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PLANO DE AULA APOSTILADO Escola Superior de Teologia do Espírito Santo História da Teologia História da Teologia História da Teologia História da Teologia Os pais eclesiásticos e o desenvolvimento da teologia Escola Superior de Teologia do ES

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PLANO DE AULA APOSTILADO

Escola Superior de Teologia do Espírito Santo

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A Escola Superior de Teologia do Espírito Santo – ESUTES, é amparada pelo disposto no parecer 241/99 da CES (Câmara de Ensino Superior) – MEC

O ensino superior à distância é amparado pela lei 9.394/96 – Artº 80 e é considerado um dos mais avançados sistemas de ensino da atualidade.

Sistema de ensino: Open University – Universidade aberta em Teologia O presente material apostilado é baseado nos principais tópicos e pontos salientes da matéria em

questão. A abordagem aqui contida trata-se da “espinha dorsal” da matéria. Anexo, no final da apostila, segue a indicação de sites sérios e bem fundamentados sobre a matéria que o módulo aborda, bem como

bibliografia para maior aprofundamento dos assuntos e temas estudados.

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__________

SSSSSSSSuuuuuuuummmmmmmmáááááááárrrrrrrriiiiiiiioooooooo

_______ _______ _______ _______

A Era dos Pais Eclesiásticos.....................................................................................................04

Os Apologistas..........................................................................................................................07

Cristianismo Judaico e Gnosticismo..........................................................................................09

Os Pais Antignósticos ...............................................................................................................12

Teologia Alexandrina ................................................................................................................22

Monarquianismo: O Problema Trinitário ....................................................................................27

O Arianismo: O Concílio de Nicéia ............................................................................................30

Atanásio: A Formação da Doutrina Trinitária.............................................................................33

Agostinho e a Doutrina da Trindade..........................................................................................36

O Problema Cristológico ...........................................................................................................38

A Doutrina de Pecado e a Graça de Agostinho .........................................................................48

A Transição do Período Antigo Medieval... Gregório, O Grande................................................54

Bibliografia ................................................................................................................................60

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AA EErraa ddooss PPaaiiss EEcclleessiiáássttiiccooss

Os Pais Apostólicos - Quando falamos nos Pais Apostólicos, geralmente nos referimos a alguns autores cristãos do fim do primeiro século e do início do segundo, cujos escritos chegaram até nós. Estes escritos — em sua grande maioria de natureza incidental (cartas, homilias) — são de valor para nós porque, ao lado do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímos como testemunho da fé cristã. Estes escritos, no entanto, não pretendem ser apresentações doutrinárias no sentido restrito do termo, e como resultado, não podemos esperar deles um quadro completo dos artigos de fé. E, enquanto sua contribuição para o desenvolvimento da teologia foi relativamente pequena, eles contribuíram de forma notável para elucidar o conceito de fé e os costumes da igreja que prevaleceram nas primeiras congregações.

Os mais importantes destes escritos são os seguintes:

— A Primeira Epístola de Clemente, escrita em Roma, por volta de 95.

— As Epístolas de Inácio; sete cartas a vários destinatários, escritas por volta de 115 durante a viagem de Inácio a Roma e para sua morte de mártir já prevista.

— A Epístola de Policarpo, escrita em Esmirna, por volta de 110.

— A Epístola de Barnabé, provavelmente escrita no Egito, por volta de 130.

— A Segunda Epístola de Clemente, escrita em Roma ou Corinto, por volta de 140.

— O Pastor de Hermas, escrito em Roma, por volta de 150.

— Fragmentos de Papias, escritos em Hierápolis na Frigia, por volta de 150, citados nas obras de Eusébio e Irineu (entre outros). —A Didaché («Os Ensinamentos dos Doze Apóstolos»), escrita na primeira metade do século, provavelmente na Síria.

Características Gerais

Apesar de, cronologicamente, os escritos dos Pais Apostólicos estarem próximos dos apóstolos e do Novo Testamento, a diferença entre estas fontes é grande e evidente, tanto com respeito à forma como quanto ao conteúdo. Alguns destes escritos foram incluídos, por algum tempo, no cânone do Novo Testamento, mas não foi por acidente que afinal foram excluídos. A diferença entre os livros do Novo Testamento e os escritos dos Pais Apostólicos se manifesta de muitas maneiras. Tem-se feito tentativas de determinar qual dos apóstolos (Pedro ou Paulo, por exemplo) influenciou os homens que produziram estes escritos. Mas, evidenciou-se que esta pesquisa é desnecessária. A teologia dos Pais Apostólicos não pode ser atribuída a qualquer membro individual do grupo apostólico; reflete, ao invés disso, a fé da congregação típica dos primeiros anos da história cristã. As semelhanças entre estes escritos e o Novo Testamento não dependem necessariamente do fato que os Pais Apostólicos foram influenciados diretamente por um autor canônico ou outro; refletem, antes, o fato que ambas as fontes tratam da mesma fé.

Comparados com o Novo Testamento, os Pais Apostólicos se distinguem especialmente devido a sua ênfase no que geralmente se denomina moralismo (Anders

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Nygren usa a palavra «nomismo»; em português também se emprega o termo «legalismo»). A proclamação da lei ocupa lugar de destaque nos escritos dos Pais Apostólicos. Isto acontece em parte porque se dirigem a novas congregações cujos membros recentemente abandonaram o paganismo. Fazia-se necessário substituir seus antigos hábitos com praxe e costumes cristãos. A fim de realizá-lo, o costume judaico de pregar a lei foi usado até certo ponto, juntamente com outras praxes congregacionais judaicas, apesar do fato de haver marcada oposição ao judaísmo e à lei cerimonial. O evangelho era apresentado como nova lei que Cristo ensinara mostrando o caminho da salvação. Dizia-se que a antiga lei tinha sido abolida e era obsoleta, mas nos ensinamentos de Cristo havia nova lei. A vida cristã dizia-se consistir, acima de tudo, em obediência a esta nova lei.

O moralismo não se encontrava na proclamação da lei como tal, mas na maneira como isto era feito. Entre os Pais Apostólicos havia forte tendência de ressaltar a obediência à lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho à salvação e o conteúdo essencial da vida cristã. A morte e ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento para a salvação dos homens. Por causa da obra de Cristo o homem pode receber o perdão dos pecados, o dom da vida, imortalidade e libertação dos poderes da corrupção. Mas mesmo no contexto em que tais assuntos eram discutidos, os Pais Apostólicos comumente faziam recair forte ênfase na lei e no novo modo de vida. A análise de alguns dos pontos fundamentais mais freqüentemente mencionados elucidará um pouco mais esta tendência.

Justiça, como regra geral, não se descrevia como dádiva de Deus outorgada aos homens de fé (Rm 3.21), mas, em vez disso, era apresentada em termos de conduta cristã apropriada. Era, muitas vezes, apresentada como o poder de Cristo que capacita o homem a fazer o que é correio e bom, mas ao mesmo tempo também se dizia, de maneira um tanto unilateral, que a nova obediência é exigência prévia para perdão e salvação. Esta era considerada não como dom da graça pura, dado aqui e agora àqueles que crêem, mas como algo outorgado após esta vida, especialmente como recompensa aos que obedeceram a Cristo. Com a exceção de Primeiro Clemente, os escritos dos Pais Apostólicos têm muito pouco em comum com a ênfase paulina de justificação pela fé. Não é a graça imerecida que se situa no centro desta teologia, mas, antes, a nova vida que Cristo ensinou e para a qual ele capacita os homens. Deve-se, no entanto, lembrar que o caráter destes escritos, bem como o objetivo que os autores tinham em mente, eram, em parte, responsáveis por tal ênfase. Além disso, o fato que eram escritos casuais, que não pretendiam ser completos, é outra faceta da história. Estes escritos pressupunham que seus leitores também tinham ouvido a proclamação oral em que outros aspectos da fé cristã devem ter sido acentuados de maneira apropriada.

Salvação é apresentada, na maioria das vezes, em termos de imortalidade e indestrutibilidade em vez de em termos de perdão dos pecados. Outro aspecto fortemente acentuado nesta conexão é conhecimento. Cristo nos trouxe o conhecimento da verdade. Ele é o Revelador enviado por Deus a fim de que possamos conhecer o Deus verdadeiro e assim sermos libertados da servidão da idolatria e da falsa antiga aliança. Os Pais Apostólicos não diziam, no entanto, que Cristo é mero ensinador; ensinavam que é Deus, aquele por cuja morte e ressurreição o dom da imortalidade é outorgado.

Pecado é descrito como corrupção, maus desejos e cativeiro sob o poder da morte, além de erro e ignorância; a idéia de culpa não é muito acentuada. Notamos aqui um

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paralelo ao que foi dito sobre salvação; os Pais Apostólicos consideravam-na como sendo imortalidade ou a iluminação decorrente da verdade, tal como se encontra em Cristo. A relação entre salvação e perdão ou redenção também se encontra neles — especialmente em Barnabé — mas não ocupa o mesmo lugar que em Paulo ou, por exemplo, na tradição protestante. Associa-se a salvação à vida física, em termos de libertação da morte e corrupção. Luz e vida, que formam seu conteúdo, relacionam-se com a lei. O caminho da obediência é o caminho à vida.

A tendência moralista dos Pais Apostólicos aparece com maior evidência em seu conceito de graça. No Novo Testamento graça é o amor de Deus revelado em Cristo. Relaciona-se, por isso, com o próprio Deus, e com a obra redentora de Cristo. O homem é justificado por graça, não devido à força de suas próprias obras. Entre os Pais Apostólicos este conceito neotestamentário de graça é substituído por outro, no qual a graça é considerada um dom que Deus outorga ao homem por intermédio de Cristo. Este dom, que algumas vezes é situado na mesma categoria do conhecimento que chegou até nós mediante Cristo, é imaginado como sendo um poder interno associado com o Espírito Santo, peio qual o homem pode buscar a justiça e andar no caminho da nova obediência. A graça é, por conseguinte, o pressuposto necessário à salvação, mas não no sentido neo-testamentário — que a justiça é o dom de Deus outorgado aos que crêem em Cristo. Os Pais Apostólicos, pelo contrário, dizem que a graça confere o poder pelo qual o homem pode alcançar a justiça e afinal ser salvo.

A linha de pensamento aqui apresentada, claramente indica a relação entre o conceito medieval de graça, com sua ênfase em «boas obras», e o padrão anteriormente estabelecido nesta tradição (cf. Torrance, The Doctrine of Grace in the Apostolic Fathers, 1948). Há ao mesmo tempo, contudo, expressões que se relacionam mais intimamente com a doutrina paulina da justificação. Além disso, é também necessário que se observe a esta altura, que estamos aqui tratando de literatura exortativa, destinada a educar as pessoas na nova vida, salientando fortemente o chamado à obediência aos mandamentos de Cristo. Esta ênfase era feita a fim de se providenciar uma influência que contrabalançasse a moralidade pagã que dominava o ambiente no qual viviam as pessoas a quem estes escritos eram dirigidos. Como resultado não é lícito usar os escritos dos Pais Apostólicos para, tirar conclusões extremas com respeito a toda a proclamação cristã desse período.

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OOss AAppoollooggiissttaass

Os autores do segundo século que, acima de tudo, procuraram defender o cristianismo de acusações em voga na época, de procedência grega e judaica são, em geral, conhecidos como os apologistas. Para estes homens o cristianismo era a única verdadeira filosofia, substituto perfeito para a filosofia dos gregos e a religião dos judeus, que nada mais podiam fazer do que apresentar respostas insatisfatórias às perguntas cruciais do homem.

O mais notável dos apologistas foi Justino, cognominado «o mártir», cujas duas «apologias» datam de meados do segundo século. Seu Diálogo com o Judeu Trifo foi escrito na mesma época. Entre os outros encontram-se Aristides, que escreveu a mais antiga «apologia» cujo texto ainda temos, Taciano (Discurso aos Gregos, panfleto dirigido contra a cultura grega, por volta de 165), e Atenágoras (De ressurrectione mortuorum e SuppUctio pró Christianis, ambas escritas por volta de 170). Os seguintes também podem ser incluídos neste grupo: Teófilo de Antioquia (Ad Autotycum tibri tres. 169-182), e a Epistola a Diogneto, cujo autor é desconhecido e a igualmente anônima Cohortatio ad Graecos, que surgiu pouco antes da metade do terceiro século. Esta última erroneamente foi atribuída a Justino. Os apologistas também escreveram outras obras, que foram perdidas e que conhecemos só de nome. (por ex.: Eusébio, História Eclesiástica).

Os apologistas ocupam lugar de destaque na história do dogma, não só devido a sua

descrição do cristianismo como a verdadeira filosofia como também por sua tentativa de elucidar ensinamentos teológicos com o auxilio de terminologia filosófica contemporânea (por exemplo: na assim chamada «cristologia do Logos»). O que neles encontramos, por conseguinte, é a primeira tentativa de definir, de maneira lógica, o conteúdo da fé cristã, bem como a primeira conexão entre teologia e ciência, entre cristianismo e filosofia grega.

Os apologistas refutaram as acusações dirigidas contra os cristãos. Atenágoras (em

sua Supplicatio) discutiu três críticas principais: impiedade, hábitos anormais e inimizade ao estado. Em resposta atacavam a cultura grega, por vezes de maneira bem severa (Taciano, Discurso aos Gregos; Teófilo). Mas sua contribuição mais importante, do ponto de vista da história do dogma, foi a, maneira positiva em que apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia.

O modo como os apologistas conceberam a relação entre cristianismo e filosofia reflete-se na obra autobiográfica de Justino, Diálogo com o Judeu Trifo. Justino apresenta-se como alguém que tem a filosofia em alta estima e que procurou respostas satisfatórias para as questões filosóficas em um sistema filosófico após outro. O propósito da filosofia, segundo Justino, é proporcionar conhecimento verdadeiro de Deus e da existência, e assim fazendo, promover um sentimento de bem-estar nas mentes humanas. A filosofia visa reunir Deus e o homem. Justino investigou os estóicos, os peripatéticos e os pitagóricos, mas todos o deixaram indiferente. Por último chegou a um platonista e pensou ter encontrado com ele a verdade. Então encontrou-se com um velho, desconhecido, que dirigiu sua atenção aos profetas do Antigo Testamento, insistindo que tão-somente eles tinham visto e proclamado a verdade. «Apenas eles ensinaram o que

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ouviram e viram com a ajuda do Espírito Santo.» O testemunho desse ancião convenceu Justino da veracidade do cristianismo. «Minha alma inflamou-se imediatamente, e ansiei pelo amor dos profetas e dos amigos de Cristo. Refleti sobre seus escritos, e neles encontrei a única filosofia útil e fidedigna. Desta maneira, e com este fundamento, tornei-me um filósofo.»

O fato que o cristianismo é a única filosofia verdadeira significa, portanto, que tão-somente ele possui as respostas corretas para as questões filosóficas. Filosofia, neste sentido, também abrange a questão religiosa concernente ao verdadeiro conhecimento de Deus. Apenas o cristianismo pode fornecer este conhecimento; a filosofia o procura, mas é incapaz de encontrá-lo. Tal linha de pensamento, em si, não afirma que o cristianismo depende da filosofia e a ela está subordinado, como às vezes se sugere. O cristianismo fundamenta-se na revelação, e os apologistas não acreditavam que a revelação pudesse ser substituída por deliberações racionais. Neste sentido, o cristianismo se opõe a toda filosofia. Sua verdade não se baseia na razão; tem origem divina. «Ninguém, a não ser os profetas, pode instruir-nos sobre Deus e a verdadeira religião, pois eles ensinam no poder da inspiração divina» (palavras finais da Cohortatio ad Graecos).

Ao mesmo tempo, no entanto, a maneira como os apologistas abordaram a verdade cristã incluía a tendência de intelectualizar seu conteúdo. A razão (logos) era o conceito mais marcante de seus escritos, e ressaltavam de maneira especial a comunicação da verdade.

Avaliavam a filosofia de diversas maneiras. Alguns dos apologistas se opunham enfaticamente à filosofia grega. Toda sabedoria pagã devia ser substituída pela revelação. Justino, por sua vez, mantinha atitude mais positiva face aos gregos. Todavia, é preciso enfatizar que a verdade que pode ser discernida em filósofos como Homero, Sócrates e Platão derivava-se basicamente da revelação. Havia também a idéia correlata que alguns dos sábios da Grécia tinham visitado o Egito e lá tinham-se familiarizado com os escritos dos profetas de Israel. Outra idéia sugeria que os filósofos pagãos compartilhavam o logos spermatikós, que foi implantado em todos os homens. Mesmo a sabedoria humana depende, deste modo, da revelação — raios dispersos da razão divina que brilhou com toda sua clareza em Cristo. Os filósofos possuem certos fragmentos da verdade. Em Cristo a verdade está presente em sua plenitude, pois ele é a própria razão de Deus, o Logos que se tornou homem.

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CCrriissttiiaanniissmmoo JJuuddaaiiccoo ee GGnnoossttiicciissmmoo

Cristianismo Judaico - O termo «cristianismo judaico» significa várias coisas diferentes, e é usado de maneiras diversas pelos pesquisadores. Pode referir-se ao cristianismo da Palestina no período subsequente à ascensão, isto é, aos cristãos de origem judaica, que viviam na Palestina e tinham como centro a congregação em Jerusalém — em contraste com os cristãos que tinham origem pagã. Em algumas ocasiões, contudo, o termo é empregado para identificar certos grupos sectários que derivaram da congregação de Jerusalém depois de se ter transferido esta para a região a leste do Jordão por volta do ano 66. É neste sentido que se usará o vocábulo aqui. Uma das características mais proeminentes deste cristianismo judaico herético, também conhecido como «ebionismo» (derivado do termo veterotestamentário evjonim, «os pobres», originalmente nome honroso dos cristãos de Jerusalém), era sua confusão de elementos judaicos e cristãos. De acordo com as informações que chegaram até nós, os cristãos judaicos podem ter-se unido aos monges essênios, que se tornaram conhecidos recentemente através das descobertas dos manuscritos do Mar Morto. A história do ebionismo, em sua maior parte, está envolta em trevas. Nem os fragmentos de literatura preservados, nem as referências encontradas nos Pais Eclesiásticos nos fornecem um quadro minucioso das idéias e costumes desse grupo. Todavia, certas linhas mestras de pensamento podem ser reconstruídas.

Os ebionitas sustentavam a validade da lei de Moisés; uma fração julgava que isto só se aplicava a eles, mas outra fração, mais militante, insistia que os cristãos de origem pagã também eram obrigados a cumprir a lei de Moisés. Outra idéia básica associada aos ebionitas era que esperavam o estabelecimento de um reino messiânico em Jerusalém. Isto reflete sua identificação de judaísmo e cristianismo.

É verdade, sem dúvida, que a igreja universal se considera continuação da comunidade do Antigo Testamento, o verdadeiro Israel, mas isto não impede o repúdio veemente ao «judaísmo» e à interpretação judaica da lei. Paulo, por exemplo, combateu os que pretendiam reintroduzir a circuncisão (Gl 5), e demonstrou como a liberdade em Cristo excluía a hipótese de se fazer depender da lei o caminho da justiça. Os ebionitas, que conservavam os preceitos judaicos e os consideravam válidos para a vida congregacional, repudiavam a interpretação paulina da lei, e recusavam aceitar suas epístolas.

Nos escritos dos cristãos judaicos (dos quais o mais importante é o assim chamado «Pseudo-Clemente», que contém entre outras coisas, «A Pregação de Pedro», além de vários evangelhos apócrifos) Cristo é colocado no mesmo nível dos profetas do Antigo Testamento. Ele é ai descrito como nova forma de revelação do «verdadeiro profeta», que apareceu anteriormente em Adão e Moisés, entre outros. O conceito de Cristo como o novo Moisés expressava a união de judaísmo e cristianismo, destacada de maneira especial no ebionismo. Dizia-se ser Cristo «um homem nascido de homens» (Justino: Diálogo com o Judeu Trifo, p. 48), ou, como freqüentemente se diria mais tarde: «única e simplesmente homem». Os ebionitas, por conseguinte, negavam a preexistência de Cristo; alguns deles também negavam a encarnação e o nascimento virginal. Supunham que Jesus recebera o Espírito Santo por ocasião de seu batismo, sendo desta maneira escolhido

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para ser o Messias e o Filho de Deus. A salvação não era associada com a morte e ressurreição de Cristo; em vez disso julgava-se que se tornaria realidade apenas por ocasião da segunda vinda de Cristo, quando, conforme suas expectativas, teria inicio um milênio terreno.

Com fundamento nestas idéias, o ebionismo forneceu o protótipo para uma cristologia que concebia Cristo em termos puramente humanos e que supunha que não fora Filho de Deus até ser «adotado como tal por ocasião de seu batismo ou ressurreição» (a «cristologia adopcionista»). Os atributos de Cristo eram assim rejeitados.

Visto à luz da história, o cristianismo judaico não exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da teologia cristã. Dividiu-se em vários grupos, e em pouco tempo desapareceu. É bem provável que não tenha existido por mais de 350 anos, no máximo. Por outro lado, no entanto, exerceu forte influência sobre o islamismo, no qual algumas de suas idéias reapareceram em forma diferente. Uma destas foi o conceito do «verda-deiro profeta», outra foi o paralelo traçado entre Moisés e Jesus.

