadamente 40% dos casos. Mesmo nas regiões doBrasil e do mundo em que a principal etiologia da cirrose

é a infecção crônica pelo vírus C, o álcool tem tambémimportante papel na gênese da doença.

HEPATOPATIA ALCOÓLICA

Existem três formas principais de doença hepática al-coólica: esteatose, hepatite alcoólica e cirrose. Essa divi-são é esquemática, já que os limites entre as formasanatomoclínicas não são bem definidos, e com freqüênciaas três lesões coexistem no mesmo paciente. Mais queentidades separadas, a esteatose, a hepatite alcoólica e acirrose representam etapas evolutivas de um mesmo pro-cesso patológico. Na primeira etapa, o aspecto histológicocaracterístico é a esteatose, depois predominam a necrosee inflamação, com surgimento de fibrose (hepatite alcoóli-ca), que nas fases mais avançadas subvertem a arquitetu-ra hepática, com formação de cirrose e desenvolvimentode hipertensão portal e insuficiência hepática.

A hepatite alcoólica é a fase intermediária da doençahepática alcoólica e considerada lesão pré-cirrótica. Atu-almente se admite a possibilidade de evolução para cirro-se sem passar obrigatoriamente pelo estádio de hepatitealcoólica. Nesses casos, ainda na fase de esteatose,haveria formação de fibrose perivenular, que poderia evo-luir para fibrose septal e cirrose, na ausência de quadrohistológico típico de hepatite alcoólica. O assunto é con-trovertido, mas parece não haver dúvidas de que a pre-sença de fibrose perivenular, em fase de esteatose, semevidências nítidas de necrose e inflamação, pode indicartendência evolutiva para formas mais graves e fibrosantesda doença.

CONCEITO E ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS DAHEPATITE ALCOÓLICA

A hepatite alcoólica é conceituada como uma altera-ção degenerativa e inflamatória do fígado, causada poruso abusivo e prolongado de etanol. Geralmente a ingestãode álcool é superior a 160 gramas por dia, e por mais dedez anos. No entanto, a quantidade pode ser menor, en-

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tre 80 a 160 gramas, e por menor tempo. Apesar dasalterações histológicas terem sido descritas por Malloryem 1911, a expressão hepatite alcoólica foi empregadapela primeira vez por Beckett e colaboradores em 1961,em relato de alguns poucos casos. A partir daí, a entida-de passou a receber atenções crescentes na literaturamédica.

Como a maior parte dos casos é assintomática ouoligossintomática, a real incidência da hepatite alcoólicaé desconhecida. Na literatura há dados sobre freqüênciada doença em grupos heterogêneos de alcoolistas sub-metidos à biópsia hepática, geralmente internados emhospitais gerais, muitos já com sinais de hepatopatia avan-çada. Nos Estados Unidos, estudo cooperativo incluindovários hospitais de veteranos identificou hepatite alcoóli-ca em 33,8% de 995 alcoolistas biopsiados.4 No nossomeio, em mil alcoolistas submetidos à biópsia hepáticano Serviço de Gastroenterologia do Hospital UniversitárioCassiano Antônio Moraes, no Espírito Santo, diagnosti-camos hepatite alcoólica em 27,1% dos casos. Por ou-tro lado, quando investigamos apenas os alcoolistas semsinais ou sintomas de hepatopatia avançada, observa-mos ocorrência de hepatite alcoólica em 7%.5 Certamen-te a doença é muito mais comum do que se diagnostica,ficando a maior parte dos casos sem identificação.

Em 271 casos de hepatite alcoólica estudados até1997 em nosso serviço, a relação masculino/feminino foide 7:1. No entanto, as mulheres são mais susceptíveisque os homens à ação tóxica do etanol, desenvolvendolesões mais graves, em menor tempo e com menoringestão de álcool. As razões da maior susceptibilidadedas mulheres são várias e discutíveis: menor concentra-ção de álcool-desidrogenase gástrica, diminuindo o me-tabolismo gástrico do etanol; menor volume de distribui-ção do álcool nas mulheres, devido ao maior teor de gor-dura e menor percentual de água corporal, o que resultaem uma maior alcoolemia; e fatores hormonais, influenci-ando os mecanismos imunitários e metabólicos.3 A mé-dia de idade dos nossos pacientes foi de 40 anos, commediana de 45 anos, sem diferença significativa entre ho-mens e mulheres. Quando o diagnóstico foi estabeleci-do, 38% casos já tinham cirrose, indicando que o diag-nóstico é feito em fase avançada da doença em quase 2/3 dos pacientes. Alguns aspectos epidemiológicos doscasos diagnosticados em Vitória estão no Quadro 1.

PATOGÊNESE

As principais lesões da hepatite alcoólica – esteatose,corpos hialinos, inflamação e fibrose – não dependemexclusivamente do metabolismo do etanol, mas tambémde fatores genéticos e ambientais, o que em parte justifi-ca o desenvolvimento da doença somente em uma pe-

quena parcela dos indivíduos que usam abusivamente oetanol. A ação de fatores ambientais é facilitada porquea ingestão crônica do etanol torna o hepatócito maissusceptível à lesão induzida por outros agentes. Os fa-tores genéticos interferem com as enzimas que partici-pam do metabolismo do etanol e/ou com a criação decondições que produzam alterações metabólicas, quesomadas às induzidas pelo etanol, podem produzir ouagravar lesões.

