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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA HIERARQUIA E ONTOLOGIA: O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA THALES DE OLIVEIRA MALHADO RIO DE JANEIRO 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

HIERARQUIA E ONTOLOGIA: O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA

THALES DE OLIVEIRA MALHADO

RIO DE JANEIRO 2007

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HIERARQUIA E ONTOLOGIA:

O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA

Thales de Oliveira Malhado

Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor, sob a orientação do Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira.

Rio de Janeiro

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

2007

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HIERARQUIA E ONTOLOGIA:

O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA

Thales de Oliveira Malhado

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.

Aprovada por:

_______________________________________________________

Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira

_______________________________________________________

Prof. Doutor Emmanuel Carneiro Leão

________________________________________________________

Prof. Doutor Fernando Augusto da Rocha Rodrigues

________________________________________________________

Prof. Doutor Izabela Aquino Bocayuva

________________________________________________________

Prof. Doutor Marcus Reis Pinheiro

Rio de Janeiro, RJ – Brasil - 2007

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Malhado, Thales de Oliveira Hierarquia e Ontologia: O Motor Imóvel no Livro XII da Metafísica Thales de Oliveira Malhado. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGF – IFCS, 2007 350p Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGF – IFCS. 1. Filosofia Antiga. 2. Aristóteles. 3. Tese (Dout. UFRJ/PPGF- IFCS). I. Título

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Para Michelle Paiva Marinho, que move todo o meu ser.

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Agradecimentos: à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que patrocinou esta investigação. Ao Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira, pelo paciente e generoso trabalho de orientação.

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RESUMO

Justificação da idéia de que há uma escala henológica na ontologia de Aristóteles baseada na separação

ontológica e na auto-enunciação do ente. Assim, o motor imóvel assume o topo da hierarquia enunciativa

do ente e de sua separação do não-ente, isto é, de uma escala simultaneamente autológica e separativa do

ente.

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ABSTRACT Justification of Idea that there is a henological scale into the Aristotle’s ontology based on the ontological

separation and self-enunciation of the being. So, the immovable mover assume the acme of enunciative

hierarchy of being and of its separation of no-being, that is, of a autological and simultaneously separative

scale of being.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................ 10

PRIMEIRA PARTE: EXPOSIÇÃO CRÍTICA DO LIVRO L.................... 21 I – OS DOIS BLOCOS EM QUE SE SUBDIVIDE O LIVRO L............................................................ 22

II – ANÁLISE DOS CAPÍTULOS QUE COMPÕEM O LIVRO L ....................................................... 29

Primado Heurístico da Essência ........................................................................................................... 29 Os Princípios Metabólicos.................................................................................................................... 35 Modalidade Ontológica dos Princípios Metabólicos ............................................................................ 49 A Redução Analógica dos Princípios ................................................................................................... 60 Redução Analógica da Modalidade Existencial ................................................................................... 64 Demonstração da Supra-essência ......................................................................................................... 68 Natureza da Supra-essência .................................................................................................................. 78 Hierarquia de Supra-essências.............................................................................................................. 86 Aporética da Supra-essência................................................................................................................. 93 Separação da Supra-essência ................................................................................................................ 98

III – INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA DO LIVRO L.................................................................. 103

Grau de Maturidade do Livro L da Metafísica................................................................................... 105 Física, Teologia e Filosofia Primeira.................................................................................................. 113 Modo de Universalidade do Objeto Primeiro ..................................................................................... 115

SEGUNDA PARTE - O MOTOR IMÓVEL REALIZA A UNIDADE MÁXIMA DO ENTE ................................................................................. 117

UNIDADE EM ARISTÓTELES............................................................................................................ 119

UNIDADE DOS SENTIDOS DO ENTE............................................................................................... 145

O ente não é um gênero ...................................................................................................................... 146 UNIDADE DO ENTE ENQUANTO ENTE.......................................................................................... 153

UNIDADE DA ESSÊNCIA ................................................................................................................... 195

Caráter Unificado da Essência............................................................................................................ 196 Caráter Unificador da Essência .......................................................................................................... 209

UNIDADE DA ALMA .......................................................................................................................... 220

UNIDADE DA INTELIGÊNCIA .......................................................................................................... 231

Unidade da Inteligência Separada ...................................................................................................... 234 Unidade e Separação na Intelecção .................................................................................................... 249 Aproximação da Solução do Problema............................................................................................... 255 Relação Inteligência-Inteligível.......................................................................................................... 257 Modo de Imortalidade da Inteligência ................................................................................................ 259

UNIDADE DO MOTOR IMÓVEL ....................................................................................................... 265

CONCLUSÃO ........................................................................................... 307 VOCABULÁRIO DE TRADUÇÃO.......................................................... 319 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 346

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INTRODUÇÃO

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O “motor imóvel” é o conceito aristotélico fundamental investigado nesta tese. No

entanto, trata-se de um objeto cujo estudo provoca tantas conseqüências em nosso

entendimento da doutrina metafísica de Aristóteles que não foi possível tratá-lo separado

de praticamente nenhum de seus conceitos-chave. Além disso, até os dias atuais o motor

imóvel suscita dúvidas e querelas profundas entre os estudiosos. Nos últimos anos,

voltamos a considerar novamente a maturidade da teologia aristotélica e sua importância

para a sua filosofia primeira, maturidade esta que Jaeger havia posto em xeque em seu já

clássico ‘Aristóteles – bases para a história de seu desenvolvimento intelectual’. Era o

seu método histórico-genético, que postulava um progressivo e consistente afastamento

ideológico entre Aristóteles e seu mestre Platão, no qual a teologia filosófica não

representava senão uma etapa inicial e pouco autônoma. As contribuições para a

hermenêutica do Corpus foram imensas, principalmente pelo caráter gradual deste

método, que tornava cada elemento conceitual integrante de um momento decisivo do

pensamento de Aristóteles.

Então se percebeu1 que este método, como qualquer outro, tinha suas limitações e

poderia provocar sérios mal-entendidos se aplicado indiscriminadamente. E a excessiva

insistência de Jaeger quanto a múltiplos enxertos anacrônicos e apócrifos foi um dos

principais alvos da crítica posterior. Penso que tal insistência era tão forçada e duvidosa

quanto necessária em seu intento. Em determinado momento, tornou-se impossível

explicar a ocorrência da teologia inclusive em obras da metafísica já confirmadas como

1 Natorp, Patzig, Reale, entre outros estudiosos. Na segunda parte da tese abordaremos alguns aspectos desta grande polêmica, particularmente os relativos à natureza do objeto da filosofia primeira. Mas somente na terceira parte poderemos oferecer uma resposta alternativa, calcada no desenvolvimento da perspectiva henológica.

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maduras mesmo por parte de Jaeger. A hipótese de enxertos ad hoc eram a última

alternativa.

Abordamos aqui a experiência de Jaeger, não somente por se tratar de um marco

de ousadia na exegese de Aristóteles, mas porque podemos aproveitá-la ainda hoje ao

menos em dois aspectos decisivos. O primeiro de ordem negativa, que fica claro pelo

parágrafo anterior: nenhum método hermenêutico deve ser adotado sem reservas para um

estudo de um pensador tão rico e corajoso como Aristóteles, capaz de sustentar teses de

tão difícil conciliação como a teleologia universal e a causalidade casual, a

funcionalidade material da alma e a possibilidade de sobrevivência de uma de suas partes,

só para citar dois exemplos. Trata-se de um filósofo de grandes sínteses, mais ainda do

que Platão o foi. Empirismo e racionalismo, materialismo e espiritualismo já buscaram

paternidade em sua obra. Sendo assim, determinadas convicções altamente improváveis

em certos pensadores, devem ser consideradas com seriedade em seu texto. Aristóteles,

definitivamente, não é um pensador previsível. Por isso, mesmo após a constatação de

uma progressiva negação do imaterialismo da filosofia primeira de Platão, não devemos

nos precipitar afirmando que tal progressão tenha atingido o estágio da oposição perfeita

em que consiste a metafísica materialista. É próprio de Aristóteles procurar suplantar o

adversário mantendo, contudo, o que há de mais elevado e verdadeiro em sua doutrina.

Mas qual o aspecto positivo do intento de Jaeger que procuramos aplicar neste

trabalho? Sem dúvida, o caráter estratificado que procurou perceber em toda a obra de

Aristóteles. Em seu caso, tal estratificação foi de ordem principalmente histórica. Em

nosso estudo, pretendemos focar a de ordem doutrinal, que muitas vezes dispensa a

necessidade da primeira, pois muitas teses que pareciam contraditórias passam a ser

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vistas como níveis diversos de uma mesma estrutura conceitual ascendente. Não devemos

nos esquecer da lição transmitida pela doutrina da plurivocidade do ente2 (to\ oÄn), no livro

G da Metafísica. Ao estabelecer um sentido central do ente ao lado de sentidos periféricos,

Aristóteles já deixa claro sua concepção hierárquica do ente, que será muito útil em todas

as suas incursões teórico-metafísicas. A natureza de tal hierarquia, bem como o sentido

em que ela se efetiva – é o que veremos preliminarmente no decorrer desta introdução.

O livro L da Metafísica de Aristóteles é um locus classicus para a discussão de

vários problemas referidos à filosofia teórica do Estagirita. Não apenas questões ligadas à

chamada filosofia aristotélica, mas também concernentes à ontologia e cosmologia, bem

como à física e à linguagem se fazem presentes no livro L. Se, no entanto, por um lado

parece claro que tais problemas estão sendo tematizados nas várias passagens do livro,

por outro lado a visão dos intérpretes está longe de ser unânime sobre como devem ser

entendidas as derradeiras posições sustentadas pelo Filósofo diante de tais dificuldades.

Isso levou – sobretudo pelo fato de existirem aparentes incoerências no próprio texto

aristotélico – a que W. Jaeger3 afirmasse que as contradições encontradas (principalmente

entre o capítulo oito e os demais e no próprio capítulo oito consigo mesmo) evidenciam

que parte da obra foi escrita em fase posterior, quando o Filósofo já havia revisto suas

convicções sobre a unidade do primeiro motor.

Tanto as dificuldades presentes no próprio texto de Aristóteles quanto à falta de

consenso dos intérpretes sobre como entender o livro L ou partes desse livro levaram-me

primeiramente a buscar, senão responder, pelo menos sistematizar os problemas acerca

deste livro. É desse modo que a presente tese consiste, em um primeiro estágio, em uma

2 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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investigação passo a passo desta obra. Meu objetivo é, por um lado, apresentar a estrutura

e o conteúdo dos dez capítulos que compõem esse texto; por outro, pretendo lançar mão

de alguns dos influentes comentaristas que tentaram elucidar determinados pontos pouco

claros do livro em questão. Esta primeira fase tem como intuito preparar uma discussão

mais profunda, acerca da própria função da idéia do motor imóvel em todo a metafísica

aristotélica, mormente quanto à sua doutrina da unidade do ente em geral. Decidimos que

o livro L seria o ponto central desta investigação - em detrimento de outras obras em que

a natureza de tal essência4 (ou)si¿a) também é tratada - por um fator que nos pareceu mais

do que suficiente: neste livro, o motor imóvel não é apenas mais uma questão entre outras

ou conceito que, embora de grave importância, divida espaço com outros tópicos

igualmente fundamentais. Ao contrário, toda estrutura do livro - como pretendemos

sustentar ao longo da análise - foi tecida em função de um único escopo: demonstrar a

existência, conhecer a natureza e determinar o número de essências imóveis motrizes do

universo.

A tese está organizada em três partes principais.

A primeira consiste em uma exposição crítica do livro L. Em um primeiro

momento, tocaremos na corrente distinção do livro em dois grandes blocos

compreendendo respectivamente os cinco primeiros capítulos. Segue então uma análise

detalhada de cada um dos capítulos, com o propósito de familiarizar o leitor com a

estrutura argumentativa deste livro. Em um terceiro momento, apresentaremos parte dos

problemas hermenêuticos que permeiam aquelas argumentações, desde a discussão

acerca do sentido genuíno de cada argumento, até o problema da ordem de maturidade

3 Jaeger, op. cit, cap. xiv.

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destes escritos na carreira filosófica de Aristóteles. Consistirá em uma análise crítica das

várias leituras que este livro sofreu por alguns dos principais estudiosos do Corpus

Aristotelicum, bem como em sua tentativa de mostrar que a doutrina do primeiro motor

realiza a ciência buscada por Aristóteles na Metafísica. Não surpreende o fato de, ainda

hoje, existirem tantas controvérsias quanto ao real significado do livro L, principalmente

aquelas em que a discussão filosófica se confunde com a astronômica. Algumas das

questões tocadas aqui ganharão nova luz e um correto equacionamento a partir de uma

tomada de posição acerca da doutrina metafísica aristotélica como um todo. É o que

pretendemos na segunda parte deste trabalho.

Seria, pois, insuficiente uma mera abordagem de todos estes problemas, ausente,

contudo, de um posicionamento diante da plausibilidade de certas opiniões sustentadas

pelos estudiosos, mormente aquelas cuja validade nos pareceu crucial para localizar

nossas próprias posições. Isto será feito tendo em vista uma consideração que nos parece

indispensável para tanto, a saber, que a tese do primeiro motor é a consumação de teses

derradeiras da ontologia aristotélica, algumas das quais decisivas também em outras

obras do Filósofo, como a Física. Eis a segunda parte de nossa investigação, em que

procuramos desvelar o lugar da doutrina do motor imóvel como termo último da doutrina

de uma unidade gradual do ente.

Então veremos, primeiramente, que a noção de unidade em Aristóteles é

separativa, isto é, o caráter do separado (xwristo/n) é fundamental em sua determinação.

Além disso, a separação da unidade de cada ente em meio aos demais entes o conduz à

afirmação do individual como expressão mais plena do separado e, portanto, da unidade.

4 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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Aristóteles repudia a idéia de uma unidade universal no sentido de uma mistura de

todas as coisas em um todo homogêneo e indiferenciado, ainda que tal coisa remontasse a

um passado imemorial. Isto fica explícito em sua retificação de doutrinas ancestrais

acerca da unidade primordial do cosmos:

“Portanto, não só podemos dizer, em certo sentido, que tudo provém do

não-ente mas também que tudo provém do ente: evidentemente, do ente potencial

e do não-ente efetivo. E justamente isto significa o um de Anaxágoras; com efeito,

em vez de dizer 'todas as coisas juntas' - e em lugar da 'mistura' de Empédocles e

de Anaximandro e, também, do que diz Demócrito - seria melhor dizer: 'todas as

coisas estavam juntas em potência5 (du/namij), mas não efetivamente. [...] Não é

suficiente, portanto, dizer 'todas as coisas estavam juntas' enquanto as coisas

diferem pela matéria. De fato, por que razão existem infinitas coisas e não, ao

contrário, uma só?” ( Met.1069b.23)

wÐste ou) mo/non kata\ sumbebhko\j e)nde/xetai gi¿gnesqai e)k mh\ oÃntoj, a)lla\ kaiì e)c oÃntoj gi¿gnetai pa/nta, duna/mei me/ntoi oÃntoj, e)k mh\ oÃntoj de\ e)nergei¿#. kaiì tou=t' eÃsti to\ ¹Anacago/rou eÀn: be/ltion ga\r hÄ "o(mou= pa/nta" kaiì ¹Empedokle/ouj to\ miÍgma kaiì ¹Anacima/ndrou, kaiì w¨j Dhmo/krito/j fhsin "hÅn o(mou= pa/nta duna/mei, e)nergei¿# d' ouÃ": [...]ou)d' i¸kano\n oÀti o(mou= pa/nta xrh/mata: diafe/rei ga\r tv= uÀlv, e)peiì dia\ ti¿ aÃpeira e)ge/neto a)ll' ou)x eÀn;

A cosmologia metafísica de Aristóteles se estrutura com base na referida noção de

unidade aliada a três princípios ontológicos fundamentais:

1- Princípio da graduação universal:

O ente admite graus. A essência é ente em maior grau que o concomitante 6

(sumbebhko/j). A essência de cada um (eÀkaston) dos espécimes é ente em maior grau

que a essência da espécie (eiådojŸ. E como o um e o ente são conversíveis, a unidade da

5 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 6 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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essência é superior a unidade do concomitante, assim como a unidade da essência

individual o é relativamente à unidade da essência específica, e esta o é relativamente à

unidade genérica. Na verdade, cada estágio henológico 7 pressupõe os estágios

imediatamente inferiores. Eis o princípio hierarquizante do ente:

“Os modos posteriores de unidade implicam sempre os anteriores: por

exemplo, as coisas que são unas pelo número devem sê-lo também pela espécie,

enquanto que nem todas as coisas que são unas pela espécie o são também pelo

número; todas as coisas que são unas pela espécie o são também pelo gênero,

enquanto que nem todas as coisas que são unas pelo gênero o são também pela

espécie, mas o são por analogia; enfim, nem todas as coisas que são unas por

analogia o são também pelo gênero.” (Met. 1016b36)

a)eiì de\ ta\ uÀstera toiÍj eÃmprosqen a)kolouqeiÍ, oiâon oÀsa a)riqm%½ kaiì eiãdei eÀn, oÀsa d' eiãdei ou) pa/nta a)riqm%½: a)lla\ ge/nei pa/nta eÁn oÀsaper kaiì eiãdei, oÀsa de\ ge/nei ou) pa/nta eiãdei a)ll' a)nalogi¿#: oÀsa de\ a)nologi¿# ou) pa/nta ge/nei.

O último modo de unidade mencionado acima, a unidade de analogia, será

apreciado no capítulo em que tratamos da analogia do ente em Aristóteles. Pretendo

mostrar ao longo dos capítulos a seguir que a graduação da unidade do ente prossegue no

interior da própria esfera individual da essência, pois há, entre as espécies de essência,

aquelas de maior ou menor unidade, na exata proporção em que fruem de maior ou menor

grau de separação, porquanto a unidade aristotélica - como se disse e ainda o veremos

mais profundamente - é separativa.

2- Princípio da plenitude:

7 Isto é, cada grau de unidade do ente. Na terceira parte da tese o conceito de henologia, será apreciado mais detidamente, com ênfase na henologia parmenídica e platônica para as quais a aristotélica constitui uma das integrações ontológicas possíveis.

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Com esta expressão, adotamos aqui a mesma denominação utilizada por A.O.

Lovejoy8. Além de sintetizar o escopo da tipologia essencialista de Aristóteles, que vai

do menos perfeito ao mais perfeito, o termo plenitude 9 (e)ntele/xeia) traduz muito

satisfatoriamente o vocábulo e)ntele/xeia, razão pela qual será adotada por nós em cada

uma de suas ocorrências neste estudo.

Poderíamos resumir este princípio na seguinte fórmula: Sempre que possível,

haverá o pleno e o melhor (to\ be/ltion). Na verdade, o próprio enunciado não difere

muito daquele em duas passagens da Física:

“...pois em todas as coisas naturais e limitado e o melhor deve prevalecer,

quando possível, sobre seus opostos.” (259a11)

e)n ga\r toiÍj fu/sei deiÍ to\ peperasme/non kaiì to\ be/ltion, aÄn e)nde/xhtai, u(pa/rxein ma=llon. “E sempre supomos que o melhor, se possível, existe na natureza.” (260b24)

to\ de\ be/ltion a)eiì u(polamba/nomen e)n tv= fu/sei u(pa/rxein, aÄn vÅ dunato/n.

3- Princípio do indivíduo absoluto:

Os dois princípios acima conduzem ao princípio do indivíduo absoluto, isto é, a

essência que atingiu a unidade separativa plena. É natural que seja assim: se a essência

genuinamente separada só pode ser o indivíduo, quanto mais separado (xwristo/n) mais

individual, assim como quanto mais individual mais separado. Os indivíduos, enquanto

envolvem sempre a separatividade em seu ser, gozam de certa autonomia relativamente

ao meio ôntico circundante. Tal autonomia, no entanto, é passível de vários graus de

8 Cit. por Simon Blackburn,1997, pág. 313.

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efetividade10 (e)ne/rgeia) (veremos isso no lugar reservado à tipologia de essências), que

são, imediatamente, graus de individualidade. Sendo assim, de acordo com o princípio da

plenitude enunciado acima que fornece: "Sempre que possível haverá o pleno e o melhor",

temos que: Há um ente cuja unidade separativa é plena, quer dizer, há um ente

individualizado em máximo grau, plenamente separado do meio circundante. Eis o motor

imóvel, a exata realização de tal exigência ontológica.

Como estratégia hermenêutica, seguimos o que podemos denominar método

doutrinário: seguir, junto com o Filósofo, as grandes linhas argumentativas e seus

principais conceitos, conduzindo-os às suas conseqüências últimas e expressando-as com

máxima nitidez possível, mesmo quando o próprio Filósofo parece não ter dispensado a

mesma distinção analítica. Com isso, a meta é fazer se destacar do fundo textual,

naturalmente, determinadas respostas a lacunas até então inacessíveis. Além disso,

recorrendo às principais exigências doutrinais, tomadas simultaneamente e em sua

máxima determinação, certas conclusões que, sob outra perspectiva, se mostram

contingentes, são aqui conseqüentes. Se procurarmos cumprir os princípios norteadores

da metafísica de Aristóteles do modo mais completo possível, certas hipóteses

hermenêuticas de sua obra se tornarão clarificadas por um grau de inteligibilidade e

concretude até então empalidecidas para nós.

Pela expressão ‘doutrinal’, entendemos também um distanciamento crítico

relativamente a determinadas premissas e suposições epocais de ordem filosófico-

científica. Certos modelos epistêmicos seguidos e até desenvolvidos por Aristóteles,

como a geração espontânea e a estrutura esfero-concêntrica de todo o universo, podem

9 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 10 Verbete incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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parecer, para o leitor contemporâneo, não somente obsoletos, mas também extremamente

extravagantes. Contudo, um trabalho hermenêutico radical exige uma postura abstrativa

relativamente ao que já sabemos ser falso ou obsoleto, para então apreciar, com uma

ingenuidade salutar, o próprio valor heurístico de hipóteses que, durante um longo

período, pareciam razoáveis até para os mais capazes da época. Somente então

entenderemos os princípios metafísicos reguladores de todo um mundo científico então

vigente, princípios estes que não desaparecem com a extinção das hipóteses científicas

dos quais eram também o corolário racional supremo.

Adotei as seguintes traduções:

Metafísica : tradução, introdução e comentário de Giovanni Reale.

Física: tradução de Guillermo R. de Echandía.

De Anima – apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis.

Da Geração e da Corrupção - Trad. Renata Maria Parreira Cordeiro

Organon: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos

Posteriores, Tópicos, Refutações Sofísticas – Tradução, textos adicionais e notas

de Edson Bini.

As traduções acima foram modificadas de acordo com a ocorrência de um termo

filosófico importante para o qual a opção do tradutor não se adequava à nossa. A relação

de tais termos e a justificativa para nossa escolha se encontram em apêndice intitulado

‘vocabulário de tradução’.

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PRIMEIRA PARTE: EXPOSIÇÃO CRÍTICA DO LIVRO LLLL

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I – OS DOIS BLOCOS EM QUE SE SUBDIVIDE O LIVRO LLLL

Serão apresentadas as razões em virtude das quais o livro L é dividido em duas

partes. Em linhas gerais, tal distinção consiste no que se segue.

Os capítulos 1-5 versam principalmente sobre a natureza da essência sensível,

ainda que não devamos entender por isso que as coisas materiais são o único objeto de

estudo aqui. O Filósofo efetua, na verdade, uma tipologia das essências existentes no

universo:

“Existem três essências. Uma é a essência sensível, que se distingue em a)

eterna e b) corruptível (e esta é a essência que todos admitem: por exemplo, as

plantas e os animais; desta é necessário compreender quais são os elementos

constitutivos, quer eles se reduzam a um só, quer sejam muitos). c) A outra

essência é a imóvel; e alguns filósofos afirmam que ela é separada: alguns a

separam ulteriormente em dois tipos, outros reduzem as Formas e os Entes

matemáticos a uma única natureza, outros ainda só admitem os Entes

matemáticos.

As duas primeiras espécies de essências constituem o objeto da física,

porque são sujeitas a movimento11(ki¿nhsij); a terceira, ao invés, é objeto de

outra ciência, dado que não existe nenhum princípio comum a ela e às outras

duas.”(1069a30)

ou)si¿ai de\ treiÍj, mi¿a me\n ai¹sqhth/ hÂj h( me\n a)i¿+dioj h( de\ fqarth/, hÁn pa/ntej o(mologou=sin, oiâon ta\ futa\ kaiì ta\ z%½a [h( d' a)i¿+dioj]hÂj a)na/gkh ta\ stoixeiÍa labeiÍn, eiãte eÁn eiãte polla/: aÃllh de\ a)ki¿nhtoj, kaiì tau/thn fasi¿ tinej eiånai xwristh/n, oi¸ me\n ei¹j du/o diairou=ntej, oi¸ de\ ei¹j mi¿an fu/sin tiqe/ntej ta\ eiãdh kaiì ta\ maqhmatika/, oi¸ de\ ta\ maqhmatika\ mo/non tou/twn. e)keiÍnai me\n dh\

11 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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fusikh=j (meta\ kinh/sewj ga/rŸ, auÀth de\ e(te/raj, ei¹ mhdemi¿a au)toiÍj a)rxh\ koinh/.

Note-se a associação das duas primeiras essências tratadas, as sensíveis, com o

movimento. Toda e qualquer espécie de essência que possua matéria em sua estrutura

está sujeita a alguma espécie de transição. Mais adiante (1069b8), Aristóteles define

quais os tipos de transição existentes no universo e a espécie de essência sensível

correspondente. Correlativamente, também são definidos os tipos de matéria que entram

na estrutura das respectivas essências. No trecho acima, o Filósofo já introduz a discussão

sobre a essência imóvel. Esta justifica sua imobilidade pelo próprio fato de ser imaterial.

Na segunda metade do livro L, porém, percebemos mais claramente a verdadeira

orientação de sua argumentação, em que o papel da essência imóvel na mobilidade

universal assume elevada importância na conclusão de sua imaterialidade.

Na verdade, o que se pretende nos capítulos 1-5 é a delimitação da estrutura da

essência no que diz respeito a uma propriedade que praticamente todas possuem: a

transitoriedade. Busca-se o que realmente sofre transição quando na ocasião de destruição,

alteração, aumento ou meramente locomoção de uma essência. Aristóteles discorda dos

que acreditam que os que realmente sofrem transição são os contrários, ou seja, os

próprios estados sucessivos em que se encontra uma essência. Desta forma, elemento

indispensável para a consecução de uma transição em uma essência é a matéria,

constituinte, juntamente com a forma, de sua estrutura mesma:

“A essência sensível é transitória. Ora, se a transição se dá entre opostos

e intermediários, e não entre quaisquer opostos (pois a voz é não branca, mas

nem por isso transita para branca), mas apenas entre contrários, deve haver

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algum substrato que transita de um estado para outro contrário, já que os

contrários em si mesmos não transitam. Acresce que algo persiste, mas esse algo

não é o contrário; existe, pois, uma terceira coisa além dos contrários, a saber: a

matéria. Ora, as transições são de quatro espécies: a transição segundo a

essência, qualidade, quantidade ou lugar. A transição segundo a essência é a

simples geração e destruição; no que se refere à quantidade, o aumento e o

decréscimo; quanto à qualidade, a alteração; e quanto ao lugar, o movimento.

Portanto, a transição se dá de um estado para o estado contrário sob estes vários

aspectos. Logo, a matéria que transita deve ser, potencialmente, ambos os

estados.” (1069b2)

¸H d' ai¹sqhth\ ou)si¿a metablhth/. ei¹ d' h( metabolh\ e)k tw½n a)ntikeime/nwn hÄ tw½n metacu/, a)ntikeime/nwn de\ mh\ pa/ntwn (ou) leuko\n ga\r h( fwnh/Ÿ a)ll' e)k tou= e)nanti¿ou, a)na/gkh u(peiÍnai¿ ti to\ metaba/llon ei¹j th\n e)nanti¿wsin: ou) ga\r ta\ e)nanti¿a metaba/llei. eÃti to\ me\n u(pome/nei, to\ d' e)nanti¿on ou)x u(pome/nei: eÃstin aÃra ti tri¿ton para\ ta\ e)nan-ti¿a, h( uÀlh. ei¹ dh\ ai¸ metabolaiì te/ttarej, hÄ kata\ to\ ti¿ hÄ kata\ to\ poiÍon hÄ po/son hÄ pou=, kaiì ge/nesij me\n h( a(plh= kaiì fqora\ h( kata\ <to\> to/de, auÃchsij de\ kaiì fqi¿sij h( kata\ to\ poso/n, a)lloi¿wsij de\ h( kata\ to\ pa/qoj, fora\ de\ h kata\ to/pon, ei¹j e)nantiw¯seij aÄn eiåen ta\j kaq' eÀkaston ai¸ metabolai¿. a)na/gkh dh\ metaba/llein th\n uÀlhn duname/nhn aÃmfw:)

Esta descoberta será decisiva na segunda metade do livro L (6-10), quando a

investigação sobre a essência imaterial obtém proeminência. O fato de que matéria e

transição implicam-se mutuamente é fundamental para as conclusões formuladas no sexto

capítulo:

“Se há, porém, algo que seja capaz mover e produzir, mas não efetive

nada, não haverá movimento, pois o potencial pode não efetivar. [..] Deve, por

conseguinte, haver um tal princípio, cuja própria essência seja a efetividade. Por

outra parte, estas essências devem ser imateriais, pois se há algo de eterno hão

de ser elas. Sua essência é, por conseguinte, a própria efetividade.” (1071b20)

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¹Alla\ mh\n ei¹ eÃsti kinhtiko\n hÄ poihtiko/n, mh\ e)nergou=n de/ ti, ou)k eÃstai ki¿nhsij: e)nde/xetai ga\r to\ du/namin eÃxon mh\ e)nergeiÍn. [...] deiÍ aÃra eiånai a)rxh\n toiau/thn hÂj h( ou)si¿a e)ne/rgeia. eÃti toi¿nun tau/taj deiÍ ta\j ou)si¿aj eiånai aÃneu uÀlhj: a)i+di¿ouj ga\r deiÍ, eiãper ge kaiì aÃllo ti a)i¿+dion. e)ne/rgeia aÃra.

Quanto ao capítulo três, mostraremos que se trata de um pequeno parêntese, em

que Aristóteles procura prevenir uma interpretação errônea acerca das causas formais de

todos os seres, que, apesar de manterem certas relações com os seres causados, relações

estas análogas àquelas próprias das essências sensíveis com as Idéias - como a

homonímia - possuem natureza radicalmente diferente destas últimas, cuja existência,

além de não servir de fundamento para qualquer teoria do Estagirita, é posta em dúvida

em quase toda a sua obra, principalmente a que agora investigamos.

Os capítulos quatro e cinco, conforme veremos, podem ser considerados um todo

contínuo. A importância das questões então abordadas somente se tornará nítida no

momento final da tese, quando trataremos da maturação filosófica dos principais

conceitos e teorias aristotélicas, maturação essa consumada pela teoria do primeiro motor.

O capítulo seis é, em todos os aspectos, uma transição entre o estudo dos seres

sensíveis e a demonstração da existência da realidade imóvel que ocupa toda a segunda

metade do livro.

A afirmação da existência de uma essência imóvel responsável, no entanto, pelo

movimento universal, forçará Aristóteles a postular uma espécie de efetividade de uma

essência sobre outras que não implique qualquer forma de contato, já que este faria supor

uma ação recíproca entre as essências envolvidas. O Filósofo formula então sua célebre

concepção do movimento causado pelo desejável. É desejando a essência imóvel, pelo

infinito poder de sua autonomia perfeita, que todas as coisas mudam, realizando

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efetivamente o que possuíam apenas em potência. A efetividade do primeiro motor,

essência imóvel, é, simultaneamente, prazer pleno:

“Desse princípio, portanto, dependem o céu e a natureza. E seu modo de

viver é o mais excelente: é o modo de viver que só nos é concedido por breve

tempo. E naquele estado ele está sempre. Isso é impossível para nós, mas para ele

não é impossível, pois a efetividade de seu viver é prazer.” (1072b13)

e)k toiau/thj aÃra a)rxh=j hÃrthtai o( ou)rano\j kaiì h( fu/sij. diagwgh\ d' e)stiìn oiàa h( a)ri¿sth mikro\n xro/non h(miÍn ouÀtw ga\r a)eiì e)keiÍno: h(miÍn me\n ga\r a)du/naton, e)peiì kaiì h(donh\ h( e)ne/rgeia tou/tou.

O desejo pelo primeiro motor não é restrito aos seres humanos. A influência da

essência imóvel estende-se a todos os seres. Certos comentaristas discutem até que ponto

devemos tomar este desejo de modo semelhante ao usual. Trata-se de saber se isto é ou

não apenas uma figura de linguagem, como quando dizemos que o freio de um carro

ordena a roda a parar. A efetividade delimitada por Aristóteles como a realmente própria

do primeiro motor - a intelecção da intelecção- também será alvo de novas interpretações

por parte de David Ross12. Estas questões que, por seu caráter paradoxal, tanto exigiram

do espírito rigoroso de Aristóteles, serão revistas mais detalhadamente em um terceiro

momento.

A questão do desejo pelo motor imóvel pode ser expressa nos seguintes termos.

Trata-se de saber em que sentido o motor imóvel causa o movimento dos seres, se como

causa eficiente ou como causa completiva. Em momento oportuno deste estudo veremos

que Ross fornece a mais satisfatória das soluções. O motor imóvel é causa eficiente,

posto que esta é aquilo de onde provém o início da transição e do repouso, mas apenas

porque é causa completiva. Esta é, portanto, a única espécie de causa eficiente que move

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sem manter contato com o movido. A essência imóvel move unicamente em função do

que é, quer dizer, em virtude de sua própria natureza, que Aristóteles demonstra ser pura

efetividade, completude (te/loj) nunca atingida pelos outros seres - devido à sua

materialidade imanente - mas sempre almejada pelos mesmos. O movimento produzido

por tal essência é, pois, aquele resultado do ente enquanto ente, da efetividade pura,

apenas enquanto efetividade, prescindindo de qualquer espécie de contato para ter lugar.

Os outros entes movem enquanto móveis, mas o ente imóvel move apenas enquanto ente.

Guardemos este enunciado. Ele será decisivo na terceira parte da investigação, para uma

compreensão do significado do conceito de motor imóvel no âmbito da estreita conexão

entre ontologia e teologia.

A segunda metade (6-10) do livro L apresenta certas dificuldades. A principal diz

respeito ao capítulo oitavo, cuja boa parte da redação Jaeger13 considerava posterior aos

demais, relativo a um período no qual o Filósofo percebeu a insuficiência da teoria do

motor imóvel único, na medida em que teria de explicar os demais movimentos circulares

efetuados pelos astros. Jaeger extraiu esta conclusão especialmente do passo 1074a35,

que parece contradizer a argumentação desenvolvida ao longo das linhas anteriores, sobre

os quarenta e sete motores imóveis. Admitimos que este trecho do livro é problemático,

quanto mais em vista da perspicaz observação do estudioso, a respeito das linhas

seguintes “estes são deuses”, cujo sujeito gramatical correspondente só pode ser

encontrado retrocedendo ao passo 1074a31 (“algum dos corpos divinos que se movem no

céu”), o que leva a considerar o passo 1074a35 deslocado relativamente ao restante do

texto. Mostraremos, porém, que não procede sua acusação de que o Estagirita se

12 Ross, 1981, p.188.

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contradiz. Ainda que seja uma adição posterior, este enxerto está em perfeita harmonia

com o restante do capítulo, pois não contradiz - inversamente ao que pensava Jaeger - a

tese da multiplicidade dos motores imóveis. Antes, procura uma síntese entre esta e

aquela doutrina do motor imóvel único, cuja “centralidade motriz” é agora deslocada para

o motor imóvel da esfera das Estrelas Fixas. A referência ao “único chefe” na citação

final de Homero, deve ser entendida, de acordo com a referida passagem, como uma

alusão à anterioridade da essência que move a mais externa das esferas.

Jaeger também sustentava que não há qualquer referência a uma pluralidade de

essências imóveis nos capítulos anteriores. Veremos, no entanto, que uma leitura mais

cuidadosa revela a inverossimilhança desta afirmação. Já no sexto capítulo, o Filósofo

admite que outros motores imateriais podem existir. Isto se tornará mais nítido em outro

momento, quando estes capítulos serão especialmente apreciados.

13 Jaeger, 1960, p.397.

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II – ANÁLISE DOS CAPÍTULOS QUE COMPÕEM O LIVRO LLLL

Primado Heurístico da Essência

Primeiras palavras do Livro L da Metafísica:

“A essência é o objeto de nossa pesquisa, pois os princípios e causas que

buscamos são os das essências” (1069a17)

Periì th=j ou)si¿aj h( qewri¿a: tw½n ga\r ou)siw½n ai¸ a)rxaiì kaiì ta\ aiãtia zhtou=ntai.

Eis aí a determinação do objeto da pesquisa empreendida no livro L. O estudo da

essência, nas palavras de Aristóteles, se estabelece em perfeita continuidade com o estudo

dos “princípios (a)rxaiì) e causas (aiãtia)”; decorre necessariamente da investigação

destes últimos, pois não há princípios e causas que não sejam os das essências. A razão

desta conexão necessária é fornecida logo a seguir:

''Se consideramos o todo como algo inteiro, a essência é sua parte

primeira; e se o encaramos como uma simples sucessão, também deste ponto de

vista a essência vem em primeiro lugar, seguida pela quantidade e pela

qualidade.''(1069a18)

kaiì ga\r ei¹ w¨j oÀlon ti to\ pa=n, h( ou)si¿a prw½ton me/roj: kaiì ei¹ t%½ e)fech=j, kaÄn ouÀtwj prw½ton h( ou)si¿a, eiåta to\ poio/n, eiåta to\ poso/n.

O entendimento deste trecho se tornaria obscuro se não elucidássemos, ao menos

provisoriamente, o significado do que o Filósofo denomina “considerar como algo

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inteiro” e “considerar como simples sucessão”. A primeira forma de considerar o

universo aparece, nos últimos capítulos da obra investigada, como a derradeira convicção

do pensador; não sendo mais do que a contemplação da unidade orgânica a que estão

submetidas todas as coisas do universo. Tal unidade é defendida energicamente no passo

1075a15. A partir desta perspectiva da unidade universal, Aristóteles demonstra (sendo

este o objetivo último do livro L), a necessidade de se admitir a primazia da essência

como parte primeira do cosmo, pois esta unidade orgânica somente é compreensível com

a contemplação de uma essência central a qual todas as espécies de movimentos estão

relacionadas. As dificuldades encontradas pelo Filósofo em seu projeto de demonstração

da existência dessa essência, assim como o método utilizado em sua superação, serão

investigadas mais adiante. A expressão “considerar como algo inteiro” significa, pois,

“considerar como algo que possui ordem e harmonia”. Aristóteles escreve que, se o

universo possui harmonia, devemos considerar a essência como sua parte primeira e

central. Com efeito, a parte do universo responsável pela harmonia não é outra coisa

senão uma essência, quer dizer, a essência imóvel, que move todas as outras coisas. Por

mover todas as outras essências, será anterior às mesmas, pois o motor é sempre anterior

ao movido. Ora, o que é anterior a uma essência não poderá ser uma das outras categorias,

como a qualidade ou quantidade, pois a essência é anterior a todas elas, sendo o suporte a

partir do qual são possíveis. Logo, o que move as essências é, seguramente, uma essência.

Este é o argumento apresentado no passo 1073a35 do capítulo oito, já presente

implicitamente aqui. Quanto à segunda forma de contemplar o universo, aquela

equivalente a considerá-lo “como uma simples sucessão”, é justamente a negação da

anterior, quer dizer, trata-se do ponto de vista segundo o qual todas as coisas que existem

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não mantêm quaisquer tipos de relações umas com as outras. No passo 1076a, Aristóteles

escreve sobre esta convicção:

“...afirmam que há uma série de essências sem fim, e que para cada

essência há diversos princípios, reduzem a realidade do universo a uma série de

episódios (de fato, a existência ou não de uma essência não tem a menor

importância para a outra.)”

kaiì ouÀtwj a)eiì aÃllhn e)xome/nhn ou)si¿an kaiì a)rxa\j e(ka/sthj aÃllaj, e)peisodiw¯dh th\n tou= panto\j ou)si¿an poiou=sin ou)de\n ga\r h( e(te/ra tv= e(te/r# sumba/lletai ouÅsa hÄ mh\ ouÅsa. No entanto, também a partir desse tipo de concepção impõe-se a convicção da

primazia da essência, como a primeira das categorias, aquela que não pode ser predicada

de nada, mas da qual todas as outras são predicadas. Além disso, as demais categorias

não são no sentido estrito do verbo ser, pois são apenas modificações observadas nas

coisas que estritamente são, isto é, as essências. Estas são capazes de existir

independentemente desta ou daquela categoria, mas a recíproca de forma alguma é

verdadeira. Este estudo é efetuado, sobretudo, no livro Categorias, mas possui relevância

aqui, pois justifica a anterioridade da essência em relação a tudo o mais. Todas as outras

categorias são predicadas da categoria da essência, mas esta não é predicada de nenhuma

outra. Por exemplo, dizemos que um homem é branco, mas seria um absurdo dizer que o

branco é homem; esta impossibilidade, já reconhecida pelo senso comum, já indica que

as outras categorias, ou seja, as outras “coisas” que são, devem ser consideradas, mais

verdadeiramente, modos de ser da categoria das coisas que primeiramente são, a saber, as

essências. Quando se afirma que a cor branca é, isto significa apenas que a cor branca é

em alguma essência que a possui, e é apenas porque esta essência é, e somente enquanto

é. Pois se tal essência for destruída, assim será também com a cor branca. É possível

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entender, da mesma forma, em que sentido a privação de uma qualidade é, “já que

dizemos também que ‘são’, por exemplo, que algo é não-branco” (1069a22). Se o ser de

uma qualidade deve aderir ao ser da essência, o mesmo se dirá de sua privação, da qual,

somente assim, se poderá dizer que é. Por isso podemos afirmar que “os princípios e

causas que buscamos são os das essências” (tw½n ga\r ou)siw½n ai¸ a)rxaiì kaiì ta\

aiãtia zhtou=ntai) (1069a17). No passo 1071a, a mesma primazia é expressa de

maneira um pouco diferente:

“Há coisas separadas, e outras não; e as primeiras é que são essências. E são

também as causas de todas as coisas, pois sem as essências não há passibilidades nem

movimentos.”

¹Epeiì d' e)stiì ta\ me\n xwrista\ ta\ d' ou) xwrista/, ou)si¿ai e)keiÍna. kaiì dia\ tou=to pa/ntwn aiãtia tau)ta/, oÀti tw½n ou)siw½n aÃneu ou)k eÃsti ta\ pa/qh kaiì ai¸ kinh/seij.

Este caráter separado (xwristo/n) da essência será retomado na Unidade III.

Então o reconheceremos como um aspecto fundamental da unidade do ente em

Aristóteles.

Aristóteles busca reforço também nos antigos filósofos, que de certo modo se

aperceberam do primado da essência, em virtude de os princípios, causas e elementos que

tanto investigavam concorrerem justamente para a sua constituição: “E os antigos

filósofos confirmaram efetivamente isso: pois da essência buscavam os princípios,

elementos e causas.” (marturou=si de\ kaiì oi¸ a)rxaiÍoi eÃrg%: th=j ga\r ou)si¿aj

e)zh/toun a)rxa\j kaiì stoixeiÍa kaiì aiãtia.) (1069a25).

Mais adiante ficará mais lúcido o entendimento desta passagem. Por enquanto,

contentemo-nos em seguir o Filósofo em sua introdução ao duodécimo livro da

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Metafísica. Ao final deste parágrafo Aristóteles faz também um breve comentário a

respeito do que os pensadores antigos tinham em mente na formulação de seu conceito de

essência. Associavam-na com “certas coisas particulares como o fogo e terra, e não o que

é comum a ambos, isto é, o corpo”. Nisto suas opiniões diferem das dos investigadores

contemporâneos ao Estagirita, que identificavam os gêneros das coisas particulares com

os “princípios e essências” das coisas, e por isso adotavam os universais como as

verdadeiras essências, visto que os gêneros são universais.

As linhas seguintes são dedicadas à enumeração e análise dos tipos de essências

que fazem parte do universo:

“Existem três essências. Uma é a essência sensível, que se distingue em a)

eterna e b) corruptível (e esta é a essência que todos admitem: por exemplo, as

plantas e os animais; desta é necessário compreender quais são os elementos

constitutivos, quer eles se reduzam a um só, quer sejam muitos). c) A outra

essência é a imóvel; e alguns filósofos afirmam que ela é separada: alguns a

separam ulteriormente em dois tipos, outros reduzem as Formas e os Entes

matemáticos a uma única natureza, outros ainda só admitem os Entes

matemáticos.

As duas primeiras espécies de essências constituem o objeto da física,

porque são sujeitas a movimento; a terceira, ao invés, é objeto de outra ciência,

dado que não existe nenhum princípio comum a ela e às outras duas.” (1069a30)

ou)si¿ai de\ treiÍj, mi¿a me\n ai¹sqhth/ hÂj h( me\n a)i¿+dioj h( de\ fqarth/, hÁn pa/ntej o(mologou=sin, oiâon ta\ futa\ kaiì ta\ z%½a h( d' a)i¿+dioj hÂj a)na/gkh ta\ stoixeiÍa labeiÍn, eiãte eÁn eiãte polla/: aÃllh de\ a)ki¿nhtoj, kaiì tau/thn fasi¿ tinej eiånai xwristh/n, oi¸ me\n ei¹j du/o diairou=ntej, oi¸ de\ ei¹j mi¿an fu/sin tiqe/ntej ta\ eiãdh kaiì ta\ maqhmatika/, oi¸ de\ ta\ maqhmatika\ mo/non tou/twn. e)keiÍnai me\n dh\ fusikh=j meta\ kinh/sewj ga/r, auÀth de\ e(te/raj, ei¹ mhdemi¿a au)toiÍj a)rxh\ koinh/.

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Note-se que as essências que possuem a propriedade de transitar são justamente as

sensíveis. A razão disto tornar-se-á mais clara no decorrer do segundo capítulo,

justamente quando será entendida também a existência de duas espécies de essências

sensíveis, a sublunar, perecível, e a supralunar, eterna. E podemos dizer que o livro L

retomará esta questão sempre sob diferentes óticas, em função de demonstrar a

indissociabilidade entre a matéria e o movimento e, conseqüentemente, a inevitável

conclusão na imaterialidade da essência imóvel. Quanto às opiniões existentes a respeito

de tal essência, Aristóteles refere-se à teoria platônica das idéias e à convicção de que os

números são essências independentes que constituem e governam todas as coisas,

associada aos pitagóricos, assim como à possível combinação entre as duas concepções,

quando se procura identificar as Formas com os Números, tomando-os como uma e a

mesma espécie de essência.

É necessário atentar para a distinção efetuada pelo Filósofo entre duas espécies de

ciência, correspondentes aos três tipos de essência enumerados anteriormente. As

essências sensíveis são objeto próprio da Física, visto que esta ciência investiga

justamente o movimento e as coisas que são transitórias. A terceira essência a que se

refere Aristóteles, por ser imóvel, imperecível e imaterial, deve pertencer, em virtude de

sua própria natureza, a uma ciência distinta. No livro Z da Metafísica também ocorre esta

correspondência entre a Física e as essências sensíveis. Neste caso, porém, há uma

denominação interessante para esta ciência: filosofia segunda, o que permite

interpretações em direção à proeminência de uma certa filosofia primeira, que tenha por

objeto o que, necessariamente, é imune à transição. Guardemos este fato textual.

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Posteriormente será útil retornar a este ponto, quando a questão da posição cronológica

do livro L estiver em relevo.

Os Princípios Metabólicos O capítulo dois é dedicado ao estudo das diversas espécies de transição 14

(metabolh/) possíveis na essência sensível. A transição tem lugar entre opostos e

intermediários, mas seria um erro acreditar que se trata de todo e qualquer par de opostos;

daí o exemplo da voz: é não-branca e esta característica, a saber, ser não branca, não é

substituída pela característica oposta, ser branca. Se algo transita, forçoso é admitir que

há um substrato envolvido neste processo, pois os contrários não sofrem transição. O

terceiro elemento além do par de contrários - a matéria - exerce justamente a função de

substrato, permitindo, desta maneira, a transição de um contrário para o outro, bem como

entre os estados intermediários. Assim, compreendemos o que significa dizer que os

contrários não sofrem transição: determinado contrário existe ou não em uma essência,

não cabendo interpretar o aparecimento de seu oposto como uma transição no contrário

enquanto tal. É a matéria que, ao receber o seu oposto, transforma-se. Quando um

indivíduo, Cálias, por exemplo, passa de ignorante a sapiente, a ignorância não se

transforma em sapiência, mas apenas o indivíduo transita de Cálias ignorante a Cálias

sapiente. O ser do contrário não é afetado pela transição.

Aristóteles segue enumerando as espécies de transição. Quatro são as transições:

quanto à essência, quanto à qualidade, quanto à quantidade e quanto ao lugar. A primeira

nada mais é que a geração e destruição de essências. A transição qualitativa compreende

14 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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a simples alteração em um ser, sem que isto comprometa sua essência. O aumento e o

decréscimo são os resultados possíveis de uma transição segundo a categoria da

quantidade. As essências relativas aos astros comportam apenas a espécie mais elementar

de transição, aquela da translação, mera modificação de um lugar para o outro. Para cada

uma destas modificações, se mantém válida a anterior afirmação de que a transição

ocorre entre contrários e que a matéria é o suporte de tal processo. A recapitulação dos

dois sentidos em que uma coisa pode “ser” será essencial no tocante a sua proposta

interpretativa de filósofos antigos, como Anaxágoras e Anaximandro. Com efeito, se algo

pode ser efetiva ou potencialmente, é correto afirmar que todas as essências sensíveis

mudam do que é em potência para o que é efetivamente, asserção que força a convicção

de que coisa alguma sensível é efetiva, se já não tenha foi em potência, existido ao menos

seminalmente em um ser:

“Por conseguinte, não só uma coisa pode vir a ser, por concomitância, do não

ente, mas tudo vem a ser do ente - potencial, entenda-se, e do não-ente efetivo.”(1069b18)

wÐste ou) mo/non kata\ sumbebhko\j e)nde/xetai gi¿gnesqai e)k mh\ oÃntoj, a)lla\ kaiì e)c oÃntoj gi¿gnetai pa/nta, duna/mei me/ntoi oÃntoj, e)k mh\ oÃntoj de\ e)nergei¿#. No entanto, certas coisas existem apenas potencialmente, nunca, porém, em

efetividade. É o caso, por exemplo, do infinito, tratado em Física G. Da mesma forma, o

estado de indiferenciação cósmica, postulado por Anaxágoras. Somente atentando para

isto, compreende a retificação, efetuada pelo Filósofo, da sentença “todas as coisas se

achavam juntas”. O correto será “todas as coisas se achavam juntas potencialmente, mas

não efetivamente” (hÅn o(mou= pa/nta duna/mei, e)nergei¿# d' ouÃ) (1069b23), porque a

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“mistura (to\ miÍgma) proposta por Anaxágoras e, de modo análogo, por Empédocles e

Anaximandro, não pode ser uma mistura total, ou seja, uma fusão plenamente efetiva de

todas as coisas. Ao final do capítulo veremos as razões levantadas por Aristóteles em prol

desta convicção. A observação efetuada logo a seguir, de que “esses pensadores tinham

alguma noção da matéria”, tem sido encarada com muita perplexidade por muitos

investigadores do pensamento aristotélico. Entretanto, há uma passagem do Livro I da

Metafísica bem elucidativa quanto a esta questão. Veremos a seguir como esclarecer a

observação do Filósofo com base nesta passagem.

Aristóteles, então, retifica a sentença de Anaxágoras “todas as coisas estavam

juntas” para “todas as coisas estavam juntas potencialmente, mas não efetivamente”

(1069b23). Certas coisas nunca existem em efetividade, mas apenas potencialmente. Este

é o caso não só da mistura ou fusão de todas as coisas, expresso acima, como também do

infinito, conforme afirma o Filósofo no livro G de sua Física. A razão de o Estagirita

comentar sobre “certo entendimento” que os antigos possuíam a respeito da matéria

permaneceu, de certa forma, desconhecida, conforme comentamos acima. É suficiente,

no entanto, atentarmos para o fato de que, na filosofia aristotélica, a matéria é constituinte

inseparável de tudo o que contém potência ou somente pode existir potencialmente. Ora,

a “mistura de todas as coisas” só pode existir potencialmente. Daí o fato de tal mistura se

identificar com a matéria, ainda mais tomando em consideração o caráter indeterminado

do contato entre suas partes, que não se dá em virtude de um princípio unificador (isto se

tornará mais claro no princípio do capítulo seguinte, no momento da enumeração das

coisas que identificamos com a noção de essência). Aristóteles já considera, no livro I da

Metafísica, que o princípio e a causa buscada pela maioria dos pensadores antigos é da

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ordem da matéria. Sua discordância quanto à unilateralidade deste tipo de investigação

reside no fato de que a matéria, por si mesma, não pode ser causa de nenhuma

modificação, quer dizer, “o sujeito mesmo não produz transição em si mesmo, ou seja,

nem a madeira nem mesmo o bronze, por exemplo, são causas de suas próprias

transições” (984a22) (ou) ga\r dh\ to/ ge u(pokei¿menon au)to\ poieiÍ metaba/llein

e(auto/: le/gw d' oiâon ouÃte to\ cu/lon ouÃte o( xalko\j aiãtioj tou= metaba/llein

e(ka/teron au)tw½n).

Aristóteles expressa novamente a idéia, já sustentada no princípio do capítulo, de

que a essência sensível é sujeita à transição. Aqui, porém, o Filósofo expressa

diretamente o elemento responsável pelo caráter sensível de tais essências - a matéria.

Assim, no lugar de “a essência sensível é sujeita à transição” (1069b3), temos “todas as

coisas que mudam têm matéria, mas matéria diversa” (pa/nta d' uÀlhn eÃxei oÀsa

metaba/llei, a)ll' e(te/ran:) (1069b23), em que se deve entender a distinção entre as

matérias como mantendo correspondência biunívoca com as quatro espécies de transição,

totalizando, portanto, quatro matérias distintas. São estas que possibilitam cada uma das

modificações nos seres, contendo potencialmente os contrários, através dos quais tem

lugar a transição. Daí a constatação de que a matéria que constitui as “coisas eternas” -

que se movem no espaço e não comportam outra espécie de transição - não é capaz de

outra transição, senão a local.

No momento em que exclui a possibilidade de que a existência potencial seja

potência para toda e qualquer coisa, o Filósofo pretende retificar definitivamente a

sentença de Anaxágoras para “todas as coisas se achavam potencialmente juntas”. Pois,

se a fusão dos seres teve lugar inclusive efetivamente, não há como explicar como surgiu,

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da unidade primordial, a diversidade das essências. E a sentença se mostra ainda mais

inverossímil tendo em vista que seu autor mesmo postulava um único princípio motor, a

Inteligência15 (nou=j). O Estagirita considera um absurdo que, de uma mesma matéria e de

um mesmo princípio de movimento, tenha-se originado tamanha diversidade de essências,

pois nem o motor nem a matéria seriam princípios de multiplicidade e individuação.

Como a Inteligência de Anaxágoras é uma, sua única saída teria sido, portanto, postular o

múltiplo se instaurando de saída no ser da matéria. A aparente homogeneidade da matéria

deve ser atribuída, em virtude deste postulado, ao estado ainda indeterminado e difuso do

ser potencial que a matéria, não raro, apresenta relativamente a um certo atributo ou

perfeição.

É preciso ter em vista que a enumeração das três causas e princípios, ao final do

capítulo, é apenas uma das formas como Aristóteles explica a estrutura da essência.

Aquela apresentada, agora de certa forma incompleta (se comparada com a doutrina das

quatro causas), é aplicada como uma conclusão de toda a crítica lançada contra

Anaxágoras. O Filósofo ratifica a necessidade de se admitir um terceiro elemento na

constituição dos seres, além da forma e de sua privação. Somente assim se explica a

diversidade de essências, fato que é evidente pela própria percepção. O terceiro elemento

é justamente a matéria. A teoria dos quatro princípios é forjada mirando uma explicação

mais satisfatória que a de seus predecessores, quanto à transição em geral. Desta forma,

estreitamente vinculadas à concepção aristotélica de transição, as quatro causas são

tratadas exaustivamente na Física, visto ser esta ciência o estudo das essências capazes de

transição. Porém, no Livro D da Metafísica, temos uma explanação ainda mais

15 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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satisfatória da estrutura causal das essências. Dadas as dificuldades que muitas vezes

surgem na distinção das causas e sua relevância na investigação da centralidade doutrinal

do conceito de motor imóvel, faremos agora um estudo preliminar deste tópico, cujos

elementos serão investigados ainda mais profundamente em outra unidade.

Aristóteles enumera quatro causas. Estas não são excludentes entre si. Pelo

contrário, todo fenômeno físico tem que possuir estas quatro causas em sua estrutura.

No livro D da Metafísica, o Filósofo fornece a definição de cada uma destas

causas. É considerada uma causa (aiãtioj)16, (a) "...aquilo de que, como algo constitutivo,

provém a coisa; p.e.x., o bronze é a causa da estátua e a prata, da taça e do mesmo modo

todas os gêneros em que estas se incluem” (Aiãtion le/getai eÀna me\n tro/pon e)c ouÂ

gi¿gnetai¿ ti e)nu-pa/rxontoj, oiâon o( xalko\j tou= a)ndria/ntoj kaiì o( aÃrguroj

th=j fia/lhj kaiì ta\ tou/twn ge/nh:(1013a24). Considerar a matéria como causa pode

parecer estranho para uma visão contemporânea do mundo, quando o termo causa é

tomado apenas no sentido daquilo que é capaz de causar transição ou produzir algum

efeito posterior. No entanto, como já vimos antes, a produção de algum efeito pressupõe

a existência de matéria. Somente esta está sujeita à transição em geral. Sendo assim, sem

a sua presença a produção de qualquer efeito seria impossível.

Em segundo lugar, causa significa também (b) "a forma ou modelo, isto é, o

enunciado 17 (lo/goj) do ser-prévio 18 (to\ ti¿ hÅn eiånai), e os gêneros que incluem

16 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 17 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 18 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. A opção ‘o que era o ser’, embora mais fiel à estrutura gramatical do original, é pouco inteligível na língua portuguesa. Entendemos o imperfeito da expressão como significativo de anterioridade ainda efetiva, ao contrário da proposta de Aubenque, que abordamos no apêndice.

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este”( aÃllon de\ to\ eiådoj kaiì to\ para/deigma, tou=to d' e)stiìn o( lo/goj tou= ti¿

hÅn eiånai kaiì ta\ tou/tou ge/nh) (1013a27). Esta causa, chamada causa formal, é

aquilo que faz com que uma coisa seja considerada isto que é e não outra coisa. Por

determinar entre o que pertence ao seu conceito e o que não pertence, a causa formal é

expressa, portanto, no enunciado (lo/goj) do ser-prévio (tou= ti¿ hÅn eiånai).

Em terceiro lugar, causa significa (c) "o princípio da transição ou do repouso;

p.e.x., o conselheiro é a causa da ação e o pai causa do filho; e, de modo geral, o produtor

é causa do produzido e o modificador, causa da modificado” (eÃti oÀqen h( a)rxh\ th=j

metabolh=j h( prw¯th hÄ th=j h)remh/sewj, oiâon o( bouleu/saj aiãtioj, kaiì o(

path\r tou= te/knou kaiì oÀlwj to\ poiou=n tou= poioume/nou kaiì to\

metablhtiko\n tou= metaba/llontoj) (1013a29). A causa motriz ou eficiente, como é

chamada, é fundamental em um dos principais argumentos aristotélicos contra a doutrina

platônica das Idéias. Em A7 988b, Aristóteles afirma que as Idéias são causas apenas no

sentido apontado anteriormente (b). Ou seja, são apenas causas formais como definição

da essência de cada coisa particular. Sendo imóveis e totalmente separadas das essências

sensíveis, são incapazes de impor movimento ou constituírem-se como princípio de

mutação ou repouso destas essências. O conceito platônico de participação (metéxis), que

talvez resolvesse esse impasse, é criticado por Aristóteles por considerá-lo sem

consistência. Veremos mais claramente isso no capítulo acerca do grau separativo da

unidade do ente assumido pelo motor imóvel, em que discutimos em que sentido

Aristóteles pretende superar a doutrina do mundo supra-sensível de seu mestre.

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Finalmente, causa também se diz (d) da “completude19 (te/loj), isto é, o “para o

qual”20 (to\ ou eÀneka); p.e.x., a saúde é a causa do passeio. Efetivamente, à pergunta

'por que é que a gente passeia?' respondemos:” para ter saúde “, e ao falar assim julgamos

ter apontado a causa” (eÃti w¨j to\ te/loj: tou=to d' e)stiì to\ ou eÀneka, oiâon tou=

peripateiÍn h( u(gi¿eia. dia\ ti¿ ga\r peripateiÍ; fame/n. iàna u(giai¿nv. kaiì

ei¹po/ntej ouÀtwj oi¹o/meqa a)podedwke/nai to\ aiãtion.) (1013a31).

Apesar do exemplo acima se relacionar meramente ao comportamento humano, o

conceito de completude e causa proposital não é aplicado apenas à esfera das ações

humanas. Aristóteles tem a convicção de que o propósito é inerente a toda e qualquer

modificação nas essências sensíveis. Tudo que possa surgir na natureza tenderá, no curso

de sua existência, a um propósito determinado que constitui sua completude (te/loj). Na

hipótese de que tal propósito não existisse, tudo que podemos ver de bom e belo

manifestado na natureza seria obra do acaso 21 (au)to/matoj). De modo algum teria

surgido por firme necessidade (anagke). A acentuada importância da teleologia em sua

cosmologia culminará na célebre teoria do primeiro motor. O universo inteiro é um todo

orgânico orientando-se sempre em função do bem comum. A relação mútua entre as

essências torna-se conseqüência evidente:

“Não é caso de não haver nada entre uma coisa e outra. Mas realmente há.

Todas as coisas estão coordenadas em referência a algo único.” (L 1075a16)

19 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 20 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 21 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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kaiì ou)x ouÀtwj eÃxei wÐste mh\ eiånai qate/r% pro\j qa/teron mhde/n, a)ll' eÃsti ti. pro\j me\n ga\r eÁn aÀpanta sunte/taktai

As causas que foram apontadas por seus antecessores não podem ocupar, no

conjunto da natureza, o estatuto de causas propositais. Elementos como o fogo e a terra

são constituintes das essências sensíveis, ou seja, suas causas materiais. Porém não

podem explicar a harmonia existente entre estas essências e como podem, de alguma

forma, estar visando uma meta. Em Metafísica I,3, Aristóteles argumenta assim contra

estas doutrinas anteriores "pois não é verossímil que o fogo, a terra ou qualquer elemento

semelhante seja a razão de manifestar-se a bondade e a beleza tanto nas coisas que são

como nas que vêm a ser,...e, por outro lado, não seria judicioso atribuir efeito de tal

monta ao acaso (au)to/matoj) e à fortuna22 (tu/xh)". Como podemos observar, a concepção

aristotélica de causalidade postula a existência de um princípio completivo regente das

essências sensíveis em seu curso natural. Vejamos outra articulação promovida pelo

Filósofo contra certos antecessores de sua doutrina.

No livro L da Metafísica, o Filósofo concentra as conseqüências de sua teoria

causal na demonstração da existência de uma essência que é, simultaneamente, causa

completiva de todas as essências, tanto as pertencentes à esfera sublunar como à esfera

supralunar. No parágrafo citado acima, Aristóteles julga como sendo sem fundamento a

opinião de pensadores como Espeusipo e os Pitagóricos de que a bondade, a beleza e o

supremo bem não constituem o primeiro princípio. Consideram desta maneira por

acreditarem que a beleza e a perfeição não são anteriores à formação completa de seres

como as plantas e os animais, mas sim simultâneos ao último grau de seu

22 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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desenvolvimento. Sendo assim, não são causas destes seres. Com muito mais propriedade

será denominá-las efeitos. Aristóteles rebate este ponto de vista tomando como exemplo a

semente. Esta, que seria considerada como causa por conter em si a forma própria do ser

completo, "provém de outros indivíduos, que são anteriores e completos, e o mais

primitivo não é a semente, mas o ser completo. Devemos dizer, por exemplo, que antes

da semente há um homem - não o homem produzido pela semente - mas um outro, do

qual ela provém".

Como já foi observado antes, as quatro causas não se excluem mutuamente. Para

uma mesma coisa existem várias causas. No entendimento do Filósofo, isto não ocorre do

mesmo modo para cada uma das causas. O fato de que estas ocorrem simultaneamente

não significa que não se possa determinar relativamente a cada objeto, cada uma

separadamente. No livro D da Metafísica podemos visualizar com maior clareza esta

relação:

"... p.e.x., tanto o engenho (te/xnh)23 da escultura como o bronze são

causas da estátua, não em relação a alguma outra coisa, mas enquanto estátua; e

também não do mesmo modo, mas um como matéria e a outra como aquilo de

onde provém movimento...”

oiâon tou= a)ndria/ntoj kaiì h( a)ndriantopoihtikh\ kaiì o( xalko\j ou) kaq' eÀtero/n ti a)ll' v a)ndria/j: a)ll' ou) to\n au)to\n tro/pon a)lla\ to\ me\n w¨j uÀlh to\ d' w¨j oÀqen h( ki¿nhsij (1013b7).

No exemplo acima a função de cada elemento causador da estátua é bem nítida. O

engenho da escultura responsável pela transformação do estado original do bronze é,

portanto, classificado como a causa da origem do movimento, ou causa motriz. E o

23 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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bronze, por constituir a estátua de modo a tornar sua forma (antes apenas concebida pelo

escultor) uma forma sensível, é a causa material da estátua.

Se consideramos a noção de causa tal como aparece desde a filosofia moderna

com o objetivo de tentar interpretar a filosofia aristotélica a partir desta noção,

encontram-se vários problemas.

A noção contemporânea de causa e efeito visa explicar a concatenação de eventos

de tal modo que cada um seria visto como resultado do outro. Esta relação entre dois

eventos, chamada de causalidade, reduz-se ao mecanicismo e explica, por meio de leis

físicas, o encadeamento dos eventos na ordem temporal. Em uma seqüência temporal,

será considerada causa de um evento aquele que lhe seja imediatamente anterior e sem o

qual, aquele não ocorreria. Ou seja, a causa de um evento é o elo anterior do

encadeamento de eventos que o antecede. E assim sucessivamente na determinação das

causas de cada um dos eventos. Como podemos constatar a partir desta análise, os

eventos são causas uns dos outros. Isto não significa que um mesmo evento possua várias

causas. Só é considerado causa de um evento aquele que é imediatamente anterior a este,

ainda que todos os outros tenham sido necessários para o seu advento. Uma tal visão

poderia, à primeira vista, ser adequada como uma explicação da causa motriz aristotélica.

Sendo produtora de modificação em um dado objeto, corresponderia ao conceito de causa

motriz. Esta sempre antecede o efeito por ela produzido. Conforme observamos em

Metafísica L,3: "As causas motrizes são preexistentes.” (ta\ me\n ouÅn kinou=nta aiãtia

w¨j progegenhme/na oÃnta,) (1070a22). A mesma visão não seria, no entanto, válida

para as outras três causas. Quanto à causa completiva, por exemplo, uma visão

mecanicista exclui qualquer teleologia na natureza. A idéia de um propósito pré-existente

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coordenando um conjunto de eventos e que será, posteriormente, atingido, é inconcebível

para a noção de causalidade da ciência moderna. Isto se deve, entre outros motivos, ao

fato que descrevemos acima. Neste tipo de concepção, a causa terá que ser sempre

anterior ao efeito produzido. Da mesma forma, a noção aristotélica de causa material não

coincide com a causalidade moderna por não ser capaz de produzir efeitos. Ao contrário,

por ser aquilo de que é feito um objeto, a causa material lhe confere a possibilidade de

receber os efeitos. Além disto, o conceito de matéria em Aristóteles é muito mais

abrangente que o conceito proposto pela modernidade. Não se restringe a um dos termos

de uma dualidade “mente x matéria” ou “espírito x matéria”. Matéria é justamente o que

está sujeito à modificação em cada objeto. No livro Z da Metafísica, Aristóteles escreve:

"... embora uma coisa provenha tanto da sua privação como de seu sujeito,

que denominamos matéria (por exemplo, o que recobra a saúde é ao mesmo

tempo um homem e um enfermo), perfeitamente se diz que ela provém da sua

privação (por exemplo, é antes do enfermo que do homem que provém o homem

sadio”).

aiãtion de\ oÀti gi¿gnetai e)k th=j sterh/sewj kaiì tou= u(pokeime/nou, oÁ le/gomen th\n uÀlhn (oiâon kaiì o( aÃnqrwpoj kaiì o( ka/mnwn gi¿gnetai u(gih/jŸ, ma=llon me/ntoi le/getai gi¿gnesqai e)k th=j sterh/sewj, oiâon e)k ka/mnontoj u(gih\j hÄ e)c a)nqrw¯pou.

Uma leitura mais detalhada do que Aristóteles compreende por causa motriz

mostra, no entanto, que a noção moderna de causa não é suficiente para explicar nem

mesmo a causa motriz aristotélica. Isto ocorre por dois motivos. (a) A causa motriz,

sendo produtora de efeitos na matéria, nesta impõe uma determinação, delimitando-a

através de uma forma. Ou seja, a causa motriz, ao impor uma forma (identificada em ??2

com o que é expresso pela definição da essência) na porção de matéria de um certo objeto,

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é responsável pela concepção deste objeto. Torna-se necessário que o julguemos como

sendo de uma certa natureza e não de outra. Esta necessidade não pode ser encontrada na

ciência moderna. Esta não vincula a causa de um objeto com a concepção que possamos

ter a seu respeito. (b) A causa motriz, conforme é pensada por Aristóteles, não está

necessariamente encerrada em um elemento anterior de uma seqüência causal na qual o

evento seria um elo posterior. Considera-se causa motriz, por exemplo, o agente

responsável pela seqüência causal do evento. Em Metafísica D,2, podemos constatar este

fato: "O sêmen, o médico, quem aconselha e, em geral, o agente, são todos eles

princípios de transição ou repouso” (to\ de\ spe/rma kaiì o( i¹atro\j kaiì o(

bouleu/saj kaiì oÀlwj to\ poiou=n, pa/nta oÀqen h( a)rxh\ th=j metabolh=j hÄ

sta/sewj.) (1013b20). A ciência moderna não considera o agente como um todo a causa

de um evento. Antes, julga cada movimento do agente uma causa com seu efeito

correspondente.

A tentativa de se obter uma melhor compreensão das quatro causas de Aristóteles

a partir da noção moderna de causa parece então fadada ao fracasso.

(3) Para se obter uma compreensão mais adequada da teoria aristotélica das quatro

causas, partirei da hipótese de que as várias interpretações filosóficas desenvolvidas por

Aristóteles têm por fim elucidar as estruturas que regem a maneira como nós

quotidianamente compreendemos o mundo. Sendo assim, no que diz respeito à Física, W.

Wieland 24 mostra que a física aristotélica é uma elucidação do modo como

compreendemos a noção de objeto espaço-temporal submetido ao movimento, uma

compreensão que não é nenhuma construção científica, mas sim um refinamento de nosso

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senso-comum. De modo semelhante, vários comentaristas, como por exemplo C. Kahn

(1985) , interpretaram a chamada teoria das categorias como tendo surgido através dos

vários tipos de questões que nós ordinariamente podemos colocar acerca de um dado

objeto. O mesmo tipo de interpretação parece ser válido para a teoria das quatro causas.

A palavra causa, aitía, é cognata ao verbo aitiáomai, que significa “considerar

como autor, como responsável". A pergunta pré-filosófica grega correspondente ao nosso

“por que x ?” é “diá tí x”. Ao se fazer essa pergunta acerca de um objeto, o que se quer

saber é o que ou quem é o responsável por esse objeto. Essa pergunta, no entanto, tem

quatro sentidos diferentes na filosofia aristotélica, que podem ser evidenciados em suas

respectivas respostas. Há vários tipos de “coisas” que podem ser responsáveis pelo

aparecimento de um objeto. Um objeto físico só pode ser o que é, por sua vez, porque

tem algum elemento responsável pelas alterações que nele ocorrem. Desta maneira, tem

que haver nele algum outro elemento responsável pelo fato de que, alterando-se este

objeto, permanece o mesmo. Ou seja, um elemento responsável por que as alterações se

dêem em certos limites. Este elemento é denominado “causa formal”, sendo correlato da

“causa material”, recipiente destas alterações. Estes dois elementos, por sua vez, têm que

ser unidos um ao outro. Enfim, é uma concepção ordinária da visão grega de mundo que

algo não pode ser sem que tenha por meta certa completude (te/loj). Nesse sentido, vê-

se como a pergunta “por que x?” assume quatro diferentes interpretações, já que podemos

mencionar quatro elementos responsáveis pela existência de um dado objeto.

24 (Wieland,1992)

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Modalidade Ontológica dos Princípios Metabólicos

Escreve Aristóteles:

"É preciso observar que a matéria e a forma - os princípios últimos - não se

geram. De fato, tudo o que transita é algo, que transita por obra de algo e para

algo. Aquilo pelo que ocorre a transição é o primeiro motor; o que transita é a

matéria; aquilo para o que tende a transição é a forma. De fato, iríamos até o

infinito se não somente a esfera de bronze fosse gerada, mas também a esfera ou

o bronze. Portanto, é necessário que haja um termo no qual se deva parar."

(1069b35)

Meta\ tau=ta oÀti ou) gi¿gnetai ouÃte h( uÀlh ouÃte to\ eiådoj, le/gw de\ ta\ eÃsxata. pa=n ga\r metaba/llei tiì kaiì u(po/ tinoj kaiì eiãj ti: u(f' ou me/n, tou= prw¯tou kinou=ntoj: oÁ de/, h( uÀlh: ei¹j oÁ de/, to\ eiådoj. ei¹j aÃpeiron ouÅn eiåsin, ei¹ mh\ mo/non o( xalko\j gi¿gnetai stroggu/loj a)lla\ kaiì to\ stroggu/lon hÄ o( xalko/j: a)na/gkh dh\ sth=nai.

Vemos assim que, pelo trecho acima, a matéria e a forma, consideradas em si

mesmas, são ingênitas. A impossibilidade de atingir um processo de geração até o infinito

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é o argumento fornecido pelo Filósofo em prol da eternidade da matéria e da forma

últimas. Devemos entender última, no sentido de que não se trata aqui desta ou daquela

matéria, mas da matéria em geral relativa a cada tipo de essência. O exemplo da esfera de

bronze é esclarecedor: a forma esférica do objeto tem sua origem em outro ser que

comunicou, em efetividade, a forma esférica, e assim por diante; e da mesma forma o

bronze, matéria do objeto, que foi tomado de outro ser; mas o bronze e o esférico sempre

existiram, ainda que em diferentes seres. Mas através de outro livro da Metafísica vemos

que o argumento da impossibilidade de recorrência infinita da geração seria uma

conseqüência direta de uma única recorrência. Com efeito, se a forma e a matéria

primeira fossem geradas uma única vez, nada impediria que tal geração se processasse

indefinidamente. É o que lemos no livro Z da Metafísica particularmente no tocante à

forma, identificada com a essência:

"Se, ao contrário, houvesse geração também do ser da esfera em geral,

ela deveria provir de outra coisa; de fato, o que se gera deve sempre ser divisível:

deve ser em parte isso e em parte aquilo: o que seja, em parte matéria e em parte

forma. E se a esfera é a figura que tem todos os pontos eqüidistantes do centro,

então seria preciso distinguir nela, por um lado, aquilo em que se encontra o que

se produz, e o todo será aquilo que se produziu, como no caso da esfera de

bronze. Portanto o que se chama forma e essência não se gera, mas é o

concreto25 que é gerado." (Met. Z 1033b11)

tou= de\ sfai¿r# eiånai oÀlwj ei¹ eÃstai ge/nesij, eÃk tinoj tiì eÃstai. deh/sei ga\r diaireto\n eiånai a)eiì to\ gigno/menon, kaiì eiånai to\ me\n to/de to\ de\ to/de, le/gw d' oÀti to\ me\n uÀlhn to\ de\ eiådoj. ei¹ dh/ e)sti sfaiÍra to\ e)k tou= me/sou sxh=ma iãson, tou/tou to\ me\n e)n %Ò eÃstai oÁ poieiÍ, to\ d' e)n e)kei¿n%, to\ de\ aÀpan to\ gegono/j, oiâon h( xalkh= sfaiÍra. fanero\n dh\

25 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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e)k tw½n ei¹rhme/nwn oÀti to\ me\n w¨j eiådoj hÄ ou)si¿a lego/menon ou) gi¿gnetai, h( de\ su/noloj h( kata\ tau/thn legome/nh gi¿gnetai. Assim, o trecho deixa claro que o "ser esférico", isto é, a forma da esfera não

pode ser gerada, pois toda geração envolve novamente outra forma e matéria

constituintes, o que não é possível ocorrer no ser da esfera, que é a pura forma da esfera,

pois ao tomá-la em sua pureza, já excluímos qualquer matéria de sua concepção. Resta-

nos tão somente o conceito, a idéia primeira de esfera em geral que podemos expressar na

definição "figura que tem todos os pontos eqüidistantes do centro", definição esta que não

comporta divisibilidade em matéria e forma, pois contém tão somente a estrutura de

eqüidistância mantida em tudo o que denominamos esfera. Esta estrutura é a forma da

esfera. Ora, "a forma é indivisível" (aÃtomon ga\r to\ eiådojŸ (Met. Z, 1034a8).