Se o cristianismo judaico representa uma confusão de elementos judaicos e cristãos, o gnosticismo era resultado da mistura da religião helenística com o cristianismo. Portanto, o ebionismo diferia muito do gnosticismo; opunha-se particularmente a Marcião e seu repúdio da lei (o tópico seguinte). Apesar disto, no entanto, em certas regiões podemos ver uma combinação de idéias gnósticas e judaico-cristãs. Isto se dá, por exemplo, com os elcasitas, que provavelmente receberam este nome devido a um certo Elcasai, que pode ter sido o autor do documento que ostenta seu nome. Outro exemplo encontramos nos adversários mencionados em Cl 2, que também parecem ter reunido idéias gnósticas e ju-daicas (a referência ai feita a «filosofia e vãs sutilezas» (v. 8) e «aparência de sabedoria, como culto de si mesmo» (v. 23). Contudo, não é correio dizer que os principais conceitos do cristianismo judaico tiveram forma e origem gnóstica. (Schoeps, Theologie und Geschichte dês Judenchristentums, 1949).

O Gnosticismo - Gnosticismo é o nome comum aplicado a várias escolas diferentes de pensamento que surgiram nos primeiros séculos da era cristã. No que tange à «gnose» cristã, isto se refere à tentativa de incluir o cristianismo num sistema geral filosófico-religioso. Os elementos mais importantes neste sistema eram certas especulações místicas e cosmológicas, além do marcado dualismo entre o mundo do espírito e o mundo material. Sua doutrina de salvação salientava o livramento do espírito de sua servidão na esfera material. Esta religião tinha seus próprios mistérios e cerimônias sacramentais, além de uma ética que preconizava ou o ascetismo ou a libertinagem.

Origens. A questão da origem do gnosticismo tem sido amplamente debatida, e não parece haver qualquer resposta simples. A maior parte da literatura gnóstica foi perdida. Todavia, parte dela foi preservada em tradução copta no Egito, por exemplo: a «Pistis Sofia», o «Evangelho de Tomé» e o «Evangelho da Verdade». As duas últimas obras citadas encontram-se entre os manuscritos descobertos na vila de Nag Hammadi (perto de Luxor) em 1946. Entre os itens aí encontrados, num jarro de cerâmica preservado na areia, havia 13 códices, inclusive nada menos de 48 escritos, todos de origem gnóstica. Esta descoberta ainda não foi completamente avaliada ou tornada acessível aos pesquisadores. A maior parte de nosso conhecimento do gnosticismo chegou até nós através dos escritos dos Pais Eclesiásticos. Citam autores gnósticos, ou se referem a seus

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escritos em suas obras polêmicas. Os Pais Eclesiásticos concordam que o gnosticismo iniciou com Simão, o Mágico (At

8), mas no mais seus relatos divergem. Segundo um certo Hegesipo, citado por Eusébio (IV, 22), o gnosticismo principiou entre certas seitas judaicas. Pais Eclesiásticos posteriores (Irineu, Tertuliano, Hipólito), por sua vez, sustentavam a opinião que a filosofia grega (Platão, Aristóteles, Pitágoras, Zenão) era a principal fonte da heresia gnóstica. Se aqui nos limitamos ao gnosticismo que se desenvolveu em solo cristão, estes relatos não são necessariamente contraditórios. Pois este tipo de gnosticismo era um sistema sincrético que combinava correntes de pensamento opostas entre si.

Quando falamos de gnosticismo, em geral pensamos no sistema que se desenvolveu no período cristão, na «heresia gnóstica» que os Pais Eclesiásticos combateram com tanto empenho. Mas o gnosticismo já existia quando o cristianismo surgiu; era então fenômeno religioso um tanto vago, uma doutrina especulativa de salvação com contribuições de várias tradições religiosas diferentes. Veio do Oriente, onde foi influenciado pelas religiões da Babilônia e da Pérsia. Os mitos cosmológicos atestam sua origem babilônica, enquanto seu dualismo extremado o relaciona com a religião da Pérsia. O mandenismo é um exemplo de formação religiosa gnóstica na área persa. Subseqüentemente o gnosticismo apareceu na Síria e em solo judaico, particularmente na Samaria, e lá assumiu coloração judaica. Foi esta a forma de gnosticismo existente por volta do início da era cristã, e que os apóstolos encontraram com Simão, o Mágico, que andava pela Samaria. Dai em diante começou a desenvolver-se uma escola gnóstica dentro da esfera cristã, com elementos derivados do cristianismo. Em vista dessa semelhança, o gnosticismo não surgiu como inimigo do cristianismo. Procurava, ao invés disso, reunir elementos cristãos a outros elementos especulativos já presentes nele numa espécie de sistema religioso universal. Foi nesta forma que o gnosticismo surgiu no segundo século, com seus principais expoentes na Síria (Saturnino), Egito (Basílides) e Roma (Valentino). Este sistema posterior também foi profundamente influenciado pelo filosofia religiosa grega. Durante muito tempo o gnosticismo foi o adversário mais perigoso do cristianismo. A polêmica cristã contra o gnosticismo foi acompanhada por desenvolvimento do pensamento teológico sem precedente na história da igreja até aquela data.

Tendências. Como já vimos, encontravam-se dentro do gnosticismo numerosas tendências divergentes. As mitologias e os sistemas que surgiram em seu meio foram muitos e discrepantes.

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OOss PPaaiiss AAnnttiiggnnóóssttiiccooss

O conflito com o gnosticismo deixou sua marca impressa de várias maneiras na teologia desenvolvida pelos Pais Eclesiásticos nos primeiros séculos. A apresentação da fé cristã, que encontramos nos assim chamados pais antignósticos, deve ser entendida contra o pano de fundo desta situação polêmica. Para estes teólogos da igreja primitiva, a crença na criação divina ocupou lugar central de modo mais destacado que na tradição ocidental posterior, onde a doutrina da salvação foi freqüentemente enfatizada às custas de outras facetas do cristianismo. Foi o idealismo gnóstico, com seu repúdio da criação, que levou os Pais Eclesiásticos a tratar tão pormenorizadamente da doutrina de Deus e da criação, bem como o problema do homem, a encarnação e a ressurreição do corpo. Outra característica evidente foi o ponto de vista moralizante que pode ser encontrado, por exemplo, em Tertuliano. Isto também se explica, em parte, pela oposição ao gnosticismo, com sua doutrina da libertação da lei e sua deturpação antinomista do conceito paulino da justificação.

Irineu

Irineu veio da Ásia Menor, onde na juventude fora aluno de Policarpo de Esmirna, que, por sua vez, tinha sido discípulo de João. Sua teologia, além disso, exemplifica a tradição joanina associada à Ásia Menor. A maior parte de sua vida, no entanto, passou no Ocidente. Tornou-se bispo de Lyons por volta de 177, e ali permaneceu até sua morte (no início do terceiro século).

Apenas dois escritos de Irineu chegaram até nós. Um deles é sua ampla refutação dos gnósticos. Adversos haereses, do qual permanecem um fragmento do original grego e uma tradução latina. O segundo, Epideixis, apresenta as doutrinas básicas da «proclamação apostólica». Este, por muito tempo, só era conhecido pelo nome, mas foi redescoberto em tradução armênia em 1904.

O principal objetivo da obra teológica de Irineu era defender a fé apostólica contra as inovações gnósticas. A gnose de Valentino foi a maior ameaça ao cristianismo, em sua opinião, pois ameaçava a unidade da igreja bem como procurava destruir a distinção entre o cristianismo e as especulações religiosas pagãs.

Irineu é denominado o pai da dogmática católica. Há algo de verdade nesta expressão, visto ter sido ele o primeiro a procurar apresentar um sumário uniforme de toda a Escritura. Irineu rejeitou o conceito de cristianismo mantido pelos apologistas, a saber, que ele é a verdadeira filosofia. Recusou o auxílio da especulação grega, e não concordou com os que diziam que o conteúdo da revelação era simplesmente uma nova e mais perfeita filosofia. Para ele, a Bíblia era a única fonte de fé.

Irineu, portanto, era teólogo bíblico no verdadeiro sentido do termo. Enquanto os gnósticos buscavam a revelação em sabedoria oculta que, ao menos, em parte, era independente da Bíblia, em mitos e sabedoria de mistérios, Irineu afirmava ser a Escritura a única base para a fé. O Antigo e o Novo Testamento eram os meios pelos quais a revelação e a tradição original nos atingem. Além do Antigo Testamento, que julgava ser, acima de tudo, o fundamento da doutrina da fé, Irineu faz referência a uma coleção de escritos do Novo Testamento, que considerava de igual autoridade e que, em traços gerais, é o mesmo cânone hoje aceito. A palavra «testamento», naturalmente, não era

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empregada neste contexto. O cânone ainda não tinha sido formalmente determinado. Alguns dos escritos neotestamentários eram considerados demasiadamente controversos; eram aceitos como canônicos em alguns círculos, enquanto em outros sua autoridade apostólica era posta em dúvida. Em traços gerais, no entanto, os limites do cânone do Novo Testamento já tinham sido definidos mesmo antes da época de Irineu. O modo como ele emprega os escritos do Novo Testamento, demonstra, até certo ponto, este fato.

Irineu nada diz sobre a diferença entre Escritura e tradição que apareceu mais tarde no campo da dogmática. A tradição oral que cita como tendo autoridade decisiva era o que apóstolos e profetas ensinavam, e que confiaram à igreja, e fora perpetuado nela pelos que tinham recebido o evangelho dos apóstolos. Com relação ao conteúdo, isto nada era além da proclamação conservada em forma escrita no Antigo e no Novo Testamento. Os gnósticos, por sua vez, deturpavam os ensinamentos da Bíblia fundamentando-se em tradições que não procediam dos apóstolos. Em passagem bem conhecida (Adversus haereses, III, 3, 3) Irineu se refere à cadeia ininterrupta de bispos romanos, começando com a época dos apóstolos, para demonstrar que era a igreja — e não os heréticos — que tinha preservado a tradição correta. Seria erro, contudo, procurar ver nesse texto o conceito de sucessão apostólica desenvolvido posteriormente. Irineu, em última análise, estava preocupado, em primeiro lugar, com conteúdo doutrinário e não com teorias sobre ordenação.

Em algumas ocasiões Irineu fala da autoridade doutrinária em termos de regula veritatis, «a regra da verdade». De modo semelhante, os Pais Eclesiásticos freqüentemente mencionam a regula fidei, «a regra da fé», como o fator determinante em questões relativas às doutrinas cristãs. O significado destes conceitos tem sido amplamente debatido; alguns afirmam constatar neles referência à confissão batismal solene que surgiu no conflito com o gnosticismo, enquanto outros interpretam a regra da fé como referindo-se à Escritura Sagrada. Essa «verdade» que, segundo Irineu, era a «regra» (o termo grego kanóon era empregado nesta conexão) era o plano da salvação revelado, do qual a Bíblia dá testemunho e que a confissão batismal resume. «A regra da fé» não estava, pois, fixada numa fórmula específica; nem tampouco designava a Escritura como código doutrinário. Referia-se, em vez disso, à verdade revelada como esta se apresentava, não apenas na confissão batismal e nas Escrituras, mas também na pregação da igreja. Foi esta verdade revelada que Irineu usou para combater os gnósticos, e foi esta que procurou interpretar e descrever de maneira a fazer justiça à genuína tradição apostólica.

Irineu, portanto, derivou sua teologia da Escritura. O que desejava fazer, acima de tudo, era apresentar o plano de salvação de Deus desde a criação até o cumprimento final (oikonomía salutis). O tempo, em sua opinião, era época limitada; principiou com a criação e terminará com o cumprimento. Em ambas as extremidades circunda-o a eternidade. É dentro do contexto do tempo que a salvação ocorre. Dentro deste contexto Deus realizou as ações testemunhadas pela Escritura, e das quais depende a salvação dos homens. Para os gnósticos a salvação não era algo que se realizava dentro da história; era uma idéia, um sistema especulativo que supunha poder a alma elevar-se acima do temporal e reunir-se com sua origem divina mediante a gnose. Para Irineu tudo isto era história real, cujo cumprimento se esperava para o fim dos tempos. A diferença entre a cosmovisão grega e o conceito cristão de tempo evidencia-se nestes pontos de vista opostos.

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A criação fazia parte do plano divino da salvação. O Filho de Deus, o Salvador, estava presente antes do princípio do tempo em seu estado preexistente. O homem foi criado para que o Salvador não estivesse só, de modo que houvesse alguém para salvar (Gustav Wingren, Man and the Incarnation According to Irenaeus, 1947, p. 28). Tudo foi criado mediante o Filho e para o Filho. A salvação foi realizada pelo mesmo motivo porque Deus criou: a fim de que o homem pudesse ser semelhante a Deus. O homem foi criado à imagem de Deus, mas/como resultado da queda, essa semelhança foi perdida. O significado da salvação é tornar possível ao homem concretizar seu destino mais uma vez, a saber, que o homem possa tornar-se a imagem de Deus segundo o protótipo discernível em Cristo. O homem se encontra no centro da criação. Tudo o mais foi criado para o homem usar. Mas o homem foi criado para Cristo e para tornar-se como Cristo, que é o centro de toda existência, Aquele que abrange tudo no céu e na terra. (Adversas haereses, V, 16, 2).

Consideradas deste ponto de vista, criação e salvação unem-se integralmente, porque há apenas um Deus que tanto cria como salva. A doutrina gnóstica de dois deuses é blasfêmia contra o Criador. Também implica no fato de ser a salvação impossível. Pois, se Deus não criou, então a criação não pode ser salva. Se Deus não é o Criador, então não irá salvar a criação. Mas este é o alvo de todo o plano de salvação.

A salvação, para os gnósticos, consistia em libertar-se o espirito do homem da criação, do mundo material e retornar à pura espiritualidade. Para Irineu, no entanto, salvação significava que a própria criação seria restaurada a seu estado original, que a criação finalmente atingiria o destino que Deus lhe reservara. Em outras palavras, salvação, para Irineu, não significava que o espírito do homem se libertaria de suas cadeias materiais, mas em vez disso, que o homem inteiro, corpo e alma, seria libertado do domínio do diabo, retornando a sua pureza original e tornando-se como Deus.

O homem foi criado, segundo Gn 1.26, à «imagem» e «semelhança» de Deus. É freqüente ouvir-se que Irineu foi o primeiro a introduzir a idéia (de grande aceitação, posteriormente) de que estes dois conceitos se referiam a duas qualidades distintas no homem. Isto, todavia, não corresponde aos fatos. Pois Irineu, com freqüência, empregou estes dois conceitos para expressar a mesma coisa, e estas passagens parecem ser decisivas. (Wingren).

Quando se diz que o homem foi criado à imagem de Deus, isto, de acordo com Irineu, indica o verdadeiro destino do homem. Não significa que o homem é a imagem de Deus, mas antes, que foi criado para tornar-se isso. Cristo, que é o próprio Deus, é a imagem de Deus segundo a qual o homem foi criado; o destino do homem, portanto, é tornar-se como Cristo. Este é o alvo da salvação e da obra do Espírito Santo.

Quando da criação, o homem era criança; não estava plenamente desenvolvido, mas foi criado para crescer. Se o homem tivesse vivido em conformidade com a vontade de Deus, teria crescido, e através do poder de Deus teria atingido seu destino — completa semelhança com Deus. Irineu entendia o crescimento, não como desenvolvimento interno, mas como resultado da atividade criadora continua de Deus.

Mas o homem abandonou o caminho da obediência, tendo sido tentado pelo diabo, um dos anjos que, ardendo de inveja contra os homens, rebelaram-se contra Deus. Foi desta maneira que o homem chegou a ficar sob o domínio do diabo. O homem está envolvido no conflito entre Deus e Satanás.

O objetivo do plano da salvação, portanto, é o de libertar das garras do demônio

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aqueles que ilegalmente foram aprisionados por ele. Esta é a obra da redenção, que foi realizada através de Cristo. Ele venceu o diabo e, deste modo, obteve a libertação do homem. Mas, apesar disso, o conflito continua. Contudo, é preciso dizer, que ingressou em nova fase após a ressurreição de Cristo. Como resultado, a batalha decisiva já foi travada. O que agora acontece é que homens são atraídos para a vitória de Cristo e assim recebem a vida que perderam na queda de Adão.

Este plano de salvação pode ser retratado de várias maneiras, como livramento da servidão ou como vitória após o combate (cf. acima). Também pode ser descrito em termos legalistas: naturalia praecepta — lex Mosaica — Cristo, a nova aliança, a restauração da lei original. A lei original, tendo sido entregue na criação, expressa a vontade divina para o homem. O destino do homem é viver de maneira condigna com esta lei, em obediência ao mandamento de Deus. Assim fazendo, o homem recebe vida e justiça da mão de Deus e prossegue em direção ao alvo da perfeição e semelhança com Deus. Esta lei foi escrita no coração, e o homem está livre para obedecer-lhe ou transgredi-la. Mas quando o homem contraria o mandamento de Deus, coloca-se sob o domínio do pecado. Em vista disso, Deus firmou nova aliança com os homens, através dos israelitas, e deu aos homens a lei mosaica. O propósito desta lei era o de disciplinar os homens, revelar o pecado e conservá-lo em seu lugar, e o de manter a ordem exteriormente até a vinda de Cristo. Considerada neste contexto, a tarefa de Cristo era a de ab-rogar a lei mosaica e restaurar a lei que fora entregue na criação e que tinha sido obscurecida pelos regulamentos farisaicos. Cristo liberta da escravidão da lei por meio de seu Espirito que regenera o homem e cumpre a lei dentro dele. O Espírito Santo restaura a obediência, e desta maneira, o homem é regenerado segundo a lei que foi outorgada na criação. Esta lei original revelava o que constituíra a semelhança do homem com Deus. Há portanto, um paralelo entre a afirmativa que o homem foi criado à imagem de Deus e o que se diz sobre a lei natural.

Vida e morte relacionam-se com a lei, e Irineu descreve o plano da salvação igualmente nestas categorias. Vida e obediência à lei andam de mãos dadas. Quando o homem obedece aos mandamentos de Deus, recebe vida de Deus, mas quando cai na desobediência, coloca-se sob o poder da morte. Pois desobediência a Deus eqüivale à morte. Foi por causa da desobediência que a corrente da vida foi rompida, e quando isto aconteceu a morte surgiu no mundo dos homens. A morte, portanto, não se associa com o corpo e com a vida criados, de modo ; é antes algo imposto aos homens por causa do pecado. Isto se reflete em Gn 2.17: «No dia em que dela comeres, certamente morrerás.» Salvação significa que a vida foi restaurada pela vitória de Cristo sobre a morte. Crendo em Cristo, o homem pode recuperar a vida que perdeu pela queda. A salvação outorga o dom da imortalidade. O corpo certamente morrerá por causa do pecado, a fim de que o poder do pecado possa ser vencido. A nova vida no Espirito é ativada pela fé, e alcança sua plenitude depois da morte. Então não haverá nada mais no homem que se relacione com a morte. O homem que foi restaurado percebe para que destino foi criado — para tornar-se semelhante a Deus e viver sem morrer.

A idéia básica da apresentação de Irineu do plano da salvação é que a obra da criação foi restaurada e recapitulada na salvação realizada por intermédio de Cristo. Em oposição aos gnósticos, que julgavam consistir a salvação no livramento do espirito do mundo material, Irineu insistia que Deus e homem, corpo e alma, céu e terra, são capazes de ultrapassar a ruptura provocada pela invasão do pecado e serem reunidos novamente.

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Isto, para Irineu, era o significado da salvação. Cristo é o segundo Adão, o reverso do primeiro Adão. Este trouxe morte e ruína à

criação por causa de sua desobediência. Cristo, por intermédio de sua obediência, restaura a criação a seu estado de pureza. Adão cedeu à tentação da serpente caindo assim sob o domínio do diabo. Cristo resistiu à tentação e, desse modo, destruiu o poder do tentador sobre a humanidade. Em sua vida representa toda a raça humana, tal como o primeiro Adão o fizera. Pelo poder de sua obediência e obra de expiação, tornou-se o cabeça de nova humanidade. Tornou perfeito o que fora arruinado pela queda de Adão. Por intermédio dele a humanidade continua a crescer para o alvo da perfeição. A criação é restaurada, seu destino se torna realidade. A obra redentora de Cristo principia com seu nascimento da virgem Maria e alcançará sua plenitude na ressurreição geral, quando todos os inimigos tiverem sido subjugados a Cristo, e Deus será tudo em tudo.

Irineu resumiu toda esta oeconomia salutis num conceito singular: recapitulatio (anakefalaioosis). Este termo significa «recapitulação»; também sugere «restauração». Deriva-se este conceito de Ef 1.10, onde se menciona o decreto de Deus relativo ao plano «de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as cousas, tanto as do céu como as da terra».

Para Irineu, portanto, «recapitulação» é termo que descreve toda a atividade redentora de Cristo desde o seu nascimento até o Dia do Juízo. Ao realizar esta obra, Cristo repetiu o que acontecera na criação, embora o fizesse, por assim dizer, em seqüência inversa. «Ele recapitulou a primeira criação em si mesmo. Pois assim como o pecado entrou no mundo pela desobediência de um homem, e a morte pelo pecado, assim também a justiça veio ao mundo pela obediência de um homem, trazendo vida aos que anteriormente estiveram mortos.» (Adversus haereses, III, 21, 9-10).