A ação lesiva do etanol pode estar relacionada à açãodireta de seus metabólitos ou à absorção de endotoxinasdo intestino, decorrente da redução da barreira intestinalinduzida pelo etanol. Na Figura 1 estão resumidos ospossíveis mecanismos através dos quais o uso abusivodo etanol produz as lesões mais características da hepa-tite alcoólica.

Oxidado no citosol ou no retículo endoplasmático, oetanol produz grande quantidade de acetaldeído e de ra-dicais livres derivados do álcool (radicais hidroxi-etil) e dooxigênio, com aumento do estresse oxidativo na célula.Os radicais livres produzem peroxidação lipídica e de pro-teínas, com formação de produtos como malondialdeidoe 4-hidroxinonenal, que juntamente com o acetaldeído ecom os radicais hidroxi-etil, interagem com várias proteí-nas do hepatócito, induzindo alterações funcionais e for-mação de novos antígenos. As alterações em membra-nas de organelas, especialmente de mitocôndrias e deretículo endoplásmico, produzidas pela peroxidaçãolipídica, são responsáveis pela degeneração hidrópica(acúmulo de água e eletrólitos), lesão freqüentemente en-contrada na hepatopatia alcoólica, e que confere aoshepatócitos aspecto de célula vegetal.

Além da agressão direta causada pelo estresseoxidativo, todos os metabólitos gerados pelo oxidaçãodo etanol podem interagir com aminoácidos, provocandouma série de alterações funcionais e morfológicas. Porexemplo, as alterações em tubulina prejudicam o trans-porte citoplasmático, com acúmulo de triglicerídios e pro-teínas no hepatócito. Já as modificações nas proteínasdo citoesqueleto, como citoqueratinas, resultam em de-pósito hialinos no citosol (corpos de Mallory). O surgi-

Quadro 1Aspectos epidemiológicos da hepatite alcoólica em 271 casos em

1.000 alcoolistas atendidos e biopsiados noServiço de Gastroenterologia do Hospital Universitário

Cassiano A Morais, em Vitória ES (1967-1999)

· Número ................................ 271 (27,1%)

· Sexo ..................................... M= 237; F= 34; M/F: 7:1

· Idade .................................... Média: 39,9 anos; Mediana: 40 anos

· Sem cirrose ......................... 168 (62%)

· Com cirrose ......................... 103 (38%)

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mento de novos epítopos induzem o sistema imune aproduzir anticorpos, células T auxiliares e citotóxicas,capazes de agredir hepatócitos, contribuindo para necrosee inflamação.

Por outro lado, o etanol favorece a absorção de endo-toxinas e outros produtos da flora intestinal, que agemsobre as células de Kupffer promovendo produção decitocinas (especialmente TNF alfa, mas também IL-1, IL-6 e IL-8), favorecendo a inflamação, a agressão hepato-citária e a estimulação das células estreladas, com indu-ção de fibrose.

O infiltrado de neutrófilos na hepatite alcoólica deve-se à produção de grande quantidade da quimiocina CxCL8 (IL-8) por parte das células de Kupffer, ativadas não sópelos metabólitos do etanol (acetaldeido e radicais livres),como pelos produtos bacterianos absorvidos do intesti-no. Também os hepatócitos em estresse oxidativo produ-zem e liberam citocinas (IL-1 e TNF) e quimiocinas (IL-8),que favorecem a migração dos neutrófilos.

A fibogênese é aspecto importante na hepatite alcoó-lica. A fibrose progressiva se deve à ativação de todas ascélulas produtoras de matriz extracelular no fígado: ascélulas estreladas e os fibroblastos e miofibroblastos dosespaços porta. Essa ativação, principalmente das célulasestreladas, se faz por ação de citocinas (TNF alfa, IL-1)produzidas pelas células de Kupffer e pelos fagócitos dosfocos inflamatórios, e também por ação direta do acetal-deido, dos radicais livres e aldeídos gerados por pero-xidação lipídica. Essa ativação das células estreladas

diretamente pelo acetaldeido e radicais li-vres explica porque, mesmo na ausênciade inflamação, pode ocorrer a fibrose peri-sinusoidal, característica da hepatopatiaalcoólica crônica.

Além dos efeitos diretos sobre os hepa-tócitos, capazes de produzir degeneraçãoe necrose e gerar inflamação, o metabo-lismo do etanol torna o hepatócito maissusceptível a sofrer necrose e apoptosepor ação de outras agressões, especial-mente porque torna a célula mais sensí-vel aos efeitos lesivos mediados pelo TNFe outros agonistas indutores de apoptose.Há evidências de relação direta entre ní-veis mais elevados de TNF (no fígado e ouna circulação) e gravidade da lesão hepá-tica, em alcoolistas e em modelos experi-mentais de intoxicação etílica. Essa sen-sibilização ao TNF se deve à criação deum ambiente redutor dentro dos hepa-tócitos, criado pelos radicais livres gera-dos pelo etanol no REL, o que pode, atra-vés da tioredoxina, alterar algumas vias

de ativação do TNF. Há facilitação das rotas que induzemapoptose e ou necrose, e inibição das chamadas rotasde ativação da sobrevivência, que induzem mecanismosanti-apoptóticos e tornam a célula mais resistente aoestresse. Além disso, há também aumento da síntese dereceptores Fas, que na presença do agonista (ligante doFas, Fas-L) induz apoptose.

Dos fatores ambientais, o ferro parece mais importan-te: o aumento de sua concentração nos hepatócitos favo-rece a geração de radicais livres, agravando assim osmecanismos de agressão hepatocitária. Pacientes comaumento de absorção de ferro que são alcoolistas crôni-cos tendem a desenvolver lesão hepática progressiva commaior freqüência. Há também relação bastante estreitaentre os níveis de ferro nos hepatócitos e a progressãoda hepatopatia alcoólica.