Permanece apenas a questão da razão de Aristóteles considerar o bronze como ingênito.

Seria natural considerar possível a geração da matéria do bronze por outra "menos

enformada". Penso que uma boa aproximação para uma resposta satisfatória é atentar

para a homogeneidade do bronze, que dificulta a percepção fenomênica de alguma

determinação em sua natureza. Tal propriedade talvez lhe conferisse imunidade ao devir

semelhante ao que agora deduzimos para forma pela indivisibilidade desta última. O

homogêneo é uma das espécies de contínuo, e este, juntamente com o indivisível é uma

das muitas faces do um - como vemos no livro D da Metafísica. E a unidade homogênea

do bronze torna impossível a cognição de uma estrutura discriminada ou uma nova

dicotomia hilemórfica pela sua mera representação, coisa já demonstrada ser impossível

também na forma que essa matéria pode assumir.

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Aristóteles afirma que “cada coisa é gerada a partir daquela com que compartilha

o nome.” (e(ka/sth e)k sunwnu/mou gi¿gnetai ou)si¿a) (1070a5). E logo a seguir

enumera quatro maneiras pelas quais algo se gera. São estas: a geração por engenho

(te/xnv), por natureza (fu/sei), por acaso (t%½ au)toma/t%) ou por fortuna (tu/xv).

Define geração por engenho como aquela em que o princípio de geração reside em outra

coisa diversa da coisa gerada, ao contrário da geração por natureza, em que o princípio

está na própria coisa gerada, como no caso do homem, pois “o homem gera o homem”. A

geração casual é uma privação (ste/rhsij) do princípio de geração natural, quando

então decorre que a causa da geração de determinado ser é totalmente desconhecida. Diz-

se que é por fortuna toda geração de um ser em que não houve real intenção por parte

daquele que possui o engenho; esta é a diferença entre as duas espécies de gerações: a

primeira é uma negação da geração por natureza, e a segunda, uma negação da geração

por engenho. A sentença “o homem gera o homem” poderia sugerir que na afirmação

“todas as coisas se geram de algo que compartilha o seu nome e essência”, a expressão

“todas as coisas” se refere, de fato, a todos os seres gerados por natureza, pois apenas

sobre estes poderíamos dizer o mesmo que se diz quanto ao homem, “que gera o homem”.

Entretanto, logo tal convicção se apresenta desarticulada relativamente a outros escritos

do Estagirita. No livro Z da Metafísica lemos que, em certo sentido, todas as coisas se

geram de algo que compartilha o seu nome, caso das coisas naturais, ou de uma parte que

compartilha o seu nome, caso do engenho, pois a forma do objeto criado tem o mesmo

nome que a forma que a precedeu na mente do criador. Daí a razão de Aristóteles afirmar,

mesmo das coisas cujo princípio de geração reside em outro ser, a mesma conexão

nominal entre gerado e gerador, pois ainda que o princípio de geração seja extrínseco à

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coisa gerada, alguma de suas partes compartilha o mesmo nome que esta. Quando

escreve “a partir daquela com que compartilha o nome” (e)k sunwnu/mou) (1070a5),

refere-se aos sinônimos, tratados no princípio das Categorias. Sinônimos são as coisas

que tem o mesmo nome e esse nome indica que há, de fato, comunidade de essência. São

homônimos de uma tipo especial, pois a igualdade nominal aqui não é fortuita. Certas

dificuldades foram levantadas a respeito do significado das gerações casuais e fortuitas

quanto à convicção previamente assumida da geração pelo homônimo. Se tais fenômenos

sucedem pela ausência dos princípios de engenho e natureza, de que princípios estas

essências são sinônimas? Ross acredita que se tratam de meras exceções que

confirmariam a regra anteriormente estabelecida. Preferimos, no entanto, investigar a

questão com base no passo 1065a30 do livro XI da Metafísica, em que o Filósofo escreve

que as gerações casuais e fortuitas são gerações em sentido concomitante, e não em

sentido absoluto, e da mesma forma devemos considerar as eventuais causas, ainda que

sejam desconhecidas, já que só podem ser concebidas como desvios em relação às

intenções dos agentes inteligentes e naturais, causas em sentido absoluto de gerações em

sentido absoluto, a saber, as gerações por engenho e por natureza, respectivamente. Ao

afirmar que todas as gerações procedem de algo sinônimo, Aristóteles se refere a todas as

gerações que se dizem tais em sentido próprio, e não àquelas tomadas como gerações

apenas por concomitância.

Como vimos acima, Ross acredita que a referência às gerações por acaso e fortuna

são apenas exceções que confirmam a regra da geração por algo sinônimo. Aristóteles as

define como privações de natureza e engenho. Ross acredita que estas privações sejam

gerações com o mesmo direito que as outras duas. O estudioso se apóia na extensa

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discussão a respeito dos três princípios e causas - forma, privação e matéria - que

evidenciaria fortemente o lugar da privação em sua doutrina da causalidade. A privação,

assim, seria uma causa tanto quanto a forma, ao contrário do que poderia sugerir o passo

1070a10, em que Aristóteles parece considerar a privação uma causa de segunda ordem.

Na verdade, há uma certa confusão quanto aos usos do termo privação. Ross não

considera que são modos diferenciados, o que o faz tratar como tendo o mesmo

significado a privação da forma - especialmente apreciada nos capítulos quatro e cinco - e

as privações de engenho e natureza, que no passo 1070a10, são nitidamente tomadas

como causas de segunda ordem, acidentais. Extraímos esta conclusão da leitura do livro

XI, particularmente o capítulo oitavo. Aristóteles afirma que as causas das gerações por

acaso e fortuna - que em L,3 são definidas como privações das outras espécies de

geração - são causas em sentido concomitante. São causas à margem da completude

(te/loj), o para algo, próprio dos agentes naturais e artificiais. A fortuna (tu/xh) é a

privação do ‘para o qual’ (to\ ou eÀneka), ou seja, o propósito relativo à geração pelo

engenho, cujo agente é o homem. O acaso, por sua vez, tem lugar na ausência do para

algo presente nas produções naturais - nas quais, como vimos em L,3 - o princípio de

movimento reside no próprio ser, pois tal princípio é a natureza (fu/sij). Realmente

peculiar neste tipo de privação é que a mesma significa a produção de algo diferente

daquele originado de uma geração pela forma, seja esta natural ou concebida pelo artífice.

Porém, o modus operandi é, inexplicavelmente, o mesmo. Daí o Filósofo afirmar no

tocante a tu/xh:

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“E indeterminadas são as causas pelas quais são geradas as coisas que se geram

pela fortuna, de forma que este é oculto para o raciocínio humano, sendo causa

em sentido concomitante, mas não é nada em sentido absoluto”.

ta\ d' aiãtia a)o/rista a)f' wÒn aÄn ge/noito ta\ a)po\ tu/xhj, dio\ aÃdhloj a)nqrwpi¿n% logism%½ kaiì aiãtion kata\ sumbebhko/j, a(plw½j d' ou)deno/j. (1065a33)

A perplexidade do Estagirita quanto a este tipo de privação, o levou, em outras

retomadas sobre o assunto, a assumir uma tese no mínimo atípica no conjunto de seu

pensamento. Em Z,9, Aristóteles sustenta que a causa do acaso é a capacidade que a

matéria possui, muitas vezes, de mover a si mesma, de tal maneira como o faria um

princípio natural de movimento, como é o caso da saúde, que certas vezes é restaurada

sem a intervenção do engenho médico. Vale notar que, neste último exemplo, a privação

da geração por engenho não é a fortuna, como seria de se esperar, mas o acaso. A razão

disto pode ser procurada na própria natureza da medicina. Trata-se de um engenho bem

peculiar: age, necessariamente, de acordo com os princípios naturais, o que torna esta

espécie de recuperação do indivíduo explicável tanto em termos de acaso como pela

fortuna. O que é realmente curioso aqui é a tese proposta por Aristóteles, de que a matéria

poderia mover a si mesma, o que tornaria compreensível a geração, mesmo na ausência

de princípios formais, sejam estes naturais ou artificiais. Sabemos que o Filósofo, ao

longo de seu pensamento, não sustenta o automovimento da matéria, postulando sempre

uma outra causa para sua modificação. É exatamente assim que censura os filósofos

jônios em 984a20. A matéria, segundo Aristóteles, é o único princípio que estes

pensadores buscaram para explicar a realidade. Mas não podemos explicar o movimento

em geral somente com este princípio, pois a matéria não impõe a si mesma qualquer

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modificação, “nem a madeira nem o bronze são causa, respectivamente, de sua própria

transição.”

Resulta claro então por que, no passo 1070a11 do livro L, o Filósofo se refere tão

brevemente ao acaso e à fortuna. Nas linhas anteriores, em que afirma que “cada

essência é gerada a partir daquela que tem o mesmo nome” (1070a5), não previa, como

supôs Ross, uma exceção à regra. O que pretende é que todas as coisas geradas em

sentido próprio, sucedem assim por algo sinônimo. A definição da fortuna e ao acaso

como privações de engenho e natureza, longe de significar um caso especial nesta lei

ontológica, é na verdade, condicionada por um âmbito de fatores completamente

diferentes não só das respectivas gerações - de que são negações - como também da

simples privações da forma, bem mais inteligível e investigada em boa parte do livro L.

A privação que Aristóteles considera causa e princípio com o mesmo direito que a

matéria e a forma, é simplesmente uma negação desta última, perfeitamente

compreensível, porquanto origina um ser bem diverso. Ao contrário, as privações de

natureza e engenho, na medida em que geram os mesmos seres que os princípios naturais

e artificiais, são duplamente negações porque a) negam a forma, ausências que são dos

princípios de movimentos sinônimos, quer dizer, dos princípios equivalentes às formas

dos seres produzidos ; e b) negam o próprio modo de geração, pois os seres gerados são,

surpreendentemente, os mesmos, ou seja, não são outros seres, mas desvios ou falhas dos

mesmos.

Agora estamos em condições de compreender a totalidade do terceiro capítulo.

Aristóteles o inicia demonstrando a impossiblidade de geração da forma e da matéria. A

seguir, como pudemos apreciar, estabelece o modo conforme o qual todas as essências

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vêm a ser, qual seja, a partir de algo sinônimo. A partir destes dois pressupostos, não

seria surpreendente a ocorrência de uma confusão a respeito das reais convicções do

Filósofo, principalmente uma identificação errônea com a doutrina platônica das idéias.

Pois também as idéias são ingênitas e são causas de mesmo nome e essência que as

essências por elas geradas (com efeito, a essência do redondo se identifica com a idéia de

redondo). É exatamente se prevenindo contra este tipo de interpretação que Aristóteles 1)

explica em que sentido se diz que as causas são “sinônimas”, 2) determina o modo de ser

das formas das coisas e 3) nega firmemente a necessidade de admitir as Idéias, mesmo

para explicar a geração das coisas naturais, pois “um homem gera um homem”.

Nas produções através do engenho, as causas não existem em si e por si mesmas,

à maneira das Idéias, pois existem apenas enquanto inteligidas pelo artífice. Nas

produções naturais, objeto de estudo da Física, as causas não existem separadas da

matéria, pois são intrínsecas aos entes causados. Nos dois casos, portanto, as causas

sinônimas não correspondem às Idéias platônicas. Para os produtos do engenho, observa

o Estagirita, mesmo Platão não postulava formas separadas.

No passo 1070a5, lemos que “toda a essência compartilha de algo do mesmo

nome e essência, tanto as essências naturais como as outras”. Por essência natural,

entende-se uma coisa gerada por natureza, o que, nas linhas seguintes, é expresso como

“um princípio que está na coisa mesma”. O princípio imanente é diverso de um princípio

exterior à coisa. Aquele é o caso, por exemplo, da geração de um homem por outro

homem, pois neste caso o princípio de geração reside, de certa forma, no que é gerado,

visto que o gerador e o gerado são, ambos, homens. Quanto à construção de uma casa por

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um homem, dizemos que o princípio de geração não reside na coisa mesma, mas lhe é

exterior, pois uma coisa é o homem que projeta a casa, outra a casa projetada.

A partir da classificação acima, é natural perceber uma incongruência

relativamente ao que o Estagirita denomina geração por algo de mesmo nome (e)k

sunwnu/mou). Que a geração de um homem por outro homem seja a geração de uma

essência por algo do mesmo nome e essência, parece evidente por si mesmo. E da mesma

forma quanto às demais essências naturais. As dificuldades surgem no que diz respeito às

produções artificiais, que o Filósofo também admite como sinônimas. A princípio,

pareceria estranho encontrar na construção de uma casa a geração de algo de mesmo

nome e essência, pois o construtor é um homem. É que Aristóteles pressupõe um

argumento já confeccionado no passo 1034a25 do livro Z da Metafísica:

“Resulta igualmente claro que, de certo modo, todas as coisas se geram de algo

de mesmo nome, como as coisas naturais, ou a partir de uma parte de mesmo

nome (por exemplo, a casa a partir da casa enquanto presente na inteligência,

pois o engenho é a forma.”).

dh=lon d' e)k tw½n ei¹rhme/nwn kaiì oÀti tro/pon tina\ pa/nta gi¿gnetai e)c o(mwnu/mou, wÐsper ta\ fu/sei, hÄ e)k me/rouj o(mwnu/mou oiâon h( oi¹ki¿a e)c oi¹ki¿aj, v u(po\ nou=: h( ga\r te/xnh to\ eiådoj. Torna-se mais nítida, a partir da leitura acima, a razão de Aristóteles afirmar que

as produções artificiais, assim como as naturais, são gerações a partir de algo de mesmo

nome e essência. Pois as essências provêm de algo totalmente sinônimo ou de algo

parcialmente sinônimo, sendo que, no caso da construção de uma casa, por exemplo, a

parte sinônima responsável pela geração nada mais é que a forma da casa, presente na

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mente do construtor. Assim, não é absurdo dizer que a casa é gerada de algo do mesmo

nome, pois é gerada de outra casa, quer dizer, daquela concebida pelo construtor.

O que resulta estranho é o motivo pelo qual o Filósofo se refere àquele que gera

como homônimo, no livro Z, e como sinônimo, no livro L. Sabemos que são duas noções

diferentes, distinção efetuada no princípio de Categorias. Em verdade, “chamam-se

homônimos os nomes que só têm de comum o nome, enquanto o enunciado (lo/goj) de

sua essência é distinta” ( ¸Omw¯numa le/getai wÒn oÃnoma mo/non koino/n, o( de\ kata\

touÃnoma lo/goj th=j ou)si¿aj eÀteroj,). Aristóteles ilustra a definição aludindo a

homonímia existente entre um homem e um homem em pintura; a coincidência nominal

não implica uma identidade de essência. Com os sinônimos ocorre algo bem diferente: há

uma simultaneidade entre o nome e a essência dos respectivos objetos. Daí o fato

estranho que é Aristóteles aplicar estes dois termos de maneira, aparentemente,

indiscriminada. Mas encontramos a razão disto no fim mesmo do capítulo três do livro L,

quando ele afirma que o engenho médico, a qual pressupõe o enunciado formal da saúde

concebida pelo médico, se identifica com a saúde mesma. Da mesma forma, lemos no

capítulo quatro do mesmo livro: “O homem gera o homem e o indivíduo gera outro

indivíduo. O mesmo vale para o engenho: o engenho médico é o enunciado da saúde.

(aÃnqrwpoj ga\r aÃnqrwpon genn#=, o( kaq' eÀkaston to\n tina/: o(moi¿wj de\ kaiì

e)piì tw½n texnw½n: h( ga\r i¹atrikh\ te/xnh o( lo/goj th=j u(giei¿aj e)sti¿n.)

(1070a28)”

No livro L, Aristóteles ratifica uma convicção que já possuía em Z, a de que a

forma inteligida no engenho e a forma na essência mesma se identificam em nome e

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essência. Por isso em Z o Filósofo utiliza o termo homônimo (mesmo nome) e em L o

termo sinônimo. Isto confirma a maturidade do livro L, relativamente ao Z.

A Redução Analógica dos Princípios

Aristóteles afirma, no princípio do capítulo quatro, que há dois modos de

considerar as causas e princípios de todas as coisas. A partir de um destes modos,

dizemos que as causas e princípios das coisas são diferentes para cada um dos seres

existentes. Trata-se da perspectiva abordada no capítulo anterior, em que se identifica na

causa algo de mesmo nome e essência que o causado. Sendo assim, cada coisa terá sua

própria causa, aquela correspondente a sua essência mesma. Outro modo de considerar a

causalidade consiste em “enunciar algo universalmente e por analogia” (kaqo/lou le/gv

tij kaiì kat' a)nalogi¿an,) (1070a31), o que significa investigar e enumerar as causas

a partir do que possuem em comum. A indefinida diversidade de causas e princípios se

mostra, sob este enfoque, redutível a uma relação de poucos tipos, segundo as funções

gerais exercidas nos seres.

Cabe demonstrar, primeiramente, a impossibilidade de fazer derivar todas as

categorias a partir dos mesmos elementos. “O elemento é anterior (pro/teron) àquilo de

que é elemento” (pro/teron de\ to\ stoixeiÍon hÄ wÒn stoixeiÍon:) (1070b1). Isto força

que não haja “nenhum elemento comum ao lado da essência e das outras categorias”

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(para\ ga\r th\n ou)si¿an kaiì taÅlla ta\ kathgorou/mena ou)de/n e)sti koino/n,)

(1070a36). Em Categorias26 , Aristóteles enumera dez modos de ser27 , dez maneiras

segundo as quais dizemos que uma coisa é; a essência ocupando o lugar central, como

fundamento único em que as demais categorias subsistem. Se existissem, de fato,

elementos comuns a todas as categorias, teriam que ser anteriores às mesmas, o que seria

equivalente a postular a necessidade de “novas categorias”, além da décade já conhecida.

Mas a décade é justamente a relação dos gêneros supremos, anteriores a todos os outros.

Outra possibilidade é também descartada: os elementos comuns não podem pertencer a

uma das categorias, pois é inadmissível que uma categoria seja elemento de outra. As

categorias, além de serem maximamente gerais, são distintas entre si, tal distinção

tornando-as absolutamente irredutíveis umas às outras.

Os elementos, vale ainda ratificar, são constitutivamente anteriores às coisas de

que são elementos. Por isto é impossível, afirma Aristóteles, que certas noções universais,

como “o que é” (ón) e “um” (hén), sejam elementos dos compostos, caso contrário, nada

poderia “ser” ou “ser um”, sem a conseqüência de se identificarem com seus próprios

constituintes.

Forma, privação, matéria: três princípios e causas universais, porque não são outra

coisa senão um modo analógico de estudar a geração e a constituição dos seres. Nas

coisas dotadas de matéria, por exemplo, o calor e o frio podem exercer, respectivamente,

a função analógica de forma e privação; a matéria, por sua vez, é potencialmente quente

ou fria, atualizando-se conforme o que prevaleça, a forma ou a privação. Os elementos

das coisas não se identificam totalmente com as mesmas, mas compartilham o mesmo

26 Cat. 1b25

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nome e essência, conforme vimos anteriormente. A forma de uma essência, nesta

existindo em efetividade, pode ser transmitida a outra essência que já possua esta forma,

ainda que potencialmente; é o caso da forma de homem, transmitida em efetividade do

pai a seu filho. Sendo assim, há um antes e um depois no tocante ao “ser” da forma de

homem presente no filho: a determinação antes própria de uma essência, o pai, passa

então a fazer parte de outra essência, o filho. Tal coisa não se verifica quando as noções

de “um” e “o que é” são tratadas como elementos. Logo se verifica o absurdo da tese,

pois não há como considerar um modo segundo o que algo seja a causa do caráter de

“um” ou de “algo que é” de outra coisa. Estas noções são trans-genéricas, sendo que as

categorias são maneiras segundo as quais conhecemos “o que é” e o “o que é um”,

destacando-se entre todas aquela de caráter próprio e central, a essência. “Ser” e “ser um”

são as condições mesmas para que algo seja objeto de intelecção.

Não obstante, cada coisa possui sua própria matéria, forma ou privação de forma.

A matéria da cor não é a mesma que a da do dia e da noite: na primeira a superfície; nas

segundas, o ar. E as mesmas distinções se verificam quanto aos demais princípios, como

a forma e privação. Com isto quer Aristóteles fazer entender que estes três princípios o

são apenas analogicamente, não cabendo tomá-los em sentido absoluto, como

subsistentes em si mesmos independentemente do que são para cada coisa particular.

Assim, a “Forma em geral” ou a “Privação em geral” não são causas do dia e da noite;

antes, a forma da luz e sua privação, a obscuridade, são suas respectivas causas.

Todo elemento é um princípio, mas nem todos os princípios são elementos. A

noção de elemento é mais restrita que a de princípio. Os elementos são sempre imanentes

27 Esta lista não é definitiva nos próprios textos de Aristóteles. Referimo-nos ao livro Categorias por se tratar da versão mais completa forncecida pelo Estagirita.

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às coisas, ao contrário dos princípios, em que se incluem, além das causas imanentes, os

agentes externos produtores de movimentos. Ambos, os princípios e os elementos, são

causas, pois a noção destas, além de abranger os princípios intrínsecos e extrínsecos, se

aplica também a todos os elementos. Por isso, escreve o Filósofo: “os elementos são três

analogicamente, enquanto as causas e princípios são quatro”. Os elementos constitutivos

de todas as coisas, tomados analogicamente, já foram enumerados: são a matéria, a forma

e sua privação. Sendo elementos, são também causas e, da mesma forma, determinado

tipo de princípios, vale dizer, os de ordem intrínseca. Aristóteles se refere às causas

motrizes quando indica a existência de uma quarta causa. Vale notar a significativa

diferença entre esta enumeração das causas e aquela “canônica”, que expomos

anteriormente, em que se faz referência àquilo para o qual, a causa completiva. Outra

divergência é que neste tipo de classificação tradicional não notamos a consideração da

privação como uma das causas. Martínez (1998, p.478) supõe que, a exemplo do que faz

no capítulo três, o Filósofo identifica a causa completiva com a forma. De qualquer forma,

esta “tábua” de causas também é objeto de uma tentativa de redução. No fim do capítulo,

o Filósofo alude novamente para o modo como têm origem os seres naturais e os

produtos do engenho. Nos primeiros, as causas produtoras de movimento são intrínsecas

aos seres causados, como é o caso de um homem em relação a seu pai, o que permite

identificar a causa produtora de movimento com a causa formal; os produtos do engenho

também admitem esta identificação, pois a causa motriz é a própria forma, enquanto

inteligida pelo artífice. Em ambos os casos, portanto, a relação se reduz a apenas três

causas.

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De maneira extremamente sucinta, Aristóteles alude à questão fundamental do

livro L, somente investigada realmente a partir do capítulo sexto. Assim, escreve

Aristóteles: “E, além de todas estas causas, está aquela que move todas as coisas, por ser

a primeira de todas elas” (eÃti para\ tau=ta to\ w¨j prw½ton pa/ntwn kinou=n

pa/nta.) (1070b34). É o primeiro motor a causa que move todas as coisas.

Compreenderemos o pleno significado desta passagem no sétimo capítulo, quando o

Estagirita conclui na identidade do que é maximamente inteligível e do que é desejável

em máximo grau, justamente o motor primeiro de todas as coisas, que as move sem ser

movido, pois atua mediante o desejo que possuem pela sua perfeição.

Redução Analógica da Modalidade Existencial No capítulo a seguir, Aristóteles segue estendendo-se na argumentação da tese

estabelecida anteriormente: a de que os princípios e causas de todos os seres não são os

mesmos, diversificando-se conforme a diversidade mesma das coisas; mas, em certo

sentido, são as mesmas, segundo sejam tomadas em sua universalidade, quer dizer, as

funções exercidas por todas as causas e princípios, indiscriminadamente. Porém, aqui são

propostas novas analogias, além daquela relativa a forma, privação, matéria e causa

motriz.

Posto que nada pode existir separadamente das essências, é preciso admitir que

sem as essências não poderia haver movimento algum, e portanto, nenhuma espécie de

causalidade teria lugar. Daí o dizer que as essências, sob esta perspectiva - que leva em

conta seu caráter imprescindível no tocante à geração e destruição - são as causas de

todas as coisas.

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É possível dividir as causas segundo dois modos gerais de ser: aquelas que o são

potencialmente e as que são em efetividade. Neste sentido também as causas são as

mesmas para todas as coisas. O Filósofo, porém, adverte que “estas são também distintas,

e de distintos modos, para coisas distintas” (a)lla\ kaiì tau=ta aÃlla te aÃlloij kaiì

aÃllwj.)(1071a4). Com isto quer introduzir a discussão sobre as diversas causas que, a

despeito de estarem sob a mesma denominação no que diz respeito à potência e à

efetividade, originam os seres de maneiras bem distintas.

Efetividade e potência não são princípios absolutamente distintos dos

investigados até agora; antes, mantêm estreita relação com a forma, a privação e matéria,

além do concreto (su/noloj) constituído de matéria e forma, essência propriamente dita.

A matéria se identifica, de certa forma, com a potência, pois apenas potencialmente a

matéria é alguma coisa determinada, mudando de um para outro contrário de acordo com

o princípio efetivador ao qual se encontra submetido no momento. “A forma é efetiva na

medida em que é separada (xwristo/n) (e)nergei¿# me\n ga\r to\ eiådoj, e)a\n vÅ

xwristo/n.) (1071a7)”: eis uma passagem complicada. Separação da forma não deve,

obviamente, ser entendida à maneira como se entende a separação das Idéias, visto ser

Aristóteles opositor desta teoria. Pressupõe-se, na verdade, o mesmo que no princípio do

capítulo três, isto é, a forma como aquilo para o qual, a causa completiva sendo o mesmo

que a causa formal, porquanto a realização completa de uma essência reside na plena

efetividade de sua forma. Considerada como forma individual relativa à matéria própria

do indivíduo, a forma é a essência mesma, pois, conquanto não exista independentemente

da matéria, como se subsistisse em si mesma, é o princípio mesmo de cognoscibilidade

da essência, pois definir é expressar a forma assumida pela matéria. A matéria não pode

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ser conhecida, nem mesmo por abstração, pois não possui determinação. A forma, pois, é

efetiva, tal qual a essência, porquanto razão mesma de sua efetividade. A privação

permanece sendo a negação da forma, ausência de uma específica determinação na

essência, somente inteligida a partir de seu contrário, a forma, pois “é como a escuridão e

a doença” (oiâon sko/toj hÄ ka/mnon) (1071a9).

Aristóteles não admite que princípios universais sejam causas no mesmo sentido

em que os indivíduos são causas dos indivíduos. Em Categorias28, lemos que as essências

primeiras, essências em sentido próprio, diz-se daquelas coisas que não se predicam de

nada mais, pois até mesmo as essências segundas, como “homem” e “macaco” podem ser

predicadas de ao menos uma coisa, a saber, as essências primeiras, “este homem

particular e “este macaco particular”. Os indivíduos são, pois, causas com mais

propriedade que os princípios universais, pois são causas de essências primeiras,

enquanto um universal somente pode ser causa de um universal. Por isso escreve assim o

Estagirita: “Peleo é [princípio] de Aquiles, e teu pai de ti, e este B particular deste BA,

mas B em geral de BA em geral” (Phleu\j ¹Axille/wj sou= de\ o( path/r, kaiì todiì

to\ B toudiì tou= BA, oÀlwj de\ to\ B tou= a(plw½j BA.) (1071a22).

Afirmar que as essências são causas de tudo o que existe significa também admitir

os princípios e causas das essências como causas de todas as coisas. Da mesma forma,

porém, o Filósofo nos adverte contra o perigo de interpretar o caráter universal da

causalidade de modo rígido e dogmático. Há o gênero, a espécie e o indivíduo; somente o

último tem existência separada, subsistindo em si mesmo. O princípio de individuação, o

que diversifica a espécie em seres particulares, é a matéria, pois cada essência possui

28 Cat. 2a15

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matéria diferente de todas as outras. A matéria relativa ao indivíduo mesmo, ao contrário

daquela universal, é, pois, sempre distinta. Tomás de Aquino, em sua obra “O Ente e a

Essência” (1996, 29) denominou esta matéria - a que realmente está concretizada em um

ser - matéria signada, em contraposição à matéria não-signada, produto da abstração,

como quando dizemos “a carne em geral” ou “o bronze em geral”. A matéria, vista sob

este aspecto, já torna bem distinta a significação do dizer que as causas e princípios são

os mesmos para a totalidade dos seres. Aristóteles acentua a irredutibilidade última dos

princípios generativos, mesmo a partir de uma reflexão que não inclua a matéria, a

medida em que as causas de coisas congêneres podem diferir, caso pertençam a espécies

distintas.

Há uma outra maneira segundo a qual se pode contemplar a universalidade das

causas responsáveis pelas diversas transições, desde o movimento espacial até a geração

e destruição das essências. Trata-se da essência que existe plenamente em efetividade, a

primeira de todas, que a todas move e, por isso, é universal. Esta essência, já anunciada

no princípio do capítulo como imóvel e não-sensível (pois nada sensível pode ser imóvel)

será realmente investigada a partir do sexto capítulo. O primeiro motor é universal por ser

a primeira das causas. Este raciocínio não é único dentro da totalidade da Metafísica. No

livro VI, escreve assim o Estagirita:

“Se, pelo contrário, existe uma essência imóvel, esta será anterior, e filosofia

primeira, e será universal deste modo: por ser primeira.” (1026a28)

ei¹ d' eÃsti tij ou)si¿a a)ki¿nhtoj, auÀth prote/ra kaiì filosofi¿a prw¯th, kaiì kaqo/lou ouÀtwj oÀti prw¯th:

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A essência imóvel, portanto, é um universal de um modo radicalmente diferente

daquele próprio de um gênero ou de qualquer noção geral. É universal não porque

determinação geral de um conjunto de coisas, mas enquanto domina um conjunto de

coisas. É universal porque central. Enquanto a noção de um gênero está presente

universalmente nas espécies, a essência imóvel está presente universalmente em toda a

referência à efetivação de seus móveis. Com tais palavras o Filósofo estabelece de

maneira explícita a conexão mantida entre a ontologia e teologia, isto é, entre a ontologia

geral e a ontologia especial. Torna também complicadas quaisquer tentativas de ver, no

Livro L um trabalho ainda “platônico”, que seria substituído pela fase em que as

essências sensíveis constituiriam o único objeto da filosofia primeira.

Aristóteles nos fornece o que parece uma síntese de todo o capítulo, quando

afirma que, além da matéria relativa às coisas individuais, são diversos ainda os

contrários, com exceção dos genéricos e dos que admitem múltiplos significados. Estes

últimos são, evidentemente, a privação e a forma, visto a multiplicidade de significados

que podem assumir, pois cada coisa possui sua forma e privação próprias. Os contrários

genéricos, quer dizer, os que se dizem universalmente, não devem também ser contados

entre as causas efetivas das essências. As causas efetivas, as responsáveis pelas coisas

particulares, são sempre diferentes pois, ao diferirem as espécies, da mesma forma serão

as causas; justamente por isso, como já vimos mais acima, os contrários genéricos, como

o “o redondo em geral” ou “o reto em geral” não se contam entre as causas efetivas dos

indivíduos.

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Demonstração da Supra-essência

A classificação estabelecida no princípio do livro L, a qual observava a existência

de três tipos de essências primeiras - quer dizer, três espécies de seres que não se

predicam de nada mais e subsistem em si mesmos -, será retomada no sexto capítulo, pois

se trata agora de investigar a essência imóvel, mesmo para saber se realmente existe.

Deve-se demonstrar a existência de uma essência imóvel, esta já brevemente

aludida no capítulo primeiro do livro agora investigado. Aristóteles já forneceu as razões

da prioridade da essência em relação a todas as outras coisas que dizemos que são, pois

sem a essência não existiriam nem qualidades nem quantidades, dado que estas são

apenas qualidades e movimentos (poio/thtej kaiì kinh/seij) (1069a22). Pois bem, se

devemos às essências a totalidade dos movimentos existentes, é necessário aceitar que

nem todas as essências estão sujeitas à corrupção, caso contrário o movimento em geral

também seria corruptível, isto é, não seria eterno, “mas é impossível que o movimento se

gere ou se corrompa, pois sempre foi assim” (a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai

hÄ fqarh=nai (a)eiì ga\r hÅn) (1071b8). A eternidade do movimento não é, porém, uma

mera opinião do Estagirita, certa convicção gratuita, mas é especialmente tratada em

Física, Q. É preciso, por isso, ter em vista as “obras físicas” - não apenas o capítulo oito,

como também G, para não incorrer em mal-entendido ao longo das linhas seguintes,

quando é dito que o tempo “ou é o movimento ou uma passibilidade do movimento” (hÄ

ga\r to\ au)to\ hÄ kinh/sew¯j ti pa/qoj) (1071b10). Com isso não pretende o Filósofo

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identificar tempo e movimento de modo simples, trivial. O fato é que o tempo não é

perceptível sem alguma forma de movimento, e , como este último, é impensável sem

antes e um depois. Ora, como se afirma mais adiante, o antes e o depois não existem sem

o tempo; são noções, portanto, interdependentes. Por isso, já no livro D da Física,

Aristóteles define o tempo como “o número do movimento segundo o antes e o depois”

(tou=to ga/r e)stin o( xro/noj, a)riqmo\j kinh/sewj kata\ to\ pro/teron kaiì

uÀsteron.) (219b1). No âmbito das discussões levantadas no presente capítulo, contudo,

é imprescindível apreciar com detalhes a demonstração da eternidade do movimento

efetuada no livro Q da Física”.

Aristóteles empreende, no livro Q da Física, a investigação sobre a possível

eternidade do movimento. Duas hipóteses são primeiramente analisadas: a doutrina do

Nous de Anaxágoras e a teoria do Amor e do Ódio de Empédocles. A primeira postula

que todas as coisas encontravam-se, durante um tempo infinito, juntas de maneira

indiferenciável no mais completo repouso. Em certo instante deste tempo infinito de

repouso, todas as coisas sofrem a ação do Nous que, como princípio racional de

movimento, estabelece um termo para o estado de repouso cósmico ao mesmo tempo em

que instaura a diferenciação. É evidente que, segundo tal concepção, o movimento nem

sempre existiu, não sendo eterno no sentido do tempo passado. Uma das objeções de

Aristóteles a esta teoria é o fato de que não é estabelecida a razão pela qual o movimento

originou-se em determinado momento e não em outro qualquer. Esta lacuna é intolerável

para Aristóteles pois torna toda teoria isenta de necessidade, fundamental para o discurso

científico, que versa sobre coisas que são por natureza, isto é “tem um modo de ser

simples e não é agora de uma maneira e logo de outra (como o fogo, que é levado

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naturalmente para cima, e não às vezes sim e às vezes não), ou há um enunciado para

sua não simplicidade ” (kaiì ou)x o(te\ me\n ouÀtwj o(te\ d' aÃllwj, oiâon to\ pu=r aÃnw

fu/sei fe/retai kaiì ou)x o(te\ me\n o(te\ d' ouÃ: hÄ lo/gon eÃxei to\ mh\ a(plou=n)

(252a18). Quanto à doutrina de Empédocles - segundo a qual o universo alterna eras de

repouso e de movimento em virtude das forças do amor e do ódio, responsáveis pela

união e separação dos elementos, respectivamente - Aristóteles considera, pelos

argumentos que apresentaremos a seguir, “mais parecida com uma mera ficção” (kaiì

ga\r eÃoike to\ ouÀtw le/gein pla/smati ma=llon.) (252a5).

Aristóteles faz uso da alternância cronológica da potencialidade sobre a

efetividade para provar a impossibilidade de um momento primeiro coincidente com a

geração do movimento. Pois, para que cada espécie de movimento ocorra é necessário,

previamente, que exista algo que possa mover-se segundo uma das espécies de

movimento, já que o movimento, enquanto “plenitude (e)ntele/xeia) do móvel enquanto

móvel” (202a9), só pode existir juntamente com a existência do móvel. Isto significa que

sempre haverá, anteriormente a uma efetivação cinética, uma prévia existência de algo

potencialmente móvel e cuja potencialidade corresponda àquela efetividade. Por outro

lado, todo ente potencial pressupõe algum ente efetivo que primeiramente o condicionou

segundo tal espécie de potência. Antes do homem há o menino, mas antes do menino, há

outro homem. Sendo assim, supor que o movimento nem sempre existiu, mas que foi

gerado em determinado momento, significa admitir que antes deste momento todas as

coisas estavam potencialmente em movimento, mas efetivamente em repouso. Mas o

repouso é a privação do movimento e a potencialidade para o movimento, que não seria

possível sem a existência de um movimento anterior ao repouso que seja a causa de sua

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existência. Ora, é evidente então que a suposição de que o movimento foi gerado implica

na existência de um movimento anterior ao movimento. Existe, pois, uma contradição

interna nesta tese.

A segunda prova, praticamente idêntica à primeira, leva em conta os elementos

inseparáveis da própria concepção de movimento, a coisa que move (motor) e a coisa

movida. Para que estes dois elementos possam realizar o movimento – que é a plenitude

(e)ntele/xeia) do móvel enquanto móvel – devem manter certo tipo de relação. É

necessário que mantenham certa disposição e uma devida aproximação entre si. A

disposição consiste na possibilidade de uma das coisas mover a outra. A aproximação

adequada é indispensável para que o movimento realmente ocorra, pois, sem que a

direção e o sentido do motor estejam voltados para o móvel, este não receberá o

movimento transmitido em efetividade pelo motor. Ou seja, não existindo relação

apropriada entre os elementos responsáveis pelo movimento, este não ocorrerá, ainda que

não seja contrário à natureza de cada um dos elementos, tomados separadamente.

Admitido o raciocínio acima como verdadeiro, é forçoso negar a possibilidade de um

período remoto em que não houve movimento, pois neste caso as condições para que este

ocorra não poderiam estar presentes, mas ao menos algo deve ter se movido e transmitido

o movimento a outra coisa, perfazendo a relação motor-movido, caso contrário aquele

período de repouso absoluto jamais teria terminado. Da mesma forma como no primeiro

argumento, existirá um movimento anterior ao suposto começo do movimento em geral.

A mesma contradição interna ocorre, no entendimento de Aristóteles, para qualquer tipo

de transição. Ocorre, por exemplo, “no caso dos relativos; por exemplo, se uma coisa é o

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dobro que outra, mas antes não era, então teriam que ter mudado uma ou outra, senão

ambas. Logo haverá uma transição anterior a primeira.”

Aristóteles prossegue em suas demonstrações da infinitude do processo cósmico

do movimento. Desta vez fundamenta-se na existência de tempo e de sua conexão

necessária com o movimento. A existência do tempo é evidente por si mesma, bastando,

para simples reminiscência, atentar para a nossa percepção mais espontânea do fluxo em

geral. “Ademais, escreve o Filósofo, como poderia haver um ‘antes’ e um ‘depois’ se não

existisse o tempo?” (pro\j de\ tou/toij to\ pro/teron kaiì uÀsteron pw½j eÃstai

xro/nou mh\ oÃntoj;)(251b12). Este fato, juntamente com a definição fornecida no livro

D da Física, que formula o tempo como o “número do movimento” (220a25), e a

premissa de que o tempo é eterno, permite a conclusão de que também o movimento é

eterno. A relação existente entre o tempo e o movimento, que permite a dedução da

propriedade de um a partir do reconhecimento da mesma propriedade em outro, deve-se a

própria definição o tempo, que somente é possível em virtude da mensurabilidade do

movimento. No livro G Aristóteles afirma que o numerável (neste caso, o movimento) é

numerado por algo congênere. O exemplo fornecido, de um conjunto de cavalos

numerado por um cavalo, já fornece um esclarecimento do significado desta afirmação:

para numerar um conjunto, precisamos possuir, primeiramente o conceito em que se

compreende cada um dos elementos deste conjunto e tomar este conceito como unidade

de medida. Sendo assim, apesar de um cavalo ser diferente de dez cavalos, possui a

mesma natureza que cada um deles. Se, com o tempo e o movimento ocorre a mesma

relação, determinada propriedade do tempo implica a existência da mesma propriedade

no movimento, como por exemplo, a eternidade.

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Em sua Física, Aristóteles demonstra então a razão da eternidade do tempo, que

no argumento fornecido no capítulo seis da Metafísica foi meramente assumida como

verdadeira. O Filósofo faz uso da noção de agora (nu=n), já que este possui o privilégio de

ser indispensável para a nossa percepção de temporalidade, pois “o tempo não pode

existir nem ser passível de intelecção sem o agora” (ei¹ ouÅn a)du/nato/n e)stin kaiì

eiånai kaiì noh=sai xro/non aÃneu tou= nu=n) (251b20) . E como em todo agora há o

antes e o depois, não há como negar que o tempo seja eterno, visto que isto significaria

atingir um agora sem um antes - pela tese da geração do tempo - ou sem um depois, se

admitimos que o tempo será destruído.

O movimento é eterno. Contudo, nem todos os movimentos podem ser eternos,

mas somente o movimento local ; deste, porém, conforme se demonstrou nos capítulos

sete, oito e nove do livro Q da Física, somente o movimento local circular. Os

movimentos circulares, efetuados especialmente pelos astros, são os mantenedores do

movimento em geral, todos os outros, ao contrário, tendo um princípio e um fim e não

sendo, portanto, eternos.

Aristóteles não promove, no entanto, um aprofundamento da conexão existente

entre o movimento circular e a essência imóvel eterna. Isto será efetuado no oitavo

capítulo. A partir do passo 1071b15, o que busca é investigar a natureza mesma da

essência imóvel, tendo como pressuposto a primazia da efetividade em relação à potência.

O primeiro motor, isto é, a essência imóvel, tem que ser em efetividade, “pois o ente

potencial pode não ser” (e)nde/xetai ga\r to\ duna/mei oÄn mh\ eiånai.) (1071b19). Por

isso o Filósofo rejeita novamente a teoria das Formas, pois estes entes separados não

possuem um princípio efetivamente capaz de produzir movimento. Esta rejeição, no

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entanto, não tem como alvo apenas as Idéias ou Formas platônicas, mas todo e qualquer

ser cuja natureza, mesmo sendo em efetividade, implique em algum tipo de potência, pois

esta tornaria impossível a continuidade eterna do movimento. Não há outra maneira de

conceber o primeiro motor senão como uma essência que é a efetividade mesma, ou seja,

efetividade pura e absolutamente livre de potencialidade. Esta é a conclusão de

Aristóteles, que o força a dissociar o primeiro motor e a matéria, porquanto esta é sempre

matéria para algum movimento, sendo este, sempre, a efetividade de alguma espécie de

potência. As essências imóveis são, portanto, efetividades puras e imateriais pois “se há

algo de eterno, tem de ser estas” (1071b21).

Como é freqüente no pensamento do Estagirita, devemos distinguir duas

perspectivas, uma das quais validando sentença contrária à outra. “Que a potência é

anterior à efetividade, é razoável em um sentido, e em outro não, como já dissemos” (to\

me\n dh\ du/namin oiãesqai e)nergei¿aj pro/teron eÃsti me\n w¨j kalw½j eÃsti d' w¨j

ouà (eiãrhtai de\ pw½j) (1072a3). Não concordamos com a interpretação oferecida por

Giovanni Reale29, sobre tal modo de considerar as coisas, referido pelo Filósofo, que

torna válida a convicção de que a potência é anterior à efetividade. Em linhas gerais, seu

raciocínio consiste no seguinte. Verificamos a primazia da potência em sentido bem

limitado, quer dizer, aquele relativo aos indivíduos considerados meramente como

indivíduos. Por exemplo, Sócrates, em sua individualidade, já existia em potência bem

antes de ser em efetividade. Por isso a potência é anterior à efetividade: o que dizemos de

Sócrates também pode ser dito de todos os outros indivíduos. Reale observa também que,

mesmo sob tal perspectiva limitada à temporalidade, a efetividade é primeira, na medida

29 Reale, 1978, pág. 279.

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em que introduzimos na reflexão o pai de Sócrates, que deve existir em efetividade para o

gerar. Esta é uma solução tipicamente aristotélica, e encontramos um melhor

aprofundamento da questão em Metafísica, Q, se bem que ainda recorrente no capítulo

sétimo do próprio livro L. Mas o fato é que, neste momento específico do texto, quando

o Filósofo procura demonstrar a existência da essência imóvel, é desnecessário e

insuficiente apelar para este aspecto da doutrina da efetividade e da potência. Voltemos

para as linhas em que Aristóteles se decide em favor de uma das duas alternativas:

“De outro lado, surge uma aporia: parece, de fato, que tudo quanto existe

em efetividade pressupõe a potência e que, ao contrário, nem tudo o que é em

potência passa à efetividade; portanto, de tal modo, a potência seria anterior à

efetividade. Mas, se fosse assim, não existiria nenhum dos seres: é possível, de

fato, que aquilo que seja em potência não passe ao ser.” (1071b24).

kai¿toi a)pori¿a: dokeiÍ ga\r to\ me\n e)nergou=n pa=n du/nasqai to\ de\ duna/menon ou) pa=n e)nergeiÍn, wÐste pro/teron eiånai th\n du/namin. a)lla\ mh\n ei¹ tou=to, ou)qe\n eÃstai tw½n oÃntwn: e)nde/xetai ga\r du/nasqai me\n eiånai mh/pw d' eiånai.

Consideremos o silogismo alvo da refutação do Estagirita. As premissas “tudo o

que existe em efetividade pressupõe potência” (1071b25) e “nem tudo o que é em

potência passa à efetividade” (1071b26) implicariam em “a potência é anterior à

efetividade” (1071b27). A segunda premissa é admitida como verdadeira por Aristóteles

quando, em seguida, afirma que “é possível, de fato, que aquilo que é em potência não

passe à efetividade” (1071b29). Isto já comprova que Reale falha ao afirmar que

Aristóteles contrapõe este modo de pensar a causalidade àquele em que o retrocesso no

tempo é ainda maior, levando a admitir como causa de um indivíduo não mais seu estado

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potencial anterior, mas outro indivíduo existente em efetividade. “Se fosse assim, não

existiria nenhuma das coisas que são” (1071b28); mas a existência dos seres é uma

verdade patente aos sentidos, não cabendo duvidar de algo tão óbvio. Mas é exatamente a

isso que seriam obrigados a admitir os que postulam a anterioridade da potência. Contudo,

o silogismo efetuado por esses defensores da “noite e mistura” originárias, não é

formalmente atacado por Aristóteles. A falha, portanto, consiste em afirmar que tudo o

que existe em efetividade pressupõe potência. É fácil perceber, especialmente no presente

contexto do capítulo seis, o porquê da falha. É que existe ao menos uma espécie de

essência que, existindo em efetividade, não pressupõe potência, pois é efetividade pura: a

essência imóvel, primeiro motor de todos os seres, enquanto causa originária do

movimento em geral. A necessidade efetiva desta essência torna existente toda a série dos

possíveis potenciais, que, de outro modo, permaneceriam para sempre apenas possíveis.

Sabe-se, assim, a que momento de sua investigação Aristóteles se refere quando escreve,

relativamente ao sentido em que é inverídico o afirmar - como modo de dizer que algo é -

que a potência é anterior à efetividade : “Ora, aceitar que a potência é anterior à

efetividade, em um sentido, é verdadeiro, como já se disse” (1072a2).

Ora, o “já dito” correspondente à refutação desenvolvida no passo 1071b24,

refere-se às essências imateriais, às quais o Filósofo acabara de conferir a eternidade

como característica exclusiva dentre as essências universais.

Assim Aristóteles estabeleceu o primado da essência sobre todas as coisas que são,

pois aquela que rege todas as outras - tornando o universo “como um todo”, é uma

essência; da mesma forma vemos que, antes da potência, há a efetividade, pois a primeira

das essências é efetividade pura.

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Natureza da Supra-essência O sétimo capítulo é um aprofundamento da investigação acerca da natureza do

princípio a que estão condicionadas todas as coisas. O movimento circular é, como vimos,

o primeiro dos movimentos locais, pois é o único capaz de ser eternamente. E isto,

escreve em seguida, é evidente não apenas para o raciocínio, mas em virtude da própria

experiência: o movimento dos astros no espaço é nitidamente circular. A conclusão de

que, sendo assim. o primeiro céu é eterno, mostra que o Filósofo, apesar de ter em vista a

totalidade dos movimentos circulares, aponta principalmente para o primeiro céu. De fato,

o primeiro céu é eterno justamente porque atua segundo um movimento eterno, sendo

esta a única possibilidade de transição a que está passível, a geração e destruição, por

exemplo, não existindo nos seres supralunares.

Tudo aquilo que move e é movido não é o termo último de nenhuma espécie de

série, pois implica na existência de um ser anterior que o move. Portanto, mesmo sendo o

primeiro dos movimentos, deve haver algo além do deslocamento circular, que o mova

sem, contudo, mover a si mesmo. Este é o primeiro motor, a essência eterna e plenamente

efetiva.

A tábua dos opostos, aplicada ao problema da essência imóvel, é o que

encontramos nas linhas seguintes. Em Metafísica I,5 e G,2 a tábua também aparece.

Trata-se de duas colunas correspondentes, uma das quais composta de todos os gêneros

de coisas inteligíveis por si mesmas, a outra composta de gêneros somente inteligíveis a

partir dos elementos correspondentes da primeira coluna. Esta última, também

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denominada positiva, é a coluna do ser. A segunda coluna é constituída da negação de

cada um dos elementos da primeira, sendo, por isso, denominada coluna do não-ser; por

exemplo, a saúde, inteligível por si mesma, tem como negação a doença, esta somente

compreendida tendo em vista a saúde, a qual é concebida como ausente. O topo da coluna

positiva é a essência, pois esta é a primeira das coisas que são; entre as essências, a

primeira é a que “é simples e efetiva” (kaiì tau/thj h( ou)si¿a prw¯th, kaiì tau/thj h(

a(plh= kaiì kat' e)ne/rgeian) (1072a32), ou seja, a essência imóvel. O maximamente

inteligível é, pois, algo em si e por si mesmo existente, por ser uma essência. Da coluna

dos inteligíveis por si mesmos faz parte o belo e bom, pois não são compreendidos a

partir da negação de coisa alguma. Se o belo é inteligível por si, o maximamente belo e

bom e o maximamente inteligível coincidem no topo da coluna, ocupado pela essência

imóvel. O maximamente inteligível deve, necessariamente, ser belo e bom em grau

máximo.

Existe o “para o qual”, o propósito no primeiro motor. Em que sentido podemos

afirmar isso, é o que Aristóteles procura determinar. Duas distinções cabem aqui,

relativamente à significação da palavra propósito: a) aquilo para o bem do qual algo é

feito e b) o escopo mesmo de qualquer coisa. Este último significado é próprio da

essência imaterial, porque move todas as coisas enquanto objeto maximamente desejável.

Nisto reside a diferença entre o primeiro motor e os outros motores. É que a essência

imóvel move sem se mover, pois não há necessidade alguma de modificação no objeto

amado, para que este possa atrair o amante; a atração se dá simplesmente porque o objeto

amado é, e enquanto é, ou seja, porque possui determinada perfeição. O movimento

assim provocado é, pois, movimento em virtude do desejado somente enquanto desejado,

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em que nenhuma forma de contato se faz necessária. Veremos ainda que, no caso do

objeto amado possuir a perfeição máxima, tal contato não é apenas desnecessário, mas

também impossível.

Na verdade, Aristóteles concebeu o universo como um grande sistema hierárquico,

em seus variados graus de perfeição, conforme cada um dos seres pode manifestar.

Quanto menos se modifica um determinado ser, mais perfeita é esta modificação. A

transição relativa à qualidade, por exemplo, é mais perfeita que a transição relativa à

essência, pois identificamos o ser e sua essência com mais propriedade do que

identificamos o ser e uma de suas qualidades; ora, se a transição relativa à qualidade

representa uma modificação menor para o ser em questão do que aquela relativa à

essência, então é uma forma de movimento mais perfeita que esta última. Por esta razão o

movimento local é o mais perfeito que há, pois é a menor modificação possível nos seres

sensíveis. Há também uma razão de ordem biológica para a convicção aristotélica da

primazia do movimento local. Em sua Física, verificamos com detalhes este aspecto de

sua doutrina do movimento:

“Em geral, o que se está gerando parece incompleto e a caminho de um princípio,

de tal maneira que o que é posterior na geração parece ser anterior por natureza.

Ora, o movimento local é o último dos movimentos das coisas que estão em

geração; por isso alguns seres viventes, como as plantas e muitas espécies

animais, são inteiramente imóveis por carecer do órgão requerido, enquanto

outros adquirem o movimento quando aperfeiçoados. Por conseguinte, se o

movimento local pertence sobretudo àquelas coisas receberam mais da natureza,

então este movimento também será anterior relativamente à essência.” (261a15)

oÀlwj te fai¿netai to\ gigno/menon a)tele\j kaiì e)p' a)rxh\n i¹o/n, wÐste to\ tv= gene/sei uÀsteron tv= fu/sei pro/teron eiånai. teleutaiÍon de\ fora\

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pa=sin u(pa/rxei toiÍj e)n gene/sei. dio\ ta\ me\n oÀlwj a)ki¿nhta tw½n zw¯ntwn di' eÃndeian [tou= o)rga/nou], oiâon ta\ futa\ kaiì polla\ ge/nh tw½n z%¯wn, toiÍj de\ teleioume/noij u(pa/rxei. wÐst' ei¹ ma=llon u(pa/rxei fora\ toiÍj ma=llon a)peilhfo/sin th\n fu/sin, kaiì h( ki¿nhsij auÀth prw¯th tw½n aÃllwn aÄn eiãh kat' ou)si¿an

Isto é, a geração está para o deslocamento assim como assim como “o que se está

gerando” está para “o que é posterior na geração”. Com tal analogia, pretende o Filósofo

mostrar que o movimento local e as coisas posteriores na geração - segundo e quarto

elementos da proporção - são mais perfeitos que a geração e as coisas cuja geração ainda

é incompleta, até porque se manifestam mais tardiamente nos seres, quando a realização

dos respectivos fins é mais eminente, pois “receberam mais da natureza”. As linhas

seguintes do trecho destacado acima são análogos àquele do capítulo sétimo agora

investigado, quanto mais por levar em conta a imutabilidade da essência do móvel no

movimento puramente local, ao contrário do que se verificam nos demais tipos de

movimento.

O movimento local é o mais perfeito de todos, e aquele no decurso do qual o

móvel menos se afasta do que era anteriormente. Contudo, não é próprio das coisas

capazes de permanecer eternamente o que são, pois tudo o que se move, pode ser ainda

diverso daquilo que é. Há uma outra essência, capaz de produzir movimento sem manter

contato algum com a coisa movida. Quanto à questão de se a primeira essência é causa

eficiente ou completiva, afirmamos o mesmo que David Ross30 , quando habilmente

responde que o primeiro motor é causa eficiente somente porque é causa completiva, e de

nenhum outro modo. De fato, a essência imóvel não poderia deixar de ser eficiente, pois é

justamente este um dos principais aspectos que a torna uma solução mais satisfatória que

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a teoria das Idéias. Não esqueçamos de que, no passo 1071b15 do sexto capítulo,

Aristóteles julga insuficiente a introdução de essências eternas, como as Formas, se estas

não possuem “um princípio capaz de produzir transição”. Contudo, a essência imóvel é

causa eficiente apenas em virtude de atrair todas as coisas, da mesma forma que um

“objeto de desejo” atrai para si o “sujeito desejoso”. O “desejo” pelo primeiro motor nada

mais é que o desejo pela perfeição da efetividade pura, que as outras essências não

logram alcançar devido à materialidade imanente. O máximo de perfeição que podem

atingir é a efetividade do movimento circular. Sendo local, este movimento é o que

menos corrompe o móvel; a circularidade, por outro lado, garante a eternidade do

movimento. Os corpos celestes são, como se vê, as essências que mais se assemelham à

efetividade pura do motor imóvel, mas “apontam” para algo além de si mesmos, algo

ainda mais perfeito, pelo simples fato de não serem suficientes, por si mesmos, para

explicar a eternidade de seu próprio movimento.

Há muita discussão a respeito do passo 1072b10, em que Aristóteles afirma que o

motor imóvel é necessário e ,logo a seguir, distingue três maneiras de dizer que algo é

necessário: “De fato, o ‘necessário’ tem os seguintes significados: a) aquilo que se faz

por força e contra a inclinação, (to\ me\n bi¿# oÀti para\ th\n o(rmh/n) b) aquilo sem o

qual não existe o bem (to\ de\ ou ou)k aÃneu to\ euÅ,) e c) aquilo que não pode

absolutamente ser diferente do que é.” (to\ de\ mh\ e)ndexo/menon aÃllwj a)ll'

a(plw½j). Ross31 descarta a possibilidade de que os motores imóveis sejam necessários

tanto no primeiro como no segundo sentido. Apoia-se, para isso, em D,5. Mas nesta

30 Ross, 1981, p.186. 31 Ross, 1981, p.378.

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passagem o Filósofo descarta apenas o primeiro sentido, ao negar que haja algo de

violento ou antinatural nas realidades imóveis. A solução encontrada por Ross não é,

além disso, satisfatória. Permanece incompreensível o porquê de Aristóteles escrever que

o primeiro motor existe como bem, porque existe necessariamente, e que deste modo é

princípio. Ross tomou como base um capítulo que servirá, da mesma forma, para

esclarecer a questão, ao menos o quanto o texto nos permite. É certo que o sentido

fundamental de necessário é aquele que define o que não pode ser diferente do que é. As

outras duas maneiras de dizer que algo é necessário derivam da primeira, como quando as

condições primordiais da vida são ditas necessárias, pois a vida não pode se manter de

outra maneira, o que dá a idéia de algo que não pode ser diferente do que é. Da mesma

forma é necessário que alguém aja de tal maneira se foi forçado a isso, pois a ação não

poderia ter outro desfecho. De tudo o que não pode ser diferente do que é, ou seja, o

necessário em sentido absoluto, são-nos indicadas duas coisas: 1) as demonstrações, pois,

uma vez postas as premissas, a conclusão só pode ser uma, e 2) as realidades imóveis,

porquanto possuem apenas um modo de ser. A resposta, agora, quase que surge por si

mesma: assim como aquilo sem o que não se dá o bem de algo (segundo significado de

acordo com a ordem estabelecida em L,7), dizemos que são necessárias apenas em

virtude do significado primeiro de necessário - próprio do que não pode ser diferente do

que é - da mesma forma falamos do bem produzido pelas realidades imóveis como um

dos casos de significação de necessário, aplicado principalmente à realidade imóvel,

posto que esta não pode ser diferente do que é. O caso do bem necessário das realidades

imóveis é diferente, contudo, do bem necessário relativo à vida, por exemplo. Neste

último há apenas uma relação analógica entre o sentido fundamental de necessário e o

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meramente concomitante: o essencial à vida é necessário somente porque a vida não pode

ter outro modo de ser que prescinda do que lhe é essencial - respirar, por exemplo; mas

nenhum dos termos da relação, tomados isoladamente, é imutável, porquanto o que é vivo

pode morrer, e a respiração, cessar. O bem produzido pela realidade imóvel, porque se

faz em virtude da natureza imutável de tal essência, é necessário no mesmo sentido

fundamental que tal essência como um todo. Com efeito, a essência imóvel é efetividade

pura, não podendo ser diferente do que é, e o mesmo, portanto, é o bem indissociável que

produz em todos os seres, pois “desta forma é princípio” (kaiì ouÀtwj a)rxh) (1072b12),

princípio do movimento, sem o qual não existe o bem nas coisas sensíveis.

Ao longo das linhas seguintes, nos deparamos com uma espécie de hino

(adotando aqui a mesma expressão de Reale) que preconiza a natureza impassível da

essência perfeita, que prescinde do movimento para ser. O homem, ao contrário, alterna

incessantemente vários modos de ser, não sendo capaz de permanecer para sempre no

mesmo estado. Muda não somente por passar de uma espécie de efetividade a outra -

porquanto não é uma essência simples - mas também pela incapacidade de ser

unicamente em efetividade, constituído que é de matéria. O princípio imóvel de que

“dependem o céu e a natureza” não passa a uma espécie de efetividade diferente da que

sempre mantém, pois é uma efetividade simples, efetividade de uma essência simples. Da

mesma forma não há obstáculo à eternidade da efetividade simples, em virtude de ser

efetividade pura, quer dizer, absolutamente livre de matéria. A efetividade é fonte de

prazer. Por isso devemos considerar o modo de vida do motor primeiro o mais excelente

e prazeroso de todos, livre que é de tudo o que conduz à fadiga ou à dor, enquanto

potência. Mesmo o prazer que sentimos com lembranças e esperanças, que mais

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próximos estão da inatividade, somente existe em virtude destes estados da alma estarem

diretamente vinculados aos estados da “vigília, sensação e inteligência”, que existem em

efetividade.

Aristóteles entende que não há outra efetividade absolutamente simples e pura,

senão a efetividade da inteligência que atinge a inteligência, inteligência de si mesma. Na

medida em que a inteligência é o objeto mais inteligível e excelente que há, a auto-

intelecção é o máximo de perfeição atingida pelo que de mais perfeito e divino

conhecemos, a própria inteligência. Esta efetividade, o Filósofo identifica com a

realidade imutável, porquanto a única digna de tão divina essência.

Determinada maneira de pensar a natureza dos princípios não é compatível com a

contemplação da suprema beleza e bondade da essência imóvel. Trata-se de Espeusipo e

dos Pitagóricos. Sustentam estes que a beleza e perfeição promanam dos princípios, mas

não são os princípios mesmos. Da simples observação da natureza obteríamos tal certeza,

dado que as coisas precisam de tempo para concluir sua formação. Aceitar este raciocínio

seria, contudo, negar os fundamentos de sua própria teoria do movimento em geral. Por

isso, Aristóteles investe firmemente contra esta doutrina. A refutação não é, como

facilmente se crê, simplesmente apoiada na essência sensível, quando o Estagirita afirma

que “não é o homem que provém do sêmen, mas este daquele provém” (1073a1) Se esta

fosse apenas uma observação empírica, a teoria dos Pitagóricos e de Espeusipo não

estaria, de forma alguma, superada, mas apenas confrontada com uma interpretação

inversa a respeito dos mesmos fatos naturais. O que o Filósofo pretende com tal inversão

é a consideração de uma perspectiva da causalidade além da simples temporalidade do

vir-a-ser das essências. Trata-se da causa completiva, aquilo para o qual, que, já no passo

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1070a do terceiro capítulo, é identificada com a forma. Pois aquilo a que todo ser tende é

sua própria forma, ao termo da qual atinge sua completude (télos). Esta, porém, de certa

forma já existe, enquanto aquilo a que tende o ser, ou seja, enquanto causa completiva. A

anterioridade da completude e beleza é de ordem atemporal, mesmo quanto aos seres que

não prescindem da duração para se realizarem. Por isso, "antes da semente há o homem”

(1073a1). Pois o homem é a razão mesma do processo de geração, reprodução e morte.

Assim, não deve ser visto como um absurdo que o princípio supremo de todas as coisas

seja, da mesma forma, bondade e beleza, visto que mesmo nas essências mutáveis a

perfeição é causa e princípio.

Resulta, assim, como conclusão do capítulo, que o motor imóvel não possui

grandeza. Toda grandeza é finita ou infinita. Ora, uma grandeza infinita não é possível e

o infinito em geral só pode ser potencial, conforme se demonstrou em Física, G. Isto

afasta a possibilidade de que a essência imóvel seja infinita, já que neste caso o infinito

seria efetivo. Por outro lado, a natureza desta essência é incompatível com uma grandeza

finita, dado o movimento infinito que produz (L 1073a6). Resta, portanto, a

inaplicabilidade do ser da grandeza ao ser do motor imóvel.

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Hierarquia de Supra-essências

O oitavo capítulo é dedicado à investigação acerca do número de motores imóveis.

Certos estudiosos, entre os quais Werner Jaeger32, apostavam na redação tardia de boa

parte deste capítulo, bem diferente do período representado pelos capítulos anteriores, em

que sequer é feita referência a uma pluralidade de essências divinas. Sabemos que há

sérias evidências textuais que enfraquecem este ponto de vista, particularmente o passo

1071b20, do sexto capítulo, quando Aristóteles afirma que as essências imóveis são

imateriais, o que torna claro que, desde o princípio da segunda metade do livro L -

dedicada ao estudo da essência imóvel - já se admite que pode haver mais de uma destas

essências divinas.

A teoria das Idéias é criticada novamente, desta vez por não prever o número de

princípios supremos de que todas as coisas participariam, quer dizer, seus defensores

simplesmente não revelam o número exato das Idéias. Mesmo no tocante à quantidade

dos números, que esses pensadores identificam com as Idéias, não há uma devida

delimitação, já que alguns crêem na infinidade dos números “ideais”, outros reduzem-nos

à décade.

Além do movimento do Todo, existem outros movimentos circulares, e não há

razão para pensar que não sejam eternos. Sendo assim, devemos admitir a existência de

motores imóveis responsáveis pela manutenção de tais movimentos, a medida em que são

“desejados” pelos corpos celestes que, deste modo, se movimentam. Estes motores

imóveis, assim como o motor imóvel do primeiro céu, não são outros princípios que não

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essências. Aquilo que é anterior a uma essência é uma essência. Os motores são

anteriores às coisas movidas, o que torna verdadeiro o dizer que os motores imóveis são

anteriores aos corpos celestes. Ora, os corpos celestes são essências. Logo, os motores

imóveis são essências.

A ciência que mais se aproxima do estudo destas essências, ainda que estas não

sejam seu objeto, é a astronomia. Pois a esta compete a investigação acerca das essências

que se movem circularmente no céu, os corpos celestes. E as essências imóveis de que

tratamos agora devem ser buscadas a partir de um conhecimento preciso destes

movimentos, justamente os que são produzidos a partir da atração pela efetividade pura.

Os corpos celestes, contudo, não possuem apenas um movimento, mas efetuam diversos

tipos de translações. Deve-se determinar o número destes movimentos, pois este será

igualmente o número de essências imóveis. O Filósofo admite a necessidade de

posicionar a questão nos alicerces já construídos por outros estudiosos dos astros.

Restringe-se, contudo, a Eudoxo e Calipo. Este último, como veremos mais adiante,

fornece um esquema astronômico mais complexo que o de Eudoxo.

As esferas são essências intermediárias entre os corpos celestes, já conhecidos, e

os motores imóveis. Seus movimentos circulares é que produzem as translações dos

planetas e estrelas. Cada esfera é responsável por apenas um dos diversos movimentos

realizados pelos astros. E para cada esfera, há somente um motor imóvel, o que explica a

convicção de que o número de movimentos é equivalente ao número de essências

imóveis. O fato é que Eudoxo postula a existência de três esferas para o Sol e para a Lua,

respectivamente. Combinadas, as rotações destas esferas produzem os variados

deslocamentos destes corpos. Estes deslocamentos são, aparentemente, irregulares, mas

32 Jaeger, 1960, p.397.

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compreensíveis com a introdução das esferas. Os outros planetas compartilham ao menos

duas esferas com o Sol e a Lua: a esfera dos Fixos, e aquela imediatamente inferior, em

cuja circunferência estão os pólos da terceira esfera de cada planeta. Cada “terceira

esfera” possui seu próprio pólo, exceto as esferas de Vênus e Mercúrio, cujos pólos

coincidem. A quarta esfera, por sua vez, tem lugar de modo oblíquo em relação ao centro

da terceira esfera. A estrutura astronômica de Calipo seria a mesma de Eudoxo, se não

fosse o acréscimo de duas esferas para o Sol e a Lua, uma para cada planeta. Aristóteles

torna ainda mais complexo todo este esquema, a medida em que introduz, para cada

esfera, uma outra contrária, espécie de duplo que, movendo-se em sentido inverso,

devolveria a mesma posição à esfera mais próxima de cada planeta. A razão do número

quarenta e sete, em lugar de cinqüenta e cinco, para a quantidade de esferas, é até hoje

desconhecida. Descarta-se a possibilidade de outros motores imóveis além dos já

numerados. Com efeito, afirma o Filósofo, “a completude de todos os deslocamentos é

algum dos corpos divinos que se movem no céu” (te/loj eÃstai pa/shj fora=j tw½n

ferome/nwn ti qei¿wn swma/twn kata\ to\n ou)rano/n) (1074a30). E a conclusão a

respeito do número destes corpos deve ser verdadeira, não somente por estar de acordo

com a observação, mas também porque a convicção na existência de outras essências

levaria a um processo de investigação sem perspectiva de completude, o que não é, de

forma alguma, satisfatório.

Jaeger33 acreditava que em Metafísica 1074a30 Aristóteles refuta a tese de que há

um gênero “motor imóvel” que se especifica em vários seres. “Quer dizer, esta suma

33 Jaeger, 1960, p.403.

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forma não é um gênero que se manifeste em uma pluralidade de exemplares”. O passo em

questão é o seguinte:

“É evidente que o céu é um só. De fato, se existissem muitos céus, como

existem muitos homens, então o princípio de cada céu deveria ser um só quanto à

forma, mas múltiplo quanto ao número. Mas todas as coisas que são múltiplas

quanto ao número têm matéria: de fato, a forma de uma multiplicidade é única

como, por exemplo, a forma do homem, enquanto Sócrates e Cálias o são quanto

ao número. Ora, o ser-prévio e o primeiro não tem matéria. Portanto, o motor

primeiro e imóvel é um tanto pela forma como pelo número e, por isso, também é

um aquilo que por ele é movido sempre e ininterruptamente. Concluindo, o céu é

um e único.” (1074a31)

oÀti de\ eiâj ou)rano/j, fanero/n. ei¹ ga\r plei¿ouj ou)ranoiì wÐsper aÃnqrwpoi, eÃstai eiãdei mi¿a h( periì eÀkaston a)rxh/, a)riqm%½ de/ ge pollai¿. a)ll' oÀsa a)riqm%½ polla/, uÀlhn eÃxei (eiâj ga\r lo/goj kaiì o( au)to\j pollw½n, oiâon a)nqrw¯pou, Swkra/thj de\ eiâjŸ: to\ de\ ti¿ hÅn eiånai ou)k eÃxei uÀlhn to\ prw½ton: e)ntele/xeia ga/r. eÁn aÃra kaiì lo/g% kaiì a)riqm%½ to\ prw½ton kinou=n a)ki¿nhton oÃn: kaiì to\ kinou/menon aÃra a)eiì kaiì sunexw½j: eiâj aÃra ou)rano\j mo/noj.

Sem adentrar aqui nos pormenores desta difícil passagem, cujo alcance doutrinal

somente poderá ser esclarecido satisfatoriamente no último capítulo deste trabalho, pode-

se, no entanto, afirmar que a tese realmente combatida por Aristóteles não é a da

impossibilidade de vários motores imóveis. Na verdade, o Filósofo procura demonstrar

que há apenas um primeiro motor imóvel, ou seja, um motor imóvel da esfera das estrelas

fixas, o céu. Trata-se de estabelecer apenas uma esfera não-inscrita, isto é, apenas uma

esfera que não é envolvida por nenhuma outra e, assim, somente um motor imóvel

totalmente universal. Se admitíssemos mais de uma esfera não-inscrita, teríamos de

admitir também outras causas últimas absolutas, e assim ad infinitum, algo sempre

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combatido por Aristóteles, até o último enunciado do livro L, citação de Homero em prol

da unicidade do princípio governante:

“Mas as coisas não querem ser mal governadas: o governo de muitos não é bom.

Um só seja o governante.” (1076a3)

ta\ de\ oÃnta ou) bou/letai politeu/esqai kakw½j. "ou)k a)gaqo\n polukoirani¿h: eiâj koi¿ranoj eÃstw."

É por isso que o Filósofo precisa admitir também, simultaneamente, a existência

de apenas um céu. Esta implicação mútua entre o céu e o primeiro motor imóvel torna

evidente que, apesar de não haver individuação material nos motores imóveis, há

individuação formal, e esta é garantida pelo fato de que cada motor imóvel é um motor

relativamente a sua esfera específica. Por isso o Filósofo afirma que, se houvesse mais de

um céu, haveria também mais de um primeiro motor imóvel, pois este é primeiro porque

move o céu, o limite do universo. Havendo dois céus idênticos, necessariamente os

respectivos motores imóveis também seriam idênticos.

O último parágrafo é como um tributo à sabedoria antiga. Ali o Filósofo reserva

um espaço para o reconhecimento da sapiência demonstrada pela tradição imemorial da

astrologia, que sempre supôs uma verdadeira divindade em cada um dos corpos celestes.

A excelência das essências eternas sensíveis e não-sensíveis, isto é, os astros e seus

motores imóveis, realmente levou Aristóteles a considerá-las divindades. Daí sua

admiração pelas tradições antigas, transmissoras da crença de que “os corpos celestes são

deuses e que o divino abarca toda a natureza” (oÀti qeoi¿ te/ ei¹sin ouÂtoi kaiì

perie/xei to\ qeiÍon th\n oÀlhn fu/sin.) (1074b2), apenas criticando a forma alegórica

sob a qual tal sabedoria foi preservada.

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Porém, nem mesmo a idéia fundamental destas tradições deve ser tomada como

idêntica à concepção teológica aristotélica. Se o Filósofo mostra ali sua disposição

anuente para com a tradição, isto é possível somente em virtude da flexibilidade de seu

pensamento, que se privilegia o sentido primordial sem negligenciar o secundário. Na

verdade, por um lado, os corpos celestes são os próprios deuses, pois o são enquanto

almas e seus motores - as inteligências separadas – são partes de suas almas, ainda que

partes independentes da própria alma. Em outras palavras: os corpos celestes são divinos

apenas na medida em que as inteligências – que são partes de suas almas – são divinas.

Seria uma divindade por analogia, assim o ser dos concomitantes deriva de uma relação

analógica com a essência, que detém o ser em sentido primeiro. Da mesma forma, o

sentido da divindade do motor imóvel é primária, enquanto que aquela que o Filósofo

atribui aos corpos celestes seria é apenas secundária, resultado de uma transferência de

um atributo da parte para o todo. Não devemos pensar que a separação do motor imóvel -

cuja imobilidade ainda a intensifica infinitamente, pois instaura uma diferença

instransponível entre o seu ser e o ser do movido – abole qualquer nexo entre motor e

movido. O motor, mesmo no caso extremo em que não mantém qualquer contato físico

com o movido, não está isento de uma clara referência ao mesmo. Formam um todo

essencial, mesmo que mantido por relações unilaterais. Veremos, na terceira parte da tese,

o modo como o Filósofo expõe a inteligência no De Anima: ainda que separável e imortal,

a inteligência é uma parte da alma, sem a qual não estaríamos nos referindo a uma alma,

ou ao menos não a uma alma humana.