Recapitulação também lembra perfeição, ou plenitude. Aquilo que foi dado por intermédio de Cristo, e que chega a existir mediante sua obediência, é superior àquilo que foi dado na criação. O homem então era ainda um «filho» daquela época. Em virtude da salvação que foi obtida, o homem pode crescer até à plena semelhança com Deus, como representada na pessoa de Cristo.

Irineu desenvolveu sua cristologia em oposição ao ponto de vista docético defendido pelo gnosticismo. A obra da salvação pressupõe que Cristo é tanto verdadeiro homem como verdadeiro Deus. «Se os inimigos do homem não foram vencidos pelo homem, não podem ter sido verdadeiramente vencidos; além disso, se nossa salvação não procede de Deus, não podemos estar plenamente seguros que estamos salvos. E se o homem não se unisse com Deus, não lhe seria possível compartilhar a imortalidade» (III, 18, 7; Cf. Gustav Aulen, History of Dogma, p. 32). Encontramos aqui forte ênfase na humanidade de Cristo: um homem real tinha de andar na trilha da obediência a fim de que a ordem que fora destruída pela desobediência de Adão pudesse ser restaurada. Ao mesmo tempo, apenas Deus podia realizar a obra da redenção. Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus (vere homo, vere deus).

O Filho existiu com o Pai desde toda a eternidade. Mas como o Filho veio do Pai não é revelado. Em vista disso, o homem nada pode saber a respeito deste assunto. Irineu rejeitou as especulações em torno do Logos feitas pelos Apologistas, nas quais o nascimento do Filho era comparado ao modo como a Palavra procedeu da razão. «Dever-se-ia perguntar: Como o Filho procedeu do Pai? esta é nossa resposta: Relativamente a sua geração, ou nascimento, ou manifestação, ou revelação, ou como se quiser expressar

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seu inefável nascimento, ninguém sabe; nem Mareias, nem Saturnino, nem Basílides. Apenas o Pai, que o trouxe à luz, e o Filho, que nasceu, sabem algo sobre isto» (II, 28, 6). Os Apologistas diziam que ocorreu um nascimento no tempo (a Palavra procedeu da razão divina quando da criação). Irineu, por sua vez, parece ter conjeturado um nascimento na eternidade, mas não se expressa de modo específico neste ponto.

Era típico de Irineu recusar explicação mais precisa de como foi que Cristo procedeu do Pai; o mesmo ocorre com respeito à relação entre Deus e homem em Cristo. Procurou apresentar o conteúdo da Escritura sem o auxílio da filosofia e aderir à regra da fé sem entregar-se a meras especulações. Em Adversus haereses, l, 10, 1 Irineu forneceu um sumário breve da fé que fora transmitida desde os apóstolos: «A igreja se estende pelo mundo inteiro, às regiões mais remotas da terra. Recebeu sua fé dos apóstolos e seus seguidores. Essa, é fé em um só Deus, Pai todo-poderoso, que fez os céus e a terra e os mares e tudo o que há dentro deles; e em Cristo Jesus, o Filho de Deus, o qual, para nos redimir, assumiu forma humana; e no Espírito Santo, o qual, através dos profetas, proclamou o plano de salvação de Deus, o duplo advento do Senhor, seu nascimento de virgem, sua paixão, sua ressurreição dos mortos, sua ascensão física ao céu, e seu retorno do céu na glória do Pai. Cristo retornará a fim de "restaurar todas as coisas" e ressuscitar toda carne em toda a raça humana, de modo que todos os joelhos se prostrarão perante Jesus Cristo e todas as línguas o louvarão, a ele, que segundo o invisível beneplácito do Pai, é nosso Salvador e Rei.»

Tertuliano

Em longa série de escritos profundos e incisivos, Tertuliano envolveu-se nas controvérsias eclesiásticas de seu tempo a fim de defender a fé cristã e de instruir os fiéis. Foi o primeiro dos Pais Eclesiásticos com «estilo tipicamente ocidental», e de várias maneiras foi o fundador da tradição teológica ocidental.

Tertuliano nasceu em Cartago em meados do segundo século; originalmente pagão, converteu-se ao cristianismo já adulto. Exerceu a advocacia em Roma por algum tempo, mas após sua conversão retornou à vida privada em Cartago, onde se devotou ao estudo e a escrever. Sua atividade literária restringiu-se aproximadamente ao período entre 195 e 220. Por volta do ano 207 Tertuliano associou-se ao movimento montanista, que posteriormente manifestou tendências sectárias.

Como autor, Tertuliano era bem original. Em contraste com os escritores que o precederam, empregou estilo formal. Destacava-se no campo da retórica, e sua erudição era ampla e profunda. Não era filósofo, no entanto; estava mais interessado em questões sociais, e possuía bom domínio da lei. Era observador acurado da vida em geral, e seus escritos manifestam seu ponto de vista altamente individualista. Seu profundo interesse em questões práticas e sua firme adesão à realidade são características da teologia ocidental. Assim KarI HolI descreveu Tertuliano: «Nele o espirito do Ocidente falou claramente pela primeira vez.»

Entusiasmo apaixonado e dialética engenhosa caracterizam os escritos polêmicos de Tertuliano. Devido a seu estilo irregular, paradoxal e sucinto, às vezes é difícil entendê-lo.

Os escritos teológicos de Tertuliano exerceram influência ampla e significativa. Isto se deve especialmente ao fato de ter ele produzido formulações que se tornaram

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populares. Também cunhou certa terminologia que ficou fazendo parte da literatura teológica desde então (na língua latina que ele usava). Além disso, alguns de seus conceitos forneceram os protótipos para desenvolvimentos posteriores no campo da teologia. Isto acontece, por exemplo, com respeito à doutrina da Trindade, cristologia e pecado original. Tertuliano foi o precursor de Cipriano, que se tornou seu discípulo, bem como de Agostinho.

As contribuições de Tertuliano à época em que viveu se encontram em seus escritos polêmicos, bem como em seus pronunciamentos relativos a problemas eclesiais práticos. Tal como os apologistas, defendeu o cristianismo da religião pagã. Para ele, como para Irineu, o gnosticismo era o principal adversário. Por último, voltou-se contra o modalismo. Tertuliano escreveu bom número de livros com o objetivo de desenvolver suas convicções doutrinárias e para dar sua opinião com respeito a questões práticas congregacionais.

A teologia de Tertuliano foi, em grande parte, condicionada pelo seu conflito com os gnósticos. Suas conhecidas afirmações contra a filosofia devem ser vistas neste contexto, pois em sua opinião, a filosofia era a fonte de heresia gnóstica. Valentino aprendera de Platão, Marcião dos estóicos, e como resultado transformaram o cristianismo numa filosofia religiosa pagã. Escreve Tertuliano: «Os filósofos e os hereges discutem os mesmos assuntos, e empregam os mesmos argumentos complexos. Pobre Aristóteles! Foi você quem lhes ensinou dialética, para se tornarem hábeis em construir e derrubar. Eles são tão sutis em suas teorias, formais em suas inferências, tão seguros sobre suas provas, tão solenes em seus debates, que se tornam fatigantes em virtude do fato que tratam de tudo de tal modo que, em última análise, não se tratou de nada. Que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que tem a academia a ver com a igreja? Que têm os hereges a ver com os cristãos? Nossa doutrina flui da sala de pilares de Salomão, que aprendera que é preciso buscar o Senhor com inocência de coração. A mim pouco importa, quem quiser que produza um cristianismo estóico, platônico e dialético. Visto como o evangelho de Cristo nos foi proclamado, não precisamos mais inquirir ou perscrutar esses assuntos. Se temos fé, não desejamos qualquer coisa além da fé. Pois este é o primeiro princípio de nossa fé: Nada há além desta fé em que precisamos crer». Se alguém deseja algo além da fé, revela assim o fato que realmente não tem fé. Tal homem, em vez disso, tem fé naquilo que procura. Os gnósticos vão além da fé em sua sabedoria. O cristão, pelo contrário, adere à fé simples que é revelada na Escritura e preservada na tradição apostólica. «Nada conhecer em oposição à regra (de fé) é conhecer todas as coisas.»

A rejeição da filosofia por parte de Tertuliano relacionava-se, pois, com seu conflito contra os heréticos. «Os filósofos são os pais dos heréticos», escreveu (Adversus Hermogenem, 8). Mas essa rejeição também pode ser explicada do seguinte modo: Tertuliano reconheceu uma distinção fundamental entre fé e razão em epistemologia. O que o homem crê não pode ser compreendido com sua razão. O conhecimento da fé é diferente do conhecimento da razão. Aquele possui sua própria sabedoria, que nada tem a ver com prova racional. Relativamente à ressurreição de Cristo, Tertuliano disse: «É verdadeira porque é impossível» (De carne Christi, 5; cf. De baptismo, 2). É esta espécie de «irracionalismo» que em geral se caracteriza com a expressão credo quia absurdum («Creio porque é absurdo»). Esta frase não se encontra em Tertuliano, mas seguramente expressa seu modo de pensar.

O que foi dito acima, contudo, representa apenas uma faceta da concepção de fé e

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razão de Tertuliano. Outras passagens em seus escritos apresentam sua opinião mais positiva no tocante à razão humana. Ele o faz sem recorrer ao auxílio da filosofia para fortalecer seus argumentos. Nesta questão, Tertuliano não faz es mesmas exigências rigorosas à teologia como Irineu.

Embora criticasse severamente a filosofia, Tertuliano muitas vezes empregava idéias e formulações filosóficas. Em oposição ao espiritualismo característico do gnosticismo, por exemplo, tomou de empréstimo certas linhas de pensamento dos estóicos, que então reorganizou numa teoria «realista». É este realismo que, pelo menos até certo ponto, distingue o pensamento ocidental do grego. Mas Tertuliano o levou a um extremo: a teologia, disse, deve relacionar-se com alguma realidade manifesta em todos os pontos. O corpo físico fornece o padrão para toda realidade. «Tudo que existe é corpo de algum tipo; nada é incorpóreo exceto o que não existe» (De carne Christi, 11). Como conseqüência desta tese, Tertuliano atribuiu corporeidade até mesmo a Deus, e também conjeturou a possibilidade de ter a alma corpo invisível. Sua teoria sobre a origem da alma também se relacionava com isso; a alma, segundo Tertuliano, se transmite por nascimento natural de uma geração à seguinte. Este conceito costuma-se denominar traducianismo. A outra teoria relativamente à origem da alma é chamada criacionismo, que sustenta que a alma de cada homem é nova criação, diretamente saída da mão de Deus.

A doutrina da Trindade ocupa lugar de destaque na teologia de Tertuliano. Ao lidar com esta faceta de sua teologia, Tertuliano adotou os conceitos de Logos dos apologistas e os desenvolveu mais ainda. Suas formulações serviram de base para fórmulas trinitárias e a cristologia que a igreja aceitou posteriormente.

Tertuliano aplicou o conceito de Logos do mesmo modo como os Apologistas. Cristo, afirmou ele, é a Palavra divina, que procedeu da razão de Deus quando da criação. Ao dizer Deus: «Haja luz», nasceu a Palavra (o Verbo). Cristo é um com Deus, e ainda assim é distinto do Pai. Procedeu da essência de Deus como os raios emergem do sol, as plantas de suas raízes, ou o rio de sua fonte. Portanto, o Filho está subordinado ao Pai. É aquele que revelou a Deus, enquanto Deus mesmo é invisível. Assim como os apologistas, Tertuliano empregou a expressão «subordinacionismo». Ressaltou enfaticamente que o Filho e o Espírito Santo são um com o Pai, mas ao mesmo tempo algo diferente do Pai. «O Pai não é o Filho; ele é maior do que o Filho; pois aquele que gera é diferente daquele que nasce; o que envia é diferente do que é enviado». Com o objetivo de expressar a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Tertuliano cunhou o termo persona, que mais tarde tornou-se o vocábulo geralmente aceito neste contexto. O Filho, como pessoa independente, veio do Pai. O Logos tem existência independente. E, todavia, as três pessoas são um, assim como os raios do sol são um com o sol. Para expressar esta unidade, Tertuliano usou o termo substantia, que é paralelo ao vocábulo grego ousía, «essência» ou «substância». Este termo, também, chegou a ser geralmente aceito na formulação da doutrina da Trindade.

As três pessoas preexistiam em Deus. Mas quando procederam de Deus e ingressaram no tempo, isto ocorreu de acordo com o plano da salvação. O Filho procedeu do Pai a fim de declarar o plano da salvação. As três pessoas denotam etapas diferentes na revelação de Deus, mas são, apesar disso, um só — assim como as raízes produzem a planta, e a planta carrega frutos, enquanto juntos formam uma e a mesma planta. Esta concepção da Trindade é usualmente denominada doutrina «económica» da Trindade. A

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diferença entre as pessoas é descrita com base em sua ativi-dade no plano da salvação. Tertuliano desenvolveu sua cristologia em oposição ao modalismo. Traçou distinção

nítida entre as qualidades divinas e humanas em Cristo. Referem-se a duas substâncias diferentes, diz ele, que se uniram numa pessoa, Cristo, mas não se combinaram. Quando Cristo disse: «Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?» não foi Deus Pai quem clamou («Pois caso o fosse, a que Deus clamaria?») — foi o homem, o Filho, que clamou ao Pai. Cristo sofreu só como Filho, afirmou Tertuliano, rejeitando desta maneira o patripassionismo (Praxeas), que confundiu Deus e Cristo a tal ponto que dizia ter sido o Pai quem sofreu. É preciso ressaltar, entretanto, que Tertuliano usou expressões como Deus mortuus e Deus crucifixus, que não necessariamente contradizem o que foi dito acima. Mas nada disse de especifico sobre a relação entre as qualidades divinas e humanas. O Logos apareceu em carne, revestido de forma corpórea, mas não se transformou em carne. A doutrina subsequente das duas naturezas de Cristo baseou-se em Tertuliano. Sua terminologia pode ser apresentada esquematicamente da seguinte maneira:

Uma substância (ousia) — três pessoas (upostáseis): Pai, Filho, Espirito Santo. A pessoa de Cristo — natureza divina e humana (a substância do Criador e substância humana).

Irineu apresentou Cristo como o Salvador do poder do pecado, que, através do seu Espirito, redime o homem da corrupção do pecado a fim de que o homem possa ser restaurado a sua pureza original. A salvação era descrita, em outras palavras, em termos de recuperação de saúde e integridade. Tertuliano deu ênfase a outro ponto de vista: apresentou Cristo como o mestre que proclama nova lei (nova lex), fortalecendo, desta maneira, a vontade livre do homem a fim de que possa viver de acordo com os mandamentos de Deus. Viver de maneira compatível com a lei de Deus é, segundo Tertuliano, o alvo da salvação. Isto se alcança mediante instrução na lei. O conceito de mérito é dominante. Deus recompensa ou pune com base em mérito. A relação entre Deus e o homem é concebida em termos de sistema judicial. Se Deus não vingasse e punisse, não haveria razão para temê-lo e fazer o que é correio. A salvação, diz Tertuliano, é dada como recompensa pelo mérito humano. As boas ações, bem como as más, devem ser recompensadas por Deus. Esta interpretação claramente opõe-se à de Marcião, que enfatizara o amor de Deus a ponto de negar todas as considerações de retribuição e ira.

A doutrina da graça de Tertuliano também foi introduzida nesta estrutura. É a graça que salva — com o que Tertuliano quer dizer que a graça retira a corrupção que aderia à natureza humana como resultado da invasão do pecado. A idéia que esta corrupção se encontra na própria natureza, e é transmitida pelo nascimento, igualmente aparece em Tertuliano. É aí onde a doutrina do pecado original começa a tomar forma. Através da graça o homem pode receber o poder indispensável para viver a nova vida - A graça é concebida como o poder que é outorgado ao homem, capacitando-o a viver vida meritória. Com base nesta doutrina de pecado — graça — mérito, que Tertuliano desenvolveu no decurso de sua controvérsia com Marcião (que ressaltava o amor de Deus), foi lançado o fundamento para a doutrina da salvação, que dominou a teologia medieval do ocidente e, mais tarde, a do catolicismo romano.

Como foi dito acima, Tertuliano filiou-se ao movimento montanista, em parte como resultado da praxe complacente da igreja com respeito à penitência. A seita montanista

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originara-se na Ásia Menor, em meados do segundo século, e, de lá, propagou-se a Roma e ao Norte da África. Distinguia-se por sua forte ênfase na profecia e nos dons livres do Espirito, por sua crença na iminência do fim do mundo, e por seu rígido ascetismo e sua rigorosa praxe de penitência. Em virtude de sua associação com os montanistas, Tertuliano é lembrado como tendo sido um cismático, mas ao mesmo tempo foi também um dos principais adversários das heresias, bem como um dos mais destacados artífices da teologia ortodoxa ocidental.

Hipólito

Hipólito, que foi bispo em Roma e adversário do papa Calixto, foi banido para Sardenha durante uma perseguição, e morreu no exílio. Escreveu vários livros (em grego), dos quais alguns chegaram até nós, em que continuou a defesa da doutrina cristã contra a filosofia grega e as heresias eclesiásticas. Sua obra mais conhecida intitula-se Philosophoumena (ou A Refutação de todas as Heresias), que realmente é um apanhado enciclopédico das idéias filosóficas que derivaram dos filósofos naturalistas gregos, de vários conceitos mágicos e religiosos dominantes em sua época, bem como das heresias eclesiásticas que, segundo Hipólito, tinham suas raízes na filosofia grega. Esta obra é testemunho eloqüente de sua vasta erudição e proporciona conhecimento valioso sobre as várias escolas de pensamento que Hipólito aí descreve. O material polêmico, por sua vez, dirige-se especialmente contra os gnósticos e os modalistas, e não apresenta a mesma originalidade e vigor das polêmicas de Irineu e Tertuliano.

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TTeeoollooggiiaa AAlleexxaannddrriinnaa

A teologia cristã desenvolveu-se em oposição à filosofia grega e às tendências heréticas. Os apologistas refutaram as objeções do mundo pagão e apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia; os pais antignósticos desenvolveram, com base na Escritura e na tradição, uma teologia destinada a proteger a ortodoxia das especulações do gnosticismo e da filosofia grega. Mas o que os alexandrinos ofereceram como substituto foi uma cosmovisão sistemática baseada em princípios filosóficos, em que o cristianismo foi inserido e conservado como a mais elevada sabedoria.

Esta foi a primeira tentativa de se obter uma síntese real entre o cristianismo e a filosofia grega. Ao contrário dos apologistas, os alexandrinos não se contentaram em apresentar a tradição cristã simplesmente como complemento superior à filosofia. E em contraste com os gnósticos, não procuraram substituir o cristianismo por uma doutrina sincretística de salvação que repudiou alguns dos elementos fundamentais da fé cristã.

Os teólogos alexandrinos queriam preservar a tradição cristã de maneira fiel, e para consegui-lo apoiavam-se firmemente na Escritura. Ao mesmo tempo também possuíam um ponto de vista filosófico coerente, em cujo contexto procuravam inserir o conteúdo da revelação de modo a criar novo sistema teológico. Faziam uso da filosofia contemporânea desta maneira com o objetivo de apresentar a realidade da fé como cosmovisão uniforme e abrangente. O propósito disto não era o de misturar cristianismo e filosofia, mas apenas o de apresentar o cristianismo como a mais elevada verdade. Orígenes foi um dos mais destacados teólogos bíblicos de todos os tempos, e desejava tão-somente interpretar o significado da Escritura. Mas como resultado de seus pressupostos filosóficos tinha a tendência de introduzir implicações filosóficas e especulativas nas passagens da Escritura como seu sentido mais profundo. Fazia-o com auxilio do método alegórico. Em vista disso, o sistema de Orígenes traz impressa a marca da filosofia grega desenvolvida em sua época (e anteriormente) em Alexandria, o principal centro de educação grega naquele período. Foi, portanto, o elemento básico desta filosofia que significativamente condicionou a teologia alexandrina como foi desenvolvida por Clemente e Orígenes.

49 Clemente

Muito pouco sabemos sobre a primeira congregação de Alexandria, mas sabemos que nela surgiu uma escola catequética em meados do segundo século, a primeira instituição cristã de educação superior. Por volta do final do segundo século esta escola experimentou crescimento inusitado e se tornou o berço da teologia alexandrina. O primeiro teólogo de renome associado à escola catequética de Alexandrina foi Panteno, que cedo foi ultrapassado por seu discípulo Clemente, que, por sua vez, foi mestre de Orígenes. As principais características do sistema teológico em si, foram desenvolvidas por Clemente, mas foi Orígenes quem, fazendo uso deste sistema, o tornou famoso.