Os fatores genéticos são importantes porque podemalterar a expressão de diferentes isoformas de desidro-genases alcoólica e do acetaldeido, CYP2E e de recep-tores do TNF, criando condições para geração de maiorquantidade de metabólitos tóxicos do etanol, ou para tor-nar o hepatócito mais susceptível aos seus efeitos.

Esses conhecimentos sobre a patogênese da hepati-te alcoólica, obtidos de dados experimentais ou de estu-dos de células humanas “in vitro”, tem sido confirmadosem observações clínicas, que já demonstraram altos ní-veis plasmáticos de IL-1, TNFa, e especialmente de IL-6em pacientes com hepatite alcoólica, com correlação po-sitiva com a gravidade da lesão. Tem sido demonstrado

HEPATITE ALCOÓLICA

Fig. 1. Esquema mostrando os diferentes mecanismos patogenéticos envolvidos nahepatite alcoólica. REL:retículo endoplasmático liso; ADH e AlDH: álcool e acetaldeídodesidrogenases; Ac: anticorpos; LT:linfócitos T; TNFa: fator de necrose tumoral alfa; IL-1:interleucina 1; TGFb: fator de crescimento transformador beta.

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que mutações gênicas (polimorfismos), ligadas ao con-trole da resposta imunitária inata e adaptativa, se relacio-nam com a maior ou menor gravidade da hepatite alcoó-lica, em diferentes indivíduos.

ASPECTOS CLÍNICOS

Como ocorre com a hepatite viral e com a hepatitemedicamentosa, a hepatite alcoólica tem amplo espec-tro clínico, variando de formas totalmente assintomáticasa quadros fulminantes. Os casos assintomáticos e asformas brandas são muito mais freqüentes que os casosgraves. Não há dúvida de que a hepatite alcoólica podeevoluir de forma assintomática, ou com poucos sintomas,por muito tempo, insidiosamente, até a cirrose hepática,sendo o quadro histológico muito mais comum que aexpressão clínica da doença.

A existência de casos subclínicos, com potencialevolutivo para formas fibrogênicas avançadas, enfatiza anecessidade da investigação precoce do alcoolista crôni-co, antes do aparecimento de sinais evidentes de lesãohepática importante. Por outro lado, as formas graves,menos comuns, podem ser dramáticas, com evoluçãopara insuficiência hepática e óbito em poucos dias ousemanas. Embora possam ocorrer em fígado até entãoapenas com esteatose, os quadros fulminantes geralmen-te são devidos a surtos de hepatite alcoólica em fígado jácirrótico.

O quadro clínico típico da hepatite alcoólica é o de umalcoolista crônico, com aumento recente de ingestão deálcool, que passa a apresentar dor no hipocôndrio direito,febre, icterícia e hepatomegalia dolorosa, podendo ou nãoter outros sinais de insuficiência hepática e/ou hiperten-são portal (esplenomegalia, ascite, aranhas vasculares,eritema palmar, etc.). Esse quadro, apesar de muito su-gestivo de hepatite alcoólica, é pouco freqüente, e não sedeve esperar por manifestações tão evidentes para sepensar no diagnóstico, sob pena de só se fazer diagnós-tico em uma minoria de casos mais avançados. O inícioda sintomatologia é geralmente insidioso, com manifes-tações inespecíficas, como anorexia, adinamia, náusease vômitos. A hepatomegalia, muitas vezes dolorosa, é osinal clínico mais encontrado, e estava presente em 92%de 271 casos diagnosticados em Vitória; já a espleno-megalia só foi identificada em 20%. Observamos icteríciaem 60% dos casos, mas vale lembrar que os casos le-ves, oligossintomáticos, sem icterícia, com freqüência nãosão diagnosticados. Ascite, dor abdominal e febre foramregistrados aproximadamente em um terço dos pacien-tes. Infecção, hemorragia digestiva e encefalopatia foramobservados respectivamente em 12%, 16% e 12% doscasos. Embora a desnutrição seja muito comum nestetipo de paciente, em um quarto dos casos o estado

nutricional foi considerado regular ou bom no momentodo diagnóstico.

Laboratorialmente são importantes a presença de ane-mia macrocítica, leucocitose, hiperbilirrubinemia variável,transaminases caracteristicamente pouco elevadas e compredomínio da AST sobre a ALT. A anemia macrocítica,observada freqüentemente no alcoolista crônico, pode serdevida a deficiência de folato e/ou a ação direta do etanolno desenvolvimento dos eritrócitos. Leucocitose modera-da esteve presente em 50% dos casos. A leucocitose émaior nos casos mais graves, e a literatura registra ca-sos de até 130 mil leucócitos. Já observamos pacientecom 64 mil leucócitos. A hiperbilirrubinemia geralmentenão é acentuada, e na nossa casuística esteve presenteem 2/3 dos casos, com valor médio de 5 mg%. Tipica-mente o aumento das transaminases é pequeno ou mo-derado, raramente ultrapassando 400 unidades, com re-lação de AST/ALT acima de 2, ao contrário do observadonas hepatites virais. A deficiência de piridoxina, observa-da em alcoolistas, é a explicação para a elevação menorda ALT na hepatite alcoólica. A AST média em nossoscasos foi de 200 U, e quando raramente o limite de 400 Ué ultrapassado, vale a pena pensar em outras etiologias,como toxicidade por drogas ou hepatite viral.17 Amino-transferases normais não excluem o diagnóstico de he-patite alcoólica, ocorrendo em 10% dos casos. A fosfatasealcalina está um pouco alterada, e a gama GT invariavel-mente elevada. A atividade de protrombina, embora nãosendo teste diagnóstico, é o exame isolado que melhoravalia o prognóstico imediato da hepatite alcoólica.Hiperbilirrubinemia acentuada é outro indicador de mauprognóstico. A hipoalbuminemia é comum. Na prática, astrês alterações mais indicativas de etiologia alcoólica sãoAST/ALT maior que 2, macrocitose e elevação de GamaGT, com sensibilidade de 35%-73% e especificidade de75%-86% .