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Aporética da Supra-essência

Jaeger34 sustentou que o capítulo nove é a verdadeira continuação de L,7. O

capítulo oito seria um corpo estranho, acrescentado tardiamente. L,8 trata da

multiplicidade das essências imóveis, e boa parte da argumentação é de ordem

astronômica. L,9, ao contrário, segue em harmonia com o capítulo sete, investigando a

“inteligência da inteligência”. É realmente bem difícil afirmar, com certeza, o lugar exato

do oitavo capítulo, mas é certo que pertence ao mesmo período que os demais, não

cabendo pensar, como já se demonstrou, que apresenta convicções incompatíveis com o

restante do livro. Reale 35 defende que não há, efetivamente, uma “quebra” com a

introdução do oitavo capítulo, pois não havia outra coisa a discutir senão a multiplicidade

de essências imóveis, o nono capítulo não sendo mais que uma resolução de dificuldades

teóricas. De fato, é significativo o modo como se inicia esta etapa da investigação:

“Quanto à inteligência, surgem certas aporias” (Ta\ de\ periì to\n nou=n eÃxei tina\j

a)pori¿aj:) (1074b20). Parece sugerir a retomada de um assunto sob perspectivas ainda

não desenvolvidas. Deixemos, porém, estas conjecturas de lado. O que importa realmente

é o aprofundamento da reflexão acerca da efetividade própria do motor imóvel, enquanto

efetividade pura e simples.

A efetividade pura da essência imóvel deve ser a inteligência (nou=j), o que de

mais divino existe no mundo. Mas não basta afirmar que é inteligência. É preciso

34 Jaeger, 1960, p.397. 35 Reale, 1978, p.300.

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determinar o objeto de intelecção, pois não há inteligência que não o seja de alguma coisa.

E pelo pressuposto já assumido da excelência inigualável da inteligência, somos forçados

a admitir que a inteligência consiste em uma efetividade simples de auto-intelecção. Não

há outro objeto digno da efetividade de tal essência. Se inteligisse algo menos excelente e

belo que ele mesmo, sua própria excelência seria afetada. Daí a atitude de rejeição contra

a suposição de que a inteligência divina tenha qualquer outro objeto: “Pois, não são

coisas bem diferentes inteligir o belo e atingir qualquer outra coisa? Ou, não é absurdo

que exerça a intelecção de certas coisas?” (po/teron ouÅn diafe/rei ti hÄ ou)de\n to\

noeiÍn to\ kalo\n hÄ to\ tuxo/n; hÄ kaiì aÃtopon to\ dianoeiÍsqai periì e)ni¿wn; )

(1074b24)

Isto afasta a possibilidade de que a essência imóvel de Aristóteles seja onisciente,

como tentaram afirmar os pensadores medievais. Entretanto, Reale tem razão ao

considerar desnecessária a alternativa diametralmente oposta: negar que o “Deus” de

Aristóteles tenha qualquer tipo de conhecimento do mundo. A essência imóvel é o bem

último de todas as coisas (isto é afirmado mais explicitamente no décimo capítulo). Ao

atingir a si mesmo, portanto, atinge e conhece o que há de melhor no mundo, o universal

e eterno, de certa forma presente nas essências sensíveis através do desejo que estas

possuem pela efetividade pura. A natureza de tão divino ser não está exatamente

confinada em um isolamento transcendental, apesar de assim parecer, se comparado à

onisciência e onipresença da essência suprema, tal como é concebida no cristianismo.

O motor imóvel não pode compreender os seres sensíveis porque o movimento é

o fato ontológico mais característico destes seres, do qual não se pode abstrair. Ainda que

tivesse conhecimento de todos os estados sucessivos dos seres, continuaria sem conhecer

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seu movimento, pois o fluxo não pode ser deduzido de uma soma de repousos, nem a

unidade da noção de multiplicidade. O movimento só é conhecido pelo movimento. Não

há comunicação possível entre a simplicidade suprema e a complexidade metabólica.

Aristóteles concebe o múltiplo e o movimento como irredutíveis ao um e ao

repouso. As quatro causas têm o mesmo peso existencial, ainda que não ontológico e

cosmológico. O múltiplo não deriva do um. É um factum ontológico posto de saída no

real, sendo tão primitivo quanto o um. O movimento não pode ser compreendido como

uma multiplicidade de repousos, uma somatória de instantes imóveis. Portanto, não é

redutível ao um nem direta nem indiretamente. Não se reduz diretamente porque suas

noções já diferem imediatamente uma da outra. A idéia de um, em si mesma, não

comporta qualquer transitoriedade, pelo que a máxima unidade possível – própria da

essência suprema – exclui absolutamente o movimento de seu ser. Por outro lado, nem

mesmo como uma unidade de composição o movimento pode ser compreendido. Como

já vimos, nem o movimento é uma somatória de atos imóveis, nem o tempo um composto

de instantes intemporais. O fluxo é uma realidade persistente não obstante qualquer

esforço de dedução totalizante. É próprio da matéria. O ontologicamente superior contém

a realidade do inferior, mas somente no que há de positivo nela. O movimento é uma

propriedade ontológica negativa, pois pressupõe imperfeição, incompletude. Somente as

essências materiais se movem e somente nesta esfera pode haver cognição do fluxo.

Para as coisas que existem independentemente da matéria, a coincidência entre a

inteligência e seu objeto, longe de ser absurda, é perfeitamente possível. É o caso, por

exemplo, do motor imóvel, que não é apenas uma intelecção qualquer, mas a completa

inteligência do motor imóvel, que consiste em atingir a si mesma. Por isso a coincidência

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perfeita entre a efetividade de intelecção, própria do que é como sujeito, e o ser passível

de intelecção, inerente ao que consideramos objeto no âmbito da cognição. A natureza do

motor imóvel é um todo indivisível de sujeito e objeto.

Os seres imateriais também não possuem partes. A matéria é princípio de

individuação porque é princípio de multiplicidade. E somente é princípio de

multiplicidade por ser capaz de receber a mesma forma de diferentes maneiras e em

distintos momentos. Tornemos ainda mais nítida a concepção do Filósofo: a matéria não

é somente capaz de receber a mesma forma de múltiplas maneiras e em vários instantes,

mas é absolutamente incapaz de o fazer de outro modo. A matéria não pode ser

diferentemente, mas essa é a sua maneira de receber o ser da forma, que é simples. A

matéria torna o simples - a forma - um indivíduo, ao mesmo tempo em que o torna

composto. A forma de homem não é dividida apenas no sentido de que, assim,

multiplica-se em indivíduos. Não apenas a divisão que significa multiplicação é aquela

que tem lugar na matéria. A divisão no próprio indivíduo também se verifica, pois o

homem é o que é através de cada uma de suas partes e devido à composição harmônica

das mesmas; “composição” em virtude da matéria; “harmônica” devido à forma. É sobre

a divisão no próprio indivíduo - que o força à composição para ser o que é - que escreve

Aristóteles no passo 1075a5. O motor imóvel, contudo, não possui matéria. Apesar disto,

não é essência segunda, denominação conferida ao gênero e a espécie na obra Categorias.

É essência primeira, que não pode ser predicada de coisa alguma e subsiste em si mesma,

não obstante a ausência de matéria. O motor imóvel é forma pura, mas somente porque é

efetividade pura. Caso contrário diríamos o mesmo da forma do redondo, o que é um

absurdo, pois esta jamais prescinde da matéria para subsistir em si mesma, de forma

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alguma se torna efetividade pura. A plenitude (e)ntele/xeia) da efetividade é exclusiva

da forma mais excelente que existe, a inteligência, e tal perfeição intelectual é atingida

apenas por uma espécie de ser, o motor imóvel.

Por isso, a essência imóvel não possui partes, e a perfeição que lhe é própria

independe de composição harmônica para ser atingida. O bem relativo ao motor imóvel,

portanto, “não detém do bem nesta ou naquela parte, mas detém, diversamente, o bem

máximo em sua totalidade” (ou) ga\r eÃxei to\ euÅ e)n t%diì hÄ e)n t%di¿, a)ll' e)n oÀl%

tiniì to\ aÃriston, oÄn aÃllo ti) (1075a10)

Todas estas conclusões são assumidas como já demonstradas no capítulo sétimo, e

o próprio capítulo oito, no passo 1074a35 segue da mesma forma, porquanto não

demonstra o fato de que todas as coisas múltiplas tem matéria. A convicção de Jaeger, de

que o capítulo oito é deslocado, é inverossímil, por não levar em conta a dinâmica da

reflexão filosófica do autor. Reale também falha por aceitar a posição natural atribuída ao

capítulo nove. Na verdade, somente duas alternativas são plausíveis: o capítulo nove seria

imediatamente anterior ao sétimo ou uma introdução ao mesmo.

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Separação da Supra-essência

O passo 1075a23 é de interpretação extremamente difícil. Ross36 traduz: “Todas

as coisas, ao menos em sua dissolução, contribuem para o bem comum”. Mesmos os

seres que parecem destituídos de importância teriam um papel na manutenção da ordem

do mundo, ao se dissolverem e dar lugar ao crescimento de novos seres. Eis a tradução-

interpretação de Ross. No entanto, Reale 37 apresenta uma tradução completamente

diferente: “Quero dizer que todas as coisas, necessariamente, tendem a se distinguir; por

outro lado, ao contrário, todas as coisas tornam comum uma totalidade” (le/gw d' oiâon

eiãj ge to\ diakriqh=nai a)na/gkh aÀpasin e)lqeiÍn, kaiì aÃlla ouÀtwj eÃstin wÒn

koinwneiÍ aÀpanta ei¹j to\ oÀlon.). Esta leitura oferece a vantagem de não romper com

o fio argumentativo das linhas anteriores, que segue a partir da analogia com o exército e

seu comandante. Eis o que facilmente se depreende. É justamente a terceira alternativa

que Aristóteles enumera, a saber, que o bem é algo separado (xwristo/n) e por si, e,

36 Ross, 1981, p.400. 37 Reale, 1978, p.304.

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simultaneamente, imanente ao cosmos, como a ordem de suas partes. O motor imóvel é

bem enquanto separado e auto-subsistente, que produz a ordem universal, quer dizer, o

bem como composição harmônica. Já vimos em 1075a5 que “tudo o que não tem matéria

não tem partes”( hÄ a)diai¿reton pa=n to\ mh\ eÃxon uÀlhn) e, portanto, o motor imóvel

“não detém do bem nesta ou naquela parte, mas detém, diversamente, o bem máximo em

sua totalidade” (ou) ga\r eÃxei to\ euÅ e)n t%diì hÄ e)n t%di¿, a)ll' e)n oÀl% tiniì to\

aÃriston, oÄn aÃllo ti) (1075a10). Os seres sensíveis, mesmo os astros, realizam o bem

apenas na medida em que pertencem a uma ordem, tendendo, por isso, à unidade, o que

está de acordo com a tradução de Reale do passo 1075a24.

O terceiro elemento é a matéria. Esta é a sede dos contrários. Estes, em si mesmos,

não mudam. Não há como um contrário originar outro, transmudar-se em seu oposto. Os

contrários mudam apenas enquanto estejam ou não em determinado indivíduo, mas não

mudam em si mesmos. Os graus intermediários têm lugar na matéria, não sendo, portanto,

sinal de um processo de transformação entre os elementos contrários. O terceiro elemento

pode receber a forma e seu oposto, a privação. Conforme bem escreve Reale38, o par

forma-matéria não é um par de contrários. Até porque isto significaria a impossibilidade

de coexistirem para constituir um ser, pela inviolabilidade do princípio de não-

contradição. O par de contrários é aquele constituído pela forma e sua privação.

A segunda parte do capítulo é quase inteiramente dedicada à refutação de

doutrinas incompatíveis com os princípios já demonstrados. A doutrina da Inteligência

(nous), tal como concebida por Anaxágoras, é criticada pelo Estagirita. O pensador da

“mistura cósmica” entende que a inteligência é princípio de movimento. Contudo, não

38 Reale, 1978, p. 305.

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concebe esta produção de movimento como uma teleologia. Mas toda a investigação de

Aristóteles leva a essa conclusão, a saber, de que a Razão ou Inteligência só pode mover

enquanto propósito do movimento. Sendo assim, o Filósofo efetua duas retificações. A

primeira é uma tentativa de interpretação que torne a teoria aceitável. É o caso de

considerarmos - a exemplo do que é feito nos passos 1070a30 e 1070b30 - a causa

eficiente idêntica à causa formal, que é, por sua vez, a mesma que a causa completiva,

porquanto todas as coisas tendem a atualizar sua forma. Sob este ponto de vista, mas sob

nenhum outro, a teoria de Anaxágoras é razoável. A segunda retificação aponta para uma

falha na teoria, pois esta não prevê existência de algo contrário à Inteligência. Reale não

entende esta reprovação, e nos remete a Bonitz, que manifestou a mesma perplexidade.

Se o próprio Filósofo, mais adiante, assume como verdadeiro que “o primeiro não tem

contrário”(ou) ga/r e)stin e)nanti¿on t%½ prw¯t% ou)de/n:) (1075b21), não haveria

sentido em censurar Anaxágoras por fazer o mesmo em relação à Inteligência, visto que

esta é, sob muitos aspectos, análoga ao primeiro motor, que não tem contrário. Bonitz é

bem sucedido ao afirmar que o primeiro motor não tem contrário por ser imaterial, na

medida em que a matéria, como vimos acima, é a sede dos contrários. No entanto, o

primeiro motor não possui contrário não apenas porque é imaterial, mas devido, também,

a seu modo único de agir sobre os outros seres, isto é, apenas enquanto completude

(télos). É princípio de movimento sem manter contato com coisa alguma, o que o torna

imune a qualquer tipo de resistência ou contrariedade. O mesmo não se pode dizer da

Inteligência de Anaxágoras - e este é o limite das analogias que traçamos com o primeiro

motor - porquanto este pensador não definiu a teleologia como único modo de ação do

princípio supremo, e, mesmo a suposição de que este é um dos modos de ação é apenas

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uma interpretação extrínseca, como sugere Aristóteles no passo 1075b10. Portanto, o

nous de Anaxágoras, não sendo completamente separado (xwristo/n), não é o nous de

Aristóteles. Para que, imóvel, mova eternamente todos os seres, o nous supremo não deve

ter qualquer comunidade com nenhum dos seres. Caso contrário, sua potência será finita,

pois um contraponto cinético será inevitável, ainda que o próprio Anaxágoras não o tenha

previsto em sua doutrina. Com efeito, ainda que "sem mistura" signifique "estar por si

mesmo separado dos outros entes", a inteligência move todas as coisas produzindo um

turbilhão, e não somente como uma completude separada, pois nous e télos são aqui

distintos:

"Anaxágoras põe o bem como princípio de movimento: de fato, a

inteligência produz movimento. Todavia, ela move em vista de um propósito;

portanto, este é diferente dela; a menos que se aceite o que nós afirmamos: a

medicina é, em certo sentido, a saúde." (Metafísica, 1075b10)

¹Anacago/raj de\ w¨j kinou=n to\ a)gaqo\n a)rxh/n: o( ga\r nou=j kineiÍ. a)lla\ kineiÍ eÀneka/ tinoj, wÐste eÀteron, plh\n w¨j h(meiÍj le/go-men: h( ga\r i¹atrikh/ e)sti¿ pwj h( u(gi¿eia.

Isto torna o nous, de certo modo, parte da mistura universal, ao lado da totalidade

movida, como contrário resistente à sua ação, e resistente porque em contato com o motor,

pois não move como télos do movido, única possibilidade que exclui o contato:

"O primeiro motor, entendido não como propósito, mas como princípio de

onde parte o movimento, está com o movido (digo 'junto' porque não há nada há

intermediário entre eles)." (Física H, 243a31)

To\ de\ prw½ton kinou=n, mh\ w¨j to\ ou eÀneken, a)ll' oÀqen h( a)rxh\ th=j kinh/sewj, aÀma t%½ kinoume/n% e)sti¿. le/gw de\ to\ aÀma, oÀti ou)de/n e)stin au)tw½n metacu/:

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Daí que a própria imutabilidade atribuída ao nous não encontra sustentação,

embora tal atribuição, em si mesma, seja necessária para a inteligibilidade do movimento

que o nous imprime em todas as coisas em virtude de sua própria potência intelectiva.

Mesmo no De Anima, onde trata de outra espécie de inteligência, Aristóteles já mostrava

aprovação pela doutrina anaxagórica da pureza da inteligência:

"Pois, se intelige tudo, deve ser sem mistura, como disse Anaxágoras.

Com efeito, a interferência de algo alhei interfere e impede." (429a19)

a)na/gkh aÃra, e)peiì pa/nta noeiÍ, a)migh= eiånai, wÐsper fhsiìn ¹Anacago/raj, iàna kratv=, tou=to d' e)stiìn iàna gnwri¿zv. paremfaino/menon ga\r kwlu/ei to\ a)llo/trion kaiì a)ntifra/ttei

Eis agora a mais forte evidência da unidade entre as duas metades do Livro L, a

despeito dos conteúdos em sua maior parte distintos, a primeira tratando principalmente

das essências sensíveis e a segunda da possibilidade e necessidade das supra-sensíveis.

Vimos que, no princípio do capítulo primeiro, Aristóteles estabelece o primado da

essência sobre todas as coisas que são, independentemente de considerarmos o universo

como uma série ou como um todo. Com efeito, sob qualquer um dos pontos de vista,

somos forçados a admitir que a essência é anterior a tudo. Agora, ao fim do último

capítulo, o Filósofo não mais cogita a hipótese de o universo ser apenas uma série de

coisas que não mantêm quaisquer relações umas com as outras. E não poderia mesmo

fazê-lo, dadas as inúmeras demonstrações fornecidas ao longo do livro L, tendo por

fundamento a necessidade do motor imóvel e a ordem universal. Falham, portanto,

aqueles que “reduzem a realidade do universo a uma série de episódios” (1076a1). A

citação final, evocando o poeta Homero, não poderia ser mais oportuna: “Não é bom que

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governem muitos. Haja um chefe só. ("ou)k a)gaqo\n polukoirani¿h: eiâj koi¿ranoj

eÃstw.")(1076a5)”

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III – INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA DO LIVRO LLLL

Esta terceira seção tem por objetivo considerar o livro L tanto a partir de sua

relação com outros livros da Metafísica quanto no que toca à sua função, mais

precisamente à doutrina do primeiro motor, relativamente à fundamentação dos

princípios inerentes a todos os seres.

Para discutir o primeiro ponto, partirei de uma leitura da tese de W. Jaeger

segundo a qual o livro L seria um tratado isolado escrito no início do desenvolvimento

intelectual de Aristóteles. Ao mostrar que a tese de Jaeger é pouco verossímil, mostrarei

que há uma relação entre o livro L e alguns outros livros da Metafísica.

Em um segundo momento, tentarei então mostrar como a filosofia universal que

busca Aristóteles em várias passagens da Metafísica encontra sua formulação mais

adequada na doutrina do primeiro motor, já que esta deve ser entendida como o

fundamento dos princípios e causas de todos os seres e, portanto, como universal em

primeiro grau. Sob tal perspectiva deve ser encarada toda a investigação empreendida ao

longo dos capítulos quatro e cinco do livro L, o que nos permite considerá-los não

somente um continuum, mas também como o verdadeiro nexus entre as duas partes do

livro L.

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Grau de Maturidade do Livro LLLL da Metafísica

Em sua obra Aristóteles- Fundamentos da História de seu desenvolvimento,

Werner Jaeger sustentava que o livro L da Metafísica é anterior aos escritos mais

maduros do Filósofo. Aristóteles ainda estaria fortemente vinculado às principais teses de

seu mestre Platão, tendo como resultado a formulação da doutrina do que ficou conhecido

como o primeiro motor. Vejamos alguns de seus principais argumentos:

(1) Neste livro postula-se que o estudo da essência não-sensível é o único escopo

da metafísica; à física cabe o estudo das essências sensíveis, sendo essa uma ciência

segunda. Jaeger considerava os cinco primeiros capítulos, em que é estabelecida uma

espécie de tipologia das essências existentes no universo, como meramente preliminares.

(2) O claro parentesco entre o livro L e outros livros com datas reconhecidamente

anteriores à maioria das obras do Corpus Aristotelicum.

(3) O livro L não faz referência a qualquer outro livro da Metafísica.

Atualmente, há uma forte tendência dos críticos em desconsiderar boa parte da

gravidade destes argumentos em prol de uma concepção mais una da Metafísica, ou seja,

que demonstre a necessidade de uma continuidade entre o livro L e o restante da

Metafísica. David Ross 39 , por exemplo, minimiza a força do primeiro argumento

apresentado acima. Diligente, aponta para um fato incontestável: a presença, no livro Z,

do mesmo tipo de investigação sobre o verdadeiro objeto da ciência primeira. Refere-se a

passagens como esta:

39 Ross, 1981, p.346.

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“Cabe investigar se existe - além da matéria de tais essências - uma outra

espécie de matéria, e se devemos buscar alguma essência diferente destas, como

os números ou algo semelhante. Isto será examinado mais tarde, pois é no

interesse dessa pesquisa que procuramos determinar também a natureza das

essências sensíveis, cujo estudo pertence antes à Física, isto é, à Filosofia

Segunda.” (1037a9)

po/teron de\ eÃsti para\ th\n uÀlhn tw½n toiou/twn ou)siw½n tij aÃllh, kaiì deiÍ zhteiÍn ou)si¿an e(te/ran tina\ oiâon a)riqmou\j hà ti toiou=ton, skepte/on uÀsteron. tou/tou ga\r xa/rin kaiì periì tw½n ai¹sqhtw½n ou)siw½n peirw¯meqa diori¿zein, e)peiì tro/pon tina\ th=j fusikh=j kaiì deute/raj filosofi¿aj eÃrgon h( periì ta\j ai¹sqhta\j ou)si¿aj qewri¿a:

A definição do verdadeiro objeto da metafísica, seu distinto escopo relativamente

ao das demais ciências, não é o único tópico recorrente. As implicações escatológicas da

análise do movimento, que possui especial significância no terceiro capítulo do livro L,

também são encontradas no capítulo oito do livro Z. Comparemos os dois momentos

desta temática:

“Depois disto, dizemos que não se geram nem a matéria nem a forma. Me

refiro agora às últimas. Com efeito, em todos os casos transita algo, por ação de

algo, e até algo. Aquele por cuja ação transita é o primeiro que move. O que

transita é a matéria. Aquilo até o qual transita é a forma. E se cairia em um

processo infinito, desde logo, se não apenas fosse feito redondo o bronze, mas

além disso fossem feitos o bronze e o redondo. É, pois, necessário deter-se.” (L,

1069b35)

Meta\ tau=ta oÀti ou) gi¿gnetai ouÃte h( uÀlh ouÃte to\ eiådoj, le/gw de\ ta\ eÃsxata. pa=n ga\r metaba/llei tiì kaiì u(po/ tinoj kaiì eiãj ti: u(f' ou me/n, tou= prw¯tou kinou=ntoj: oÁ de/, h( uÀlh: ei¹j oÁ de/, to\ eiådoj. ei¹j aÃpeiron ouÅn eiåsin, ei¹ mh\ mo/non o( xalko\j gi¿gnetai stroggu/loj a)lla\ kaiì to\ stroggu/lon hÄ o( xalko/j: a)na/gkh dh\ sth=nai.

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“Com efeito, produzir algo determinado não é senão produzir algo

determinado a partir do que é substrato em sentido absoluto (quero dizer que

tornar redondo o bronze não é fazer nem o redondo nem a esfera, mas algo

distinto, por exemplo, a forma em outra coisa. De modo que se a forma fosse feita,

seria a partir de outra coisa, pois isto já está estabelecido. Fazemos uma esfera

de bronze no seguinte sentido: disto, que é bronze, fazemos outra coisa, que é a

esfera). Por conseguinte, se também fazemos o substrato, é evidente que o

fazemos do mesmo modo, e o processo de produção recuará até o infinito. É

evidente, por conseguinte, que nem se geram a forma, ou como quer que

convenha chamar a figura presente na coisa sensível; nem dela, nem da essência,

há produção; pois isto é o que é gerado em alguma outra coisa quer por engenho,

quer por natureza, quer por alguma potência. Mas a esfera de bronze é o que é

produzido. É produzido, efetivamente, de bronze e de esfera, já que se faz a forma

em tal coisa, e esta é a esfera de bronze. Com efeito, se houvesse geração daquilo

em que consiste ser-esfera em geral, seria algo que procederia de algo. Desde

logo, o gerado têm que ser divisível, e uma parte será isto e outra parte aquilo

outro, quer dizer, um a matéria e outro, a forma.” (Z, 1033a31)

to\ ga\r to/de ti poieiÍn e)k tou= oÀlwj u(pokeime/nou to/de ti poieiÍn e)sti¿n (le/gw d' oÀti to\n xalko\n stroggu/lon poieiÍn e)stiìn ou) to\ stroggu/lon hÄ th\n sfaiÍran poieiÍn a)ll' eÀtero/n ti, oiâon to\ eiådoj tou=to e)n aÃll%: ei¹ ga\r poieiÍ, eÃk tinoj aÄn poioi¿h aÃllou, tou=to ga\r u(pe/keito: oiâon poieiÍ xalkh=n sfaiÍran, tou=to de\ ouÀtwj oÀti e)k toudi¿, oÀ e)sti xalko/j, todiì poieiÍ, oÀ e)sti sfaiÍraŸ: ei¹ ouÅn kaiì tou=to poieiÍ au)to/, dh=lon oÀti w¨sau/twj poih/sei, kaiì badiou=ntai ai¸ gene/seij ei¹j aÃpei-ron. fanero\n aÃra oÀti ou)de\ to\ eiådoj, hÄ o(tidh/pote xrh\ kaleiÍn th\n e)n t%½ ai¹sqht%½ morfh/n, ou) gi¿gnetai, ou)d' eÃstin au)tou= ge/nesij, ou)de\ to\ ti¿ hÅn eiånai (tou=to ga/r e)stin oÁ e)n aÃll% gi¿gnetai hÄ u(po\ te/xnhj hÄ u(po\ fu/sewj hÄ duna/mewjŸ. to\ de\ xalkh=n sfaiÍran eiånai poieiÍ: poieiÍ ga\r e)k xalkou= kaiì sfai¿raj: ei¹j todiì ga\r to\ eiådoj poieiÍ, kaiì eÃsti tou=to sfaiÍra xalkh=. tou= de\ sfai¿r# eiånai oÀlwj ei¹ eÃstai ge/nesij, eÃk tinoj tiì eÃstai. deh/sei ga\r diaireto\n eiånai a)eiì to\ gigno/menon, kaiì eiånai to\ me\n to/de to\ de\ to/de, le/gw d' oÀti to\ me\n uÀlhn to\ de\ eiådoj.

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O primeiro trecho pertence ao livro L. O segundo, ao livro Z, cuja maturidade

intelectual é assente entre os especialistas, principalmente em virtude da complexificação

de temas ainda germinais em outros livros.

A convicção na impossibilidade de geração da matéria e da forma está presente

nestas duas passagens. O interessante é que a similaridade destes dois momentos deve-se

não somente ao tema compartilhado, mas também ao itinerário argumentativo e à mesma

alusão (exemplo da estátua de bronze). Este último ponto reforça ainda mais a tese de que

são pertinentes a um mesmo período.

Há uma matéria e uma forma ingênitas, que são as últimas. O processo de geração

supõe algo de onde o gerado provém e algo que o gerado se torna, sendo o primeiro a

matéria e o segundo a forma. Aristóteles rejeita uma regressão ad infinitum de geração da

matéria, a qual tornaria impossível um substratum último, e rejeita qualquer processo de

geração da forma. Com efeito, só pode haver geração da coisa que consiste em tal forma

em tal matéria, pois, se a forma mesma fosse gerada, o seria a partir de outra matéria, não

sendo, assim, pura forma, o que contradiz a hipótese inicial. A forma, considerada em si

mesma, é indivisível, quer dizer, irredutível a outros termos. Não devemos, pois, buscar

processos de geração anteriores à matéria denominada bronze e à forma esférica

configurada na esfera de bronze. É importante atentar para o perigo de se confundir tal

concepção com algo similar à doutrina de seu mestre Platão, com a qual divergiu

consideravelmente. As formas não existem separadamente das essências individuais. O

fato de existirem anteriormente a um determinado indivíduo não significa que independa

do processo de causação que o gerou. Na verdade, as formas são ingênitas porque é

ingênito o movimento universal, no âmbito do qual são instauradas na matéria. A

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eternidade do movimento universal é confirmada no livro L, logo após o trecho

supracitado: “Ora, é impossível que o movimento tenha começado ou que termine, pois

ele deve ter existido sempre; e o mesmo quanto ao tempo, pois do contrário não existiria

um antes e um depois.” (a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai hÄ fqarh=nai (a)eiì

ga\r hÅnŸ, ou)de\ xro/non. ou) ga\r oiâo/n te to\ pro/teron kaiì uÀsteron eiånai mh\

oÃntoj xro/nou:) (1071b8)

Isso não significa que os argumentos de Jaeger sejam inúteis no sentido de

explicitar a peculiaridade do livro L. Na verdade, o fato de que aqui não se faça

referência a qualquer outro livro da Metafísica é inegável. É que tal via investigativa

revelou-se pouco fértil para uma maior compreensão do lugar do livro L na totalidade do

Corpus Aristotelicum.

Outro aspecto do segundo argumento apresentado acima se torna frágil pela

simples verificação textual. Jaeger sustentava que os cinco primeiros capítulos desta obra

são manifestamente preliminares, ou seja, não possuem qualquer função na investigação

empreendida pelo Estagirita sobre a existência de um primeiro motor imóvel e imaterial.

Atentemos para o trecho destacado a seguir:

“Existem três essências. Uma é a essência sensível, que se distingue em a)

eterna e b) corruptível (e esta é a essência que todos admitem: por exemplo as

plantas e os animais; desta é necessário compreender quais são os elementos

constitutivos, quer eles se reduzam a um só, quer sejam muitos). c) A outra

essência é a imóvel; e alguns filósofos afirmam que ela é separada: alguns a

separam ulteriormente em dois tipos, outros reduzem as Formas e os Entes

matemáticos a uma única natureza, outros ainda só admitem os Entes

matemáticos.

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As duas primeiras espécies de essências constituem o objeto da física,

porque são sujeitas a movimento; a terceira, ao invés, é objeto de outra ciência,

dado que não existe nenhum princípio comum a ela e às outras duas.” (1069a30)

ou)si¿ai de\ treiÍj, mi¿a me\n ai¹sqhth/ hÂj h( me\n a)i¿+dioj h( de\ fqarth/, hÁn pa/ntej o(mologou=sin, oiâon ta\ futa\ kaiì ta\ z%½a h( d' a)i¿+dioj hÂj a)na/gkh ta\ stoixeiÍa labeiÍn, eiãte eÁn eiãte polla/: aÃllh de\ a)ki¿nhtoj, kaiì tau/thn fasi¿ tinej eiånai xwristh/n, oi¸ me\n ei¹j du/o diairou=ntej, oi¸ de\ ei¹j mi¿an fu/sin tiqe/ntej ta\ eiãdh kaiì ta\ maqhmatika/, oi¸ de\ ta\ maqhmatika\ mo/non tou/twn. e)keiÍnai me\n dh\ fusikh=j meta\ kinh/sewj ga/r, auÀth de\ e(te/raj, ei¹ mhdemi¿a au)toiÍj a)rxh\ koinh/.

Encontramos tais afirmações no primeiro capítulo do livro L. Estabelece-se aqui

uma tipologia de essências. Além das duas espécies de essência sensível, uma das quais

imperecível e outra, terrestre e corruptível, há uma terceira classe, a da essência imóvel. É

exatamente esta espécie de essência que pertence à “ciência distinta”, notadamente à

Metafísica. A primeira destas essências sensíveis, a que pertence ao chamado mundo

lunar, comporta em si as quatro espécies de transição definidas por Aristóteles. Estas

espécies são: (1) a transição no tocante à essência, (2) a transição no tocante à qualidade,

(3) a transição no tocante à quantidade e (4) a transição no tocante ao lugar. A essência

sensível supralunar, isto é, relativa aos corpos celestes, comporta apenas a quarta espécie

de transição, aquela relativa ao lugar. Devido a isto, a própria matéria que a constitui tem

que ser diferente deste tipo de matéria que vemos nos seres à nossa volta.

O critério fundamental que define duas das três essências acima como

pertencentes a uma mesma classe é, como podemos ver, a transição. A essência

supralunar possui tal propriedade apenas em um nível elementar, pois em Aristóteles a

transição relativa ao lugar constitui a forma mais simples de transição. Por outro lado,

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ainda que em seu nível mais elementar, a transição denota a existência de matéria em

uma essência, pois somente esta está sujeita à transição por estar sujeita a alterar-se de

um estado para outro contrário. Sendo assim, esses dois tipos de essência são materiais,

ou seja, sensíveis. Isto as coloca dentro do âmbito de uma mesma ciência, a física.

Quanto ao terceiro tipo de essência, a imóvel, justamente por não conter em si a

propriedade de executar nenhuma das quatro espécies de transição, não pode conter

matéria em sua natureza. A questão da imaterialidade da essência imóvel será

desenvolvida mais adiante, juntamente com as provas de sua existência. A “segunda

metade” do livro L, que compreende os cinco últimos, também trata da tipologia das

essências universais conectando-a diretamente à investigação sobre a existência do

primeiro motor. Assim, verificamos no sexto capítulo:

“Dissemos que há três espécies de essência, duas físicas e uma imóvel.

Desta última vamos falar agora, mostrando que existe necessariamente uma

essência imóvel eterna. Porquanto as essências são as primeiras das coisas

existentes, e se todas elas forem destrutíveis, destrutíveis serão também todas as

coisas. Ora, é impossível que o movimento tenha começado ou que termine, pois

ele deve ter existido sempre; e o mesmo quanto ao tempo, pois do contrário não

haveria um antes e um depois. De sorte que o movimento é também contínuo no

mesmo sentido em que o é o tempo, dado que este ou é a mesma coisa que o

movimento, ou um atributo dele. E não existe movimento contínuo salvo o que

ocorre no espaço, e deste, apenas o movimento circular”.

Se há, porém, algo que seja capaz de mover as coisas ou de agir sobre

elas, mas não o faça realmente, não será necessário que haja movimento, pois o

que tem uma potência nem sempre a exerce. Nada nos adianta pois, supor

essências eternas, como fazem os que acreditam nas Formas, a não ser que nelas

haja um princípio capaz de produzir transição. E nem mesmo isso basta, como

tampouco será suficiente uma outra essência além das Formas, pois se ela não

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for capaz de agir não haverá movimento. Digo mais: ainda que ela aja, isso não

bastará, se a sua essência for apenas potência; não haveria movimento eterno,

porquanto o que é em potência pode não ser. Deve, por conseguinte, haver um tal

princípio, cuja própria essência seja a efetividade. Por outra parte, estas

essências devem ser imateriais, pois se há algo de eterno hão de ser

elas.”(1071b3)”.

¹Epeiì d' hÅsan treiÍj ou)si¿ai, du/o me\n ai¸ fusikaiì mi¿a d' h( a)ki¿nhtoj, periì tau/thj lekte/on oÀti a)na/gkh eiånai a)i¿+dio/n tina ou)si¿an a)ki¿nhton. aià te ga\r ou)si¿ai prw½tai tw½n oÃntwn, kaiì ei¹ pa=sai fqartai¿, pa/nta fqarta/: a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai hÄ fqarh=nai (a)eiì ga\r hÅnŸ, ou)de\ xro/non. ou) ga\r oiâo/n te to\ pro/teron kaiì uÀsteron eiånai mh\ oÃntoj xro/nou: kaiì h( ki¿nhsij aÃra ouÀtw sunexh\j wÐsper kaiì o( xro/noj: hÄ ga\r to\ au)to\ hÄ kinh/sew¯j ti pa/qoj. ki¿nhsij d' ou)k eÃsti sunexh\j a)ll' hÄ h( kata\ to/pon, kaiì tau/thj h( ku/kl%. ¹Alla\ mh\n ei¹ eÃsti kinhtiko\n hÄ poihtiko/n, mh\ e)nergou=n de/ ti, ou)k eÃstai ki¿nhsij: e)nde/xetai ga\r to\ du/namin eÃxon mh\ e)nergeiÍn. ou)qe\n aÃra oÃfeloj ou)d' e)a\n ou)si¿aj poih/swmen a)i+di¿ouj, wÐsper oi¸ ta\ eiãdh, ei¹ mh/ tij duname/nh e)ne/stai a)rxh\ metaba/llein: ou) toi¿nun ou)d' auÀth i¸kanh/, ou)d' aÃllh ou)si¿a para\ ta\ eiãdh: ei¹ ga\r mh\ e)nergh/sei, ou)k eÃstai ki¿nhsij. eÃti ou)d' ei¹ e)nergh/sei, h( d' ou)si¿a au)th=j du/namij: ou) ga\r eÃstai ki¿nhsij a)i¿+dioj: e)nde/xetai ga\r to\ duna/mei oÄn mh\ eiånai. deiÍ aÃra eiånai a)rxh\n toiau/thn hÂj h( ou)si¿a e)ne/rgeia. eÃti toi¿nun tau/taj deiÍ ta\j ou)si¿aj eiånai aÃneu uÀlhj: a)i+di¿ouj ga\r deiÍ, eiãper ge kaiì aÃllo ti a)i¿+dion.

Aristóteles torna patente, no trecho destacado acima, que o terceiro tipo de

essência tratado no primeiro capítulo é, na verdade, o agente responsável pela eterna

transição universal. A razão da imaterialidade desta essência fica também demonstrada: o

agente responsável pela transição eterna não pode conter qualquer tipo de potência nesta

efetividade, pois assim nada garantiria a eterna sustentação da efetividade universal; tudo

que possui matéria possui também alguma das quatro espécies de potência relativas às

quatro espécies de transição; logo, o agente responsável pela transição eterna universal

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não pode conter matéria em sua natureza. A tipologia das essências universais é essencial

na investigação sobre o que, mais adiante, tomará definitivamente a forma da doutrina

conhecida como a do primeiro motor. O simples reconhecimento destas conexões textuais

enfraquece o primeiro argumento de Jaeger, de que os cinco capítulos iniciais possuem

pouca importância na confecção do livro L.

Física, Teologia e Filosofia Primeira

Muito oportuna para a nossa investigação é a referência à linha argumentativa de

outro estudioso do Corpus Aristotelicum. Natorp (1888, 24) acredita que os trechos da

Metafísica em que a primeira filosofia é caracterizada como teologia são interpolações

posteriores. Na passagem de VI,1 em que é estabelecida a distinção entre o objeto da

Filosofia Primeira, da Matemática e da Física (1026a15), Natorp utiliza-se de uma

tradução de acordo com a qual a Filosofia se ocuparia também das essências imutáveis e

independentes apenas porque se ocupa de tudo. Seu objetivo é neutralizar a opinião de

que a Filosofia Primeira seria a Teologia. Se a Filosofia Primeira não se ocupa

exclusivamente das essências imóveis, que Aristóteles considera divinas, então não

haveria razão para qualificar esta esfera da sabedoria de ciência do divino. Natorp

sustenta que a ciência fundamental não lida exclusivamente com o imaterial, mas também

com o sensível e transitório, ao contrário da Física, cujo âmbito pertence unicamente a

esta espécie de ser. Patzig (1979, p.36) o censura de ter negligenciado uma leitura mais

atenta da frase “h( me\n ga\r fusikh\ periì xwrista\ me\n a)ll' ou)k

a)ki¿nhta”(1026a15) que não pode, de forma alguma, significar “a física lida com as

coisas separadas mas não com as coisas imutáveis”, o que é pretendido por Natorp, pois

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desta maneira uma interpretação inclusivista da ciência primeira seria permitida. Patzig

destaca que teríamos que acrescentar “peri” antes de “a)ki¿nhta” para que tomássemos

este significado. Mas da forma em que encontramos o texto, a expressão “a)ll' ou)k

a)ki¿nhta” se refere apenas ao “xwrista” que é o objeto da Física, ou seja, uma

propriedade intrínseca - a transitoriedade - às coisas separadas tratadas por esta ciência.

Patzig, assim, pretende mostrar que a tradução adotada por Natorp é incorreta. Quanto à

suposição de Natorp, de que houve uma interpolação nas passagens em que a primeira

filosofia é identificada com a teologia, Patzig o censura por não ter percebido que os oito

primeiros capítulos de K contêm um sumário das afirmações encontradas em B, G e E.

Isto nos obrigaria a considerar inautêntico o livro K, o que, embora possível, requer outra

série de argumentos ad hoc.

Patzig oferece uma solução menos radical que a encontrada por Jaeger e Natorp,

solução essa baseada na análise detalhada do próprio texto. Procura interpretar o Filósofo

de modo a descobrir sua maneira característica de pensar e raciocinar. Este método

procura neutralizar as supostas contradições do texto, mostrando que, na verdade, não

passam de um mal-entendido. Enquanto Jaeger afirmava que as partes da Metafísica que

identificam a Primeira Filosofia com a Teologia são frutos de uma fase primitiva e ainda

platônica do desenvolvimento da filosofia do Estagirita, Patzig atenta para a

improbabilidade de um pensador do calibre de Aristóteles permitir a justaposição de duas

posições fundamentais e contraditórias em um único tratado sobre a Filosofia Primeira.

Para tornar aceitável a tese Jaegeriana, a única saída seria a hipótese em última instância

inverificável de enxertos ad hoc, tanto quanto isso fosse necessário.

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Além disso, Patzig questiona como a Primeira Filosofia, atribuída ao sophos, que

“possui um certo conhecimento de tudo” (tou/twn de\ to\ me\n pa/nta e)pi¿stasqai t%½

ma/lista eÃxonti th\n kaqo/lou e)pisth/mhn a)nagkaiÍon u(pa/rxein) (982a23),

poderia ser limitada pelo conhecimento da essência e existência de Deus. Poderíamos

pensar que Patzig entra em contradição aqui: procura refutar uma opinião que considerou

verdadeira, a saber, aquela de que a teologia como Filosofia Primeira é encontrada

mesmo na maturidade de Aristóteles. Atentemos para o fato de que, em sua investida

contra Natorp, este é criticado por acreditar, baseado em tradução incorreta, que o estudo

das essências imutáveis é apenas um dos objetos da Filosofia Primeira, pois esta se

ocuparia de tudo. Porém, deve-se considerar que Patzig censura Natorp apenas por sua

tentativa de identificar uma teologia não-filosófica na determinação da Filosofia Primeira.

Modo de Universalidade do Objeto Primeiro

Na verdade, a fonte das dificuldades em torno das quais tem lugar a crítica de

Patzig reside na questão de se a filosofia primeira é ou não universal. Esta noção, contudo,

sofre uma modificação na própria doutrina do Filósofo à medida que investiga o objeto

da mais alta ciência. A ciência primeira é universal, não porque trata de um objeto que se

predica de várias coisas, até porque isto nem mesmo é possível, dado que a essência não

se predica de coisa alguma e o objeto de tal investigação - como vemos principalmente

no livro L - é uma espécie de essência. A universalidade da ciência primeira, como

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veremos na segunta parte deste trabalho, decorre não só da generalidade de suas

principais noções investigadas, que versam sobre o que pertence a qualquer ente tão

simplesmente por ser um ente, mas também porque concentra os resultados deste estudo

em determinados entes, cuja natureza os torna determinantes da natureza de outros

conjuntos de entes. Confirmaremos isto nos livros VI e XI, sendo que este último - como

já apontou Patzig - teria que ser considerado apócrifo em sua totalidade, se admitíssemos

a tese de Natorp, de que tais passagens do livro VI são interpolações.

A dedicação exclusiva, já tratada acima, de cinco capítulos inteiros do livro L à

análise da essência sensível, também é utilizada por Patzig em sua tentativa de obter uma

solução menos radical que Natorp e Jaeger. Refere-se a este fato para mostrar a fraqueza

da teoria de Jaeger segundo a qual a fase primitiva de Aristóteles, à qual o livro L

pertenceria, é marcado pela “pura teologia” que antecede a fase madura do Filósofo, esta

sendo o período de ocorrência da ontologia universal, em que as essências sensíveis

ocupam a totalidade da investigação. Este argumento de Patzig, porém, é frágil. Nada

impediria que, em sua fase primitiva, Aristóteles tenha dedicado grande parte de suas

investigações à análise da essência sensível, e posteriormente concedido a tal estudo a

totalidade da Filosofia Primeira. A tese de Jaeger não pode ser abalada por esta referência

de Patzig aos cinco primeiros capítulos. No entanto, como afirmamos acima, já não

podemos aceitar a opinião de Jaeger de que os cinco primeiros capítulos do livro L são

meramente introdutórios.

A credibilidade de uma concepção que restaure a continuidade entre este livro e o

conjunto da Metafísica é então revigorada com os trabalhos de Patzig. A doutrina do

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primeiro motor seria assim apreciada como uma obra genuinamente representativa da

plena maturidade intelectual de Aristóteles.

O Movente Imóvel do livro L mantém seu caráter polêmico até os dias de hoje.

Algumas tendências, contudo, confirmam-se. O terreno comum que partilham seus cinco

primeiros capítulos e o livro VII apontam para um evidente parentesco; nesta direção e

perspectiva devem desenvolver-se os novos estudos sobre o livro L.

Há, porém, a necessidade de um argumento mais sólido acerca da maturidade do

livro L e de sua eminente doutrina teológica. É o que procuramos oferecer na próxima

unidade. Veremos como o conceito de uma essência imóvel-motora pode ser percebido

como último escopo de uma cadeia hieráquico-conceitual pela qual o Estagirita obtém

uma imagem discursiva densa e coerente de toda a esfera dos entes.

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SEGUNDA PARTE - O MOTOR IMÓVEL REALIZA A UNIDADE MÁXIMA DO ENTE

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UNIDADE EM ARISTÓTELES Exame do problema da unidade em Aristóteles e sua relação com a noção de mesmo

(au)toj) e outro (alloj). Compreensão do caráter separativo e progressivo da unidade

em Aristóteles.

A compreensão da noção de unidade em Aristóteles é inefetiva se desgarrada da

antecedente platônica que lhe serviu de base e diante da qual se construirá criticamente. É

a partir de um desprendimento de certas exigências da henologia do mestre, que

Aristóteles estabeleceraá sua própria concepção acerca da unidade em geral e da fonte de

toda unidade do ente.

No diálogo de maturidade Parmênides, Platão nos brinda com o célebre eleata a

discorrer acerca da natureza do um absoluto, o um em si mesmo, abstraído de toda

referência sensível. O um absoluto, a idéia do um, é a idéia das idéias, de que participam

todas as idéias. O diálogo, contudo, nos mostra que a idéia do um, quando inteligida

relativamente às outras idéias – como, por exemplo, a do múltiplo, do grande e do

pequeno - suscita inevitáveis paradoxos. No entanto, como só se pode inteligir algo

distinto inteligindo, também, as idéias derivadas da idéia do um, então a idéia de um não

pode ser inteligida sem gerar dificuldade (aporia), pois sua intelecção, para que tenha

genuíno valor cognitivo, envolve relação entre a própria idéia do um – que é o objeto da

intelecção – e outras idéias derivadas do um, sem as quais nenhuma intelecção é possível.

A lição que podemos tirar do “Parmênides” é que nada é absolutamente um, quer

dizer, indivisível sob todos os aspectos, embora todas as coisas pressuponham, pelos

graus de unidade a que pertencem, o um absoluto, como medida de todos os outros “uns”.

O um absoluto é uma imposição ontológica, uma instância última a qual todas se referem.

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É mais uma exigência do que uma constatação. O um absoluto, mais que um ser, é um

“dever ser um”.

O um é a negação do múltiplo. A unificação efetiva uma diferenciação do

múltiplo externo e uma equalização do múltiplo interno. Quanto mais homogeneidade

interna, maior a multiplicidade externa e menor a multiplicidade interna. No momento em

que a coesão se torna intensa de tal modo que não há qualquer grau de multiplicidade

interna, o que restará para o ser do um negar? Tal aporia provém de uma constatação

decisiva de Platão. No domínio do puro um e do puro múltiplo, o que é um para um

múltiplo pode se tornar - a partir de múltiplas relações com sua própria unidade -

múltiplo para si mesmo revelando, assim, seus uns constitutivos. Platão demonstra que o

um não é o mesmo de fora para dentro e de dentro para fora. As duas perspectivas – a

centrípeta e a centrífuga – coexistem no um. Daí que o um tenha sempre um outro um

dentro de si e outro um fora de si, e além disso, seja outro que o outro de si. Porém, no

domínio do puro um outra proposição se faz necessária: a pura relação um-múltiplo

desconhece a distinção aristotélica entre o ser da essência e o ser do concomitante. Onde

há ser, há também essência. A ousía em Platão nada mais é a aquilo de que participa tudo

o que é. Tudo o que é participa da essência. Aqui não há lugar para concomitante. O que

seria um mero concomitante é contemplado como outra essência:

“Mas se dizemos coisas verdadeiras, é evidente que as dizemos como sendo. Ou

não é assim? – É efetivamente assim. – Uma vez pois que afirmamos dizer coisas

verdadeiras, é-nos necessário afirmar também que dizemos coisas que são. – É

necessário. – Logo, segundo parece, o um que não é, é. Pois se ele não for algo

que não é, mas se, de certa maneira, largar o ser por conta de seu não-ser,

imeditamente será algo que é. – Absolutamente sim. – Logo, é preciso que ele

tenha o ser-algo-que-não-é como um elo com o não-ser, se deve não ser, de modo

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semelhante justamente a como o que é precisa ter o ‘não ser algo que não é’,

para que, por sua vez, perfeitamente seja. Pois assim, o mais plenamente possível,

tanto o que é será, quanto o que não é não será, participando o que é da essência

“ser algo que é”, e da não essência “não ser algo que não é”, se deve

perfeitamente ser; e participando o que não é da não essência “não ser algo que

é” e da essência “não ser algo que não é”, se também o que não é, por sua vez,

perfeitamente não for.”40

ei¹ de\ a)lhqh=, dh=lon oÀti oÃnta au)ta\ le/gomen. hÄ ou)x ouÀtwj; – OuÀtw me\n ouÅn. – ¹Epeidh\ de/ famen a)lhqh= le/gein, a)na/gkh h(miÍn fa/nai kaiì oÃnta le/gein. – ¹Ana/gkh. – ãEstin aÃra, w¨j eÃoike, to\ eÁn ou)k oÃn: ei¹ ga\r mh\ eÃstai mh\ oÃn, a)lla/ pv tou= eiånai a)nh/sei pro\j to\ mh\ eiånai, eu)qu\j eÃstai oÃn. – Panta/pasi me\n ouÅn. – DeiÍ aÃra au)to\ desmo\n eÃxein tou= mh\ eiånai to\ eiånai mh\ oÃn, ei¹ me/llei mh\ eiånai, o(moi¿wj wÐsper to\ oÄn to\ mh\ oÄn eÃxein mh\ eiånai, iàna tele/wj auÅ [eiånai] vÅ: ouÀtwj ga\r aÄn to/ te oÄn ma/list' aÄn eiãh kaiì to\ mh\ oÄn ou)k aÄn eiãh, mete/xonta to\ me\n oÄn ou)si¿aj tou= eiånai oÃn, mh\ ou)si¿aj de\ tou= <mh\> eiånai mh\ oÃn, ei¹ me/llei tele/wj eiånai, to\ de\ mh\ oÄn mh\ ou)si¿aj me\n tou= mh\ eiånai [mh\] oÃn, ou)si¿aj de\ tou= eiånai mh\ oÃn, ei¹ kaiì to\ mh\ oÄn auÅ tele/wj mh\ eÃstai.

Como conseqüência, não há unidade para a essência, pois qualquer coisa que a ela

se refira, mesmo que a título de negação, é uma nova essência dentro da essência, o que

significa a dissolução do que antes considerávamos essência. Se toda referência é

essência, toda essência se dissolve em pura referência. Ora, mesmo a pura concomitância

é referência. Ainda que da essência, extrínseca e concomitantemente, seja verdadeiro o

dizer que ela não é um certo algo, o não-ser certo algo significa, na própria essência, uma

não essência. Além disso, a própria verdade desta negação que constitui a não essência

nos dizemos que é uma verdade. Daí que se trate não somente de algo que participa do

não-ser, mas também do ser, ou seja, outra essência.

40 Parmênides, 162a8

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Platão sustenta que, embora o ente dependa da essência, o um independe do ente e

da essência. O um é e não é. Eis a conclusão inevitável deste Diálogo. As duas

alternativas tem o mesmo direito ontológico. Logo, o um está acima do ente. É supra-

ontológico.

O um em Aristóteles, por outro lado, tem que ser uma essência ou ser relativo a

uma (prós hên) essência . O ser repousa na essência, pois que todos os seus sentidos

convergem subalternamente para a essência. Adotando a tese platônica da

conversibilidade de ente e um, o Filósofo faz repousar também o um na essência, e esta

no indivíduo. É que, se os termos são conversíveis, seus ápices semânticos coincidirão.

De fato, se o um é o que não é múltiplo, é forçoso que seu mais alto grau seja, por si

mesmo, algo não-múltiplo, ou seja, um indivíduo. Ora, a essência é o mais alto grau de

indivíduo auto-subsistente. Daí que a essência suporte o ente e o um. Suporta o ente por

sua própria significação de ente primeiro. Quanto ao um, decorre imediatamente da

autonomia da essência. O um de Aristóteles é um princípio constitutivo. Só pode haver

referência à unidade do ser porque há, primeiramente, entes por si mesmos unos que

constituem a totalidade do ser, isto é, as essências individuais. Enquanto em Platão a

noção do um é idéia-limite para o máximo de simplicidade possível, a noção do um em

Aristóteles requer unidades por si mesmas efetivas e individuais.

Em Aristóteles, portanto, o ente e o um, sob qualquer perspectiva, se implicam

mutuamente. Em Platão, sob determinadas perspectivas dialéticas o ente e o um não

coincidem. Este é, talvez, o ponto mais radical da crítica aristotélica à Teoria das Idéias:

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“Além disso, parece impossível que a essência seja separada daquilo de

que é essência; conseqüentemente, se são essências das coisas, como podem as

Idéias serem separadas delas?”41

eÃti do/ceien aÄn a)du/naton eiånai xwriìj th\n ou)si¿an kaiì ou h( ou)si¿a: wÐste pw½j aÄn ai¸ i¹de/ai ou)si¿ai tw½n pragma/twn ouÅsai xwriìj eiåen;

Mas se, como pretende Aristóteles, o ente e o um são sempre conversíveis e

pertencem ao mesmo, o um, por si próprio, conduz ao ente, assim como o ente, por si

próprio, conduz ao um. Os “uns” por excelência, as formas, por si mesmas conduzem ao

ser, tanto em si mesmas, quanto em outros. O eîdos transmite seu próprio ser a outro ente,

enformando, a maneira de modelo (paradeigma), outro eîdos correspondente:

“Em outro sentido, causa significa a forma e o modelo.” (1013a24) (aÃllon de\ to\ eiådoj kaiì to\ para/deigma)

Assim, as formas são, autonomamente, causas da geração dos entes. Cada unidade

formal também é, imediatamente, uma unidade ôntica, na exata medida com que produz

movimento. Daí que possamos dizer que, em Aristóteles, o movimento é universal, pois

todas as coisas ou vem a ser pelo movimento (matérias enformadas ), ou passam a existir

pelo movimento (formas materiais) ou produzem o movimento (formas puras). O que

confere unidade a cada ente sensível, desde sua gênese, é o movimento da forma do

gerador na direção de sua matéria própria. Desde então sua matéria foi enformada e o

concreto (su/noloj) veio a ser.

Platão precisou recorrer ao demiurgo para explicar a síntese das formas com a

matéria, pois suas formas não poderiam, por si mesmas, gerar o ser. É que o um, de que

participa cada forma, tanto é como não é, dependendo da perspectiva dialética. Ora, o que

41 Met. 991b1

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pode ser ou não ser deve buscar além de si a causa adicional para ser, algo que faça

pender o um para a alternativa do “ser”. Eis a aporia platônica: o um será o ser e o não-

ser com necessidades de tal modo equivalentes que acaba por não poder gerá-los. A dupla

possibilidade ontológica torna a distância entre o ente e o um, outrora inexistente, agora

abismal. O um de Platão não é o um de Aristóteles. Está tão acima do ente que não pode

explicá-lo.

Consideremos da seguinte maneira:

Henologia parmenídica: o ente e o um são imediatamente o mesmo.

Henologia platônica: o ente pode se separar/diferir do um.

Henologia aristotélica: após a separação de cada um de sua essência há o

reconhecimento da identidade de ambos em outro nível semântico, com a ulterior

atribuição do nome de cada um ao mesmo somente enquanto puro ente, quer dizer, à

essência. Segue então a primazia nominal do ente, isto é, o nome do um é mais próprio do

um enquanto puro ente do que do um enquanto um. O um deve ser referido a um ente por

si para ser um de fato. O um, como dizia Parmênides, é idêntico ao ente, mas com a

condição de que seja tomado em sua natureza própria - a essência primeira - e não em

sentido concomitante:

“No caso das coisas que se dizem por concomitância, cada um e sua

essência são diferentes.” (Met. 1031a19)

e)piì me\n dh\ tw½n legome/nwn kata\ sumbebhko\j do/ceien aÄn eÀteron eiånai Caso contrário, não haverá identidade onto-henológica , ou seja, entre o um e o

ente. Cairíamos no paradigma platônico.

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Platão postula uma instância acima da essência, o um, que seria uma super-

essência, um além do ser, no qual até mesmo o não-ser poderia se dar. Aristóteles, porém,

quando ultrapassa o ser, de novo a ele retorna, atribuindo-lhe o mesmo nome, e ainda

com mais força e direito. A instância mais íntima do ser, a essência primeira (proto

ousia), é a causa do ser. Mas a causa do ser não está além do ser, a ponto de poder negá-

lo, pois a causa do ser é o to ti en einai, ‘o que era o ser’ ou seja, “o ser-prévio” o ser

anterior ao ser. A causa do ser é mais ser do que o ser causado em geral. É por isso que

Aristóteles, ao indicar o objeto da ciência primeira, pode falar tanto em ente enquanto

ente como também em ‘princípio e causas do ente enquanto ente’, assim como em

‘princípios e causas da essência’. Na verdade, tudo que é, é ente. Mas ao se referir ao ente

enquanto tal pode-se denominá-lo a causa do ente. Assim, o que causa o ente é mais ente

do que o ente causado. É ente enquanto tal. E quanto mais causador é um ente, com mais

direito será chamado um ente. Ora, como a essência é o próprio ente causador da

‘entidade’ de tudo o mais, a mesma perspectiva pode ser aplicada dentro do próprio

âmbito essencial. Este é o fundamento mesmo da possibilidade se referir a uma essência

primeira, algo realizado especialmente, embora com sentidos não coincidentes, no Livro

H da Metafísica e em Categorias. É que Aristóteles segue aqui um princípio heurístico

muito aplicado em seu pensamento, que podemos denominar princípio da hierarquia

cumulativa: o anterior detém, em maior grau, tudo o que de positivo que há no posterior.

Exemplos: “o que é anterior à efetividade é efetividade em maior grau”, “Aquilo pelo que

cada coisa está presente sempre está presente em um grau mais elevado”42 (ai¹eiì ga\r di'

oÁ u(pa/rxei eÀkaston, e)kei¿n% ma=llon u(pa/rxei). Daí que a causa de algo ser

42 An. Post. 72a28

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essência é, ainda em maior grau, a essência. Eis o princípio da hierarquia cumulativa

aplicado à forma como essência primeira. A enunciação de tal princípio, inclusive com o

caráter da primazia nominal que segue da primazia ontológica, foi bem expresso no Livro

a da Metafísica:

“O que possui um nome compartilhado pertence em maior grau àquilo em virtude

do que tal coisa também está presente em outros. Por exemplo, o fogo em quente

em máximo grau, porque ele é causa do calor em outras coisas. Portanto, o que é

causa do ser verdadeiro das coisas que dele derivam deve ser verdadeiro mais

que todos os outros.”43

eÀkaston de\ ma/lista au)to\ tw½n aÃllwn kaq' oÁ kaiì toiÍj aÃlloij u(pa/rxei to\ sunw¯numon (oiâon to\ pu=r qermo/taton: kaiì ga\r toiÍj aÃlloij to\ aiãtion tou=to th=j qermo/thtojŸ: wÐste kaiì a)lhqe/staton to\ toiÍj u(ste/roij aiãtion tou= a)lhqe/sin eiånai.

O referido princípio constitui umas das principais notas estruturais da hierarquia

autológica do ente, cujos cinco níveis fundamentais serão abordados nos capítulos que

seguem. Assim, veremos que - no sentido ascendente - o segundo nível contém tudo o

que o primeiro contém, acrescido de uma nota não encontrada no primeiro. Com efeito, a

essência deve, antes de mais nada, ser não-contraditória, pois a natureza intrínseca do

ente deve manter-se em condição de firme auto-identidade. Mas esta nota é atingida

como simples decorrência da autarquia essencial, cuja auto-subsistência, no entanto, não

está presente nos entes do primeiro nível, isto é, não decorre simplesmente do caráter

não-contraditório do ente. Verificaremos o mesmo fato ontológico quando progredirmos

na escala autológica, pois o terceiro nível (alma) está para o segundo (essência) assim

como o segundo (essência) para o primeiro (ente) e o quarto (inteligência) está para o

43 Met. 993b23

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terceiro assim como o terceiro para o segundo. Assim, toda a essência possui a autologia

não-contraditória do ente em geral, mas tal caráter é dado pela sua própria auto-

subsistência, e não como esta fosse algo colocado ao lado de sua não-contraditoriedade.

Do mesmo modo, toda alma é auto-subsistente, pela própria natureza de sua auto-

efetividade, que não pertence a todas as essências, mas somente às essências vivas. O

mesmo raciocínio aplicamos à auto-enformação da inteligência relativamente à auto-

efetividade da alma. Finalmente, o quinto nível, que identificaremos como o motor

imóvel, implica em si todas as notas dos níveis anteriores, dentro de sua própria natureza

supra-sensível: a auto-ciência absoluta e auto-suficiente. Ao longo dos capítulo seguintes,

apreciaremos cada um destes cinco principais graus ontológicos. Voltemos à reflexão

sobre a especificidade da henologia aristotélica.

Resta ainda uma diferença radical entre a henologia aristotélica e a platônica, que

já fora expressa por Aubenque:

“Se a separação comprometia em Platão [...] a unidade do mundo e do

ser, em Aristóteles ela se torna, paradoxalmente, e em outro sentido, o princípio

mesmo da unidade [...] A unidade não é mais uma propriedade de todos, mas está

mais ou menos presente em cada coisa, e não está presente totalmente senão em

Deus.”.44

Denominemos, pois, a unidade aristotélica “unidade separativa” em contraposição

à unidade integrativa de seu mestre ateniense.

É que, como bem notou Aubenque, ao contrário da unidade platônica, a unidade

aristotélica tende à exclusão do outro. O um de Platão, mesmo quando parece excluir o

não-um para fazer valer sua natureza, reverte o sentido de unificação de modo a transferir

a natureza una até mesmo ao que parecia inevitavelmente múltiplo:

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“- Bem, já que precisamente são outras que o um, tampouco são o um as

outras coisas, não é? Caso contrário, não seriam outras que o um. - Tampouco,

por outro lado, as outras coisas estão privadas totalmente do um, mas sim

participam dele de alguma maneira. - De que maneira? - Porque, penso, as

coisas outras que o um, é por terem partes que são outras. Pois, se não tivessem

partes, seriam inteiramente um. - Correto. - Mas partes, afirmamos, são partes de

um todo. - Com efeito, afirmamos. - Entretanto, é necessário que o todo seja um

formado de uma multiplicidade de coisas, e desse um as partes serão partes.”

(Parm 157.b.8)

Ou)kou=n e)pei¿per aÃlla tou= e(no/j e)stin, ouÃte to\ eÀn e)sti taÅlla: ou) ga\r aÄn aÃlla tou= e(no\j hÅn. - ¹Orqw½j. - Ou)de\ mh\n ste/retai¿ ge panta/pasi tou= e(no\j taÅlla, a)lla\ mete/xei pv. - Pv= dh/; - àOti pou ta\ aÃlla tou= e(no\j mo/ria eÃxonta aÃlla e)sti¿n: ei¹ ga\r mo/ria mh\ eÃxoi, pantelw½j aÄn eÁn eiãh. - ¹Orqw½j. - Mo/ria de/ ge, fame/n, tou/tou e)stiìn oÁ aÄn oÀlon vÅ. - Fame\n ga/r. - ¹Alla\ mh\n to/ ge oÀlon eÁn e)k pollw½n a)na/gkh eiånai, ou eÃstai mo/ria ta\ mo/ria:

É que se trata da concepção de uma unidade que deve abarcar toda a esfera do ser

de uma só vez. Aristóteles, por seu turno, insiste em uma possibilidade de unificação que

dê conta de cada ente e cada região do ser por vez. O caráter de medida é tomado como a

noção mais originária do um. Ora, ser a condição para que possamos contar uma

determinada quantidade já manifesta o caráter separativo do um, pois contagem dos

elementos pertencentes a uma dada esfera do ser exige, primeiramente, que tomemos,

quer pela percepção, quer pela concepção, cada elemento separadamente de seu vizinho.

O que permite isso é a prévia noção do um aplicada particularmente àquele caso, pois o

um numérico é sempre um de alguma coisa, ou seja, sempre se refere a algo determinado.

Ora, temos então de nos ater um pouco mais na noção de ente separado

(xwristo/n), fundamento da noção do um em Aristóteles.

44 Aubenque, 1962, pág. 409.

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Reale45 detectou três empregos de xwristo/n em Aristóteles. É usado com o

significado de a) separado dos sensíveis, quer dizer, como supra-sensível; b) auto-

subsistente, o que existe separadamente e c) separado pela inteligência. Faltou, porém,

uma reflexão mais profunda acerca da natureza do xwristo/n, que encontrasse o fundo

comum das três acepções, além do nexo hierárquico que há entre elas. Na verdade, de

todos os significados acima referidos, o que mais coincide com a idéia nuclear do termo é

a de auto-subsistente, observando que auto-subsistência não somente enquanto existência

física independente. O nível mais fraco de auto-subsistência, de autonomia, é a

gnosiológica. É a possibilidade de um ente ser passível de intelecção separadamente dos

demais. Em poucas palavras: a efetividade de análise cognitiva. Neste âmbito entram os

objetos matemáticos, que são passíveis de intelecção independentemente das coisas por

eles quantificadas. Os Livros M e N da Metafísica rechaçam qualquer possibilidade de

existência física destes objetos. Todos são modos de considerar o ente sensível. Em si

mesmo, o número não existe. Existe o objeto material enquanto numerável.

A existência física é justamente o nível imediatamente superior de separação.

Trata-se da separação da inteligência. Os objetos matemáticos são separados pela

inteligência, mas não da inteligência. Suas noções são separáveis cognitivamente das

outras noções em virtude da inteligência. Entretanto, exatamente por conta de seu débito

existencial para com a efetividade intelectual, não podem dela prescindir para existir. Os

entes físicos, por outro lado, existem mesmo que não sejam objetos de intelecção.

A condição de máxima separação, de auto-suficiência total só é atingida pelas

essências que prescindem tanto da matéria como da inteligência para existir. Somente os

45 Reale, 2002, pág. 307.

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objetos teológicos se encontram em tal condição. Para um melhor entendimento da

convergência das noções de essência e separação, que em seus estágios mais elevados

coincidem, devemos analisar o nexo íntimo que tais noções devem manter já no nível

mais geral e indeterminado.

O separado (xwristo/n) é aquilo que, primeiramente, sofreu um processo de

demarcação de limite (pe/raj). Ora, essência demarca uma fronteira entre o que é uma

coisa e o que está fora de seu ser e compreensão. Daí que, no livro D da Metafísica

Aristóteles estabeleça a essência e o ser-prévio no mesmo sentido de limite, “pois o ser-

prévio é o limite de conhecimento da coisa e, se é limite de conhecimento, é também da

coisa”. No entanto, como já vimos acima, em certos entes, como os objetos matemáticos,

o seu limite de conhecimento não é somente um limite para sua essência, mas também

para sua própria separação, seu ser separado (xwristo/n). Quanto mais definido o limite

da coisa, mais propriamente será denominada uma essência. Daí que Aristóteles

recorrentemente descarte os objetos matemáticos como genuínas essências, embora

reconheça que certos filósofos não rejeitaram tal possibilidade.

Toda essência, enquanto limite da coisa, demarca uma fronteira, uma separação,

entre o que é a essência e o que pertence apenas ao meio circundante. Sendo assim, o

ponto máximo do limite, quer dizer, o limite do limite, é a separação máxima que pode

haver entre a essência e o que apenas agrega. Só podemos conceber esta separação como

uma autonomia absoluta da essência relativamente ao que dela diverge. Sabemos pelo

Livro Z que a essência em seu sentido mais eminente - a próte ousia - é forma pura, sem

a consideração da matéria, embora a forma seja a causadora da matéria (aition thês hýlê).

Portanto, o limite máximo deve separar da matéria, pois esta não faz parte da essência

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primeira. Contudo, o limite que separa a essência corruptível de sua matéria não é rígido,

pois não há autonomia absoluta. De fato, embora a essência determine a matéria, não

pode subsistir sem um suporte material. A forma corruptível é sempre uma forma

material. Somente uma essência supra-sensível é um limite no grau máximo de sua

função demarcatória. Aqui não há qualquer contato entre essência e não-essência. Tal

essência, em lugar de demarcar limite com outro ser - limite esse que, assim como toda

fronteira, une e separa simultaneamente – toca seu próprio limite, anulando a

possibilidade de um limite compartilhado.

Seguindo tal modelo explicativo da noção de unidade separativa, que tende uma

abstração máxima e radical da forma relativamente ao sujeito material, percebemos os

seguintes momentos em escala:

Primeira separação – entre o ente e o não-ente:

Tópico extensa e intensamente desenvolvido no livro G da Metafísica, no que constitui a

separação mais fundamental, porquanto de todo ente em geral, isto é, do ente enquanto

ente. A verdade que corresponde ao ente é “dizer que o que é é e que o que não é, não é.

Ser e não-ser não podem se fundir completamente. Haverá sempre um aspecto segundo o

qual estarão rompidos um com o outro, “pois é impossível, ao mesmo tempo, o mesmo e

não o mesmo estarem presentes no mesmo, segundo o mesmo (aspecto)” (to\ ga\r au)to\

aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½ au)t%½ kaiì kata\ to\ au)to/).

Eis o princípio de não-contradição, determinado no Livro G da Metafísica.

Segunda separação – entre a essência e a não-essência (concomitantes e

categorias):

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A essência é o “ente enquanto ente e enquanto separado”. Somente a essência

pode existir por si mesma, sem estar agregada ou simplesmente acompanhar outro ente

em sentido mais eminente.

Terceira separação – entre a natureza e o acaso ou autômato.

Quarta separação – entre o animado e o inanimado:

O vivo se distingue do não-vivo pela sua capacidade de mover a si mesmo, se

destacando do meio circundante pela insistência de sua forma imanente, levado à

efetividade completa desde a primeira potência material. A nutrição do ser vivo, descrita

no Da Anima, é o primeiro estágio da separação da matéria não-viva, na elaboração de

seus componentes, que servem à forma autônoma do vivo.

Quinta separação – entre a inteligência e o objeto de intelecção (entre a

inteligência e as partes da matéria):

O fim do De Anima é o lugar da célebre doutrina da “inteligência produtiva”,

acerca da qual Aristóteles conclui sua separação da própria alma material, não obstante

seja uma parte da mesma. É que a inteligência não é efetividade da matéria. É efetividade

da alma, quer dizer, efetividade de uma efetividade da matéria. Meta-efetividade.

Enquanto as demais partes da alma são atos de partes determinadas de matéria, sendo

funções de órgãos singulares, a inteligência não é função de nenhum órgão, daí

decorrendo sua capacidade ultra-separativa.

Sexta separação – entre a inteligência pura e toda a matéria:

O motor imóvel, a “inteligência que intelige a si mesma” efetiva uma espécie de

separação apenas vislumbrada na inteligência produtiva dos homens. Ali a separação da

matéria é desde sempre e para sempre efetiva. Dizê-lo “efetividade pura” é expressar

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também a separação definitiva entre efetividade e potência, também apenas prefigurada

nos demais âmbitos do cosmos, pois o que se dá realmente nos entes sensíveis é a

inescapável precedência temporal da potência à efetividade, ainda que a noção de

efetividade – enquanto coincidente com a própria noção da essência - possa ser

compreendida independentemente daquela.

A plena separação entre a inteligência suprema e a matéria conferiu à primeira,

justificadamente, o nome de motor imóvel. De fato, aqui se efetiva a mais radical e

imprevisível de todas as separações: aquela entre motor e movido.

Sob a ótica destes cinco principais graus de separação, podemos compreender de

modo mais satisfatório o que ficou conhecido como “teoria dos três graus” de separação

em Aristóteles, a saber, aquela estabelecida entre matemática, física e teologia:

Os objetos matemáticos são separados em potência, mas não em efetividade,

como os da física e metafísica. São modos de intelecção de objetos, pois são números, as

quantidades de entes. Justamente por isso, possuem matéria. É que o conceito de matéria

em Aristóteles co-implica o de potência, envolvendo também, portanto, a continuidade

própria das quantidades matemáticas, o que significa sua indefinida divisibilidade. Já no

Livro Z da Física Aristóteles havia utilizado tal constatação acerca da divisibilidade

indefinida do contínuo contra os paradoxos quantitativos de Zenão. Embora a quantidade,

tomada em si, transcenda a corrutiibilidade do quantificado sensível, o mesmo não se

pode dizer de sua potencialidade, que compartilha com todos os entes materiais.

Os objetos da física, por sua vez, não são separados em efetividade do substrato

material. Portanto, nem mesmo entre si são separados totalmente. Mesmo os corpos

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celestes, elevados pelo filósofo quase ao status de deuses, escapam desta sentença, na

medida em que são causas mútuas de movimento.

Os objetos da teologia são separados em efetividade entre si e dos objetos da

física. São absolutamente imateriais, posto que sua efetividade própria é definitivamente

separada de toda potencialidade.

Voltemos ao esquema das seis separações. Ficará claro, no capítulo dedicado à

separação da essência, que o conceito desta última conduz – não só em Aristóteles, mas

também em seu mestre Platão – ao conceito de natureza e à sua respectiva separação do

anti-natural (paraphýsis). Portanto, podemos dizer que, em certo aspecto, o mais

fundamental, trata-se apenas cinco separações principais, embora cada qual seja passível

de diversos subníveis. Um bom exemplo de subnível são os corpos celestes, que

Aristóteles percebia como seres vivos e, portanto, em nossa esquema atual, ocupando o

nível da escala. Contudo, trata-se de uma perfeição ulterior dentro deste mesmo nível,

que o aproxima mais ainda do seguinte, relativo à separação da inteligência, razão porque

não devemos nos surpreender com sua doutrina das inteligências celestes. O fato é que a

circularidade dos movimentos destes corpos já é um prelúdio da auto-suficiência superior

que será atingida pela inteligência do corpo celeste. A Física de Aristóteles dedica

extensas discussões acerca do caráter único do movimento circular, que faz o móvel se

voltar para si mesmo e unir princípio e fim de seu movimento, de modo a conseguir, de

tal forma, a eternidade cinética. Citamos este caso porque nos permite vislumbrar, de uma

só vez, a possibilidade de níveis internos aos cinco já estabelecidos, como também ao

sentido mesmo da escala, que é de natureza autológica. O que pretendemos com isso

ficará mais evidente com o que segue.

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Platão toma a essência como a própria idéia do ente. Aristóteles, por outro lado,

sustenta que a essência deve ser determinada (tóde ti) e não participativa. Platão entende

que o núcleo do ente é o próprio ente em geral, mas na forma do princípio, isto é, a idéia

originária do ente, fonte de todo ente. Embora transcendendo a totalidade dos entes, o

ente em si é sua fonte primeira, da qual promana seu ser. A separação entre o puro ente e

os demais entes, portanto, não é determinada, mas sim problemática. O ente será este ou

aquele ente, dependendo da perspectiva cognitiva em que é tomado, isto é, do ente

particular em questão que dele participa. Isto significa que haverá, simultaneamente,

muitas verdades contrárias a respeito do ente: alto, baixo, reto, curvo, bastando a

variedade infinita de entes em que se encontre. Aristóteles, por outro lado, encontra o

núcleo do ente na separação de ente e não-ente que instaura o ente, no limite entre o ente

e o não-ente, que é a forma: o núcleo do ente é o princípio separativo do ente. Enquanto

seu mestre adota o puro ente como o núcleo do ente, Aristóteles vê no confronto com o

não-ente a instância mais central do ente. Mais do que isso: como não há puro não-ente

em Aristóteles - o não-ente nascendo apenas do confronto do ente com outra

possibilidade não efetiva do ente - o ente enquanto tal se fundamenta na contraposição

com o próprio ente enquanto outro, quer dizer, na diversidade eterna do ente. O múltiplo

se coloca de saída no ente, e de modo inescapável, porquanto fundador. Desde o princípio

há separação no ente. E somente na graduação desta separação descobrimos o critério da

menor ou maior centralidade do ente, que determina o que é e o que não é essência, e o

que é essência com mais direito e efetividade. A negatividade do ente lhe confere

concretude. O confronto com o não-ente e, principalmente, com o próprio ente,

incrementa a consistência mesma da noção de ente, pois, quanto mais o ente se mantém a

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despeito da possibilidade de não ser, mais afirma sua autonomia e independência

relativamente ao ente circundante que está sempre na situação de ente indeterminado.