O aspecto fundamental da teologia de Clemente é a idéia da pedagogia de Deus. A fim de tornar o espirito caído do homem capaz de ascender e de reunir-se com o divino, há necessidade de educação. Isto acontece através de disciplina e castigo, por meio de admoestações e instrução. Esse treinamento é a própria finalidade da existência do mundo material. Clemente o torna claro em seus livros principais, tais como

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Admoestação aos Gregos, o Instrutor, e As Miscelâneas. A educação do homem se realiza através do Logos, que se revelou de maneira final e

definitiva no cristianismo. Mas também houve etapa preparatória, anterior à vinda do cristianismo, e o mesmo Logos, que se manifestou em Cristo, também exerceu influência pedagógica nesse período. Entre os judeus proclamou a lei, e entre os gregos foi a filosofia que de maneira semelhante preparou o caminho para a vinda de Cristo. A filosofia grega, em outras palavras, foi uma fase na pedagogia de Deus, semelhante à lei dos judeus. Ambas auxiliaram a preparar os homens para a encarnação e procederam da mesma fonte, o Logos, que apareceu aos homens mesmo antes do nascimento de Cristo. Considerada deste ponto de vista, a filosofia, assim como a lei, é posição ultrapassada, uma vez que Cristo veio com o conhecimento salvador pelo qual os homens são trazidos à fé.

O que se disse até agora é explicação parcial do conceito de cristianismo e filosofia de Clemente. Cristianismo e filosofia, segundo Clemente, não são opostos entre si. A filosofia, ao contrário, expressa a mesma revelação que foi completada posteriormente no cristianismo. Portanto, a filosofia, segundo Clemente, é capaz de servir «como uma espécie de escola preparatória para os que obtêm a fé através de provas».

Mas a influência da filosofia sobre Clemente expressou-se particularmente nisto, que o conduziu a concluir que «conhecimento» fica num nível mais elevado que a fé. Portanto, distinguia entre pistis (fé) e gnõosis (conhecimento). Aquela, conforme Clemente, é a simples fé autoritária cristã, de natureza bem literal, e preocupada com o temor de punição e esperança de recompensa. Este, por outro, é considerado conhecimento de espécie superior, que não crê simplesmente com base na autoridade, mas antes, avalia e aceita o conteúdo da fé à luz de suas próprias convicções internas. O «conhecimento» conduz ao amor, e o amor impele a ações que não seriam produzidas pelo temor. Clemente enfatiza energicamente a idéia que o conhecimento é o nível superior no qual a fé é conduzida à perfeição. Apenas o «gnóstico» (conhecedor) poderia ser cristão perfeito. Apesar disso, a diferença entre fé e conhecimento não é considerada idêntica à divisão gnóstica da humanidade entre hílicos e pneumáticos. Clemente não considerou os homens predestinados a uma ou outra categoria. Também não concebeu o conhecimento que se obtém no nível mais elevado como sendo de espécie diferente daquele que se encontra na fé. A fé, dizia, contém tudo até certo grau. Mas uma fé externa é incapaz de compreender o verdadeiro significado da fé, uma vez que aceita os dogmas simplesmente com base na autoridade. O gnóstico, por sua vez, é capaz de apreender o significado da fé, tendo-o assimilado internamente. O desafio que Clemente lançava ao cristão, portanto, era de dirigir-se da fé ao conhecimento. O conhecimento conduz à visão de Deus e a uma vida de amor ao próximo. Clemente desejava substituir a falsa gnose do gnosticismo pela verdadeira gnose escriturística do cristianismo. O conhecimento superior que ensinava não entrava em conflito com a fé externa baseada na autoridade. Mas o desenvolvimento da gnose cristã por parte de Clemente foi influenciado pela filosofia platônica, que constituía seu ponto de partida e que servia, como ele a encarava, como escola preparatória ao cristianismo para os que procediam da «fé nua» à compreensão mais profunda da fé.

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Orígenes

As circunstâncias da vida de Orígenes são razoavelmente bem conhecidas, particularmente como resultado da obra de Eusébio (História Eclesiástica, VI). Nascido em Alexandria em 185, de pais cristãos, revelou entusiasmo pelo cristianismo desde a infância. De fato, ainda bem jovem quase sofreu morte de mártir, como seu pai. No ano 203 sucedeu a Clemente como diretor da escola catequética de Alexandria, e nessa função serviu por muitos anos. Seu sucesso como professor foi extraordinário mas a oposição do bispo de Alexandria o forçou a exilar-se. Foi à Palestina, onde fundou uma escola em Cesaréia, semelhante à de Alexandria, e aí continuou sua atividade. Morreu em Cesaréia em 251 — ou, segundo outra fonte, em Tiro em 254.

Como escritor no campo da teologia, a produtividade de Orígenes foi espantosa. Apenas parte de seus escritos foi preservada. Sua obra exegética compõe-se de comentários, homilias e edições de textos. Orígenes tinha acesso a grande número de manuscritos que depois se perderam. Em sua obra mais importante, a Hexapla («a Sêxtupla»), colocou seis diferentes traduções do Antigo Testamento em colunas paralelas numa tentativa de determinar o texto correto. Mas apenas pequena parte da Hexapla chegou até nós, e o mesmo se dá com suas numerosas homilias e comentários. O ponto de vista teológico de Orígenes se encontra expresso com maior clareza em seu grande conflito literário com Celso (Contra Celsum), bem como na obra em que procurou fazer uma exposição ampla da fé cristã. Esta foi preservada em tradução latina de Rufino (De principiis). É difícil imaginar o volume original da produção de Orígenes. Jerônimo calculou que produzira cerca de 2.000 escritos.

No inicio de sua carreira Orígenes sofreu oposição dos que o acusavam de ensinar doutrina falsa. Havia vários aspectos originais integrados l em sua teologia que, de modo geral, era fortemente influenciada pela filosofia grega. Por esse motivo, a teologia de Orígenes tornou-se cada vez mais controvertida até ser condenada como herética pelo Quinto Concilio Ecumênico (553). Apesar disso, Orígenes demonstrou ser teólogo de influência extraordinária. Pode-se dizer, incidentalmente, que foi o fundador da tradição teológica oriental, assim como Tertuliano foi o fundador da tradição ocidental.

Orígenes foi teólogo bíblico, mas como resultado de sua utilização do método alegórico (tomado de empréstimo da tradição platônica) sua interpretação da Bíblia também permitia a aceitação da cosmovisão que se desenvolvera na escola filosófica de Alexandria.

Deve-se ressaltar, contudo, que Orígenes não só alegorizou. Como exegeta notável que era, também demonstrou compreensão pelo sentido histórico dos textos com que trabalhava. Suas interpretações tipológicas também devem ser distinguidas da tendência alegorizante. Aquelas incluíam a exposição do material veterotestamentário dentro da estrutura da história da salvação, que Orígenes interpretava escatologicamente, cristologicamente e sacramentalmente. A interpretação mística, que se refere à expe-riência interna do cristão, também pertence a esta categoria. Estas maneiras de interpretar a Escritura foram empregadas, até certo ponto, por toda a tradição cristã. O que distingue Orígenes foi que também usou o método alegórico. Esse método fora empregado anteriormente pelo filósofo religioso judeu, Filo de Alexandria, que interpretava o Antigo Testamento de acordo com a filosofia platônica. Em principio, esse método relaciona-se como o ponto de vista platônico. Contrasta letra e espirito da mesma maneire como o

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platonismo em geral contrasta substância e idéia. Em Orígenes, a alegoria se fundamenta na idéia que há um sentido espiritual no

fundo de cada passagem da Escritura. Assim como o homem compõe-se de corpo, alma e espírito, assim também a Escritura possui ser tido literal (ou «somático»), moralista (ou «psíquico») e espiritual (ou «pneumático»). Este está sempre presente, e quando a interpretação literal parece pouco razoável, deve-se adotar apenas a espiritual.

A regra da fé, segundo Orígenes, identifica-se com o conteúdo da Escritura. Orígenes forneceu um sumário na primeira parte de seu De principiis, em que apresenta seu sistema teológico com maior clareza. Ai inseriu idéias da tradição cristã na estrutura cosmológica alexandrina. Três temas principais aí se encontram:

1) A respeito de Deus e do mundo transcendental; 2) A respeito da queda no pecado e o mundo empírico; 3) A respeito da salvação e a restauração dos espíritos finitos.

Tema característico da teologia de Orígenes é o da educação, pela providência divina, das criaturas racionais caídas em pecado. Eram pressupostas as três idéias básicas seguintes: (a) o curso do mundo é guiado pela providência divina; teve sua origem em Deus, e todas as coisas, desde os movimentos dos corpos celestiais até as relações terrenas dos homens, são governadas por um poder divino; (b) o alvo do cuidado providencial dispensado por Deus ao mundo (do qual o homem é o centro) é o de restaurar à sua origem divina as criaturas racionais, que estão aí aprisionadas em seus corpos; (c) essa restauração terá lugar como resultado de educação (paídeusis) — o que quer dizer que não é fenômeno natural, nem ainda se emprega qualquer coerção, mas deve ser realizada pela influência sobre o livre arbítrio do homem. Que o homem tem livre arbítrio era, para Orígenes, fato pacífico sancionado pela própria regra da fé. Sobre isto Orígenes edificou seu sistema teológico, e como resultado seu conceito de salvação foi apresentado em termos de educação. Assim como acontece com Clemente, a idéia da pedagogia providencial de Deus é básica no sistema de Orígenes.

1. Orígenes descreveu Deus como o ser espiritual mais elevado, tão distanciado do material e físico como possível. Em vista disso, os antropomorfismos da Bíblia devem ser reinterpretados. Não possuem qualquer significado literal. A corporeidade é incompatível com o conceito de Deus. Nessa questão Orígenes põe-se frontalmente a Tertuliano.

2. Os seres espirituais sofreram uma queda, pela qual alguns deles se afastaram mais

de sua origem do que outros. «Esfriaram» (psuxos, frio), por assim dizer, e se tornaram criaturas racionais, psuxai (plural de psuxée, alma). Foi assim que anjos, homens e demônios chegaram a existir. O mundo visível foi criado como conseqüência da queda, a fim de punir e purificar o homem. O mundo supre o lugar e as condições nas quais e pelas quais a instrução divina pode ter lugar. Orígenes, portanto, não considerou a criação como algo mau (como o faziam os gnósticos). Na realidade, afirmou que Deus criara o mundo visível, mas apenas com a finalidade de dar ao homem a possibilidade de ser educado dentro dele. A criação não possui significado independente. A existência no mundo material é, em parte, punição para os espíritos racionais, mas isso não é tudo. Pois como Orígenes o imaginava, as coisas terrenas são símbolos das realidades celestiais, e ao contemplá-las, espera-se que o homem se eleve ao nível celeste. Assim acontece que o mundo material também se inclui na instrução providencial do espirito humano.

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3. Orígenes concebia a salvação da seguinte maneira: O homem é um espirito que caiu do mundo inteligível e foi enxertado num corpo que é animado por uma alma. Para ser salvo, o homem precisa novamente elevar-se ao mundo espiritual, para lá reunir-se com Deus. Esta salvação é realizada por intermédio de Cristo, o Logos que se tornou homem. A alma de Cristo não caiu de seu estado puro. Sua alma ingressou em seu corpo, e assim a natureza divina e a humana se uniram. Mas, dizia Orígenes, o lado físico de Cristo foi progressivamente absorvido pelo divino de modo que deixou de ser homem (cf. Inácio, que mantinha que Cristo permaneceu carne mesmo depois da ressurreição).

Orígenes ensinou uma doutrina de expiação, mas uma vez que esta redenção tinha valor especialmente para aqueles que se encontram no nível inferior da fé, como ele o conceituava, a ênfase maior recaía sobre a instrução que Cristo dá no tocante aos mistérios da fé. A salvação não se completa a não ser após a morte. O processo de purificação continua após a morte e, como resultado disto, os homens são conduzidos â perfeição e reunidos com Deus — em primeiro lugar os homens bons, mas por último também os maus. Tudo se reunirá com sua origem (apokatástasis pántoon). Mas qualquer ressurreição do corpo está fora de questão. A matéria não existirá mais, nem tampouco existirão homens; todos serão reconduzidos a um estado de pura espiritualidade («Vós sereis deuses; vós sois todos filhos do Altíssimo»). Outra queda, e a criação de novos mundos, são uma possibilidade com que se deve contar. Aqui notamos a influência do conceito grego da natureza cíclica da história.

No sistema de Orígenes, idéias tipicamente platônicas eram combinadas com a tradição cristã. Alguns aspectos deste sistema eram de natureza completamente helenística, e assim não têm qualquer relação com a proclamação bíblica. Isto se dá, por exemplo, com a idéia que o mundo inteligível emanou da divindade, que todas as coisas serão restauradas e que cessará a existência de tudo que é material e físico. Em outros casos. a tradição bíblica é preservada fielmente. Orígenes, no entanto, fez isso muitas vezes, associando estes dois pontos de vista tão intimamente que é impossível distinguir o elemento cristão do helenístico. O método de Orígenes desdobrou-se num padrão uniforme e sistemático de pensamento que era tanto cristão como helenístico. O conceito de pedagogia, por exemplo, é idéia grega, mas Orígenes o usou ao mesmo tempo para exprimir suas convicções cristãs. Deliberadamente decidiu apresentar uma descrição uniforme do conteúdo da regra da fé e, ao mesmo tempo, fornecer uma resposta às questões filosóficas sobre a vida, que eram atuais em sua época.

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MMoonnaarrqquuiiaanniissmmoo:: OO PPrroobblleemmaa TTrriinniittáárriioo Durante os últimos anos do segundo século, surgiram duas correntes teológicas

incomuns, recebendo ambas a mesma designação: monarquianismo. Ambas causaram sérios conflitos dentro da igreja, e ambas foram afinal rejeitadas como sendo heréticas. Essa luta, que continuou durante a maior parte do terceiro século, teve influência significativa no desenvolvimento da história do dogma. Ainda se fazia notar quando a igreja deu forma à doutrina da Trindade. Os conceitos rejeitados naquela época serviram de protótipos para muitas aberrações e heresias semelhantes através dos séculos, por exemplo, o ponto de vista unitário, que aflora sempre de novo na história da teologia como interpretação racionalista do cristianismo.

O conceito «monarquiano», do qual estas duas escolas tomam seu nome, apareceu nos escritos de Tertuliano, que o usou com referência à unidade de Deus. O monarquianismo negava o conceito trinitário, pois sustentava que ele se opunha à fé no Deus único. Seus adeptos repudiavam a idéia da «economia», segundo a qual Deus, que certamente é um, revelou-se de tal maneira que apareceu como Filho e como Espírito Santo.

A rejeição monarquiana das três pessoas na Divindade sofreu influência do conceito grego de Deus, que elevava Deus acima de todas as considerações materiais, inclusive mudança e diversidade. Por esse motivo, o ponto de vista grego era incapaz de aceitar a reivindicação que Deus apareceu e agiu neste mundo. Sempre que os homens repudiaram o conceito da divina «economia», isto é, a distinção entre as pessoas da Divindade condicionada pelo plano de salvação, o pressuposto tem sido o conceito deísta de Deus, em que a doutrina bíblica de Deus é substituída por uma idéia abstraia de Deus.

O monarquianismo, portanto, possuía um pressuposto comum e uma idéia básica comum: a dificuldade de combinar a fé no Deus único com a fé cristã no Pai, Filho e Espírito Santo. Visto não se satisfazerem com a solução proposta pela doutrina do Logos, nem com o ensinamento sobre as três Pessoas (hipóstases), nem com o conceito de «economia», procuraram novos caminhos para resolver o problema — em cuja tentativa eliminaram elementos essenciais da fé cristã e chegaram a uma posição racionalista ou docética.

Modalismo

A segunda forma de monarquianismo apareceu, em primeiro lugar, na Ásia Menor, mas Noeto e seus discípulos a levaram a Roma. Foi ai que Praxeas viveu, o representante modalista contra quem Tertuliano escreveu. O principal expoente desta escola foi Sabélio, que ensinou em Roma, começando por volta do ano 215.

Noeto não aceitava o conceito «econômico» corri respeito à doutrina da Trindade; nem aprovava a cristologia do Logos e as tendências subordinacionistas implícitas nela. Para Noeto, apenas o Pai é Deus, e embora esteja oculto à vista do homem, manifestou-se e se fez conhecer segundo o seu beneplácito. Deus não está sujeito a sofrimento e morte, mas pode sofrer e morrer se ele assim o quiser. Ao dizer isto, Noeto procurou ressaltar a unidade de Deus. O Pai e o Filho não são apenas da mesma essência; são também o mesmo Deus sob nome e forma diferentes. Noeto negou-se a diferenciar entre as três

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pessoas da Divindade. Como ele entendia o problema, podia-se dizer tão bem que o Pai sofreu como dizer que Cristo sofreu. Praxeas atenuou um pouco esta opinião; dizia que o Pai sofreu com o Filho — mas sua posição também foi rejeitada. Tertuliano a cognominou «patripassianismo».

Mais do que qualquer outro homem, foi Sabélio quem deu forma à concepção modalista. Afirmava que o Pai, o Filho e o Espirito Santo são um; são de uma substância, isto é, podem ser diferenciados um do outro apenas pelo nome. Tentou descrever sua posição de várias maneiras. Assim como o homem compõe-se de corpo, alma e espirito (por exemplo), assim também há três facetas na essência divina; ou então, as três pessoas relacionam-se assim como o sol, sua luz e seu calor estão relacionados entre si. O Pai é o sol, enquanto o Filho é o feixe de raios luminosos e o Espirito é o poder aquecedor que procede do sol. O Filho e o Espírito são apenas as formas que a Divindade assumiu quando apareceu no mundo (no período de sua «expansão»). Atribui-se a Sabélio a frase: «Deus, com respeito à hipóstase é um, mas foi personificado na Escritura de várias ma-neiras segundo a necessidade do momento» (Basílio, Epístola 214). Presumia-se, pois, que Deus apareceu em formas diferentes em épocas diversas, primeiro de modo geral na natureza, então como Filho, e finalmente como Espírito Santo. É desta concepção que o modalismo recebeu seu nome: as três pessoas são três diferentes modos (modi) em que o mesmo Deus se revelou. É característico de Sabélio que não apenas cria ser a substância divina uma só; também acreditava que as três pessoas da Divindade são uma e a mesma.

O que Sabélio dizia sobre diferentes formas de revelação mostra semelhanças com o conceito «econômico» da Trindade, mas diversamente dele ensinava (Sabélio) que o Filho e o Espírito apareceram um depois do outro em épocas diferentes. Deus não é Pai, Filho e Espirito ao mesmo tempo. Sabélio também se negava a distinguir entre as pessoas; não há Trindade real. No conceito «econômico» julgava-se que as três formas de revelação são hipóstases independentes. Em oposição ao monarquianismo dinamista, o modalismo ressaltava enfaticamente o fato que o Pai e o Filho são um com respeito a sua substância. Como resultado, no entanto, o modalismo era incapaz de fazer justiça à humanidade de Cristo. Encontramos aqui como no monarquianismo dinamista, a tendência racionalizante na qual a revelação é substituída pela especulação metafísica. O modalismo — ou sabelianismo, como é freqüentemente denominado — foi rejeitado como herético quando as doutrinas de Sabélio foram condenadas em 261.

A Atitude da Igreja

A doutrina da igreja opôs-se ao monarquianismo de modo especial nos pontos seguintes: a doutrina da consubstancialidade do Filho com o Pai (contra o dinamismo), a doutrina das três pessoas da Divindade (contra o modalismo), e a doutrina do nascimento do Filho na eternidade (contra ambos).

O dinamismo ou negava a divindade de Cristo ou a interpretava como mero poder que foi outorgado ao homem Jesus. Os teólogos alexandrinos (e Tertuliano também) descreviam a divindade de Cristo em termos de sua consubstancialidade com o Pai. Segundo Clemente e Orígenes, o Logos emanou da Deidade e é, portanto, da mesma substância (homooúsios) do Pai. Conforme Tertuliano, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são da mesma substância.

O modalismo rejeitou a distinção entre as pessoas e identificava o Filho com o Pai, e o

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Espírito com o Filho e o Pai. Tertuliano, com a ajuda da doutrina do Logos, desenvolveu o conceito das três pessoas, que não são apenas formas de revelação mas três hipóstases independentes.

Ambas as espécies de monarquianismo deram à doutrina de Cristo sentido racionalista: num caso, Cristo é simples homem; no outro, é apenas uma forma em que Deus se revelou a si mesmo. A preexistência do Filho é negada por ambos. O Filho não surgiu como entidade independente até o aparecimento de Cristo. E enquanto a teologia subordinacionista simplesmente ensinava que o Logos preexistia dentro da essência divina una, como a «razão» de Deus, Orígenes desenvolveu sua doutrina do nascimento do Filho na eternidade: o Filho procedeu do Pai na eternidade e existiu como Filho, como hipóstase independente, antes de todos os tempos.

Entre os que se opuseram ao monarquianismo e contribuíram para o desenvolvimento teológico dentro da igreja no final do terceiro século encontram-se Novaciano e Metódio.

Novaciano, presbítero em Roma por volta de 250, defendeu a posição teológica de Tertuliano. Ressaltou, de um lado, a divindade de Cristo e o fato que é consubstanciai com o Pai (contra o dinamismo), de outro, a verdadeira humanidade de Cristo e a distinção entre as pessoas na divindade (contra o modalismo).

Metódio de Olimpo (m. 311) continuou na tradição teológica de Orígenes, mas rejeitou suas teorias sobre a criação eterna, a preexistência da alma, e a restauração de todas as coisas.