As alterações clínicas e laboratoriais mais indicativasde hepatite alcoólica estão resumidas no quadro 2 .

DIAGNÓSTICO. ALTERAÇÕES HISTOLÓGICAS

Como as manifestações clínicas e laboratoriais dahepatite alcoólica são inespecíficas, o diagnóstico da

Quadro 2Hepatite alcoólica: suspeição clínica e laboratorial

• Ingestão abusiva de etanol • Macrocitose

• Aumento recente de ingestão • Leucicitose

• Hepatomegalia dolorosa • Gama GT elevada

• Febre • AST > ALT (geralmente > 2)

• Sinais de hepatopatia crônica

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doença deve ser estabelecido em bases histológicas. Ahistologia permite não só o diagnóstico da hepatite alco-ólica, mas também pode identificar outras lesões quepodem ocorrer no alcoolista crônico. Em futuro próximo,é provável que marcadores sorológicos de fibrogênese,isoladamente ou em conjunto de testes (como por exem-plo o fibroscore e outros), possam substituir a biópsiahepática na avaliação da fibrose na hepatopatia alcoóli-ca. No momento, na prática clínica, a biópsia hepáticapermanece ainda como o padrão ouro no diagnóstico eestadiamento da doença. Quando a biópsia é contra-indicada, geralmente por distúrbios de coagulação, o di-agnóstico será presuntivo, baseado em dados epide-miológicos, clínicos e laboratoriais.

À semelhança do que ocorre com o quadro clinico,existe um amplo espectro de manifestações histológicas,variando de processo inflamatório intenso, no qual o ter-mo hepatite é bem aplicado, a quadros com lesão hepato-celular e infiltrado inflamatório de menor intensidade. Adistribuição zonal das lesões é uma das característicasda hepatite alcoólica, sendo a região centrolobular (zona3 do ácino hepático) a mais intensamente acometida,por várias razões: recebe oxigênio sob menor tensão; ahipóxia relativa é exacerbada pela anemia e pelo estadohipermetabólico, comuns nos alcoolistas crônicos; mai-or concentração de citocromo P450, com maior produ-ção de acetaldeído e de radicais livres. O corpúsculohialino de Mallory, material eosinofílico de localizaçãoperinuclear, é muito sugestivo de hepatite alcoólica, so-bretudo quando localizado na região centrolobular, masnão é nem necessário para o diagnóstico, nempatognomônico da doença. O infiltrado infla-matório, com predomínio de neutrófilos, estámais relacionado às áreas de necrose e à pre-sença dos corpos de Mallory. Às vezes, exis-te grande discrepância entre a intensidade danecrose e do infiltrado inflamatório: casos denecrose submaçica com escasso infiltrado in-flamatório, e casos com grande exsudaçãoneutrofílica com pouca lesão hepatocelular. Aintensidade da inflamação guarda também re-lação temporal com o uso do etanol: se abiópsia for feita imediatamente após ainternação, a inflamação pode ser menos in-tensa do que o observado com biópsia reali-zada uma ou duas semanas após a paradado uso de etanol. Isso pode ser devido à açãoinibitória do etanol sobre a migração deleucócitos, à depressão medular causada peloálcool, ou por redução da adesividade dosleucócitos. A necrose e inflamação são estí-mulos importantes à formação da fibrose, queinicialmente é pericelular, subsinusoidal, com

predomínio centrolobular. Este tipo de fibrose é muito su-gestiva de doença hepática alcoólica, ou de esteato-he-patite não alcoólica (que tem quadro histológicoindistinguível da hepatite alcoólica), e raramente observa-da em outras hepatopatias crônicas. À medida que adoença progride, a fibrose se estende, aproxima estrutu-ras vasculares, insula hepatócitos, subvertendo a arqui-tetura hepática.

A transição entre hepatite alcoólica e cirrose é lenta egradual, e durante muito tempo as duas lesões co-exis-tem. Em aproximadamente 40% de nossos casos, jáhavia cirrose quando o diagnóstico de hepatite alcoólicafoi feito, o que indica diagnóstico tardio em proporçãosignificativa de casos. Os aspectos histológicos maisindicativos de progressão para cirrose são a extensão danecrose e da fibrose.

Na figura 2 estão alguns dos aspectos clássicos dahepatite alcoólica. No Quadro 3 estão listadas as altera-ções consideradas indispensáveis ao diagnóstico, e aque-las que, embora freqüentemente encontradas, não sãoobrigatórias para a caracterização da doença.

TRATAMENTO

O tratamento da hepatite alcoólica é suportivo e sinto-mático, e a única medida específica é a abstinência deálcool. O paciente deve ser internado, mesmo nos casoscom poucos sintomas, para que a retirada do etanol pos-sa ser assegurada, e para proporcionar ao paciente uma

HEPATITE ALCOÓLICA

Fig. 2 – Aspectos histológicos da hepatite alcoólica. A- Múltiplos focos de necrosecom infiltrado de neutrófilos. Presença de esteatose e de corpos de Mallory. B-Aspecto típico de um corpúsculo hialino de Mallory. C- Fibrose pericelular e infiltradode neutrófilos. D- Hepatite alcoólica em fase cirrótica.