Com efeito, o puro ente é predicado seguramente de tudo, justamente pelo que é abstrato,

apenas noção de uma vaga comunidade. O puro ente é irreal, ainda que se refira também

a coisas reais. Sendo predicado até mesmo do que não é, o ente não confrontou o não-

ente, apenas assumiu sua possibilidade. Não operou a devida separação do não-ente e dos

outros entes em vista de sua própria consolidação. Se o fizesse, não seria mais apenas o

puro ente, mas o puro ente tomado em sua mais genuína acepção porquanto efetivamente

separado do não-ente em geral, e do não-ente que constitui a concomitância em geral e a

potencialidade da matéria. Em outras palavras: a essência. É a essência aquilo que

constitui o nível do ente mais primitivo, porque dela dimana toda a possibilidade dos

outros entes, todas as alternativas segundo as quais dizemos que algo é. Na verdade,

podemos agora fazer uma retificação que outrora seria obscura: a essência - puro ente

enquanto separado - constitui um nível de ente ainda mais puro do que o então

denominado puro ente, pois aquele mantinha tal comércio com o não-ente que, de certo

modo, não se encontrava suficientemente separado de sua esfera de atribuição, como bem

demonstrou o próprio Platão no fim de seu diálogo Parmênides.

Em poucas palavras, podemos então expressar a atitude ontológica de Aristóteles

da seguinte maneira.

A separação henológica é simultânea à autologia do ente. Com o termo autologia

queremos signficar aqui algo fundamental na doutrina do ente em Aristóteles: a

enunciação da relação do ente consigo mesmo, seja qual for o nível que examinarmos.

Em qualquer instância de enunciação, o ente enunciado se impõe à enunciação. Mesmo o

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nível mais elementar, de uma qualidade provisória de uma essência, manifesta este

caráter auto-positivo na enunciação. A constatação da cor branca exige, por si só, a

impossibilidade de sua negação ao menos no nível imediato de sua apresentação. Em

outras palavras: ainda que o sujeito em questão não seja branco, ou que deixe de ser no

momento seguinte, não será possível invalidar o enunciado revelador do instante em que

a cor branca se fazia presente à sensação, assim como a natureza ontológica desta

enunciação, ou seja, o ser mesmo do branco, captado pela sensação e determinado pela

intelecção como distinto em si de qualquer outra cor possível. O ente, portanto, é ente

para si mesmo. O que faz de uma figura um triângulo é uma certa relação consigo mesmo,

a saber, relação entre os segmentos que o constituem e a conseqüente soma de seus

ângulos internos uns com os outros, soma constante e diferente da verificada em qualquer

outra figura. O ente é porque é um consigo mesmo e porque e somente porque se separa

do outro enquanto um e não o outro. Daí que o Filósofo se veja obrigado a afirmar que "o

ente e o um são o mesmo e a mesma natureza, por seguirem um ao outro." (Met. 1003b22)

(to\ oÄn kaiì to\ eÁn tau)to\n kaiì mi¿a fu/sij t%½ a)kolouqeiÍn a)llh/loij). Há,

portanto, total contemporaneidade entre o ente, o um, o mesmo e o separado.

A escala autológica, portanto, consistirá nos diversos graus de efetividade do ente

com seu próprio ser, desde o puro efetivar para fora de si, em outro e para outro – o qual

respeita a identidade do ente em geral consigo mesmo – até a pura inteligência de si,

circuito fechado com seu ser, passando pelo automovimento da vida e a auto-enformação

da inteligência em geral. Vemos, assim, que há uma intensificação estratificada do

mesmo (to autó), uma intensifição da autologia do ente, isto é, da enunciação da auto-

relação do ente. O ente se revela cada vez mais o mesmo, na medida em que subimos

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pelas camadas. “Cada vez mais o mesmo significa”: sob cada vez mais aspectos o mesmo.

Ora, vimos que no puro ente em geral há um princípio que diz: “o mesmo não pode

pertencer e não pertencer ao mesmo, ao mesmo tempo e segundo o mesmo” (Metaph

1005b.20) (to\ ga\r au)to\ aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½

au)t%½ kaiì kata\ to\ au)to/). É o princípio mais universal de todos, o axioma supremo,

mas que, apesar disso, manifesta apenas o nível mais pobre da autologia do ente, somente

aqui o mesmo não se revela segundo todos os aspectos, mas, ao contrário, tal princípio

requer apenas que o correlato do mesmo – o outro – o qual significa a contradição, não se

instaure em todos os aspectos do ente, mas permita sempre uma perspectiva de auto-

identidade, ainda que apenas limitada a um instante indivisível. Esta é a importância do

fator tempo na enunciação do axioma, pois impede que dois “outros” dissolvam a

unidade última do “mesmo instante”, o qual é necessário para qualquer enunciado dotado

de sentido. Ora, qualquer conceito ou noção, por mais simples que seja, requer ao menos

um instante indivisível para sua cognição. Daí que, neste nível primitivo e universal da

autologia, o mesmo ocorra literalmente três vezes, a saber, no ente que está ou não

presente, no ente em que está presente e no aspecto segundo o que está presente. E,

contando com a mesmidade instantânea (aÀma), o mesmo ocorre quatro vezes. Aqui o

mesmo suporta ao menos três aspectos que o anulam, o que dissipa, em muito, a sua

potência signficativa, embora alargue ilimitadamente seu campo de aplicação.

Sendo assim, como dissemos acima, o nível autológico cuja lei é expressa pelo

princípio de não contradição é ainda muito incipiente e precário. No extremo oposto,

percebemos auto-unidade absoluta do motor imóvel, assim como os variados graus que se

interpõem entre ambos. Eis a hierarquia aristotélica do ente, que denominamos autológica.

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Já concluímos que há uma simultaneidade originária entre o ente, o um e o

mesmo, que mantém estreita conexão segundo a efetividade de separação do oposto do

mesmo – o outro. Sendo assim, vale a pena explicita as três “logias” primordiais,

condições de possibilidade de todo “enunciado” (lo/goj) verídico:

1- Autologia: mesmo versus outro

2- Henologia: um versus múltiplo

3- Ontologia: ser versus não-ser

Repare que pusemos a autologia acima da henologia, e esta acima da ontologia,

não porque tenhamos negado a instantaneidade de tal relação, mas porque, em Aristóteles

– como vimos – há uma anterioridade instauradora do mesmo relativamente ao um, e do

mesmo do um relativamente ao ente. Isto quer dizer apenas que, quanto mais “o mesmo”,

mais “um” e, quanto mais um, mais “ente” e não que haja mesmo sem um ou um sem

mesmo. Na verdade, o mesmo, além de requerer o um e o ente, requer também – para sua

completude – um ente mais completo que o puro ente em geral. Requer a essência, o ente

em sentido eminente. Além disso, o mais alto grau de “um” e “mesmo” só pode se

realizar na estrutura de uma essência tal como o motor imóvel.

Prosseguindo com o raciocínio taxonômico, tão caro ao Estagirita, nos deparamos

com cinco espécies de enunciação ou discurso (lógos) correspondentes àqueles cinco

níveis autológicos do ente:

1- ontologia (teoria do ente)

2- ousiologia (teoria da essência ou do ente enquanto ente)

3- psicologia (teoria da alma ou da essência viva)

4- nousiologia (teria da inteligência ou da alma inteligente)

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5- teologia (teoria de Deus ou da inteligência infinita )

No entanto, há mais para ser dito acerca da unidade separativa. Como vimos

acima, trata-se de uma unidade autológica. Dizer que a unidade do ente em Aristóteles é

autológica significa: o ente enuncia (légei) a si mesmo, remete a si mesmo no próprio

instante de sua unidade efetiva. Há uma auto-referência em todo ente e simplesmente

enquanto ente, ou seja, por si mesmo o ente se enuncia, e neste ato se afirma como

negação do não-ente para a efetuação de tal enunciado (lo/goj). E esta auto-enunciação

revela a própria unidade do ente consigo mesmo, pois não requer nada além de seu

próprio ser para se pôr como “um”. O caráter de “um” do ente é simultâneo ao seu caráter

de “mesmo” (autó), embora este seja em certo sentido anterior, pois é a autologia do ente

que condiciona e promove sua unidade. A estrutura autológica permite julgar a estrutura

henológica com mais razão e direito, pois é uma perspectiva mais interna, mais enraizada

na coisa. Trata-se, na verdade, da própria remissão do ente a si mesmo, seu modo

fundador e originário. A unidade, quando tomada no sentido interno de unidade do ente

consigo mesmo, de certa forma tem seu sentido de unidade esvaziado, pois o caráter de

“um” pressupõe ao menos uma referência possível com o não-um – o múltiplo –

relativamente ao qual este “um” é efetivamente um e não “mais de um”. Portanto, quando

nos referirmos a um sentido da unidade em que esta revela uma relação originária do ente

consigo mesmo, então já não se trata, na verdade, de pura unidade, mas de algo que a

antecede e a fundamenta. Entendemos aqui o mesmo que Heidegger procurou expressar

acerca da fórmula geral da auto-identidade do ente:

“A fórmula mais adequada para o princípio da identidade A é A não diz apenas:

cada A é ele mesmo o mesmo; ela diz antes: consigo mesmo é cada A ele mesmo o mesmo.

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Em cada identidade reside a relação ‘com’, portanto, uma mediação, uma ligação, uma

síntese: a união numa unidade.”46

Heidegger enuncia aqui a necessidade originária de o ser do ente estar em relação

com o próprio ente, e não apenas se efetivar para fora dele, em direção ao ser do ente

geral que ele não é. Sem tal relação originária do ente consigo mesmo, não haveria

relação alguma com nada de extrínseco, pois nem sequer haveria ente. Se, como afirma

Aristóteles, todo ente é, simultaneamente um, e se o um originário – isto é, a condição de

possibilidade do um – não pode ser algo dado, extrínseco, mas uma relação de unificação

(união, em Heidegger), então o ente deve se unificar para ser o que é, mesmo no sentido

da unidade indivisível do instante. Assim, mesmo quando não há processo algum

envolvido, ali também haverá, de algum modo, um caráter de unificação, uma relação de

apropriação do ente por si mesmo.

A autologia é, portanto, um nível simultaneamente ontológico e henológico, de tal

modo implicado em ambos os níveis que permite ser enunciado indiretamente por cada

uma destas instâncias, como foi o caso agora, em que nos demos conta de uma unidade

do ente consigo mesmo. Ora, tal “consigüidade” é o mesmo (autó).

Se Platão, por seu turno, estabelece o “um” acima do “ente”, pode-se dizer que,

em Aristóteles, há uma anterioridade do “mesmo” relativamente ao ente e ao um, embora

não devamos, de modo algum, constatar aqui uma transcendência do mesmo - pois o ente

é imediatamente um e o mesmo. Apenas que a estrutura do mesmo permite um juízo

acerca da estrutura do ente e do um com tal rigor que não seria possível inversamente,

por dispensar a referência ao seu oposto - o não-ente – para ser passível de intelecção,

46 Heidegger, 1978, pág. 50.

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embora signifique, concomitantemente, uma separação do não-ente, isto é, do ente que

cada ente não é.

Como a estrutura do mesmo é anterior à estrutura do ente e do um, uma

intensificação da relação do ente consigo mesmo naturalmente levará a uma

intensificação do grau de anterioridade do ente e do um. De fato, veremos que, quanto

mais estreita é a auto-remissão do ente, mais perfeita será a unidade e seu lugar na escala

hierárquica.

Guardemos a idéia expressa no parágrafo anterior. É o princípio fundamental que

nos conduzirá à natureza e à função última do motor imóvel no Corpus Aristotelicum.

Como vimos, cada ente é, imediatamente, um. Além disso, a unidade em

Aristóteles é separativa e cada um dos graus de separação pressupõe uma relação mais

estreita do ente uno consigo mesmo. Assim, a escala henológica de Aristóteles é uma

escala autológica de cinco graus. Estes cinco graus podem ser enunciados a partir do

próprio texto do Filósofo:

1) O ente em geral não pode ser e não-ser o mesmo segundo o mesmo e ao

mesmo tempo.

2) A essência de uma coisa significa que ela não pode ser diferente do que é. A

essência subsiste por si mesma, quer dizer, pelo efeito (érgon) de seu próprio ser

determinado.

3) A alma é o que, por si mesmo, efetiva o corpo vivo, pois é seu princípio vital.

4) A inteligência recebe, em si mesma, o seu objeto. É a forma das formas

somente porque é a forma que se enforma e informa a si mesma.

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5) O ente supremo não pode ser e não ser o mesmo, absolutamente. Isto ocorre

somente porque é aquele cuja única efetividade consiste em inteligir a si mesmo.

Na verdade, a autologia é imanente ao ente. Assim, cabe questionar o que

significariam estes cinco níveis autológicos diante da possibilidade de um único fato

autológico universal. Oferecemos a seguinte perspectiva interpretativa.

A escala autológica de Aristóteles pode ser contemplada como cinco possíveis

revelações da autologia enquanto tal ou quatro revelações, a modo de explicitações, de

perfeições contidas eminentemente no quinto nível autológico. O quarto nível revela a

auto-enformação; o terceiro revela a auto-efetividade; o segundo revela a autarquia; o

primeiro revela a auto-identidade. Todas estas quatro perfeições existem no motor imóvel

em grau máximo, na efetividade indivisível da auto-intelecção:

1- auto-identidade – entes em geral, incluindo os concomitantes.

2- auto-autarquia – essências inanimadas.

3- auto-efetividade – essências animadas.

4- auto-enformação – essências inteligentes.

5- auto-intelecção – essência imóvel/auto-inteligente.

Cabe aqui, porém, um pequeno parênteses despretensioso acerca do sentido

mesmo desta estratificação já discutida por outros autores. Poderíamos perguntar: por que

a auto-suficiência perfectiva do último nível não lhe garante também sua unicidade

cósmica? Parafraseando Heidegger com sua célebre sentença “Por que há o ente e não

antes o nada?”, poderíamos adaptar aqui: “Por que há o universo e não apenas o motor

imóvel”? Perante uma questão tão extrema, não ousaríamos oferecer aqui uma resposta

sequer minimamente rigorosa. No entanto, a título de aprofundamento de nossas

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presentes reflexões, a seguinte alternativa, oriunda em parte pela leitura de L 10, pode ser

apresentada.

A diferenciação em vários níveis torna mais bela a natureza do todo. A unidade

indivisível da inteligência revela toda a sua perfeição nas outras quatro divisões do ser. O

mundo não é somente emulação ou simulação do poder supremo. É sua revelação, isto é,

sua beleza, ou ao menos sua beleza passível de ser compreendida pela inteligência

humana. Na verdade, embora o motor imóvel atinja o máximo possível de separação

ontológica, veremos no capítulo dedicado à sua unidade que o significado mais

derradeiro de sua forma essencial não pode ser concebido sem os entes movidos do qual é

a completude (télos) jamais alcançada, mas sempre emulada. O último nível da escala,

portanto, não deixa de ser a forma de algo sensível – as esferas movidas – embora, neste

caso, a expressão ‘forma de’ não signifique qualquer espécie de comprometimento de sua

natureza supra-sensível com a sensível. Antes, o inverso é que é necessário, o sensível

tendo que, necessariamente estar voltado para o supra-sensível, mas de tal modo que o ser

mesmo do supra-sensível parece ter como função ser o suporte plenamente efetivo de

uma estrutura material orientada para a consecução de uma completude para sempre

potencial. Esta questão remete, na verdade, a outra bem mais simples e difícil: as relações

móvel-imóvel e temporal-intemporal em Aristóteles, tópico que será tratado com a

exigência necessária somente no capítulo relativo à unidade autológica do motor imóvel.

Ali apreciaremos as conseqüências para a teoria cinético-temporal deste conceito único

criado por Aristóteles, paradoxal já na própria expressão que o celebrizou.

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UNIDADE DOS SENTIDOS DO ENTE Estudo dos sentidos do ente é imprescindível se o objetivo é averiguar o significado de

uma ciência do sentido fundamental do ente - o ente enquanto ente.

Há vários sentidos do ente (tò on). Cada qual é um modo de dizer o ente. A

relação entre os vários sentidos não é uniforme e homogênea. Na verdade, há uma

centralidade no ente, de ordem semântica e existencial, pois cada modo de dizer o ente

corresponde a um modo de ser do ente. Há, portanto, graus do ente. O ente por

concomitância é um ente por outro. Nele não há legítima unidade. A correspondência

com o ser do ente é aqui a mais frágil possível. O ser do concomitante é muito mais um

ser da linguagem do que de realidade, muito embora remonte sua origem a algo

autonomamente real e subsistente. Este centro de onde o concomitante retira sua tênue

existência é a essência, o ente por excelência, que existe por si mesmo, independente

tanto da linguagem quanto das vicissitudes sensíveis. Supomos, por exemplo, um homem

branco. O branco existe, mas sua existência não deve ser entendida .como que centrada

em um ente subsistente denominado “branco”. Neste sentido, o branco não existe.

Quando o branco é, na verdade é o homem que é. A idéia de que o branco simplesmente é

decorre da imperfeição da linguagem, pela qual podemos posicionar como sujeito de uma

proposição algo que, na realidade, não existe como sujeito, o que provoca a ilusão de que

existe algo além do homem cujo ser lhe é acrescentado. Ora, este suposto acréscimo é

justo o que Aristóteles procura transladar para a esfera das coisas que não possuem real

unidade e que, portanto, só ocorrem porque a linguagem possibilita que uma seja o

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“acompanhante” da outra, sem gozar de verdadeira consistência existencial. Se tomamos

a atribuição do ente em seu mais elevado sentido, é forçoso dizer que o concomitante não

é, mas é apenas um modo de ser da essência. A distinção entre o ser do concomitante e o

ente da essência já demonstra, por si só, o que foi afirmado acima, a saber, que os

sentidos do ente estão dispostos hierarquicamente. Os sentidos do ente são graus do ente.

É um escalonamento dentro da própria idéia do ente.

O ente não é um gênero

Todo gênero é predicado somente de suas espécies, nunca das diferenças. A

espécie mantém com o gênero uma relação de subordinação lógica. Tudo o que se aplica

ao gênero se aplica a cada uma de suas espécies. Daí que, do gênero supremo à espécie

ínfima, haja uma escala ordenada de conceitos, ordem relativa ao grau de universalidade

(extensão) de cada conceito relativamente ao seu superior e ao seu inferior. Os mais

inferiores são os menos amplos, quer dizer, se aplicam a menos indivíduos. Contudo,

embora o gênero seja predicado da espécie, jamais é predicado da diferença específica.

Tomemos uma definição de homem como ‘animal racional’. O homem é, portanto, uma

espécie de animal. Assim, o homem é animal. O gênero é predicado da espécie. No

entanto, não podemos dizer que a racionalidade é animal, pois esta é apenas uma

qualidade do gênero, e não uma espécie dentro do gênero.

Pelo mesmo motivo, o ente não é um gênero. Com efeito, se este fosse o caso,

nenhuma diferença seria:

“Com efeito, existem necessariamente as diferenças de cada gênero, e cada uma

delas é única. Por outro lado, é impossível que as espécies de um gênero se

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prediquem das próprias diferenças ou que o gênero separado de suas espécies se

predique de suas diferenças. De onde se segue que, se o ente e o um são gêneros,

nenhuma diferença poderá ser nem poderá ser uma.”47

a)na/gkh me\n ga\r ta\j diafora\j e(ka/stou ge/nouj kaiì eiånai kaiì mi¿an eiånai e(ka/sthn, a)du/naton de\ kathgoreiÍsqai hÄ ta\ eiãdh tou= ge/nouj e)piì tw½n oi¹kei¿wn diaforw½n hÄ to\ ge/noj aÃneu tw½n au)tou= ei¹dw½n, wÐst' eiãper to\ eÁn ge/noj hÄ to\ oÃn, ou)demi¿a diafora\ ouÃte oÄn ouÃte eÁn eÃstai.

Por outro lado, isto não significa que não haja uma escala de graduação no ente.

Na verdade, há uma intensificação semântica do ente, no sentido de uma progressiva

conveniência, a cada ente conceituado na escala, da noção de ente, em direção àquele

ente a que esta mais convém, ou seja, quanto mais convir a um ente a identificação com o

que se entende mais plenamente como o sentido do ente, maior é sua aproximação com o

ente enquanto tal. Sabemos, pela leitura do livro VII da Metafísica, que o referido ente é

a essência, identificada com o ser-prévio. É a partir desta estrutura de aproximação com o

ente primeiro que podemos entender a fundamentação da célebre doutrina aristotélica da

analogia do ente, cuja centralidade na essência levou Owen a cunhar a expressão "sentido

focal do ente". Com efeito, toda a esfera dos entes mantém uma relação com um (prós

hên) ente que origina ontológica e cognitivamente a todos entes, pelo que sem dúvida

podemos tomá-lo como o foco dos entes, ou seja, o ponto para onde converge toda a

realidade dos entes e de onde diverge toda a sua compreensão.

Quanto à já antiga referência da relação prós hên como a "analogia do ente",

Reale é cético quanto a seu rigor hermenêutico. Afirma, acerca da relação prós hên:

“Em poucas palavras: tudo que é, é prós tês ousían, é em referência à essência. –

Os múltiplos significados do ente têm uma unidade, que se pretendeu chamar de

47 Met. B 998b24.

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analógica (analogia de referência a um único termo). A expressão “analogia de

referência a um único termo” é certamente correta, embora, sob certos aspectos,

possa ser perigosa, e se não se tem bem claro o significado da expressão no seu

preciso alcance, pode levar a erro. De fato, Aristóteles, normalmente, chama

“analogia” outro tipo de relação”48.

Reale, aceitando a tese de Brentano 49 , afirma que Aristóteles não tomou o

problema do ente estritamente como uma analogia, embora a relação entre seus múltiplos

significados seja apenas semelhante à analogia. No entender do estudioso italiano, não

poderia haver analogia stricto sensu porque a analogia se estabelece entre quatro termos

diferentes, o primeiro termo mantendo com o segundo a mesma relação que o terceiro

mantém com o quarto. Como a relação entre as acepções do ente é prós hên, isto é, em

referência a um, não haveria propriamente relação analógica, e sim relação de

centralidade, que, embora semelhante à analógica, possui natureza diferente, não

compartilhando com a última nem mesmo a unidade genérica.

No entanto, há um trecho decisivo na Ética a Nicômaco que problematiza esta

tese. Em 1131b, Aristóteles discorre sobre a natureza da analogia em geral, para então

enumerar suas possíveis espécies, com o fito de aplicar de modo apropriado esta noção ao

tema em foco – a justiça.

Primeiramente, o Filósofo trata de justificar o conceito de analogia para outras

relações que não apenas aquela própria de unidades numéricas abstratas, mas o do

número em geral, quer dizer, para tudo aquilo que pode ser quantificado. Logo a seguir,

48 Reale, 2002, pág.154. 49 Cit. por Reale, op. cit, pág. 231.

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nos oferece sua definição de analogia como “uma igualdade de relações, que envolve no

mínimo quatro termos. Já nas linhas seguintes, ele procura esclarecer melhor a questão no

intuito de prevenir eventuais mal-entendidos que poderiam surgir da mera aplicação

literal da definição. Escreve que, além da analogia descontínua, que explicitamente

envolve quatro termos, há uma outra espécie de analogia que, embora aparentemente

envolva três termos, na verdade está usando quatro, pois menciona um dos termos duas

vezes, reservando, portanto, duas posições para o mesmo termo. É a analogia contínua. O

exemplo dado é muito mais comum em demonstrações geométricas, embora seja de

campo ilimitado: “ A está para B assim como B está para C; B, então, foi mencionado

duas vezes, e por ser ele usada em duas posições, os termos analógicos serão quatro”

(t%½ ga\r e(niì w¨j dusiì xrh=tai kaiì diìj le/gei, oiâon w¨j h( tou= a pro\j th\n tou= b,

ouÀtwj h( tou= b pro\j th\n tou= g. diìj ouÅn h( tou= b eiãrhtai: wÐst' e)a\n h( tou= b

teqv= di¿j, te/ttara eÃstai ta\ a)na/loga.). Neste caso, os termos efetivamente

analógicos perfazem um total de quatro, posto que, não obstante um dos termos, tomado

isoladamente, seja o mesmo, em cada posição sua função analógica será diferente, sendo,

portanto, um termo analógico distinto. Não devemos esquecer a razão de Aristóteles

denominar “contínua” esta espécie de analogia. Em Física, ele escreve que grandezas

contínuas são aquelas que podem ser divididas em partes menores que, por sua vez,

possuem limite comum, quer dizer, o ponto que marca o fim de uma parte é o mesmo que

determina o princípio da outra.

A definição deve ser entendida como: “a analogia é uma igualdade de relações,

que envolve no mínimo quatro termos analógicos”. A referência aos quatro termos é, na

verdade, uma referência puramente formal e não material. A diferença entre os termos

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não deve ser necessariamente numérico-individual, mas sim formal. O que importa é a

verificação de duas relações quanto aos pares de termos, mas idêntica quanto ao modo de

relação dentro de cada um destes pares. Então, se um mesmo termo se repete nas duas

relações - como é o caso, por exemplo, nas relações de dependência entre as categorias de

quantidade e qualidade com a essência - a analogia se verifica com o mesmo direito do

que em uma analogia de quatro termos numericamente distintos. É por isso que o

enunciado: “o um está para o dois assim como o dois está para o quatro” é uma analogia,

ainda que o dois seja recorrente e o número de termos conceituais seja, na verdade,

apenas três. É que a analogia requer simplesmente quatro termos análogos, não sendo,

necessariamente, todos conceitualmente distintos. Do mesmo modo, o termo adjetivo

saudável está para o termo substantivo saúde assim como o termo adjetivo sadio está para

o termo saúde. ‘Saúde’ aqui é o termo recorrente, mas que, em cada ocorrência, está em

relação com um termo distinto. Nos exemplos acima, tanto o dois quanto a saúde são os

termos centrais da analogia, possibilitando que termos extremos entrem na unidade de um

mesmo enunciado (lógos). Aristóteles afirma que o mesmo ocorre relativamente entre o

ente essencial e os demais entes. A essência ocupa aqui o lugar que denominamos centro

analógico. Quando dizemos que ‘o branco é’, tal afirmação do ser do branco está para o

ser do homem branco assim como a afirmação do ser do corredor – quando dizemos ‘o

corredor é’- está para o ser do homem corredor. Tanto o ente branco quanto o ente

corredor mantém com a essência homem a mesma relação de dependência ontológica:

‘são’ apenas porque se referem a algo que ‘é’ por si mesmo. Neste caso, os exemplos

mostram a categoria da essência mantendo uma relação de centralidade analógica tanto

com a categoria da qualidade (cor branca) quanto com a categoria da ação (ação de

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correr). Contudo, embora a essência seja a mesma e as relações sejam idênticas, em cada

relação um termo analógico diverso é apresentado, o que torna a relação de analogia

possível, pois, segundo a pura estrutura de proporção, são contados aqui quatro termos,

ainda que dois deles, em si mesmos e fora daquela analogia, sejam o mesmo.

A relação prós hên pode ser vista, portanto, como uma analogia contínua, onde

cada nível secundário de ente está para o nível primário assim como outro nível

secundário está para o mesmo nível primário. Seria uma proporção semelhante a um

segmento de reta divido em quatro partes iguais, em que tomamos como termos a quarta

parte, a metade e o segmento inteiro. Então, o segmento inteiro está para a metade assim

como a metade está para a quarta parte. Aqui, percebemos que a metade do segmento foi

duplamente citada na proporção, o que em nada interferiu em sua genuína natureza de

proporção. O centro do segmento representa o dobro para a quarta parte e a metade para o

segmento inteiro, o que faz sua dupla aparição contar, de fato, como dois termos distintos.

Do mesmo modo, a relação de analogia ontológica é uma relação de centralidade, na qual

o centro é o termo duplicado, quer dizer, aquele que é mencionado duas vezes, ocupando

mais de uma posição. Vemos assim o que é necessário para que uma relação seja

analógica é que seja uma relação de relações, e não somente entre termos isolados. Para

que isso ocorra, basta que a) notemos a existência de algo que esteja em relação com

mais de uma coisa e b) que ao menos duas destas relações sejam equivalentes sob algum

aspecto. Ora, isto é justamente o que ocorre no caso da essência relativamente às demais

categorias. Cada uma tem a mesma dependência ontológica da essência a qual se referem,

não podendo subsistir nem por um instante na ausência deste suporte. De fato, na

ausência da essência, nada mais existiria. Na verdade, a estrita analogia do ente, que

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aqueles estudiosos tentaram negar, afirmando em troca uma relação analógica em sentido

lato, é conditio sine qua non da centralidade ontológica. Não fosse a rigorosa

equivalência ontológica de todas as sub-categorias relativamente à categoria fundamental,

a própria centralidade unificada se veria dividida em si mesma, a noção mesma de

predicação de um sujeito podendo estar comprometida, dando lugar a uma atribuição a

um ou mais níveis de ente, ou ao composto de ambos.

Fica clara, assim, a distinção efetuada pelo Estagirita entre termo conceitual e

termo analógico, distinção essa que não foi considerada por Reale e Brentano. Munidos

agora da noção de centralidade ontológica, adentremos o problema da possibilidade de

determinação da ciência mais eminente, aquela do ente enquanto tal.

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UNIDADE DO ENTE ENQUANTO ENTE Possibilidade de uma ciência do ente enquanto ente relativa ao motor imóvel e da

conclusão da ontologia em uma teologia, como sugere o Livro VI da Metafísica. Relação

entre a unidade do ente e o princípio de não-contradição, tal como formulada no livro G.

Para tocar neste ponto, devemos antes nos deter em uma aporia percebida pelo

próprio Aristóteles. Trata-se se conciliar o caráter universalíssimo da ciência do ente

enquanto ente com sua culminação teológica, aparentemente contraditória com o projeto

inicial desta ciência, porquanto o motor imóvel é um indivíduo. Mostraremos que a

conclusão de certos comentaristas, de um fracasso total da metafísica, em flagrante

contradição consigo mesma, não é necessária, pois o próprio pensador já havia articulado

uma resposta a tais dificuldades.

A metafísica possui uma unidade genérica de perspectiva e de objeto. De

perspectiva pela relação prós hên, que unifica referencialmente todos os sentidos do ente.

De objeto porque o sentido de ente exclusivo da metafísica, o ente enquanto ente – a

essência no sentido de ser-prévio - é um conceito que se aplica diretamente aos objetos

que partilham uma propriedade específica, a saber, a auto-subsistência. A própria

expressão ‘ente enquanto ente’ é usada por Aristóteles tanto para significar i) ‘ente

considerado enquanto o próprio ente’, isto é, tudo o que pode estar implíto no próprio

fato de ser, incluindo aí todos os sentidos possíveis segundo os quais algo pode ser; como

também ii) ‘o ente que é enquanto o próprio ente’, ou seja, que é simplesmente devido a

seu próprio ser e não ao ser de outro ente. Neste sentido, trata-se da essência, um dos

sentidos possíveis de ser, incluída no âmbito da acepção (i), aquele sentido de ser do que

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é por si mesmo. Portanto, quando Aristóteles fala de espécies de ente, há, no mínimo,

dois modos possíveis de entender suas palavras sem incorrermos na contradição com sua

afirmação de que os gêneros não se predicam das diferenças: a) espécies de ente são

espécies do ente enquanto ente tomada no sentido (i), ou seja, espécies de significação da

predicação ontológica, isto é, com o verbo ser; b) espécies do ente são espécies do gênero

categorial50 ‘ente enquanto ente’ tomada na acepção (ii) , ou seja, espécies de essência.

Nos dois casos não será o violado princípio da relação do gênero com a diferença

específica, o qual sentencia a impossibilidade de predicar o primeiro do segundo. Assim,

por exemplo, o gênero categorial ‘essência’ não se predica de animado, pois o animado

não é uma essência, mas uma qualidade de essência. O ente enquanto ente, neste caso, é o

gênero mais amplo de entes, dentro do qual se inclui o sub-gênero ‘essência animada’ e

todas as suas espécies.

Em certas passagens, portanto, Aristóteles utiliza a expressão “espécies de ente”.

Ora, se o ente enquanto ente é a primeira acepção do ente por ser a única que realmente

encerra este significado por si mesmo, nada mais natural que se referir às espécies do ente

enquanto ente como espécies do ente, visto que as duas expressões, no mais alto grau de

significação, se referem a uma coisa única. É isto o que confundiu os intérpretes a

respeito deste trecho do livro G:

“Existem tantas partes da filosofia quantas são as essências; conseqüentemente,

é necessário que entre as partes da filosofia exista uma que seja a primeira e uma

que seja a segunda. De fato, há gêneros imediatos do ente e do um.”(1004a2)

50 No Livro D da Metafísica, Aristóteles escreve que a diversidade entre as categorias (essência, qualidade, quantidade, etc.) é uma diversidade pelo gênero, pois entre quaisquer delas não há uma terceira coisa que lhes seja comum pelo que pudessem ser redizidas a algo único.

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kaiì tosau=ta me/rh filosofi¿aj eÃstin oÀsai per ai¸ ou)si¿ai: wÐste a)nagkaiÍon eiånai¿ tina prw¯thn kaiì e)xome/nhn au)tw½n. u(pa/rxei ga\r eu)qu\j ge/nh eÃxon to\ oÄn [kaiì to\ eÀn]: A interpretação desta possibilidade intra-genérica do ente (que, em 1003b19, é

intra-específica) proposta por Mansion (pág 165-221, 1958 ), embora engenhosa, se

mostra bem menos verossímil. Mansion afirma que o termo eidos significa ali

simplesmente um aspecto do ente, e não conota qualquer escala de universal-particular.

Mas o Filósofo deixa claro o papel decisivo das essências em tal hierarquia. E parece ser

do ente enquanto ente e enquanto separado que há, na verdade, espécies do ente no

sentido de objetos reais. Ora, a essência é o ente enquanto ente enquanto separado, o ente

simplesmente (haplôs) separado. A árvore de Porfírio51 fornece uma idéia bem clara do

que seria tal divisão intragenérica do ente essencial indicada por Aristóteles.

Além disso, mesmo quando se trata de uma espécie do ente enquanto ente sem

especificação de separabilidade, como veremos mais nitidamente a seguir, é

perfeitamente plausível que o Filósofo tenha se referido às espécies de predicação do

verbo ser, o que explicaria a célebre fórmula: “o ente é dito de muitos modos” (to\ de\ oÄn

le/getai me\n pollaxw½j) (1003a33). Com efeito, a sentença poderia ser expressa

simplesmente com “o ente é múltiplo”, mas a intenção era focar o aspecto mais geral do

uso do verbo ser e seus possíveis usos específicos.

Ainda sobre a expressão ‘espécies do ente enquanto ente’, Reale enumera três

possíveis interpretação para o termo “espécie’ neste contexto. A primeira a), defendida

por Tomás de Aquino52, toma aqui ‘espécies’ como significando as várias espécies de

51 Fornecemos uma ilustração da referida árvore no capítulo dedicado à unidade da alma. 52 Cit. por Reale, 2002, 157.

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essência; b) a segunda, de Alexandre53, propõe que entendamos espécies como sendo as

categorias do ente (essência, quantidade, qualidade, etc.). Finalmente, c) temos a hipótese

mais aceita pela maioria dos estudiosos – entre eles Colle e Robin54 - de que Aristóteles

se refere ali às noções que pretende tratar, como semelhante, idêntico, etc., justamente as

espécies do um, que são também, como afirma Aristóteles, espécies do ente55.

O problema é que nas linhas seguintes àquela sentença, Aristóteles alude tanto às

espécies de essências, como às categorias do ente e às espécies do ente e do um e, quanto

se trata destas últimas, escreve que o estudo destas espécies também são do escopo da

ciência primeira. Mas no momento em que definirá as partes da filosofia, o Filósofo não

utiliza o estudo destas noções como instrumento para determinar seu número:

“Existem tantas partes da filosofia quantas são as essências;

conseqüentemente, é necessário que entre as partes da filosofia exista uma que

seja primeira e uma que seja segunda.” De fato, o ente é dividido em gêneros e

por essa razão as ciências se distinguem segundo a distinção deste gêneros.

(1004a2)

kaiì tosau=ta me/rh filosofi¿aj eÃstin oÀsai per ai¸ ou)si¿ai: wÐste a)nagkaiÍon eiånai¿ tina prw¯thn kaiì e)xome/nhn au)tw½n. u(pa/rxei ga\r eu)qu\j ge/nh eÃxon to\ oÄn [kaiì to\ eÀn]: dio\ kaiì ai¸ e)pisth=mai a)kolouqh/sousi tou/toij.

O número de partes da filosofia é determinado, portanto, pelo número de

essências. Além disso, na passagem acima Aristóteles usa, indiscriminadamente, os

termos ‘ente’ e ‘essência’. É que a essência é o próprio ente, só que no sentido mais

elevado, pelo que a referência pura ao ente, neste contexto hierarquizante, deixa implícito

que se trata do ente principal.

53 Idem, op. cit. 54 Idem, op. cit.

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Concordamos, portanto, com a exegese tomista para tal expressão no passo

1003b23. Contudo, não negamos que as categorias – que são diversas espécies de fatos

ontológicos56 - assim como as noções mais gerais do um e do ente também sejam alvo da

ciência buscada por Aristóteles, e que também são chamadas por Aristóteles, no passo

1003b33, de espécies do ente. Só que o estudo destas é meramente preliminar na

desenvolução desta ciência. A investigação projetada por Aristóteles tem como alvo não

somente a determinação destes sentidos, mas também a referência de todos eles aos

sentidos primeiros do ente e do um:

“Assim, depois de ter distingüido de quantos modos se entende cada um desses, é

preciso referir-se ao que é primeiro no âmbito de cada categoria de significados e

mostrar de que modo o significado do termo considerado se refere ao primeiro.”57

wÐste dielo/menon posaxw½j le/getai eÀkaston, ouÀtwj a)podote/on pro\j to\ prw½ton e)n e(ka/stv kathgori¿# pw½j pro\j e)keiÍno le/getai:

Ora, o significado primordial do ente, como vimos ao longo de nossa investigação,

é a essência. E o significado fundamental do um requer a essência:

“...mas, em sentido original, constituem uma unidade todas as coisas cuja

essência é uma, e uma seja por continuidade, seja pela espécie, seja pela

noção.”58

ta\ de\ prw¯twj lego/mena eÁn wÒn h( ou)si¿a mi¿a, mi¿a de\ hÄ sunexei¿# hÄ eiãdei hÄ lo/g%:

55 Met. 1003b33 56 No entanto, Aristóteles, ao se referir à diversidade categorial em D 28, afirma que se trata de uma diversidade pelo gênero e não pela espécie, o que enfraquece tal possibilidade. 57 Met. 1004a29 58 Met. 1016b9

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Mas ainda estamos na fase inicial da ciência primeira. Cabe também, e

principalmente, determinar as espécies de essência possíveis. Daí que a classificação das

ciências filosóficas tenha que tocar na questão acerca da existência ou não de realidades

supra-sensíveis, e que em G 1 a resposta a tal problema seja equivalente à resposta acerca

do caráter primário ou secundário da física. É natural também, sob esta ótica, que o Livro

L da Metafísica inicie com a célebre tripartição das essências. Assim, o estudo dos tipos

de unidades possíveis do ente serve, antes, como preparação para uma tareja mais elevada:

a descoberta dos graus possíveis de unificação da essência. Em outras palavras: a unidade

essencial mais perfeita ultrapassa a matéria?

O objeto da metafísica, portanto, é um só e o mesmo, não obstante as distintas

expressões que o referem. Sua natureza é a mesma, embora a noção seja diferente, assim

como ocorre com as noções de ente e um, que são perfeitamente convertíveis pela

idêntica referência, embora o modo de referência seja diverso (Tudo que é é um, e tudo

que é um é. “Ser homem” e “um homem” são expressões com a mesma semântica

ontológica. Sempre que um for o caso, ente também será, e vice-versa.). Não há, pois, só

unidade analógica no sentido do ente enquanto ente, mas unidade intragenérica. Cada

uma das essências é um exemplar individual, primeiramente de sua espécie (ex.: homem),

passando pelos gêneros intermediários (ex.: mamífero, animal), até chegarmos ao gênero

supremo de tudo o que é autonomamente: a essência em geral. Neste caso a interdição já

observada no tocante ao puro ente indeterminado - a saber, o absurdo de um gênero ‘ente’

predicado de suas diferenças - não se aplica, pois a essência é um gênero que se comporta

como todos os outros gêneros relativamente a suas diferenças, não se aplicando, por

exemplo, às diferenças animalidade ou racionalidade, pois ambas não são essências.

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O prós hên, a relação puramente analógica, na verdade, é uma introdução ao

problema do ente, uma estratégia de aproximação à filosofia primeira.

Além disso, mesmo o puro ente em geral, isto é, a universalidade do ente pode ser

um gênero. Com efeito, em muitas passagens Aristóteles não precisaria estar se referindo

diretamente à essência para estabelecer uma relação gênero-espécie. Ele poderia tomar o

ente não como um gênero das coisas que são, mas dos significados do ente, e o próprio

ente significando, na verdade, a aplicação do verbo ser em geral no sentido de tudo

quanto dizemos que “é”. Aplicamos o verbo ser com muitas significações distintas. Cada

sentido do ente é um modo específico de predicação de um gênero de predicação mais

geral, que a todos abarca, que é a predicação com o verbo ser, que difere de qualquer

outra forma de atribuição. Assim, podemos dizer que “‘esta frase’ é” significando “‘esta

frase’ é verdadeira”. Na língua portuguesa não é incomum, embora mais reservada para

um uso informal. Mas em grego era tão natural que foi, até mesmo, um dos sentidos de

“ente” relacionados por Aristóteles no Livro D da Metafísica:

“Ademais, o ser e o ‘é’ significam, ainda, que uma coisa é verdadeira,

enquanto o não-ser e o não-é significam que não é verdadeira, mas falsa; e isso

vale tanto para a afirmação como para a negação. Por exemplo, dizemos

“‘Sócrates é músico’ é”, porque isto é verdadeiro, ou “‘Sócrates não é branco’

é”, na medida em que isto é verdadeiro, e dizemos que “‘a diagonal’ é

comensurável” não é, na medida em que isto não é verdadeiro, mas falso.”

(1017a35)

eÃti to\ eiånai shmai¿nei kaiì to\ eÃstin oÀti a)lhqe/j, to\ de\ mh\ eiånai oÀti ou)k a)lhqe\j a)lla\ yeu=doj, o(moi¿wj e)piì katafa/sewj kaiì a)pofa/sewj, oiâon oÀti eÃsti Swkra/thj mousiko/j, oÀti a)lhqe\j tou=to, hÄ oÀti eÃsti Swkra/thj ou) leuko/j, oÀti a)lhqe/j: to\ d' ou)k eÃstin h( dia/metroj su/mmetroj, oÀti yeu=doj

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No mesmo lugar do Livro D, Aristóteles aponta também outros três usos do verbo

ser. Além da oposição verdadeiro-falso mostrada acima, há também o a) uso que

distingue ente por acidente e ente por si, assim como b) a que diz respeito às várias

figuras de categorias e c) o uso do verbo ser no sentido de efetividade e potência.

Além da relação prós hên com a essência dentro dos sentidos do ente, o problema

da multivocidade do ente, portanto, se instaura em outros dois níveis. a) na pluralidade de

usos do verbo ser, tal como listada em D7; b) na relação genérica enquanto tal, que é

sempre uma analogia contínua, o gênero sendo o termo duplamente mencionado:

“...nem todas as coisas que são unidade pelo gênero o são pela espécie, mas o

são por analogia; enfim, nem todas as coisas que são unidade por analogia o são

também por gênero.” (1017a1)

oÀsa de\ ge/nei ou) pa/nta eiãdei a)ll' a)nalogi¿#: oÀsa de\ a)nologi¿# ou) pa/nta ge/nei.

O gênero animal está para homem assim como o mesmo gênero está para cavalo.

Ha uma identidade de relação de cada espécie com seus gêneros comuns, de modo que

nenhuma espécie determina mais o gênero do que outra espécie congênere. E a própria

noção de gênero tem lugar somente a partir de tal perspectiva relacional, em que

tomamos duas essências distintas e descobrimos relações idênticas que cada uma mantém

com um terceiro termo idêntico. Ora, o gênero é o terceiro termo.

A unidade analógica funda a unidade genérica, ou seja, é condição de

possibilidade do gênero. Toda analogia genérica é também analógica, embora a recíproca

não se verifique.

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Retornemos à aporia acerca da tensão existente entre particularidade e

universalidade na ciência primeira.

Na verdade, há outra tensão mais arcaica que não deve ser ignorada, pois

fundamenta a anterior e limita seu alcance. Percebemos, em Aristóteles, um conflito entre

dois atributos próprios do objeto alvejado pela filosofia primeira. Trata-se da

universalidade e da imaterialidade. Este conflito não é exclusivo da filosofia ou ciência

primeira, mas de toda ciência em geral.

Qual é o preponderante, o caráter universal ou o imaterial? O universal é

preponderante no princípio diretivo de uma ciência, mas não no fim, em que há um

retorno ao singular. Percebemos assim que a preponderância cabe ao atributo da

imaterialidade, pois desde o princípio ele deve ter sido buscado em detrimento do puro

universal, quer dizer, do universal por si mesmo. Veremos de perto o que isto significa.

O universal, enquanto noção comum, é, de certa forma, imaterial, pois não pode

ser identificado com este ou aquele composto material. Por outro lado, nunca é

totalmente imaterial, pois se refere sempre a indivíduos sensíveis.

O individual segue outra via ontológica. Em geral, o ente singular é material. Na

verdade, à quase totalidade das essências do universo podemos aplicar o condicional "se

individual, então material". No entanto, como que paradoxalmente, somente um

indivíduo pode ser totalmente imaterial. O motor imóvel atinge um grau de separação da

matéria que universal algum pode atingir, por mais abrangente e elevado que seja. Daí

que o Filósofo leve em consideração uma matéria sensível e outra inteligível. Com efeito,

deste modo se torna claro que a não-efetividade sensível não é sinônimo de

imaterialidade. Um círculo apenas inteligível, quer dizer, presente em efetividade na

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inteligência, mas não na sensibilidade, nem por isso deixa de ser composto de matéria. A

extensão deste círculo, que o torna passível de uma divisão, ainda que apenas na esfera

imagética e intelectiva, já o torna um ente sensível, dotado de uma espécie de matéria que

Aristóteles, no Livro VII da Metafísica, denomina matéria inteligível (uÀlh nohth/)59.

Ora, as observações anteriores tornam patente que a meta do Filósofo era a

obtenção cognitiva de um objeto plenamente efetivo e, portanto, imaterial, o que decorre

imediatamente de sua própria doutrina, que responsabiliza a matéria pela inevitável

contingência de nosso conhecimento da natureza e, simultaneamente, escolhe a

necessidade para escopo último do saber científico. Ora, neste caso não haveria outra

saída senão a obtenção de um ente absolutamente separado da matéria, único capaz de

satisfazer tal exigência epistemológica, por escapar à contingência da matéria. Deste

modo, desvelando agora o ponto culminante da metafísica aristotélica, na figura de um

indivíduo, o papel do universal também se esclarece, justo pela reflexão feita mais acima,

de que o universal é um primeiro tipo de imaterial, mais afastado, portanto, da

contingência da natureza. No entanto, é natural que o Filósofo não se contentasse

inteiramente com o grau de independência próprio do universal enquanto comum. É que,

justamente pela comunidade predicativa, o universal assim entendido mantém referência

constante com os objetos sensíveis, podendo, assim, ser afirmado ou negado, o que

significa cair na esfera da mera possibilidade material.

Agora estamos mais aptos para comprender a totalidade semântica da expressão

‘ente enquanto ente’, assim como o próprio sentido de universalidade, que até obrigou o

Filósofo a ampliar sua esfera de significado.

59 Met. 1036a10

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Há uma série de problemas hermenêuticos suscitados pelo uso aristotélico da

expressão "ente enquanto ente". O principal reside na aparente incompatibilidade entre

uma filosofia do ente enquanto ente, tomado, portanto, em toda a sua universalidade, e a

ciência teológica, referida em certos momentos como a ciência do ente enquanto ente e

enquanto separado. Contudo, há uma distinção fundamental que auxilia sobremaneira a

investigação e possível solução da aporia.

A expressão “ente enquanto ente” possui significado metodológico, mais do que

objetivo, ao passo que “essência” possui significado plenamente objetivo. Mas

Aristóteles reservou o caráter de universalidade a ambos os significados. Primeiro

vejamos uma distinção existente dentro da própria universalidade, para então aplicarmos

tal elucidação a essas duas expressões.

A expressão “universal porque primeiro” deve ser entendida como “universal

porque central”. Há o que podemos denominar universal central e o universal periférico.

O primeiro é predicado de muitos; o segundo é sujeito de predicação de muitos. Nos dois

casos, o universal é algo presente em muitos e por muitos, isto é, se refere a mais de um

ente. A grandeza e curvatura são universais na medida em que não se restringem a tais

enunciados, sendo encontrados em muitos outros enunciados, mas no papel de predicados,

e não no de sujeitos essenciais. Trata-se aqui de um universal periférico. Por outro lado,

esta essência individual ‘cadeira’, por exemplo, é universal porquanto sujeito em

enunciados como ‘a cadeira é redonda’, ‘a cadeira é grande’ e a ‘a cadeira é confortável’.

Com efeito, embora seja apenas uma, está presente em muitos, ou seja, é universal

porquanto central. E o que dizer da essência primeira de todo o universo, o motor imóvel?

Movendo a todas as coisas, não se trata também de um mero indivíduo, embora a

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individualidade seja crucial em sua natureza. O fato de todas as coisas serem sustentadas

pela sua atividade fazem desta essência ainda mais universal que os exemplos anteriores.

Trata-se do universal central por excelência. Daí que, no Livro VI da Metafísica60, o

Filósofo afirme que a existência de uma essência superior a todas as outras exigiria uma

ciência correpondente que teria o caráter universal pela anterioridade ontológica de seu

objeto.

Na verdade, há três definições diretivas da metafísica. A primeira tem como

enunciado: ciência do ente enquanto ente, mas no sentido da compreensão universal do

ser, isto é, das conexões entre seus diversos sentidos e do que pertence a algo

simplesmente enquanto este algo ‘é’. Nesta perspectiva da ciência metafísica estão

compreendidos os textos que listam os usos do verbo ser, o princípio de não-contradição

– que enuncia uma verdade acerca de todos os entes – e o estudo das noções mais gerais

que existem, as que se aplica a qualquer coisa que é, algumas das quais até conversíveis

com o ser, como a noção de um, investigada no Livro D da Metafísica.

Aristóteles, porém, não teve como único escopo tal aplicação do método de

investigar ‘o ente enquanto ente’. A segunda definição diretiva enuncia: ciência do ente

enquanto ente enquanto separado, isto é, a essência. De fato, o Filósofo alterna estas duas

expressões ao longo da Metafísica: ‘ente enquanto ente’ e ‘ente enquanto ente e enquanto

separado’. Neste último caso, há possibilidade de relação gênero-espécie, pois se

tomarmos a essência como o gênero das coisas que são autonomamente, não haverá,

contudo, uma predicação do gênero em suas diferenças. Por exemplo, o gênero ‘essência’

em ‘essência viva’ não pode ser predicado de ‘viva’, que é uma diferença. Assim, neste

60 1026a30

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caso e em todos os outros em que a essência for o significado da expressão ‘ente

enquanto ente’, não há risco de Aristóteles incorrer em contradição com seu princípio de

que o gênero jamais se predica das diferenças. Tal seria o caso apenas se, nos contextos

em que o Filósofo se refere às espécies de ente enquanto ente, interpretássemos ‘ente

enquanto ente’ como significando o puro ente, pois qualquer diferença é um ente.

A respeito destes dois usos da expressão “ente enquano ente”61, Reale escreve –

comentando uma identificação entre ‘ente enquanto ente’ e ‘essência’, em K3 – abrindo

ainda a possibilidade do terceiro ainda não tocado aqui:

“A fórmula ‘ser enquanto ser’ é, pelo menos, trivalente, significa todo o ser, ou a

substância (como aqui), ou até mesmo Deus.”62

A terceira se enuncia como a segunda, apenas que “separado” sendo entendido

não somente como essência separada de tudo que não é essência, mas também de toda

materialidade. Trata-se da essência supra-sensível, quer dizer, puramente inteligível. Nos

dois últimos casos ocorre o universal central, que pouco tem a ver com a generalidade

abstrata do primeiro sentido. No entanto, não devemos nos esquecer é a universalidade

central que funda a universalidade abstrata, pois noções como homem, animal e cervo só

servem como predicados porque, e somente porque, há universais centrais, isto é,

essências, que admitem a função de sujeitos das respectivas predicações.

Mas porque Aristóteles afirma que, se não há outra essência além da sensível, a

Física seria a filosofia primeira? Isto significaria uma contradição com a definição de

filosofofia primeira como ‘ciência do ente enquanto ente’? De modo algum. Se a física

fosse a filosofia primeira, a ciência do ente enquanto ente não seria abandonada. Seria

61 Ou ‘ser enquanto ser’. 62 Reale, 2002, pág. 550.

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realizada no âmbito da física, “pois o físico tem de estudar também e principalmente a

essência enquanto forma”. A ciência do ente enquanto ente é, primeiramente, um método

científico, para o qual Aristóteles procura um objeto, seja ele matemático, físico ou

teológico. Lembremos que a matéria dos matemáticos é de escopo metafísico e que o

Filósofo, mesmo nos momentos em que afirma de modo mais imperativo a necessidade

da metafísica, deixa em aberto a questão acerca a realidade do supra-sensível.

Não somente a física de Aristóteles é uma ontologia, como também o próprio

Filósofo pretendia dotá-la de uma ontologia, pois escreve que:

“De fato, em certo sentido, a pesquisa sobre as essências sensíveis pertence à

física e à filosofia segunda; o físico não deve investigar somente acerca matéria,

mas investigar também segundo o enunciado, e principalmente isto.” (1037a15)

e)peiì tro/pon tina\ th=j fusikh=j kaiì deute/raj filosofi¿aj eÃrgon h( periì ta\j ai¹sqhta\j ou)si¿aj qewri¿a: ou) ga\r mo/non periì th=j uÀlhj deiÍ gnwri¿zein to\n fu-siko\n a)lla\ kaiì th=j kata\ to\n lo/gon, kaiì ma=llon.

Daí que “existam tantas partes da filosofia quantas são as essências” 63. Nisso a

filosofia se distingue da sofística, que sendo apenas uma sapiência aparente, se ocupa

somente do concomitante. Mesmo a física seria filosofia primeira. Não haveria metafísica

teológica se não houvesse nada além das essências sensíveis. Haveria então uma

metafísica natural.

Na forma de uma ontologia física, a metafísica aristotélica seria como uma

pirâmide asteca: seu nível mais elevado não teria um ápice, quer dizer, um ponto de

convergência além do qual não seria possível imaginar qualquer perfeição ontológica

ulterior, nenhuma essência mais excelsa. De fato, se não fosse possível a existência de

essências supra-sensíveis, algo interrompido, embora não contraditório, seria percebido

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na metafísica aristotélica: toda a scala naturae, com seus sucessivos estágios de

autonomia relativamente à matéria, não atingiria um topo no qual uma peculiar essência

realizasse em si a máxima autonomia possível, a saber, a completa imaterialidade. A

pirâmide estaria cortada ao meio. Não haveria uma completude (télos) única da qual

deduzíssemos a complexidade das completudes (telói) das essências cósmicas. Cada

potência (dýnamis) seria inteligível para nós pela simples consideração de seu télos

próprio. Entretanto, não perceberíamos o limite para o qual tende toda continuidade

convergente da série de telói, cada vez mais excelsos e autônomos relativamente ao

substrato material.

Se há uma essência autonomamente separada e imóvel, a filosofia que lhe cabe

será a primeira pela eminência da autonomia e será “pelo todo” da essência que

contempla, pois não haverá matéria a ser considerada, que é sempre extrínseca a qualquer

ciência. Enquanto a matemática se subdivide em gêneros pela matéria inteligível e a

física pela matéria sensível, a filosofia primeira da essência imóvel, não lidando com a

matéria, seria uma e total. A essência suprema é mais facilmente conhecida pela sua

própria natureza imaterial e imóvel e não para nós, o que seria o caso das essências

sensíveis, pois tudo o que é sensível é apreendido e conhecido com anterioridade

cronológica. Por outro lado, o caráter mais fundamental de essência – o de ser autônoma -

é plenamente atribuída ao motor imóvel. Nas demais essências a atribuição é apenas

relativa, devido ao comprometimento existencial da matéria. Além disso, cabe notar que

o primeiro de uma série é o limite da série. E o limite abarca o todo. O ser do primeiro é

“pelo todo”, quer dizer, vale pelo ser do todo, é aquilo segundo o qual (xath) o todo

(hólon) tem o seu ser. A natureza de uma ciência acompanha a natureza de seu objeto.

63 Met. 1004a2.

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Assim, visto que o objeto da filosofia primeira é anterior aos demais objetos, a filosofia

primeira também será anterior às demais filosofias.

A solução de um objeto teológico, embora não sendo a única alternativa possível

para a filosofia primeira, se revela a mais nobre e preferível e a que mais se identifica

com o método do “ente enquanto ente”. Com efeito, a essência imóvel é a única que é,

simplesmente (háplôs) enquanto é, sem depender do ser da matéria, seja sensível ou

inteligível.

A metafísica define e demonstra as noções que competem ao ente enquanto ente

– a essência. Mas a própria essência de cada ente não pode ser definida por nenhum

enunciado, e sim a essência em geral, quer dizer, o reconhecimento de uma instância

nuclear e auto-suficiente do ente, que é a forma e a natureza do ente. O Livro D da

Metafísica é o primeiro tratado metafísico, a contemplação (teoria) das noções que

decorrem das coisas pelo simples fato de existirem. Ali são investigadas as noções mais

gerais que existem, como a de um e múltiplo, parte e totalidade. O grau de

unviversalidade destas noções as torna aplicáveis cada ente simplesmente enquanto ente,

isto é, da mera existência de algo – seja tal existência possível, real ou necessária –

decorre que este será, forçosamente, um ou múltiplo, não importa se considerado em seu

movimento (física), sua ordem (matemática) ou sua extensão (geometria). Do mesmo

modo, se considerarmos um ente como uma totalidade (hólon), o tomamos como algo

que possui, necessariamente, determinada natureza, uma configuração ontológica

respeitante às relações entre suas partes, independentemente de como estas existem, se

matemática ou fisicamente, não se tratando, pois, do ente enquanto quanto, nem do ente

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enquanto móvel ou de qualquer perspectiva senão do próprio ente considerado em si

mesmo.

Retornemos à perspectiva teológica da ciência do ente enquanto ente.

O ente enquanto ente é multívoco, embora relativamente ao “um”. Da mesma forma, o

ente enquanto ente é multívoco, conquanto em referência a um sentido primário. Este

sentido é: o que é, (ente) simplesmente porque é (ente), quer dizer, em virtude de seu

próprio ser, enquanto ele mesmo (v au)to) e não enquanto outro (v eÀteron) Este

sentido originário pode assumir, por sua vez, enfoque gnosiológico ou propriamente

ontológico. Com efeito, tomando um ente qualquer, podemos considerar as afirmações

que dele podem ser tiradas pelo mero fato de que ele é, ou seja, de todas as notas que lhe

são próprias (propriedades), decorrentes da simples possibilidade de seu conceito. Por

outro lado, há entes que existem em função de sua própria natureza e não como

aderentes de outros entes. São as essências. Ora, tudo o que decorre do “ente enquanto

ente”, no primeiro sentido também valerá para o segundo, pois “o limite do

conhecimento também é limite da coisa” , mas desde que consideremos a essência

primeira (próte ousia), dado que nas outras acepções a essência envolve a matéria, a qual

não é simplesmente porque é, mas em virtude da forma, esta sim a próte ousia. O

segundo sentido – a essência – por sua vez pode ser compreendido até o grau máximo

das essências que são simples e completamente (autonomamente) porque são. Trata-se

dos objetos teológicos, motores imóveis.

Cabe aqui um parêntese. A matemática não é auto-subsistente porque seu objeto

não existe sem a matéria. Ora, se os objetos com que lida a física são necessariamente

materiais, por que Aristóteles – no livro VI da Metafísica – os considera auto-subsistentes?

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Porque, enquanto o número é uma passibilidade do indivíduo material em geral que lhe

dá suporte, a essência física enforma sua matéria própria, com a qual constitui uma

essência, ainda que não a próte ousia, a essência primeira. A matéria dá suporte à

essência física apenas enquanto a consideramos em união com a matéria. Se abstrairmos

esta última, ainda restará a essência nuclear, a pura forma sem matéria. Além disso,

mesmo enquanto unida à matéria, temos uma essência completa, o concreto (su/noloj),

composto de matéria e forma. Com efeito, a relação entre matéria e forma é muito

diferente daquela entre essência e passibilidade. Na primeira, forma-se um todo

autônomo, essencialmente unido, posto que essência distinta. A segunda relação já

constitue um ente apenas concomitante, sem qualquer autonomia ontológica, que não

persiste em si mesmo, em separado. Neste caso, a possibilidade de subsistência depende

apenas de um dos termos constituintes, o qual, no caso em questão, não é o número, mas

o ente material que ele quantifica.

Ainda relativamente à noção de ciência em Aristóteles, há muita discussão acerca

de sua compatibilidade com a noção de indivíduo, igualmente cara ao Filósofo, em

virtude da própria exigência separativa de seu conceito de unidade, exigência que o

indivíduo cumpre ao não ser predicado e compartilhado por muitos, ao contrário de um

puro universal. Do equacionamento desta questão depende a possibilidade mesma da

metafísica, da ciência em geral e de uma culminação teológica da metafísica de

Aristóteles.

O próprio Filósofo estava consciente da gravidade do problema. No fim do Livro

M, ele revela sua preocupação com a coisa:

“Que toda a ciência é do universal, e que, conseqüentemente, os

princípios dos entes devam ser universais e não essências separadas é uma

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perplexidade que apresenta dificuldades maiores do que todos os outros já

tratados.” (1087a10)

to\ de\ th\n e)pisth/mhn eiånai kaqo/lou pa=san, wÐste a)nagkaiÍon eiånai kaiì ta\j tw½n oÃntwn a)rxa\j kaqo/lou eiånai kaiì mh\ ou)si¿aj kexwrisme/naj, eÃxei me\n ma/list' a)pori¿an tw½n lexqe/ntwn...

No entanto, logo a seguir, ele propõe uma nova apreciação do problema que o

livre deste peso aporético:

“Entretanto, o que se disse é verdade num sentido e noutro sentido não.

De fato, a ciência, assim como o tomar ciência, existe de dois modos: em

potência e efetivamente. Ora, porque a ciência em potência é, como a matéria,

universal e indeterminada, refere-se ao universal e ao indeterminado; ao

contrário, a ciência efetiva, sendo definida, refere-se ao que é definido, e sendo

algo determinado, refere-se a algo determinado. Mas a vista vê cor

universalmente por concomitância, ou seja, enquanto esta cor determinada que

vê é, justamente, uma cor; e assim determinado A que o gramático estuda é,

justamente, um A. Se os princípios fossem necessariamente universais, então

deveriam ser necessariamente universais também as coisas que deles derivam,

exatamente como ocorre nas demonstrações. Mas, se assim fosse, nada seria

separado e nada seria essência. Mas é evidente que a ciência, num sentido, é

ciência do universal, enquanto noutro sentido não é.” (1087a13)

ou) mh\n a)lla\ eÃsti me\n w¨j a)lhqe\j to\ lego/menon, eÃsti d' w¨j ou)k a)lhqe/j. h( ga\r e)pisth/mh, wÐsper kaiì to\ e)pi¿stasqai, ditto/n, wÒn to\ me\n duna/mei to\ de\ e)nergei¿#. h( me\n ouÅn du/namij w¨j uÀlh [tou=] kaqo/lou ouÅsa kaiì a)o/ristoj tou= kaqo/lou kaiì a)ori¿stou e)sti¿n, h( d' e)ne/rgeia w¨risme/nh kaiì w¨risme/nou, to/de ti ouÅsa tou=de/ tinoj, a)lla\ kata\ sumbebhko\j h( oÃyij to\ kaqo/lou xrw½ma o(r#= oÀti to/de to\ xrw½ma oÁ o(r#= xrw½ma/ e)stin, kaiì oÁ qewreiÍ o( grammatiko/j, to/de to\ aÃlfa aÃlfa: e)peiì ei¹ a)na/gkh ta\j a)rxa\j kaqo/lou eiånai, a)na/gkh kaiì ta\ e)k tou/twn kaqo/lou, wÐsper e)piì tw½n a)podei¿cewn: ei¹ de\ tou=to, ou)k eÃstai xwristo\n ou)qe\n ou)d' ou)si¿a. a)lla\ dh=lon oÀti eÃsti me\n w¨j h( e)pisth/mh kaqo/lou, eÃsti d' w¨j ouÃ.

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Agora o Filósofo não se refere a tal exigência científica de universalidade como

algo estritamente necessário. Mas para que posssa fazê-lo sem incorrer em contradição

com a linha imediatamente anterior, é preciso ampliar o sentido de ciência, ou buscar

dentro da própria ciência dois sentidos distintos, um dos quais ainda mantendo tal

exigência, enquanto o outro a dispensa e ultrapassa. O primeiro sentido nada mais é que o

método científico e seus resultados, isto é, o caminho confiável que leva à descoberta e à

comunicação da descoberta, tal como vemos expresso logo no primeiro livro da

Metafísica. Trata-se, portanto, de ciência no sentido de corpo doutrinário e metodológico.

O segundo sentido nada mais é que o exercício e aplicação da doutrina aos objetos do

mundo, isto é, a apropriação mesma do objeto buscado. Ora, enquanto referência direta e

posse definitiva do objeto, esta espécie de saber não pode mais se ater ao puro universal,

mas se adequar ao próprio objeto de sua investigação, que é de natureza essencial e,

portanto, individual. A ciência no primeiro sentido busca o universal e atinge enunciados

de natureza geral e necessária, da forma “todo x é y” ou “todo x em y é z’, mas enquanto

se mantém no universal não é mais que potência para a pura apreensão do objeto em sua

presença efetiva. Tais enunciados são princípios da ciência, e são universais, mas não são

universais as coisas que são regidas por tais enunciados. Ora, tais coisas também são

princípios da ciência, pois se não houvesse qualquer x, y ou z, não faria sentido qualquer

enunciação e raciocínio acerca de suas mútuas relações. Não é possível saber se o objeto

existe ou não existe através da ciência tomada neste sentido. Sabemos apenas que, se

existir, será necessariamente de tal e tal maneira. Porém, quando apreendemos

efetivamente a presença do objeto, então obtemos uma ciência que é como o próprio

objeto: determinada e individual. Assim como a matéria em geral, cuja perfeição consiste

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em progressivamente ser determinada pela forma, até que o processo de individuação se

complete, do mesmo modo é a relação entre a ciência enquanto método rigoroso e

universal e a ciência lato sensu dos objetos de que também a primeira ciência procura os

princípios. Daí que a aporia perca sua força dialética. É que, não obstante, a ciência seja

do universal e verse sobre os princípios de todas as coisas, isto não significa que os

princípios de todas as coisas são universais. Os princípios essenciais do universo são os

indivíduos, embora, acerca da natureza dos mesmos, possamos estabelecer enunciados

universais que são princípios da ciência. Os enunciados universais da ciência não são

anteriores ao indivíduos, mas justo o contrário. Os enunciados universais são anteriores

aos enunciados particulares, mas não aos próprios particulares. ‘Todos os triângulos têm

dois retos na soma interna dos ângulos’ é anterior a ‘Este triângulo tem dois retos na

soma interna dos ângulos ’, o que não significa que tal verdade universal seja anterior à

possibilidade de construção de algum triângulo particular. Se a construção de um

triângulo particular fosse impossível, também seria inválido o enunciado universal acerca

de todos os triângulos. Não existe um triângulo universal cuja única propriedade seja a de

ter dois retos na soma interna dos ângulos. A verdade de tal enunciado universal reside

tão somente no fato de cada triângulo particular ser, concomitantemente ao que deriva de

sua própria natureza específica de reto, escaleno ou agudo, a propriedade de tal soma

interna. Daí que Aristóteles tenha alargado seu conceito de concomitante para este âmbito

científico. Por isso não devemos nos espantar que, além da passagem acima, há outras,

como no Livro D da Metafísica, em que nos deparamos com concomitantes necessários.

O uso deste termo não é unívoco em Aristóteles. Vale tanto para referência a atributos

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contingentes quanto necessários de um ente64, embora em outras passagens Aristóteles

denomine concomitante a tudo o que está fora da definição da essência de um sujeito65,

inclusive aquilo cuja predicação é conversível, como, por exemplo, o ‘capaz de rir’ e o

homem (todo homem é capaz de rir e tudo o que é capaz de rir é homem). Parece que na

passagem acima a tendência ampliativa deste uso foi levada ao extremo, até o ponto de

afirmar que o ser mesmo da coisa em sua identidade pode ser verdadeiro por

concomitância, se com isso entendemos o reconhecimento universal desta identidade. É o

caso, na passagem acima, da cor particular agora percebida que Aristóteles afirma estar

inclusa na natureza universal da cor por concomitância, o que significa dizer que não é

universal em si mesma, embora sua natureza individual apresente, simultaneamente, uma

verdade universal66.

É muito importante o fato de Aristóteles ter enfraquecido a aporia apelando para o

objeto da ciência, em detrimento do método e doutrina, algo que contraria o restante de

seus escritos acerca do tema. Entretanto, não é preciso recorrer à hipótese de uma outra

autoria para a passagem. A importância do objeto em seu conceito de ciência, e na

própria hierarquia das ciências, é algo que veremos ao longo das linhas seguintes. Este

caráter de sua epistemologia é decisivo para a compreensão do papel do objeto teológico

em sua filosofia.

Aristóteles, portanto, distingue ciência potencial de ciência efetiva. A ciência

potencial abstrai o universal do individual. Consiste nas definições e demonstrações de

conexões de notas comuns e relações necessárias compartilhadas pelos objetos. Enuncia

64 Met. 1025a15 65 Segundos Analíticos, 73b8. 66 Para maiores esclarecimentos sobre a amplitude semântica deste termo e as sutis conexões entre os diversos usos, ver Angioni (2006, pág. 111-113).

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leis gerais do comportamento dos seres. A efetividade de cada indivíduo, porém, é única.

A definição de uma efetividade não atinge a natureza última desta efetividade, pois

expressa a natureza de algo que pode ou não ocorrer, enquanto a efetividade é, por

natureza, o que é agora, atualmente. A definição de uma efetividade aponta para uma

instância do ente inacessível ao intelecto. O indivíduo, sempre efetivo, escapa da

potencialidade da definição, sendo sempre algo além do que consta em seu enunciado,

pela sua própria natureza espaço-temporal. O ser do indivíduo corruptível, além disso, só

pode ser captado pela cognição direta da sensação atual, pois além de inscrito no tempo e

no espaço, é incerto em ambas as dimensões:

“As essências corruptíveis, quando fora do alcance das sensações, são

obscuras mesmo para quem possui ciência; e mesmo que delas se conserve na

alma as noções, delas não poderá haver nem definição nem demonstração. Por

isso, no que se refere à definição, é necessário que, quando se define algo das

essências individuais, não se ignore que ele sempre pode faltar, pois não é

possível defini-lo.”(1040a.2)

aÃdhla/ te ga\r ta\ fqeiro/mena toiÍj eÃxousi th\n e)pisth/mhn, oÀtan e)k th=j ai¹sqh/sewj a)pe/lqv, kaiì swzome/nwn tw½n lo/gwn e)n tv= yuxv= tw½n au)tw½n ou)k eÃstai ouÃte o(rismo\j eÃti ouÃte a)po/deicij. dio\ deiÍ, tw½n pro\j oÀron oÀtan tij o(ri¿zhtai¿ ti tw½n kaq' eÀkaston, mh\ a)gnoeiÍn oÀti a)eiì a)naireiÍn eÃstin: ou) ga\r e)nde/xetai o(ri¿sasqai.

O universal, matéria das definições e demonstrações, está a meio caminho entre o

indivisível e o infinitamente divisível. Tomemos o conceito “árvore”. Pode-se dividi-lo

em conceitos mais simples até chegar ao de corpo, o qual, enquanto universal, não pode

mais ser dividido, mas, a título de totalidade, pode ser decomposto em todos os

indivíduos que se encaixam no conceito de corpo. Já a matéria de que são feitos esses

corpos é infinitamente divisível, mesmo na qualidade de matéria. Com efeito, não há

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termo pensável para o processo. E cada divisão constitui uma diferença efetivada pela

efetividade própria da essência correspondente. Sendo assim, não há definição de uma

essência que abarque toda a complexidade de um único indivíduo, mesmo quando há

referência à matéria inteligível próxima.

A ciência em Aristóteles deve ser ciência do necessário, seja este comum e

universal ou individual. O primeiro é um meio para atingir o segundo. Mas os entes

realmente constitutivos do universo são essências individuais e não entidades universais

compartilhadas por indivíduos. Sob tal ótica também se torna natural o alargamento que o

Filósofo foi obrigado a operar, no Livro VI da Metafísica, no conceito de universal,

apelando para uma espécie de universalidade central em lugar de comum, tema que

abordamos neste mesmo capítulo para atingir sua máxima expressão reservada à essência

imóvel.

A ciência, tanto em Platão com em Aristóteles, é teórica, isto é, contemplativa, o

que significa: o objeto tem a primazia, e não o sujeito e o método. Em Platão, a

matemática está sob a dialética porque é instrumento para esta e a dialética atinge o

objeto mais excelso. A matemática, portanto, é um meio. Em Aristóteles, a matemática

também não tem primazia porque não versa sobre um objeto strictu sensu, mas sobre

passibilidades de objetos. A teologia e a física a ultrapassam, ainda que menos exatas em

seus métodos e resultados. O caráter objetivo do necessário científico ultrapassa o caráter

metodológico do universal científico.

Aristóteles pretende superar o método metafísico concebido até então, quer dizer,

o caminho da ascese cognitiva acerca do ente enquanto ente. Tal método possui as

premissas mais universais e, portanto, de cognição mais afim ao método dedutivo da

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ciência. O escopo metafísico, no entanto, são as essências propriamente individuais.

Assim, como toda a ciência, a metafísica possui uma tensão imanente entre método

universal e objetos singulares. No entanto, aqui a tensão atingiu o máximo grau. A

metafísica é, simultaneamente, a ciência mais universal, na medida em que versa sobre o

sentido de todo o ser, e a ciência mais particular, pois seu objeto supremo é indivíduo em

máximo grau. A autonomia deste objeto o torna rigidamente fechado em seu próprio ser.

Prossigamos na determinação das relações entre necessário, universal e individual

na ciência metafísica aristotélica.

Está claro que fundamental em ciência aristotélica é o conhecimento necessário.

A universalidade torna o método mais necessário, posto que mais distante da

instabilidade da matéria, e pelo mesmo motivo a autonomia torna o objeto mais

necessário. Autonomia e universalidade, portanto, atingem o necessário pelo afastamente

da imaterialidade, embora a primeira partindo do objeto, enquanto a segunda do sujeito.