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OO AArriiaanniissmmoo:: OO CCoonnccíílliioo ddee NNiiccééiiaa O desafio do monarquianismo retomou de forma mais aguda nas violentas

controvérsias eclesiásticas do quarto século. Foi então que a ameaça do arianismo foi combatida e que a fórmula trinitária da igreja foi estabelecida nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381).

Há também uma conexão puramente histórica entre Ario, o herético que provocou os maiores conflitos do século quarto, e o monarquianismo dinamista. Ario, presbítero em Alexandria por volta de 310, foi discípulo de Luciano de Antioquia, que por sua vez, era seguidor de Paulo de Samósata.

Assim como os monarquianos, Ario partia de um conceito filosófico de Deus. Não era possível a Deus conferir sua essência a qualquer outro, em virtude do fato de ser uno e indivisível. Não se pode conceber que o Logos ou o Filho pudesse ter chegado a existir a não ser por um ato de criação. Desse modo, na opinião de Ario, Cristo não podia ser Deus no sentido pleno do termo; devia, em vez disso, fazer parte da criação. Como resultado, Ario considerava Cristo como «ser intermediário», menos do que Deus e mais do que homem. Também dizia ser Cristo criatura, tendo sido criado ou no tempo ou antes do tempo. Ario, portanto, negava a preexistência do Filho em toda a eternidade, e lhe conferia atributos divinos apenas em sentido honorífico, baseado na graça especial que Cristo rece-bera e a justiça que manifestou. «O Filho não existiu sempre, pois quando todas as coisas emergiram do nada e todas as essências criadas chegaram a existir, foi então que também o Logos de Deus procedeu do nada. Houve um tempo em que ele não era, e não existiu até ser produzido, pois mesmo ele teve um princípio, quando foi criado. Pois Deus estava só, e naquele tempo não havia nem Logos nem Sabedoria. Quando Deus decidiu criar-nos, produziu, em primeiro lugar, alguém que denominou Logos e Sabedoria e Filho, e nós fomos criados por meio dele».

O próprio bispo de Ario, Alexandre, voltou-se contra ele e o excomungou por motivo de heresia por volta de 320. O conflito em breve alastrou-se por todo o Oriente, e Ario recebeu o apoio de Eusébio de Nicomédia, entre outros. Em virtude do fato que este conflito punha em risco a unidade da igreja toda e, ao mesmo tempo, a própria coesão do Império Romano, o imperador Constantino resolveu ocupar-se com ele numa tentativa para decidir a questão. Em primeiro lugar, enviou seu bispo da corte, Hósio, a Alexandria para agir com mediador e, quando esse estratagema fracassou, convocou um concílio geral para reunir-se em Nicéia no ano 325. Bispos de todas as partes do Império foram convidados a participar.

Três diferentes pontos de vista foram apresentados no Concílio de Nicéia. Havia, em primeiro lugar, um pequeno grupo de arianos puros (chefiado por Eusébio de Nicomédia). Em segundo lugar, havia os que se opunham ao arianismo, entre os quais os mais destacados eram o bispo Alexandre de Alexandria e seu diácono Atanásio. O acima mencionado Hósio de Córdova também pertencia a este partido. Havia ainda um grupo intermediário, representado por Eusébio de Cesaréia, entre outros. A fórmula que o concílio finalmente aceitou foi apresentada por ele. Mas, depois de aprovada, esta fórmula foi alterada de modo a tornar-se mais especificamente anti-ariana. Foi assim, por exemplo, que a expressão homooúsios (da mesma substância) foi inserida na fórmula mediante intervenção de Hósio. Fez-se isto a fim de ressaltar a oposição a Ario. A fórmula nicena foi estruturada, tendo como base principal um símbolo então em voga. É possível que este

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símbolo tenha sido a fórmula batismal então usada em Cesaréia, à qual foram adicionadas novas facetas, condicionadas pela situação polêmica. A adição final foi um anátema contra todos os ensinamentos de Ario. O assim chamado Credo Niceno não é idêntico à fórmula aceita no Concílio de Nicéia, mas recebeu sua forma final antes do fim do quarto século. Foi aprovada pelo Concílio de Constantinopla (381) e pelo Concílio de Cal-cedônia (451). O Credo Niceno também se baseou em fórmula batismal mais antiga, e inclui várias das expressões anti-arianas encontradas na decisão de Nicéia.

A oposição a Ario tinha como motivos sua doutrina de Deus e sua doutrina de Cristo. Duas críticas especiais foram dirigidas contra Ario: (1) introduziu idéias politeístas e a adoração à criatura; (2) destruiu a base da salvação por negar a divindade de Cristo.

Ario colocou o Logos na categoria dos seres criados. Por também julgar que o Logos devia ser adorado como ser divino, era possível criticar Ario por introduzir idolatria. A criação foi colocada lado a lado com o Criador e adorada como divina. Se Cristo é diferente de Deus, mas apesar disso é Deus, isto implica no culto a dois deuses. Ario também falou de outros seres semidivinos.

Cristo, de acordo com Ario, era um ser criado cuja existência começara no tempo, ou antes do tempo. Rejeitou com isso a doutrina da divindade de Cristo e seu nascimento na eternidade. O Cristo proclamado por Ario não podia ter criado o mundo; nem podia ele ser o Senhor da criação. A cristologia de Ario, deste modo, repudiava a obra da redenção de Cristo,e isto tornou-se o principal ponto em debate entre Ario e seus adversários. Se Cristo não é da mesma substância de Deus Pai, não possui nem pode transmitir o pleno conhecimento de Deus. E a salvação consiste nisto, entre outras coisas, que Cristo nos transmitiu este verdadeiro conhecimento de Deus. Se ele não é um com Deus, não podia fazê-lo.

Se Cristo não é o Senhor da criação, também não podia realizar a obra da redenção. Se ele não é Deus, não pode tornar o homem divino. O verdadeiro sentido da salvação é que traz vida e imortalidade ao homem. O Filho de Deus em forma humana podia ter derrotado a morte, ter feito expiação pela culpa dos homens, e restaurado o homem à vida e à imortalidade apenas sendo ele da própria essência de Deus.

Esta cristologia, que foi laboriosamente definida durante a luta contra o arianismo, foi resumida na fórmula de Nicéia, acima de tudo nas frases sobre Cristo: «o unigênito... gerado por seu Pai... Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado/ de uma só substância com o Pai.» O anátena final contra Ario continha as palavras apropriadas: «Aqueles que dizem que houve um tempo quando ele não existia, e antes de ser gerado ele não existia, e que foi criado daquilo que não existia, ou dizem que ele é de outra natureza ou essência, ou dizem que o Filho de Deus é criado ou mutável, todos estes são condenados pela igreja universal».

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Longas controvérsias seguiram o Concílio de Nicéia (325). No inicio, a decisão de Nicéia encontrou forte oposição. O grupo ariano original, que subseqüentemente adotou posição intermediária, chefiado por Eusébio de Nicomédia, cresceu muito em influência. Mesmo o imperador foi conquistado para este ponto de vista; Atanásio foi forçado a abandonar sua sé episcopal. Em meados do século IV (no Sínodo de Ancira, 358), novo partido mediador, que deriva seu nome do termo grego homoioúsios (de substância semelhante), apareceu. Mas vários teólogos, ativos na parte final do século, entre os quais se destacam os assim chamados «capadocianos» (sobre os quais ainda se falará mais tarde), defenderam energicamente a decisão de Nicéia e mesmo a desenvolveram mais ainda (a ortodoxia protonicena). Alguns dos proponentes da fórmula «substância semelhante* adotaram esta posição, da qual não estavam muito afastados mesmo antes de tomarem tal passo. E assim aconteceu que o terreno foi preparado para a vitória final no Concílio de Constinopla em 381 (posteriormente considerado o Segundo Concílio Ecumênico), onde a decisão de Nicéia foi confirmada novamente.

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AAttaannáássiioo:: AA FFoorrmmaaççããoo ddaa DDoouuttrriinnaa TTrriinniittáárriiaa

O mais zeloso defensor da fé, no conflito da igreja contra o arianismo e o poder imperial que apoiava os heréticos, por longo tempo, foi Atanásio, cujo nome foi mencionado em conexão com o Concílio de Nicéia. Depois da morte de Alexandre em 328, Atanásio tornou-se patriarca de Alexandria. Mas como resultado de seu firme apoio à decisão de Nicéia, foi alvo de uma perseguição após outra. Teve de fugir de sua sé episcopal nada menos de cinco vezes, e passou ao todo quase 20 anos no exílio. Quando morreu em 373, a controvérsia ariana ainda estava em andamento, mas como resultado de suas contribuições, o caminho estava aberto para a vitória final da teologia nicena no Concilio de Constantinopla de 381.

Em contraste com os teólogos alexandrinos anteriores (Clemente, Orígenes), Atanásio não inseriu a fé cristã num sistema filosófico fechado. Pelo contrário, rejeitou os recursos da filosofia no desenvolvimento da doutrina cristã; a Bíblia era sua única fonte. Para ele, como para Clemente, a regra da fé e o conteúdo da Escritura eram idênticos. A tradição, segundo Atanásio, só tem autoridade quando está de acordo com a Escritura. Como ele faz ver claramente em sua carta pascoal de 367, o cânone neotestamentário é definitivo.

Do que se disse acima, depreende-se claramente que Atanásio operou com um princípio bíblico coerente. Ao mesmo tempo, insistiu que a Bíblia não devia ser interpretada legalisticamente; antes deve ser entendida à luz de seu próprio centro, que é Cristo e a salvação operada por ele. O conceito bíblico de Atanásio nos lembra as palavras de Lutero: «O que proclama a Cristo é palavra de Deus.»

Na luta contra o arianismo, Atanásio desenvolveu a doutrina eclesiástica da Trindade e do Logos. Alguns de seus principais argumentos são os seguintes: (1) Se Ario está certo quando diz que Cristo é apenas um ser criado, e não da mesma substância do Pai, a salvação não seria possível. Pois apenas Deus pode salvar, ele desceu até nosso nível a fim de nos elevar até ele. (2) A doutrina de Ario implica no culto à criação e na fé em mais de um deus.

Como o primeiro argumento demonstra claramente, Atanásio procurava combinar a doutrina da Trindade com a salvação operada por Cristo, que, na sua opinião, é o centro de toda a teologia. Em vista disso, continuava a ressaltar que a heresia ariana não apenas atingia pontos isolados de doutrina; mas subvertia toda a fé cristã. O estilo atomista ou doutrinário que muitas vezes caracterizava a teologia polêmica da época de Atanásio não se encontrava em seus escritos.

Tal como Irineu, Atanásio descreveu um plano específico de salvação, começando com a criação, indo até ao cumprimento. Esta ordo salutis forneceu o contexto para sua polêmica contra Ario, do mesmo modo como Irineu desenvolveu sua polêmica contra os gnósticos, em linha de pensamento correspondente.

A salvação e a criação pertencem juntas, segundo a opinião de Atanásio. Foi o próprio Criador onipotente que realizou a obra da salvação, para que a criação caída pudesse ser restaurada a seu destino original. Isto significa que o objetivo de Deus com a criação está se realizando e que uma nova criação está principiando a existir. Isto se refere, de modo especial, ao homem. O homem foi criado «à imagem de Deus», mas como resultado da invasão do pecado, afastou-se de Deus e foi entregue à morte e à corrupção. A salvação foi conseguida quando o Filho de Deus, o Logos, pessoalmente envolveu-se na humanidade e com isso reconduziu o homem à sua semelhança com Deus. «Isto não poderia ter

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acontecido, no entanto, se a morte e a corrupção não tivessem sido destruídas. Portanto, naturalmente, ele assumiu um corpo mortal, para que a morte pudesse ser destruída nele, afim de que o homem criado à imagem de Deus pudesse ser renovado. Apenas aquele que veio na imagem do Pai estava à altura desta tarefa.» (Oratio de incarnatione Verbi, 13, 8-9).

O sentido principal da obra salvadora de Cristo encontra-se nisto, que a maldição do pecado e da morte foi retirada. Isto aconteceu quando o Logos, que é o próprio Filho de Deus, tomou sobre si mesmo as condições da existência humana, levou sobre si os pecados dos homens e sujeitou-se à morte. Foi assim que estes poderes foram vencidos, pois, em virtude do fato que Cristo é da essência de Deus, não foram capazes de derrotá-lo. Ele se libertou das cadeias do pecado e da morte, e assim fazendo, também libertou toda a natureza humana destes poderes. Foi com esta finalidade que o Filho de Deus tornou-se homem. Se o Logos não se tivesse realmente tornado homem, não poderia ter libertado os homens, não poderia ter vencido o poder do pecado e da morte que mantinha cativa a natureza humana.

Em segundo lugar, a obra salvadora de Cristo implica nisto, que o homem, que foi libertado do pecado e da morte mediante a expiação, pode ser renovado e deificado. O mesmo Cristo que derrotou a morte, enviou seu Espírito, pôr intermédio de quem recria o homem e o capacita a participar na vida divina que foi perdida com a queda. O homem, desta maneira, chega a possuir imortalidade e a viver novamente como o fizera no inicio — à imagem de Deus. Esta deificação do homem é o alvo da salvação. A forte ênfase neste aspecto da salvação, ao invés de no perdão dos pecados, era típica dos Pais da Igreja Antiga. Pode-se dizer, todavia, que Atanásio, mais do que outros, também enfatizou a necessidade de perdão; reconheceu que o pecado trouxe a culpa e que a obra expiatória de Cristo foi sacrifício pelo pecado. Mas, acima de tudo, a salvação é associada à imortalidade. Pecado e morte, afinal, andam juntos. Se o pecado não tivesse trazido a morte, diz Atanásio, poderia ter sido facilmente removido pela penitência. Mas a vista do fato que o pecado resultou em mortalidade, a salvação só poderia ser obtida se a morte fosse vencida. E assim, visto o poder do pecado ter sido derrotado, a obra do Espírito Santo é a de dar vida ao homem e tornar o homem semelhante a Deus. Isto só é possível se Cristo realmente é da mesma essência de Deus. Por ser ele mesmo Deus, deificou primeiro sua própria natureza humana, e como resultado disto, pode fazer o mesmo pelos que crêem nele e que participam, pela fé, de sua morte e ressurreição.

Em vista disso, a mensagem da salvação como ensinada por Ario, que dizia ser o Logos criatura e não o próprio Deus, tinha de ser repudiada. «A verdade revela que o Logos não é uma das coisas criadas; ao invés disso, é seu Criador. Pois ele tomou sobre si o corpo criado de homem, para que ele, tal como um Criador, pudesse renovar este corpo e deificá-lo em si mesmo, de modo que o homem, em virtude da força de sua identificação com Cristo, pudesse entrar no reino do céu. Mas o homem, que é parte da criação, jamais poderia tornar-se como Deus se o Filho não fosse verdadeiramente Deus... Igualmente, o homem não poderia ter sido libertado do pecado e da condenação se o Logos não tivesse tomado sobre si nossa carne natural, humana. Nem poderia o homem ter-se tornado como Deus se o Verbo, que se tornou carne, não tivesse vindo do Pai — se não fosse seu próprio Verbo verdadeiro.» (Orationes contra Arianos, II, 70).

Atanásio também salientou outra faceta da obra da redenção: Cristo, dizia ele, veio revelar que é o Filho de Deus, que reina sobre toda a criação; assim fazendo, restaurou o

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verdadeiro culto a Deus, que o homem em sua ignorância e cegueira tinha esquecido. Em uma passagem Atanásio resume a obra de Cristo da seguinte maneira: «O Salvador encarnado revelou a nós sua bondade de duas maneiras: pelo fato que removeu o aguilhão da morte e nos renovou, e pelo fato que ele, que em si mesmo está oculto e é invisível, revelou-se através de sua obra para que o possamos conhecer como o Logos do Pai, o Governante e Rei de todo o universo.»

Em sua doutrina da Trindade, ,que se dirigia especialmente contra o arianismo, Atanásio salientava de modo enfático que o Filho é da mesma substância do Pai. Esta convicção não era apenas expressa pela palavra chave da decisão de Nicéia, homooúsios; Atanásio aceitava outros termos também, inclusive o vocábulo às vezes suspeito, homoios. A doutrina de que o Filho é consubstanciai com o Pai fundamentava-se, antes, nos pró-prios fatos. O Logos não é parte da criação; em vez disso, compartilhava a própria divindade do Pai. Atanásio também ultrapassou a concepção su-bordinacionista anterior. O Logos não é outro Deus, e não se situa abaixo do Pai, como ser espiritual emanado ao Pai. O Pai e o Filho são uma Deidade." O Pai é o que define a si mesmo e gera; o Filho é aquele que assim é gerado. O Pai é, em si mesmo, a essência divina; o Filho é Deus em atividade externa, aparece nas obras de Deus. «O Filho não é outro Deus... Pois se ele também é um outro, ao ponto de ter sido gerado, apesar disso é o mesmo que Deus; ele e o Pai são um mediante a natureza divina única que compartilham em comum, e através da identidade da única Divindade.» (Orationes contra Arianos, III, 4).

Atanásio não falou de «pessoas* na Divindade; em lugar disso articulava a relação entre o Pai e o Filho de modo diferente. Mantinha o conceito Pai-Filho, ou falava da diferença entre ambos como condicionada pela atividade de Deus. O Pai é a fonte, o Filho é Deus em sua atividade externa. Há então ainda o Espírito Santo, que conduz a obra de Deus ao indivíduo. Atanásio ensinava que o Espírito Santo é, também, «da mesma substância». É parte da mesma essência divina e não um espírito criado. O homem torna-se como Deus através da operação do Espírito. A renovação não seria ato genuíno de salvação se o Espírito Santo não fosse da própria essência de Deus. A atividade externa do Deus Trino não está dividida; o que quer dizer que o Pai, o Filho e o Espírito Santo todos trabalham juntos. Foi em sua carta a Serápion que Atanásio, pela primeira vez, desenvolveu o pensamento que o Espirito Santo é da mesma essência do Pai e do Filho. Esta foi uma de suas maiores e mais originais contribuições à teologia.

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AAggoossttiinnhhoo ee aa DDoouuttrriinnaa ddaa TTrriinnddaaddee O Credo Atanasiano - No que tange à teologia oriental, os capadocianos chegaram a formular a doutrina da Trindade de modo mais ou menos definitivo. Desenvolvimento correspondente também ocorreu no Ocidente, em parte como resultado da influência da teologia oriental. Agostinho, mais que qualquer outro, deu forma definitiva à posição ocidental neste ponto, especialmente em seu livro De Trinitate. A teologia de Agostinho forneceu a base para a posição trinitária encontrada no Credo Atanasiano, o último dos três Credos Ecumênicos.

Agostinho, que representa o ponto de vista ocidental, desenvolveu sua posição trinitária com base na única essência divina. O que tentou esclarecer foi que a unidade divina é constituída de tal modo que inclui as três pessoas, e que o caráter «trino» de Deus está implícito nesta unidade. Descreveu a triunidade como relação internamente necessária entre as três facetas da única essência divina. Isto, para Agostinho, era mistério inefável, que o homem nesta vida jamais pode compreender inteiramente, muito menos descrever em termos conceptuais. Mas Agostinho empregou analogias tomadas de realidades humanas num esforço para demonstrar a relação correspondente de três com um, na mesma entidade. Certos fenômenos humanos, em especial a estrutura da alma humana, foram usados para simbolizar (embora muito imperfeitamente) a realidade intertrinitária. Assim, Agostinho dizia, por exemplo, que o amor implica na relação daquele que ama com o objeto do amor. Isto sugere uma relação entre os três seguintes: aquele que ama (amans), o que é amado (quod amatur), e o próprio amor (amor). Relação correspondente encontra-se na divindade entre Pai, Filho e Espírito. O que é peculiar a esta relação é que tanto sujeito como objeto estão dentro da mesma essência indivisível. O Pai gera o Filho, o Pai ama o Filho, etc. De acordo com Agostinho, há algo análogo a isto na vida espiritual do homem. A própria ação de observar envolve três elementos que estão necessariamente relacionados entre si: há o objeto observado (rés), a própria visão (visio) e a intenção da vontade (intentio voluntatis). A mesma relação se diz existir entre pensamento, intelecto e vontade no ato de conhecer. O conteúdo do pensamento está presente, de alguma maneira, na alma; este, por seu turno, é considerado e recebe forma pela habilidade intelectual da pessoa, que se volta para o objeto pelo poder da vontade (memória — interna visio — voluntas). A vida da alma também compreende uma «tríade»: memória, inteligência e vontade. E aqui podemos ver a mesma unidade entre sujeito e objeto que Agostinho encontrou dentro das relações intertrinitárias. A alma está ciente de si, possui conhecimento de si, e ama a si; em outras palavras, o objeto de sua atividade se encontra, em parte, dentro de si. É, simultaneamente, sujeito e objeto em ações autoconscientes e de amor a si mesma.