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completa investigação diagnóstica, além de adequadasmedidas terapêuticas. Na fase inicial do tratamento, éfundamental que o paciente, freqüentemente comingestão calórica insuficiente (por anorexia, náuseas evômitos), possa ingerir uma dieta adequada, com 30 ca-lorias e 1g de proteína por kg de peso. É necessáriocomplementação vitamínica e mineral, especialmente deelementos freqüentemente depletados no alcoolista, comotiamina, ácido fólico, piridoxina, magnésio, potássio.

O paciente com hepatite alcoólica está sujeito a umasérie de complicações, relacionados ao uso do etanolou à própria lesão hepática, que devem ser identificadasprecocemente e tratadas de modo adequado. A síndromede abstinência é frequente, não devendo ser confundidacom encefalopatia hepática. Recomenda-se dose baixade benzodiazepínicos nos pacientes já com certo graude insuficiência hepática, além de reposição de tiaminae magnésio. As infecções devem ser procuradas ativa-mente e, quando identificadas, tratadas de imediato.Atenção especial merece a peritonite bacteriana espon-tânea: a punção e o exame do líquido ascítico devemser realizados sistematicamente nos pacientes comascite. Em caso de peritonite bacteriana espontânea,estar atento à possibilidade de evolução para insuficiên-cia renal e, além de esquema adequado de antibióticosnão nefrotóxicos, deve-se expandir volume plamático cominfusão de albumina humana. O uso de diuréticos deveser sempre cauteloso. Monitorizar o desenvolvimento deinsuficiência renal e hipercalemia. A encefalopatia deveser prevenida nos pacientes com insuficiência hepática,e tratada com restrição protéica, neomicina metronidazole lactulose.

Nos casos mais graves, várias medidas terapêuticasespeciais tem sido propostas, algumas bem estudadas

e que podem ser adotadas na prática clínica, e outrasainda em fase experimental.13,14,27,28,30

a) Corticosteróides.O uso de corticosteróides é a medida especial mais

estudada e empregada nas formas graves de hepatite al-coólica. A despeito de treze estudos controlados e deseis metanálises, existem ainda controvérsias a respeitodo emprego da medicação. Teoricamente a droga é útil,pois inibe a produção de citocinas; diminui a ativação decélulas estreladas e aumenta a produção de colagenase;reduz a quimiotaxia de leucócitos ; e aumenta a ingestãocalórica e a síntese de albumina. No entanto, não modifi-ca substancialmente as alterações histológicas, não di-minui o tempo de cura, não impede a evolução para cirro-se. Além disto, pode aumentar a susceptibilidade a infec-ções. Nos casos de menor gravidade, que são a imensamaioria, há um consenso de que a medicação não deveser utilizada.

Nos casos graves, de pior prognóstico imediato, comhiperbilirrubinemia acentuada e com atividade deprotrombina abaixo de 40%, ou nos pacientes com fun-ção discriminatória de Madrey (escore em que abilirrubinemia e o tempo de protrombina são avaliados)acima de 32 e/ou encefalopatia, a maioria dos trabalhossugere que a mortalidade imediata é diminuída em umsubgrupo de pacientes: com encefalopatia, mas sem in-fecção, insuficiência renal ou hemorragia digestiva. AAmerican Society of Gastroenterology recomenda, a par-tir de 1998, o uso da droga nos casos graves.

O objetivo principal com o uso de corticosteróides é aredução da mortalidade imediata. Quando usado por viaoral, a dose geralmente é de 40 mg de prednisona porquatro semanas, com redução gradual em mais quatrosemanas. Segundo Mathurin (2005), é possível identifi-car precocemente o paciente não respondedor aocorticóide, pela diferença entre bilirrubinemia no primeiroe sétimo dia de tratamento. Recente estudo multicêntrico,com inclusão de casos com função discriminatória deMadrey >32, conclui que: a) após 28 dias, a sobrevida foisignificativamente maior no grupo tratado; b) tratamentocom corticosteróide, idade e creatinina foram indicado-res independentes de sobrevida em 28 dias; c) a melhoracom a medicação é rápida e se inicia após o sétimo diade tratamento. A ação dos corticosteróides é mais evi-dente nos pacientes com presença maior de neutrófilosno sangue e no tecido hepático, já que nestes casos hámaior produção de citocinas, antagonizadas pela medi-cação. Outros argumentos a favor da droga são o baixocusto, a falta de efeitos colaterais graves a curto prazo e,sobretudo, a melhora na sobrevida imediata.