Isto é, quando mais autônomo um objeto, maior a necessidade objetiva de sua ciência,

pois o próprio objeto se mostra necessário, isto é, suas propriedades não são apenas

possíveis e contingentes, não variam ou variam menos com o tempo, proporcionalmente

ao seu grau de autonomia relativamente à matéria. Por outro lado, quanto maior a

universalidade dos enunciados efetuados pelo sujeito conoscente acerca do objeto, maior

é a necessidade metodológica da ciência, posto que maiores são as referências de que

dispomos para o conhecimento de sua natureza. O enunciado “todos os seres vivos

crescem” é necessário do ponto de vista metodológico, pois a partir dele estabelecemos

um limite no âmbito de tudo aquilo que os seres vivos podem fazer. No entanto, nosso

conhecimento dos seres vivos é sempre limitado, devido ao próprio tipo de materialidade

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de que são constituídos. Sua corruptibilidade torna qualquer saber sobre os mesmos quase

sempre probabilístico e aproximado, assim como acerca de qualquer essência composta

de matéria corruptível, que Aristóteles associa ao nosso planeta. A coisa muda de figura

quando emitimos enunciados verdadeiros acerca dos corpos celestes, cuja matéria

constituiente é de natureza incorruptível. A matéria destes corpos é passível somente de

movimento circular, o que torna necessárias as conclusões dos raciocínios perfeitos

quanto aos seus trânsitos cósmicos. Aqui, a necessidade do método encontra maior

realização, porquanto aliada à necessidade do objeto. Tal objeto detém um nível de

efetividade mais elevada que a dos objetos corruptíveis, cuja potencialidade material é

disposta para os quatro tipos de movimento. Daí que a escala de efetividade dos objetos

científicos seja correspondente, em cada grau, à escala de cientificidade de suas

respectivas ciências. A teologia, portanto, será a ciência mais elevada de todas, versando

sobre um objeto imutável e, portanto, necessário e científico em sumo grau.

Assim, no que diz respeito à exigência de necessidade científica, a autonomia do

objeto é mais valiosa que a universalidade do método. O conhecimento matemático está

sempre progredindo da potência à efetividade, pois contém matéria inteligível. Seu objeto,

a quantidade, não é autônomo, o que o torna não tanto um objeto propriamente dito e sim

passibilidade de objetos67.

A este fator, acrescente-se outro igualmente decisivo: os indivíduos, embora em

geral tenham parte com a matéria sensível, são os únicos entes que, em determinados

âmbitos do cosmo, se encontram totalmente destituídos de matéria. Referimo-nos aos

motores imóveis. Como se não bastasse, mesmo os indivíduos sensíveis possuem graus

67 Sobre a natureza real do objeto matemático, enquanto passibilidade própria e necessária das coisas, mas não coisas em si mesmas, ver Met. 1077b20-1078b5

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diversos de materialidade, até o ponto dos corpos celestes, os quais, além de submeterem

totalmente seu substrato sensível em seus movimentos eternamente circulares, possuem

um tipo de matéria não constituída pelos quatro elementos e, portanto, incorruptível. Há

vários graus, portanto, de separação da matéria, os quais correspondem a diversos níveis

de cientificidade. Eis a célebre teoria dos três graus de separação (matemática, física e

teologia), expresso principalmente no livro VI da Metafísica.

Acerca do primeiro grau de separação, isto é, a separação meramente lógica dos

objetos matemáticos, Mansion68 escreve:

“E é, desta vez, por não poder afirmar mais do que uma separabilidade

puramente lógica da matéria no caso dos seres matemáticos que não há meio de

reconhecê-los como substâncias.”

Os objetos matemáticos, portanto, sempre carregam em si a materialidade dos

objetos não-matemáticos, dos quais na verdade nem mesmo se distingüem. Com efeito,

no livro XIII da Metafísica, Aristóteles escreve que tais objetos são apenas os próprios

objetos sensíveis, mas não enquanto sensíveis, isto é, não considerados em sua

materialidade física, mas apenas quanto a determinadas propriedades69.

Os objetos físicos, contudo, embora sejam separados relativamente à matéria que

não entra em sua essência, nem por isso está livre da matéria que o constitui por natureza.

Somente a teologia lida com objetos totalmente destituídos de matéria. Aqui não há sinal

de matéria etérea dos corpos pesados, nem mesmo da controvertida matéria inteligível

das matemáticas.

68 Mansion, 1958, pág. 159 69 Met. 1077b20

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Agora, com base nas considerações acima, as aporias do modo de universalidade

da ciência primeira podem ser mais bem elucidadas.Tomemos o seguinte esquema

taxionômico e vejamos sua potência elucidativa:

1- Ente enquanto ente: trata-se do que poderíamos denominar metafísica lato

sensu, propedêutica metafísica ou metafísica básica. Trata-se aqui simplesmente do

escopo metodológico da filosofia que busca os princípios mais puros do ente, aquilo que

lhe compete primordialmente, em contraposição ao mero ente concomitante.

1.1 - Ente enquanto ente enquanto separado: aqui temos a metafísica strictu sensu.

A essência é o “sentido focal” do ente enquanto ente, pois somente ela pode subsistir por

si mesma, ou seja, separada dos entes concomitantes.

1.1.a - Ente enquanto ente enquanto separado porquanto passível de intelecção: é

a física pretendida por Aristóteles, ou seja, do ente enquanto móvel, mas também imóvel,

embora neste aspecto apenas enquanto passível de intelecção. No Livro VII da Metafísica

há um trecho que elucida bem este aspecto de sua epistemologia:

“De fato, em certo sentido, a pesquisa sobre as essências sensíveis pertence à

física e à filosofia segunda; o físico não deve limitar sua investigação à matéria,

mas também acerca da matéria segundo seu enunciado: antes, deve investigar

sobretudo sobre esta.” (1037a13)

e)peiì tro/pon tina\ th=j fusikh=j kaiì deute/raj filosofi¿aj eÃrgon h( periì ta\j ai¹sqhta\j ou)si¿aj qewri¿a: ou) ga\r mo/non periì th=j uÀlhj deiÍ gnwri¿zein to\n fusiko\n a)lla\ kaiì th=j kata\ to\n lo/gon, kaiì ma=llon.

Com efeito, Aristóteles considerou atentamente a aplicação do escopo da filosofia

primeira à física, e com isso nos referimos à responsabilidade do físico para com a

essência do móvel abarcada pelo enunciado definitório do móvel, isto é, a estrutura

primeira do móvel que torna possível o movimento. A constatação de que há duas

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essências móveis – a lunar e a supralunar – assim como as diversas sub-espécies de

essências móveis fariam parte deste escopo.

Com a expressão “separado apenas enquanto passível de intelecção” entendemos:

não separado realmente da matéria, mas apenas cognitivamente, pois, embora a essência

enquanto forma seja o princípio efetivo do composto, nos entes sensíveis não existe

separadamente, mas apenas em concatenação com a matéria. Neste campo de estudo

entra, por exemplo, a alma, enquanto princípio de movimento das essências vivas, que

não pode – com exceção da parte inteligente da alma humana – prescindir da matéria,

mas pode ser conhecida em separado (xwristo/n), na medida em que o enunciado

(lo/goj) da alma não é o mesmo enunciado do corpo material do qual é a plenitude

(e)ntele/xeia).

1.1.b- Ente enquanto ente enquanto separado enquanto ente » teologia (ente

enquanto ente enquanto separado enquanto separado)

A teologia completa o percurso metafísico da essência inteligível à essência

inteligente, do ‘ente enquanto ente enquanto passível de intelecção’ ao ‘ente enquanto

ente enquanto ente’. A teologia é uma dupla metafísica, metametafísica. O ente enquanto

ente não é aqui uma perspectiva cognitiva baseada na autonomia do ente – a essência.

Aqui o ente só pode ser enquanto ente, sem comércio com outra possibilidade ontológica.

Excluídas desta taxionomia, encontram-se a) a matemática: ente enquanto quanto

(quanto enquanto separado enquanto passível de intelecção) e b) a física antiga: ente

puramente enquanto móvel.

Outra evidência de que “ao falar de espécies de ente” há também um uso de

espécie no sentido de uma escala universal-particular se encontra em Met. VI 1026a25:

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“Há uma perplexidade acerca de se a filosofia primeira é universal ou se se

refere a um gênero determinado e a uma realidade particular. De fato, a respeito

disso, no âmbito das matemáticas existe diversidade: a geometria e a astronomia

referem-se a determinada realidade, enquanto a matemática geral é comum a

todas. Ora, se não existisse outra essência além das que constituem a natureza, a

física seria a ciência primeira, e desse modo, ou seja, enquanto primeira, ela será

universal e a ela caberá a tarefa de estudar o ente enquanto ente, vale dizer, o

que é o ente e os atributos que lhe pertencem enquanto ente.”

a)porh/seie ga\r aÃn tij po/tero/n poq' h( prw¯th filosofi¿a kaqo/lou e)stiìn hÄ peri¿ ti ge/noj kaiì fu/sin tina\ mi¿an (ou) ga\r o( au)to\j tro/poj ou)d' e)n taiÍj maqhmatikaiÍj, a)ll' h( me\n gewmetri¿a kaiì a)strologi¿a peri¿ tina fu/sin ei¹si¿n, h( de\ kaqo/lou pasw½n koinh/Ÿ: ei¹ me\n ouÅn mh\ eÃsti tij e(te/ra ou)si¿a para\ ta\j fu/sei sunesthkui¿aj, h( fusikh\ aÄn eiãh prw¯th e)pisth/mh: ei¹ d' eÃsti tij ou)si¿a a)ki¿nhtoj, auÀth prote/ra kaiì filosofi¿a prw¯th, kaiì kaqo/lou ouÀtwj oÀti prw¯th: kaiì periì tou= oÃntoj v oÄn tau/thj aÄn eiãh qewrh=sai, kaiì ti¿ e)sti kaiì ta\ u(pa/rxonta v oÃn. Aqui fica claro que a filosofia segunda não deve necessariamente se ocupar

somente da essência sensível sem consideração ao ente enquanto ente, contrariamente ao

que Mansion70. Na verdade, a filosofia que for considerada primeira terá a tarefa de

estudar o ente enquanto ente, mas também a filosofia segunda. Apenas que a

universalidade caberá àquela que for considerada primeira em dois sentidos: a) porque tal

saber se ocupa da essência mais eminente, que determina as causas de todas as demais e b)

os princípios do ente enquanto ente encontrarão expressão mais perfeita em tal saber,

posto que seu objeto goza de maior autonomia relativamente ao não-ente e ao ente

concomitante.

70 Mansion, 1958 pág. 151.

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Assim, no âmbito da ordem geral das ciências, geometria e arimética são

abarcadas pelo gênero da matemática universal, a ciência do ente enquanto quanto, isto é,

enquanto pura quantidade. A geometria ocupa aqui o lugar de ciência da quantidade

extensa, que nada mais são que as linhas, planos e sólidos, enquanto a aritmética trata da

quantidade inextensa, ou seja, os números e suas propriedades necessárias71.

Acima deste gênero de ciência se acha o da ciência do ente enquanto ente, isto é, a

ciência do puro ente, concentrada necessariamente no ente em sentido mais eminente: a

essência. Como há duas essências, a sensível e a supra-sensível, haverá também duas

possibilidades de concentrações para os princípios da ciência do ente enquanto tal, o que

significa: duas ciências do ente enquanto ente: a) aquela do ente enquanto ente separado

fisicamente, ou seja, existente de fato e independentemente da abstração e b) aquela do

ente enquanto ente separado da matéria, respectivamente, a física e a teologia.

Seguem agora duas observações que surgem naturalmente acerca do nexo entre as

noções de ente enquanto ente, ente separado e suas implicações para o escopo de uma

filosofia primeira.

1) Filosofia primeira é uma expressão propositadamente ordinal, pois o intuito de

Aristóteles, embora não fosse a ambigüidade, foi estabelecer o significado criteriológico

da expressão para a qual deveria ser encontrado seu correlato objetivo, ou seja, a exata

filosofia que corresponderia ao "ser primeiro" da expressão. Da mesma forma deveremos

entender a essência primeira.

2) A unidade metológica da ciência aristotélica é menos rigorosa que a da ciência

de Platão, embora - e justamente por isso - a unidade objetiva de sua ciência seja maior,

71 Para um maior aprofundamento da questão acerca da natureza dos objetos geométricos e aritméticos, é muito útil uma leitura atenta do Livro XIII da Metafísica, particularmente o capítulo três.

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pois trata do um mais fundamental, o um numérico: o indivíduo. O um de que trata Platão

é aquele que se aplica homogeneamente a tudo quanto é, pois tudo o que é é um. Por isso

não há problema, para o mestre ateniense, em uma distinção entre método e objeto da

filosofia mais excelente. A unidade separativa de Aristóteles, por seu turno, o força a,

partindo do estudo da unidade de todo ente – natureza e escopo da filosofia primeira –

conectá-lo, em seguida, ao estudo do que é um em sentido mais pleno: o indivíduo. Além

disso, como há vários graus de separabilidade individual, o Filósofo também se vê

obrigado a estabelecer a conexão deste escopo metafísico com o indivíduo separado em

máximo grau: o motor imóvel, indivíduo absoluto.

A perplexidade de Mansion, relativamente à íntima ligação entre a ciência do ente

enquanto ente e a ciência do ente separado, em Metafísica XI, não seria compartilhada

por Aubenque, que afirma:

"Se a separação comprometia em Platão, e mais ainda em Espeusipo, a unidade

do mundo e do ente, ela se torna, paradoxalmente, e em um outro sentido, em Aristóteles

o princípio mesmo da unidade.”72

Ora, estabelecido assim o modo como as noções de ente, enquanto enquanto ente,

separação e indivíduo se conectam na filosofia aristotélica, estamos preparados para

entender de modo satisfatório o mais seguro dos princípios, aquele que está na base da

ciência do ente enquanto ente. Aristóteles fornece tal princípio logo após determinar o

horizonte investigativo desta ciência, cuja problemática discutimos acima. Vimos que a

noção de ente enquanto ente vai desde a acepção universal, própria de tudo o que é, até a

acepção mais estrita do que é sentido nuclear: a essência e o indivíduo. Logo, o princípio

universal do ente enquanto ente também conterá estes dois vetores, a saber, o que vai do

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universal até o indivíduo e o que vai do indivíduo ao universal. O primeiro destes vetores

é que mais se adequa ao escopo do que Aristóteles denomina “ciência efetiva” que, como

vimos acima, trata, preferencialmente, do indivíduo. Deste modo, não devemos nos

surpreender que o Filósofo lance mão de argumentos puramente centrados em instâncias

individuais, como o motor imóvel, por exemplo. A mera existência de algo imóvel já é

motivo, em certo momento, para comprovar o “mais seguro dos axiomas”. E tal essência,

que descobriremos, no devido lugar, ser o indivíduo absoluto, é a expressão mais

derradeira deste princípio. Na verdade, a individualidade não-contraditória do motor

imóvel representa uma prova tão cabal deste princípio quanto às demonstrações acerca da

contraditoriedade de toda enunciação em geral, as quais ocupam todo o projeto

ontológico do livro G. É que, se há uma única essência que escapa totalmente do devir

universal – logo, a toda a contradição – não há mais como defender a tese de que a

contradição está radicada na própria natureza do ente enquanto ente. Logo, em qualquer

instância que fosse possível detectá-la, o seria por qualquer motivo, exceto em razão do

ser mesmo da coisa.

Como última reflexão desenvolvida neste capítulo, que trata da unidade da ciência

do ente enquanto ente, temos então de remeter ao princípio máximo do ente assim

considerado: o princípio de não-contradição. Não deve escapar também sua relação com

a doutrina do motor imóvel, relação esta que será ainda mais aprofundada no devido

capítulo acerca da unidade própria do motor imóvel.

No livro G da Metafísica, portanto, Aristóteles investiga os princípios da ciência

primeira. Após fornecer uma definição desta ciência e distingui-la de outras formas de

72 (1962, pág. 409)

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saber, o autor segue no estudo dos primeiros princípios que a determinam. Considera,

antes, os caracteres próprios destes princípios. Ou seja, os requisitos que devem

preencher para atuarem, efetivamente, como princípios. Estes requisitos são dois: a) os

princípios devem ser os mais bem conhecidos de todos (gnwrimwta/thn te ga\r

a)nagkaiÍon eiånai th\n toiau/thn) (1005b13); b) não podem ser hipotéticos (tou=to

ou)x u(po/qesij:) (1005b15). Este decorre necessariamente do primeiro. Um princípio

que deve ser o mais bem conhecido por todos não pode ser uma hipótese. Cada um deve

sabê-lo imediatamente.

Aristóteles conclui que o único princípio que realmente satisfaz tais exigências,

não sendo passível de engano sob qualquer hipótese é este: “o mesmo não pode, ao

mesmo tempo, estar presente e não estar presente no mesmo com relação ao mesmo” (to\

ga\r au)to\ aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½ au)t%½ kaiì kata\

to\ au)to/) (1005b19). Este princípio elimina a possibilidade da contradição, ou seja, a

presença simultânea, em um mesmo ente, de entes que se excluem mutuamente. O

Filósofo aponta Heráclito como um dos pensadores que tentam violar este princípio em

sua filosofia, pois é conhecido por alguns como um de seus pensamentos o de que os

entes sejam e não sejam o que são. Mais precisamente: que um mesmo ente tenha e não

tenha, ao mesmo tempo, determinado atributo ou propriedade. Contra esta forma de

pensar, própria de muitos físicos em sua época, Aristóteles impõe uma série de refutações.

O que realmente importa nas mesmas é o objetivo último de suas formulações. Este

objetivo pode ser definido como a determinação do primeiro princípio a que está

submetido o vir-a-ser das coisas e dos pensamentos correspondentes, condição sine qua

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non de ambos. Portanto, situa-se simultaneamente nas duas esferas. Esta é uma

característica recorrente no pensamento do Estagirita. Não esqueçamos o que diz o livro

D da Metafísica, quanto à quarta significação da noção de limite: “a essência, quer dizer,

a essência de cada coisa: esta é, com efeito, o limite do conhecimento, e, se o é de

conhecimento, também o é da coisa.” (th=j gnw¯sewj ga\r tou=to pe/raj: ei¹ de\ th=j

gnw¯sewj, kaiì tou= pra/gmatoj.) (1022a9). Esta ambivalência da essência, que detém

uma verdade simultaneamente ontológica e epistemológica, está presente no uso de outro

termo caro ao Filósofo: o enunciado (logos). Na seção “vocabulário de tradução”,

justificamos nossa opção por este termo português para traduzir o vocábulo grego. Ali

também explicamos a dualidade ontológico-epistemológica de logos, assim como outras

possibilidades de sua aplicação semântica. O que nos importa aqui é destacar, não

obstante a referida ambivalência, que o uso primordial devia estar mesmo reservado ao

ato significante propiciado pela linguagem: ou seja, o enunciado. Ocorre que tal uso foi

estendido mesmo à esfera das coisas significadas e a sua estrutura interna, como o caso

da essência que, como vimos acima, se trata de uma estrutura imanente às coisas, embora

também signifique o resultado das enunciações cognitivas que obtemos a partir desta

estrutura. Assim, a própria essência de uma coisa pode ser expressa em um enunciado, e

este pode significar tanto o modo verbalizado como apreendemos sua estrutura, como a

estrutura mesma da coisa.

Mas a estrutura enunciativa é mais ampla do que a estrutura essencial. Toda

essência possui um enunciado determinado, que é sua definição (ver Livro VII), mas nem

todo enunciado se refere a uma essência. Deste modo, se o objetivo do livro G é

estabelecer um princípio válido para todo ente enquanto ente, e não somente para o ente

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enquanto ente enquanto separado – isto é, a essência – é claro que deverá tratar das

condições de possibilidade de todo enunciado e objeto enunciável, para então descobrir a

condição mais fundamental de todas, isto é, o mais seguro dos princípios.

Assim, com exceção da parte inicial em que o Filósofo estabelece a problemática

da ciência do ente enuquanto ente, todo Livro G pode ser visto como uma coletânea

sistemática de refutações às doutrinas que negam a unidade separativa de cada enunciado

possível. Deste modo, as refutações também se inserem todas neste domínio, ou seja, são

refutações a partir do mero ‘enunciar’ de algo. Aristóteles pretende salvarguar a unidade

do enunciado e de seu correspondente ontológico lançando mão, tão somente, da própria

estrutura enunciativa, pois ela nos revela, como vimos acima, o essencial do ente.

Embora Aristóteles tenha investigado uma gama considerável de enunciados,

podemos classificá-los em dois grandes gêneros: o enunciados propriamente ditos, isto é,

os enunciados próprios da inteligência e do discurso, e os enunciados que assim

denominamos analogicamente, a saber, os dados apreendidos pela sensação. Embora aqui

Aristóteles não se refira aos últimos como instância deste tipo, em seu De Anima lemos

claramente sua constatação acerca da semelhança estrutural entre a sensação e e o

enunciado. Ali a sensação é descrita como uma certa potência enunciativa73 (lo/goj tij

kaiì du/namij e)kei¿nou), e não como se o lo/goj ali referido como significasse tão

somente uma certa relação ou proporção entre qualidades sensíveis contrárias.

Anteriormente a tal relação entre contrários, há uma potência imanente e condicionante,

73 DA, 424a27

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articulando os contrários de modo semelhante a uma articulação verbal, enunciativa. Daí

o uso do termo lo/goj naquela passagem, que traz em si tal possibilidade semântica74.

Sendo assim, Aristóteles deve tornar manifesto o caráter uno e separado de cada

uma das espécies destes dois grandes gêneros de enunciados, que chamaremos aqui de

enunciados inteligíveis e enunciados sensíveis. Cada enunciado, no ato mesmo de sua

efetivação, deve excluir terminantemente seus contrários. Em outras palavras: o

enunciado é divisível pelas partes que o compõem, mas não divisível por si mesmo. O

enunciado é um consigo mesmo, não podendo, o ato mesmo de sua enunciação, ser

contrário a si mesmo. Com efeito para que um enunciado significasse que o mesmo está

presente no mesmo ao mesmo tempo e segundo o mesmo' seria preciso que o próprio ato

de sua enunciação enunciasse sua não enunciação, o que é impossível. Significaria

enunciar que agora que digo cão enunciando (me referindo a) este cão, não estou

enunciando cão para enunciar este cão. Mas nenhum ato enunciativo pode enunciar sua

própria não-enunciação no instante mesmo com que enuncia.

Detenhamo-nos, no momento, aos dados sensíveis, cujo caráter enunciativo

apenas vislumbramos acima, para entender exatamente a natureza de sua unidade

separativa.

Aristóteles afirma, no De Anima, que a sensação é uma espécie de enunciado ou

algo semelhante ao enunciado. Isto pode parecer muito estranho sob um primeiro enfoque,

razão pela qual muitos preferem traduzir a passagem correspondente assim: “a sensação é

uma certa relação”. Com isso se pretende que o termo logos aqui é usado apenas no

sentido genérico de relação ou proporção, em nada se referindo ao ato enunciativo. Esta

74 Acerca da mesma temática, é muito interessante a abordagem fenomenológica de Barbara Cassin.

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tendência se deve ao fato de não ter sido encontrado o modo de semelhança entre o

enunciado verbal e o enunciado sensível.

Quando o som é ouvido, isto é, captado pelo sensório, este efetiva algo

semelhante a uma enunciação. Com efeito, a cognição de algo formado a partir da

mistura de propriedades contrárias é semelhante à unidade na multiplicidade, própria de

toda enunciação. O sensório fornece à cognição a informação de que a parte dominante e

efetiva deste som é aguda, o que equivale à informação de que a parte dominada e

potencial deste som é grave. Há, portanto, um todo informativo equivalente a um só

enunciado: som agudo mesclado com grave. Ora esta vale como que sendo a definição

deste com, embora não seja realmente uma definição, mas sua correlata sensível.

Ora, quanto mais a sensação é semelhante a um enuciado, mais agradável ela será,

principalmente quando se aproximar do enunciado determinado enquanto tal: a definição.

Isto quer dizer que aqueles sons cuja audição é facilmente definível proporcionam um

prazer, inversamente àqueles que são menos passíveis a tal procedimento. É como se a

sensação em geral preparasse, na medida, do possível, a função inteligível da definição.

O caso extremo de um som sem equilíbrio entre contrários, além de não produzir prazer,

é algo doloroso para o órgão sensório e destrutivo para a sensação:

“Por isso, qualquer excesso – ou de agudo, ou de grave – destrói a audição, bem

como o excesso dos sabores destrói a gustação, e, no caso das cores, o

demasiado brilhante e tenebroso destrói a visão, e o odor forte, tanto como o

doce e o amargo, destrói o olfato; pois a sensação é um certo enunciado.”

(426a27)

(Cassin, 1999, pág. 165)

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kaiì dia\ tou=to kaiì fqei¿rei eÀkaston u(perba/llon, kaiì to\ o)cu\ kaiì to\ baru/, th\n a)koh/n: o(moi¿wj de\ kaiì e)n xumoiÍj th\n geu=sin, kaiì e)n xrw¯masi th\n oÃyin to\ sfo/dra lampro\n hÄ zofero/n, kaiì e)n o)sfrh/sei h( i¹sxura\ o)smh/, kaiì glukeiÍa kaiì pikra/, w¨j lo/gou tino\j oÃntoj th=j ai¹sqh/sewj.

Mas o decisivo aqui é a ruptura da enunciação determinada. Agora o que poderia

ser identificado desde a parte dominante aguda até a peculiaridade proporcionada pela

dose mínima de grave perde então esta distintividade. Torna-se uma simples efetividade

do agudo. Ora, para o senciente isto significará uma sensação desagradável. Embora aqui

ainda haja, aparentemente, uma semelhança com a enunciação, pois esta sensação

equivale ao enunciado "o som é agudo", a analogia é muito imprecisa, pois todo

enunciado é composto de partes, o que não se verifica aqui no que diz respeito a sensação

em si mesma. Assim, embora seja possível o enunciado "o som é agudo", não há um

enunciado possível análogo à sensação mesma deste som, ou seja, uma certa definição do

som. Uma definição no sentido estrito sempre envolve um gênero e uma diferença

específica. No caso, como não se trata de uma definição no sentido rigoroso, mas de um

análogo sensível, bastaria que pudéssemos encontrar, na sensação, uma relação

semelhante àquela presente em uma definição do tipo “triângulo que possui um ângulo

reto’. O gênero triângulo é um primeiro contato com a natureza do objeto, mas seu

enunciado definitório só estará completo se acrescentarmos a diferença específica

‘possuir um ângulo reto’. No caso anterior, "som agudo" seria um análogo ao gênero,

enquanto "mesclado com grave" vale como diferença. A semelhança com uma definição

é princípio de prazer para a sensação. Quanto mais a sensação antecipa a forma ordenada

e discriminada da enunciação propriamente dita, maior será o prazer proporcionado pelo

seu advento. A sensação, assim como a enunciação, embora em sentido apenas análogo,

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atinge a perfeição quando aprende algo determinado, isto é, com certa articulação patente.

Daí que Aristóteles sinta-se à vontade de se referir à sensação como uma potência

enunciativa. De fato, o lógos é não apenas um enunciado, mas também uma potência

articuladora de enunciação, semelhante às potências sensoriais apreendedoras de relações

bem articuladas e proporcionais nos dados sensíveis.

E o que dizer do caso extremo de um sensível cuja propriedade é tão intensa que

destrói o sentido? A respeito ao sentido do tato, Aristóteles escreve:

“Todo excesso do objeto sensível arruína o órgão sensorial; e, da mesma

maneira, o tangível arruína o tato, que é aquele pelo qual se define o animal.”

(435b12)

panto\j me\n ga\r u(perbolh\ ai¹sqhtou= a)naireiÍ to\ ai¹sqhth/rion, wÐste kaiì to\ a(pto\n th\n a(fh/n, tau/tv de\ wÐristai to\ z%½on:

Se a sensação é semelhante a uma enunciação, está claro que a faculdade sensorial

correspondente é semelhante à faculdade enunciativa com um todo. E se determinados

sensíveis cuja composição qualitativa é pouco equilibrada rompem o enunciado, desde o

ponto da anulação do prazer até o momento doloroso, não devemos nos surpreender que,

em seu limite, tal desproporção qualitativa venha a destruir, não somente o análogo

enunciativo, mas também a análoga faculdade enuciativa enquanto tal pela destruição do

próprio instrumento condicionante desta faculdade, ou seja, o próprio órgão sensorial

correspondente. Deste modo, elevando até o máximo de sua intensidade o som agudo que

em seu primeiro momento havia sido agradável, ocorre algo mais radicalmente destrutivo:

a ruptura da possibilidade de enunciação.

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Ora, se a sensação realmente é análoga a um enunciado verbal, ou algo cuja

estrutura muito se assemelha a tal coisa, o princípio acerca de todo enunciado também se

aplica ao seu âmbito. Nenhuma sensação pode enunciar algo que está presente e não está

presente no mesmo, ao mesmo tempo e segundo o mesmo. Toda sensação deve enunciar

sua própria natureza interna, em detrimento de tudo que signifique sua não-enunciação.

A enunciação sensível é relativa a algo único, pois se refere a um dado sensível

que, independente de ser predicado do sujeito suposto, é este algo determinado e não

aquela outra. Embora o ser das cores não possa ser apreendido pela definição, isto não

significa que não haja uma determinação em cada uma das cores, que consiste na

imediata separação de uma cor de qualquer outra além dela. A cor vermelha percebida,

mesmo que não pertença ao objeto suposto pelo indivíduo senciente, ainda assim pode ser

distinguida desta outra cor, a cor verde, por exemplo. A sensação da cor é como um

enunciado que efetiva a si mesmo, uma auto-enunciação.

No entanto, não devemos restringir o princípio autológico da não-contradição ao

domínio do puro instante auto-positivo de todo devir, isto é, à autologia originária que

condiciona a possibilidade de toda alteridade. Este princípio também se aplica, e ainda

com mais vigor, aos entes que duram mais do que um instante e, principalmente, aos que

o fazem autonomamente. Em outras palavras, o princípio autológico expresso na

contradição do ente é ainda mais nítido no enunciado que determina a essência.

Uma essência possui um enunciado definitório, cuja unidade decorre de si mesma.

Por exemplo: no enunciado de homem, animal racional, a união dos dois termos é

condicionada pela própria natureza de cada um dos termos, pois é racional é uma

determinação possível do próprio animal enquanto animal. Ao contrário, no enunciado

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homem branco, há uma unidade apenas concomitante, pois não há nada no ser de homem

enquanto homem que seja determinável pelo acréscimo da brancura. Portanto, tal

diferença não se encontra no próprio homem em si mesmo, não está unificada com seu

ser, mas apenas ao seu 'ser na matéria'. Se estabelecemos animal racional como o

enunciado de homem, tal enunciado não pode ser verdadeiro juntamente com as negações

animal não-racional ou não-animal racional ou não-animal não-racional. Tal

possibilidade é interdita em dois âmbitos: a) o da pura referência a um termo único e

prefixado, que não pode ser outro no instante em que é prefixado; b) o da unificação

intrínseca do enunciado definitório, que dispensa outro ente para ser efetivada, sendo um

enunciado de si para si. Ora, no caso da pura auto-enunciação de uma qualidade sensível,

por exemplo, não há uma autonomia enunciativa efetiva, pois, embora a qualidade em si

mesma seja idêntica a si, seu ser concreto (synolon) é sempre relativo à outro ser

autônomo ao qual está unido segundo uma unidade não necessária e, portanto, variável na

duração do tempo.

O lógico Jan Lukasiewicz, em seu célebre artigo sobre o princípio de não-

contradição, escreveu:

"Na melhor das hipóteses, a lei da contradição teria sido fundamentada

apenas para um domínio muito limitado de objetos, a saber, para a” essência

“das coisas ou para a substância. A sua validade para os concomitantes

permaneceria em questão. - Que Aristóteles nesta demonstração esteja de fato

vindicando a lei da contradição para as substâncias isto resulta, por exemplo, da

seguinte passagem" - E assim haverá algo que designe a essência. Mas, se é

assim, então foi dada a prova de que é impossível predicar contraditórios ao

mesmo tempo.”75

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Embora não pretendamos seguir aqui o curso da investigação do lógico polonês,

que, aliás, radicaliza para o completo abandono de tal princípio na esfera da não-essência,

que este seja um ensejo para que percebamos a necessidade de uma discussão mais

aprofundada da unidade da essência, unidade essa que surge naturalmente como o passo

seguinte da unidade separativa ainda precária estabelecida pelo princípio de não-

contradição no domínio do puro ente, ou do ente enquanto ente. O devir universal,

principal obstáculo à demonstração aristotélica da unidade do ente, e que levou Crátilo a

afirmar - transcendendo Heráclito - que não é possível entrar no mesmo rio sequer uma

vez, perde muito de sua força contraditória quando entramos na esfera henológica da

essência. Até aqui vimos tão somente a unidade enunciativa da essência, enquanto

conceito que apreende o aspecto essencial do ente. Investiguemos agora se há um fato

ontológico peculiar de sua unidade separativa.

75 Lukasiewicz, 1910, pág. 12.

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UNIDADE DA ESSÊNCIA A essência é a parte primeira, tanto se o cosmos é tomado como uma série, como se

tomado como um todo, ou seja, como tendo uma ordem, pois tal ordem é devida ao

primeiro motor.

O estudo da unidade da ousia em Aristóteles requer duas abordagens

complementares, sem as quais todo a preponderância deste conceito não seria

devidamente clarificada. A essência é a) unificada, quer dizer, possui uma determinada

coesão interna que a distingue dos outros entes; e b) unificante, o que significa ser

promotora da unidade dos entes e do sistema dos entes: o cosmos. Sendo assim,

seguiremos em aprofundar estas duas faces originárias da essência.

Caráter Unificado da Essência

A essência é algo uno, mas a razão de sua unidade não é bem clara no ato de

determinação do enunciado (lo/goj) de seu ser-pévio (to\ ti¿ hÅn eiånai).

“Refiro-me à seguinte perplexidade: por que é uma unidade aquilo cujo

enunciado (lo/goj) dizemos ser uma definição, por exemplo, no caso do homem,

animal bípede? (digamos que seja esta a definição de homem). Por que, então,

‘animal bípede’ é um e não múltiplo?” (VII 1037b9).

le/gw de\ tau/thn th\n a)pori¿an, dia\ ti¿ pote eÀn e)stin ou to\n lo/gon o(rismo\n eiånai¿ famen, oiâon tou= a)nqrw¯pou to\ z%½on di¿poun: eÃstw ga\r ouÂtoj au)tou= lo/goj. dia\ ti¿ dh\ tou=to eÀn e)stin a)ll' ou) polla.

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Como duas realidades distintas – animal e bípede, este caso – expressos por

enunciados distintos, podem formar uma mesma realidade, ou seja, algo único? O

enunciado resultante, por si mesmo, não revela tal unicidade, pois é uma combinação de

partes distintas. O caráter enunciativo, portanto, é incompleto no sentido de representar a

unidade da coisa, embora seja um instrumento razoável de apreensão de sua

complexidade.

A questão, na verdade, é saber o modo de unidade do ser-prévio de algo. Ora, no

livro VII da Metafísica o Filósofo revela o modo de expressão enunciativa do aspecto

complexo da coisa:

“Dado que a definição é um enunciado (lo/goj) e que todo enunciado tem

partes e, por outro lado, dado que o enunciado, relativamente à coisa, tem as

mesmas relações que suas partes têm com relação às partes da coisa, põe-se o

problema de saber se é necessário que o enunciado das partes esteja presente no

enunciado do todo ou não.” (VII 1034b20).

¹Epeiì de\ o( o(rismo\j lo/goj e)sti¿, pa=j de\ lo/goj me/rh eÃxei, w¨j de\ o( lo/goj pro\j to\ pra=gma, kaiì to\ me/roj tou= lo/gou pro\j to\ me/roj tou= pra/gmatoj o(moi¿wj eÃxei, a)poreiÍtai hÃdh po/teron deiÍ to\n tw½n merw½n lo/gon e)nupa/rxein e)n t%½ tou= oÀlou lo/g% hÄ ouÃ.

O ser-prévio de algo é sempre expresso nas partes da definição. Aristóteles afirma

que cada parte da definição deve corresponder a uma parte do definido, assim como o

todo da definição corresponde ao todo do definido A aporia consiste no modo pelo qual o

composto gera o simples, como as partes da definição, quer dizer, o seu conjunto de

termos constituintes na forma de gêneros e diferenças essenciais – que são partes

respectivamente correspondentes às partes do ser-prévio da essência – geram a unidade

deste ou daquele ente particular, tornando possível a referência a uma única coisa. Neste

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ponto, o Filósofo apela para a unidade contínua de matéria e forma e gênero e espécie

segundo efetividade e potência. Ocorre que o gênero nos informa sobre a matéria de algo

e a espécie o faz concernente à sua forma. Um homem, por exemplo, tem como matéria o

corpo animado, que na verdade nos informa também sobre seu gênero, ao passo que o

animal racional - o gênero acrescido da diferença específica - revela sua forma inerente.

Tais dicotomias, contudo, são mais de razão que de fato. A forma nada mais é que a

própria matéria em efetividade e a espécie, por conseguinte, representa o gênero de um

modo determinado, até porque não há gêneros à parte de suas espécies, nem matéria

alguma abstraída de toda enformação, ainda que uma forma sem matéria possa e deva

existir, o que na verdade é o escopo do livro L. O último caso, porém, em nada interfere

na proposta aristotélica de esclarecer o modo de unidade da essência. Com efeito, isto só

era problemático nos entes cuja matéria e forma eram expressos distintamente na

definição, o que trazia à superfície a possibilidade destes dois fatores jazerem distintos no

próprio objeto expresso na definição - a essência. Mas é justamente tal possibilidade a ser

agora descartada.

A investigação acerca da essência deve respeitar dois critérios. Vejamos a razão

disso.

O Filósofo escreve:

“A essência é tomada segundo dois significados: a) o que é sujeito último,

o qual não é predicado de outra coisa, e b) aquilo que, sendo algo determinado,

pode também ser separado, como a estrutura e a forma de cada coisa”.

sumbai¿nei dh\ kata\ du/o tro/pouj th\n ou)si¿an le/gesqai, to/ q' u(pokei¿menon eÃsxaton, oÁ mhke/ti kat' aÃllou le/getai, kaiì oÁ aÄn to/de ti oÄn kaiì xwristo\n vÅ: toiou=ton de\ e(ka/stou h( morfh\ kaiì to\ eiådoj.

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Três termos são decisivos nesta passagem: sujeito (u(pokei¿menon), separado

(xwristo\n) e algo determinado (to/de ti)

A essência , em Aristóteles, deve ser um sujeito. Cabe, no entanto, perceber dois

sentidos em que isto deve ocorrer:

a) A essência é um sujeito lógico, porquanto não se diz de um sujeito. Este

homem não se diz de algum sujeito, ou seja, aquele homem não é este homem. No

entanto, também um mero acidente, como a brancura, não se diz de um sujeito: este

homem não é brancura, mas branco. Portanto, não basta ser indivíduo lógico para ser uma

essência.

b) A essência é sujeito ontológico, isto é, não se diz em um sujeito. A essência é

sujeito. Este cavalo não está em um sujeito, pois se refere somente a si mesmo, de modo

que aquele cavalo, assim como qualquer outro, não é este cavalo. No entanto, o gênero

também não está em um sujeito, pois não dizemos que animal está no homem, mas

dizemos de homem que é animal. O gênero é dito de um sujeito, mas não em um sujeito.

Portanto, não basta ser sujeito ontológico para ser essência. Até mesmo a matéria, e

principalmente esta, é sujeito ontológico, além de ser sujeito lógico, já que podemos dizer

‘a madeira é esférica’. Neste caso, a forma esférica é predicada da matéria-madeira.

Estas duas instâncias caem no âmbito da subjacência. A subjacência máxima

(atingida pela matéria), não é suficiente para reconhecermos a essência, pois esta deve ser

tóde ti, um isto. A matéria, embora seja o sujeito último, deve ser acompanhada de outra

nota ontológica para que possa ser reconhecida como essência, ou seja, como ‘um isto’.

Ela deve ser delimitada pela forma. E a forma, como nos informa o livro D da Metafísica

é um limite. Somente após sofrer a demarcação de um limite, a matéria pode assumir o

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caráter de um ente determinado entre outros entes, superando assim o estado de puro

homogêneo, massa informe. A forma é justamente o limite por excelência, pois é aquele

que possibilita tal essencialiação. Para os entes sensíveis, forma e matéria dotam um ao

outro, cada qual em um nível, do caráter de separado (chóriston). É que a matéria

enformada passa a se distinguir da massa homogênea outrora circundante. Ela se separa

do restante material. A forma materializada, por outro lado, adquire a prerrogativa de

existência separada do pensamento. A forma material existe de fato por si só, ainda que

não seja objeto de intelecção.

A matéria, assim, ainda que sujeito último, não pode ser conhecida por si mesma,

justamente porque, em si mesma, é indeterminada (ápeiron):

"Existem partes da forma (por forma entendo o ser-prévio), existem partes

do concreto de matéria e forma e existem partes também da matéria. Mas há

(lógos) somente da forma. [...] A matéria, por si é incognoscível." (1036a5)

me/roj me\n ouÅn e)stiì kaiì tou= eiãdouj (eiådoj de\ le/gw to\ ti¿ hÅn eiånaiŸ kaiì tou= suno/lou tou= e)k tou= eiãdouj kaiì th=j uÀlhj <kaiì th=j uÀlhj> au)th=j. a)lla\ tou= lo/gou me/rh ta\ tou= eiãdouj mo/non e)sti¿n, [...] h( d' uÀlh aÃgnwstoj kaq' au(th/n.

Não há, portanto, enunciado (lo/goj) que permita delimitar o ser da matéria.

A combinação destas duas propriedades – o ser subjacente (u(pokei¿menon) e o

caráter delimitado - são suficientes para destacar a essência em meio aos entes em geral,

pois são as duas notas distintivas do sujeito determinado, indivíduo pleno, verdadeiro

ente separado (xwristo\n).

Sendo assim, o limite (pe/raj) e o ser subjacente (u(pokei¿menon) não podem,

cada qual por si, ser a essência separada, mas o podem conjuntamente. É que cada uma

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destas duas noções se intensifica e adquire real concretude juntamente com a outra, como

se o puro determinado e o puro subjacente tivessem, ao menos no âmbito da matéria,

genuína possibilidade de efetividade. O puro singular é o designado (esta cor branca, por

exemplo), o delimitado, quer dizer, o que sofreu a imposição do limite (pe/raj), que não

pode ser separado (xwristo\n), pois não é sujeito de nada, subsistindo sempre em um

outro determinado (to/de ti) que lhe serve de sujeito (u(pokei¿menon); o puro sujeito é a

matéria (uÀlh), que também não pode ser separada, pois não é determinada por si mesma,

necessitando de outro sujeito que lhe torne algo determinado, pois em si mesma é

puramente indeterminada (aÃpeiron). A forma assumida pela matéria – forma que

Aristóteles aponta como o limite da essência - embora não seja o sujeito último, é o

sujeito determinante do sujeito material.

A essência é separada (xwristo\n) porque é, simultaneamente delimitada e

subjacente (u(pokei¿menon), sem ser qualquer uma das duas em seu mais alto grau. De

fato, a essência é, de certa forma, ilimitada, em virtude do elemento material que lhe dá

suporte, mas que também lhe impede - porquanto a matéria é sempre potencial - a firme

limitação da efetividade plena. Da mesma forma, a ou)si¿a não é o sujeito último, tal

título, como vimos acima, cabendo à matéria.

Delimitação e subjacência são, pois, vetores opostos e convergentes no sentido da

determinação da essência, limitando-se reciprocamente para a síntese do separado

(xwristo\n) efetivo, distintivo da essência. Na verdade, esta tensão formadora da

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essência se revela no próprio to/de ti, expressão especialmente cunhada por Aristóteles

para tal fato ontológico. Acerca da peculiaridade de to/de ti, Mesquita76 escreve:

“Ora, a originalidade de to/de ti reside precisamente no fato de envolver duas

notas distintas e, no uso que Aristóteles faz dele, ultimamente contrastantes: a

(irredutibilidade) individual e a determinação (universalizadora)”.

Restam, duas únicas alternativas, que igual título reflectem esta dualidade:

c) to/de ti = um certo isto;

d) to/de ti = este algo.

Ambas são gramaticalmente possíveis, embora pois razões opostas.

Na primeira, o caráter individualizador é atribuído ao pronome indefinido ti

(aqui: «um certo») e o carácter determinante ao pronome demonstrativo to/de

(aqui: «isto»).

Na segunda, o caráter individualizador é introduzido por to/de («este») e o

carácter determinante por ti («algo»).”

Ora, penso que nos dois casos o caráter determinante da expressão é fornecido por

to/de, traduzido por isto, no primeiro caso, e por este, no segundo. Na verdade, o

propósito do Filósofo ao focar este aspecto da essência seria totalmente satisfeito apenas

com to/de, dispensando o ti indeterminador, não fosse materialidade de quase todas as

essências, além da potência multiplicadora que lhe é inerente, que não permitiria definir a

essência como o puro "este", isto é, isto que prontamente é identificado pela mera

estrutura unificada que o distingue da esfera da não-essência, o conjunto dos entes geral.

Ao contrário, a essência não é apenas "isto aqui", mas também tudo aquilo que tiver o

mesmo caráter de isto, ou seja, “algum isto”, este ou aquele isto. Daí que se introduza o

76 Mesquita, 2005, p. 530.

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ti na expressão, carregando a marca da indeterminação da matéria, a qual põe o to/de

como superposto a um sujeito material (u(pokei¿menon), além de garantir que predicados

materiais - como branco e quente - ao to/de se aplicam como que a um sujeito lógico e

ontológico.

Temos que abordar o problema da determinação e subjacência da essência em

dois âmbitos distintos, o das essências sensíveis e o das essências supra-sensíveis,

respectivamente da Física e da Metafísica, as duas ciências que, no Livro VI da

Metafísica, superam a Matemática quanto à dignidade de seus objetos e 'rivalizam' no

sentido de uma decisão quanto à verdadeira identidade da ciência que merece o título de

Filosofia Primeira. Se os dois referidos aspectos são constitutivos da essência, o modo

como a constituem em cada âmbito do cosmos informará acerca da existência de uma

hierarquia cósmica do ente e do sentido e critério de sua efetividade.

Seja A o nível das essências sensíveis e W o nível das essências supra-sensíveis,

os motores imóveis:

(A) Aqui a essência é o composto de matéria e forma. A segunda determina a

primeira, valendo, pois, como seu limite.

O limite (pe/raj) limita o ilimitado (aÃpeiron) - aqui representado pela matéria -

mas também é limitado por este. É que a forma confere determinação à matéria, a qual

por si só permaneceria amorfa e indeterminada, mas, por outro lado, o princípio formal

não manifesta toda a sua natureza na matéria. Se o fizesse, não haveria mais uma mesma

forma em vários indivíduos, nem transição alguma ocorreria no indivíduo por ela

formado, pois estes dois fatos ontológicos - a multiplicidade e a transitoriedade - não

fazem parte de sua natureza. É a matéria que leva o composto a participar destes fatos,

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pois, enquanto carregando sempre o traço da indeterminação (por mais determinada que

esteja), impossibilita que o indivíduo hilemórfico assuma um grau pleno de determinação,

ou seja, que detenha um certa natureza e nela se mantenha de modo rígido, constante e

separado de qualquer fato circundante. Por si mesmo, o limite da forma seria capaz de

manter o indivíduo nesta esfera de auto-suficiência estrutural e, assim, manter sua própria

natureza imune a qualquer variação ou ameaça a sua natureza de pura fronteira,

demarcação entre seu ser e o ser inessencial do circundante. Mas como na esfera

ontológica em questão - aquela do fluxo em geral - toda individuação deve ser também

material, então a natureza temporal e espacial ilimitada da forma é limitada pela série de

vicissitudes da matéria. Tais limitações são a série de transições a que o indivíduo

formado se vê submetido, e que não estariam presentes se o seu ser fosse puro limite

formal e se encontrasse na ilimitação do tempo que constitui uma das faces da eternidade.

As limitações são o aspecto sensível da propriedade material da divisão indefinida, que

de fato multiplica a mesma forma em quantos forem os casos para tal.

Em Z3 Aristóteles deixa clara a incompatibilidade entre a subjacência e o “ser

isto” quando tais noções são tomadas em seu sentido mais extremo. Por um lado, lemos

que:

“Dissemos, em síntese, o que é a essência: ela é o que não se predica de

algum sujeito, mas aquilo de que todo o resto se predica. Todavia, não se pode

caracterizar a essência só deste modo, porque isso não basta. De fato, esta

caracterização não é clara. Ademais, nestes termos a matéria seria a

essência”.(1029a7)

nu=n me\n ouÅn tu/p% eiãrhtai ti¿ pot' e)stiìn h( ou)si¿a, oÀti to\ mh\ kaq' u(pokeime/nou a)lla\ kaq' ou ta\ aÃlla: deiÍ de\ mh\ mo/non ouÀtwj: ou) ga\r i¸kano/n: au)to\ ga\r tou=to aÃdhlon, kaiì eÃti h( uÀlh ou)si¿a gi¿gnetai.

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Quando procuramos atingir a natureza da essência apenas pela natureza do sujeito

último, do qual tudo se predica, mas que não predica de nada, fatalmente nosso critério

investigativo nos levará à matéria, que é o único sujeito a cumprir tal exigência. Mas

então deveríamos reconhecer a matéria como a própria essência. Contudo, cabe a

pergunta: o ser da matéria corresponde ao que podemos esperar de uma essência?

Vejamos o que o Filósofo entende por matéria:

“Chamo matéria aquilo que, por si, não é nem alguma coisa nem uma quantidade

nem qualquer outra das determinações do ente. Há, de fato, algo do qual cada

uma destas determinações é predicado: algo cujo ser é diferente do ser de cada

uma das categorias. Todas as outras categorias, com efeito, são predicadas da

essência e esta, por sua vez, é predicada da matéria. Assim, este termo, por si,

não é nem algo determinado, nem quantidade nem qualquer outra categoria: e

não é nem sequer as negações destas, porque as negações só estão presentes por

concomitância.” (1029a20)

le/gw d' uÀlhn hÁ kaq' au(th\n mh/te tiì mh/te poso\n mh/te aÃllo mhde\n le/getai oiâj wÐristai to\ oÃn. eÃsti ga/r ti kaq' ou kathgoreiÍtai tou/twn eÀkaston, %Ò to\ eiånai eÀteron kaiì tw½n kathgoriw½n e(ka/stv (ta\ me\n ga\r aÃlla th=j ou)si¿aj kathgoreiÍtai, auÀth de\ th=j uÀlhjŸ, wÐste to\ eÃsxaton kaq' au(to\ ouÃte tiì ouÃte poso\n ouÃte aÃllo ou)de/n e)stin: ou)de\ dh\ ai¸ a)pofa/seij, kaiì ga\r auÂtai u(pa/rcousi kata\ sumbebhko/j.

A subjacência se opõe ao “ser isto”, quer dizer, quanto mais subjacente, menor é o

caráter de “isto”. Daí que o sujeito (u(pokei¿menon) primeiro não seja um to/de ti, ou

seja, um isto determinado. A matéria absoluta, separada de qualquer forma, não existe,

mas, se existisse, não teria um caráter de 'isto', justo porque seu caráter de sujeito seria

ilimitado.

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A diferença que especifica a essência é diferenciada pela matéria (uÀlh)

indiferenciada , o que significa: a matéria é princípio de individuação. Toda a diferença

depende de uma indiferença prévia. O artesão que modela seu vaso diferencia esta massa

de matéria-prima daquela excedente, somente porque previamente havia algo para ser

submetido a tal processo, e que se encontrava em estado de indiferenciação relativamente

à estrutura que viria a ser aplicada a uma parte da massa total. Ora, a mesma diferença

estrutural aplicada agora a uma parte da massa pode também ser aplicada a outra parte da

mesma ou de outra massa de natureza material compatível com a técnica do artesão, o

que possibilita a geração de outros compostos diferenciados, mas com a diferença agora

multiplicada em vários entes. A diferença que marca a essência específica é por si mesma

apenas idêntica a si mesma e a tal ponto que da pura cognição da mesma não deduzimos

nada além de sua pura apresentação numericamente una. Mas o fato de sua individuação

material conduz à possibilidade de seus infinitos duplos, o que já é um modo de fazer a

diferença ir além de si mesma, romper sua pura identidade numérica consigo, o que

significa, ao mesmo tempo, a diversificação de indivíduos que a assumem como marca

distintiva de sua essência.

Estas são conseqüências que bastam para percebermos nitidamente que, na esfera

sensível, o limite repousa no ilimitado, não estando, portanto, plenamente separado para

constituir, por si mesmo, uma unidade individual.

Tais noções acima apreciadas no tocante a matéria exibem o modo como o caráter

do separado (xwristo\n) é assumido pelas essência sensíveis. E ficou claro que em todos

estes aspectos a separação essencial não é completa. Agora, cabe a pergunta:

relativamente à ordem das essências supra-sensíveis, como se comportam noções como

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forma, sujeito, limite, diferença e determinação. Aqui poderemos verificar o mesmo

intercâmbio com suas contrapartes ontológicas forma, ilimitado, indiferenciado e

indeterminação, intercâmbio esse que ameaça a vigência da exigida separação?

Agora detenhamo-nos em (W), ou seja, o nível das essências supra-sensíveis.

O motor imóvel é pura forma, puro limite que toca a si mesmo, pois sua forma

não é somente inteligência enquanto dada, mas inteligência da inteligência. Mais do que

isso: não é inteligência de outra inteligência qualquer, mas inteligência desta mesma

inteligência que obtém tal intelecção. É auto-inteligência. A forma em questão, a

inteligência, não aponta para fora de si para atingir uma instância material enformada por

ela. Tal era o caso das formas sensíveis relativamente ao sujeito material. E o caso

imediatamente inferior ao que agora apreciamos, tão sutil a ponto de quase tocar nesta

esfera dos motores imóveis, é a inteligência humana. Em seu De Anima o Filósofo

defende duas espécies de inteligência na alma, a inteligência produtiva e a inteligência

potencial. A primeira age sobre a segunda determinando em sua natureza potencial a

efetividade determinada das idéias. Vemos assim um caso limite da relação forma-

matéria, limite-limitado em que ainda é possível distinguir os termos relativos. Aqui tal

distinção já esgota todas as suas possibilidades, pois elemento formal e material

compartilham mesmo seus nomes, cabendo o discernimento de ambos através de uma

diferenciação análoga à especificação intragenérica. Com efeito, sabemos que a forma é a

inteligência produtiva, pois tal é a destinação de todo princípio formal. Em contrapartida,

a separação que se instaura entre inteligência e o todo da alma é tal que sua imortalidade

é mesmo garantida por Aristóteles, em vista da dedução a partir desta separação. Ora, se a

inteligência humana já comporta um grau separativo desta natureza, que lhe confere um

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ser não limitado pelo tempo, o que diremos da inteligência divina, em que a efetividade

da forma não mais a priva de parte de sua determinação? Com efeito, aqui a forma não

determina algo indeterminado e, em última instância, indeterminável na completude de

seu ser, mas determina a si mesma, limita a si mesma!

O limite (pe/raj), portanto, toca a si mesmo, tornando-se escapando às limitações

tempório-espaciais que seriam expostas por algum ilimitado subjacente, ou seja, algum

substrato material. Em outras palavras: a forma aqui, além de determinada enquanto

limite, não é determinada individualmente por um princípio indeterminado que fosse sua

matéria. A determinação supra-sensível não é, ao contrário da sensível, dependente de um

ulterior grau de determinação pelo seu oposto ontológico - a indeterminação. O

determinado e o indeterminado detém, aqui, plenamente o caráter do separado

(xwristo\n), o que faz o determinado em questão - a forma do motor - fruir de uma

unidade separativa plena e, conseqüentemente, o grau máximo do ente. Esta fato

ontológico da pura forma supra-essencial, que flexiona sobre seu próprio limite, será

revisto e aprofundado no capítulo referente à unidade do motor imóvel, onde veremos

porque sua natureza inteligente é condição desta possibilidade ontológica radical.

A subjacência, por outro lado, é máxima e não se opõe ao “ser isto”, mas o

ratifica plenamente, pois a diferença que especifica a essência é indiferente ao

indiferenciado, pois é diferença máxima, infinita. A diferença aqui é efetivada apenas

pela forma, que prescinde da matéria como princípio de individuação. Assim, entre um

motor imóvel e outro, não há qualquer subjacência e, portanto, nenhum indiferenciado

matricial a partir do qual teria sido efetivada a diferenciação individual da diferença

essencial. O “ser isto” é absoluto.

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Caráter Unificador da Essência

Cabe aprofundar também, além do caráter unificado da essência, o caráter

unificador relativamente ao ente em geral. O ser e, portanto, a unidade da essência existe

independentemente do ser das outras categorias, como a quantidade e a qualidade. Estas,

no entanto, não existem por si mesmas, subsistindo sempre em alguma essência. Por isso,

as causas de todas as coisas são as essências, visto que não há movimentos ou

passibilidades sem as mesmas. Este é um dos “sentidos analógicos” segundo os quais é

verdadeiro o afirmar que todos os seres têm os mesmos princípios e causas. A questão da

essência, como um destes sentidos, é desenvolvida principalmente no capítulo quinto, que

forma, como se sabe, um continuum com o quarto capítulo. Este raciocínio, porém, já

está presente na introdução do livro L. Aristóteles distingue duas formas de considerar o

conjunto das coisas: “Se consideramos o universo como um todo, a essência é sua parte

primeira; e se o encaramos como uma série, também deste ponto de vista a essência vem

em primeiro lugar, seguida pela quantidade e pela qualidade.” (kaiì ga\r ei¹ w¨j oÀlon

ti to\ pa=n, h( ou)si¿a prw½ton me/roj: kaiì ei¹ t%½ e)fech=j, kaÄn ouÀtwj prw½ton h(

ou)si¿a, eiåta to\ poio/n, eiåta to\ poso/n.) (1069 a18)

A essência é “parte primeira” em ambos os casos. Já investigamos o que o

Estagirita pretende com as expressões “como um todo” e “como uma série”. Estas só

podem ser compreendidas correlativamente, quer dizer, uma em virtude do significado da

outra, sendo concepções nitidamente contrárias. Conceber o universo como um todo é

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não o fazer como uma série, e vice-versa. Já decidimos anteriormente, a partir da leitura

do tópico “um todo” (oÀlon) - no livro D da Metafísica (1023b26) - que considerar algo

como um todo é o mesmo que estar convicto de sua ordem intrínseca, e tomá-lo como

uma série é negar que possua esta ordem. Como se fala aqui do “conjunto das coisas”,

claro está que se trata do universo. Existindo ordem no universo, esta somente se explica

mediante o reconhecimento de uma essência plenamente efetiva responsável pelo

movimento de todas as coisas, ou seja, o motor imóvel, abordado brevemente nas linhas

seguintes, a cujo estudo, porém, é dedicada toda a segunda metade do livro L. É por isso

que o Filósofo faz uso da estabelecida anterioridade da essência em relação às demais

categorias, ou seja, mesmo que o universo seja um conjunto desordenado de seres, a

essência vem em primeiro lugar, pois em cada ser particular, antecede todos os outros

atributos, que “não são em sentido absoluto, mas sim qualidades e movimentos” (aÀma

de\ ou)d' oÃnta w¨j ei¹peiÍn a(plw½j tau=ta, a)lla\ poio/thtej kaiì kinh/seij) (1069

a22). Entendemos, então, que o discurso acerca da essência revela que o motor imóvel é

princípio e causa suprema. Com efeito, as essências são os princípios de todos os seres, e

o motor imóvel é a primeira das essências. A doutrina da essência imóvel é a verdadeira

consumação do primado da essência no pensamento aristotélico.

A essência centraliza de três formas principais: a) categorialmente, porquanto o

“ser” em sentido primeiro pertence à essência ; b) logicamente, pois a definição

(o(rismo/j), o enunciado (lo/goj) que expressa o ser-prévio, é stricto sensu, exclusivo da

essência; c) cosmicamente, pois o centro do cosmos é uma essência . Esta essência

constitui um centro pela sua potência unificadora, na medida em que não somente produz

movimento, mas é também o primeiro motor. Ora, o movimento possui um caráter

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unificador. O que produz movimento, portanto, produz unidade e, visto que o ser e o um

são simultâneos, produz também o ser. A causa do movimento é causa da unidade, assim

como causa do ser. É evidente, então que, além de manifestação primeira do ser na forma

da categoria fundamental, a essência é também – no momento da definição - o enunciado

(lo/goj) mais rigorosamente expressivo do ser. Finalmente, é a primeira causa do ser, em

cada instante de mobilização do cosmos.

Cabe agora o exame do sentido mais próprio do ente em sentido próprio, isto é, a

essência da essência, denominada essência primeira (próte ousia).

A essência é o ente primeiro. Sabemos, pelo livro VII, que o ente é a resposta à

pergunta “o que é?” (tiì). Ser a resposta a tal questionamento é justamente o que pretende

Aristóteles ao identificar de modo privilegiado “aquilo que é” (ti¿ e)sti) e ente (to\ oÄn).

Ora, “aquilo que é” que se refere tão somente a essência:

“Mesmo sendo dito de tantos modos, é evidente que o primeiro deles é ‘aquilo

que é’, que significa a essência.”

(tosautaxw½j de\ legome/nou tou= oÃntoj fanero\n oÀti tou/twn prw½ton oÄn

to\ ti¿ e)stin, oÀper shmai¿nei th\n ou)si¿an W) (1028a30)

Portanto, a pergunta “o que é?” significa “o que é a essência?” de modo primeiro.

As outras categorias, por outro lado, são conhecidas quando conhecemos “o que é” cada

uma delas. Logo, a essência é novamente primeira, pois responde a pergunta “o que é” de

modo primeiro.

O ser-prévio é o enunciado (lo/goj) do que está implicado no ser quando dizemos

que algo é, ou seja, o que é aquilo que é. Na verdade, to ti ei einai é uma espécie da

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pergunta ti esti, só que aprofundada por um segundo questionamento acerca do ser

(efetivado pela duplicação do verbo ser), visando atingir o ser mais fundamental.

Aristóteles escreve que somente a essência primeira coincide com seu ser-prévio.

O que isto significa?

A essência formal, relativamente à essência concreta (sínolon), é uma essência

primeira (prw¯th ou)si¿a). Ora, isso não se dá porque existe em maior grau que uma

essência compósita, mas porque ela coincide com sua definição, isto é, com o enunciado

(lo/goj) de seu ser-prévio (to\ ti¿ hÅn eiånai). Somente da essência primeira haverá

ciência demonstrativa, visto que só há demonstração do que pode ser definido, o que, por

sua vez, não pode ser afirmado de nenhuma outra essência. Com efeito, excetuando a

essência primeira, todas as essências são indefiníveis. Por isso há uma demonstração de

sua essência, quer dizer, do que lhe pertence enquanto essência. Ao contrário, das

essências secundárias, compostas de matéria e forma, nada pode ser dito segundo a

necessidade. Contudo, embora os indivíduos imateriais celestes sejam necessários,

aplicar-lhes uma definição também é tarefa por demais aporética. Ocorre que "toda a

definição consta de nomes, os quais são comuns a mais de um indivíduo". Isto nos

conduz a um problema central do livro VII da Metafísica, de caráter duplo: 1) o que

realmente impossibilita a definição do indivíduo: sua 1.1) materialidade e

corruptibilidade ou sua 1.2) própria individualidade enquanto tal? Acabamos de perceber

que os dois obstáculos foram considerados por Aristóteles. Este problema, aliás, nos

conduz a outro ainda mais profundo: 2) se 2.1) "apenas da essência há definição" e 2.2)

"é impossível definir o indivíduo", seria lícita a conclusão de que a essência aristotélica é

não-individual? Há mais de uma passagem favorável a tal conclusão, o que deu ensejo a

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intermináveis querelas exegéticas. Propomos a solução a seguir, antes de prosseguirmos a

análise da aporia da definição na direção da temática do problema do motor imóvel. Mas

não consideramos tal alternativa como definitiva. Apenas que, através desta perspectiva,

muito das aparentes incongruências criteriológicas do filósofo parecem se dissolver.

O universal é a essência, mas não enquanto universal, isto é, não no sentido

ordinário de ser “aquilo que é predicado de muitos”. Por outro lado, a essência é o

universal, mas não enquanto essência. Isto é, o universal é essência, mas não enquanto

predicado, pois este é sempre passibilidade, qualidade, parte da definição. O predicado é

sempre algo atribuível a muitos e entra como componente da definição que expressa o

ser-prévio da essência, mas não pode ser, ele mesmo o ser-prévio da essência, ou seja a

essência primeira (prw¯th ou)si¿a). Vejamos mais de perto.

Sendo assim, duas essências individuais, porquanto tenham a mesma definição,

podem ser homônimas de predicados universais.

Tomemos as seguintes sentenças:

a) Sócrates é animal racional. /Animal racional é a essência de Sócrates.

b) Cálias é animal racional. / Animal racional é a essência de Cálias.

Nos dois casos, verificamos que animal racional é a essência do sujeito em

questão. Contudo, Sócrates não é o animal racional que é a essência de Cálias enquanto

essência de Cálias, nem o animal racional que é a essência de Sócrates é o animal

racional que é a essência de Cálias. Sócrates é animal racional que é essência de Cálias

apenas enquanto tomada universalmente, quer dizer, enquanto homônima de seus

homodefinidos. Isto é o que sintetizamos acima ao dizer que o universal é a essência, mas

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não enquanto universal, assim como a essência é universal, mas não enquanto essência.

Essência e universal são identificáveis apenas por homonímia.

Enfim:

1- Este animal racional (essência) é Sócrates.

2- Sócrates é animal racional (espécie).

3- Cálias é animal racional (espécie).

4- Cálias é este animal racional (essência).

De (1) decorre (2), mas de (1), (2), (3) não decorre (4), pois “este animal racional”

não pode indicar Cálias e Sócrates simultaneamente.

Assim, quando Aristóteles diz que, em certo sentido, não há definição de essência,

significa que a essência, sob certo aspecto, é incomposta. Sócrates não é animal e, além

disso, racional. É racional e, sendo racional, é imediatamente animal, pois a diferença

última, em certo sentido, é a própria essência e traz em si a totalidade genérica. A

racionalidade já é um modo específico de ser um certo animal efetivo. A essência é

incomposta de universais tomados como partes preexistentes ao composto. A essência é

menos um composto que um processo. Trata-se do processo contínuo que vai da potência

à efetividade.

Na definição “animal racional” entenda-se “animal enquanto racional” e não

“animal combinado com racional”. Há um limite na semelhança entre a ordem das coisas

e a ordem das palavras. Embora as fórmulas definitórias sejam compostas de palavras que

preexistiam às mesmas, as coisas definidas são constituídas por um processo, e não por

composição de partes discretas, que no caso seriam universais que, previamente

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separados e então combinados produziriam a essência. Esta possibilidade de relação entre

a essência e o universal é, pois definitivamente estranha à metafísica aristotélica.

A definição do ser-prévio do homem é animal racional, mas não enquanto animal

e racional, como se fossem realidades separadas, mas sim apenas racional, pois neste caso

o 'ser racional' pressupõe o 'ser animal', contendo-o em si, da mesma forma como as

partes superiores da alma contêm as inferiores, do mesmo modo como o retângulo

contém o triângulo, analogia proposta pelo próprio Aristóteles em De Anima. Somente

entendendo a essência como um processo de tal natureza percebemos em que sentido ela

é incomposta, o que, no caso, significa que não possui um tipo de unidade discriminável

em elementos universais77.

Cabe agora concluir nossa apreciação desta dificuldade na ontologia aristotélica,

especialmente debatida na tradição escolástica, mormente nos círculos tomistas. É o

problema das formas individuais. Trata-se de saber se o hilemorfismo do Livro VII

permite este conceito, ou se a forma segue apenas do gênero à espécie, não podendo

atingir a peculiaridade do existente singular. A noção de indivíduo material em

Aristóteles pode ser considerada um preparativo hermenêutico para a compreensão do

indivíduo imaterial, realizado pelo motor imóvel.

No livro VII da Metafísica, Aristóteles enfrenta um impasse: por um lado, o ser-

prévio deveria ser a forma, porquanto esta é, com mais razão que o composto hilemórfico,

o que é por si. Por outro lado, ao menos nas essências sensíveis, deveria ser o composto

hilemórfico. É que o ser-prévio, sendo “por si” deve ser individual, o que implica

principalmente em não poder ser predicado de muitos, pois isso seria ser por outros e não

“por si mesmo”, na singularidade do ser.

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Aristóteles parece buscar uma forma para o ser-prévio que não seria a forma da

espécie, a qual é idêntica para Sócrates e Cálias, mas que tampouco seria uma forma do

composto, a qual não pode existir, pois a forma é algo determinado e a matéria -

constituinte do composto - é sempre algo indeterminado.

Entre a forma específica e a forma essencial haveria, pois, homonímia de analogia.

Não seriam sinônimos devido a sutil diferença entre ambas, marcada pelo fato de a forma

essencial, trazendo ou não em si a matéria próxima – própria de um único indivíduo - ser

necessariamente a efetividade própria desta última e não da matéria em geral, quer dizer,

da matéria enquanto representação não efetiva da potencialidade de qualquer indivíduo

com o qual compartilhe a forma específica. A espécie é apenas matéria e forma tomadas

universalmente, sem a consideração da efetividade, que é sempre individual.

O ponto se torna ainda mais claro se considerarmos que há homonímia de parte e

todo no que toca ao mesmo nome conferido à forma e ao composto hilemórfico.

Aristóteles afirma no Livro H que a matéria próxima e a forma são a mesma

realidade . Quando afirma que a forma é a essência, tem em vista não a forma específica

concebida pela abstração da matéria próxima, que seria uma tomada universal da forma e

da matéria do composto, mas sim a forma efetiva, a qual inclui a peculiaridade material

da essência. É que na revelação da forma efetiva de um ente, se revela também a matéria

própria da essência, pois a forma é a efetividade da matéria. Ao contrário, na pura

indicação da matéria não há referência necessária à forma, pois a efetividade formal

sempre pressupõe a potência material, embora o inverso não seja verdadeiro. A

superioridade ontológica da forma decorre principalmente de que o ser da forma abarca o

77 Para estudos ulteriores, ver David Charles (2000, pág. 371)

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ser da matéria, constituindo, assim, uma unidade essencial e não meramente

concomitante. Haveria pura concomitância na síntese hilemórfica se adotássemos

doutrinas com a de Licofronte, que “fala que a ciência é cientificação e alma” (fhsiìn

eiånai th\n e)pisth/mhn tou= e)pi¿stasqai kaiì yuxh=j:) (1045b10), ou de outros que

definem vida como “composição ou conexão de alma e corpo” (su/nqesin hÄ

su/ndesmon yuxh=j sw¯mati to\ zh=n) (1045b11). É que Aristóteles enxerga uma

unidade que não é uma mera junção de partes extrínsecas entre si. Não é nesse sentido

que matéria e forma são partes da essência.

Assim, a forma é parte da essência, mas em outro sentido, é a essência completa,

pois o seu ser abarca o ser da matéria. A forma, porém, que é o ser completo do indivíduo,

não pode ser identificada com a espécie, que é apenas uma generalidade tomada

abstratamente dos indivíduos.

Contra a interpretação de que não existe a noção de forma individual em

Aristóteles, alega-se freqüentemente a passagem em que se afirma que Cálias e Sócrates

diferem apenas quanto à matéria, enquanto a forma é idêntica:

“O que resulta, enfim, é uma tal forma em tais carnes e ossos: Cálias e Sócrates,

por exemplo. E eles são diferentes pela matéria (ela é diversa nos diversos

indivíduos), mas são idênticos pela forma (a forma, de fato, não é secionável).”

to\ d' aÀpan hÃdh, to\ toio/nde eiådoj e)n taiÍsde taiÍj sarciì kaiì o)stoiÍj, Kalli¿aj kaiì Swkra/thj: kaiì eÀteron me\n dia\ th\n uÀlhn (e(te/ra ga/rŸ, tau)to\ de\ t%½ eiãdei (aÃtomon ga\r to\ eiådoj). Ora, não se podendo distinguir a forma de ambos, seria o mesmo que indicar sua

espécie comum, o que significaria a ausência de uma forma individual. Toda

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consideração formal de um indivíduo seria apenas o reconhecimento de seu lugar na

ordem das espécies.

Tal raciocínio se deve, em grande parte, de um prejuízo em torno da noção de

indivíduo, acumulada ao longo do pensamento ocidental, segundo o qual todo o indivíduo

deve ser único para ser um indivíduo. O princípio dos indiscerníveis de Leibniz é a

maximização desta noção. O erro está em atribuí-lo, ponto por ponto, aos gregos, em

especial a Aristóteles.

O “indivíduo” enquanto “indivíduo” não é idêntico a seu ser, mas enquanto

essência primeira que nele está presente, pois a essência primeira é seu próprio ser. Este

algo (to/de ti) que está presente no núcleo do ente é a forma e apenas sua forma, ainda

que possa haver outra forma idêntica a ela. Embora Sócrates e Cálias sejam idênticos pela

forma, há duas formas separadas uma da outra e não uma única forma que se dividiria em

duas, seja por participação (kata\ me/qecin), seja por predicação . As formas platônicas

se dividem verticalmente nos indivíduos, que compartilham do mesmo, em um processo

plástico de modo semelhante ao modo do material se dividir. As formas aristotélicas se

reproduzem horizontalmente entre si, analogamente à impressão mecânica. O homem

gera o homem, imprimindo em sua matéria a forma que lhe é própria. Então haverá duas

idênticas, embora numericamente distintas. A ou)si¿a resultante é idêntica, mas não a

mesma. Por isso é este algo (to/de ti) e não outro. O indivíduo aristotélico, mesmo que

idêntico a outro, não é este outro. É discernível.

As formas não geram outras formas diferentes delas. Não há, de um lado, formas

perfeitas e, de outro, formas imperfeitas e inferiores geradas pelas primeiras. Para que

houvesse uma graduação de uma forma para outra inferior seria necessário que a forma

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fosse divisível, pois haveria um mais e um menos. Deveria haver uma “matéria” da forma,

coisa absurda. Se, por geração, se entende um processo de vir-a-ser, então as formas são

ingênitas, pois são indivisíveis, o que impossibilita a graduação necessária a qualquer

processo. Cada uma passa a existir por efeito de outra forma e, em determinado momento,

já não existe mais. A forma gera outra forma por impressão simples. A gerada, por sua

vez, será idêntica à geratriz, embora não o compósito de que é constituinte.

Enfim, em Aristóteles há o múltiplo por espelhamento de cada idéia em outra,

enquanto Platão contemplava o espalhamento da idéia originária em cada ser que dela

participava.

Ora, posto que a meta última de nossa investigação é uma clarificação da unidade

do ente no motor imóvel, cabe agora – após as dificuldades que percebemos na ordem da

essência individual sensível - a pergunta: o que dizer da indefinibilidade das essências

supra-essenciais de Aristóteles? Não seriam alvo da mesma crítica lançada contra as

Idéias platônicas?

Quanto às realidades imateriais há, contudo, uma notável diferença entre a Idéia

platônica e o Motor Imóvel de Aristóteles: a primeira sempre pode ser partilhada por

outro ser pela participação (métexis), enquanto o segundo é totalmente voltado para si

mesmo. É efetividade pura, pura autoconsciência, simples e indivisível cognição de si

mesmo, um “si” que não compartilha nada com “outro” algum. A diferença, neste caso, é

absoluta.