Agostinho não diz que estas analogias são perfeitas — que esclarecem todos os mistérios relacionados com o conceito trinitário. Em grande parte, sua apresentação foi desenvolvida na forma de especulações sobre a realidade intertrinitária. Foi assim que surgiu nova etapa de desenvolvimento que ultrapassou a concepção «econômica» da Trindade que fora a forma original da doutrina dos «três em um». Agostinho salienta, energicamente, a unidade do Ser Divino e tentou mostrar como a Trindade está implícita na unidade e vice-versa. Esta convicção fundamental também se encontra no Credo Atanasiano que, na realidade, se baseia na teologia de Agostinho, embora, gradualmente,

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fosse revestido com a autoridade de Atanásio. Este credo é uma afirmação em forma de hino e, provavelmente, foi composto durante o quinto ou sexto século, de certo por algum discípulo de Agostinho. É bom sumário da doutrina da Trindade como foi formulada pela igreja antiga. O desenvolvimento do dogma cristão, como esboçado até esta altura, constitui a origem deste credo, que, em sentenças breves e concisas, resume a posição da igreja alcançada durante as controvérsias trinitárias e cristológicas.

Este Symboium quicunque (como é denominado, devido a suas palavras iniciais) apresenta, em sua primeira parte, uma interpretação da doutrina da Trindade: «E a fé católica é esta, que adoremos um único Deus na Trindade e a Trindade na Unidade; sem confundir as pessoas, nem dividir a substância.» A distinção entre as pessoas é ressaltada: «Pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo.» Igualmente o é a unidade da essência divina: «Mas a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só: a glória é igual, a majestade coeterna.» Todas as três pessoas participam da essência divina e suas qualidades: «incriado» — «incomensurável» — «eterno». E ainda assim não são três seres incriados, incomensuráveis e eternos; não há três Deuses; mas há um único Deus. Cada pessoa deve ser reconhecida como Deus e Senhor, mas isto não significa que há três Deuses ou três Senhores.

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OO PPrroobblleemmaa CCrriissttoollóóggiiccoo O problema real da cristologia se espelha nesta questão: Como se relaciona a divindade de Cristo com sua humanidade? Como pode aquele que é verdadeiro Deus ser também homem ao mesmo tempo? Como podia viver sob condições humanas e aparecer em forma humana?

Perguntas deste teor brotaram já no período inicial da história da igreja, especialmente no conflito com os docetistas e na rejeição dos ebionitas. As tendências heréticas, implícitas nessas escolas de pensamento, reapareceram em novas formas durante as assim chamadas controvérsias cristológicas, que tiveram lugar de destaque no desenvolvimento do dogma a partir de meados do quarto século.

Apolinário

O fato que a questão cristológica reaparece nessa época deve ser visto dentro do contexto da rejeição do arianismo e a confirmação da fórmula homoóusios. Como pode o fato que o Logos é de uma só substância com o Pai ser combinado com o fato que o Logos apareceu em forma humana? Esta foi a principal questão em foco nas discussões teológicas da época.

O homem que pela primeira vez propôs o problema nesta forma, e motivou o trabalho teológico posterior em busca de resposta, foi Apolinário de Laodicéia, que apareceu em cena algum tempo depois de meados do quarto século. E, apesar de ser membro do «partido niceno», tratou do problema cristológico de modo tal que foi repudiado pela igreja.

Apolinário não se satisfazia em aceitar a idéia que o Logos (isto é, Cristo) era, com respeito a sua natureza divina, da mesma substância do Pai. O principal problema, como ele o via, era este: Como pode o homem conceber a existência humana de Cristo? Segundo Apolinário, a natureza humana de Cristo tinha de possuir qualidade divina. Não fosse este o caso, a vida e a morte de Cristo não poderiam ter conquistado a salvação dos homens. Parece, pois, que Apolinário ensinava o seguinte: Deus em Cristo foi transmutado em carne, e esta carne foi então transmutada pela natureza divina. De acordo com esse ponto de vista, Cristo não recebeu sua natureza humana, sua carne, da Virgem Maria: antes, trouxe consigo do céu, uma espécie de carne celestial. O ventre de Maria simplesmente serviu de local de passagem.

Apolinário, portanto, acreditava que Cristo tinha apenas uma natureza e uma hipóstase. Essa natureza é a do Logos, que em Cristo foi transmutada em carne. Esta, por sua vez, assumiu uma qualidade divina ao mesmo tempo. Apolinário combatia vigorosamente a idéia que os elementos divino e humano se combinaram em Cristo, que o Logos simplesmente se revestiu da natureza humana e ligou-se a ela de modo espiritual.

Uma das tendências características de Apolinário percebe-se na maneira como desenvolveu a idéia de como o Logos tornou-se homem. Para consegui-lo, partia da distinção entre carne e espirito, ou entre corpo, alma e espírito. O homem é constituído destes elementos, e é o espírito (ou alma racional) que torna o homem o que ele é — que fornece sua verdadeira essência. A razão ou espírito de Cristo, não consiste de razão humana;

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é o Logos de Deus. Deus e homem, portanto, estão unidos em Cristo como corpo e alma estão no homem, uma vez que a alma humana foi substituída pelo Logos de Deus.

Essa união de Logos e carne tem como resultado que a carne é considerada carne divina ou celestial. Pois é o espírito ou razão que molda o físico de modo que, juntos formam uma natureza. Em Cristo, no entanto, segundo a opinião de Apolinário, esta uma natureza é do tipo divino.

É óbvio que Apolinário enfatizava a divindade de Cristo a ponto de perder de vista sua verdadeira humanidade. Cristo, segundo Apolinário, não possui alma humana. Ele só tem uma natureza, a natureza encarnada do Logos divino. Por causa deste ponto de vista, Apolinário não estava muito afastado do antigo modalismo. Há traços de docetismo em sua teologia.

A oposição a Apolinário partiu especialmente dos capadocianos e da escola de Antioquia. No conflito contra ele, a oposição salientava que a verdadeira humanidade de Cristo tem de significar que ele não só tinha Corpo humano mas também alma, humana, pois corpo e alma juntos é que formam a essência da humanidade. Sem a razão humana, o homem não é mais homem. Os acusadores de Apolinário também sentiam repulsa por sua afirmação que o próprio Deus é carnal, ou que se submeteu ao sofrimento.

Antioquia e Alexandria

A assim chamada escola de Antioquia opunha-se tenazmente a Apolinário. Seus mais destacados representantes foram Diodoro de Tarso (m. 394), Teodoro de Mopsuéstia (m. 428) e Teodoreto. O famoso pregador João Crisóstomo (m. 407) também pode ser incluído nesta lista, bem como Nestório, cujas doutrinas foram posteriormente rejeitadas como sendo heréticas. Quando a teologia de Nestório foi repudiada, a influência desta escola diminuiu consideravelmente.

Os exegetas de Antioquia recusaram-se a empregar o método alegórico; em seu lugar desenvolveram o modo de interpretação histórico-gramatical. A Escritura, diziam, deve ser interpretada em sentido literal, de maneira condizente com seu significado original.

A cristologia desenvolvida em Antioquia também se relacionou com esta abordagem basicamente histórica. Enfatizavam, seus adeptos, especialmente a humanidade de Cristo. Cristo, diziam, tinha tanto alma como corpo humanos; além disso sofreu um processo de desenvolvimento. Foi assim que se uniu cada vez mais a Deus, até que o processo se completou na ressurreição.

Os antioquianos também apoiaram a decisão de Nicéia com respeito ao homooúsios. De acordo com sua natureza divina, Cristo realmente tinha a mesma substância que o Pai. O Logos, entretanto, não se transmutou num homem; em vez disso, reteve sua natureza divina, tomou sobre si forma humana, e se uniu à natureza humana. Esta união foi concebida do seguinte modo pelos antioquianos: o Logos empregou a natureza humana como um órgão; operou através dela. Ao mesmo tempo, contudo, as duas naturezas permaneceram distintas; cada uma delas era entidade independente, e só se uniram por sua atividade e por sua unidade de objetivo. Tratava-se, pois, de união espiritual e moral; não era problema físico como o era para Apolinário.

Como resultado dessas opiniões, os teólogos de Antioquia também se opuseram a Apolinário por motivos cristológicos. Cada uma das duas naturezas em Cristo devia ser

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preservada intacta. As naturezas divina e humana não se transformaram a ponto de uma integrar-se na outra. Cristo possuía a verdadeira natureza divina, mas, ao mesmo tempo, era também homem real com corpo e alma humanas. Para Apolinário, Cristo tinha apenas uma natureza: a divina. Os antioquianos afirmavam que devemos distinguir entre o Logos e a natureza humana que assumiu. O Logos uniu-se a um homem e habitou nele como num templo. Isto não significa que uma natureza integrou-se na outra. As naturezas não se transformaram a ponto de se tornarem idênticas. Quando lemos em Jo 1.14 que «o Verbo se fez carne», o «se fez» (egéneto) deve ser interpretado em sentido figurado, dizia Teodoro. O Logos tomou carne sobre si, mas não se tornou carne. «Pois quando dizemos “ele tomou" forma de servo (Fp 2.7), isso significa que realmente aconteceu assim; não foi simulação. Mas quando lemos 'ele se fez', isso não deve ser tomado literalmente, porque ele não foi transmutado em carne.»

Os antioquianos, portanto, ressaltavam a diferença entre as duas naturezas e insistiam que cada uma retinha suas próprias qualidades peculiares. Havia uma natureza divina completa, a do Logos de Deus, e uma natureza humana completa. Ao mesmo tempo, entretanto, os primeiros antioquianos também afirmavam a unidade da pessoa. Este aspecto do problema cristológico foi o decisivo para a escola de Antioquia. Foi neste ponto, por exemplo, que Nestório foi acusado de heresia. Seus predecessores tinham salientado o fato que Cristo é uma pessoa, com uma vontade, com uma única existência independente. «Não dizemos que há dois filhos; acreditamos corretamente que há apenas um Filho. Pois a distinção entre as duas naturezas deve ser sustentada incondicionalmente, e a unidade da pessoa mantida perpetuamente.»

No conflito que envolveu os antioquianos e Apolinário, refletiu-se a constante oposição entre as duas principais escolas teológicas do período, uma em Antioquia e a outra em Alexandria. Essa oposição se fundamentava em dois pontos de vista diferentes no tocante a todo o campo da teologia. A escola de Antioquia ressaltava o aspecto histórico, rejeitando o uso de alegorias, e dava ênfase especial à existência terrena, humana de Jesus, seu desenvolvimento e sua historicidade. A escola de Alexandria, por sua vez, foi profundamente influenciada pela filosofia grega, com sua ênfase nas realidades metafísicas, espirituais, divinas, bem como em sua nítida antítese entre o divino e o humano. O elemento divino em Cristo foi salientado a tal ponto que o elemento humano nem sempre era devidamente reconhecido.

O ponto de vista alexandrino baseava-se na distinção fundamental entre o divino e o humano, que coincide, naturalmente, com a atitude do idealismo. A encarnação era apresentada como transmutação da Deidade na natureza humana. Mas em virtude do fato que a essência divina é imutável, isto significa que a natureza humana foi elevada ao nível da divina, foi transmutada na natureza divina. Concebida desta maneira, a união, julgava-se que ela não só abrangia atividade e vontade, mas a própria substância, (união substancial, em que as qualidades da natureza humana desapareciam).

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AAggoossttiinnhhoo

Considerações Gerais - O nome de Agostinho ocupa lugar de destaque não só na história do dogma mas também na história geral da cultura. Além da teologia, os campos da filosofia, literatura, governo eclesiástico e jurisprudência também foram influenciados por seus escritos.

Melhor que qualquer outro «latino», Agostinho sintetizou a cultura da antigüidade e fundiu essa herança com a teologia cristã. Realizou, portanto, uma síntese entre a herança filosófica da antigüidade e o cristianismo, mas também contribuiu com algo de novo e original de sua própria personalidade. Ao mesmo tempo que estava profundamente enraizado na antigüidade e na tradição cristã, exerceu também impacto criador tanto sobre a teologia como sobre a filosofia. Representava uma cultura que estava no ocaso — a romana — mas ao mesmo tempo suas idéias serviram de base para a época que estava surgindo. Nos séculos seguintes, os teólogos continuaram a enfrentar os problemas que Agostinho propusera, a cultivar suas idéias, ou a usar suas obras como fontes de referência. Nos pensamentos de Agostinho de Hipona encontram suas raízes as tendências da escolástica bem como as dos místicos, as da política eclesiástica papal e ainda as de reforma da Idade Média.

A primeira coisa a fazer a esta altura é tentar entender o conceito básico de cristianismo de Agostinho, juntamente com seu significado para o desenvolvimento da história do dogma.

A posição teológica de Agostinho enquadra-se na da igreja antiga, a qual ele completou, ao menos no que se refere à sua parte «ocidental». Reuniu e articulou a tradição cristã. Mas, ao mesmo tempo, contribuiu com algo de novo. Do ponto de vista filosófico, Agostinho era neoplatônico. Essa escola de pensamento exerceu influência decisiva sobre ele, e nunca ele deixou de apresentar suas doutrinas cristãs em categorias derivadas dela. Relacionou o cristianismo com as idéias de seu próprio tempo, que em grande parte eram afetadas pelo neoplatonismo. Do ponto de vista formal, a teologia de Agostinho é uma síntese de formas de pensamento cristãs e neo-platônicas, e o conceito básico que caracteriza sua teologia leva impressa a marca dessa síntese.

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Agostinho era homem do Ocidente, e as facetas mais proeminentes de sua teologia são as que se encontram no centro da teologia ocidental. O problema da igreja bem como as questões antropológicas, por exemplo, foram respondidas por Agostinho de maneira tal que se tornaram básicas para o pensamento teológico nos séculos seguintes — e isto acontecia mesmo quando a posição de Agostinho não era inteiramente aceita.

Há quatro elementos diferentes na teologia de Agostinho que são de interesse particular neste contexto. São: sua doutrina da Trindade (analisada acima), seu conceito básico de cristianismo (neoplatonismo e cristianismo), sua doutrina da igreja (desenvolvida em seu conflito com o donatismo), e sua doutrina de pecado e graça (desenvolvida em seu conflito com Pelágio).

Desenvolvimento Pessoal De Agostinho

Para se compreender a teologia de Agostinho, é importante saber algo a respeito de sua vida e seu desenvolvimento interno, que influenciou a formação de sua teologia. A melhor fonte de informações é seu conhecido livro Confissões, escrito por volta do ano 400.

Agostinho nasceu em Tagaste, na Numidia, em 354. Seu pai era pagão, mas sua mãe era cristã, de modo que chegou a conhecer o cristianismo já muito cedo. Foi enviado a Cartago em 371 para estudar. Enquanto ali vivia, levava uma existência completamente mundana até ler o Hortênsio de Cícero, que criou nele o amor à filosofia. O desejo de encontrar a verdade substituiu o desejo de obter riqueza e fama. Anos mais tarde reconheceu esta mudança de pensamento como um passo em direção ao cristianismo. «Oh verdade, verdade, quão ardentemente minha alma ansiou por ti nessa época!» Desde o inicio parecia até certo ponto claro a Agostinho que a verdade não poderia ser alcançada a não ser em Cristo. O que o impedia de crer era a linguagem não filosófica e (como ele a considerava) bárbara da Bíblia. Também não conseguia submeter-se à autoridade da Bíblia, o que exige fé.

Pouco tempo depois do incidente acima mencionado, Agostinho uniu-se aos maniqueus, seita que tinha bom número de adeptos na África. Esse grupo, fundado por Mani, um persa, no terceiro século, tinha muito em comum com o gnosticismo. Mas seu dualismo era ainda mais radical; não era simplesmente dualismo entre Deus e o mundo, mas acima de tudo entre Deus e o mal. Os maniqueus consideravam o mal como princípio independente ao lado de Deus, poder que limitava o domínio de Deus e contra o qual Deus combatia. Seu sistema de salvação lembra o plano gnóstico, e esteiem geral, fornecia ao maniqueismo uma explicação ampla e especulativa do mundo. O maniqueismo também se caracterizava por seu código de ética ascético, que freqüentemente chegava ao oposto — ao libertinismo — entre seus membros. Agostinho foi atraído ao maniqueismo por sua explicação racional do mundo, bem como pelo seu código ascético, que temporariamente ofereceu uma solução a seus problemas. Mas o caráter fraudulento da posição maniquéia se lhe tornou cada vez mais evidente, e depois de 9 anos abandonou suas fileiras.

No mesmo ano, 383, Agostinho atravessou o mar, indo até a Itália. Viveu em Milão, onde entrou em contato com o famoso teólogo e prelado Ambrósio, que exerceu influência decisiva sobre ele. Ambrósio representava a posição teológica ocidental, mas também ficara profundamente impressionado com a teologia do Oriente, bem como com a filosofia grega. Entre outras coisas, apropriara-se do método alegórico de interpretação de Filo e

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Orígenes. Esse método chegou a ter grande significado para Agostinho, uma vez que lhe permitiu pôr de lado algumas passagens da Escritura que considerava inaceitáveis. Em suas pregações, Ambrósio salienta: vá com vigor o conceito paulino de justificação através do perdão dos pecados, e também isto foi de grande importância para Agostinho. Primeiramente, no entanto, Agostinho dirigiu-se ao neoplatonismo. Foi em grande parte esta escola de pensamento que o afastou do maniqueismo. O conceito neoplatônico de Deus era diametralmente oposto ao conceito maniqueu. Aquele concebia Deus como o bem absoluto, imutável, situado acima de toda mudança, a fonte de tudo o que existe. Tal concepção era • incompatível com a idéia que o mal é principio independente, e com a suposição que Deus combatia o mal e era, portanto mutável, exposto às modificações existenciais. O mal não pode ser algo independente, princípio criador e eficiente. No contexto neoplatônico, conceituava-se o mal como qualidade negativa, não ser, ausência de bem. Agostinho aceitou esta definição de mal, a qual constituiu a origem de seu diagnóstico da natureza de pecado. O impacto do pensamento neoplatônico se percebe claramente na seguinte passagem de suas Confissões: «Mas, tendo então lido aqueles li-vros dos platonistas, e neles tendo aprendido a procurar a verdade incorpórea, descobri tuas coisas invisíveis, entendi pelas coisas criadas... Então certifiquei-me que existes, que és infinito ... e que verdadeiramente és aquele que é sempre o mesmo, sem variação em qualquer parte e sem movimento; e que todas as outras coisas procedem de ti, neste terreno seguro apenas, é que existem. ... E, posteriormente, quando meu espírito foi conquistado por tua Bíblia ... aprendi a distinguir entre presunção e confissão — entre os que vêem aonde devem ir, mas não vão, e o caminho que conduz não apenas à visão mas também à morada na terra abençoada.» (Vil, 20).

Mas, apesar disso, foi uma passagem da Carta de Paulo aos Romanos que destruiu os últimos vestígios de resistência e facilitou a conversão de Agostinho ao cristianismo. Estas foram as palavras decisivas: «Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e nada disponhais para a carne, no tocante às suas concupiscências.» (13.13-14).

Estas palavras levaram Agostinho a abandonar sua vida mundana; e dirigiram seus desejos ao transcendental, não para vantagem temporal, mas a fim de melhor compreender e contemplar a Deus. Sua vontade fora abatida, mas restaurara-se novamente de modo definitivo.

A conversão de Agostinho significou mais do que abandonar sua ambição de se tornar um retórico famoso. Anteriormente fora escravo de desejos mundanos, mas isto agora passara, e seus pensamentos se voltaram a coisas espirituais. Ao mesmo tempo, submeteu-se aos ensinamentos e à autoridade da igreja. Foi a fé em Cristo que tornou o transcendental realidade viva para Agostinho.

Depois de viver em Cartago por alguns anos, Agostinho foi eleito presbítero na igreja de Hipona. Mais tarde ficou bispo da mesma cidade (395). E aí permaneceu até sua morte ocorrida quando os vândalos invadiram a região e sitiavam Hipona em 430.

Muitas são as interpretações feitas quanto ao significado da conversão de Agostinho. Vários pesquisadores protestantes, inclusive Harnack, afirmaram que sua conversão não significou ruptura com sua posição anterior. Julgam que continuou platonista mesmo

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depois de sua conversão. Obras escritas depois de sua conversão, como os Solilóquios, são citadas como prova. Com base neste livro (escrito em Cassicíaco), o significado da conversão foi diminuído — o que é bem o contrário do que o próprio Agostinho diz dessa experiência. Pesquisadores católicos apoiam a reivindicação feita nas Confissões e consideram a conversão como mudança genuína, em conseqüência da qual Agostinho chegou a alcançar a fé cristã e a se submeter aos ensinamentos da igreja. Como resultado das investigações de Nõrregaard e HolI, esta última interpretação é hoje, em geral, aceita. HolI demonstrou que os estudos filosóficos de Agostinho, que ele naturalmente continuou após sua conversão, receberam enfoque diferente.

O Conceito Básico De Cristianismo De Agostinho

Nas Confissões Agostinho descreve sua peregrinação à fé cristã. Conta como perambulou, cegamente, nas trilhas do erro. Durante todo esse tempo, no entanto, estava sob influência dos poderes da graça e foi atraído cada vez mais pelo amor à verdade, até que, afinal, através de sua conversão, este amor tornou-se permanente e seus desejos se voltaram à realidade espiritual. Antes disso, apenas fora capaz de vislumbrar a verdade de longe, e seu amor a ela era por demais evanescente para capacitá-lo a dominar seu amor pelo mundo. A natureza caleidoscópica dos interesses seculares o mantinha cativo e exercia influência decisiva sobre seus desejos. Não conheceu a paz até chegar a ter fé em Cristo, até submeter-se è verdade escriturística. Somente então encontrou aquilo que em vão buscara tateando. Essa foi a experiência que Agostinho resumiu nas conhecidas palavras: «Tu nos fizeste para ti, e nossos corações estão inquietos, até encontrarem descanso em ti.»