Em resumo: é provável que o uso de corticosteróidespossa beneficiar pacientes com hepatite alcoólica grave;

Quadro 3Diagnóstico histológico da hepatite alcoólica

Lesões consideradas Lesões freqüentes, nãoindispensáveis indispensáveis

• Necrose focal • Esteatose

• Degeneração hidrópica • Corpúsculos de Mallory

• Infiltrado neutrofílico • Necrose em ponte

• Fibrose pericelular • Apoptose

• Distribuição centrolobular • Proliferação ductular

das lesões • Megamitocôndrias

• Hepatócitos induzidos

• Colestase

• Fibrose invasiva

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mesmo assim a mortalidade ainda é alta, e um expressi-vo número de casos apresentam contra-indicações aouso da medicação.

b) Substâncias inibidoras de citocinas.Com base no importante papel patogênico desempe-

nhado por citocinas pró-inflamatórias na hepatite alcoóli-ca, substâncias com ação anticitocinas têm sido utiliza-das no tratamento da doença. A primeira, e a mais estu-dada até hoje, foi a pentoxifilina, que é inibidor seletivo dafosfodiesterase. No estudo pioneiro de Akriviadis, em 2000,a droga foi usada em 101 pacientes com hepatite alcoó-lica grave (função discriminante de Madrey >32), na dosede 400 mg três vezes ao dia por quatro semanas, comredução de 40% na mortalidade imediata. A redução sig-nificativa na mortalidade em relação aos controles foi ob-tida por diminuição na mortalidade por síndrome hepato-renal, sugerindo ação específica nesta grave complica-ção, geralmente fatal. A droga é bem tolerada e tem bai-xo custo. Mas são necessários outros estudos antes quea pentoxifilina seja utilizada de rotina. No Brasil, já existealguma experiência com a medicação, e um grupo deBrasília (Ferreira et al, Semana do Aparelho Digestivo,Recife 2004) em casuística ainda pequena (12 casos)observou tendência a redução de mortalidade.

Outras drogas que têm sido experimentadas são oinfliximabe, que é um anticorpo monoclonal contra TNFque bloqueia a atividade biológica da citocinas (usadoisolado ou associado a corticóide), e o etanercept, subs-tância que neutraliza o TNF solúvel. A experiência comestas substâncias ainda é pequena e já foram detecta-dos problemas com a utilização delas, como risco au-mentado de infecção e possível inibição de regeneraçãohepática. São necessários estudos controlados para ava-liar as duas drogas.

c) Suplementação Nutricional.A presença de má nutrição calórica e protéica é mui-

to comum no alcoolista crônico, especialmente nos pa-cientes com hepatopatia, sendo importante co-fatoretiológico na patogênese da doença hepática alcoólica.Os pacientes com freqüência têm deficiências em folato,tiamina, piridoxina e vitamina A. A principal causa dedesnutrição no alcoolista é a diminuição da ingestãoalimentar, mas também contribuem os distúrbios deabsorção, além de perdas excessivas e aumento nasnecessidades de nutrientes. As calorias fornecidas peloetanol são destituídas de valor biológico, sendo consi-deradas “calorias vazias”.

São várias as razões que justificam a suplementaçãonutricional na hepatite alcoólica:

a) presença freqüente de desnutrição;b) anorexia intensa nos primeiros dias de tratamen-

to, talvez relacionado a níveis elevados de fator de necrosetumoral, presente na hepatite alcoólica;

c) o prognóstico da doença é pior nos pacientes comdesnutrição mais intensa;

d) a suplementação nutricional (oral, enteral ouparenteral) melhora o estado nutricional, não causandonem agravando encefalopatia.

Apesar destas evidências, estudo controlado multi-cêntrico, com suplementação parenteral de aminoácidospor trinta dias em pacientes com hepatite alcoólica gra-ve, não diminuiu significativamente a mortalidade, embo-ra tenha melhorado parâmetros bioquímicos e nutri-cionais.36 Estudos recentes sugerem que associação denutrição enteral total e predinisolona pode representar umaboa estratégia de tratamento nas formas graves de hepa-tite alcoólica, merecendo estudos controlados.

Do ponto de vista prático, há indicação de suple-mentação nutricional quando o alcoolista não conseguiringerir a dieta adequada. Os preparados convencionaisde aminoácidos, bem tolerados, e mais econômicos,devem ser usados como primeira escolha, ficando o usode aminoácidos ramificados reservados aos pacientescom encefalopatia.

Em relação a suplementação dietética especial, assubstâncias S-adenosilmetionina (SAM) e fosfatidilcolinatêm sido muito estudadas nos últimos anos. O uso da S-adenosilmetionina (forma ativada da metionina) tem comofinalidade restaurar níveis depletados de metionina e deglutation, freqüentemente observados no alcoolista e re-lacionados com a susceptibilidade do fígado à ação daendotoxemia e de citocinas. Além disto, a deficiência deSAM pode causar, por redução das reações de metilação,lesão de membrana celular. Experimentalmente, em ma-cacos babuínos submetidos ao etanol, o uso de SAMmelhorou níveis de metionina e glutation. No entanto asubstância não parece ter efeito no metabolismo docolágeno. A fosfatidilcolina, princípio ativo da lecitinapolinsaturada, está também depletada em alcoolistascrônicos, e a sua administração tem importante ação nafibrogênese, diminuindo a ativação de células estreladase ativando a produção de colagenase. Experimentalmen-te, em macacos babuinos submetidos ao etanol, afosfatidilcolina impediu evolução para cirrose.

Também foi descrita em macacos a diminuindo doestresse oxidativo, com redução de 4-hidroxinonenal eF2-isoprostano. Estes resultados em animais despertougrande interesse e esperança com o uso da substância.No entanto, em estudo recente, multicêntrico, com gran-de número de pacientes alcoolistas que apresentavamfibrose ou cirrose inicial, e que mantinham ingestão mo-derada de etanol, o uso da droga não demonstrou benefí-cios em termos de prognóstico ou regressão da fibrose.Enquanto os estudos em animais avaliaram a substância

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CARLOS SANDOVAL GONÇALVES E COLABORADORES

na prevenção da doença alcoólica (com benefícios), emhumanos o que se objetivava era a reversão de altera-ções já constituídas, como fibrose e cirrose (sem benefí-cio aparente).