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UNIDADE DA ALMA

A essência é algo uno e determinado. Tal unidade e determinação significam, em

Aristóteles, ser um indivíduo. Foi isto o que vimos no capítulo anterior. A

individualidade, porém, enquanto identificação deste indivíduo entre outros, sua distinção

entre os demais, ou seja, pura relação extrínseca de diferenciação entre outros indivíduos,

não é o sentido último da escala. Deve haver algo interno na natureza individual que

torne esta estrutura mais perfeita do que a pura coletividade. O indivíduo foi tomado, de

preferência à coletividade do universal, porque concentra em si o seu ser, não o

transferindo de modo indeterminado ao outro, pois tal coisa mesmo o concomitante e as

sub-categorias o fazem, na medida em que o ser destes últimos é como que emprestado

da essência, sendo apenas qualificações desta última. Assim, devemos retomar o

princípio autológico para aplicá-lo também aqui, na etapa seguinte à essência, que na

verdade é uma especificação desta última. Com efeito, as essências podem ser

enquadradas em dois grandes sub-gêneros: a essência inanimada e a essência animada. O

que podemos dizer acerca da distinção autológica entre estas duas? Há uma diferença de

grau entre estas estruturas, quanto à intensidade da auto-relação que efetiva cada uma

delas? Veremos aqui o incremento de unidade que o ser vivo opera relativamente ao ente

inanimado é condicionado pela relação interna que se apresenta em sua estrutura. Na

verdade, a partir daqui, todos os níveis serão, de certo modo anímicos, assim como foram

ontológicos desde o primeiro nível e ousiológicos desde o segundo nível. A partir de

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agora, todos as ulteriores unificações do ente serão vitais, mesmo o ápice da escala. A

essência mais elevada e central que pode haver no cosmos deve, portanto, ser o que, na

alma do mais elevado ser vivo é sua parte mais elevada, a inteligência, só que no mais

elevado nível de perfeição que podemos conjecturar. A inteligência em estado puro

coincide com a vida em estado puro. É por isso que o objeto máximo do desejo – um

princípio vital - coincide com o objeto máximo da inteligência, um princípio cognitivo:

“Os primeiros (inteligível e desejável) são o mesmo.” (1072a25)

(tou/twn ta\ prw½ta ta\ au)ta/.) No sentido ascendente, há uma convergência de fatores que, no âmbito inferior da

corruptibilidade, apresentam o caráter da divergência. Embora a inteligência seja vital,

somente uma essência sumamente efetiva logra experimentar tal vitalidade apartada de

qualquer outro suporte vital de nível inferior, ou seja, aqui a inteligência é, não apenas em

si mesma vital, mas por si mesma vital:

“A vida também está presente nele. Pois a efetividade da inteligência é

vida, e ele é tal efetividade. E sua efetividade é, por si mesma, eterna e a mais

excelente.” (1072b27)

kaiì zwh\ de/ ge u(pa/rxei: h( ga\r nou= e)ne/rgeia zwh/, e)keiÍnoj de\ h( e)ne/rgeia: e)ne/rgeia de\ h( kaq' au(th\n e)kei¿nou zwh\ a)ri¿sth kaiì a)i¿+dioj. A metafísica aristotélica vai procedendo, de elevação em elevação, até o limite da

possibilidade de perfeição do princípio anímico. A vitalidade deve existir, em alguma

essência, em seu estágio mais apurado e pleno. Haveria uma essência plenamente viva.

Ainda acerca do caráter privilegiado da essência animada no que toca à ontologia

aristotélica, assume posição análoga a filósofa Edith Stein, em sua obra “Ser Finito e Ser

Eterno”:

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“A doutrina aristotélica da matéria e da forma nos parece fundada na

intuição da natureza animada. O intento de Aristóteles de conceber esta doutrina

como uma lei fundamental de tudo o que é material não foi sem perigo: o perigo

de desprezar a essência singular das simples matérias e o perigo de apagar o

limite entre os campos existenciais. [...] Enfim, o paralelismo constante entre os

produtos naturais e as obras de arte não favorecia a separação estrita e a

apreciação das formas vivas.”78

Ao mesmo tempo em que reconhece tal intuição vital originária na ontologia

aristotélica, Stein vê também um perigo no modo como o Estagirita utiliza esta analogia

para todo o domínio do ente, pois em toda analogia, há o risco de o análogo mais

eminente assumir a estrutura do menos eminente. Devemos, portanto, manter a atenção

no caráter vital da essência em geral, ainda que em seus níveis inferiores tal caráter, por

um lado, não passe de uma analogia e, por outro lado, de uma firme exigência ontológica

para as espécies mais eminentes da essência. Em outras palavras: a relação com seu

próprio ser, efetivada na essência viva, deve servir de referência para descobrirmos a

relação interna originária de todas as essências em geral, ao mesmo tempo em que torna

razoável e até esperado que determinados representantes da essencialidade detenham esta

relação de um modo estreito e verdadeiramente vital.

Na verdade, o próprio significado primeiro do termo fu/sij, que engloba em si

toda a esfera dos entes corruptíveis e até mesmo a forma dos entes em geral, está calcado

sobre a idéia de vida. E Aristóteles deixou claro que conhecia tal etimologia e sua

importância para a consecução dos sentidos latos de ‘natureza’:

“Natureza significa, num sentido, a geração das coisas que crescem

(assim que entendemos como longa a letra ‘u’ da palavra ‘fu/sij’. Noutro

78 Stein, 2002, pág. 285

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sentido, natureza significa o princípio originário e imanente, do qual se

desenvolve o processo de crescimento da coisa que cresce.” (1014b16)

Fu/sij le/getai eÀna me\n tro/pon h( tw½n fuome/nwn ge/nesij, oiâon eiã tij e)pektei¿naj le/goi to\ u, eÀna de\ e)c ou fu/etai prw¯tou to\ fuo/menon e)nupa/rxontoj: Estes são os sentidos primeiros de ‘natureza’. Ambos tem em comum o vínculo

estreito com a ‘coisa que cresce’ (fuo/menon), ou seja o ser vivo em geral79, embora,

principalmente os vegetais, pois nestes a vitalidade se mostra tão somente pela virtude

nutritiva que condiciona o crescimento. Daí o termo passa a ser aplicado a) ao princípio

do primeiro movimento dos entes naturais, b) o princípio material originário, c) a

essência dos entes naturais e d) a forma dos entes, pelo qual se diz que são essências.

Todos estes são sentidos possíveis somente porque estão, de algum modo relacionados

com o crescimento e a vida. E a própria noção de forma essencial está implicada em toda

esta semântica, pois é co-extensiva a todos estes sentidos, inclusive ao de princípio

material, embora, aqui, de um modo menos rigoroso e enfraquecido pelo próprio

Aristóteles no livro VII da Metafísica.

O fato é que tal relação arcaica entre forma, essência, natureza e vida se efetiva ao

longo de toda a desenvolução da ontologia aristotélica. A vitalidade acompanha a

investigação acerca dos níveis superiores do ente. Os corpos celestes, por exemplo, são

seres vivos, embora não compartilhem com seus correspondentes terrestres a geração e a

corruptibilidade. Bodeüs explora bem intensamente esta peculiaridade de Aristóteles e

dos gregos em geral, em seu ‘Aristóteles e a Teologia dos Seres Vivos Imortais’80.

79 Acerca da relação fu/sij-fuw, é interessante o comentário de Hamelin (cit. por Reale, op. cit), em que afirma que ‘naturação’ seria um termo mais exato para fu/sij, para fazer par com nosos termos modernos ‘desnaturação’, ‘maturação’, entre outros, todos conectados à vida. 80 Bodeüs, 1992.

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A propósito do tópico comentado por Edith Stein, devemos notar como se dá a

dimanação natural das diferenças que determinam os gêneros no sentido das espécies.

Aristóteles afirma que, se seguirmos as diferenças das diferenças atingiremos a essência,

pois a essência é, em certo sentido, a diferença última (Cf. Met.1038a18). Mas a

diferença é a essência ou análoga à essência? A resposta encontramos no Livro H da

Metafísica, onde lemos:

“E como nas definições o que se predica da matéria é a própria

efetividade, do mesmo modo, nas outras definições as diferenças são o que mais

corresponde à efetividade. Por exemplo, se devemos definir a soleira, diremos

que é madeira ou pedra colocada de determinado modo, e diremos que a casa é

pedras e madeira dispostas de um modo determinado (mas em alguns casos

deveremos acrescentar também o propósito); se devemos definir o gelo, diremos

que é água solidificada e condensada de determinado modo; diremos que a

melodia é determinada combinação de sons agudos e graves; e procederemos de

modo semelhante nos outros casos.” (Met. 1043a4)

kaiì w¨j e)n taiÍj ou)si¿aij to\ th=j uÀlhj kathgorou/menon au)th\ h( e)ne/rgeia, kaiì e)n toiÍj aÃlloij o(rismoiÍj ma/lista. oiâon ei¹ ou)do\n de/oi o(ri¿sasqai, cu/lon hÄ li¿qon w¨diì kei¿menon e)rou=men, kaiì oi¹ki¿an pli¿nqouj kaiì cu/la w¨diì kei¿mena (hÄ eÃti kaiì to\ ou eÀneka e)p' e)ni¿wn eÃstinŸ, ei¹ de\ kru/stallon, uÀdwr pephgo\j hÄ pepuknwme/non w¨di¿: sumfwni¿a de\ o)ce/oj kaiì bare/oj miÍcij toiadi¿: to\n au)to\n de\ tro/pon kaiì e)piì tw½n aÃllwn.

O procedimento definitório, portanto, já nos revela que a efetividade só é atingida

no sentido das diferenças, pois estas conduzem ao concreto (su/noloj), ao contrário das

semelhanças e notas comuns. Estas últimas nos deixariam, por um lado, no puro domínio

da abstração cognitiva e, por outro lado, na indeterminação material da coisa. Cabe,

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porém, uma importante indagação: nos seres inanimados, tal diferenciação efetivadora

tem a mesma orientação?

Atentemos aqui para algumas diferenças decisivas entre a forma viva e a forma

inanimada.

A forma viva é efetivada e efetivadora; a forma inanimada é apenas efetivada.

Mesmo quando parece efetivadora, é apenas efetivadora por concomitância, quer dizer,

por outro, não por si mesma. Trata-se da efetividade de um efetivado sobre outro

efetivado, somente possível por condições que lhe são extrínsecas, alheias. A forma da

construção é, de preferência, a da mente do construtor, pois foi esta que a efetivou, e não

a forma imanente da construção, o que é o reverso do naturalmente esperado para a ousia

aristotélica que, ao contrário da de Platão, deve ser efetividade na própria coisa, quer

dizer, a própria forma imanente é a forma efetivadora. Isto já patenteia a impropriedade

do reconhecimento ousiológico de certos entes que seriam, com muito mais propriedade,

definidos como matérias ou partes materiais.

Tomemos a célebre árvore de Porfírio:

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(figura 1)

A espécie viva é a determinação e perfeição de seu gênero; a espécie inanimada é

apenas determinação de seu gênero, mas não sua perfeição. Enquanto as diferenças que

consitituem um ente inanimado são extrísecas umas às outras, na espécie viva a diferença

é uma intensificação de seu gênero determinando-lhe atualmente no sentido de uma

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maior autonomia, ou seja, maior capacidade de manter sua unidade interna a despeito do

indeterminado circundante. A retangularidade e a obtusidade não representam uma maior

autonomia do triângulo, mas são apenas diferenças entre outras, entre as quais alguma

necessariamente conviria a tal ou qual triângulo. E se acrescentarmos outras diferenças –

no triângulo retângulo, por exemplo – verificaremos a mesma indiferença entre as

diferenças quanto ao princípio da autarquia. Ao contrário, a diferença ‘alado’ em um ser

vivo significa uma ulterior intensificação relativamente a uma potência locomotiva

apenas terrestre. As diferenças se intensificam progressivamente umas além das outras,

não sendo indiferentes ao sentido mesmo da diferenciação. Intensificação significa:

incremento de efetividade em um mesmo ponto, no próprio interior. Isso é o que ocorre

na progressiva determinação dos gêneros vivos. Notemos que a auto-efetividade sensível

é uma diferença no interior da pura auto-efetividade em geral – ainda incipiente no nível

vegetativo, assim como a intelectualidade é uma diferença auto-efetiva ainda mais intensa,

e veremos em detalhe a natureza desta efetividade no próximo capítulo.

Ainda tomando como base a partição anímica, tão cara ao Filósofo, atentemos

para a efetividade que cada nível representa para o nível imediatamente inferior. Mais do

que isso, o superior contém em si, unificando, os inferiores realizados agora de um modo

mais simples porque mais independente da matéria, ou seja, em um grau maior de

separação (e, portanto, independência) do princípio da componibilidade por excelência. O

ente vivo mantém sua unidade de um modo mais separativo da matéria. Além disso,

quanto maior é o grau desta separação, mais perfeição podemos atribuir a tal ente.

A essência viva concentra em si as quatro causas como princípios intrínsecos.

Além da forma e matéria que são imanentes ao concreto (su/noloj), a essência viva é

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uma completude (te/loj) em si mesma, uma plenitude (e)ntele/xeia) e sua causa motriz

é sua própria natureza, pois esta é “um princípio de movimento no próprio ser”. A

essência viva move a si mesma, e assim é a causa motriz, perfazendo a efetividade que

lhe constitui a cada instante. Atingiremos, portanto, a mesma convergência de ser e vida

tomando como instrumento hermenêutico a noção de autonomia, tão cara ao Filósofo. Em

Aristóteles, quanto mais autonomia possui um ser, em maior grau (com mais propriedade)

será uma essência. Um ser vivo goza de maior autonomia que um ser artificial, pois move

a si mesmo. E a autonomia é fundamental aqui. Quando Filósofo escreve que, em certo

sentido, há essência somente dos seres gerados por natureza, nega aos seres aritificiais o

caráter pleno da essencialidade, justo porque sua formação foi efetivada extrinsecamente

a matéria dos mesmos. E o ser vivo goza de tal caráter auto-efetivador no sentido

realmente estrito, posto que há um princípio vital operando distintamente ali, ao contrário

dos demais seres naturais. Destes últimos, podemos afirmar uma auto-efetivação apenas

no sentido de que é a própria natureza que efetiva seus próprios entes. Quanto ao ser vivo,

por outro lado, a auto-efetivação é verdadeira mesmo na imediatidade de cada indivíduo.

Ora, se o princípio de autonomia é fundamental no lugar ontológico ocupado por uma

essência, o mesmo raciocínio é válido para as formas vivas. Assim, quanto mais elevada

a vida de um ser, maior autonomia possuirá e, portanto, mais elevada será uma essência.

O grau máximo da hierarquia é o motor imóvel, porquanto o mais vivo de todos os seres.

Sua autonomia se revela principalmente em relação à matéria. Quanto mais autonomia de

movimento, maior também a autonomia relativamente à matéria. Um ser vivo sensível

troca continuamente de matéria pela nutrição, o que o torna independente desta ou

daquela matéria. Isto o torna mais autônomo que um ser inanimado, na exata proporção

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da inseparabilidade entre o último e a matéria com a qual foi primeiramente constituído.

Contudo, o ser vivo não prescinde da matéria em geral. Já o ser vivo supremo prescinde

de todo tipo de matéria, pois o que nele seria movimento é, na verdade, seu correlato

supra-essencial – a efetividade pura.

Do reconhecimento da natureza como sentido último da essência sensível, decorre

necessariamente a determinação mais restrita da alma como essência no sentido de

natureza. Constataremos isto partindo de outras premissas estabelecidas pelo Filósofo.

A natureza é responsável pelos seres inanimados e pela geração dos seres vivos.

Ora, os primeiros já foram descartados pelo Filósofo como possíveis representantes do

sentido estrito de essência, porquanto não são nada determinado, mas substrato para

ulterior determinação, ao passo que a essência deve ser algo determinado. Logo, restam

os seres vivos. Cabe agora saber se todo o composto ou apenas sua parte formal é a

essência prima. Ora, já vimos que Aristóteles adota firmemente a segunda opção – a

forma – a qual reconhece como a causa do ser de toda a essência. Mas o que é a forma

dos seres vivos senão sua alma? As essências primas de todos os seres são, portanto, as

almas. Quanto mais desenvolvida é a alma de um ser, mais alto é seu nível ocupado na

hierarquia ontológica. A alma humana atinge o topo das almas sublunares porque possui

uma parte inteligente, para a qual o Filósofo reservou até mesmo a imortalidade. Não

haveria mesmo como ser diferente o curso tomado pelos ulteriores níveis anímicos, com

as almas dos astros - inteligentes e locomotivas – e a alma do motor imóvel – inteligência

pura.

No capítulo anterior abordamos a autarquia da essência, que significa: a essência

tem a si mesma por princípio de seu ser, ao contrário do concomitante e das demais

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categorias, cujo ser repousa no ser da essência. Mas os entes vivos e, mais exatamente, a

alma, não é somente autárquica. É auto-efetiva. E tal diferença muda sensivelmente o

próprio modo de autarquia da alma. A autarquia dos entes auto-efetivos é a genuína

autarquia, pois contém seu próprio princípio de tal modo que se confunde com ele. Eis

um tópico importante do De Anima, saber em que sentido o corpo animado é o seu

próprio princípio, ou seja, sua alma. Enquanto a matéria inanimada, hetero-efetiva, é

efetivada por outro ente de tal modo que podemos supor inúmeras outras matérias

assumindo a mesma forma, a matéria viva, auto-efetiva, mantém uma solidariedade tal

com seu princípio que este parece 'brotar' desde dentro de sua matéria. O ente auto-

efetivo, portanto, está de posse de seu princípio de um modo ainda mais perfeito.

Contudo, há um modo ainda mais perfeito de estar de posse de seu princípio

(autarquia) e, principalmente, de efetivar o próprio princípio (auto-efetividade). Trata-se

da auto-enformação, própria da parte mais elevada da alma que, sob certo aspecto, dela se

destaca no sentido da imortalidade. Detenhamo-nos agora na esfera autológica da

inteligência.

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UNIDADE DA INTELIGÊNCIA

A inteligência (nou=j) é a parte primeira da alma, não sendo efetividade de nenhuma

parte do corpo. Justo por isso, pode existir separada do corpo, conforme afirma o De

Anima.

Eis um trecho da obra “A Unidade da Inteligência contra os Averroístas” de

Tomás de Aquino, acerca da doutrina aristotélica da inteligência separada:

“E à medida que as formas vão sendo cada vez mais nobres vemos que

possuem capacidades que progressivamente superam cada vez mais a matéria.

Daí que a última forma, que é a alma humana, tenha a capacidade de superar

totalmente a matéria corporal. Eis a inteligência. Desta feita, a inteligência é

separada, visto não ser uma faculdade existente no corpo, mas é uma faculdade

existente na alma, enquanto a alma é a efetividade de um corpo.”81

Sem abordar aqui o uso tomista da doutrina aristotélica como um todo, pensamos

que a idéia presente no trecho acima pode servir como ponto de partida para nossa

investigação acerca da doutrina aristotélica da inteligência produtiva e de sua

possibilidade de separação, pois espelha muito exatamente o modo de resolução

encontrado pelo estagirita no sentido de tornar verossímil a imaterialidade da inteligência,

não obstante a inevitável aporia de sua inerência como integrante de uma alma apenas

material, porquanto efetividade da matéria. É que a inteligência é forma da forma,

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efetividade da efetividade. Salta por sobre a matéria através da própria efetividade da

matéria. Emerge.

Por outro lado, a natureza de tal emergência provoca uma justa perplexidade.

Como pode a inteligência ser separada da matéria se é efetividade de uma efetividade da

matéria? Pareceria óbvio que a forma de algo material seria também material, posto que a

forma, enquanto princípio efetivo do composto, nem por isto existe independentemente

deste. Por que no caso da forma inteligente esta restrição não teria a mesma

aplicabilidade? Vejamos o que diz o Filósofo:

“Portanto, é manifesto que a alma – ou algumas partes dela, se ela por natureza

tiver partes – não é separada do corpo; pois em alguns casos a plenitude é das

partes mesmas. Não obstante, por não serem plenitude de corpo algum, nada

impede que pelo menos algumas partes sejam separadas.” (413a4)

oÀti me\n ouÅn ou)k eÃstin h( yuxh\ xwristh\ tou= sw¯matoj, hÄ me/rh tina\ au)th=j, ei¹ meristh\ pe/fuken, ou)k aÃdhlon: e)ni¿wn ga\r h( e)ntele/xeia tw½n merw½n e)stiìn au)tw½n. ou) mh\n a)ll' eÃnia/ ge ou)qe\n kwlu/ei. Aristóteles conclui que a efetividade da inteligência, embora seja efetividade da

alma - que, por sua vez, é efetividade da matéria -, não é efetividade de alguma parte

definida da alma, mas da alma como um todo, isto é, da alma enquanto efetividade em si,

e não enquanto de uma parte da alma que, por sua vez, seja efetivação de alguma parte do

corpo. Isto impede uma conexão mais estreita e comprometedora com as bases somáticas

que a mantém. Deste modo, quando Aristóteles escreve “algumas partes”, está na verdade

se referindo, embora ainda de um modo um pouco vago, à parte inteligente da alma. O

foco é a possível separação da inteligência, que deve ser investigada seriamente, isto é,

81 Tomás de Aquino, op. cit., pág. 69.

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sem nenhum fato que possa invalidar tal possibilidade. É por isso que, cautelosamente,

Aristóteles discorre:

“Revela-se que, na maioria dos casos, a alma a nada é passível ou produz

sem o corpo, como, por exemplo, irritar-se, persistir, ter vontade e perceber em

geral; por outro lado, parece ser próprio a ela particularmente o inteligir. Não

obstante, se também isto é um tipo de imaginação ou se não pode ocorrer sem

imaginação, então nem mesmo este poderia existir sem o corpo. Enfim, se alguma

das funções e passibilidades é própria à alma, ela poderia existir separada; mas

se nada lhe é próprio, a alma não seria separável.” (403a3)

fai¿netai de\ tw½n me\n plei¿stwn ou)qe\n aÃneu tou= sw¯matoj pa/sxein ou)de\ poieiÍn, oiâon o)rgi¿zesqai, qarreiÍn, e)piqumeiÍn, oÀlwj ai¹sqa/nesqai, ma/lista d' eÃoiken i¹di¿% to\ noeiÍn: ei¹ d' e)stiì kaiì tou=to fantasi¿a tij hÄ mh\ aÃneu fantasi¿aj, ou)k e)nde/xoit' aÄn ou)de\ tou=t' aÃneu sw¯matoj eiånai. ei¹ me\n ouÅn eÃsti ti tw½n th=j yuxh=j eÃrgwn hÄ paqhma/twn iãdion, e)nde/xoit' aÄn au)th\n xwri¿zesqai: ei¹ de\ mhqe/n e)stin iãdion au)th=j, ou)k aÄn eiãh xwristh/. Está claro então que a inteligência é a única chance de que a alma seja separável,

pois seria a efetividade própria da alma, ou seja, aquela que pertence exclusivamente à

sua natureza e que, portanto, poderia sobreviver à dissolução do corpo. Mas tal coisa

depende de a intelecção se mostrar realmente independente de qualquer potência anímica

de substrato corpóreo, mesmo que de espécie tão sutil como a imaginação. Guardemos

esta exigência. Isto será crucial mais adiante, quando perceberemos que a amplitude

investigativa do Filósofo lhe revelou um impasse fundamental entre a imortalidade da

alma e sua teoria da inteligência, impasse este que só seria superado por um conceito tão

radical que livrasse parte da inteligência da fundamentação material da intelecção.

Mas ainda assim persiste a questão: de que modo o nou=j transcende a matéria,

levando-se em conta que é efetividade de sua efetividade no corpo vivo? O fato de o

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nou=j não se identificar com nenhuma das partes anímicas não resolve totalmente o

problema, visto que nada garante a permanência da efetividade do nou=j após o

desmantelamento de todas as regiões do sujeito material de seu sujeito anímico, pois a

alma, como o próprio Aristóteles afirma, não pode sobreviver por inteiro após a

corrupção do corpo por se confundir com a própria efetividade de suas variadas partes.

A gravidade do problema força um aprofundamento da teoria da inteligência em

Aristóteles. A questão crucial se impõe: de que modo se dá a unidade separativa da

intelegência? Como é possível uma inteligência separada?

Unidade da Inteligência Separada

Eis as duas principais aporias em De Anima: Como pode a inteligência, separada

da matéria e imortal, efetivar-se na matéria? A inteligência imortal é individualizada ou

a mesma para todas os homens?

Estas duas questões mantém estreito vínculo, pela natureza simples da

inteligência, que torna cada propriedade intimamente relacionada com as outras.

Podemos resumi-la em uma única questão: qual o modo de separação da inteligência? A

resolução última parece estar longe do fim e remonta às antigas querelas escolásticas. A

sentença “a inteligência parece surgir em nós como sendo uma certa essência e não ser

corruptível” 82 (o( de\ nou=j eÃoiken e)ggi¿nesqai ou)si¿a tij ouÅsa, kaiì ou)

82 DA 408b18

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fqei¿resqai.) sempre assombrou os intérpretes de todas as épocas, justamente devido ao

verbo “surgir” (e)ggi¿nesqai). Como uma essência imortal pode surgir em um indivíduo

mortal? Que tipo de surgimento incorruptível pode ocorrer em uma realidade corruptível?

Além disso, o que dizer do momento da Metafísica em que o Filósofo descarta a

possibilidade de duas essências em efetividade constituírem uma só essência? Neste caso

em questão, uma parte da alma – que é essência do corpo vivo – se revela como outra

essência efetiva, e ainda em maior grau, posto que imortal. Só poderemos atingir uma

aproximação mais incisiva da solução após determinadas considerações acerca da teoria

da inteligência em Aristóteles. No entanto, uma convicção não pode ser evitada: a

estrutura da inteligência, assim como sua relação com a totalidade anímica em que está

inserida são fatos ontológicos de natureza extra-ordinária, e como tal requerem um

tratamento investigativo especial, conforme o percebeu o próprio Estagirita.

Propomos a seguir uma opção hermenêutica para o problema que libere uma

possível resposta menos suscetível aos possíveis sentidos camuflados em um texto tão

conciso e cheio de lacunas.

A inteligência seria o topo de uma série de estágios cognitivos que vão desde a

pura sensação até a pura intelecção. Na verdade, a própria intelecção, independentemente

de possuir ou não um princípio efetivador separado, não é possível sem a sensação do

objeto inteligido:

“Uma vez que tampouco há, ao que parece, qualquer coisa separada e à parte

de grandezas perceptíveis, os objetos inteligíveis estão nas formas perceptíveis,

tanto os que são ditos por abstração como também todas as disposições e

afecções dos que são perceptíveis. Por isso, se nada é percebido, nada se

aprende nem se compreende, e, quando se contempla, há necessidade de se

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contemplar ao mesmo tempo alguma imagem, pois as imagens são como que

sensações percebidas, embora desprovidas de matéria.” (De Anima, 432a3)

e)peiì de\ ou)de\ pra=gma ou)qe\n eÃsti para\ ta\ mege/qh, w¨j dokeiÍ, ta\ ai¹sqhta\ kexwrisme/non, e)n toiÍj eiãdesi toiÍj ai¹sqhtoiÍj ta\ nohta/ e)sti, ta/ te e)n a)faire/sei lego/mena kaiì oÀsa tw½n ai¹sqhtw½n eÀceij kaiì pa/qh. kaiì dia\ tou=to ouÃte mh\ ai¹sqano/menoj mhqe\n ou)qe\n aÄn ma/qoi ou)de\ cunei¿h, oÀtan te qewrv=, a)na/gkh aÀma fa/ntasma/ ti qewreiÍn: ta\ ga\r fanta/smata wÐsper ai¹sqh/mata/ e)sti, plh\n aÃneu uÀlhj.

A passagem acima é bem esclarecedora, pois, além de determinar a estreita

conexão entre o primeiro estágio cognitivo, próprio da sensação, com o mais elevado,

representado pela inteligência, também estabelece a analogia entre as sensações

(ai¹sqh/mata) e o objeto atingido pelo princípio cognitivo imediatamente superior, a

imaginação, pois esta é aquela que apresenta as imagens (fanta/smata).

A inteligência, portanto, é efetivada no instante em que o sensível adquire grau de

unidade suficientemente semelhante à unidade do inteligível. Ocorre então uma

proporção sensível-inteligível que efetiva a inteligência intemporal na esfera temporal da

alma sensível. Há vários níveis de materialidade, cada qual mais sutil que o anterior, até o

ponto em que não há mais lugar para a matéria e a temporalidade. Temos, primeiramente,

1) o composto hilemórfico bruto, que é a própria coisa material que não toca o órgão

sensório. A coisa não pode tocá-lo, pois a sensação é a aprensentação do próprio objeto,

mas de sua forma:

“Há necessidade de que sejam as próprias coisas ou as formas. Não são as

próprias coisas, é claro: pois não é a pedra que está na alma, mas sua forma.”

(431b28).

a)na/gkh d' hÄ au)ta\ hÄ ta\ eiãdh eiånai. au)ta\ me\n dh\ ouÃ: ou) ga\r o( li¿qoj e)n tv= yuxv=, a)lla\ to\ eiådoj:

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Mas para que tal formalização seja possível, é necessário que haja algo entre a

matéria do órgão e a matéria do objeto sensível. Deve haver haver separação para que a

forma seja apresentada. Caso, contrário, nada é percebido:

“E, a respeito do som e do odor, a discussão é a mesma, pois nenhum

deles produz percepção sensível ao tocar no órgão sensível, e sim quando o

intermediário é movido pelo odor e pelo som; e pelo intermediário, por sua vez,

cada um dos órgãos sensíveis. E, quando alguém coloca sobre o órgão sensível o

próprio soante ou exalante, nenhuma percepção é produzida.” (419a25)

o( d' au)to\j lo/goj kaiì periì yo/fou kaiì o)smh=j e)stin: ou)qe\n ga\r au)tw½n a(pto/menon tou= ai¹sqhthri¿ou poieiÍ th\n aiãsqhsin, a)ll' u(po\ me\n o)smh=j kaiì yo/fou to\ metacu\ kineiÍtai, u(po\ de\ tou/tou tw½n ai¹sqhthri¿wn e(ka/teron: oÀtan d' e)p' au)to/ tij e)piqv= to\ ai¹sqhth/rion to\ yofou=n hÄ to\ oÃzon, ou)demi¿an aiãsqhsin poih/sei.

Portanto, 2) a coisa material deve tocar o intermediário (metacu/) próprio de cada

sentido, modificando-lhe. Aqui ainda não podemos nos referir a qualquer ato

cognoscitivo. O intermediário então, por força de sua própria modificação, 3) modifica o

órgão sensório propriamente dito, o que produz a sensação daquele órgão. Agora sim

temos uma primeira formalização do objeto sensível. Aristóteles fornece uma interessante

analogia para este estágio:

“No geral e em relação a toda percepção sensível, é preciso compreender

que o sentido é o receptivo das formas sensíveis sem a matéria, assim como a

cera recebe o sinal do sinete sem o ferro ou o ouro, e capta o sinal áureo ou

férreo, mas não como ouro ou ferro. E da mesma maneira ainda o sentido é

afetado pela ação de cada um: do que tem cor, sabor ou som; e não como se diz

ser cada um deles, mas na medida em que é tal coisa e segundo tal enunciado.”

(424a16)

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Kaqo/lou de\ periì pa/shj ai¹sqh/sewj deiÍ labeiÍn oÀti h( me\n aiãsqhsi¿j e)sti to\ dektiko\n tw½n ai¹sqhtw½n ei¹dw½n aÃneu th=j uÀlhj, oiâon o( khro\j tou= daktuli¿ou aÃneu tou= sidh/rou kaiì tou= xrusou= de/xetai to\ shmeiÍon, lamba/nei de\ to\ xrusou=n hÄ to\ xalkou=n shmeiÍon, a)ll' ou)x v xruso\j hÄ xalko/j: o(moi¿wj de\ kaiì h( aiãsqhsij e(ka/stou u(po\ tou= eÃxontoj xrw½ma hÄ xumo\n hÄ yo/fon pa/sxei, a)ll' ou)x v eÀkaston e)kei¿nwn le/getai, a)ll' v toiondi¿, kaiì kata\ to\n lo/gon.

A sensação, tal qual a cera para o sinete, recebe tão somente a forma da coisa,

sem contudo preservar sua composição hilemórfica, sua constituição natural. Trata-se de

uma extração de algo contido no objeto sensível, a forma aqui significando qualquer

disposição ou qualidade que determine a natureza e identidade daquele objeto, ou seja,

algo pelo que possamos obter um enunciado (lo/goj) acerca de seu ser. No entanto, ainda

não é o caso de uma apresentação puramente formal. A matéria própria do objeto foi

suprimida, mas o processo ainda depende de sua presença efetiva a modificar, por sua vez,

a matéria do órgão sensório através da matéria de seu intermediário próprio. Todo

processo, portanto, ainda é essencialmente material.

Após a sensação, o ser vivo está preparado para outro estágio, aquele da 4)

fixação imagética da fantasi¿a (imaginação) que nada mais é que o prolongamento do

movimento iniciado pela sensação:

“A imaginação será o movimento que ocorre pela efetividade da percepção

sensível. [...] E porque perduram e são semelhantes às percepções sensíveis, os

animais fazem muitas coisas de acordo com elas...” (428b30)

h( fantasi¿a aÄn eiãh ki¿nhsij u(po\ th=j ai¹sqh/sewj th=j kat' e)ne/rgeian gignome/nh. [...] kaiì dia\ to\ e)mme/nein kaiì o(moi¿aj eiånai taiÍj ai¹sqh/sesi, polla\ kat' au)ta\j pra/ttei ta\ z%½a.

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De fato, a semelhança entre imaginação e percepção sensível torna a imagem

(fa/ntasma) um análogo da própria sensação, como que uma sensação independente do

objeto sensível bruto:

" pois as imagens são como que sensações percebidas, embora desprovidas de

matéria.” (432a3)

ta\ ga\r fanta/smata wÐsper ai¹sqh/mata/ e)sti, plh\n aÃneu uÀlhj.

Em outras palavras: enquanto a sensação representa um incipiente estágio de

separação entre a potência sensória e a matéria, dado que a matéria bruta não pode tocar

diretamente o órgão sensível, a imaginação, por outro lado, já dispensa a presença mesma

do objeto material, algo impossível para a sensação.

A imaginação, por sua vez, precede 5) a pura imagem não individualizada daquele

dado sensível (por exemplo, do círculo em geral) até 6) seu correlato supra-sensível

captado pela inteligência (por exemplo, da idéia do círculo). O primeiro grau é do

divisível na coisa; o segundo, do divisível no intermediário. Nestes dois primeiros

estágios há uma composição de matéria e forma brutas, pois o objeto exterior é um corpo

sensível, assim como o intermediário (metacu), que é o corpo adjacente ao órgão

sensório e cuja matéria é modificada pelo composto hilemórfico do objeto exterior. Mas o

terceiro nível – o da sensação propriamente dita - já marca uma decisiva separação, a

saber, aquela entre a natureza da matéria e forma exteriores e a natureza da matéria e

forma interiores ao corpo que sente. Aqui temos o divisível em matéria e forma na

sensibilidade propriamente dita, quer dizer, a modificação do órgão sensível. A forma em

questão não é mais a de um objeto extenso tangível, mas tal como (toiondi) a apreende o

órgão sensório. A matéria aqui também não é aquela composta de elementos, tal como

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ocorre com os objetos externos, mas apenas a própria continuidade extensiva do

composto apreendido pelo órgão sensível. Mas aqui temos ainda uma dependência da

presença efetiva do objeto externo causador da sensação, além do o composto matéria-

forma reproduzir maximamente as peculiaridades individuais do objeto externo. Trata-se

aqui, não mais de matéria e forma brutas, mas ainda assim de uma matéria e forma, desta

vez internas. O quarto estágio, aquele da imaginação (fantasi¿a) já efetiva a apreensão

de um composto hilemórfico independentemente da presença efetiva do objeto externo,

como que efetivando a partir de um processo hilemórfico exclusivo do corpo que sente.

Em razão desta interioridade sensória - cuja autonomia faz lembrar a autonomia

inteligente da parte mais elevada da alma - e que, ao mesmo tempo, (como ainda veremos

mais nitidamente) é necessária para o advento desta última na alma - o Filósofo denomina

os dois termos com o nome do estágio seguinte: agora estamos diante da matéria

inteligível, sendo que a forma que lhe é própria, embora ainda material, também é

inteligível. Mas resta ainda o quinto estágio separativo da cognição, aquele em que a

inteligência atinge um objeto indivisível, coisa que somente a pura inteligência separada

o pode fazer. Agora a unidade cognitiva do objeto não é mais parcial, não é um composto

da forma com alguma espécie de matéria, mas a pura forma inteligível do objeto.

Mas é preciso acompanhar mais de perto o conjunto de coisas que responde a

pergunta: de que modo é possível a passagem de uma unidade hilemórfica para outra

mais simples? Temos, primeiro, que entender melhor algo fundamental para qualquer

sensação em geral:

"O ver ocorre quando aquilo que é capaz de perceber é afetado por algo;

mas é impossível que o seja pela própria cor que é vista; resta assim que o seja

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pelo intermediário (u(po\ tou= metacu). É necessário, então, que exista algo

intermediário” (De Anima, 419a15)

pa/sxontoj ga/r ti tou= ai¹sqhtikou= gi¿netai to\ o(ra=n: u(p' au)tou= me\n ouÅn tou= o(rwme/nou xrw¯matoj a)du/naton: lei¿petai dh\ u(po\ tou= metacu/, wÐst' a)nagkaiÍo/n ti eiånai metacu/:

Pode-se traduzir o trecho acima para uma linguagem cujos termos centrais sejam

o simples e o complexo. A passagem de um nível de unidade para outro mais simples se

faz mediante o oposto do simples, o complexo. Quanto mais simples a sensação que será

apreendida, mais complexo, ou seja, deverá ser o conjunto de efetivações necessárias

para atingi-lo. O corpo que sente deve, portanto, ser constituído de diversas partes que

proporcionem a devida separação entre o órgão propriamente receptor e as partes do

objeto apreendido pela sensação, de modo que cada parte do corpo que sente irá operar

uma separação determinada, uma seleção entre os aspectos materiais apreendidos e os

que são deixados para trás. Tal separação é instaurada no intermediário (metacu/) da

sensação. Assim, a complexidade do corpo que sente simplifica a complexidade do corpo

sensível por acentuar a separação. Em outras palavras: a complexidade do corpo que

sente reduz parte da complexidade do corpo sensível que poderia afetar o órgão

propriamente sensório. Tomemos o sentido do tato. Se não houvesse intermediário

(metacu/), não haveria tato, mas apenas contato, e o mesmo vale para os quatro sentidos

remanescentes. É que a sensação é a recepção do sensível, mas não enquanto matéria e

forma brutas, e sim apenas enquanto matéria e forma sutis e internas, isto é, apenas

enquanto passibilidades do órgão senciente. A separação impede que a matéria bruta da

coisa afete o sensório, permitindo apenas que sua forma seja comunicada através do

intermediário, ainda que tal forma carregue ainda certo grau de materialidade:

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"A parte sensível e a científica da alma são em potência estes objetos:

uma, o objeto de ciência; outra, o objeto sensível. Mas há a necessidade de que

sejam ou as próprias coisas ou as formas. Não são as próprias coisas, é claro:

pois não é a pedra que está na alma, mas a sua forma”. (De Anima, 431b24)

th=j de\ yuxh=j to\ ai¹sqhtiko\n kaiì to\ e)pisthmoniko\n duna/mei tau)ta/ e)sti, to\ me\n <to\> e)pisthto\n to\ de\ <to\> ai¹sqhto/n. a)na/gkh d' hÄ au)ta\ hÄ ta\ eiãdh eiånai. au)ta\ me\n dh\ ouÃ: ou) ga\r o( li¿qoj e)n tv= yuxv=, a)lla\ to\ eiådoj:

Assim o corpo simples e inanimado apenas recebe passivamente o complexo,

reproduzindo em si sua estrutura discreta, o que é contrário à possibilidade da sensação.

Por outro lado, a estrutura complexa do corpo que sente, embora venha a sofrer a ação do

corpo sensível, não se limita meramente a reproduzir passivamente sua estrutura, mas a

reapresenta segundo um aspecto mais simples e de status ontológico superior, pois não

apreende a matéria e forma brutas, mas apenas matéria e a forma internas. A unidade

atingida é superior porque é resultado de seu ulterior grau de separação.

A forma sensível captada pelo órgão sensório depende da presença do objeto

sensível, ainda que não do contato direto com o mesmo. Assim, a separação atingida aqui

ainda necessita de outra intensificação, na qual a forma sensível subsista e possa ser

representada a despeito da ausência do objeto que a originou. A apreensão da forma na

alma, no entanto, tende a reter apenas o que há de determinante de sua natureza intrínseca,

abstraindo de detalhes próprios da matéria individual. A matéria sensível é deixada de

lado, e o que permanece é a matéria inteligível. Esta é apenas a imagem mais simples do

que há de distintivo de sua matéria sensível e de sua forma sensível, esta última já

devidamente captada pelo órgão sensório quando na presença efetiva do objeto sensível.

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A distinção entre matéria sensível e inteligível é ilustrada pelo Filósofo no sétimo livro de

sua Metafísica:

"E existe uma matéria sensível e uma matéria inteligível; a sensível é, por

exemplo, o bronze ou a madeira ou tudo o que é suscetível de movimento; a

inteligível é, ao contrário, a que está presente nos seres sensíveis mas não

enquanto sensíveis, como os entes matemáticos." (Met. 1036a9)

uÀlh de\ h( me\n ai¹sqhth/ e)stin h( de\ nohth/, ai¹sqhth\ me\n oiâon xalko\j kaiì cu/lon kaiì oÀsh kinhth\ uÀlh, nohth\ de\ h( e)n toiÍj ai¹sqhtoiÍj u(pa/rxousa mh\ v ai¹sqhta/, oiâon ta\ maqhmatika/. Pelo trecho acima vimos que a matéria inteligível já rompeu a continuidade com a

sensação, pois "está presente nos seres sensíveis, mas não enquanto sensíveis”. Apenas

que é conveniente atentar para este outro trecho em que fica manifesto que também a

matéria sensível já passou por um grau de separação, a despeito do que poderíamos

inferir de sua identificação com a madeira e o bronze. Quando Aristóteles discute acerca

da possibilidade de abranger no enunciado (e)n t%½ lo/g%) definitório certas notas

materiais, escreve:

"E em certo sentido nem mesmo as letras da sílaba estão presentes no

enunciado (e)n t%½ lo/g%): por exemplo, estas letras particulares escritas na cera

ou estes sons emitidos no ar: também estes, na verdade, são partes da sílaba, mas

como matéria sensível." (Met. 1035a14)

eÃsti d' w¨j ou)de\ ta\ stoixeiÍa pa/nta th=j sullabh=j e)n t%½ lo/g% e)ne/stai, oiâon tadiì ta\ kh/rina hÄ ta\ e)n t%½ a)e/ri: hÃdh ga\r kaiì tau=ta me/roj th=j sullabh=j w¨j uÀlh ai¹sqhth/.

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Ou seja, as letras gravadas na matéria bruta exterior não entram em qualquer

definição, somente a sensível, aquela apreendida pelo órgão sensório, que não se

identifica de fato com coisa material, esta última alternativa podendo ser inferida pela

mera leitura do trecho anterior a este, mas que agora se mostra apenas como a indicação

que o Filósofo fornecia acerca da reprodução dos caracteres peculiares da coisa material,

incluindo sua mobilidade. É que neste estágio cognitivo, como já vimos, se faz necessária

a presença efetiva da coisa, com tudo o que tal presença implica, incluindo, obviamente, a

mobilidade.

No entanto, ainda aqui, neste estágio mais simples da estrutura da cognição, nota-

se uma certa complexidade, pois a forma e a matéria inteligível, ainda que inseparáveis

em efetividade, são separáveis pelo enunciado (lo/goj), pois um é o enunciado que

define a forma (da esfera de madeira, por exemplo) e outro o enunciado da matéria (no

caso, da madeira). Deste modo, a unidade separativa da forma aqui, embora mais

acentuada do que a unidade relativa aos graus inferiores - ainda pode atingir outro estágio,

ainda mais perfeito porquanto advindo de separação ulterior, em que a forma resulta

cindida não somente da matéria bruta e da sensível, mas até mesmo de sua expressão

mais simples: a matéria inteligível. Agora, temos, não mais a percepção de uma forma

material, mas a intelecção da pura forma inteligível, absolutamente simples. Esta não é

mais efetividade da parte senciente da alma, mas da inteligente, que Aristóteles afirma,

mais de uma vez, ser a única dotada de separatividade do todo anímico, pois ”não é

efetividade de parte alguma do corpo”. Contudo, o livro III do De Anima oferece uma

argumentação mais precisa neste sentido, pois Aristóteles efetua ali uma apreciação dos

modos de apreensão de realidades indivisas, em seus mais variados graus de unidade, até

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que infere a necessidade de uma parte cognoscente separada para uma certa espécie de

indivisibilidade.

O Estagirita formula primeiramente uma teoria da intelecção imanente do objeto

indivisível em geral, partindo da cognição das realidades contínuas:

"Já que o indivisível (a)diai¿reton) é de dois modos - ou em potência ou em

efetividade - nada impede a intelecção do indivisível quando se intelige o

comprimento (que não é dividido em efetividade) e isso em um tempo indivisível.

Pois o tempo tanto é divisível quanto indivisível, assim como o comprimento. E

não é possível dizer o que intelige em cada uma das metades, pois não existem

metades, se não forem divididas, exceto em potência. Mas, se intelige,

separadamente, cada uma das metades, divide simultaneamente também o tempo;

e então intelige como se fosse todo o comprimento. Se intelige, por outro lado,

como um composto de duas metades, também o faz em um tempo que abarca

ambas. Mas isso, por concomitância, e não como sendo divididos aquilo que

intelige e o tempo em que intelige, pelo contrário: como sendo indivisíveis. Mas

há nesses casos algo indivisível, mas não certamente separado, que faz o tempo e

o comprimento serem um só. E isso é similar em todo o contínuo: no tempo e no

comprimento”.(430b6)

to\ d' a)diai¿reton e)peiì dixw½j, hÄ duna/mei hÄ e)nergei¿#, ou)qe\n kwlu/ei noeiÍn to\ <diaireto\n vÂ> a)diai¿reton, <oiâon> oÀtan nov= to\ mh=koj (a)diai¿reton ga\r e)nergei¿#Ÿ, kaiì e)n xro/n% a)diaire/t%: o(moi¿wj ga\r o( xro/noj diaireto\j kaiì a)diai¿retoj t%½ mh/kei. ouÃkoun eÃstin ei¹peiÍn e)n t%½ h(mi¿sei ti¿ e)no/ei e(kate/r%: ou) ga\r eÃstin, aÄn mh\ diaireqv=, a)ll' hÄ duna/mei. xwriìj d' e(ka/teron now½n tw½n h(mi¿sewn diaireiÍ kaiì to\n xro/non aÀma, to/te d' oi¸oneiì mh/kh: ei¹ d' w¨j e)c a)mfoiÍn, kaiì e)n t%½ xro/n% t%½ e)p' a)mfoiÍn. [to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% th=j yuxh=j.] kata\ sumbebhko\j de/, kaiì ou)x v e)keiÍna, diaireta\ oÁ noeiÍ kaiì e)n %Ò xro/n%, a)ll' v <e)keiÍna> a)diai¿reta: eÃnesti ga\r ka)n tou/toij ti a)diai¿reton, a)ll' iãswj ou) xwristo/n, oÁ poieiÍ eÀna to\n xro/non kaiì to\ mh=koj. kaiì tou=q' o(moi¿wj e)n aÀpanti¿ e)sti t%½ sunexeiÍ, kaiì xro/n% kaiì mh/kei.

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Temos que focar a atenção no enunciado "aquilo que intelige" (oÁ noeiÍ), pois

assim atingiremos o que Aristóteles estabelece como "algo indivisível". Como entender a

afirmação de que há, nos casos de apreensão de um tempo e comprimento indivisíveis,

"algo indivisível, mas não certamente separado"? O fato de uma realidade indivisa ser

indivisa tanto em potência quando em efetividade, e o contínuo - como o tempo e o

movimento - ser algo não dividido em efetividade, já nos esclarece que sua divisão já

depende de algo extrínseco ao tempo e ao movimento. E que outra coisa extrínseca seria

senão a própria efetividade cognitiva de apreendê-los, que pode tomar dois tempos como

um só ou um como dois? Por outro lado, para dividir algo indivisível em potência é

preciso possuir uma indivisibilidade em maior grau que esta, o que significa: ser

indivisível em efetividade. É assim que a inteligência produtiva não pode ser dividida

nem em potência nem em efetividade. Sua efetividade é absolutamente simples. No

entanto, o Filósofo é firme ao negar a possibilidade de sua separação. O que isto significa?

Apenas o que dissemos acima, ao introduzir o tópico como aquele em que se constrói,

primeiramente, uma teoria da intelecção imanente das realidades indivisas. Aristóteles

aposta aqui na sua doutrina - já abordada na unidade correspondente - da unidade do ente

e do um. A unidade do ente decorre do próprio ser do ente, pois "o ente e o um são

conversíveis". Assim, mesmo que se trate de uma efetividade da inteligência que

determina o conteúdo do contínuo que deverá constituir a unidade indivisível, é a própria

efetividade em si, sendo um ente - quer dizer, algo que é - a responsável pela

indivisibilidade do tempo e o do movimento em questão, sem que para tal seja preciso

considerar o princípio efetivador correspondente como separado efetivamente.

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No parágrafo seguinte Aristóteles conduz tal imanência henológica até seu

extremo, para atingir assim a compreensão de um nível que, embora ainda respeite a

conversibilidade de ente e um, o faz de um modo radicalmente diferente:

“O que é indivisível - não em quantidade, mas em forma - é passível de

intelecção em um tempo indivisível e em uma efetividade indivisível da alma. O

ponto, bem como toda a divisão e o que é indivisível dessa maneira, se mostram

do mesmo modo que a privação. E um argumento semelhante aplica-se aos

outros casos, como, por exemplo, de que maneira toma-se conhecimento do mal e

do preto; pois se toma conhecimento, de alguma maneira, pelo que é contrário.

Mas o que toma conhecimento precisa ser em potência um contrário que contém

o outro, e se há algo que não tem contrário, então isso conhece a si mesmo, é em

efetividade e separado”.(430b20).

<to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% <t%> th=j yuxh=j.> h( de\ stigmh\ kaiì pa=sa diai¿resij, kaiì to\ ouÀtwj a)diai¿reton, dhlou=tai wÐsper h( ste/rhsij. kaiì oÀmoioj o( lo/goj e)piì tw½n aÃllwn, oiâon pw½j to\ kako\n gnwri¿zei hÄ to\ me/lan: t%½ e)nanti¿% ga/r pwj gnwri¿zei. deiÍ de\ duna/mei eiånai to\ gnwri¿zon kaiì (e)neiÍnai e)n au)t%½). ei¹ de/ tini mhde\n eÃstin e)nanti¿on [tw½n ai¹ti¿wn], au)to\ e(auto\ ginw¯skei kaiì e)ne/rgeia/ e)sti kaiì xwristo/n.

Agora a natureza da conversibilidade de ente e um na cognição atinge seu

extremo, pois mesmo no caso de privações, limites, contrários e outros correlatos deste

tipo, o pertencimento da unidade da inteligência à própria unidade de sua efetividade

continua valendo. Assim, nesses casos, é o correlato aquilo que permite a inteligência

conhecer um objeto, que deve ser em potência o correlato através do qual se conhece o

que é em efetividade. E o que devemos entender por "deve ser em potência o correlato”?

É que "no tocante ao que é sem matéria, o que intelige é o mesmo que o que é objeto de

intelecção” (e)piì me\n ga\r tw½n aÃneu uÀlhj to\ au)to/ e)sti to\ noou=n kaiì to\

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noou/menon:) (429b34). A intelecção do branco é justamente a efetividade que, em

virtude da potência para a sensibilidade do preto, conhece agora a natureza do branco.

Conhecer um dos contrários já significa conhecer o outro, ainda que este não se encontre

em efetividade. E mesmo vale para o ponto, que é limite da reta, quer dizer, negação de

sua continuidade, assim como os casos semelhantes que envolvem privação. Ora, quanto

à estrutura de efetividade dessa cognição, o que podemos inferir a partir destas palavras?

Algo é certo: a inteligência, para poder conhecer uma realidade que se mostra divisível

em contrários, tem de fazer parte desta contrariedade, pois se identifica com o contrário

potencial e conhece, a partir desta identificação, o outro contrário. A inteligência, embora

indivisível, de certo modo deve se duplicar, ainda que só de certo modo. Esta é a razão de

haver referência a duas inteligências em De Anima: uma potencial e outra efetiva. De

fato, no caso acima, a inteligência deve ser em potência um dos contrários para atingir o

outro. Mas como se trata de uma efetividade indivisível apenas decorrente da natureza

mesma de um contrário, que imediatamente conduz à referência do outro, não é

necessário pressupormos uma divisão nem em potência nem em efetividade da

inteligência, mas apenas uma estrutura intelectiva auto-referente. A inteligência tem o

caráter da recursividade, de se voltar para si mesma, como que para apreender a

dualidade do objeto, mesmo que ela não se cinda de fato. Mas este caráter recursivo

imanente ainda não é o aspecto mais eminente da potência intelectiva. Continuemos

nossa investigação.

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Unidade e Separação na Intelecção

Tomemos novamente aquela passagem do De Anima:

“Já que o indivisível é dois modos – ou em potência ou em efetividade –

nada impede que a intelecção do indivisível quando se pensa o comprimento (que

não é dividido em efetividade) e isso em um tempo indivisível. Pois o tempo é

divisível e indivisível, assim como o comprimento. E não é possível dizer o que

intelige em cada uma das metades, pois não existem metades, exceto em potência.

Mas se atinge, separadamente, cada uma das metades, divide simultaneamente

também o tempo; e então intelige como se fosse todo o comprimento. Se atinge,

por outro lado, como um composto de duas metades, também o faz em um tempo

que abarca a ambas. Mas isso por concomitância – e não como sendo divididos

aquilo que intelige e o tempo em que atinge, pelo contrário: como sendo

indivisíveis. Pois há nesses casos algo indivisível, embora não certamente

separado, que faz o tempo e o movimento sendo um só. E isso é similar em todo

contínuo: no tempo e no comprimento.”

to\ d' a)diai¿reton e)peiì dixw½j, hÄ duna/mei hÄ e)nergei¿#, ou)qe\n kwlu/ei noeiÍn to\ <diaireto\n vÂ> a)diai¿reton, <oiâon> oÀtan nov= to\ mh=koj (a)diai¿reton ga\r e)nergei¿#Ÿ, kaiì e)n xro/n% a)diaire/t%: o(moi¿wj ga\r o( xro/noj diaireto\j kaiì a)diai¿retoj t%½ mh/kei. ouÃkoun eÃstin ei¹peiÍn e)n t%½ h(mi¿sei ti¿ e)no/ei e(kate/r%: ou) ga\r eÃstin, aÄn mh\ diaireqv=, a)ll' hÄ duna/mei. xwriìj d' e(ka/teron now½n tw½n h(mi¿sewn diaireiÍ kaiì to\n xro/non aÀma, to/te d' oi¸oneiì mh/kh: ei¹ d' w¨j e)c a)mfoiÍn, kaiì e)n t%½ xro/n% t%½ e)p' a)mfoiÍn. [to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% th=j yuxh=j.] kata\ sumbebhko\j de/, kaiì ou)x v e)keiÍna, diaireta\ oÁ noeiÍ kaiì e)n %Ò xro/n%, a)ll' v <e)keiÍna> a)diai¿reta: eÃnesti ga\r ka)n tou/toij ti a)diai¿reton, a)ll' iãswj ou) xwristo/n, oÁ poieiÍ eÀna to\n xro/non kaiì to\ mh=koj. kaiì tou=q' o(moi¿wj e)n aÀpanti¿ e)sti t%½ sunexeiÍ, kaiì xro/n% kaiì mh/kei.

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Assim, a apreensão do indivisível quantitativo é, por um lado, indivisa, e, por

outro, dividida, sendo ambas resultado de efetivadores imanentes à própria efetividade

cognitiva. O que pretende Aristóteles ao dizer que “há algo indivisível, embora não

separado” é que a estrutura que dá suporte a tal intelecção é de tal natureza que não

permite divisibilidade, embora seja imanente à própria intelecção e aos seus inteligíveis.

Ora, como seria dividida a própria estrutura do efetivador, se este é condição de toda a

divisibilidade da efetividade? Se o que efetiva tal apreensão é a inteligência, e é o modo

como esta intelige o tempo e o comprimento que determina a possível divisibilidade,

então não há porque tomar a estrutura da inteligência como afetada por este processo,

pois ela é que é o agente divisor. Na verdade, a indivisibilidade da inteligência é apenas o

correlato subjetivo da própria indivisibilidade do tempo e do comprimento, embora seja

um correlato agente, pois é a unidade da inteligência que confere unidade ao objeto

inteligível. No entanto, a efetividade agente ainda não goza, aqui, de suficiente autonomia

relativamente ao restante da efetividade, para que possa reivindicar alguma espécie de

separação da mesma. É como se a estrutura indivisa da efetividade fosse apenas o aspecto

agente e formal da efetividade como um todo, estrutura essa inseparável do restante

passivo da efetividade, ou seja, dos objetos particulares de intelecção, no caso, o tempo e

o comprimento.

Há, no entanto, ainda outras intelecções cuja estrutura Aristóteles teve de

investigar: a intelecção polarizada e a intelecção formal. A primeira, relativa ao

conhecimento dos contrários, já foi descartada como possível esfera de separação do

princípio inteligente, pois sua unidade própria decorre da própria estrutura dos contrários.

Resta, então, a segunda.

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A apreensão do indivisível formal – quer dizer, a intelecção das formas - é sempre

indivisa em si mesma e perfeita em um tempo indivisível. Por outro lado, a apreensão do

indivisível polarizado é indivisa e não separada. Ambas as intelecções têm em comum o

fato de efetivarem uma unidade separativa quanto à distinção entre o enunciado que

expressa a natureza do princípio inteligente e aquele que expressa a natureza do princípio

passível de intelecção, pois um é o passível de intelecção, enquanto o outro é o produtor

de intelecção.

Aristóteles, porém, mostra que há um salto ontológico na passagem da

inteligência que apreende os contrários e aquela que apreende as formas. A apreensão do

indivisível não polarizado é, além de indivisível, separado, pois aqui não há outro modo

de manter a indivisão a não ser fazendo a efetividade voltar sobre si mesma para perfazer

a efetividade cognitiva, o que separa esta efetividade de todo conteúdo extrínseco e

material:

“O que é indivisível – não em quantidade, mas em forma – é pensado em um

tempo indivísvel e em um ato indivisível da alma. O ponto, bem como toda divisão

e o que é indivisível dessa maneira, mostram-se do mesmo modo que a privação.

E um argumento semelhante aplica-se aos outros casos, como, por exemplo, de

que maneira toma-se conhecimento do mal ou do preto; pois toma-se

conhecimento, de alguma maneira, pelo que é contrário. Mas o que toma

conhecimento precisa ser em potência um contrário que contém o outro, e se há

algo que não tem contrário, então isso conhece a si mesmo, é efetividade e

separado.” (430b20)

<to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% th=j yuxh=j.> h( de\ stigmh\ kaiì pa=sa diai¿resij, kaiì to\ ouÀtwj a)diai¿reton, dhlou=tai wÐsper h( ste/rhsij. kaiì oÀmoioj o( lo/goj e)piì tw½n aÃllwn, oiâon pw½j to\ kako\n gnwri¿zei hÄ to\ me/lan: t%½ e)nanti¿% ga/r pwj gnwri¿zei. deiÍ de\ duna/mei eiånai to\

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gnwri¿zon kaiì e)neiÍnai e)n au)t%½. ei¹ de/ tini mhde\n eÃstin e)nanti¿on [tw½n ai¹ti¿wn], au)to\ e(auto\ ginw¯skei kaiì e)ne/rgeia/ e)sti kaiì xwristo/n.

O indivisível não polarizado é a forma da essência, pois esta – conforme nos

informa Categorias 83 – não possui contrário. A cognição da essência, portanto, não

provém da mera referência mútua dos contrários, mas de uma efetividade ainda mais una,

o que requer um efetivador cuja unidade seja da mesma natureza da unidade da essência,

que é separada. Neste ponto o Filósofo alude, simultaneamente, à separação própria da

inteligência, parte da alma que adquire a prerrogativa da independência do todo anímico

de que é a efetividade mais eminente. Enquanto as outras partes da alma são efetivações

somente da parte corpórea a que estão circunscritas, a parte inteligível da alma é

efetividade de toda alma, o que, longe de torná-la mais dependente deste todo, a torna

capaz de autonomia quanto ao ser. (DA. 3,6)

A unidade separativa da inteligência é, portanto, dedutível da unidade própria de

seu objeto, que é radicalmente diversa daquela dos objetos sensíveis. Os objetos

inteligíveis são as essências de cada um dos objetos sensíveis captados pelos órgãos

sensórios. A essência de cada coisa possui uma espécie de autarquia, ou seja, "o ter a si

mesmo por princípio". A apreensão de tal autarquia não pode advir meramente da própria

unidade imanente do objeto sensível. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, na

apreensão de um contrário, que é conhecido já pela apreensão do outro contrário, a

essência de uma coisa, não tendo contrário e nem podendo ser dividida como as

quantidades contínuas, só pode ser apreendida por um algo uno e separado da unidade

daquele objeto. A matéria em geral, de que o objeto sensível e sua forma sensível são

83 Cat. 3b25

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constituídos não é autárquica, pois é sempre em potência, o que a torna indefinida quanto

a um ou outro contrário. A matéria, assim, precisa de um outro princípio que a determine.

No caso, porém, da apreensão da unidade da quantidade e dos contrários, por exemplo, o

princípio unificador se confunde, de certo modo, com a matéria, pois a forma una aqui é

nada mais que a matéria em efetividade assumindo sua determinação própria. A autarquia

da essência, por outro lado, exige um princípio cognitivo também autárquico, quer dizer,

um princípio auto-referente, auto-enunciativo pela própria natureza autárquica de sua

efetividade. A inteligência auto-referente atinge seus objetos inteligíveis - isto é, as

essências - pela auto-referência que compartilha com estas; a auto-referência do objeto é

idêntica à auto-referência do sujeito, isto é, ambos são puramente formais, sem matéria.

O atingir um objeto inteligível requer a) a matéria, onde a forma inteligível existe em

potência e eternamente, e b) a inteligência, em que, b.1) por um lado, o objeto inteligível

existe em efetividade (quando a inteligência o atinge), mas não eternamente e, b.2) por

outro lado, em potência (quando a inteligência não a atinge) e não eternamente. Nos três

casos (a, b1 e b2), portanto, a forma inteligível não existe eternamente em efetividade. O

lugar da forma inteligível é a própria inteligência, que se torna, efetivamente, cada um

dos inteligíveis, pois “a ciência efetiva é idêntica a seu objeto”. Mas o que se significa,

precisamente, esta identificação? Significa que a auto-referência da inteligência se torna o

objeto auto-referente apenas porque a auto-referência do objeto é produto da auto-

referência da inteligência que se torna o próprio objeto enquanto esta auto-referência

atual. Mas isto não significa que a inteligência modifique a si mesma segundo a natureza

deste objeto, pois ela é este objeto somente enquanto, simultaneamente, é todas os outros

objetos inteligíveis, pois a auto-referência não precisa se modificar a si mesma para ser,

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ao mesmo tempo, todas as outras auto-referências. Portanto, dizer que a) a inteligência

produziu (enquanto produtiva), b) se tornou (enquanto passível) e c) pereceu (novamente

enquanto passível) são modos diferentes, perspectivas diversas para dizer o mesmo. O

último caso é apenas uma conseqüência natural do que foi dito, pois, se nenhuma forma

subsiste eternamente em efetividade, o seu retorno para a potência (após ter sido

inteligida pela inteligência enquanto passível) pode ser descrito como um perecimento da

inteligência passível, ou seja, uma invalidação da perspectiva da inteligência enquanto

passível para aquele caso em questão.

A auto-referência enquanto tal, própria da inteligência, não pode ser destruída,

não somente por ser absolutamente indivisível, mas por não encontramos além dela

mesma a razão de sua indivisibilidade. Quanto à questão de uma individualidade imortal

da inteligência, não atingimos ainda uma resposta muito clara para tal. Teremos que

perfazer ainda algumas etapas acerca de sua teoria da intelecção. Por enquanto, uma coisa

é certa: a individualidade da inteligência não é afetada pela sua doutrina da memória

corruptível, porquanto o indivíduo, em Aristóteles, é condicionado pela auto-referência,

mais do que pelas notas intrínsecas diferenciadoras, embora estas últimas sejam, em geral,

fator decisivo. Assim, o fato de escrever que a inteligência imortal não nos oferece a

memória, em nada torna tal inteligência algo universal e comum a todos os homens. A

essência primeira é o indivíduo, e este se caracteriza por não ser predicado de coisa

alguma, de sustentar a si mesmo, mesmo quando nada podemos afirmar acerca de sua

distinção de outros indivíduos. É o tipo de auto-referência própria de uma essência o que

realmente a torna um indivíduo. É com base nesta auto-referência que as notas distintivas

fazem valer a individualidade. No entanto, ainda temos de atingir o problema da eventual

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individualidade da inteligência imortal. Quando Aristóteles afirma que a inteligência

imortal não tem memória, o que exatamente ele pretende? Isto será decisivo para a

compreensão da natureza da unidade separativa atingível pela inteligência.

Aproximação da Solução do Problema

Submetamos o célebre trecho à reflexão:

“E a ciência efetiva é o mesmo que seu objeto, ao passo que a ciência

potencial é temporalmente anterior em cada indivíduo, embora em geral nem

mesmo quanto ao tempo seja anterior, pois não é o caso de que hora pensa, ora

não pensa. Somente isto quando é separado é propriamente o que é, e somente

isto é imortal e eterno (mas não nos lembramos, porque isto é impassível, ao

passo que a inteligência passível de ser afetada é perecível), e sem isto nada se

pensa.” (430a19)

to\ d' au)to/ e)stin h( kat' e)ne/rgeian e)pisth/mh t%½ pra/gmati: h( de\ kata\ du/namin xro/n% prote/ra e)n t%½ e(ni¿, oÀlwj de\ ou)de\ xro/n%, a)ll' ou)x o(te\ me\n noeiÍ o(te\ d' ou) noeiÍ. xwrisqeiìj d' e)stiì mo/non tou=q' oÀper e)sti¿, kaiì tou=to mo/non a)qa/naton kaiì a)i¿+dion (ou) mnhmoneu/omen de/, oÀti tou=to me\n a)paqe/j, o( de\ paqhtiko\j nou=j fqarto/jŸ: kaiì aÃneu tou/tou ou)qe\n noeiÍ.

Ora, o texto afirma que somente a inteligência produtiva, quando separada, é

imortal e divina, e não - ao contrário do suposto até agora - que toda inteligência

produtiva é imortal.

Com base nesta observação textual, suponhamos então a seguinte solução.

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Há 1) a inteligência passível, perecível e não-separada; 2) a inteligência produtiva,

imperecível e não-separada (a que não produz a memória); e 3) a inteligência produtiva,

imperecível e separada. A inteligência humana atinge somente os níveis 1) e 2), o nível 3)

cabendo somente aos motores imóveis, que são as inteligências dos corpos celestes. A

inteligência do homem, embora individual quanto à sua efetividade, é mortal, embora não

passe por processo de corrupção, pois "a forma não se gera, mas apenas é ou não é".

Somente a partir destes sentidos poderíamos então falar de imperecibilidade da

inteligência produtiva. Em outra esfera – relativa aos motores imóveis (3) - seria

estritamente imperecível, porém inumana. Por outro lado (2), seria genuinamente humana,

porém não estritamente imperecível. Assim, ficaria afastada a possibilidade de uma

inteligência produtiva humana e imortal.

É muito cedo, porém, para adotar tal solução sem reservas. Ela poderá se mostrar

forçada ou contrariar o próprio espírito da psicologia aristotélica. É mais razoável

continuarmos aprofundando o problema da relação entre inteligência, inteligível e a

totalidade anímica que dá suporte a tal processo. Como vimos no tópico anterior, ainda

não está concluída a impossibilidade doutrinal de uma imortalidade individual em

Aristóteles. Após um aprofundamento da relação inteligência-inteligível, talvez possamos

clarificar a possibilidade de imortalidade da primeira. Para tal, será preciso verificarmos

outra possibilidade: a indepenência intelectiva de todo inteligível material.

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Relação Inteligência-Inteligível

Examinemos o seguinte silogismo, cujas premissas decorrem do próprio texto

aristotélico, e aprofundemos todo o sentido da conclusão, com o fito de decidir acerca de

sua possível pertinência doutrinal.

Se a) quando em efetividade, a inteligência e o objeto de intelecção são o mesmo;

b) a inteligência atinge a essência ; c) a essência é separada; então d) a inteligência, em

efetividade, é uma essência separada da essência anímica de que faz parte.

A inteligência é assim entendida como uma efetividade da alma cuja forma é

separada das partes materiais que a alma efetiva, porquanto é efetividade de toda a

efetividade da alma, e não de uma efetividade específica identificada com a matéria

(como seria o caso se fosse como a visão para os olhos). Contudo, embora a inteligência

efetiva seja separada da matéria na medida em que sua simplicidade não pode ser descrita

por nada de complexo, ainda assim a inteligência pode não subsistir sem o suporte

material. Com efeito, dissolvendo-se este, também seria dissolvida a efetividade

correspondente - a alma - e do mesmo modo a efetividade da alma, a inteligência.

Por outro lado, no instante em que inteligimos um puro objeto inteligível, a

inteligência se torna o próprio objeto, e se torna separada assim como seu objeto (pois a

inteligência intelige objetos separados ou enquanto separados), pois tal efetividade já não

está ligada a nenhuma parte do corpo. A forma de tal efetividade intelectiva, neste

instante, é perfeitamente voltada para si mesma, separadamente de qualquer outra forma.

Além disso, tal separação não é apenas conceitual, quer dizer, não é apenas tomada

enquanto separada. Mas a completude da forma inteligente, que se torna em efetividade o

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que atinge enquanto separado, não implica necessariamente a completude da separação

da própria efetividade, que pode não subsistir sem aquilo de que é efetividade, a alma.

Resta, portanto, que o imortal na inteligência humana seja a forma do momento

da intelecção, cuja forma separada de identidade sujeito-objeto é idêntica em todas as

inteligências imortais celestes. Imortal seria então a estrutura de auto-referência presente

na inteligência. Separada, portanto, é somente a forma da efetividade, que se volta para si

mesma, como que se duplicando, ainda que não exatamente. Em Ética a Nicômaco lemos

o preceito da aproximação ao limite com a imortalidade divina a partir do que há de

imortal em nós84. É inevitável uma alusão à Ética de Espinosa (“conceber sob a espécie

da eternidade”, “sentimos que somos eternos”, “a compreensão de uma necessidade,

como de uma essência, é idêntica em Deus e no Homem”).

Voltemos à análise aristotélica da natureza da efetividade inteligente:

"É pela capacidade sensível, por conseguinte, que se distingue o quente do frio,

assim como um certo enunciado da carne; mas é por outra capacidade - ou

separada, ou como a linha dobrada dispõe de si mesma quando estendida - que

se discerne o ‘ser carne’." (DA, 429b10)

t%½ me\n ouÅn ai¹sqhtik%½ to\ qermo\n kaiì to\ yuxro\n kri¿nei, kaiì wÒn lo/goj tij h( sa/rc: aÃll% de/, hÃtoi xwrist%½ hÄ w¨j h( keklasme/nh eÃxei pro\j au(th\n oÀtan e)ktaqv=, to\ sarkiì eiånai kri¿nei.

Aqui Filósofo pretende distinguir entre discernimento por a) sensação das

qualidades primárias que, em uma proporção tal que pode ser expressa por um enunciado

(lo/goj), constituem a carne e b) por intelecção do próprio ser da carne, ou seja, sua

essência, que nada mais é que sua forma inteligível.

84 Para uma apurada reflexão sofre tal exigência ética e sua relação com o problema da imortalidade em Da Alma, ver De Corte,1934, pág. 98.

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A aporia deixada no fim do trecho diz respeito ao tipo de heterogeneidade própria

desta capacidade. Pode ser que a) esta seja separada verdadeiramente das outras

capacidades ou b) seja apenas "como que" separada, por uma inflexão de outra faculdade

sobre si mesma, assim como ocorre no exemplo fornecido, da linha que, dobrada sobre si

mesma, dispõe de si assim como outra linha o faria, embora nem por isso se tratasse

verdadeiramente de outra linha.

Agora estamos mais próximos de uma solução mais satisfatória para o problema

da separação da inteligência. Contudo, ainda resta a exigência de individualidade do

princípio cognitivo. Pois, se a inteligência é a ‘forma das formas’ e a essência das

essências, sendo a essência algo individual, evidentementemente a individuação é uma

perfeição que não pode faltar à inteligência, se quisermos ser fiéis ao espírito da doutrina

metafísica aristotélica como um todo.

Modo de Imortalidade da Inteligência

Aristóteles escreve que a inteligência produtiva, quando separada, é imortal e

eterna (a)qa/naton kaiì a)i¿+dion):

“Somente isto, quando separado, é propriamente o que é, e somente isto é imortal

e eterno (mas não nos lembramos, porque isto é impassível, ao passo que a

inteligência passível de ser afetada é perecível), e sem isto nada intelige.” (DA,

430a22)

xwrisqeiìj d' e)stiì mo/non tou=q' oÀper e)sti¿, kaiì tou=to mo/non a)qa/naton kaiì a)i¿+dion (ou) mnhmoneu/omen de/, oÀti tou=to me\n a)paqe/j, o( de\ paqhtiko\j nou=j fqarto/jŸ: kaiì aÃneu tou/tou ou)qe\n noeiÍ.

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Destas duas notas – imortalidade e eternidade - a primeira não faz referência ao

passado, pois a imortalidade é simplesmente o ser imune à morte. Assim, somente o

presente e o futuro são necessários para a compreensão da imortalidade de algo. Por outro

lado, a segunda nota já envolve necessariamente o passado, pois a eternidade envolve

todos os tempos, quer dizer, o que é eterno existe e existirá, mas, além disso, sempre

existiu. Daí que, logo que afirma a eternidade da inteligência, Aristóteles se veja obrigado

a emitir um juízo que torne razoável o fato de não nos recordarmos do passado infinito

vivenciado em nossas existências intelectivas anteriores à presente efetividade material. E

o fato de Aristóteles utilizar a primeira pessoa do plural ao dizer "não nos lembramos"

(ou) mnhmoneu/omen) é uma boa evidência de que a imortalidade por ele concebida é de

ordem pessoal, isto é, não se trata aqui de uma inteligência universal que se introduziria

no sujeito, inteligiria por ele e seria compartilhada por todos os homens, como que por

um processo de participação (kata\ me/qecin) platônica pela qual as coisas particulares

participam das suas Idéias. Nada seria mais estranho ao espírito de Aristóteles, para quem

o verdadeiro ente, como já vimos, é de natureza individual. Se a inteligência é imortal,

deve ser enquanto indivíduo, ainda que seja difícil conceber um indivíduo sem memória.

Esta espécie sui generis de imortalidade decorre dos próprios fundamentos da psicologia

aristotélica. Logo que afirma que não nos lembramos, o Filósofo propõe, como razão

suficiente, o fato de a inteligência produtiva ser impassível85 (a)paqe/j), o que já contém

implícita a premissa que já espera do leitor dos estudos acerca da natureza da memória, a

qual envolve, necessariamente, passibilidades. Mas a inteligência passível - acrescenta - é

perecível. Então compreendemos a dupla impossibilidade da recordação do tempo

85 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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infinito. Por um lado, a inteligência que vivencia o tempo infinito não pode reter qualquer

lembrança. Por outro lado, a inteligência que poderia se lembrar de tudo - a passível - não

tem o poder de vivenciá-los, pois não existiu durante todo esse tempo e nem permanecerá

no ser após o tempo atual.

Ao declarar que "a ciência efetiva é o mesmo que o objeto, ao passo que a ciência

potencial é temporalmente anterior em cada indivíduo, embora em geral nem mesmo

quanto ao tempo seja anterior86" (to\ d' au)to/ e)stin h( kat' e)ne/rgeian e)pisth/mh

t%½ pra/gmati: h( de\ kata\ du/namin xro/n% prote/ra e)n t%½ e(ni¿, oÀlwj de\ ou)de\

xro/n%), Aristóteles se refere à vida do indivíduo enquanto pura inteligência, vida essa

que precede a vida no composto hilemórfico em que, posteriormente, sua pura

inteligência se colocou. Logo a seguir, acrescenta a título de conclusão que "não é o caso

de que ora intelige, ora não intelige"87 (ou)x o(te\ me\n noeiÍ o(te\ d' ou) noeiÍ.). É que a

inteligência sempre inteligiu, mesmo antes de sua introdução neste corpo físico. Assim

fica claro o único sentido segundo o qual a inteligência potencial é anterior à inteligência

produtiva. Trata-se da referência às efetivações particulares que a inteligência produtiva

efetua neste corpo físico, que pressupõem a prévia efetividade da inteligência potencial.

Mas qual a necessidade de tal pressuposição? A resposta a tal pergunta esclarece

também uma velha polêmica, acerca da unidade ou diversidade entre as duas

inteligências. Enquanto certos estudiosos aderem à idéia de que se trata realmente de dois

princípios distintos, outros já avaliam de um modo menos radical a distinção efetuada

pelo Filósofo, considerando-a como meramente conceitual. Na verdade, ambos tem razão,

cada qual em aspecto limitado do problema. Vejamos de perto isso.