Como já vimos, Agostinho submeteu-se à autoridade da igreja e aceitou os ensinamentos da Escritura depois de sua conversão. Seu batismo e a escolha da nova maneira de viver dão testemunho da natureza decisiva dessa modificação. Em seus escritos, entretanto, podemos ver certa continuidade; o que escreveu depois de sua conversão relaciona-se, até certo ponto, com o que escrevera antes dela. Mesmo as coisas que escreveu imediatamente depois de sua conversão (os Solilóquios, por exemplo) são obviamente influenciados pelo neoplatonismo. À medida que o tempo corria, voltou-se cada vez mais à tradição cristã, mas nunca rompeu completamente com o neoplatonismo (como fez, por exemplo, com o maniqueísmo). Em sua opinião, o cristianismo e o neoplatonismo não se excluíam mutuamente. Acreditava que, em vez disso, idéias neoplatônicas o capacitaram a encontrar o cristianismo e a entender suas implicações mais profundas. Como resultado, os fundamentos de sua posição teológica foram sempre, ao menos em parte, determinados por pressupostos neoplatônicos.

Todavia, a atitude básica de Agostinho face à especulação filosófica modificou-se depois de sua conversão. Antes dela, a filosofia tinha oferecido a Agostinho a possibilidade de encontrar a verdade por meios racionais, através do uso da especulação. Depois de converter-se, Agostinho entendeu a relação entre teologia e filosofia de acordo com a seguinte fórmula: «Creio para que possa compreender» (Credo ut inteiligam). A submissão à autoridade ocupava agora o primeiro lugar em sua vida. Não mais julgava ser a especulação filosófica o caminho que conduzia ao alvo. Acreditava agora que só pela fé se podia chegar a conhecer verdadeiramente a Deus, aceitando a verdade revelada. Não concluía com isso, entretanto, que a possibilidade de considerar a fé em termos racionais

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ficava excluída; julgava que a verdade da fé também podia ser alvo de compreensão, pelo menos até certo ponto. Mas o pensamento filosófico não mais ocupava o lugar de honra na vida de Agostinho; este fora substituído pela fé e pela submissão à autoridade da Escritura.

Para Agostinho, o pensamento lógico, embora se baseasse na fé e se relacionasse com a submissão aos ensinamentos da igreja, tomava a forma de síntese entre cristianismo e neoplatonismo. Em sua opinião, estes dois estavam em harmonia um com o outro; não se excluíam mutuamente. Isto não quer dizer que Agostinho considerava o neoplatonismo uma religião situada no mesmo nível do cristianismo. Bem pelo contrário, julgava ser este a única fonte da verdade. Mas a relação entre ambos, em sua opinião, era que apenas o cristianismo podia fornecer as respostas corretas às questões propostas pelo neoplatonismo ou a filosofia em geral. Os filósofos buscam a verdade, mas não podem encontrá-la. Reconhecem o alvo, mas não conhecem o caminho que a ele conduz. Desta maneira, quando o cristianismo responde às profundas questões levantadas pela filosofia (as únicas respostas válidas que podem ser encontradas), situa-se numa relação ambivalente com a filosofia. De um lado, a atitude da fé revela a falsidade da filosofia, demonstrando quão vazia ela é, bem como traz à luz sua incapacidade de satisfazer os anseios mais profundos do homem. Do outro lado, o cristianismo aceita as questões levantadas pela filosofia, e desta maneira reconhece a atitude básica face à vida que é ca-racterística da filosofia. Esta ambivalência é típica do conceito de cristianismo de Agostinho. De um lado, reconhece a verdade da revelação e da tradição cristã em contraste com a razão e a filosofia. De outro lado, apresenta o cristianismo em categorias implícitas nos pressupostos filosóficos que aceitava. Agostinho criou uma síntese que incluía tanto elementos cristãos como neoplatônicos em interação mútua. Estas linhas de pensamento podem ser isoladas e diferenciadas uma da outra, mas na mente de Agostinho formaram um ponto de vista unitário, simultaneamente cristão e neo-platônico. O neoplatonismo ensinava que a tendência mais elementar encontrada no homem é sua busca da felicidade, e é esta idéia, acima de tudo, que constituiu o elo de ligação entre Agostinho e este sistema de pensamento. Em sua opinião, o pressuposto básico de todo esforço humano se encontra na concentração do homem sobre um objeto que lhe promete trazer certos benefícios. «Certamente todos desejamos viver felizes.»

Há um eudemonismo em Agostinho, mas não é o eudemonismo filosófico que afirma que a satisfação do desejo ou a realização do prazer próprio é o alvo mais elevado. Conforme Agostinho, o alvo mais elevado é união com o bem supremo, como algo transcendente, não encontrado na esfera humana. «Para mim o bem é estar unido a Deus» (Sermão 156, 7). A visão de Deus é o objetivo supremo. Quando todos os poderes do es-pirito estão dirigidos a Deus e à eternidade, é então que a mente está corretamente inclinada, e a alma pode experimentar paz e clareza. Esta espécie de amor é o mandamento mais elevado, que abrange todos os outros.

Agostinho considerava o amor (amor) especialmente aquilo que coincide com a vontade interna do homem. Este podia dirigir-se para cima, em direção a Deus e ao eterno (ascendit), ou para baixo (descendi!) em direção ao que está sujeito à vontade — à criação, ao que é temporal. Aquele é caritas, este, cupiditas. O homem só pode atingir seu destino e chegar a conhecer a paz depois que seu amor foi totalmente dirigido a Deus. Em uma passagem Agostinho compara o amor (amor) a uma corrente de água que, ao invés de correr em direção à sarjeta, onde não pode fazer qualquer bem, deveria ser regada sobre o

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jardim para refrescar tudo o que nele existe. Tal como ele o entendia, o elemento de esforço é essencialmente o mesmo, tanto em caritas como em cupiditas. O amor que é prodigalizado em coisas do mundo deveria ser dirigido a Deus, pois ele é o bem supremo, o bem perene.

Poderia parecer, em vista disso, que o homem deveria romper sua relação com o mundo e devotar-se exclusivamente ao que é eterno. Este, no entanto, não é o caso. Agostinho tinha em alta estima a vida de reclusão, e com alegria concebia a relação religiosa como comunhão intima da alma com Deus — visão de Deus que é antecipação da bem-aventurança eterna. Mas Agostinho não desprezava a vida neste mundo. Apenas quando as coisas temporais ocupam o primeiro lugar no coração de um homem é que ele se torna objetável. A criação de Deus é boa, e o homem foi colocado nela para cuidar das dádivas que Deus colocou a nossa disposição. Mas, como então, se relaciona a posição do homem no mundo com sua comunhão com Deus? Agostinho respondeu esta pergunta fazendo distinção entre uti e frui, usar e deleitar-se em. Mesmo o que foi criado pode ser objeto de amor por si mesmo, mas o homem não deve aí encontrar seu alvo final. Estas coisas só deveriam ser usadas como meios a serviço da forma mais elevada de amor. Somente Deus deveria ser o objeto daquele amor que repousa, incondicionalmente, no que é amado. Tal amor é absorção perpétua em Deus — fruitio Dei. A diferença entre frui e uti é a diferença entre amar por causa da coisa em si (diligere propter se) e amor por causa de outra coisa (diligere propter aliud).

A vida do homem pode ser comparada a uma jornada à terra natal. O alvo de suas peregrinações é apenas aquela terra que lhe proporciona verdadeira alegria. Em sua jornada precisa usar navios e carros para atingir seu alvo. Se procurasse alegria nos prazeres da viagem, aquilo que deveria ser meio teria assim se transformado em alvo. Da mesma forma, o mundo em que o cristão vive deve ser usado, mas não deve tornar-se o objeto da alegria. Aquele amor que usa as coisas do mundo, mas encontra sua verdadeira alegria apenas na pátria celestial, é caritas. Aquele amor que busca a satisfação no mundo, usando Deus como meio para alcançar prazer temporal, é cupiditas. «Os bons usam o mundo para poderem encontrar seu prazer em Deus; os perversos, ao contrário, querem usar a Deus para que possam gozar o mundo» (A Cidade de Deus, XV, 7).

Mas o conceito de amor sui também significa outras coisas para Agostinho. Pode ser usado como sinônimo para amor em geral, uma vez que todo amor é basicamente amor sui — concentração sobre o próprio bem estar ou sobre o destino mais elevado. Foi neste sentido que Agostinho disse que amor próprio correio é amar a Deus e negar-se a si mesmo.

Mas amor sui também pode ser usado para designar uma espécie r de falso amor próprio, em que o homem só busca o prazer próprio, e ama a si mesmo em lugar de a Deus. Tal amor é uma das facetas da cupiditas humana, e como tal se opõe à verdadeira forma do amor. Nos escritos de Agostinho, portanto, amor sui pode ser entendido de três maneiras diferentes: como amor próprio legítimo, «bem ordenado»; como concentração no destino mais elevado (neste sentido o termo é sinônimo de amor Dei); ou como falso amor próprio.

O contraste decisivo se encontra entre caritas e cupiditas. Como ser criado, o homem está obrigado a procurar seu bem fora de si mesmo. Em sua condição corrupta, busca-o no mundo, em coisas e prazeres temporais. Pecado é precisamente isto, que a concentração mais profunda da vontade humana se afasta de Deus em direção ao mundo, de modo que o homem ama a criação ao invés de ao Criador. A mudança que ocorre na conversão é que

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cupiditas, o amor impróprio ao mundo, é transformado em caritas. Tal homem está saturado com o amor a Deus.

O homem é incapaz de produzir essa transformação por si mesmo. Seus desejos por bens temporais o mantêm cativo. Se o amor a Deus deve ser despertado nele, isto deve vir de fora como dádiva. Deve ser «infundido» nele (infusio caritatis), expressão que Agostinho derivou de Rm 5.5: «O amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espirito Santo, que nos foi outorgado.» O homem só pode dominar seu amor pelo mundo depois que o amor de Deus lhe foi dado.

Entendia Agostinho essa infusão de amor em sentido físico, como a concessão de um poder? Ele foi interpretado desta maneira, especialmente pela escola liberal de teologia, que em geral procede com base na antítese físico-ética. Mas esta conclusão não está correta. A graça e o amor são derramados para dentro da vida do homem, mas isto é feito pelo Espírito Santo, não acontece de qualquer modo mágico. Realmente, pode-se dizer que a caritas, que é outorgada ao homem, coincide com o Espírito Santo. É Deus que se dá a si mesmo ao homem, e mediante sua presença o homem fica repleto daquele amor que o capacita a triunfar sobre os maus desejos.

Na teologia católica romana posterior esta graça infusa é concebida como poder interno, conferido por meio dos sacramentos. Como resultado, considera-se isto freqüentemente como ocorrência mágica, sobrenatural. Mas não se pode dizer que a maneira pessoal, ética de considerar as coisas está ausente nos escritos de Agostinho. A graça é considerada como verdadeiro poder transformador, e este poder é o próprio Deus, o Espírito que é dado mediante a fé em Cristo.

A encarnação foi necessária para a salvação. A cruz de Cristo nos diz que Deus humilhou-se até à morte por causa do homem. E é tão-somente isto que destrói o orgulho humano (superbia). O orgulho nos mantém cativos de nós mesmos, e esta é a causa de nossa miséria e infelicidade. Nada pode romper esses grilhões a não ser a humildade de Cristo, que nos dá o exemplo e o remédio para nossa superbia.

Agostinho reuniu duas linhas de pensamento numa síntese: a salvação resulta da ação divina, sua graça proveniente, e sua descida até nós na encarnação de Cristo; esta é uma de suas idéias fundamentais. A outra se caracteriza pela dialética caritas-cupiditas; a busca do bem supremo, que está oculto a todo homem. Esta busca é corrompida pelo amor impróprio ao mundo e ao próprio eu, e deve, como resultado, ser redirigida a seu alvo mais elevado e, desta maneira, encontrar satisfação no amor cristão a Deus. Foi assim que Agostinho combinou um conceito basicamente neoplatônico (a doutrina do eros) com a doutrina cristã de salvação numa tentativa de trazer respostas às perguntas mais profundas do homem e, ao mesmo tempo, resumir o conteúdo do evangelho cristão.

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AA DDoouuttrriinnaa ddee PPeeccaaddoo ee aa GGrraaççaa ddee AAggoossttiinnhhoo

Há certa analogia interna entre as controvérsias trinitárias e cristológicas, que grassaram no Oriente durante os séculos IV e V, de um lado, e de outro lado, a controvérsia pelagiana no Ocidente no século V. Ambas giravam em torno da mesma questão: Que constitui a base para a salvação? Após o repúdio do arianismo e das heresias monarquianas, os argumentos seguintes se evidenciaram: Se Cristo não é verdadeiro Deus, não pode salvar os homens; se não é verdadeiro Deus e verdadeiro homem em uma pessoa, não pode libertar os homens do domínio do pecado e da morte. De maneira semelhante, Agostinho afirmou, em oposição a Pelágio, que a salvação é obra do próprio Deus; não é de origem humana. Numa controvérsia, o ponto principal se referia à relação entre as naturezas divina e humana em Cristo; na outra, à relação entre a graça de Deus e o livre arbítrio do homem. Tal como Atanásio ensinara que Cristo é verdadeiro Deus, de modo que a obra que realizou é a própria obra de Deus, assim também Agostinho ensinou que é tão-somente a graça de Deus que opera a salvação dos homens. Mas para Agostinho isto não era questão puramente teológica; tinha também reflexos antropológicos. Na teologia ocidental a doutrina de pecado e graça, bem como a doutrina da igreja, chegaram a ocupar o lugar central de interesse.

Pelágio, natural da Irlanda, apareceu em Roma pouco antes do ano 400 como pregador extremamente rigoroso de penitência. Mais tarde também trabalhou no Norte da África. Celéstio foi um de seus discípulos, e algum tempo depois Julião de Eclano tornou-se o expoente principal do pelagianismo. O pelagianismo foi aceito por muitos, mas também suscitou forte oposição, especialmente da parte de Agostinho, que contra ele escreveu várias obras. Os teólogos orientais também foram persuadidos a rejeitar Pelágio, e no Concílio de Éfeso em 431 (onde o nestorianismo foi condenado) a doutrina pelagiana foi repudiada como sendo herética.

Em suas pregações, Pelágio apelava ao livre arbítrio do homem. Supunha que o homem tem em si mesmo a capacidade de escolher entre o bem e o mal. Acreditava que se o homem não se julgava capaz de cumprir com os mandamentos de Deus, jamais seria capaz de fazê-lo, e como resultado, nunca mudaria para melhor. Seria inútil esperar que o homem fizesse o que lhe parecesse impossível.

Na teologia da igreja primitiva a idéia do livre arbítrio era pressuposto básico, tanto no Ocidente como também entre os gregos. A pregação da lei era feita tendo isto em mente; o mesmo acontecendo também com o processo de educação. Sem essa liberdade não se podia considerar o homem responsável por seus atos; igualmente, suas transgressões não poderiam torná-lo culpado.

Mas na controvérsia entre Agostinho e Pelágio toda a questão do livre arbítrio ingressou em nova etapa e se tornou uma das questões cruciais da própria salvação — o problema de pecado e graça. Na teologia de Pelágio, o livre arbítrio recebeu significado bem maior que na tradição anterior. Para ele, não era simplesmente a capacidade do homem de escolher e agir em liberdade (não simplesmente uma liberdade formal ou psicológica, para usar terminologia mais moderna). Também significava, no que se referia a Pelágio, que o homem é livre para escolher entre o bem e o mal; defrontando-se com várias alternativas, poderia escolher a maneira correta de agir, bem como a errada.

Em outras palavras, o homem tem a possibilidade e a liberdade de decidir em favor

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do bem. Pecado, segundo Pelágio, consiste apenas de atos isolados da vontade. Se o homem deseja o que é mau, ele peca. Mas nada há para impedi-lo de escolher o que é bom, evitando desta maneira o pecado. Pelágio rejeitou a idéia que se deve conceber o pecado em termos da natureza ou do caráter do homem. O pecado não é defeito da natureza mas da vontade. Como resultado, também negou-se a aceitar a doutrina do pecado original. Pecado é apenas o que o homem faz, e por causa disto não pode ser transmitido por herança, não pode estar implícito na natureza. Pelágio também julgava poder afirmar a responsabilidade humana apenas nestes termos; podia imaginar o progresso humano apenas dentro desta perspectiva. Crianças pequenas, que são incapazes de escolher conscientemente o que é mau, estão, portanto, livres de pecado, de acordo com Pelágio. Como resultado, o batismo não implica necessariamente em libertação do pecado.

Pelágio também afirmava, falando em geral, que o homem pode avançar até a perfeição, que pode evitar cada vez mais o mal e escolher o bem. Como então explicava ele a universalidade do pecado? Por que o homem livre escolhe tantas vezes o que é mau? Confrontado por tais perguntas, Pelágio fazia referência ao costume há muito enraizado de pecar. Por causa de repetidas ações da vontade, a propensão do homem para pecar cresceu.

Mas, apesar disso, o homem é capaz de escolher o bem por ação da vontade. Não precisa ele então da graça de Deus? Não, nem mesmo Pelágio diria isso; ele, também, falou de graça, embora não da mesma maneira que Agostinho. Para este, a graça é algo que altera a vontade do homem, que o enche com o amor a Deus e desta maneira modifica toda a direção de sua vontade. Para Pelágio, a graça de Deus significa que o homem tem desde o inicio uma vontade livre para escolher o bem. A obra da graça é beneficio da natureza.Além disso, a graça de Deus facilita o processo de escolha e capacita o homem a alcançar aquilo que é bom. Esta assistência é fornecida mediante a pregação da lei e me-diante o exemplo de Cristo, bem como pelo perdão dos pecados, que capacita o homem a continuar sua jornada sem ficar enredado em seu passado. É, pois, necessário, que a vontade do homem seja apoiada pela graça de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o homem é capaz de escolher o bem por si mesmo e para si.

Agostinho opunha-se categoricamente a tais idéias. Seus conceitos de liberdade, de pecado e graça foram apresentados em vários escritos dirigidos contra o pelagianismo A controvérsia dizia respeito, em sua maior parte, aos seguintes pontos: o livre arbítrio, o pecado original, a conquista da salvação, graça e predestinação.

Considerada de um ponto de vista, toda esta faceta da teologia de Agostinho constitui uma descrição do homem e de sua posição face a Deus. Ao mesmo tempo, no entanto, a antropologia teológica de Agostinho também foi inserida em sua doutrina do plano da salvação. Dá atenção especial à maneira como Deus trata com o homem e as várias condições do homem, nesta seqüência de eventos, que é descrita como o plano de salvação que Deus tem para o mundo. Afirmações relativas ao livre arbítrio e à obra da graça são condicionadas pelas várias etapas em que o homem se encontra em seu desenvolvimento, desde a criação até a perfeição. Agostinho distingue quatro dessas etapas, uma vez que fala do homem ante legem, sub lege, sub gratia e in pace (ou, em terminologia mais recente.«antes da queda», «depois da queda», «depois da conversão» e «na perfeição»),

No assim chamado estado original, isto é, quando o primeiro homem foi criado, ele possuía medida completa de liberdade. Tinha então livre arbítrio não somente no campo da ação; também era capaz de escolher entre o bem e o mal. Em outras palavras, o homem

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então possuía liberdade no sentido formal, bem como a capacidade de escolher o bem. Esta espécie de liberdade implicava, portanto, na capacidade de evitar o pecado (posse non peccare). Esta capacidade não pertencia ao homem por causa de seus dons naturais; pertencia-lhe somente por causa da ajuda da graça divina. Era apenas a prima gratia que dava ao homem a liberdade de escolher o bem.

Mas a liberdade também encerra a possibilidade de uma queda, e o primeiro pecado foi ocasionado pelo livre arbítrio. A queda significa que o homem, em espírito de arrogância, afastou-se de Deus e se colocou na direção do mal. A caritas foi substituída pela cupiditas na vida do homem. O homem perdeu assim a dádiva da graça, e com ela a liberdade que constituía a capacidade de escolher o bem. Pois quando a graça foi perdida, alterou-se a natureza humana. A razão e a vontade não mais controlam os poderes inferiores da alma; por outro lado, estes poderes assumiram posição dominante, e o homem, como resultado, viu-se enredado nas malhas do desejo e guiado pela concupiscência. Esta condição ele é incapaz de mudar. Em ocasiões isoladas a vontade pode dominar a concupiscência, mas a direção da vontade, apesar disso, permanece a mesma. O homem é incapaz de livrar-se da servidão à concupiscência, porque nesta situação o mundo é o objetivo primordial de sua vontade, e não Deus.