Em resumo, a suplementação dietética com S-adenosil metionina e fosfatidilcolina é terapia ainda expe-rimental, com alguns aspectos promissores, e outrosdecepcionantes.

d) Transplante hepático.O transplante hepático é uma alternativa viável para o

alcoolista cirrótico descompensado, apresentando resul-tados semelhantes a transplantes por outra etiologia.Como a maioria dos grupos de transplantes exige umaperíodo mínimo de seis meses de abstinência alcoólica,isto dificulta muito o transplante de pacientes com hepa-tite alcoólica grave ou cirróticos com surto de agudização,geralmente em fase ativa de ingestão de etanol. Mas exis-tem relatos de hepatite alcoólica transplantados com su-cesso, e o assunto tem merecido maior atenção. Após otransplante, não é raro o retorno ao alcoolismo, podendoo paciente evoluir rapidamente para formas graves dahepatopatia alcoólica.

e) MARS (molecular adsorvents recycling system)É um sistema de suporte da função hepática, à es-

pera de recuperação clínica do paciente ou realizaçãode transplante de fígado. O princípio é uma diálise dosangue em solução de albumina, com o intuito de remo-ver metabólitos tóxicos que se ligam à albumina, comobilirrubina e sais biliares. Estudos preliminares mostra-ram melhora de função renal, hepática e hemodinâmica,e é possível que o método possa aumentar a sobrevidade pacientes em lista de espera de transplante hepáti-co. É um método muito caro e que necessita ser melhoravaliado.

f) Vasoconstrictores e AlbuminaUma das principais causas de óbito na hepatite al-

coólica é o desenvolvimento de síndrome hepato-renal.Estudos recentes mostram que, em pacientes cirróticos,a infusão de substâncias vasosconstrictoras e albuminamelhora a sobrevida dos pacientes com síndrome hepato-renal. É possível que esta associação de drogas possatambém melhorar o prognóstico dos pacientes com he-patite alcoólica com insuficiência renal funcional, masisto ainda não foi demonstrado.

g) Outras medidasO uso de propiltiouracil no tratamento da hepatite al-

coólica foi baseado na teoria da existência de um estadohipermetabólico produzido pelo uso do etanol, que cau-

saria maior consumo de oxigênio e hipóxia na regiãocentrolobular. A droga diminuiria o estado hipermetabólico,reduzindo o consumo de oxigênio e a vulnerabilidade daregião central à hipóxia. A dose proposta foi de 300 mgpor dia. No entanto, os bons resultados obtidos pelo gru-po que idealizou o tratamento, a curto e a longo prazo,não foram confirmados por outros estudos. Mais recente-mente, não se demonstrou ação do propiltiouracil nahemodinâmica esplâncnica e sistêmica e na concentra-ção de oxigênio em pacientes alcoolistas, cirróticos ecom hepatite alcoólica. Também meta-análise recente nãorevelou nenhum efeito significativo da droga na mortalida-de e em complicações da hepatopatia alcoólica. Comjustificadas razões a droga não tem sido usada rotineira-mente no tratamento da hepatite alcoólica.

O uso de anabolizantes já foi utilizado, na década de60, com a finalidade de estimular a regeneração hepáti-ca, em alcoolistas com esteatose. Estudos controladosnão mostraram vantagem com o uso da droga, que foiabandonada. Nas décadas de 80 e 90, a utilização deoxandrolona, na dose de 80 mg por dia, por trinta dias, semostrou útil na hepatite alcoólica, com aumento desobrevida em pacientes com doença moderada (mas nãonos casos graves). Apesar disto, a droga acabou não tendogrande aceitação, e meta-análise recente não demons-trou benefícios com o uso de anabolizantes.

Baseados em estudo experimentais, infusão de insu-lina e glucagon foi utilizada com o objetivo de estimularregeneração hepática, com doses de 24 unidades de in-sulina e 2,4 mg de glucagon em soro glicosado de 12x12horas, durante 3-6 semanas. Na maioria dos estudos, amortalidade foi maior no grupo com a medicação, e emtodos houve relato de hipoglicemia, com um óbito. Estetipo de tratamento, além de experimental, é potencial-mente perigoso, não devendo ser usado na prática clíni-ca. Tratamento seguro para estimular regeneração hepá-tica infelizmente ainda não está disponível.

A colchicina foi usada a longo prazo no tratamento dacirrose hepática, sendo observada redução de mortalida-de por um grupo mexicano. Usado a curto prazo na hepa-tite alcoólica, não reduziu mortalidade. Seu valor a longoprazo, com a finalidade de prevenir cirrose, ainda não foidemonstrado. Metanálise recente não mostrou benefíci-os da droga na cirrose alcoólica.

A ingestão crônica de etanol e seu metabolismo pro-duz geração de radicais livres e reduz as defesasantioxidantes do organismos, com diminuição de tocoferol,selenium e glutation. Baseados nestes fatos, que têmcomprovação experimental, diversas substâncias supos-tamente com potencial antioxidante têm sido usadas notratamento da doença hepática alcoólica, como a vitami-na E, selênio, ácido tiótico e silimarina. Nenhuma delasmostrou ação convincente, e altas doses de antioxidantes

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não reduzem mortalidade de pacientes graves. Afosfatidilcolina e a S-adenosilmetionina, que podem serconsideradas antioxidantes, pois previnem peroxidaçãolipídica, já foram discutidas.