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Por um lado, as duas inteligências são realmente distintas, e a imortalidade

concedida a apenas uma delas é o fato mais marcante de tal distinção. Ocorre, porém, que

as duas estão em estreita relação. A inteligência produtiva é a causa produtora das formas

que surgem na inteligência potencial, como uma espécie de motor imóvel e em

efetividade relativamente ao seu movido. Não obstante, uma vez apreendida a forma

inteligível em sua natureza, a inteligência potencial se torna efetiva de modo idêntico à

efetividade da inteligência produtiva, pois o fato de captar a forma é a efetividade de toda

inteligência, mesmo da agente. Neste momento, fica claro que, não apenas a inteligência

potencial é idêntica a seu objeto, mas também é idêntica à inteligência produtiva. Deste

modo, podemos nos referir agora a duas inteligências em efetividade: a inteligência

potencial efetivada e a inteligência produtiva efetivadora, esta sendo pura efetividade.

Sob tal perspectiva, foquemos nosso entendimento na seguinte passagem:

"Assim, quando a inteligência se torna cada um dos objetos de ciência no sentido

em que isso se diz daquele que tem a ciência efetiva (e isso ocorre quando é

possível efetivar por si mesmo, ainda nesta circunstância a inteligência está de

certo modo em potência, embora não como antes de aprender ou descobrir; e

agora, ela mesma é capaz de inteligir a si mesma." (DA 429b4)

oÀtan d' ouÀtwj eÀkasta ge/nhtai w¨j o( e)pisth/mwn le/getai o( kat' e)ne/rgeian (tou=to de\ sumbai¿nei oÀtan du/nhtai e)nergeiÍn di' au(tou=Ÿ, eÃsti me\n kaiì to/te duna/mei pwj, ou) mh\n o(moi¿wj kaiì priìn maqeiÍn hÄ eu(reiÍn: kaiì au)to\j di' au(tou= to/te du/natai noeiÍn.

Assim compreendemos a origem da polêmica acerca da identidade das duas

inteligências aristotélicas, que sempre se resumiu na indagação: “Afinal, são dois

princípios distintos de fato ou apenas conceitualmente?” Por um lado, há momentos em

86 DA, 430a19 87 DA, (430a.22)

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que o Filósofo parece indicar uma identidade real entre as duas, identidade essa limitada

apenas em virtude das concepções diferentes e até opostas que obtemos de cada uma,

visto que uma recebe o objeto inteligível, sendo “capaz de se tornar todas as coisas”,

enquanto a outra tem seu caráter efetivo deduzido do fato de “produzir todas as coisas”.

Em outros momentos, porém, parece mais nítida e marcada a separação efetiva entre

estes dois princípios, tal demarcação se mostrando decisiva notadamente no tocante à

corruptibilidade de uma e à imortalidade da outra.

Ora, a inteligência a que Aristóteles se refere acima, embora atinja a intelecção de

si mesma e seja efetiva, não é a inteligência produtiva separada que sobrevive à

dissolução do corpo vivo. No entanto, este princípio cognitivo possui auto-intelecção e

efetividade, duas notas que compartilha com seu correlato produtivo. Na verdade, a

inteligência potencial - não obstante sua transitoriedade e corruptibilidade, próprias de

um princípio mais receptivo do que ativo, mais potencial do que efetivo - também

adquire, em determinado momento de sua enformação, a virtude de existência efetiva e a

estrutura auto-efetiva que caracteriza a inteligência produtiva. Em poucas palavras

podemos afirmar: a inteligência potencial passa então, em certo sentido, a ser a

inteligência produtora de si mesma.

Vimos neste capítulo que a auto-efetividade, própria dos entes auto-enformativos,

é ainda mais radical daquela percebida nas essências, os entes auto-efetivos mais

primários que existem. Enquanto o ser vivo assume de uma vez por todas, desde sua

gênese, a única forma que determina toda a sua natureza, algo mais é possível com os

entes inteligentes: são dotados da faculdade de produzir a própria forma de sua

efetividade, cada determinação assumida pela sua potencialidade imanente. Ora, a forma

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inteligente sempre está associada a uma forma inteligível, correspondente objetivo do

princípio inteligente. E tal forma se encontra, de certo modo, no próprio princípio que a

atinge, na própria inteligência, que por isso diremos ser auto-enformativa, porquanto

produz sua própria forma.

Entre este último nível e o quinto há, contudo, um pequeno parêntese a ser

considerado. É que, em determinada passagem, Aristóteles afirma - e tal coisa

investigamos neste capítulo - o fato da auto-intelecção, algo que atribuímos

preferencialmente à inteligência infinita do motor imóvel, mas que naquela passagem de

Da Alma era associado à finita inteligência humana. Na verdade, há intérpretes88 que

atribuem a passagem correspondente à própria inteligência infinita. Afirmam estes ter

havido um mal-entendido, portanto, acerca de um breve enunciado teológico em uma

obra psicológica. No capítulo a seguir tocaremos este tópico crucial, com o intuito de

explicitar tais aporias e propor uma alternativa no sentido de uma solução razoavelmente

compatível com a filosofia aristotélica.

88 Segundo Maria Cecília Gomes do Reis, há na verdade um consenso entre os comentadores acerca do caráter teológico da passagem 430b26 (Gomes dos Reis, 2006, pág. 312)

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UNIDADE DO MOTOR IMÓVEL

Na teologia de Aristóteles, o primado henológico da forma se reflete na forma da

determinação da natureza do motor imóvel como inteligência pura.

O Livro Q da Física também conclui na existência de motores imóveis. Ali,

contudo, não se trata especificamente da essência supra-sensível que Aristóteles

estabelece no cume do que denominamos escala autológica do ente. Não há ali uma

definição do ser do motor imóvel relativamente ao puro ente, essência, alma e

inteligência, ao contrário do que ocorre no Livro L da Metafísica, onde o Filósofo não se

limita a determinar a existência da motricidade imóvel em geral, mas concentra sua

investigação em uma determinada espécie de motor imóvel, esclarecendo, inclusive, sua

real natureza como princípio efetivo do ente em geral, a primeira das essências, entidade

sumamente vivente e infinitamente inteligente. Isto significa que a natureza infinita deste

ente concentra em si todas as perfeições dos graus inferiores dos entes.

Nada disso encontramos no Livro Q da Física. Porém, o que de mais importante

há neste último diz respeito à própria gênese da idéia de um motor imóvel, que

Aristóteles procura em outra idéia motriz: a auto-mobilidade.

É no interior do auto-motor que o Filósofo atinge a necessidade do motor imóvel.

Esta é a nova perspectiva investigativa definida por Aristóteles:

“Temos de partir agora de outro princípio e examinar isto: se algo move a si

mesmo, como e de que maneira o faz?

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Pois bem, todo o movente tem que ser divisível em partes sempre divisíveis,

porque, como foi mostrado em nossas considerações gerais sobre a natureza,

todo movente por si é contínuo. É impossível, então, que o que move a si mesmo

mova a si mesmo em sua integridade; porque, se assim fosse, ao ser

especificamente uno e indivisível seria deslocado em sua totalidade e deslocaria

com o mesmo deslocamento, e seria alterado e alteraria, e portanto ensinaria e

ao mesmo tempo receberia ensinamento, curaria e seria curado com a própria

cura.”

wÐste tou=to skepte/on labou=sin aÃllhn a)rxh/n, eiã ti kineiÍ au)to\ au(to/, pw½j kineiÍ kaiì ti¿na tro/pon. a)nagkaiÍon dh\ to\ kinou/menon aÀpan eiånai diaireto\n ei¹j a)eiì diaireta/: tou=to ga\r de/deiktai pro/teron e)n toiÍj kaqo/lou toiÍj periì fu/sewj, oÀti pa=n to\ kaq' au(to\ kinou/menon sunexe/j. a)du/naton dh\ to\ au)to\ au(to\ kinou=n pa/ntv kineiÍn au)to\ au(to/: fe/roito ga\r aÄn oÀlon kaiì fe/roi th\n au)th\n fora/n, eÁn oÄn kaiì aÃtomon t%½ eiãdei, kaiì a)lloioiÍto kaiì a)lloioiÍ, wÐste dida/skoi aÄn kaiì manqa/noi aÀma, kaiì u(gia/zoi kaiì u(gia/zoito th\n au)th\n u(gi¿eian. É, pois, a relação do movente consigo mesmo o foco da reflexão acima. A

primeira hipótese, de que o auto-movido mova a si mesmo em sua totalidade, é logo

descartada. Se tal fosse o caso, seria o mesmo que dizer que cada parte do auto-movido

participa do mover e do ser movido simultaneamente e no mesmo aspecto, seja qual for

este aspecto. É que, se a totalidade é auto-movida, então cada parte detém a potência do

auto-movimento, o que significa ter em si os dois caracteres de um auto-movido, quais

sejam, o de mover e o de ser movido. Ora, isto conduz a inúmeros absurdos, alguns dos

quais indicados acima pelo Filósofo: a mesma parte que aquece (ou seja, que move a

temperatura) também será aquecida segundo o próprio aspecto e instante em que aquece.

Haveria uma contradição do movente consigo mesmo em cada instância de seu ser e sob

o mesmo aspecto. O princípio de não-contradição, aqui implícito na argumentação,

determina “o mesmo não pode, ao mesmo tempo, estar presente e não estar presente no

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mesmo e segundo o mesmo”. Ora, neste caso, o ser movido e o ser motor estariam

presentes, ao mesmo tempo, em cada parte do auto-movente e segundo o mesmo aspecto,

ou seja, segundo o mesmo tipo de movimento.

Mas o Filósofo logo descarta a necessidade de tal conclusão:

Além disso, não é necessário que o motor seja movido senão por si mesmo; logo,

a outra parte pode causar um movimento recíproco, mas só por concomitância.

Se é assim, admitamos a possibilidade de que não mova: há então, de um lado,

um movente e, de outro lado, outra que é um motor imóvel. Ademais, não é

necessário que o motor seja reciprocamente movido; mas se é necessário que

haja sempre movimento, então ou algo move, sendo imóvel, ou algo é movente

por si mesmo. Ainda assim, o que move seria movido com o mesmo movimento

com que move, e assim o que aquece seria aquecido.

Ora, o que primeiramente move a si mesmo não pode ter uma ou mais partes que

se movam cada uma a si mesma. Porque se o todo é movido por si mesmo, ou

será movido por alguma de suas partes, ou o todo será movido pelo todo. Se fosse

movido por alguma parte sua movida por si mesma, então esta parte seria o

motor primeiro que move a si mesmo (já que, se estivesse separada do todo, esta

parte moveria a si mesma, enquanto que o todo não poderia fazê-lo jamais). E se

o todo fosse movido pelo todo, então cada uma de suas partes moveria a si

mesma só por concomitância; e, portanto, se não se movessem necessariamente a

si mesmas, poderíamos então tomá-las como não movidas por si mesmas. Logo,

no todo uma parte moverá permanecendo imóvel e a outra será movida, pois só

assim é possível que algo seja auto-móvel (ti au)toki¿nhton eiånai). Em quinto

lugar, se é o todo o que move a si mesmo, terá que haver uma parte que mova e

outra que seja movida. Assim, o todo AB seria movido por si mesmo e também

pela parte A.

eÃti ou)k a)na/gkh to\ kinou=n kineiÍsqai ei¹ mh\ u(f' au(tou=: kata\ sumbebhko\j aÃra a)ntikineiÍ qa/teron. eÃlabon toi¿nun e)nde/xesqai mh\ kineiÍn: eÃstin aÃra to\ me\n kinou/menon to\ de\ kinou=n a)ki¿nhton. eÃti ou)k

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a)na/gkh to\ kinou=n a)ntikineiÍsqai, a)ll' hÄ a)ki¿nhto/n ge/ ti kineiÍn a)na/gkh hÄ au)to\ u(f' au(tou= kinou/menon, eiãper a)na/gkh a)eiì ki¿nhsin eiånai. eÃti hÁn kineiÍ ki¿nhsin, kinoiÍt' aÃn, wÐste to\ qermaiÍnon qermai¿netai. a)lla\ mh\n ou)de\ tou= prw¯twj au)to\ au(to\ kinou=ntoj ouÃte eÁn mo/rion ouÃte plei¿w kinh/sei au)to\ au(to\ eÀkaston. to\ ga\r oÀlon ei¹ kineiÍtai au)to\ u(f' au(tou=, hÃtoi u(po\ tw½n au)tou= tino\j kinh/setai hÄ oÀlon u(f' oÀlou. ei¹ me\n ouÅn t%½ kineiÍsqai¿ ti mo/rion au)to\ u(f' au(tou=, tou=t' aÄn eiãh to\ prw½ton au)to\ au(to\ kinou=n (xwrisqe\n ga\r tou=to me\n kinh/sei au)to\ au(to/, to\ de\ oÀlon ou)ke/tiŸ: ei¹ de\ oÀlon u(f' oÀlou kineiÍtai, kata\ sumbebhko\j aÄn tau=ta kinoiÍ au)ta\ e(auta/. wÐste ei¹ mh\ a)nagkaiÍon, ei¹lh/fqw mh\ kinou/Mena u(f' au(tw½n. th=j oÀlhj aÃra to\ me\n kinh/sei a)ki¿nhton oÄn to\ de\ kinhqh/setai: mo/nwj ga\r ouÀtwj oiâo/n te/ ti au)toki¿nhton eiånai. eÃti eiãper h( oÀlh au)th\ au(th\n kineiÍ, to\ me\n kinh/sei au)th=j, to\ de\ kinh/setai. h( aÃra AB u(f' au(th=j te kinhqh/setai kaiì u(po\ th=j A. Aristóteles decide conduzir o foco na estrutura interna do próprio auto-movente.

Dentro do que move a si mesmo deverá haver algo que não mova a si mesmo. A relação

interna do movente repousa na existência de um ente de natureza oposta à do próprio

movente.

As duas alternativas fornecidas pelo Filósofo tem um claro significado: se o

movimento é necessário e, portanto, eterno, então deve ser uma realidade que exista por

si mesma, pois o que existe por outro pode deixar de ser caso este outro deixe de ser.

Sendo, assim, além dos movimentos efetivados por entes que são, por sua vez, efetivados

por outros, deve haver um termo motriz que efetive o movimento por si mesmo, para que

toda série cinética detenha genuína necessidade. Ora, tal autonomia motriz só é possível

de dois modos: operada por um termo que move a si mesmo ou por um termo que move

os demais móveis sem, contudo, mover a si mesmo. Esta última alternativa nem precisou

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ser apreciada, pois é a conclusão mesma que o Filósofo almeja atingir. Seu intento, pois,

é conduzir a primeira delas à segunda, ou seja, o auto-móvel ao imóvel.

Quando o Filósofo determina que aquilo que move a si mesmo não pode ter uma

ou mais partes que se movam a si mesmas, isto significa: em última instância, o processo

divisor deve encontrar seu termo. A auto-mobilidade é efetivada a partir de alguma

instância interna, alguma parte de si mesma que não se move a si mesmo, mas apenas

move. Aqui ocorre um fato crucial. É o momento da henologia separativa de Aristóteles

em que ocorre a última separação: aquela entre o motor e o movido. Se em todos os

demais âmbitos o motor que move também é movido por outro, sendo, portanto, quase

tão movido quanto aquilo que move, neste caso tal coisa não é necessária e nem mesmo

possível.

Agora estamos diante de outro grau ontológico e seu caráter autológico também

deve ser investigado, para que compreendamos a espécie de relação do ente consigo

mesmo que reina aqui.

Voltemos primeiro à distinção já efetuada acima entre a auto-relação móvel e

imóvel.

O motor sensível recebe um movimento recíproco do seu movido, pois ambos

devem estar em contato. O motor inteligível, por outro lado, não recebe um movimento

recíproco do seu movido, visto que possui natureza completamente diferente do movido.

Não possui matéria, pelo que não há possibilidade do corpo material do movido agir

sobre ele. Assim, mesmo considerando que este motor é uma essência que atua sobre si

mesma, tal atuação, ao contrário da atuação do motor sensível, não se efetiva por alguma

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parte ativa que, separada da passiva, a efetive. Não há possibilidade de auto-divisão no

motor imóvel.

A autologia do motor sensível, isto é, seu caráter de auto-movimento, é possível

tão somente através da divisibilidade de sua natureza. É que um corpo movente, por

natureza extenso e divisível, ao agir sobre si mesmo, não poderá fazê-lo sem que

determine intrinsecamente a parte que moverá e a parte que será movida. Em outras

palavras: para que mova a si mesmo terá que ser divisível efetivamente. Assim, a relação

do móvel sensível consigo mesmo, possível somente como auto-movimento, promove

uma divisão do móvel consigo mesmo, uma heterologia no instante mesmo de tal

autologia.

A autologia do motor inteligível é bem diferente. Ao contrário do motor sensível,

sua natureza não é divisível em partes, pois é simplesmente formal. Ora, a forma é

indivisível. E o fato de ser simplesmente formal significa que não há outro modo de

relação com seu próprio ser além da pura intelecção de sua própria forma. Este ato

cognitivo, pois, não pode ser divisível em partes, pois “tudo o que não tem matéria não

partes”. Enquanto a auto-relação do motor móvel implica uma divisão em sua natureza no

sentido de uma determinação da parte superior motora e da inferior movida, tal dicotomia

não se acha presente no motor imóvel, pelo caráter puramente inteligente de que é

constituído, perfeição essa que uma inteligência finita somente em alguns instantes pode

admitir:

“E assim como a inteligência humana – pelo menos a inteligência que não

possui os compostos em algum tempo (pois ela não possui seu bem aqui ou ali,

mas em algo total possui o excelente, o que é algo diferente) – desse mesmo modo

a intelecção possui a si mesma eternamente.”(1075a7)

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wÐsper o( a)nqrw¯pinoj nou=j hÄ oÀ ge tw½n sunqe/twn eÃxei eÃn tini xro/n% (ou) ga\r eÃxei to\ euÅ e)n t%diì hÄ e)n t%di¿, a)ll' e)n oÀl% tiniì to\ aÃriston, oÄn aÃllo tiŸ ouÀtwj d' eÃxei au)th\ au(th=j h( no/hsij to\n aÀpanta ai¹w½na;

No nível de pura efetividade do motor imóvel, a relação inteligência-inteligido

atinge tal grau de perfeição que pode se consuma como autologia perfeita, pois a

inteligência, sendo pura forma auto-enformadora e, portanto, absolutamente indivisível,

não cinde seu ser em dois ao flexionar sobre si. O objeto que atinge em si na verdade se

confunde com a mesma:

Portanto, não sendo diferentes o inteligido e a inteligência, nas coisas que

não tem matéria serão o mesmo, e a intelecção será uma só com o

inteligido.”(1075a1)

ou)x e(te/rou ouÅn oÃntoj tou= nooume/nou kaiì tou= nou=, oÀsa mh\ uÀlhn eÃxei, to\ au)to\ eÃstai, kaiì h( no/hsij t%½ nooume/n% mi¿a.

O motor imóvel, portanto, é transparência absoluta de sujeito e objeto, identidade

total, porém não absoluta mesmidade, embora na seja uma diversidade. Vejamos de perto

o que isso significa.

Embora inteligindo a si mesma, não há efetiva divisão na essência supra-sensível.

Se houvesse sucessão na efetividade de autocognição, haveria um momento anterior

consistindo na ignorância de si mesmo seguido de um momento posterior no qual se daria

a reflexão sobre si produtora do conhecimento da parte até então ignorada de si. Neste

caso, haveria um processo de divisão no interior de si, pelo que poderíamos falar em

efetiva dualidade.

Mas o que Aristóteles sustenta é um estado eterno de autocontemplação, que seria

a própria essência do motor imóvel. Consistindo somente neste estado reflexivo, não há

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divisão essencial provocada pela reflexão. A coisa não se dá como se houvesse uma

essência que preexistisse à efetividade reflexiva, pois a reflexão é sua própria essência. O

passível e o agente cognitivos são apenas perspectivas intrínsecas e coexistentes na

mesma instância ontológica, não representando, pois, qualquer cisão interna. Sujeito e

objeto de inteligência são sentidos correlativos do ser, quer dizer, são mutuamente

pressupostos, o que significa também que garantem a unidade um do outro e a unidade do

todo. Tudo se mantém como se o todo supra-sensível fosse um circuito fechado em si

mesmo desde sempre e para sempre, sem qualquer possibilidade de entrada ou saída,

como as mônadas de Leibniz, que não tem portas ou janelas. Não se trata aqui da

dualidade em que cada termo interceptaria seu par, cindindo-o duplamente, em um

processo infinito. É o caso de uma dualidade sem cisão, porque não surge em dado

momento de um substrato anterior, mas pertence eternamente ao mesmo e ao um. É uma

unidade mantida pela flexão para uma dualidade que não se efetiva de fato, não subiste

como uma propriedade de dois elementos que formariam um par de termos, mas é apenas

a expressão de um modo de efetivação sobre si. No caso, tal efetivação é a intelecção

mesma de sua natureza.

Na estrutura cognitiva do motor imóvel, o inteligível (noou/menon) tem a mesma

natureza do inteligente. Portanto, não recai na mera passividade. O passivo é, com a

mesma força e direito, ativo, o que não implica real contradição, pois não se dá “o mesmo

e não o mesmo segundo o mesmo”. Cada perspectiva a partir da qual tomamos a

atividade não é contrária a si mesma, apenas à sua correlata. Trata-se de uma quase-

dualidade em que cada termo pode ser tomado tanto como inteligível quanto como

inteligente, embora se trate de um mesmo e único ser auto-inteligente.

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A essência suprema possui estrutura essencial análoga a da superesfera que move.

Embora inextensa, é como um círculo perfeito, um circuito de densidade infinita, quer

dizer, absolutamente fechado e sem qualquer desvio possível.

Eis a ironia. Na cosmologia metafísica de Aristóteles, a máxima unidade do ser,

aquela que exclui qualquer dualidade matéria-forma, somente é possível através de uma

quase duplicação da forma. Para se ver livre da matéria, a forma deve flexionar sobre si

mesma, para que toda a intensidade de sua efetividade própria não escorra para fora de si

em direção ao outro, ao múltiplo, ao movimento e, portanto, à potência da matéria. Sua

unidade autológica é de tal natureza que deve excluir definitivamente qualquer

heterologia, qualquer relação como um ente além de si mesmo, ainda que, para isso,

efetive uma quase heterologia em sua própria estrutura indivisível.

Outra aporia surge ao focarmos a auto-intelecção do ponto de vista da

essencialidade. Neste caso, perceberemos que se trata aqui de uma espécie de essência

tão diversa das outras que o próprio nome em comum não permite traçar muitos paralelos.

O motor imóvel é intelecção de sua própria essência. Esta, por sua vez, é intelecção de si

mesma, pois o “ser e cada um são o mesmo”. Não há, então, um objeto no sentido estrito,

pois que as duas inteligências – a inteligente e a inteligida – embora sejam realmente dois

e não um, tampouco são instâncias colocadas lado a lado, mutuamente independentes,

que, por acaso, inteligem uma a outra. A inteligência inteligente provém da inteligida,

somente existindo porque esta existe, o mesmo se podendo dizer da segunda

relativamente à primeira. Podemos concluir, então, que não haveria uma distinção entre

um motor imóvel de outro já que na pura intelecção há pura identidade? Eis uma

perplexidade com que nos deparamos. Uma das possibilidades de resolução da separação

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essencial dos motores imóveis é sugerida por Reale, que aponta a série de localizações

concêntricas das respectivas esferas movidas pelos motores imóveis como sinal distintivo

entre eles. Há uma passagem no livro D da Física89 que discorre acerca dos aspectos

concomitante e essencial e do movimento. O motor imóvel da esfera das estrelas fixas

seria, assim, localizado apenas por concomitância, pois em sentido estrito não estaria em

lugar algum, e da mesma forma relativamente ao seu movimento, apenas relativo aos

movimentos das partes contidas. No entanto, tal alternativa não explica a diferença entre

os motores imóveis “subalternos”, pois todos eles são localizados nos dois sentidos de

“lugar”. Além disso, a explicação de Reale é insuficiente por apontar apenas o sinal da

distinção, e não também o que distingue as variadas intelecções das inteligências que se

inteligem.

O fato de as esferas serem concêntricas pode elucidar um pouco mais este tópico.

Cada essência imóvel move o próprio lugar em que se encontra a esfera do motor imóvel

posterior. Deste modo, o movimento concomitante do motor imóvel posterior é

determinado pelo motor imóvel anterior, sendo esta, provavelmente, a principal razão de

sua anterioridade.

A única constatação segura quanto à relação anterior-posterior é a prioridade do

motor imóvel do universo relativamente aos demais. Muito já se especulou acerca do

politeísmo ou monoteísmo de Aristóteles, e aqui vimos o aspecto da teologia que mais

dúvidas insere no exegeta. De nossa parte, preferimos uma solução que nos parece a mais

lúcida e provável. Aristóteles sustenta uma teologia intermediária entre o puro politeísmo

e o monoteísmo não só porque é politeísta sem ser antropomórfico – como bem assinalou

89 Física, 212b12

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Philip Merlan90 – mas também por ser um politeísmo centralista, isto é, vários deuses

sendo governados por um deus central, como se fora um Zeus entre os Olímpicos.

Mas voltemos ao problema da autologia intelectiva da essência imóvel,

brevemente interrompida para buscar uma solução para a individuação dos motores

imóveis, problema que provavelmente ficará para sempre sem resposta, em virtude da

grande lacuna que representa na totalidade dos textos que nos restam de Aristóteles. Será

mais proveitoso nos concentrarmos na possibilidade e necessidade desta estrutura

intelectiva, tópico que já possui suas próprias dificuldades.

A auto-intelecção do motor imóvel impede que haja algo superior ao que já foi

admitido como a instância suprema. Se inteligisse outro ente, este seria anterior à

essência inteligente imóvel, que é absurdo, pois haveria passagem de uma instância

inferior potencial para outra superior efetiva, impossível em uma realidade imóvel e

perfeita:

“Em primeiro lugar, se não é intelecção (no/hsi¿j) senão potencial, é claro que a

continuidade da intelecção seria fatigante. Ademais, é evidente que alguma outra

coisa seria mais digna de honra (timiw¯teron) do que a inteligência, a saber, o

inteligível.” (1074b30)

prw½ton me\n ouÅn ei¹ mh\ no/hsi¿j e)stin a)lla\ du/namij, euÃlogon e)pi¿ponon eiånai to\ sunexe\j au)t%½ th=j noh/sewj: eÃpeita dh=lon oÀti aÃllo ti aÄn eiãh to\ timiw¯teron hÄ o( nou=j, to\ noou/menon.

Isto significa que, na estrutura supra-essencial, o inteligir prescinde do objeto de

intelecção, ao menos enquanto de natureza diferente da própria efetividade de atingir. A

efetividade cognitiva máxima não sai de si em direção a outra coisa que não seja a

90 Merlan, 1946, pág. 55

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efetividade mesma. É fechada em si mesma, como o ser parmenídico. A essência perfeita

é ‘inteligir isto mesmo que intelige’, ou seja, sua “intelecção é intelecção de intelecção”

(no/hsij noh/sewj no/hsij). A função da estrutura autológica da sentença é acentuar o

aspecto ativo e subjetivo – isto é, próprio de um sujeito - da inteligência. O inteligir

(noeiÍn) e o sujeito que intelige são a essência desta efetividade, e não simplesmente uma

intelecção (no/hsij) entre outras intelecções, pois uma intelecção pode ser atribuída tanto

ao objeto passível de intelecção quanto ao sujeito inteligente. O motor imóvel deve ser

em efetividade, entrar na estrutura de intelecção enquanto sujeito ativamente inteligente

sem oferecer a possibilidade para um inteligível preexistente ao efeito intelectivo, ainda

que, para tal, tenha que flexionar sobre sua própria natureza inteligente.

Agora que determinamos a estrutura sui generis do motor imóvel, podemos

clarificar mais satisfatoriamente o tópico histórico-filosófico da relação entre a doutrina

de Aristóteles e seu mestre Platão. O objetivo aqui não é tanto aprofundar a doutrina de

Platão, mas sim o modo como Aristóteles entendeu seu sentido último e possibilidade de

superação. A derradeira meta que Aristóteles tem em mira ao conceber a radicalidade

henológica da essência imóvel – como ápice da escala autológica do ente – é a superação

de seu análogo platônico: a essência ideal das Formas em si, pois somente assim haverá a

prova da anterioridade da efetividade sobre a potência. As Idéias, ainda que existam

efetivamente, detém uma efetividade que pouco importa para a explicação dos efeitos que

mantém todas as outras essências. Isto é o que pretende o Filósofo ao retirá-las da

causalidade dos entes, pois tudo o que é efetivo de algum modo deve ser causa de algo.

Mas as Idéias não detém, segundo o Estagirita, tal faculdade:

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“E mesmo que existissem as Idéias e os Números, não seriam causa de

nada; ou, pelo menos, não seriam causa do movimento.” (1075b27)

ei¹ d' eÃstai ta\ eiãdh: hÄ <oi¸> a)riqmoi¿, ou)deno\j aiãtia: ei¹ de\ mh/, ouÃti kinh/sew¯j ge.

O motor imóvel se apresenta, portanto – conforme também o notou Philip

Merlan91 - como alternativa aristotélica ao lugar ontológico outrora preenchido pelas

Idéias e Números de Platão. O derradeiro princípio efetivo do ente não é a Idéia, e sim o

Motor Imóvel. Aspectos cruciais da crítica aristotélica à realidade das Idéias, como

efetividade e unidade da definição, são agora esclarecidos de modo mais preciso, a luz

das considerações anteriores.

Primeiramente, detenhamo-nos na pura reflexão acerca da relação entre a Idéia

inteligível e o ideado sensível, levando ao extremo o que há de primordial nessa doutrina.

Para tal, será útil uma simples imagem.

Tomemos uma lâmina de bronze de forma circular. Tracemos todos os meridianos,

até que se encontrem em um só ponto, o chamado baricentro, centro de gravidade da

lâmina. Diretamente com o dedo ou mediado por algum objeto pontiagudo procuramos

então equilibrar a lâmina a partir de seu baricentro. No momento em que o conseguimos,

podemos dizer: apreendemos todo o peso da lâmina em um único ponto, quer dizer, não

precisamos tocar cada uma de suas partes para sentir todo o efeito gravitacional de sua

matéria própria. Tomemos agora outro dedo e, simultaneamente, equilibremos outra

lâmina de bronze, bem semelhante à primeira, só de formato quadrangular. É certo que,

ainda que de olhos fechados, saberemos distinguir uma da outra, simplesmente pelo

modo como cada uma se mantém equilibrada no respectivo dedo, pela maneira como

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dispõe todo o seu peso em seu baricentro, ainda que tenham o mesmo peso. Imaginemos

agora os mesmo objetos, só que abstraídos de sua matéria. Apenas as sua formas ocorrem

à mente, e supomos que fosse possível que, no lugar do dedo que equilibra a realidade

física da lâmina, estivesse a própria mente que, concentrada em um único ponto,

apreendesse a realidade total daquela forma circular em uma efetividade indivisível e

inextensa de cognição, isto é, dispensando a visualização dos lados ou de propriedades

geométricas deduzidas daquela forma geométrica. Supomos então que tal visada

intelectiva seria tão bem sucedida que saberíamos, em um único instante, distinguir um

polígono de outro, assim como havíamos feito quanto considerados não somente pela

geometria, mas enquanto entidades físicas. Seria como se tivéssemos atingido um

baricentro, só que de ordem ontológica, e não mais ôntica. Eis uma boa imagem para uma

conseqüência a que é levada a suposição de que há, fundamentando as coisas sensíveis e

extensas, realidades não-sensíveis e inextensas. Segundo o parecer de Aristóteles 92 ,

alguns platônicos assumiram explicitamente tal doutrina:

“Ora, dado que esta (a separação da matéria) parece possível, mas não é

claro quando é possível, alguns filósofos levantaram o problema também a

propósito do círculo e do triângulo, considerando errado definir essas figuras

por meio de linhas e do contínuo, e sustentando que também elas devem ser

consideradas do mesmo modo que a carne e o osso do homem, o bronze e a pedra

de estátua. Por isso eles reduzem tudo aos números, e dizem que a noção de linha

se reduz à da díade. Alguns dos filósofos defensores das Idéias afirmam que a

díade é a linha em si: outros, ao contrário, afirmam que a díade é a Forma da

linha, porque em alguns casos a Forma e aquilo de que a Forma é forma são o

91 Merlan, 1956, pág. 30 92 Não é nosso propósito aqui adentrar o problema da filosofia platônica em si, mas apenas focalizar o modo como a entendeu Aristóteles e sua crítica à Platão e seus seguidores, crítica essa a partir da qual construiu sua própria doutrina. A polêmica acerca da possibilidade de Aristóteles não ter compreendido corretamente seu mestre, embora de importância filosófica inegável, ultrapassa o interesse deste trabalho.

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mesmo, como, por exemplo, no caso da díade e da Forma da díade, enquanto, no

caso da linha não são.” (1036b8)

e)peiì de\ tou=to dokeiÍ me\n e)nde/xesqai aÃdhlon de\ po/te, a)porou=si¿ tinej hÃdh kaiì e)piì tou= ku/klou kaiì tou= trigw¯nou w¨j ou) prosh=kon grammaiÍj o(ri¿zesqai kaiì t%½ sunexeiÍ, a)lla\ pa/nta kaiì tau=ta o(moi¿wj le/gesqai w¨saneiì sa/rkej kaiì o)sta= tou= a)nqrw¯pou kaiì xalko\j kaiì li¿qoj tou= a)n-dria/ntoj: kaiì a)na/gousi pa/nta ei¹j tou\j a)riqmou/j, kaiì grammh=j to\n lo/gon to\n tw½n du/o eiånai¿ fasin. kaiì tw½n ta\j i¹de/aj lego/ntwn oi¸ me\n au)togrammh\n th\n dua/da, oi¸ de\ to\ eiådoj th=j grammh=j, eÃnia me\n ga\r eiånai to\ au)to\ to\ eiådoj kaiì ou to\ eiådoj (oiâon dua/da kaiì to\ eiådoj dua/dojŸ, e)piì grammh=j de\ ou)ke/ti.

Assim, cairíamos em um estrahnho caso de fundamentação ontológica, em que a

natureza inextensa do fundamento seria oposta à natureza extensa do fundamentado.

Aristóteles, por seu turno, não crê na possibilidade de um correlato inextenso do extenso

individual - isto é, que sua forma (eiådoj) - possa subsistir separadamente do próprio

indivíduo. É que a forma é o ser-prévio da coisa. Ora, o ser-prévio é idêntico à própria

coisa que o detém. A noção de uma unidade circular inextensa era por demais bizarra

para o Estagirita:

“Ora, dado que esta (a separação da matéria) parece possível, mas que não é

claro quando é possível, alguns filósofos levantaram o problema também a

propósito do círculo e do triângulo, considerando errado definir essas figuras

por meio de linhas e do contínuo, e sustentanto que também elas devem ser

consideradas do mesmo modo que a carne e os ossos do homem, o bronze e a

estátua. Por isso eles reduzem tudo aos números, e dizem que o enunciado da

linha se reduz à da díade. Alguns dos filósofos defensores das Idéias afirmam que

a díade é a linha em si: outros, ao contrário, afirmam que a díade é a forma da

linha, porque em alguns casos existe identidade entre forma e aquilo de que a

forma é forma como, por exemplo, no caso da díade e da forma da díade,

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enquanto, no caso, da linha não existe. Mas então, segue-se que a forma de

muitas coisas, que parecem claramente ter formas diversas, é única (nessa

conseqüência já tinham incorrido os pitagóricos). E segue-se também que se pode

afirmar uma única forma como a forma de todas as formas e negar que as outras

seja formas; mas, desse modo, todas as coisas se reduziriam ao um.” (1036b8)

e)peiì de\ tou=to dokeiÍ me\n e)nde/xesqai aÃdhlon de\ po/te, a)porou=si¿ tinej hÃdh kaiì e)piì tou= ku/klou kaiì tou= trigw¯nou w¨j ou) prosh=kon grammaiÍj o(ri¿zesqai kaiì t%½ sunexeiÍ, a)lla\ pa/nta kaiì tau=ta o(moi¿wj le/gesqai w¨saneiì sa/rkej kaiì o)sta= tou= a)nqrw¯pou kaiì xalko\j kaiì li¿qoj tou= a)ndria/ntoj: kaiì a)na/gousi pa/nta ei¹j tou\j a)riqmou/j, kaiì grammh=j to\n lo/gon to\n tw½n du/o eiånai¿ fasin. kaiì tw½n ta\j i¹de/aj lego/ntwn oi¸ me\n au)togrammh\n th\n dua/da, oi¸ de\ to\ eiådoj th=j grammh=j, eÃnia me\n ga\r eiånai to\ au)to\ to\ eiådoj kaiì ou to\ eiådoj (oiâon dua/da kaiì to\ eiådoj dua/dojŸ, e)piì grammh=j de\ ou)ke/ti. sumbai¿nei dh\ eÀn te pollw½n eiådoj eiånai wÒn to\ eiådoj fai¿netai eÀteron (oÀper kaiì toiÍj Puqagorei¿oij sune/bainenŸ, kaiì e)nde/xetai eÁn pa/ntwn poieiÍn au)to\ eiådoj, ta\ d' aÃlla mh\ eiãdh: kai¿toi ouÀtwj eÁn pa/nta eÃstai.

Aristóteles leva, assim, até às últimas conseqüências o método filosófico de

redução de cada estrutura sensível a uma realidade mais simples que lhe corresponda. Ora,

se é possível afirmar a identidade entre a linha e a díade em razão da mera possibilidade

de construção da primeira a partir da segunda, nada há que impeça a redução de todas as

coisas à forma do um, pois o um é necessário à realidade de todas as coisas. Ocorre,

porém, que, no que tange às realidades sensíveis, não é possível reduzir tudo às estruturas

inextensas, isto é, às formas puras e sem matéria. O extenso é integrante necessário da

realidade sensível, mesmo quando não se trata de um sensível bruto, mas apenas

enquanto objeto de intelecção, como é o caso dos círculos e triângulos matemáticos, que

podem ser divididos, mas apenas na inteligência e imaginação. A unidade de todas estas

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coisas é sempre uma unidade extensa, embora sua condição inextensa, a forma pura,

possa ser perfeitamente enunciada e compreendida na forma de uma definição.

A unidade da figura, o fato da figura ser “uma” é inseparável da própria figura,

justo porque é a esta que se refere. Logo, se a figura é sempre algo material, mesmo

quando meramente quanto à sua matéria inteligível, então a própria unidade da figura é

inconcebível sem alguma referência à própria materialidade, embora não haja relação de

identidade entre as duas noções. É daí a noção aristotélica de matéria inteligível. O

círculo inteligível não possui aquela matéria de bronze, e nem mesmo partes efetivas,

mas possui uma extensividade e um contínuo de partes potenciais. O baricentro cognitivo

e ontológico da coisa não existe sem a própria coisa, pois a unidade da coisa decorre de

seu próprio ser, sendo “o mesmo cada um e seu ser”. Deste modo se torna claro o sentido

deste passagem do Livro VII:

“De fato, o ser do círculo e o círculo são o mesmo, assim com a alma e o ser da

alma. Quanto ao concreto como, por exemplo, este círculo ou um círculo

particular, seja ele sensível ou inteligível, (por círculo inteligível entendo, por

exemplo, os círculos matemáticos, e por círculo sensível entendo, por exemplo, os

círculos de bronze e madeira), deste não há definição, mas é conhecido somente

por sensação ou intelecção. ” (1036a1)

to\ ga\r ku/kl% eiånai kaiì ku/kloj kaiì yuxv= eiånai kaiì yuxh\ tau)to/. tou= de\ suno/lou hÃdh, oiâon ku/klou toudiì kaiì tw½n kaq' eÀkasta/ tinoj hÄ ai¹sqhtou= hÄ nohtou= (le/gw de\ nohtou\j me\n oiâon tou\j maqhmatikou/j, ai¹sqhtou\j de\ oiâon tou\j xalkou=j kaiì tou\j culi¿nouj) tou/twn de\ ou)k eÃstin o(rismo/j, a)lla\ meta\ noh/sewj hÄ ai¹sqh/sewj gnwri¿zontai.

Quando se trata dos entes que possuem um correspondente sensível, é muito

difícil separar de fato a sensibilidade primitiva do inteligível apreendido pelo ato

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abstrativo da cognição. Somente quando o próprio ser do ente a ser considerado prescinde

da matéria para ser concebido, é que podemos então discorrer sobre sua possibilidade – e

mesmo a necessidade – de separação relativamente ao sensível em geral. A inteligência é

um ente de tal natureza. A efetividade que lhe é própria já a distingue da matéria. Não

fosse assim, não haveria a possibilidade de seu conceito, pois a matéria não poderia

inteligir a si mesma. O inteligir se distingue, justo enquanto atingir, do objeto de

intelecção, na exata medida em que se insere como seu correlativo no efeito da intelecção.

O inteligir, portanto, é a única forma-idéia que pode ser atingida como separada do

sensível, visto que o próprio ente já deve assim ser considerado. Somente a forma supra-

sensível do motor imóvel permitiria falar em “baricentro” subsistente. A Inteligência

Ativa do Da Alma e o Motor Imóvel – inteligência da inteligência - realizam

definitivamente essa possibilidade doutrinal em Aristóteles.

Aristóteles critica as Idéias de Platão por considerá-las inúteis para explicar o

movimento e a geração dos seres:

“Se houver algo motriz e produtivo, mas que na seja efetivo, não haverá

movimento. De fato, é possível que o potencial não se torne efetivo. Portanto, não

teremos nenhuma vantagem se introduzirmos essências eternas, como fazem os

defensores da teoria das formas, se não está presente nelas um princípio capaz de

produzir a transição; portanto, não é suficiente esse tipo de essência, nem a outra

que eles introduzem além das Idéias; se essas essências não forem efetivas, não

existirá movimento.” (1071b11)

¹Alla\ mh\n ei¹ eÃsti kinhtiko\n hÄ poihtiko/n, mh\ e)nergou=n de/ ti, ou)k eÃstai ki¿nhsij: e)nde/xetai ga\r to\ du/namin eÃxon mh\ e)nergeiÍn. ou)qe\n aÃra oÃfeloj ou)d' e)a\n ou)si¿aj poih/swmen a)i+di¿ouj, wÐsper oi¸ ta\ eiãdh, ei¹ mh/ tij duname/nh e)ne/stai a)rxh\ metaba/llein: ou) toi¿nun ou)d' auÀth

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i¸kanh/, ou)d' aÃllh ou)si¿a para\ ta\ eiãdh: ei¹ ga\r mh\ e)nergh/sei, ou)k eÃstai ki¿nhsij.

O Filósofo acusa também de obscura o noção de um “participar” (mete/xein) das

Idéias pelos seres, não se compreendendo o modus operandi desse processo. Em um

primeiro momento, se levado ao extremo, o rigor de Aristóteles poderia colocá-lo diante

de problemas semelhantes. Pareceria que o “desejo” pelo motor imóvel, noção funcional

e heuristicamente análoga a de participação, dispõe de tão escassas determinações

intrínsecas quanto seu correlato platônico. Contudo, são dois os motivos que realmente

decidem a favor de seu emprego por Aristóteles: a) o conceito de desejo, ao contrário do

de participação, não torna necessário uma essencialização dos universais; b) desejo

implica impulso de movimento em um ser, ponto fulcral da física e metafísica

aristotélicas. O Filósofo sempre esteve convicto de que a filosofia genuinamente

explicativa da natureza deve, necessariamente, tornar racional o movimento.

Analisemos o problema mais de perto. O motor imóvel não suscita desejo em

todos os seres. O motor imóvel é responsável (aiãtion) apenas pelo ser do primeiro

movido, a primeira esfera. Todos os demais movimentos ocorrem por contato, pela

“impressão” da forma do motor na matéria do movido. Em ambos os casos não há

causação por um universal, sendo sempre um indivíduo o prévio portador do ser móvel

de outro indivíduo. Além disso, há sempre uma relação direta e intransferível entre motor

e movido, pois no contato não há distância alguma entre ambos – visto que esta é a noção

pressuposta pelo contato – assim como entre o motor imóvel e o primeiro movido,

porquanto não pode haver distância entre uma essência extensa e uma essência inextensa.

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Quanto às Idéias, a situação é bem diferente. A relação entre Idéia e “ideado”,

embora direta, não é exclusiva e intransferível. Cada Idéia é causa de todos os ideados

que dela participam, atuando, pois, como um universal, sendo atribuído (predicado) de

muitos seres. Além disso, embora possa estar implícita, na doutrina de Platão, a plena

efetividade das Idéias, isto não foi nitidamente esclarecido, deixando em aberto o modo

de realidade destas, embora determinando sua completa perfeição e auto-suficiência.

Caberia, portanto, a pergunta: as Idéias de Platão são potências efetivadoras ou

efetividades puras? Contudo, a possibilidade de uma resposta satisfatória a tal pergunta

depende de um aprofundamento radical da filosofia de Platão, coisa que foge ao nosso

escopo, embora de importância metafísica inegável. Voltemos a Aristóteles.

É preciso distinguir entre a noção de universal, tal como até Aristóteles fora

empregado no vocabulário filosófico, e a transformação que vemos ser operada neste

conceito no Livro VI da Metafísica. É notável que ali Aristóteles afirme dois modos de

universalidade. Além daquilo que é predicado de muitos, há também o universal na

acepção do que há de mais elevado em uma hierarquia de seres e que, em virtude desta

anterioridade, determina sua natureza e e o sentido mesmo da hierarquia de que todos

fazem parte. Neste sentido Aristóteles havia afirmado a universalidade da filosofia

primeira:

“Se não há outra essência além daquelas constituídas pela natureza, a física será

a ciência primeira. Se, ao contrário, existe uma essência imóvel, a ciência desta

será anterior e será filosofia primeira, e desse modo, ou seja, enquanto primeira,

ela será universal.” (Met. 1026a28)

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ei¹ me\n ouÅn mh\ eÃsti tij e(te/ra ou)si¿a para\ ta\j fu/sei sunesthkui¿aj, h( fusikh\ aÄn eiãh prw¯th e)pisth/mh: ei¹ d' eÃsti tij ou)si¿a a)ki¿nhtoj, auÀth prote/ra kaiì filosofi¿a prw¯th, kaiì kaqo/lou ouÀtwj oÀti prw¯th:

É sob este aspecto que podemos considerar o motor imóvel como universal. Este

modo de universalidade tem algo em comum com o primeiro. O que há de comum é justo

o que podemos tomar como a idéia originária de universalidade: a centralidade de

referência. De fato, aquilo que é predicado de muitos é sempre referido em cada

efetividade de identificação dos respectivos sujeitos. De modo análogo, o topo de um

sistema hierárquico é ponto de referência para os demais integrantes da série, justo em

relação ao critério que serve de base para o reconhecimento da série. Ora, o grau de

autonomia relativamente à matéria é fundamental na divisão da scala naturae aristotélica.

Então é justo aí que residirá a centralidade cósmica do motor imóvel e sua conseqüente

universalidade. Há um princípio que se aplica à totalidade das essências e, portanto, afeta

a completa esfera dos entes. Seu enunciado poderia ser: Quanto mais próximo do estado

de completa autologia da essência imóvel - sumamente realizada pela sua natureza

imaterial – mais elevado será o nível ontológico de uma essência.

Outra aparente incongruência no tratamento dispensado às Idéias e ao Motor

Imóvel repousa no critério da definibilidade.

Aristóteles denuncia a indefinibilidade das Idéias platônicas, assim como a dos

indivíduos em geral. As Idéias, enquanto realidades individuais, não podem ser expressas

por noções comuns. No entanto, o motor imóvel, sendo também um indivíduo, cai na

mesma esfera de indefinibilidade, embora o Filósofo em momento algum tenha percebido

algum problema nisso. Justo quanto a este ponto, há uma crítica que se faz relativamente

a uma suposta incongruência no próprio interior da metafísica aristotélica no propósito de

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uma culminação teológica. Embora totalmente válida, há que se respeitar, primeiramente,

as exigências mesmas que o Filósofo se faz enquanto buscador desta ciência.

Por que Aristóteles exige das Idéias o mesmo tratamento epistemológico

dispensado aos indivíduos sensíveis, embora não faça o mesmo com o motor imóvel?

Identificar aqui um puro recurso sofístico seria desconsiderar um intelecto assaz rigoroso

e transparente como o de Aristóteles.

Em sua Ética a Nicômaco poderemos iniciar uma tentativa de resposta mais

satisfatória. Ali o Filósofo declara maia uma vez sua discordância radical quanto ao

método de buscar os princípios das coisas “duplicando” as próprias coisas em uma esfera

de entidades eternas:

“Igualmente o bem não será mais” bem “pelo fato de ser eterno, da mesma

maneira como aquilo que dura mais não é mais branco do que aquilo que perece

no espaço de um dia.” (EN 1096b.5)

a)lla\ mh\n ou)de\ t%½ a)i¿dion eiånai ma=llon a)gaqo\n eÃstai, eiãper mhde\ leuko/teron to\ poluxro/nion tou= e)fhme/rou.

A ironia de Aristóteles repousa em explicitar que a noção de um branco em si, o

branco absoluto, quer dizer, sua Idéia, detém um caráter tão quanto o branco sensível,

ainda que a duração deste último seja irrisória se comparada à eternidade do que seria sua

Idéia. Aristóteles não discorda quanto à necessidade de aceitar determinadas realidades

imateriais ao lado das materiais. Apenas percebe a insuficiência em buscar princípios a

maneira de semelhanças com as coisas sensíveis. As Idéias seriam, de certa forma,

sensíveis. É o que lemos no Livro B da Metafísica:

“Entre os muitos absurdos dessa doutrina, o maior consiste em afirmar, por um

lado, que existem outras coisas além daquelas deste mundo e afirmar, por outro

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lado, que são iguais às sensíveis, com a única diferença de que umas são eternas

e outras corruptíveis. Eles afirmam, de fato, que existe um “homem em si”, um

“cavalo em si”, uma “saúde em si”, sem acrescentar nada além, comportando-se,

aproximadamente, como os que afirmam a existência de deuses, mas fazendo-os

humanos.” (997b10)

pollaxv= de\ e)xo/ntwn duskoli¿an, ou)qeno\j hÂtton aÃtopon to\ fa/nai me\n eiånai¿ tinaj fu/seij para\ ta\j e)n t%½ ou)ran%½, tau/taj de\ ta\j au)ta\j fa/nai toiÍj ai¹sqhtoiÍj plh\n oÀti ta\ me\n a)i¿+dia ta\ de\ fqarta/. au)to\ ga\r aÃnqrwpo/n fasin eiånai kaiì iàppon kaiì u(gi¿eian, aÃllo d' ou)de/n, paraplh/sion poiou=ntej toiÍj qeou\j me\n eiånai fa/skousin a)nqrwpoeideiÍj de/:

Não deve estranhar, portanto, que padeçam das mesmas insuficiências

epistemológicas das coisas sensíveis. Se para estas últimas a indefinibilidade é sinal de

inadequação de suas existências com seu conceito, da mesma forma serão imperfeitas as

Idéias, na exata medida em que são indefiníveis.

O ser da Idéia é tomado como algo inevitavelmente referente a algo fora de si, à

totalidade das coisas das quais é a unidade, o “comum” que a todas abarca. As coisas são

expressões das Idéias. Expressam, de modo limitado, o seu ser. As Idéias, por seu turno,

diante da mente filosófica, surgem como expressões últimas e acabadas das coisas. Há,

portanto, uma relação de reciprocidade entre coisa e Idéia que atinge a própria estrutura

de ambas, ainda que a palavra final seja sempre: “as Idéias são auto-suficientes”. No

entanto, a despeito desta reciprocidade, a coisa não pode ser definida pela Idéia e a Idéia

não pode ser definida pela coisa. Embora uma seja expressão da outra, não podem ser

apreendidas pela mais exata das expressões: o enunciado (lo/goj) da definição. Eis a

incongruência doutrinária que o Filósofo aponta neste sistema de descrição da realidade.

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Por outro lado, o motor imóvel, desde o princípio, não precisa ser expresso. Segue

a razão desta prerrogativa.

O motor imóvel, assim como a Idéia, é uma realidade supra-sensível. É supra-

sensível, porém, não somente pela imutabilidade, mas pela própria estrutura ontológica,

que escapa a qualquer semelhança imagética com o sensível. Enquanto o branco em si é

tão branco quanto o branco sensível, entre a “inteligência da inteligência” e a inteligência

humana não há termo de comparação fora a mera identificação de ambos como

faculdades cognitivas, justo o que permite a fraca homonímia. A inteligência infinita

apreende seu objeto de uma só vez, quer dizer, sem percorrer suas distintas partes,

porquanto estas não existem na simplicidade de seu objeto. Além disso, algo também sem

correlato sensível é próprio de uma inteligência supra-sensível: coincide totalmente com

o seu objeto, pois “nas coisas que não têm matéria inteligência e o objeto de intelecção

são o mesmo”. Não poder ser expresso em uma definição não é algo que ocorra ao motor

imóvel por mera concomitância. Isto pertence à sua própria constituição ontológica, cuja

natureza mal pode ser inteligida, pois toda a inteligência humana é finita. Ora, a distância

entre o finito e o infinito é sempre infinita, não importa o quanto o finito é expandido em

seu horizonte.

Além disso, embora indefinível, o motor imóvel é a essência que mais se

aproxima do que poderia ser sua própria definição, a saber, a fornecida no livro L, de

“inteligência da inteligência”. Enquanto as essências sensíveis se distinguem umas das

outras através da matéria – realidade estranha à forma expressa na definição e que além

disso impede a permanência temporal do ente definido – a essência supra-sensível só

pode se distinguir de outra do mesmo gênero por alguma nota intra-definitória, isto é, por

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algo já implícito na definição comum – a inteligência da inteligência – ainda que

atualizada de um modo diverso em ambas. Que nota seria essa, que diferença haveria

entre uma auto-intelecção e outra, que distingue os motores imóveis entre si é coisa não

tratada por Aristóteles, ao menos não explicitamente. O máximo que podemos fazer é

efetuar conjecturas razoáveis a partir de outras tematizações do Filósofo.

Com o fito de arrematar a idéia da unidade autológica como superior àquela da

inteligência e, portanto, à totalidade dos entes, temos de retomar aqui a reflexão acerca da

natureza da estrutura da auto-intelecção infinita para determinar a distinção entre esta e

outra auto-intelecção que passa muitas vezes passa desapercebida no âmbito da filosofia

aristotélica: a auto-intelecção humana. É que muitos vêem, na passagem do De Anima

em que ela é expressa, apenas uma referência deslocada àquela auto-referência já

conhecida do motor imóvel.

Naquela passagem do De Anima acerca da auto-intelecção, cujas dificuldades

mencionamos brevemente no capítulo anterior, ficou claro que o problema da inteligência

em Aristóteles é passível de duas perspectivas, uma das quais relativa ao processo de

cognição em geral, enquanto a outra tem por função tornar verossímil a imortalidade do

princípio cognitivo da alma. Ora, tal possibilidade estava seriamente ameaçada desde que

se reconheceu a impossibilidade de a inteligência inteligir sem imagens. Restava somente

a auto-intelecção como única operação totalmente não-sensível da inteligência e, portanto,

podendo ser imortal.

A essência da inteligência finita, portanto, compartilha com a essência da

inteligência infinita a autologia cognitiva. Qual seria, então, a distinção abismal que deve

separar uma essência finita de outra infinita? A resposta pode ser encontrada na própria

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estrutura da infinitude imóvel tal como pensada por Aristóteles, que nada tem a ver com a

infinitude própria da quantificação indefinida. A autologia da essência finita não se

mantém pura, não se completa em si mesma, estando sempre associada a uma certa

heterologia. Há sempre um ente extrínseco à inteligência que deve ser pensado, ainda que

a auto-referência cognitiva, como vimos, seja sempre anterior à cognição dos inteligíveis.

E embora os objetos inteligíveis sejam, de certa forma, produzidos na própria inteligência,

não devemos tomar tal produção93 (poi¿esij) em sentido absoluto. De fato, o ser de cada

objeto pode, sempre, ser distinguido do ser da inteligência:

“Pois o ser da intelecção e o ser do inteligível não são o mesmo.” (1074b38)

ou)de\ ga\r tau)to\ to\ eiånai noh/sei kaiì nooume/n%. Não se trata, pois, de uma pura autologia, pois de certo modo também a

inteligência sai de si em direção ao ser do inteligível, ainda que todo o efeito retorne à

inteligência como sua condição. Além disso, tal condição não é suficiente, pelo fato de

cada 'produção interna' de um inteligível pressupor sempre um certo estímulo sensível

externo, uma certa imagem, sem a qual o correlato não-sensível não tem razão para surgir

na inteligência. Sendo assim, a auto-inteligência finita não atinge seu télos de modo

completo e auto-suficiente e, como o próprio télos significa completude, sob este aspecto

ela nem mesmo o atinge ou o faz de modo sempre provisório. Não há, pois genuína

autotelia aqui.

Devemos, portanto, estabelecer a autotelia como o princípio genuinamente

distintivo entre o quarto e o quinto nível, entre as duas espécies de auto-inteligência.

93 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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A auto-inteligência finita, ainda que possa atingir a si mesma, não tem por

completude esta intelecção, mas deve remeter aos outros objetos inteligíveis. Sua auto-

referência é real e efetiva, mas não é completa. Sua completude reside fora si, pois só

haverá verdadeira cognição em presença de algo diverso de si. Aqui há, pois, heterologia.

O motor imóvel, ao contrário, completa de modo auto-suficiente sua cognição própria,

pois concentra em si toda a plenitude possível e, por isso, não tem necessidade de um

cógnito extrínseco que garanta a perfeição deste efeito. É por isso que o motor imóvel

não intelige nada fora de si pois tal coisa seria antes uma imperfeição do que uma

perfeição. Se dependesse de algo fora de si, estaria sempre na dependência do advento

deste algo, sempre em potência para ele, o que contradiz sua já estabelecida pureza

efetiva:

“Em primeiro lugar, se não é inteligência efetiva, mas potencial, logicamente a

continuidade da intelecção seria extenuante para ela. Ademais, é evidente que

alguma outra coisa seria mais digna de honra do que a inteligência, a saber, o

inteligível. De fato, o inteligir e a intelecção pertencem a quem intelige a coisa

mais indigna: de modo que, se isso deve ser evitado (de fato, é melhor não ver

certas coisas do que vê-las), o que há de mais excelente não pode ser a intelecção.

Portanto, se a inteligência é o que há de mais excelente, então intelige a si mesma,

e sua intelecção é intelecção da intelecção.” (1074b30)

prw½ton me\n ouÅn ei¹ mh\ no/hsi¿j e)stin a)lla\ du/namij, euÃlogon e)pi¿ponon eiånai to\ sunexe\j au)t%½ th=j noh/sewj: eÃpeita dh=lon oÀti aÃllo ti aÄn eiãh to\ timiw¯teron hÄ o( nou=j, to\ noou/menon. kaiì ga\r to\ noeiÍn kaiì h( no/hsij u(pa/rcei kaiì to\ xei¿riston noou=nti, wÐst' ei¹ feukto\n tou=to (kaiì ga\r mh\ o(ra=n eÃnia kreiÍtton hÄ o(ra=nŸ, ou)k aÄn eiãh to\ aÃriston h( no/hsij. au(to\n aÃra noeiÍ, eiãper e)stiì to\ kra/tiston, kaiì eÃstin h( no/hsij noh/sewj no/hsij. Cabe, porém, a pergunta: a distinção entre a inteligência e o inteligível se aplica à

natureza da auto-ciência do motor imóvel? Se este for o caso, ainda estaremos diante de

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uma autologia imperfeita, um último resquício de heterologia. A mesma indagação foi

feita pelo Filósofo:

“Todavia, parece que a ciência, a sensação, a opinião e o raciocínio têm

sempre por objeto algo diferente de si, e só de modo inefetivo têm a si mesmos

por objeto. Além disso, se uma coisa é inteligir e outra o ser inteligido, de qual

dos dois deriva para a inteligência sua excelência? De fato, o ser do inteligir e o

ser do inteligível não são o mesmo.” (1074b35)

fai¿netai d' a)eiì aÃllou h( e)pisth/mh kaiì h( aiãsqhsij kaiì h( do/ca kaiì h( dia/noia, au(th=j d' e)n pare/rg%. eÃti ei¹ aÃllo to\ noeiÍn kaiì to\ noeiÍsqai, kata\ po/teron au)t%½ to\ euÅ u(pa/rxei; ou)de\ ga\r tau)to\ to\ eiånai noh/sei kaiì nooume/n%. Tal coisa não pode ocorrer, posto que aqui deve residir a plena auto-enunciação

do ente, sem qualquer indício de dependência de outro ente extrínseco. Todavia, não pode

haver uma exceção a tal regra, pois se trata de uma distinção evidente por si mesma,

como aquela entre correlatos. A natureza única desta intelecção deve, portanto,

condicionar uma nova possibilidade cognitiva, que não invalide tal regra, mas que

tampouco esteja no âmbito de sua aplicação:

“Na realidade, em alguns casos, a própria ciência constitui o objeto: nas ciências

produtivas, por exemplo, o objeto é a essência imaterial e o ser-prévio, e nas

ciências teoréticas o objeto é o próprio enunciado e intelecção da coisa. Portanto,

não sendo diferentes o ser do inteligir e o do inteligível, nas coisas imateriais

serão o mesmo, e a inteligência e o inteligível serão um só.” (1075b38)

hÄ e)p' e)ni¿wn h( e)pisth/mh to\ pra=gma, e)piì me\n tw½n poihtikw½n aÃneu uÀlhj h( ou)si¿a kaiì to\ ti¿ hÅn eiånai, e)piì de\ tw½n qewrhtikw½n o( lo/goj to\ pra=gma kaiì h( no/hsij; ou)x e(te/rou ouÅn oÃntoj tou= nooume/nou kaiì tou= nou=, oÀsa mh\ uÀlhn eÃxei, to\ au)to\ eÃstai, kaiì h( no/hsij t%½ nooume/n% mi¿a.

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Agora podemos obter um esclarecimento acerca da relação inteligência-inteligível

no motor imóvel. Aqui também vale o princípio da distinção do ser de cada um dos

termos. Contudo, não há aqui espaço para uma aplicação significativa. Isto porque o ente

inteligível e o ente inteligente são um só. O elemento que intelige é isto mesmo que é

inteligido. Na verdade, trata-se, preferencialmente, de um único inteligente, se adotamos

a perspectiva da totalidade essencial do motor imóvel. Somente sob a perspectiva da

autologia cognitiva, que força o direcionamento da inteligência para dentro de si mesma,

como que se duplicando em dois inteligíveis, é que surgem, de certo modo, dois entes que

se inteligem, que na verdade são um só e são menos inteligíveis que inteligentes. É que só

podemos falar de “ser inteligível” porque há um ser auto-inteligente e não porque haja

realmente um objeto cuja natureza seja “ser inteligível”. O inteligir é a condição de

possibilidade do objeto de intelecção, e não o contrário. É assim que podemos

compreender de um modo mais pleno outra distinção que, de outro modo, seria inefetiva:

aquela entre a coincidência inteligência-inteligível finita e a infinita. De fato, esta

coincidência já havia sido atribuída à própria inteligência humana, no De Anima. Ocorre

apenas que, neste caso, como vimos acima tal coincidência não é a efetivação de uma

autologia pura. A identidade inteligência-inteligível na imaterialidade da inteligência

finita não se basta a si mesma, sendo sempre resultado de um processo de refinamento, de

separação que vai desde o sensível bruto até o puro inteligível, que portanto só foi

atingido porque, primeiramente, houve um sensível primeiro. E a referida dependência

vale mesmo quando se trata da própria auto-cognição da inteligência humana, que em

nenhum momento é descrito em um âmbito totalmente apartado das outras cognições. O

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mais próximo deste isolamento é a constatação de que a inteligência é imortal e anterior à

vida atual do indivíduo, mas nenhuma garantia é dada acerca da real possibilidade de

uma auto-cognição independente de qualquer vínculo com a sensibilidade, ou seja, no

interior de uma estrutura heterológica. É como se a inteligência finita só tivesse ciência

de seu próprio ser inteligível após a intelecção dos outros inteligíveis.

A inteligência infinita, por seu turno, assume integralmente a condição de sua

estrutura, de modo que é a única a se identificar totalmente com seu próprio ser. Sua

auto-cognição é eterna sob todos os aspectos da eternidade. Além da sepração da matéria

prórpria de toda essência auto-ciente, não é o extremo natural de qualquer processo de

refinamento cognitivo. Ao contrário da inteligência finita, apreende a si mesma em um

momento indivisível e em todo o seu ser. Tal momento, além de ser abarcar todos os

outros por ser eterno, é o suporte de todos os momentos, pois decorre de uma perfeição

que produz, teleologicamente, a todos os eles. Com efeito, cada momento finito e

transitório, possui, em sua efetivação, algo da infinitude do momento auto-ciente do

motor imóvel. Aqui entramos em outra esfera da teologia aristotélica. Até agora

aprendemos a essêcia do motor imóvel partindo da necessidade da escala autológica de

que o nível seguinte contenha, de um modo mais pleno, tudo o que há no nível anterior.

Em razão deste fato ontológico, submetemos o motor imóvel a reflexões de ordem

psicológica e gnosiológica, para que pudéssemos perceber o exato modo de superação da

estrutura anímica e, principalmente, intelectiva efetivada pelo motor imóvel

relativamente ao representante imediatamente inferior: a inteligência finita. Por isso o Da

Alma foi tão importante neste exame, pois ali ficou clara o limite cognitivo desta espécie

de inteligência, assim como a possibilidade e a conseqüente necessidade (segundo o

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princípio de plenitude) de buscarmos uma esfera ôntica em que tal limite fosse transposto.

Este limite, pelo que concluímos, é de ordem cinética e cronológica. A auto-ciência da

essência supra-sensível é a máxima possível, mas auto-ciência não é, como vimos, seu

traço distintivo. Esta espécie de auto-ciência só demonstra sua perfeição suprema na

medida em que é eterna e imóvel. Não é a toa que, em Aristóteles, a referência mais usual

a este ente não é ‘auto-inteligência’ e sim ‘motor imóvel’. Ora, se a física trata de tudo o

que se move, a superação efetivada pelo motor imóvel é uma superação de toda a ciência

física.

Então, posto que a reflexão agora é de ordem cinético-temporal, voltemos aquele

‘algo’ que cada momento finito carrega do momento inteligível do motor imóvel. Este

algo é justamente o caráter infindável de cada momento, que torna cada momento

presente uma certeza da ulterior presença de outro momento. Esta é justamente a prova

cronológica da infinitude do movimento:

“Mas é impossível que o movimento se gere ou se corrompa, porque ele sempre

foi, e também não é possível que se gere ou se corrompa o tempo, porque não

poderia haver o antes e o depois se não existisse o tempo. Portanto, o movimento

é contínuo, assim como o tempo: de fato, o tempo ou é a mesma coisa que o

movimento ou uma passibilidade do movimento.” (1071b6)

a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai hÄ fqarh=nai (a)eiì ga\r hÅnŸ, ou)de\ xro/non. ou) ga\r oiâo/n te to\ pro/teron kaiì uÀsteron eiånai mh\ oÃntoj xro/nou: kaiì h( ki¿nhsij aÃra ouÀtw sunexh\j wÐsper kaiì o( xronoj: hÄ ga\r to\ au)to\ hÄ kinh/sew¯j ti pa/qoj.)

A prova acima está implícita, já supondo uma prévia leitura de um trecho da

Física em que a conexão agora-antes-depois é explicitada. O que devemos guardar destas

palavras do livro L é que o movimento e o tempo estão implicados um no outro, pois o

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tempo é uma passibilidade numérica do movimento, ou seja, decorre de cada movimento

ser passível de ser numerado relativamente a outros movimentos. O tempo, então, é o

próprio movimento, porém numerado. É por isso que o Filósofo não faz distinção entre o

tempo ser o próprio movimento ou uma passibilidade (pa/qoj) deste. Como ficou claro,

trata-se de duas afirmações equivalentes. E tal indissociabilidade entre tempo e

movimento possibilita demonstrações de propriedades de um a partir do exame da

natureza do outro. Em sua Física, Aristóteles apresenta a prova que, na passagem acima,

ficou implícita, a saber, a infitude do tempo a partir da constituição anterior-posterior de

todo agora:

“Posto que o agora é a consumação e o princípio do tempo, mas não do

mesmo tempo, mas sim consumação do que passou e princípio do que virá, segue

que, assim como no círculo o convexo e o côncavo estão, em certo sentido, no

mesmo, assim também o tempo está sempre em princípio e em consumação, e por

isso parece sempre distinto, pois o agora não é o princípio e a consumação do

mesmo. Com efeito, se assim fosse, seria dois opostos ao mesmo tempo e segundo

o mesmo. Logo, segue também que o tempo não se consumirá, pois está sempre

no princípio.” (222b)

e)peiì de\ to\ nu=n teleuth\ kaiì a)rxh\ xro/nou, a)ll' ou) tou= au)tou=, a)lla\ tou= me\n parh/kontoj teleuth/, a)rxh\ de\ tou= me/llontoj, eÃxoi aÄn wÐsper o( ku/kloj e)n t%½ au)t%½ pwj to\ kurto\n kaiì to\ koiÍlon, ouÀtwj kaiì o( xronoj a)eiì e)n a)rxv= kaiì teleutv=. kaiì dia\ tou=to dokeiÍ a)eiì eÀteroj: ou) ga\r tou= au)tou= a)rxh\ kaiì teleuth\ to\ nu=n: aÀma ga\r aÄn kaiì kata\ to\ au)to\ ta)nanti¿a aÄn eiãh. kaiì ou)x u(polei¿yei dh/: ai¹eiì ga\r e)n a)rxv=.

Assim, a lição que podemos apreender da natureza do agora é que o tempo está

sempre começando. Cada agora, embora seja sempre terminal, é sempre a gênese de um

novo começo, ou melhor, ele mesmo é este começo juntamente com seu caráter terminal

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relativamente ao agora passado. Assim, esta constatação do auto-principiar perpétuo do

agora deve ser transferido para a concepção do tempo e do movimento em geral:

“Além disso, como poderia haver um antes e um depois se não existisse o tempo?

E mais: como poderia existir o tempo se não existisse o movimento? Pois, se o

tempo é o número do movimento e, além disso, de um certo movimento, e posto

que o tempo existe sempre, então é necessário que o movimento seja eterno. [...]

Pois se o tempo não pode existir nem ser passível de intelecção sem o agora, e se

o agora é um certo meio, tendo de uma só vez um princípio e uma consumação, o

princípio do tempo futuro e a consumação do tempo passado, então o tempo tem

que exisitir sempre. Com efeito, o extremo do último tempo que podemos tomar

tem que ser algum agora (pois no tempo não podemos captar nada fora do agora.

Conseqüentemente, posto que o agora é, de uma só vez, princípio e consumação,

tem que haver necessariamente um tempo em ambas as direções. Mas se é assim

para o tempo, é evidente que também tem que sê-lo para o movimento, posto que

o tempo é uma passibilidade do movimento. ” (251b12-251b29)

pro\j de\ tou/toij to\ pro/teron kaiì uÀsteron pw½j eÃstai xro/nou mh\ oÃntoj; hÄ xro/noj mh\ ouÃshj kinh/sewj; ei¹ dh/ e)stin o( xro/noj kinh/sewj a)riqmo\j hÄ ki¿nhsi¿j tij, eiãper a)eiì xro/noj eÃstin, a)na/gkh kaiì ki¿nhsin a)i¿+dion eiånai.[...] ei¹ ouÅn a)du/nato/n e)stin kaiì eiånai kaiì noh=sai xro/non aÃneu tou= nu=n, to\ de\ nu=n e)sti meso/thj tij, kaiì a)rxh\n kaiì teleuth\n eÃxon aÀma, a)rxh\n me\n tou= e)some/nou xro/nou, teleuth\n de\ tou= parelqo/ntoj, a)na/gkh a)eiì eiånai xro/non. to\ ga\r eÃsxaton tou= teleutai¿ou lhfqe/ntoj xro/nou eÃn tini tw½n nu=n eÃstai (ou)de\n ga\r eÃsti labeiÍn e)n t%½ xro/n% para\ to\ nu=nŸ, wÐst' e)pei¿ e)stin a)rxh/ te kaiì teleuth\ to\ nu=n, a)na/gkh au)tou= e)p' a)mfo/tera eiånai a)eiì xro/non. a)lla\ mh\n eiã ge xro/non, fanero\n oÀti a)na/gkh eiånai kaiì ki¿nhsin, eiãper o( xro/noj pa/qoj ti kinh/sewj.

Na passagem 1071b6 da Metafísica, ficou claro que o antes e o depois não podem

existir sem o tempo. Nestas duas passagens da Física, percebemos que todo agora é

simultaneamente, um antes e um depois, o que torna infinito o tempo e o movimento,

pois o primeiro e o último agora que pudéssemos supor deveria conter, na própria

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suposição, a estrutura anterior-posterior que anularia a própria suposição de que são o

primeiro e o último agora. Além disso, a última passagem estabelece uma verdade

complementar àquela acerca da natureza temporal de todo antes e depois. Agora vimos

que, além de todo tempo pressupor um antes e um depois, todo antes e depois também

pressupõe o tempo. Deste modo, é descartada a possibilidade de que a infinitude da série

anterior-posterior não implique também uma infinitude da série temporal.

A infinitude das séries relativas ao movimento, tempo e agora são perspectivas de

um mesmo fato ontológico: a infinitude da transição em geral, própria do âmbito sensível

do universo. O que fica mais evidente nesta infinitude é seu caráter eminentemente

heterológico, isto é, o fato de cada instância ôntica da série sempre enunciar, no próprio

momento de sua efetivação, algo além de si mesmo. Um movimento sempre enuncia

outro movimento ou sua própria negação, o repouso, assim como o lapso de tempo que o

numera. Do mesmo modo, se formos mais avante neste exame, para atingirmos a

instância não-temporal do tempo, isto é, o agora, encontraremos a mesma heterologia, a

mais fundamental de todas, porquanto a que revela mais nitidamente o caráter sempre

fragmentador de toda e qualquer transição, que é sempre um sair de si mesmo. Com

efeito, até o mais infinitésimo agora apercebido revela, em sua estrutura constituinte, a

antítese anterior-posterior que leva ao advento e enunciação de outro agora.

Embora a estrutura do agora, por si mesma, revele a potência reprodutiva infinita

do tempo, sabemos que a verdade deste fato se deve aquilo de que o tempo é a

passibilidade numérica: o movimento. É por este ser infinitamente passível de reprodução

que há um tempo infinito. O movimento circular das esferas é perpétuo, e isto decorre da

necessidade com que efetua a continuidade seu movimento. Mas tal necessidade decorre

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apenas da impossibilidade de tal movimento, por si mesmo, implicar sua neutralização,

pois na circunferência não há começo nem fim. É por isso que o movimento também não

tem em si mesmo a causa de seu caráter infinito, pois cada movimento pode ou não ser,

ou seja, é sempre potencial até o momento de sua efetivação, e uma soma infinita de

movimentos potenciais não fornece uma certeza de eternidade. E até o movimento das

esferas poderia não ser, caso não houvesse nada além de esferas movendo esferas. A

causa, portanto, deve ser buscada em uma instância superior ao movimento. Desta vez,

contudo, não será em algo de que o movimento é passibilidade, pois se trata, aqui, do

próprio existir e estar presente da coisa. Trata-se de encontrar uma possibilidade de ser

que seja sempre efetiva, porquanto pura efetividade. Uma efetividade causa de sua

própria efetividade. Neste caso, a própria noção de causalidade é afetada e perde parte de

sua significação, pois equivale também a dizer que a efetividade pura não tem causa além

si somente porque não tem causa alguma, nem em si mesma. A pura efetividade é puro

efeito. Certamente não será puro efeito como se houvesse um puro vazio de onde é

lançado tal efeito, que nada teria o que o preceder. Tal imagem é precária, visto que não

há antes ou depois no motor imóvel. Portanto, é o caso, sobretudo, de um efeito que

mantém relaçâo com seu próprio ser, isto é, com sua própria efetividade, que consiste em

intelecção. Ora, se o movimento é o estar presente da coisa, o que diremos dos dois

últimos estágios dinâmicos - a esfera sempre móvel e a inteligência imóvel? O móvel

eterno, sendo algo que jamais deixa de estar presente, era o penúltimo estágio desta

escala de progressão presentificadora. A imobilidade que a ultrapassa é o estar para

sempre e integralmente presente a si mesmo. A auto-intelecção do motor imóvel não é

mais do que esta presença absoluta a si mesmo. A própria significação do termo

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intelecção perde muito de seu conteúdo semântico usual ao ser aplicado ao motor imóvel,

e não devido a um enfraquecimento de sua virtude cognitiva, mas sim pelo contrário:

aqui a potência cognitiva atinge um grau infinito, que dificulta ao extremo o nexo

analógico e genérico com a inteligência finita, a qual é, contudo, a origem primeira de

toda a noção de intelecção. E o próprio Filósofo esbarra nestas dificulades quando

procura descrever o modus operandi de auto-ciência suprema. Como podemos entender

uma intelecção de si que não contenha partes e não ocupe tempo algum? Agora que

saímos totalmente da esfera do transitório, a própria noção de intelecção se torna

problemática, pois tal faculdade, mesmo que seja essencialmente simples

(principalemente para o caso de apreensão de realidades incompostas), sempre pressupôe

alguma espécie de unificação, de apreensão de uma unidade na multiplicidade a qual

acaba envolvendo, de um modo ou de outro, partes espaciais ou temporais. Contudo, a

espécie de cognição de que se trata aqui surpreende por sua simplicidade indissolúvel

exigida por uma efetividade absolutamente imóvel.