PROGNÓSTICO

O prognóstico da hepatite alcoólica é muito variável: amortalidade imediata pode variar de zero, em casosassintomáticos ou com sintomas leves, a mais de 80%,quando apenas casos graves são incluídos no estudo.Levantamento de literatura mostrou que quando apenascasos com diagnóstico histológico são incluídos, ou seja,sem alterações de coagulação importante, a mortalidadefoi de aproximadamente 7%. Os dados clínicos e labo-ratoriais indicativos de mau prognóstico imediato são ahemorragia digestiva, encefalopatia, insuficiência renal,icterícia e leucocitose intensa, hipoalbuminemia e ativi-dade de protrombina baixa. A presença de ascite e decirrose também são indicativas de mau prognóstico. Detodos, o que isoladamente mais se correlaciona com oprognóstico imediato é a atividade de protrombina. A Fun-ção Discriminatória de Madrey é um bom indicador prog-nóstico [4,6 x (TP em segundos – TP controle) + bilirrubinaem mg], e nos casos com valor superior a 32 a mortalida-de imediata passa de 50%.

A longo prazo, o prognóstico é pior nos pacientes quepermanecem com o uso abusivo de álcool, e nos que játêm cirrose e ascite.

DIAGNÓSTICO PRECOCE E PREVENÇÃO

Em fases avançadas, a doença hepática alcoólica éde difícil tratamento e de mau prognóstico, masdiagnosticada precocemente a doença pode ser reversí-vel, total ou parcialmente, se o alcoolista parar de beberou reduzir significativamente o uso de etanol. Emboramecanismos de fibrogênese já tenham sido ativados, e aprogressão para a cirrose possa ocorrer mesmo em paci-entes que param de beber, a hepatite alcoólica é condi-ção potencialmente reversível, e a abstinência alcoólicaproduz melhora dramática no quadro clínico, modificandode modo substancial a história natural da doença. Por-tanto, é perfeitamente compreensível que diagnósticoprecoce e abstinência sejam palavras fundamentais naabordagem do paciente com doença hepática alcoólica.É necessário identificar os alcoolistas com hepatopatiaem fase precoce. Como as alterações laboratoriais sãoinespecíficas, como não existem ainda disponíveis naprática clínica marcadores laboratoriais de fibrogênese, odiagnóstico deve ser estabelecido histologicamente, atéque marcadores de fibrogênese confiáveis sejam introdu-zidos na prática clínica. Existem controvérsias sobre o

uso da biópsia hepática na investigação da hepatopatiaalcoólica. Pensamos que a realização de biópsia hepáti-ca não é só aceitável, é indispensável para o diagnósticoe estadiamento da doença hepática alcoólica. É a únicamaneira de se identificar a fibrose perivenular, indicadorhistológico de tendência a progressão para doença avan-çada, possibilitando um acompanhamento mais cuida-doso naquele paciente com risco maior de desenvolvercirrose. Além disto, é capaz de diagnosticar ou sugeriroutra condições comuns a alcoolistas, como hepatitecrônica viral, doença granulomatosa, depósito excessivode ferro, entre outras. A idéia de que o alcoolista só deveser biopsiado quando apresenta sinais ou sintomas dehepatopatia avançada é um contra-senso. Pacienteictérico, com aranhas vasculares, com ascite, com fíga-do grosseiramente alterado no exame ultra-sonográfico,com varizes esofageanas – este paciente não precisa debiópsia, aliás, com freqüência nem pode ser biopsiado!Este é um alcoolista que deveria ter sido biopsiado (etratado) meses ou anos antes desta fase. A biópsia he-pática percutânea é procedimento seguro, bem toleradoe de baixo custo – capaz de fazer o diagnóstico e estadia-mento da doença. Além do diagnóstico precoce, é fun-damental o tratamento do paciente, que é um hepatopata,mas que antes de tudo é um alcoolista. Tratar a ascite,a hemorragia e as várias manifestações clínicas, daralta ao paciente e encaminhá-lo ao ambulatório comum,sem a preocupação básica de tratar a dependência aoálcool, é um erro cometido com freqüência nos melho-res hospitais, por excelentes gastroenterologistas ehepatologistas.

É preciso que o médico identifique o alcoolismo comodoença primária do paciente. Que se relacione com oalcoolista de modo sereno, sem preconceito, esclarecendoa natureza da doença (enfatizando que o paciente temrealmente uma doença), e deixando bem claro que o su-cesso do tratamento passa necessariamente pela para-da do uso de álcool.

O tratamento do alcoolista deve ser feito por equipemultidisciplinar, formada por profissionais com experiên-cia em tratamento de alcoolista. Este atendimento deveser realizado concomitantemente ao tratamento da do-ença hepática alcoólica e/ou de outras complicações doalcoolismo. Quando não se dispõe de uma estrutura quepermita este tipo de assistência, não deve o médico as-sistente relutar em encaminhar o paciente aos Alcoóli-cos Anônimos, que com métodos simples de valorizaçãode auto-estima têm prestado, há décadas, um inestimá-vel serviço aos pacientes alcoolistas. De qualquer forma,mesmo sem uma equipe especializada em tratamentode dependência, uma orientação segura por parte domédico assistente pode representar uma importante aju-da no tratamento do paciente.

HEPATITE ALCOÓLICA

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Há mais de 15 anos, no Hospital Universitário CassianoAntonio de Moraes, funciona um Programa Especial deAtendimento ao Alcoolista, ligado ao Serviço de Gastro-enterologia, com atendimento ambulatório diário. Os re-sultados obtidos têm sido gratificantes.

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Endereço para correspondênciaDr. Carlos Sandoval Gonçalves

Rua Eurico Aguiar 1096 – Bairro Santa Lucia29055-280 – Vitória-ES

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