Daí que a inteligência imóvel não seja uma espécie de raciocínio, e mesmo a idéia

de uma pura intuição de algo, a aprensão direta de uma realidade em sua estrutura

simples e imediata (como a idéia indivisível do círculo) é uma analogia insuficiente no

sentido de exprimir sua perfeição cognitiva. É por isso que, como vimos acima, trata-se

de um modo autológico de uma perfeição que Aristóteles atribui à efetividade, mas que,

no movimento, se encontra no modo heterológico: o estar presente. O motor imóvel é

presença a si mesmo, e esta é sua marca distintiva – nem mesmo em grau inferior - pois

não há outro ser que detenha esta perfeição autológica.

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O movimento, portanto, foi o caminho buscado pelo Estagirita para atingir o

imóvel, e de um modo totalmente insuspeito, posto que radicalização do próprio

movimento em sua natureza presentificadora. Ora, em todo este trabalho vimos que a

unidade em Aristóteles é, simultaneamente, autológica e separativa. Detenhamos, então,

mais um pouco nesta questão de modo a perceber a separação absoluta que tal autologia

imóvel efetiva relativamente ao móvel.

Aristóteles atinge o imóvel no próprio móvel, a eternidade na mais alta expressão

do tempo. O tempo expressa o passageiro e o corruptível, mas a verdade mais alta

expressa pelo tempo é sua própria negação. O movimento tende à sua própria

neutralização. Sua afecção mais fundamental, o tempo, enuncia o intemporal como sua

necessidade instauradora. Tal exigência se impõe tanto a) em cada uma de suas infinitas

partes como b) em toda a sua totalidade infinita, além encontrar expressão completa e

acabada fora do próprio tempo. Com efeito, em cada instante de tempo, o movimento

universal revela sua continuidade eterna, pois o agora sempre pressupõe um antes e um

depois, que são simultaneamente, outros agoras, e assim inifinitamente, pelo que a

própria totalidade do tempo jamais se cumprirá. Mas o terceiro modo de imposição é o

mais radical, pois se mostra evidente pela constatação de que tal propriedade

infinitamente reprodutiva do tempo deve pressupor um infinito pró- temporal plenamente

efetivo, um imóvel infinito produtor de toda mobilidade: um motor imóvel.

Assim, se em Platão, o eterno tem uma estrutura móvel e não produz movimento,

em Aristóteles, o inverso é que deve ocorrer. Com efeito, as Idéias devem ser correlatas

de coisas sensíveis e móveis. Ainda que as Idéias, por princípio, não possam ter

mobilidade, o único modo de apreendê-las é através do movimento. Não é a toa que

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Platão tenha se utilizado tanto de cosmogonias em sua metafísica, entre as quais a célebre

criação demiúrgica do Timeu. O imóvel carrega sempre, no Platonismo, a semelhança

com o móvel correspondente e a própria imobilidade por excelência – eternidade – possui

uma expressão não-eterna, pois o “o tempo é a imagem móvel da eternidade”.

Aristóteles, por seu turno, entende que, se a essência imóvel – não importa que

natureza a esta atribuamos – deve ser princípio efetivo de movimento, deve ser

totalmente separada de qualquer mobilidade. A essência imóvel não deve compartilhar

qualquer nota com a matéria, principalmente a contrariedade intrínseca de tudo o que é

sensível, pois os contrários são sempre sinal de mobilidade. É por isso que o motor

imóvel é pura autologia, uma estrutura completamente fechada em si mesma, sem

semelhança com nada de sensível, ao contrário do que teríamos se o supuséssemos como

sendo o ‘movimento em si’ ou o ‘círculo em si’. Com efeito, para que um termo

realmente se diferencie estruturalmente de outro, não basta que seja em si, mas que seja

para si mesmo e somente para si.

Sendo pura autologia, o motor imóvel deve se manter puro de qualquer

mobilidade, mas não como se fosse um anti-movimento, uma antítese da transição em

geral. O imóvel surge, em Aristóteles, não como negação neutralizante do móvel, mas

como negação a partir da maximização de seu caráter positivo ao infinito. É por isso que

a efetividade, que, no Livro Q da Metafísica, Aristóteles atribui de um modo especial ao

movimento, encontra, no entanto, expressão plena e acabada no imóvel. Assim, se

adotássemos a terminologia de Hegel, diríamos que o imóvel efetivo não é a antítese do

movimento, mas sim a síntese suplantadora do movimento e da antitética imobilidade

inefetiva.

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É que o móvel, em Aristóteles, não pode ser reduzido ao imóvel puro. Na verdade,

não há qualquer princípio mais simples com o qual poderíamos apreender a natureza do

movimento. Isto leva o Filósofo a combater os que assim procedem em suas

investigações:

“Com efeito, não é possível incluir o movimento em outro gênero de

coisas. Isto é evidente inclusive pelo que dizem alguns daqueles filósofos que o

definem como alteridade, desigualdade e não-ente: ora, não é necessário que

nenhuma destas coisas se mova, e também o movimento não deriva dessas coisas

nem de seus contrários.” (1066a9)

ouÃte ga\r e)n aÃll% tij ge/nei du/nait' aÄn qeiÍnai au)th/n: dh=lon d' e)c wÒn le/gousin: oi¸ me\n ga\r e(tero/thta kaiì a)niso/thta kaiì to\ mh\ oÃn, wÒn ou)de\n a)na/gkh kineiÍsqai, a)ll' ou)d' h( metabolh\ ouÃt' ei¹j tau=ta ouÃt' e)k tou/twn ma=llon hÄ tw½n a)ntikeime/nwn.

Se não podemos decompor o ser do movimento em algo mais simples, a partir do

qual explicar sua natureza, é porque o movimento é a única expressão sensível de algo

que ultrapassa o âmbito sensível: a efetividade. Esta não pode ser reduzida a nada, sendo,

na verdade, um dos princípios explicativos de todas as coisas:

“E ainda, em outro sentido, os princípios são analogicamente os mesmos: quer

dizer, segundo a efetividade e a potência” (1071a5)

eÃti d' aÃllon tro/pon t%½ a)na/logon a)rxaiì ai¸ au)tai¿, oiâon e)ne/rgeia kaiì du/namij:

Na verdade, a efetividade é princípio de todas as coisas que são de fato, isto que é,

que gozam de existência autônoma. Voltando ao Livro Q da Metafísica, percebemos

assim porque a efetividade é aplicada especialmente ao movimento:

“O termo efetividade, que se liga estreitamente ao termo plenitude, mesmo que se

estenda a outros casos, deriva, sobretudo dos movimentos: parece que a

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efetividade é, principalmente, o movimento. Por essa razão não se atribui o

movimento às coisas que não existem, mas se lhes atribui outros predicados: por

exemplo, pode-se que as coisas que não existem são pensáveis ou desejáveis, mas

não que estão em movimento. E isso porque, mesmo não sendo efetivas, neste

caso serão.” (1047a30)

e)lh/luqe d' h( e)ne/rgeia touÃnoma, h( pro\j th\n e)ntele/xeian suntiqeme/nh, kaiì e)piì ta\ aÃlla e)k tw½n kinh/sewn ma/lista: dokeiÍ ga\r h( e)ne/rgeia ma/lista h( ki¿nhsij eiånai, dio\ kaiì toiÍj mh\ ouÅsin ou)k a)podido/asi to\ kineiÍsqai, aÃllaj de/ tinaj kathgori¿aj, oiâon dianohta\ kaiì e)piqumhta\ eiånai ta\ mh\ oÃnta, kinou/mena de\ ouÃ, tou=to de\ oÀti ou)k oÃnta e)nergei¿# eÃsontai e)nergei¿#.

Fica claro, pela passagem acima, o estreito vínculo entre efetividade, movimento

e ser. A efetividade confere ser a um ente e é de tal modo conectada com o movimento,

que basta que algo se mova para que, ao mesmo tempo, seja de algum modo. É por isso

que seria paradoxal atribuir movimento a algo que não está é. E mesmo que seja fato que

movimento e efetividade não são o mesmo, e que o ser do movimento não seja pura

efetividade, mas também potência, não há como compreender o ser do movimento como

uma mera soma estática de potência e efetividade. O fato é que o movimento é um modo

fundamental e genuíno de efetividade, não sendo um complexo resultante de efetividade

e algum outro princípio, mesmo a potência. Não há, pois, como analisar a natureza do

movimento em outras mais simples e explicativas.

Ora, se a efetividade do movimento não pode ser analisada em nada anterior

segundo a simplicidade, deve poder comprendida ao menos a partir de uma instância

anterior segundo outro fator. Este fator é justamente a intensificação extrema da própria

natureza universal da efetividade: o estar presente (to\ u(pa/rxein). Aristóteles já havia

estabelecido a presença como nota essencial de toda e qualquer efetividade:

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“A efetividade (e)ne/rgeia) é a coisa (to\ pra=gma) estar presente

(hypárchein), mas não enquanto se diz estar em potência (duna/mei).” (1048a32)

eÃsti dh\ e)ne/rgeia to\ u(pa/rxein to\ pra=gma mh\ ouÀtwj wÐsper le/gomen duna/mei:

Daí que o próprio imóvel deve, de certo modo, antecipar o móvel, conter em grau

autológico sua mais alta expressão funcional: a presença. O caráter meta-cinético do

imóvel - isto é - sua ultrapassagem, seu estar além do móvel- não decorre de se tratar de

um anti-movimento, como o fora em Platão. O motor imóvel é meta-movimento porque é

supra-movimento, está além de sua esfera porque, e somente porque, demonstra superar

ao infinito sua natureza essencial.

Assim, o movimento é universal porque não há como anular aquilo que faz dele

algo efetivo: seu caráter presentificador. Cada nova presença, ao se consumir, dá origem

a outra presença. E a análise do agora mostrou que o presente, em si mesmo, sempre

pressupõe, além de um passado prévio, um novo começo. Este fato interdita a

possibilidade de geração ou destruição do tempo, alternativas já vislumbradas por

filósofos anteriores, como Platão, por exemplo. Por outro lado, a mesma presença que faz

do movimento algo inegável, universal e eterno, também revela, pelo modo como se

apresenta neste âmbito, a necessidade de buscar outra instância que a supere e explique.

Pois a presença móvel está sempre ultrapassando a si mesma, sempre encontra em outro

ser a razão de seu advento. Jamais é presença a si mesma, mas sempre presença a outro.

Esta é a heterologia fundamental, porquanto origem de todas as outras e presente mesmo

em uma estrutura altamente autológica como a inteligência finita. O motor imóvel, como

inteligênicia infinita de si, é justamente a instância que supera e explica o movimento,

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pois, sendo presença a si mesmo, não sai de si, seu ser não sofre transição alguma, pois

todo ele está concentrado em si mesmo.

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CONCLUSÃO

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Vimos como a estrutura mesma do livro L da Metafísica suscita as mais delicadas

controvérsias, principalmente pelas dificuldades relativas à própria ordem com que

devemos considerar os capítulos. Com efeito, da solução deste problema depende a

interpretação mesma do itinerário argumentativo do Filósofo. O conhecimento da exata

posição do capítulo nove, relativamente aos demais, não possui pouca importância; antes,

será decisivo no que concerne à conclusão de Aristóteles quanto à pluralidade dos

motores imóveis. Já nos referimos à similaridade entre as questões abordadas neste

capítulo e aquelas que fazem parte do sétimo. Como este último apresenta tais questões

de forma mais desenvolvida, preferimos considerar o nono capítulo uma introdução ao

mesmo, ao contrário do que propõe Reale e Jaeger, que mantêm sua posição cronológica,

o que o segundo aceita como divergente apenas quanto ao capítulo oitavo, cuja redação

seria posterior à de todos os demais, referente a uma fase em que o Filósofo concluiria na

total incompatibilidade entre esta doutrina do primeiro motor e aquela que mantém

definitivamente, isto é, a pluralidade dos motores imóveis.

Tornou-se bem nítida a incongruência da referida convicção na incompatibilidade

entre estas duas doutrinas. Como sabemos, esta tendência é impulsionada sobretudo por

Jaeger, e tem o claro propósito de servir de apoio a uma concepção fragmentária do livro

L, visto assim como uma estratificação composta de escritos pertencentes a períodos bem

diversos do pensamento do Estagirita. São três os processos através dos quais estes

fragmentos teriam sido reunidos com alguma coerência. O primeiro é de responsabilidade

do próprio autor da Metafísica, no âmbito de uma reorganização e autocrítica de seus

escritos, quando certas posições seriam revistas e, então, rechaçadas. O passo 1074a33

teria sido enxertado a partir deste processo. Os sucessores de Aristóteles no Liceu

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também efetuaram diversas retificações na obra do mestre, e numerosos acréscimos,

visando a superação de contradições e insuficiências teóricas levantadas no interior dos

círculos de discussões. O terceiro processo pelo qual passariam os textos seria de

responsabilidade dos copistas medievais, que não possuíam qualquer restrição quanto a

justapor interpretações pessoais e sentenças colhidas dos próprios manuscritos, o que

teria ocasionado sérias modificações no texto original, chegando mesmo a ser atingida

uma completa mudança de significado em inúmeras passagens.

Procuramos destacar a importância da polêmica acerca da teoria correspondente à

última fase do pensamento de Aristóteles. Sabemos que Jaeger sustentava a maturidade

de uma doutrina na qual o Filósofo teria abandonado por completo a exigência platônica

da imaterialidade dos mais elevados princípios do cosmos. Os princípios supremos, quer

dizer, aqueles mais cognoscíveis em si mesmos , seriam próprios unicamente das

essências imateriais, o que conduziria, inevitavelmente, a uma ontologia dos seres

sensíveis como derradeira concepção do Estagirita acerca da natureza da ciência primeira.

É evidente que, mantida esta interpretação, fica descartada qualquer identificação da

suprema ciência com a teologia, o livro L sendo encarado, doravante, como obra

referente à juventude de Aristóteles, ainda decisivamente influenciado pelos fundamentos

teóricos de seu mestre.

Quanto à referida tese de Jaeger, é bem significativa a postura adotada por Patzig,

na medida em que procura enfraquecer determinadas interpretações acerca do sentido

atribuído por Aristóteles ao termo teologia, quando o identifica com a ciência mais

elevada. A simples menção de um trecho do livro I em que Aristóteles afirma que o sábio

“possui certo conhecimento de tudo” (982a23) é suficiente - sustenta Patzig - para

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invalidar por completo uma leitura do livro L como escrito de mocidade. Com efeito, se

o Filósofo atribui a Primeira Filosofia ao sophós, e o considera um indivíduo que possui

certo conhecimento de todas as coisas, não há modo de confinar seu âmbito investigativo

ao estudo, quer da essência de Deus, quer dos seres sensíveis. Daí entendemos também,

conforme já destacamos, que a postura contraditória que teria adotado Patzig em seu

ataque a Natorp, é apenas aparente. É que o último é criticado por ter identificado a

ciência primeira e a teologia, o que mesmo Patzig o faz, porém sem determinar para o

conhecimento da natureza de Deus uma significação não-filosófica, quer dizer, isolada de

toda a investigação sobre os princípios universais, em harmonia com a qual a doutrina do

primeiro motor realmente parece se desenvolver ao longo do livro L.

Seria desnecessário salientar a importância destas discussões no que tange a uma

determinação mais sólida do lugar do livro L no Corpus Aristotelicum. Preferimos,

porém, ao contrário dos referidos autores, empreender outro percurso em vista do mesmo

esclarecimento. Trata-se, na verdade, de retomar alguns dos principais conceitos e

doutrinas de Aristóteles a partir de sua gênese - quer dizer, nos trechos em que são

estabelecidos definitivamente pelo Filósofo - até os momentos em que os mesmos

nitidamente se apresentam em seu pleno estado de desenvolvimento. Percebemos assim

que estes momentos coincidem com aqueles em que, não somente se torna manifesta a

convicção da existência de uma essência motriz imaterial, como também a própria

natureza de tal essência mostra-se como o verdadeiro ápice da maturação filosófica destes

conceitos e doutrinas, representando, em última instância, o princípio de cognoscibilidade

dos mesmos. Desta forma, acreditamos que a polêmica acerca do posicionamento do livro

L no interior da Metafísica de Aristóteles aproxima-se do fim, mesmo porque este é o

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lugar em que a doutrina do primeiro motor assume maior relevo em todos os seus

inúmeros desdobramentos.

Restam, assim, duas únicas decisões a serem tomadas, a primeira das quais

consideravelmente inviável: a) tomar a doutrina do primeiro motor - e, por isso, a maior

parte do livro L - como fruto de um momento ainda “platônico” da vida filosófica de

Aristóteles, o que nos obrigaria não somente a assumir postura extremamente cética no

tocante às passagens de outros livros do Estagirita em que tal doutrina é referida, mas

igualmente no que se refere a qualquer tentativa de interpretação da filosofia aristotélica

que preconize alguma progressão argumentativa extensa, já que esta - da mesma forma

como ocorreria com outros trechos que tratam da referida doutrina - pode ter sido

construída a partir de enxertos posteriores autorais ou efetuados por outrem; b) admitir,

por força dos sinais e evidências, a plena maturidade intelectual do livro L e de sua

célebre teoria, aquela em que se mantém a existência de certas essências imateriais

motrizes de todo o universo e que confere certo “grau de veracidade” às opiniões dos

antigos, de que os astros são deuses e o divino abarca toda a natureza. A função da

primeira deste trabalho é, na verdade, uma justificação desta última decisão.

No entanto, a tese da maturidade intelectual do Livro L da Metafísica atingiria

um grau ulterior de justificação com a constatação de que os vários momentos da

ontologia Aristóteles remetem, segundo sua própria dinâmica investigativa, à doutrina

teológica do Livro L. Este é o escopo da segunda parte deste estudo. Ali empreendemos

uma investigação acerca dos graus do ente, quando percebemos, primeiramente, que tal

graduação pode ser medida pelo grau de unidade que cada nível do ente apresenta. Não

tivemos o propósito, contudo, de estabelecer uma espécie de hierarquia do um sobre o

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ente, empresa que seria bem ingênua, pois esbarraria em entraves textuais invencíveis: o

prório filósofo descarta a possibilidade de uma relação de anterioridade envolvendo o

ente e o um.

O que perseguimos realmente foi a natureza mesma da escala ontógica na

doutrina de Aristóteles e, primeiramente, a noção de uma unidade gradual do ente foi

crucial para isto. Mas esta não foi a única noção decisiva. Ao lado do um, esbarramos

também com as idéias de separado e o mesmo, que sempre perseguiram o Filósofo ao

longo de seus textos metafísicos. Isto não foi um fenômeno fortuito. Ocorre que a

unidade do ente, em Aristóteles, não é participativa, como a de Platão, mas separativa,

conforme o notou Aubenque. O ente se faz um apartando-se, distinguindo do outro

possível, o ente circundante. E tal separação envolve um retorno, desde o outro (em que o

um participante de Platão estava enredado) para si mesmo, como que em direção a uma

estrutura auto-relativa do ente, de ratificação de seus próprios limites. E tanto a separação

quando a simultânea autologia admitem graus. Daí que também o ente e o um formem

uma grande escala, da qual podemos destacar cinco níveis principais:

1- Ente x não-ente

A natureza deste nível é manifesta simplesmente pela enunciação do “mais seguro

dos axiomas”, o princípio de não-contradição. Trata-se de um princípio que define o nível

mais geral do ente, aquele partilhado por tudo aquilo que é, mesmo daquelas instâncias

que são apenas concomitantemente, como o ‘ser branco’ de um homem ou as privações,

que são apenas na medida em que são enunciadas. Todas estas instâncias devem respeitar

uma certa relação consigo mesmas, de jamais não serem no instante mesmo em que são.

A instantaneidade deste princípio é algo que não deve ser visto como periférico aqui, mas,

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ao contrário, é toda a essência do princípio. É que tudo o que é deve ao menos ser por um

instante e ser objeto de uma intelecção, a qual necessita ao menos de um instante

infinitesimal para ser efetivada. Daí que o princípio geral de todo o ente seja,

simultaneamente, um princípio geral de todo instante. Mas aqui reside justamente o sinal

mais evidente do caráter insuficiente do axioma para fazer-nos atingir a esfera mais

nuclear do ente, que dá sustentação a todas as outras. Tal esfera deve poder manter sua

unidade ontológica por si mesma e por mais de um instante, porquanto goza de uma auto-

relação menos vazia, consistente o bastante para se manter mais determinadamente

separada do ente alheio, que para ela vale como não-ente. A esfera nuclear do ente deve

ser autárquica. Somente assim a separação ente x não-ente estará consolidada, ainda que

não plenamente efetivada.

2- Essência x não-essência

Separação entre o que é por si e o que é por outro que é por si. Eis a distinção

entre a essência e o concomitante. Este não pode ser separadamente, mas somente

agregado à essência separada e autônoma. O concomitante, portanto, não é em sentido

absoluto, pois, ainda que não fosse, a essência seria. Podendo não ser sem afetar com isso

a natureza do que é em sentido primeiro, o concomitante não tem uma fronteira definida

que o apartasse do não-ser, este sendo, na verdade, sua possibilidade instauradora.

2,1- Essência composta x essência primeira

Separação ainda mais nítida entre ente e não-ente, pois a essência, embora possa

ser gerada ou corrompida enquanto composto, não passa por processo de geração ou

corrupção enquanto essência primeira, ou seja, enquanto forma. É que a forma passa do

ser ao não-ser instantaneamente, o que significa: não há uma continuidade desde o ser até

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o não-ser da essência primeira, de modo que pudéssemos ver aí um certo comércio entre

os termos extremos. Há uma fronteira nítida entre afirmação e negação da forma

essencial

3- Animado x inanimado

O animado move a si mesmo por si mesmo. Ora, nos entes sensíveis, o

movimento é o que leva ao ser, pois a efetividade da forma do ente se deve ao princípio

motor, que conduz a matéria à sua formação. Assim, sendo a causa de seu próprio

movimento, o animado é efetivamente causa de seu ser, e de um modo mais completo

que a essência inanimada o é de seu ser. Segue daí que a separação entre animado e

inanimado incrementa uma separação ainda maior entre o ser por si e o ser por outro e,

por conseguinte, entre ser e não-ser, conforme já vimos quando determinanos o ser do

concomitante como inseparável da possibilidade do não-ser.

4- Inteligência x objeto de intelecção

A essência animada, considerada em sua ação de mover a si mesma, não é

separada totalmente do a essência inanimada, quer dizer, do corpo. Com efeito, ao mover

a si mesma, uma parte move e outra é movida, sendo a primeira a forma animada

enquanto tal, e a segunda a matéria enformada. Mas o fato é que Aristóteles, em De

Anima, ratifica a impossibilidade da alma motriz permanecer mesmo após a corrupção do

corpo movido, pois o enunciado (lógos) que define o ser-prévio (to ti en einai) da alma é

o enunciado efetivo do corpo, o que força a presença das partes do corpo para que sua

alma própria exista de fato.

A parte inteligente da alma, no entanto, entra em outra esfera separativa.

Enquanto o restante da alma é apenas uma efetividade do corpo, aqui a efetividade não se

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aplica mais à corporeidade, ainda que a ela se refira por intermédio do todo anímico de

que constitui uma parte. A inteligência é separada essencial e existencialmente do corpo,

e não apenas essencialmente, como o restante da alma. Esta se distingue da pura matéria

porque sua noção implica atividade, enquanto a noção da matéria envolve, na qualidade

de hypokeímenon, o ser passivo relativamente ao princípio motor enformativo. Mas a

existência da alma, como vimos, não faz sentido sem o correlato corpóreo, pois nada

mais é que sua efetividade própria: "se o olho fosse um animal, a visão seria sua alma"

(ei¹ ga\r hÅn o( o)fqalmo\j z%½on, yuxh\ aÄn hÅn au)tou= h( oÃyij)94. Algo distinto ocorre

com a inteligência, a qual o Filósofo concede a prerrogativa decisiva da auto-subsistência

relativamente ao corpo ao qual se refere, posto que sobrevive à corrupção de toda a sua

estrutura. A inteligência não é efetividade de parte alguma do corpo, mas da própria alma

como um todo, pelo que toda a sua desintegração não afetará de modo algum sua

subsistência.

5- Motor x movido

No entanto, a inteligência, ainda que subsista além da dissolução da essência

sensível, ainda se encontra intimamente associada à totalidade de sua estrutura e às

passibilidades que lhe dizem respeito. É que, embora não seja efetividade do corpo, a

inteligência é efetividade da efetividade do corpo, pois é efetividade da alma como um

todo, que por sua vez, é efetividade do corpo. Sendo uma super-efetividade, adquire a

prerrogativa da independência relativamente a cada parte efetiva do corpo, mas não está

isenta de referência existencial à estrutura tomada como um todo. Embora não seja

afetada por transição no tocante à essência, a locomoção do corpo envolve, de certo modo

94 DA 412b18.

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ou por concomitância, a locomoção da inteligência, na medida em que, se é verdade que a

alma move a si mesma por concomitância - pois move por si mesma o corpo em que se

encontra - então será verdade que sua parte mais excelsa está sujeita também ao mesmo

movimento concomitante, pois a parte segue o todo.

A identidade do ente consigo mesmo encontra na inteligência expressão nítida e

elevadíssima relativamente a quase totalidade dos entes. Contudo, é possível imaginar

outra essência ainda mais apartada do devir, porquanto mais una com seu próprio ser. Se

a inteligência, embora permaneça após a destruição do suporte material, ainda se encontra,

de certo modo, sujeita ao movimento, então sua auto-referência e, simultaneamente,

diferença dos demais entes não é completa. A separação não se instaurou plenamente.

Assim, é possível imaginar outra essência com ulterior grau de autonomia relativamente

ao fluxo universal, que se mantenha imóvel sob qualquer ponto de vista metafísico. De

fato, o motor imóvel, que na verdade é outra inteligência - e de espécie infinitamente

diversa - cumpre plenamente o requisito a que deve esta denominação, pois é

absolutamente imóvel. E não é por acaso que tal expressão é usada por Aristóteles na

maior parte das vezes. Com efeito, a causa da unidade desta espécie sui generis de

inteligência pairar acima da unidade ontológica das demais essências não é,

evidentemente, a própria natureza da inteligência em geral, mas a natureza peculiar que

lhe convém e que lhe permite dispensar qualquer referência à transitoriedade circundante.

Daí que, em lugar de se referir a tal realidade como inteligência suprema ou perfeita - o

que seria mais do que exato - Aristóteles prefere a denominação "motor imóvel". É que a

imobilidade é a causa mais próxima e determinada de sua perfeição, pelo que tal

referência permite que compreendamos mais diretamente o sentido último de tudo o que

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de verdadeiro podemos afirmar sobre sua natureza, inclusive a mais fundamental segundo

a filosofia primeira, a saber, ser o grau último da auto-identidade do ente. Ora, a escala

autológica principia com a pura separatividade entre ente e não-ente, pela qual o ente

assume sua posição auto-afirmativa relativamente à possibilidade do não-ente. A essência

vem a seguir, como primeiro grau de determinação efetiva de tal posição, pois é

efetividade e indivíduo, e não apenas pura universalidade idêntica a si mesma pela mera

indiferenciação interna, ou seja, pura potência ontológica de ser idêntica a si tão somente

porque, simultaneamente, impotência efetiva de não-ser. Na verdade, a efetividade

individualizante, que torna qualquer algo em 'este algo', envolve superiormente o mesmo

(tò autó) no ente. O puro ente em geral era, por um lado, puro devir, pois nada aqui

subsiste por si mesmo, mas é sempre na referência ao que efetivamente subsiste por si.

Mas a auto-subsistência, a autarquia do ente é apenas o terceiro grau da escala. É possível

uma intensidade superior de relação do ente consigo mesmo que significa,

simultaneamente, a separação mais definida do meio circundante. Este nível é realizado

pela alma e a essência viva em geral. A estrutura da vida permite que o ente efetive sua

separação do não-ente a partir de uma espécie mais perfeita de auto-relação consigo, em

que não somente tem seu princípio de subsistência em si mesmo, mas também efetive em

si mesmo este princípio, ou melhor, seja ele mesmo este princípio no momento em que

condiciona a efetividade que lhe é própria: o movimento. Além deste estágio, somente

poderíamos tocar um último estágio ou mais de um que, de certo modo, mantenham certo

grau de indissociabilidade, pois se trata agora do ápice do ente, em que a perfeição e

independência da matéria é tão segura e determinada que dificultam sobremaneira uma

distinção ulterior. Foi o que vimos nos capítulos dedicados à inteligência humana e ao

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motor imóvel. Determinadas passagens do De Anima foram até tomadas como pré-

teológicas. Trata-se da possibilidade de auto-intelecção da inteligência humana, coisa que

se pensava exclusiva do motor imóvel, mas que acabou se mostrando a única saída para a

demosntração de um suposição inicial do De Anima: a imortalidade da inteligência.

No entanto, o gênio discriminativo de Aristóteles o permite avançar mesmo em

terrenos outrora envolvidos em total homogeneidade. Todo o nosso estudo pretendeu

acompanhar maximanente esta característica de seu pensamento e, no caso da suma

distinção, aquela entre as duas inteligências, o critério autológico também foi aplicado.

Vimos que todas as radicais diferenças entre as duas potências cognitivas podem ser

resumidas em apenas uma: a infinita relação consigo mesmo, presente na estrutura supra-

essencial e jamais possível na humana. Todas as etapas autológicas do ente são como

setas que apontam para este infinito.

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VOCABULÁRIO DE TRADUÇÃO

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Acaso (au)to/matoj)

Aristóteles fornece uma etimologia para au)to/matoj, em sua Física 95 , que

diverge daquela comumente conhecida e apoiada por Bailly. Segundo o Filosofo,

au)to/matoj está ligado a máten, que significa ‘em vão’, pelo que poderíamos deduzir

que o termo completo significa “uma ocorrência da própria coisa, sem propósito”, isto é,

a ocorrência da mesma coisa que se verificava conforme a um propósito, só que desta vez

sem qualquer propósito. Isto vai de encontro à tradição de enxergar au)to/matoj como

‘aquilo que se move a si mesmo”. E Aristóteles é coerente com sua etimologia, pois opõe

natureza (fu/sij) e automatismo (au)to/matoj) e define a primeira como o ‘o princípio

de movimento que reside no próprio ser’, enquanto que em sua Física afirma que a causa

do au)to/matoj reside fora dele96.

Se optarmos pela etimologia aristotélica, portanto, tomaremos o au)to/matoj

como um evento que, de alguma forma, se aproxima e simula outro evento, este sim de

natureza teleológica. Aqui o mesmo (au)to/), longe de ter o poder de mover a si mesmo,

apenas ocorre a partir de algo extrínseco à sua estrutura. Trata-se, assim, de um nível

autológico muito pobre, e com razão o Filósofo o distingue fortemente do

automovimento da natureza.

Echandía97, seguindo Ross98, não aceita a etimologia aristotélica, que faz derivar o

sufixo matoj de maten. Como alternativa, afirma que tanto o matoj de au)to/matoj

como maten derivam de maíomai, que significa ‘desejar vivamente’, ‘buscar

95 Física B, 197b20 96 Física B 197b35

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ardentemente’. Isto explicaria em parte a tradição que toma au)to/matoj como

significando ‘o que se move a si mesmo’, pois nesse caso o sentido originário ‘buscar por

si mesmo’ não estaria muito longínquo. No entanto, segundo Bailly99 e Chantraine100,

maten não provém de maíomai, mas de mataw, que significa ´ser vão, sem efeito,

inútil´. Ao menos quanto a isso Aristóteles não estava errado, contrariamente o que supôs

Echandía. Porém o mais importante aqui é que o Filósofo realmente usava o termo

au)to/matoj para expressar uma causalidade casual, ou melhor, uma negação da

causalidade (principalmente a causalidade natural), muito mais do que uma auto-

causalidade. Daí que preferimos traduzi-lo por acaso, porquanto a idéia expressa por autó

neste termo não foi pensado no sentido que possui em qualquer termo moderno em que

tal vocábulo entre como sufixo, não envolve a reflexividade própria de automovimento

ou autotelia, só para citar dois exemplos. A noção de au)toj aqui é bem mais afim da de

oÀmoioj (semelhante, igual), pois, como vimos, se trata do ‘o mesmo sem razão’, o que de

certa forma é dizer que não é exatamente o mesmo. Os animais gerados por au)to/matoj

não são os mesmos que os outros. Há algo diferente neles. Isto ficará mais claro no

parágrafo seguinte.

Mas por que este termo está constantemente associado à idéia de automovimento?

Há mais de uma razão para isso. Em primeiro lugar, o que não tem causa interna alguma

pode ser dito, em certo aspecto, como sendo causado por si mesmo. É que a soma de

todos as causas concomitantes que o efetivaram permanceceu fora do alcance da

97 Echandía, 1995, pág. 156 98 Ross, Aristotle’s Phisics, 1936, pág. 523, cit. por Echandía 99 Bailly, 1963, pág. 1230 100 Chantraine,1968, pág. 672

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teleologia natural, como que apartando-se da mesma. Assim, se tomarmos o fortuito

como que significando a totalidade das causas e o efeito final, então o fortuito causa a si

mesmo, de um modo análogo ao que faria um produto natural. Porém, se por fortuito

entendemos somente o efeito final, então é evidente que não terá causa alguma em si

mesmo, pois é justamente a privação da auto-causalidade própria da natureza. O mesmo

raciocínio o próprio Filósofo aplicou também ao caso das séries heteromovidas cujo

termo final é automovido. Neste caso, cada vez que tomamos o próprio automovido

juntamente com outros heteromovidos, pode-se tomar o todo resultante como automovido

relativaemente aos demais heteromovidos não integrantes da série.

A partir de algo (eÃk tinoj)

Anterior (pro/teroj)

Atividade (pra=cij)

Este termo em geral é usado para traduzir e)ne/rgeia. No entanto, decidimos

traduzir este último como efetividade, e as razões para tal expressamos no respectivo

lugar. Atividade é justo o que mais parece indicado na ocorrência de pra=cij, como

aquela espécie de efetividade que se esgota em si mesma, ainda que seja possível certo

uso ampliativo para efetividades que tendem a um efeito (eÃrgon) além de si mesmas,

como o próprio Aristóteles já notara criticamente:

“Dado que das atividades que têm um limite nenhuma é uma completude, mas

todas se aproximam da completude como, por exemplo, o emagrecimento tem por

completude a magreza; e, dado que os corpos, quando emagrecem, estão em

movimento em direção à completude, ou seja, não são aquilo em vista do que

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ocorre o movimento, segue-se que estas não são atividades, pelo menos não são

atividades perfeitas, justamente porque não são completudes. Ao contrário, o

movimento no qual já está contida a completude é uma atividade. Por exemplo,

no mesmo instante alguém vê e viu, conhece e conheceu, pensa e pensou,

enquanto não pode estar aprendendo e ter aprendido, nem estar se curando e ter-

se curado.” (1048b18)

¹Epeiì de\ tw½n pra/cewn wÒn eÃsti pe/raj ou)demi¿a te/loj a)lla\ tw½n periì to\ te/loj, oiâon to\ i¹sxnai¿nein hÄ i¹sxnasi¿a [au)to/], au)ta\ de\ oÀtan i¹sxnai¿nv ouÀtwj e)stiìn e)n kinh/sei, mh\ u(pa/rxonta wÒn eÀneka h( ki¿nhsij, ou)k eÃsti tau=ta pra=cij hÄ ou) telei¿a ge (ou) ga\r te/lojŸ: a)ll' e)kei¿nh <vÂ> e)nupa/rxei to\ te/loj kaiì [h(] pra=cij. oiâon o(r#= aÀma <kaiì e(w¯rake,> kaiì froneiÍ <kaiì pefro/nhke,> kaiì noeiÍ kaiì neno/hken, a)ll' ou) manqa/nei kaiì memaqhken ou)d' u(gia/zetai kaiì u(gi¿astai: A atividade, portanto, não requer algo além de si mesma para ser completa, e é

nisto que se distingue de movimentos que tendem a atingir sua própria dissolução para

atingirem sua completude e razão de ser, como é o caso do processo de cura, que não é

produzido com o propósito de continuidade ilimitada, mas visando o termo mais próximo

possível.

Causa (aiãtioj)

Completo (te/leioj)

Ver Completude (te/loj).

Completude (te/loj)

A tradução convencional "fim" é satisfatória em quase todos os casos. Ocorre

apenas que pretendemos explicitar o caráter de perfectibilidade envolvido em suas

diversas aplicações. Pois te/loj não significa somente uma meta, um propósito, mas uma

natureza determinada a ser atingida, embora seu uso possa ser estendido ao termo das

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ações e dos movimentos. E aqui justamente fica mais nítido o caráter limitado da adoção

de "fim". Com efeito, em algumas passagens Aristóteles que o movimento (kínhsij) é

uma efetividade (energeia) incompleta (atelhj), coisa que seria difícil exprimir com o

termo "fim", ainda que tal vocábulo também carregue a idéia de meta. Neste caso, não se

trata apenas de transmitir tal idéia, pois um movimento pode ser acompanhado de uma

meta sem, com isso, invalidar a afirmação do Filósofo de que todo movimento é uma

efetividade incompleta. Não basta, pois, haver um escopo para que haja de completude. É

preciso que haja possibilidade de acabamento de algo definido. Isto não significa,

contudo, que não possa haver completude a partir do movimento. Apenas não será o

próprio movimento o que diremos completo, mas o produto ou resultado simultâneo ao

seu termo último.

Composto (su/nqetoj)

Concreto (su/noloj)

Aristóteles usa, inúmeras vezes, este termo em contraposição à forma tomada

abstratamente, quer dizer, apartada de sua condição de imersão na matéria. Cremos que a

oposição usual que fazemos entre abstrato e concreto é bem próxima daquela entre forma

e concreto aristotélicos. O prefixo “com” traduz quase que exatamente o correspondente

grego su/n, ao transmitir a idéia de concomitância e conjunção. Mas é a união de su/n

com oloj que torna este último mais identificável com a idéia de crescimento do que a

noção de integridade, embora esta também entre na compreensão da coisa, ainda que de

um modo mais genérico. Com efeito, su/noloj não é somente o que é total, mas o que é

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total juntamente com outra coisa. Esta necessidade de um outro termo, aliado ao fato de

Aristóteles usar este termo para se referir às essências que sofrem alguma espécie de

transição ou mudança, é que torna o su/noloj bem mais um concreto – isto é,

desenvolvido por agregação – do que simplesmente completo. O concreto é um completo

dinâmico. Sua forma passa da potência (du/namij) à efetividade (e)ne/rgeia) porque é

uma forma inserida no princípio potencial por excelência – a matéria, com a qual efetua

sua desenvolução.

Concomitante (sumbebhko/j)

A tradução que se tornou clássica – acidente - já se trata de uma interpretação

calcada no aspecto quase sempre fortuito de sumbebhko/j no Corpus, porém não

satisfaz quando o Filósofo trata do sumbebhko/j por si (kaq' au(to) e eterno (a)i¿+dioj),

como o caráter par ou o ímpar dos números.

Concomitante deixa mais claro o caráter dinâmico da palavra, já indicada em sua

etimologia, e que é muito útil no sentido da compreensão do livro G e do princípio de

não-contradição. Procuramos estabelecer o caráter vago da unidade do ente enquanto

puramente não contraditório, em parte porque até o concomitante, em si mesmo, é não

contraditório, mesmo quando passageiro, pois o princípio de não-contradição estipula

uma exigência para todo o movimento sem contudo limitar sua natureza instável e

fragmentária.

Contraditório (a)nti¿fasij)

Contrário (enanti¿oj)

Dessemelhante (a)no/moioj)

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Diferente (dia/foroj)

Disposição (dia/qesij)

Diverso (eÀteroj)

Efeito (eÃrgon)

Efetividade (e)ne/rgeia)

Quando Aristóteles utiliza o termo e)ne/rgeia para afirmar que determinado qual

(poi@oj) está presente de fato, dificilmente seria inteligível a tradução “tal qualidade

existe ativamente ou de modo atuante, como deveríamos fazer se optássemos por

atividade ou ato como formas válidas para traduzir e)ne/rgeia. Na verdade, a qualidade

está presente passivamente em um ente, como resultado natural de determinado processo.

Para salvar tais opções, teríamos que lançar mão de ‘ativada’ ou ‘atuada’ para distinguir

dos modos ativos dos respectivos verbos, o que seria algo sobremaneira forçado. Tais

dificuldades podem ser evitadas se e)ne/rgeia for tomada, no português, como

efetividade, pois os adjetivos possíveis para este termo se aplicam a elementos ativos com

a mesma naturalidade observada para os elementos passivos. Uma qualidade pode estar

presentemente efetiva da mesma forma que um princípio motor.

Elemento (stoixeiÍon) Engenho (te/xnh)

A maior parte dos tradutores emprega ‘arte’ para as ocorrências de te/xnh.

Alguns, mais raramente, adotam técnica. A primeira alternativa detém o favor do largo

uso e da capacidade quase ilimitada de ‘arte’ para esferas tão díspares quando ‘obra de

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arte’ e ‘arte médica’. O segundo caso se vale principalmente da derivação etimológica e

da compatibilidade com praticamente todos os usos de que se vale Aristóteles.

No entanto, preferimos outro termo, engenho, que alia vantagens das duas opções

anteriores. Engenho, tal qual técnica, transmite com bastante precisão o caráter metódico

do termo grego – bem explícito em ‘técnica’ - assim como uma certa produção (poiésis)

necessariamente visada pelo detentor do método, ou seja, a criação, a criatividade, tão

evocados na ocorrência de ‘arte’. Além disso, te/xnh deriva de tiktw, que significa

‘engendrar, criar, dar a luz’, pelo que está aparentado a te/knon – criança, rebento. E

engenho também carrega a mesma família semântica, pois conota a capacidade de

engendrar, de fazer algo vir à existência. Daí que te/xnh esteja tão presente em passagens

em que Aristóteles aborda a natureza (fu/sij) como princípio de geração dos entes, pois

aparece como outro princípio intra-genérico da poder generativo em geral, ao lado das

respectivas privações de ambos os princípios: o acaso (au)to/matoj) e a fortuna (tu/xh).

Ente (to\ oÄn)

Em nossos estudos, procuramos distinguir ao máximo as ocorrências de ente (to\

oÄn) e ser (to\ eiånai), ainda que tal coisa se revele, certos casos, algo bastante difícil

devido a algum contexto que torne, naquele caso, as duas noções equivalentes. Tomamos

ente como o que aquilo ao qual o ser se aplica, sejam quais forem os sentidos atribuídos

ao ser, cuja analogia em Aristóteles é célebre. O fato é que grande parte da possibilidade

de equivalência destes dois termos se deve justamente a tal aplicabilidade universal do

ser ao ente e vice-versa, pois um é um particípio do outro. Assim, para cada sentido do

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ente haverá um sentido do ser que se lhe aplica e para cada sentido do ser haverá ente que

a qual este se aplica.

Enunciado (lo/goj)

Talvez este seja o vocábulo grego mais difícil de se traduzir. Só para citar alguns

dos variados usos adotados, encontraremos pensamento, razão, discurso, relação,

proporção, proposição, enunciado, argumento como possíveis ocorrências em muitas

versões das obras de Aristóteles e de filosofia em grega em geral.

Sabemos que tal profusão literária relativamente ao termo lo/goj não se deve

nem ao acaso nem ao capricho dos tradutores ao longo de milhares de anos de estudos do

Corpus, mas somente foi possível devido à própria flexibilidade quase ilimitada do termo

grego, que permitia seu uso quase que para qualquer área ou situação cognitiva. Mas

devemos questionar, primeiramente: há um paralelo relativamente à nossa realidade

lingüística que permite uma tal gama de acepções? Se for o caso, estaremos mais

próximos de compreender o fenômeno grego do lo/goj e estabelecer uma ponte mais

natural e segura com a língua portuguesa.

Quando dizemos, por exemplo, que alguém possui o dom da palavra, ou que

fulano tomou a palavra de beltrano, não estamos, obviamente, nos referindo à palavra no

sentido mais estrito do termo, segundo o qual ‘gato’ é uma palavra. Mas tampouco

fugimos totalmente desta acepção mais estrita, sendo esta como que o uso-base para os

ulteriores. Assim, tomar a palavra de alguém seria equivalente a retirar desta pessoa a

oportunidade do discurso. Ora, se tal deslocamento de sentido é possível ao português,

não deveríamos nos surpreender que o mesmo ocorresse na comunicação grega. O uso de

um mesmo vocábulo para mais de uma significação não deve ser visto como algo que

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sempre empobrece a comunicação ou que, por outro lado, pode torná-la excessivamente

ambígua. Respeitados certos limites, o alargamento de sentido pode facilitar a descoberta

de nexos imprevistos e fundamentais dos objetos de uma investigação. Seria muito

vantajoso, portanto, se pudéssemos, partindo do sentido mais estrito de lo/goj, aplicá-lo

do mesmo modo a contextos em que tal significação foi devidamente alargada.

Vejamos alguns casos possíveis de flexibilização de sentido para o termo

enunciado traduzindo lo/goj. Freqüentemente fórmula e proposição são usados para

traduzir lo/goj, embora sejam bem mais complexos e precisos que a maioria dos usos

desta palavra pode permitir. ‘Relação’ também é outra ocorrência freqüente, não obstante

o correspondente grego ‘pro/j ti’ ocupar um lugar tão sensível na metafísica aristotélica.

Vejamos a própria definição que Aristóteles oferece em seu Organon:

“O enunciado é um som significativo, cujas partes significam algo

separadamente, mas como fala, e não como afirmação. Digo, por exemplo, que

‘homem’ significa algo, mas não significa que é ou que não é. [...] Todo

enunciado é significativo, mas não como instrumento, e sim – como dissemos -

por composição.” (De Interpretatione,16b26)

Lo/goj de/ e)sti fwnh\ shmantikh/, hÂj tw½n merw½n ti shmantiko/n e)sti kexwrisme/non, w¨j fa/sij a)ll' ou)x w¨j kata/fasij. le/gw de/, oiâon aÃnqrwpoj shmai¿nei ti, a)ll' ou)x oÀti eÃstin hÄ ou)k eÃstin. [...] eÃsti de\ lo/goj aÀpaj me\n shmantiko/j, ou)x w¨j oÃrganon de/, a)ll' wÐsper eiãrhtai kata\ sunqh/khn: É que o modo de o puro nome significar, isto é, ser o signo de algo além dele, é

pela estrutura representativa da composição, que o põe de antemão com um certo ente, e

não como um instrumento, ou seja, pela estrutura representativa de um estado de coisas.

A noção de instrumento evoca imediatamente a idéia de uma coordenação, pois o

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instrumento deve estar orientado para uma função específica e divisível em partes. O

enunciado, sendo composto de mais de um nome, os liga de modo a representar uma

ligação correspondente entre os entes enunciados. O puro nome, ao contrário, representa

apenas um único ente. Portanto, não há função ulterior na qual entre o nome, senão a

própria função sintética de substituir a própria presença do ente na imaginação. Enquanto

o nome 'animal' tem por função representar um ente ou gênero de entes, o enunciado

'animal racional' representa, além dos entes, a relação entre os entes, a saber, entre o ente

animal e o ente raciional, que no caso estão em relação de gênero e diferença específica.

No primeiro, pois, há uma pura convenção, que se estabelece representando o nome

animal juntamente com a representação do ente ou gênero de entes correspondente.

Trata-se, portanto, de uma simples composição representativa. Por outro lado, no

enunciado 'animal racional', há uma articulação nominal que representa uma articulação

interna no próprio ente enunciado. Cada parte do enunciado é assim introduzido não

meramente por uma convenção (embora tal propriedade seja uma condição necessária),

mas como um instrumento para a outra parte. 'Animal' entra no enunciado como um

suporte para a determinação do nome 'racional', ao passo que este último não vale mais

apenas como um ente lingüístico destinado a substituir a ausência de um certo ente. Na

verdade, a eficácia semântica de 'racional' é baseada justamente em sua articulação com o

nome 'animal' de modo a valer como uma determinação deste ente. Assim, mais do que

um ente, 'racional' é um modo articulativo de 'animal', um instrumento para a

determinação deste último, concomitante à articulação interna do ente enunciado.

Podemos questionar então como a semântica de enunciação pode ser usada para

significar fórmula, proposição e relação. ‘Enunciado’ pode significar todos os outros por

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especificação/generalização ou objetivação/subjetivação. Por exemplo, podemos nos

referir a) a uma relação através de um enunciado que a determine cognitivamente; b) a

uma proposição ou fórmula pelo ato enunciativo que as torna conhecidas, de modo todas

as fórmulas ou proposições são espécies de enunciados; c) à faculdade racional evocando

ao enunciado como condição própria de todo raciocínio; d) a um discurso ou doutrina

apelando para a unidade fundamental pela qual são distinguidos, como o faz Aristóteles -

no livro G da Metafísica - quando cita a doutrina de Protágoras utilizando a expressão

"enunciado de Protágoras", pois no caso se tratava apenas de um aspecto muito específico

de sua doutrina, podendo ser abreviado em um simples enunciado.

Em suma, se lo/goj é um termo aplicável a quase tudo, isto não se deve

necessariamente ao fato de ser um termo em si mesmo carente de uma semântica

específica, de modo a permitir, com tal vazio, a absorção de todos os significados. Se tal

apropriação ocorre, depende menos do termo em si do que da esfera específica a qual se

refere, esfera essa que, não obstante sua especificidade, é onipresente na esfera geral de

efetividade humana: a linguagem. Daí nossa opção por esta tradução. É que, para que o

lo/goj, de certo modo, se aplique a todo o ser, não há necessidade de que seja algo mais

do que um enunciado.

Essência (ou)si¿a)

Estar presente (u(pa/rxein)

Estrutura (morfh)

Extremo (eÃsxatoj)

Falso (yeu=doj)

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Fortuna (tu/xh)

Tu/xh provém de tu/gxanw, que significa "eu encontro, eu topo com". Não

significa simplesmente contato entre dois entes, mas um encontro, ou seja, um contato em

que ao menos um dos contatados tem ciência de que está em contato e a possibilidade de

que tal contato pudesse, em outra circunstância, ser objeto de escolha por parte deste

contatado. Em outras palavras, o encontro é um contato que pode ser útil ou prejudicial,

bom ou mau. Isto explica outros integrantes da família tu/xh, como eutu/xia e

distu/xia, como significantes de um acontecimento casual bom ou mau. Nem todo o

acontecimento casual é bom ou mau. Muitos deles apenas ocorrem, pois em nada afetam

nossa escolha, não sendo contrários ou favoráveis a ela. É assim, por exemplo, a chuva

que cai pela manhã, se em nada interfere, positiva ou negativamente, em algum de nossos

planos. Neste caso, diremos apenas que a chuva foi obra do acaso (au)to/matoj). Se, no

entanto, a chuva é útil ou nociva a alguma nova espécie de erva que acabamos de semear,

agora estaremos diante de outro tipo de acaso. É o acaso da fortuna (tu/xh), que será

afortunada (eutu/xia) ou desafortunada (distu/xia), conforme favoreça ou desfavoreça

nossa semeadura. Portanto, o acaso não é algo diverso da tu/xh, mas apenas seu gênero,

pois toda tu/xh é obra do acaso, embora nem todo acaso seja tu/xh. Além disso, como

ficou claro pelo exemplo, o mesmo evento que, em determinada circunstância, foi apenas

casual e fora de toda atribuição axiológica, em outra conjuntura afeta diretamente nossos

propósitos, na medida em que, não apenas favorece ou prejudicar certas escolhas, mas até

mesmo dispensa o último elo da série de propósitos, seja porque completa a última das

condições necessárias para a consecução do objeto escolhido, seja porque a inviabiliza ou

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impossibilita. É por isso que Aristóteles define a tu/xh como a privação da escolha, ao

passo que reserva a generalidade do acaso para os eventos onde a natureza - e não a

escolha - se vê privada de seu poder de ação. A tu/xh é privação da escolha, mas remete

necessariamente a ela, pois é aquilo cuja presença ou ausência poderia ser objeto de

escolha. Não devemos, no entanto, pensar que o acaso esteja fora do âmbito da tu/xh.

Apenas se trata de um recurso terminológico do Filósofo, ao utilizar o termo mais

genérico – e, portanto, carentes de especificação - para os fatos carentes de uma

atribuição de valor, como é o caso dos fatos gerados pela natureza (fu/sij). Contudo,

como dissemos, toda tu/xh é casual e, portanto, também gerada, em grande parte, pela

natureza, além de o componente subjetivo referido pela tu/xh - a escolha - também

decorrer da natureza, neste caso, a humana.

Gênero (ge/noj)

Idêntico (tau)toj)

Impassível (a)paqe/j)

Ver passibilidade.

Inteligência (nou=j)

Inteligir (noeiÍ.)

Infelizmente, não existe em português o verbo correspondente à intelecção e

inteligência. O mais aparentado “intelectualizar” está ainda muito distante da idéia de

noeiÍ., e “pensar” não faz referência direta a algo como o nou=j, sendo mais associado a

processos discursivos. Foi preciso um neologismo que aludisse diretamente a seus

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cognatos, de modo a caracterizar a peculiaridade do ato de apreensão da inteligência

(nou=j). Esta opção foi empregada também por Maria Cecília Gomes dos Reis em sua

tradução de Da Alma, citada na bibliografia.

Intermediário (metacu/)

Limite (pe/raj)

Móvel (ki¿nhtoj)

Motor (ki¿nou@n)

Movente (kinou/menoj)

Movimento (ki¿nhsij)

Mutilado (koloboj/)

Natureza (fu/sij)

Necessário (anagkaiÍoj)

Oposto (antikei¿menoj)

O que é (to\ ti¿ e)stin)

Mantivemos o particípio grego na tradução de to\ oÄn, como o intuito de que, na

ocorrência de , não fosse preciso marcar a diferença entre ambos de um modo

excessivamente artificial, como algumas traduções, que apelam para ‘aquilo que é’, ou

que identificam precipitadamente to\ ti¿ e)stin ao to\ ti¿ hÅn eiånai, traduzindo ambos

por qüididade. O fato é que o fator cronológico é fundamental na metafísica aristotélica, e

pensamos que tal coisa explica muito de sua sutil terminologia. Assim, em um enunciado

como ‘o homem é branco’, tanto branco homem como branco ocorrem ‘sendo’, isto é,

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são ‘sendos’, entes. Mas o homem é que é realmente é, enquanto o branco é apenas

‘sendo’ com o homem. Do homem, podemos dizer que é, pois é algo. Do branco, embora

também seja, não dizemos nada diretamente dele, mas simplesmente ao dizer que homem

é branco, tornamos verdadeiro o enunciado ‘é branco’. A rigor, o branco não é, mas sim

que o homem, que significa algo que é, é referido neste enunciado como ‘sendo’ branco.

Pensamos assim que com o particípio to\ oÄn, Aristóteles dispense justamente qualquer

determinação lógica, gramatical ou metafísica para a instância do ser em questão. Trata-

se ali de qualquer estrutura participante de uma enunciação do ser (eiånai), não

importando seu lugar no enunciado ou na própria constituição do mundo. Já com o

presente to\ ti¿ e)stin há uma primeira tentativa de aproximação como o sentido nuclear

do ser, identificado, entre outros escritos, em Z como essência (ou)si¿a) e ser-prévio (to\

ti¿ hÅn eiånai) de cada coisa. Vale lembrar que tal recurso possibilita outra aproximação

com a estrutura genuína da essência: seu caráter efetivo, verdadeiramente presente de sua

determinação própria, que contrasta como o ser da matéria que, embora ainda mais

subjacente que a forma, perde o estatuto de essência por representar, em si mesmo,

apenas um estado latente da essência, nenhuma determinação presente, mas apenas

possível, isto é, passada ou futura.

“O para o qual” (to\ ou eÀneka)

Parte (me/roj)

Passibilidade (pa/qoj)

O termo paixão, do escolástico passio, parece ter sofrido algum desgaste. Sua

definição estritamente filosófica caiu praticamente no esquecimento. Por outro lado, seu

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significado vulgar é demasiadamente psicológico e contrastante com a pretensão do

Filósofo, ao contrário do que ocorre com termos como potência, cujo significado usual,

ainda que não coincida exatamente com a noção de dynamis, está suficientemente

próximo de modo a ser incorporado ao texto, elaborado metafisicamente e atingirmos o

sentido desta noção sem maiores equívocos.

Outra alternativa de tradução é o termo passividade. A seu favor temos aqui a

percepção direta da correlação pa/sxein-poieiÍn, cuja atividade cabe ao segundo termo.

No entanto, primeiramente devemos ter em mente que atividade, embora muito utilizada,

não é uma opção muito satisfatória para poi¿esij, que preferimos reservar para o termo

pra=cij. Em segundo lugar, passividade nos parece um termo indeterminado demais para

o pa/qoj tal como entendia Aristóteles. Não se trata meramente de um estado ou

disposição geral para sofrer uma ação de outro ser, mas uma recepção específica de

determinado efeito ou qualidade. Mais do que um “ser passivo”, pa/qoj evoca um “ser

passível de”, pois cada pa/qoj é relativo apenas àquilo de que é pa/qoj. Daí nossa opção

por “passibilidade”.

Quanto à afecção, valem quase as mesmas observações referentes ao termo paixão,

particularmente em sua forma adjetivada “afetivo”, que teríamos de aplicar ao nos

depararmos com o nou=j paqhtiko\j, agora “inteligência afetiva”, resultado altamente

insuficiente para significar a gama de notas característica deste conceito. A afetividade é

apenas um dos atributos deste aspecto da inteligência – denominada mais freqüentemente

nous dynaton - que é capaz da memória e da imaginação (fantasi¿a), ao contrário da

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inteligência produtiva, que detém uma simplicidade incompatível com qualquer destas

formas de recepção material.

Pelo que (kaq' oÁ)

Plenitude (e)ntele/xeia)

No Livro Theta da Metafísica, Aristóteles fornece uma definição precisa de

efetividade:

“A efetividade (e)ne/rgeia) é a coisa (to\ pra=gma) estar presente

(hypárchein), mas não enquanto se diz estar em potência (duna/mei).” (1048a32)

eÃsti dh\ e)ne/rgeia to\ u(pa/rxein to\ pra=gma mh\ ouÀtwj wÐsper le/gomen duna/mei:

E no mesmo livro, há também um interessante comentário acerca da afinidade

etimológica entre esta palavra e outras igualmente caras em sua terminologia, entre as

quais o termo “e)ntele/xeia”:

"O termo efetividade (e)ne/rgeia), que se liga estreitamente ao termo

plenitude (e)ntele/xeia), mesmo que se estenda a outros casos, provém

sobretudo dos movimentos: parece que a efetividade é, sobretudo, movimento."

(Met. Q, 1047a30)

e)lh/luqe d' h( e)ne/rgeia touÃnoma, h( pro\j th\n e)ntele/xeian suntiqeme/nh, kaiì e)piì ta\ aÃlla e)k tw½n kinh/sewn ma/lista:

"Pois a completude (te/loj) é o efeito (eÃrgon), e a efetividade (e)ne/rgeia) é o

efeito (eÃrgon), por isso também o nome efetividade faz referência ao efeito e concorre

para a plenitude (e)ntele/xeia).” (1050a21)

to\ ga\r eÃrgon te/loj, h( de\ e)ne/rgeia to\ eÃrgon, dio\ kaiì touÃnoma e)ne/rgeia le/getai kata\ to\ eÃrgon kaiì suntei¿nei pro\j th\n e)ntele/xeian.

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A passagem acima deu margem a uma opinião acerca da origem deste termo,

e)ntele/xeia, partilhada, entre outros, por Reale. Segundo tal visão, este termo seria uma

forma abreviada de e)ne/rgeia teleia. No entanto, há outra opção para a gênese de

e)ntele/xeia.

Ora, se o efeito (eÃrgon) é uma completude (te/loj), e o efeito enquanto tal tem

que ser o que “está feito”, ele deve ser efetivado, deve estar em efetividade (e)ne/rgeia).

É por isso que o nome efetividade faz referência ao efeito e está ligado à plenitude

(e)ntele/xeia), pois esta é o ter (exein) completado (entelhj) um efeito. "Estar feito",

“efetivado” é como uma fusão de "pleno" e "ter, possuir", soando também algo como "ter

completado” (entelhj exo), cuja substantivação forneceria “entelécheia”. Assim, ao

contrário do que pensaram aqueles que viram em "e)ntele/xeia" uma abreviação de

e)ne/rgeia teleia, parece-nos que o termo e)ntele/xeia o termo que traz, ao ser

evocado, outros dois termos: pleno e posse101 (eÀcij). Coisa semelhante ocorre já com

outro termo tornado conceito-chave na Física de Aristóteles, o de continuidade

(sune/xeia), forma substantivada de “sune/xw”, que, por sua vez é uma síntese de sun

e e/xw, significando “ter junto”, “manter unido”. Outra construção semelhante é

“associação” (sunte/leia), que próvem de suntele/w, junção de sun e tele/w, isto é,

“cumprir ou completar junto”.

Por si (kaq' au(to)

Posse (eÀcij)

101 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.

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Em geral este termo é traduzido como “disposição”. No entanto, esta opção traduz

muito fielmente – quase literalmente - outro termo caro ao Filósofo: dia/qesij. Este

ocupa, no livro D da Metafísica – espécie de dicionário metafísico – a posição

imediatamente anterior à eÀcij na ordem de definições. Além disso, eÀcij está

etimologicamente ligado a exw (tenho, possuo; ser dono de), que também é outra

palavra definida neste mesmo livro, sendo uma de suas definições justamente “possuir”,

cuja forma substantivada “posse” pensamos traduzir satisfatoriamente o correspondente

eÀcij tal como apresentado no mesmo livro. Com efeito, ali esta palavra corresponde a

um estado de efetividade (e)ne/rgeia), seja quanto ao movimento (ki¿nhsij) ou à

atividade (pra=cij) em algo ou sob algo. Ao mesmo tempo se refere a tal efetividade e à

relação de subordinação aí envolvida, em que um termo atua possuindo e outro se

submete à posse. É desta forma que entendemos melhor uma importante passagem do De

Anima.

Possuir (eÃxein)

Ver Posse (eÀcij)

Posterior (uÀsteroj)

Potência (du/namij)

Princípio (arxh\) Produção (poi¿esij)

Poi¿esij não é apenas o agir sobre algo, mas também a determinação de uma

nova estrutura sobre o objeto da atividade, estando mais próximo de uma criação, embora

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de natureza menos radical e abrupta do que pode sugerir esta último termo. Daí que

produção pareça mais apropriado no sentido de transmitir a idéia conotada pelo vocábulo

grego.

Privação (ste/rhsij)

Qual (poi@oj)

Quanto (posoj)

Relativo (pro/j ti)

Semelhante (oÀmoioj) Ser-prévio (to\ ti¿ hÅn eiånai)

Tomemos os seguintes trechos do Livro Z da Metafísica:

A) O ente é dito de muitos modos. [...]De fato, o ente significa, de um lado, ‘o que é’ e

algo determinado, de outro, ‘o qual’, ‘o quanto’ e cada uma das outras categorias. (Z

1028a)

To\ oÄn le/getai pollaxw½j, kaqa/per dieilo/meqa pro/teron e)n toiÍj periì tou= posaxw½j: shmai¿nei ga\r to\ me\n ti¿ e)sti kaiì to/de ti, to\ de\ poio\n hÄ poso\n hÄ tw½n aÃllwn eÀkaston tw½n ouÀtw kathgoroume/nwn. B) “O ser-prévio de cada coisa é o que é dito por ela mesma. Pois teu ser não é o ser

músico, porquanto não és músico por ti mesmo.” (Z 1029b13)

oÀti e)stiì to\ ti¿ hÅn eiånai e(ka/stou oÁ le/getai kaq' au(to/. ou) ga/r e)sti to\ soiì eiånai to\ mousik%½ eiånai: ou) ga\r kata\ sauto\n eiå mousiko/j. C) "Mas nem tudo que é por si é o ser-prévio. Por exemplo, não é ser-prévio algo que é

por si do modo como uma superfície é branca" (Z 1029b18).

ou)de\ dh\ tou=to pa=n: ou) ga\r to\ ouÀtwj kaq' au(to\ w¨j e)pifanei¿# leuko/n.

O ente, em sentido primeiro, é algo determinado que é, ou seja, algo que possui

ser determinado (A). “O ser-prévio” é o ente que de fato se revelou como ente justo

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porque é ser por si mesmo (B). A dupla ocorrência do verbo decorre da auto-referência da

efetividade do ser, representada pela expressão “to\ ti¿ hÅn eiånai”, ao mesmo tempo em

que tal referencialidade é também cognoscitiva, e a cognoscibilidade do ente é sempre

posterior à sua realidade. A verdade do conhecimento é determinada pela verdade da

coisa, e não o contrário. Ou melhor: o ser do conhecimento é determinado pelo ser da

coisa, e a própria verdade no sentido estrito – que pressupõe a relação sujeito-objeto – é

posterior ao ser da coisa. É por isso que em Categorias, lemos:

“Obtemos conhecimento comumente de coisas que já existem, pois em

pouquíssimos casos ou em caso algum pode o nosso conhecimento ter vindo a ser

juntamente com o próprio objeto que lhe é peculiar. No caso de ser o objeto do

conhecimento (tò epistetón) suprimido, o próprio conhecimento é anulado. O

inverso disto não é verdadeiro. Se o objeto não mais existir, não poderá mais

haver nenhum conhecimento, nada havendo agora para conhecer. Se, entretanto,

deste ou daquele objeto nenhum conhecimento foi ainda adquirido, é possível que

esse objeto, ele mesmo, exista. Tome-se o exemplo da quadratura do círculo, se

podemos a isto chamar de um tal objeto. Embora ela exista como objeto, o

conhecimento ainda não existe. Se todos os animais deixassem de existir, não

haveria então conhecimento algum, não obstante pudesse haver, neste caso,

ainda uma multiplicidade de objetos de conhecimento.” (7b25)

w¨j ga\r e)piì to\ polu\ prou+parxo/ntwn tw½n pragma/twn ta\j e)pisth/maj lamba/nomen: e)p' o)li¿gwn ga\r hÄ e)p' ou)deno\j iãdoi tij aÄn aÀma t%½ e)pistht%½ th\n e)pisth/mhn gignome/nhn. eÃti to\ me\n e)pisthto\n a)naireqe\n sunanaireiÍ th\n e)pisth/mhn, h( de\ e)pisth/mh to\ e)pisthto\n ou) sunanaireiÍ: e)pisthtou= ga\r mh\ oÃntoj ou)k eÃstin e)pisth/mh, ou)-deno\j ga\r eÃti eÃstai e)pisth/mh, e)pisth/mhj de\ mh\ ouÃshj ou)de\n kwlu/ei e)pisthto\n eiånai: oiâon kaiì o( tou= ku/klou tetragwnismo\j eiãge eÃstin e)pisthto/n, e)pisth/mh me\n au)tou= ou)k eÃstin ou)de/pw, au)to\ de\ to\ e)pisthto\n eÃstin. eÃti z%¯ou me\n a)naireqe/ntoj ou)k eÃstin e)pisth/mh, tw½n d' e)pisthtw½n polla\ e)nde/xetai eiånai.

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No entanto, a anterioridade relativamente à efetividade cognitiva não é suficiente

para que um ente seja o ente em sentido primeiro, o ser-prévio. Como o Filósofo já

expressou acima, este é um caráter comum a todo cógnito, à totalidade dos entes

cognoscíveis. É preciso também que o ente seja anterior relativamente a outros entes com

os quais está associado. Em outras palavras, o ente primeiro já existia antes do advento

dos outros entes, o que vale como evidência suficiente de sua independência

relativamente aos mesmos. O exemplo fornecido por Aristóteles ilustra bem esta

exigência na sentença (B):

"Teu ser-prévio, de fato, não é o ser músico, porque não és músico por ti

mesmo. Teu ser-prévio, portanto, é só aquilo que és por ti mesmo." (1029b15)

ou) ga/r e)sti to\ soiì eiånai to\ mousik%½ eiånai: ou) ga\r kata\ sauto\n eiå mousiko/j. oÁ aÃra kata\ sauto/n.

Ora, aqui fica claro que “o ser dito por si" (oÁ le/getai kaq' au(to) está

claramente vinculado a uma temporalidade auto-instauradora, ao um passado que

evidencia a independência do ser-prévio. Não se trata somente de um "ser por si" no

sentido de que tal homem se tornou músico partindo de suas próprias condições, por sua

própria vontade, pois nesse caso o "ser músico" faria parte de seu ser-prévio.

Daí que o verbo esteja no imperfeito. O fato de não ter sido utilizado o perfeito

enfraquece também a tese de Aubenque de que Aristóteles apontasse um déficit temporal

constante na determinação cognitiva do ente. O to\ ti¿ hÅn eiånai é algo que era, mas que

deve continuar sendo no momento em que é conhecido, ainda que não permaneça para

sempre nos entes sensíveis e corruptíveis. O músico não deixa de ser homem no instante

em que reconhecemos o "ser homem" como o ser-prévio, isto é, o ser que "já era" antes

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do "ser músico". O tempo verbal passado tem aqui um significado ontológico positivo, de

auto-existência, auto-efetividade, e não o contrário, como se fosse algo já inefetivo no

momento em que é objeto de intelecção. Traduções razoáveis de to\ ti¿ hÅn eiånai seriam

“ser-prévio”, “auto-ser”, “ser por si” ou simplesmente “ser” no sentido da frase “todo o

meu ser se retesou sobre mim” da obra “O Estrangeiro” de Camus. Neste caso, é evidente

que o ser retesado é o ser-prévio, aquele inalienável, que se faz por si mesmo. No entanto,

o verbo “ser”, isolado, não trasmite a significação estrita de to\ ti¿ hÅn eiånai, pois nem

todo ser é to\ ti¿ hÅn eiånai. O “ser branco” não é um ser-prévio, pois deve ser, ele

mesmo, precedido pelo ser-prévio da essência branca. A propósito da noção de “por si”,

convém notar que o Filósofo freqüentemente estabelece o nexo íntimo entre esta noção e

a de to\ ti¿ hÅn eiånai, inclusive nos próprios momentos em que as define. Penso que

Aristóteles só não cunhou a expressão “ser por si” no lugar de “to\ ti¿ hÅn eiånai” porque

assim se perderia a dupla função semântica – ontológica e gnosiológica – que a

recorrência do verbo ser tão bem poderia cumprir. O ser-prévio é o referido pelo

enunciado (lo/goj) que decorre apenas da cognição da coisa, quer dizer, da própria coisa

por si mesma, separada de tudo o que apenas se lhe agrega, sendo esta a função

gnosiológica de que falamos agora. Mas tal função só tem lugar a partir da função

ontológica de to\ ti¿ hÅn eiånai, que é a de ser, além de uma fórmula expressa, a própria

natureza formal homônima da coisa. Acima discutimos esta relação homonímica mantida

entre a forma universal e a forma essencial quando também sintetizamos a solução na

sentença "o universal é essência mas não enquanto universal, assim como a essência é

universal mas não enquanto essência". Ora, o ser-prévio é por si o enunciado (lo/goj) da

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coisa somente porque é a forma essencial da coisa. É o ser da fórmula apenas porque já

era o ser da coisa, previamente à efetividade de formulação. Daí que a tradução literal de

to\ ti¿ hÅn eiånai seja algo em torno de "o que era o ser" ou "o ser que era". Como

dissemos, o tempo imperfeito aqui não deve ser entendido como a instância de um ser já

não efetivo no momento em que é objeto de intelecção e formulado, como se tal pretérito

fosse a razão profunda de todo o problema da definição em Aristóteles. Esta havia sido a

empresa de Aubenque. Na verdade, o pretérito revela-nos mais a anterioridade

cronológica e ontológica da efetividade do ser-prévio do que sua inefetividade em

referência à tomada cognitiva da fórmula definitória. O problema da definibilidade em

Aristóteles tem a ver, antes, com a noção de indivíduo e unidade separativa, cuja máxima

expressão repousa na natureza do motor imóvel.

Sujeito (u(pokei¿menoj)

Há várias traduções possíveis para u(pokei¿menoj. Uma delas é a) sujeito, adotada

nesta tese. Outras são b) substrato, c)hipóstase e d) substância. Todas estas são versões

praticamente literais do original grego, cujo prefixo u(po significa “estar sob” e o sufixo

kei¿menon conota “aquilo que permanece, que se mantém”. Assim, o termo completo

possui um significado próximo a “aquilo que se mantém, que permanece sob algo”.

Ocorre que, semelhantemente a vários outros termos aristotélicos, u(pokei¿menoj

é passível tanto de um uso lógico quanto ontológico. Tanto pode significar o elemento

que fundamenta o ato predicativo, o qual se efetiva “sobre” tal fundamento, isto é, como

que apontando para ele desde uma perspectiva superior de abstração. Acerca desta

superveniência predicativa, não deve passar desapercebido o fato da palavra grega para

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predicado – kathgori¿a – ter como prefixo kaq', que evoca a idéia de um movimento

de cima para baixo e o sufixo goría, correspondente ao dizer público, reconhecido. Os

predicados são atribuídos a um elemento que deve apoiar a conveniência de todos eles,

isto é, fundamentar estas atribuições, como se estivesse abaixo deles, sustentando-os.

Mas tal sustentação deve começar na própria coisa, caso contrário o dizer público acerca

do que é sustentado não faria sentido. Em outras palavras: a atribuição seria falsa ou,

ainda, vã. O elemento que dá suporte aos predicados deve ser ontológico antes de ser

lógico-gramatical, embora envolva também este último enquanto corolário subjetivo.

Diante dessa dupla necessidade, decidimos por sujeito por ser um termo que, no

português, carrega ambas as possibilidades semânticas, além de cada, quando focada em

determinado discurso, não excluir por si mesma a outra, exatamente como parecia ocorrer

com o termo grego.

Total (oÀloj)

Transição (metabolh/)

Um (eÁn)

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BIBLIOGRAFIA

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ARISTÓTELES: Aristotelis Metaphysica - trad. W. Jaeger, Oxford, Clarendon Press,

1957.

ARISTÓTELES: Aristotle`s Metaphysics - A revised text with introduction and

commentary by W. D.Ross, Clarendon Press, 1981, 2 vols.

ARISTÓTELES: La Metafísica – Traduzione, introduzione e commento di Giovanni

Reale, Luigi Loffredo Editore, 1978, 2 vols.

ARISTÓTELES: Metafísica – Tradução, introdução e comentário de Giovanni Reale,

trad. Marcelo Perine, Ed. Loyola, São Paulo, 2002, 3 vols.

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ARISTÓTELES: De Anima – introdução, tradução e notas de Carlos Humberto Gomes,

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ARISTÓTELES: De Anima – apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos

Reis, Editora 34, São Paulo, 2006.

ARISTÓTELES: Da Geração e da Corrupção - Trad. Renata Maria Parreira Cordeiro,

Landy Editora, 2001.

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ARISTÓTELES: Organon: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores,

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notas de Edson Bini, Edipro, São Paulo, 2005.

ARISTOTLE: On Coming-to-be and Passing-away – Translated by E.S. Forster, Harvard

University Press, London, 2000.

ARISTOTLE: On Sophistical Refutations - Translated by E.S. Forster, Harvard

University Press, London, 2000.

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London, 2000.

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