A queda, portanto, significa que o homem perdeu a liberdade de escolher o bem. Como conseqüência, o homem agora sente-se impelido a pecar. Seu posse non peccare transformou-se em non posse non peccare. Aqui Agostinho opõe-se a Pelágio. Agostinho negava que o homem, depois da queda, continuava a possuir livre arbítrio no verdadeiro sentido, a saber, a liberdade de escolher o bem. Em vez disso, está sob o impulso de pecar, o que quer dizer que age de tal maneira que a corrupção é inevitável. Boas obras isoladas podem ser realizadas, mas estas não modificam a intenção má de sua vontade. Ao mesmo tempo, entretanto, Agostinho não negava a liberdade em sentido formal. Seu conceito não é determinista. O homem age livremente. Mas devido à sua condição, o homem só está livre para pecar. Em outras palavras, sua liberdade é muito limitada, ou corrompida. A tendência do homem de escolher o mal determina o curso de sua conduta e o impede de fazer o bem. Realmente, o homem está livre no que concerne a ações individuais. Ao mesmo tempo, entretanto, sua atitude básica, moldada por sua vontade, é algo que não pode mudar — e, até esse ponto, não é livre.

As más tendências volitivas do homem se expressam como concupiscência, ou desejo. Mas, ao mesmo tempo, o primeiro pecado foi ofensa (culpa) com a qual o homem incorreu em culpa perante Deus. Por esta razão, o pecado original implica numa condição perpétua de culpa (reatus). É esta culpa que é a essência do pecado, ou que torna o pecado pecado (seu formale). A culpa herdada é removida pelo batismo, de modo que o pecado original não é mais contado como pecado. Apesar disso, a condição pecaminosa permanece, mesmo depois do batismo; a concupiscência atribuível à influência do pecado original, ainda está presente. A própria natureza humana é prejudicada pela corrupção implícita no pecado original; ela é, como resultado, uma «natureza viciada pelo pecado». O pecado não é simplesmente uma série de ações voluntárias isoladas; é corrupção real da natureza, resultante do fato que a própria direção da vontade está deturpada. Lutero enfatizou isto dizendo que o pecado não só se restringe às açôes externas; descrença e inimizade contra Deus constituem sua essência. De modo semelhante, Agostinho descreveu o pecado como perversão da vontade. Nisto vemos o principal ponto de conflito entre ele e Pelágio.

O pensamento que o pecado está implícito na natureza humana é sugerido pela

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própria idéia de ser a corrupção herdada. O primeiro passo em falso resultou do livre arbítrio do homem. Mas toda a raça humana esteve envolvida na queda de Adão. O Adão bíblico é o «homem* em geral; todos estão representados nele, de modo que todos os seus descendentes formam uma unidade nele. Como resultado, todos participam na culpa de Adão, mesmo que a presença do pecado original no indivíduo não dependa de um ato da vontade; está presente antes que a vontade comece a se manifestar. A condição de culpa é herdada, e é removida do indivíduo através do batismo.

Assim também acontece com a corrupção humana; ela igualmente é herdada, como resultado da desobediência de Adão. Isto quer dizer que é propagada de modo real de uma geração à seguinte. Agostinho acreditava que, com a propagação natural, também os maus desejos passavam de uma geração à seguinte.

Além disso, na opinião de Agostinho, nossa condição pecaminosa herdada também nos toma culpados perante Deus; com base no pecado original, o homem é digno da condenação divina. Â luz disso, Agostinho concluiu que crianças não balizadas estão sujeitas à condenação. A teologia católica romana posterior abrandou esta afirmação de várias maneiras, e mesmo Agostinho sugeriu que as orações da família podiam, em alguns casos, substituir o batismo. O conceito de pecaminosidade herdada foi muitas vezes mal compreendido. Naturalmente não significa que se nega que as crianças sejam inocentes do ponto de vista meramente humano. Não é questão de pecado atual; antes, indica uma condição na qual o homem se encontra como resultado da perversão de sua vontade. A doutrina do pecado original também supõe a unidade da raça humana em Adão. Pois, ca-so contrário, como podia ser atribuída culpa ou responsabilidade a um indivíduo por algo que não fez? A posição agostiniana nesta questão não distingue entre crianças e adultos; a mesma ofensa se aplica a todos. Imaginar que o pecado original impõe culpa é igualmente difícil em ambos os casos. Deve-se pressupor, nesta conexão, que o pecado original em si está situado além dos limites do conhecimento empírico e, portanto, não pode ser apreciado do ponto de vista da experiência que a razão tem a seu dispor.

Em sua doutrina do pecado original, Agostinho descreve o pecado como condição que abrange todo o homem; não se trata apenas de ações isoladas. O pecado é um afastar-se de Deus por parte da vontade do homem. Isto implica em afirmar que o mal é algo negativo, sem substância, e desligado da comunhão com Deus, mas ao mesmo tempo, algo que implica em culpa e produz depravação em termos bem concretos.

Em conexão com este conceito de pecado, é lógico concluir que, depois da queda, a vontade do homem tornou-se incapaz de fazer o bem. Na realidade, o homem pode ocasionalmente fazer aquilo que é bom e útil aqui na terra. Mas enquanto a perversão da vontade domina, isto não pode ser verdadeiramente bom, pois o próprio homem permanece mau, e suas ações se dirigem àquilo que conduz à corrupção. Esta doutrina do servo arbítrio (que não deve ser confundida com o determinismo) significa que o homem é incapaz de cooperar no interesse de sua salvação.

Aquilo que é a única fonte da salvação humana, a graça de Deus, foi revelado na obra de Cristo. Ele fez expiação pelos nossos pecados, e por intermédio da fé nele o homem pode participar da graça. Este é o único caminho à vida reta: «O que a lei ordena, a fé realiza». A função da graça consiste, em parte, no perdão dos pecados e, em parte, na regeneração. Através da obra de mediação realizada por Cristo, a comunhão com Deus, que fora perdida, foi restaurada. A culpa é removida pelo perdão dos pecados, e o homem recupera a vida espiritual que foi perdida na queda. Na opinião de Agostinho, a salvação

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se encontra no perdão dos pecados, e a graça é a vontade misericordiosa de Deus que opera este perdão.

Mas a graça não apenas remove o pecado; também efetua a regeneração do homem. A natureza humana realmente encontra-se depravada por causa do pecado. Este mal só pode ser curado pela graça. A vida retorna quando é restaurada a relação do homem com Deus. A má vontade, orientada em direção ao mundo, é substituída pela boa vontade, pela caritas. Como resultado, o homem pode obedecer aos mandamentos de Deus; anteriormente, era incapaz de fazê-lo. Sua liberdade, isto é, sua capacidade de fazer o bem é restaurada. Enquanto durar a vida terrena, esta liberdade é mero início. Pois, nesta vida o homem deve lutar contra o desejo e só é restaurado gradualmente. O que pode produzir o bem no homem? Apenas o amor, a nova vontade. Sem o auxílio da graça, o homem nunca pode fazer o bem. Como resultado, o cumprimento da lei, que Deus exige, só é possível quando Deus mesmo fornece o poder. «Dá o que ordenas, e ordena o que quiseres». Tal amor vai de mãos dadas com a fé. Crer em Deus é amá-lo e esperar vê-lo um dia. Fé, esperança e amor pertencem juntos; são as virtudes essenciais do cristianismo.

A salvação resulta do perdão dos pecados, mediante a fé, independente de mérito humano. Nada há que o homem possa fazer de si mesmo para realizar esta salvação. Este foi o principal argumento de Agostinho contra Pelágio; Agostinho tomou esta idéia básica de Paulo, cuja doutrina da justificação pela fé teve influência decisiva sobre Agostinho. A vontade do homem é incapaz de fazer o bem e, portanto, a salvação deve ser obra do próprio Deus. Mas, para Agostinho, graça inclui a regeneração do homem. A vontade do homem se altera, o amor é derramado nele; como resultado disto, o homem pode fazer verdadeiramente o que é bom e pode tornar-se cooperador de Deus na fé. Encarado de certo modo, Agostinho parece dizer que esta regeneração é o alvo. O amor a Deus (caritas) é o pressuposto da salvação do homem. Esta interpretação de Paulo é um tanto diferente da dos Reformadores. Segundo Lutero e a tradição luterana, é apenas a fé em Cristo e seus méritos que justifica o homem; as obras humanas ai não têm lugar. Agostinho igualmente dizia que o homem é salvo pela fé, mas esta fé também pratica o bem; relaciona-se com a caritas e se expressa através dela. Ações que se originam no amor são consideradas meritórias e eventualmente serão recompensadas. Mas Agostinho também enfatizava, ao mesmo tempo, que tal mérito só pode ser conquistado pela graça. Disse ele: «Quando Deus recompensa nossos méritos, está realmente recompensando suas próprias dádivas.»

Agostinho, entretanto, não diz que a graça que perdoa é a única causa e pressuposto da salvação; também reconhece a importância do amor que Deus derrama no coração do homem. A base real da salvação é tão-somente a graça (e não o livre arbítrio do homem), mas o que se destaca na obra da graça não é tanto a justiça «alheia» de Cristo que é imputada a nós, mas antes a transformação que ocorre na vida do indivíduo renascido por causa do amor de Deus que foi derramado nele.

A oposição de Agostinho a Pelágio expressou-se mais fortemente em sua doutrina da predestinação. A graça, que é a única fonte da salvação do homem, é a vontade misericordiosa de Deus; ela é, ao mesmo tempo, onipotente. A onipotência desta graça significa que a salvação do homem depende apenas da vontade e do decreto de Deus. Deus, na eternidade, escolheu certos homens para serem arrancados da massa corrupta e para participarem de sua salvação. A obra da graça no plano da salvação, portanto, é a execução, no tempo, do decreto eterno, oculto, de Deus. Agostinho baseou esta conclusão em Rm 8.30: «E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses

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também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.» O fundamento decisivo da salvação humana, portanto, não se encontra em nossos

méritos ou no livre arbítrio, mas, ao invés disso, na vontade de Deus. Para Agostinho, isto significava que os que foram escolhidos um dia serão salvos. Não se pode imaginar que venham a cair novamente aqueles que uma vez chegaram a crer. A graça os supre não apenas com a fé mas também com o dom da perseverança. Esta linha de pensamento fez surgir a teoria denominada «graça irresistível»; o termo, em si, só foi usado mais tarde. Agostinho acreditava até que os predestinados podem existir fora da igreja. Essas pessoas, sustentava, seriam salvas pelo poder da graça que operaria sem os meios ao nosso dispor.

Agostinho também concluiu nesta conexão que se alguém não é salvo, isto igualmente tem sua origem na vontade de Deus; Deus não desejou a salvação de tal pessoa. Pois nada pode ser feito sem a vontade e o poder de Deus. Como pode relacionar-se esta idéia com a passagem: «Deus é amor»? Tais questões não podem ser respondidas. As palavras de 1 Tm 2.4: Deus «deseja que todos os homens sejam salvos» (que têm sido difíceis para todos os que ensinam a dupla predestinação), foram interpretadas por Agostinho como referindo-se apenas a todas as «classes» ou «espécies» de homens.

A doutrina da predestinação de Agostinho representa a conseqüência final de sua doutrina que a graça é a única fonte da salvação dos homens. A teologia posterior, em geral, não o seguiu em tais conclusões. As doutrinas da graça irresistível e da dupla predestinação, na maioria das vezes, foram rejeitadas. Todavia estas idéias continuaram a fornecer uma antítese vigorosa às tendências pelagianas, e foram aceitas por teólogos que desejavam ficar fiéis a Agostinho neste ponto.

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AA TTrraannssiiççããoo ddoo PPeerrííooddoo AAnnttiiggoo MMeeddiieevvaall.. GGrreeggóórriioo,, OO GGrraannddee

Durante o período agitado da época da queda do Império Romano Ocidental, quando os povos germânicos assumiram o domínio político, as questões teológicas mais importantes passaram a receber cada vez menos atenção da parte dos lideres da igreja. Apesar disso, no entanto, os fundamentos da teologia escolástica posterior, bem como da cultura medieval em geral, foram lançados nessa época. Importante contribuição foi feita pelos que labutaram para preservar a herança da antigüidade para o período medieval que surgia.

Entre estes encontra-se Boécio, filósofo cristão e funcionário do Imperador Teodorico. Acusado de manter relações com o Império Romano Oriental, Boécio foi aprisionado e afinal executado em Pávia, em 525. É lembrado como o «último romano» e ainda como o «primeiro escolástico». Através de seus escritos, bem como de suas traduções dos livros de lógica de Aristóteles, transmitiu o conhecimento da lógica aristotélica à Idade Média. Seu sistema cientifico também serviu de protótipo para a educação universitária medieval.

Os escritos atribuídos a Dionísio, o Areopagita, também pertencem a este período. Em quatro tratados intitulados O Nome Divino, A Hierarquia Divina, A Hierarquia Eclesiástica e A Teologia Mística apresentou um sistema em padrões neoplatônicos. Tratou nele, entre outras coisas, de anjos, que dividiu em nove coros, que por sua vez dividiu em três tríades. Nos últimos dois tratados, Dionísio apresentou suas próprias idéias sobre os sacramentos e ofícios da igreja, bem como o caminho da alma à salvação, segundo os postulados do misticismo. Estes escritos e ainda 10 cartas do mesmo autor reivindicavam falsamente serem obra de Dionísio, o discípulo do apóstolo Paulo. A prolongada discussão em torno da origem destes escritos foi finalmente encerrada no final do século passado, quando se demonstrou que partes destes escritos basearam-se na obra de Proclo (m. 485), filósofo neoplatônico. Uma vez que foram citados por teólogos na segunda década do século VI, podem ser datados entre 485 e 515. Foram provavelmente escritos na Síria. E embora o assunto em questão se situe na periferia da teologia, estes escritos desempenharam papel de grande importância durante toda a Idade Média. Através destes escritos a Europa medival tomou conhecimento da cosmovisão e do sistema religioso do neoplatonismo. Estes escritos «pseudo dionisicos» foram traduzidos ao latim pelo filósofo João Scotus Erigena.

Cassiodoro (m. por volta de 583), como Boécio, estadista no reino dos ostrogodos, fez sua reputação como colecionador e enciclopedista. Um contemporâneo seu, cujo nome não está tão associado à história do dogma como à história eclesiástica em geral, é Benedito de Núrsia (m. 547), o famoso monge cuja regra monástica dominou os mosteiros ocidentais até ao século 12. Em virtude de suas recomendações sobre estudo e escrita nos mosteiros, Benedito contribuiu notavelmente para o enriquecimento da vida espiritual durante a Idade Média.

Isidoro de Sevilha apareceu algum tempo mais tarde (m. 636). Mais do que qualquer outro, reuniu o conhecimento cientifico e teológico daquela época e o tornou acessível às gerações seguintes.

Numa época de decadência religiosa e de penúria material, um ex-prefeito municipal

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e monge (em Roma) foi eleito papa em 590. Seu nome era Gregório. Esta é sua própria descrição da igreja, para cuja direção fora eleito: «É um navio velho, atacado duramente pelas ondas, pressionado por todos os lados pelo mar enfurecido; o ranger das pranchas apodrecidas nos adverte sobre um naufrágio iminente» (Epístola l, 4). Na história do dogma, o pontificado de Gregório geralmente é considerado a linha divisória entre a igreja antiga e a Idade Média. O fundamento do papado medieval foi em parte lançado durante os anos de seu poderoso reinado. Mas as contribuições de Gregório também foram de significado fundamental no campo da teologia.

Gregório aceitou a doutrina da graça de Agostinho, em forma simplificada, e a transmitiu à Idade Média. Ensinou que o amor e a graça de Deus precedem a ação do homem. O mérito não precede a graça, uma vez que a vontade humana é incapaz de fazer o bem, A graça preparatória transforma a vontade. Na realização daquilo que é bom, a graça coopera com o livre arbítrio. O bem, portanto, pode ser atribuído tanto a Deus como ao homem, a «Deus por causa de sua graça preveniente, e ao homem por causa de seu livre arbítrio». O objetivo da graça é o de produzir boas obras, que podem ser recompensadas (na forma da regeneração e salvação do homem). A idéia de mérito e recompensa é pressuposto fundamental aí, bem como na teologia medieval em geral.

A rejeição de todo mérito anterior à graça dá origem à idéia da predestinação. Deus chamou alguns, mas deixou os outros em sua corrupção. O conceito de presciência é, em certo sentido, negado: pois no que respeita a Deus, não há distinção entre presente e futuro; aquilo que está para vir é, para Deus, o presente. Daí resulta que a questão se refere a conhecimento ao invés de tratar-se de presciência. A exposição de Gregório da doutrina da expiação também serviu de modelo para vários teólogos medievais, entre eles Anselmo e Abelardo. Gregório apresentou Cristo como exemplo para os homens, bem como sendo aquele que ofereceu o sacrifício substitutivo e expiatório a Deus, pelos pecados dos homens. Ele é o mediador entre Deus e os homens, que levou sobre si a punição pela culpa dos homens. A morte de Cristo é também descrita da seguinte maneira: o diabo excedeu-se a si mesmo. A natureza divina é comparada a um anzol oculto no corpo de Cristo, que o diabo engoliu sem notar quem era aquele que ele atacara.

O aspecto sacrificai da expiação associava-se à idéia que a ceia do Senhor é um sacrifício, em que a morte de Cristo é repetida misteriosamente a favor de nós. «Se ele ressurgiu, não morre mais, de modo que a morte não tem mais qualquer domínio sobre ele; apesar disso, ele nos é trazido novamente em sua vida imortal e incorruptível através do mistério do santo sacrifício, seu corpo é aí dado e recebido para a salvação dos homens, e seu sangue é derramado, não agora por mãos de descrentes, mas nas bocas dos fiéis» (Diálogo IV, 58). A natureza sacrificai da ceia do Senhor também é descrita em termos do sacrifício dos corações contritos por parte dos fiéis.

Em sua doutrina da penitência, Gregório desenvolveu o conceito de satisfação como meio pelo qual a punição eterna podia ser mitigada ou removida; também apresentou suas idéias sobre o purgatório nesta conexão. Era característico de Gregório, falando em geral, combinar a melhor tradição teológica (que tentou preservar) com elementos tomados da piedade popular. Alguns destes eram de natureza um tanto crassa ou vulgar, mas mesmo estes foram sancionados por Gregório. Apesar disso, no entanto, Gregório, o Grande, deve ser incluído, sem sombra de dúvida, entre os mais importantes daqueles que lançaram os fundamentos para a teologia medieval e para a cultura medieval em geral.

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Calvino

A influência de Zwinglio permaneceu bastante limitada. O mesmo não aconteceu com a teologia de João Calvino, que gradualmente tornou-se definitiva para toda a tradição reformada.

Um dos predecessores de Calvino foi o já mencionado Martinho Bucer, reformador de Estrasburgo, que combinou elementos de Lutero com os o humanismo bíblico de Erasmo em sua teologia. Na disputa em torno da Ceia do Senhor entre Lutero e Zwinglio, ele tomou posição mediadora. A ordem congregacional intitulada em Estrasburgo também lembra a desenvolvida mais tarde por Calvino. Calvino viveu em Estrasburgo durante os anos de 1538-41 e impressionou-se profundamente com a teologia e a organização eclesiástica Bucer. Algum tempo depois, Bucer se encontrava exilado na Inglaterra, sua influência ali se fez sentir na reorganização da Igreja Anglicana sob rei Eduardo VI.

João Calvino, nascido na França em 1509, recebeu ampla educação, inclusive no campo do direito. No que se refere à teologia evangélica, Calvino foi, em grande parte, autodidata; chegou a conhecer as idéias de Lu-D principalmente através de livros. Por causa de sua crença, Calvino viu-se forçado a fugir da França em 1534; foi a Basileia, onde em 1536. Usando medidas ríspidas, Calvino os severa disciplina à igreja em Genebra. Também elaborou nova organização congregacional, baseada num colégio de presbíteros que agia intima cooperação com as autoridades seculares. Faleceu em Genebra 1564.

Embora Calvino em alguns sentidos perpetuasse a tradição iniciada por Zwínglio e Bucer (notadamente no campo da organização eclesiástica), não podemos menosprezar o fato de Calvino considerar-se acima de tudo um fiel seguidor de Lutero, alguém que representava basicamente o mesmo ponto de vista que o mantido por Lutero. Mas tal como acontece com Melanchthon, a teologia de Calvino leva impressa uma marca diferente da de Lutero e também revela contribuições de outras fontes. Alguns dos con-ceitos básicos de Calvino serão sintetizados no que segue.

A idéia da glória de Deus ocupa lugar central na teologia de Calvino. Em sua opinião, a glória de Deus é o alvo de todos os planos de Deus para o mundo e para a salvação, bem como o da atividade humana. (Deus) estabeleceu o mundo inteiro com esta finalidade, que possa servir de cenário para sua glória. As vidas dos cristãos devem servir para aumentar a glória de Deus. Sujeição absoluta à vontade de Deus e obediência a sua lei são os fundamentos da fé calvinista. O cristão deve demonstrar sua fé, e ao mesmo tempo promover a glória de Deus, trabalhando laboriosamente na ocupação para a qual foi chamado, cooperando ativamente nas questões pertinentes ao reino de Deus.

Intimamente associada à idéia da glória de Deus na mente de Calvino estava a doutrina da providência de Deus: tudo o que acontece é impelido pela vontade onipotente de Deus e por sua ativa cooperação. A onipotência divina também inclui a atividade humana, mesmo quando é má. Será então possível qualquer tipo de liberdade? Calvino respondeu dizendo que a providência de Deus não opera como coerção externa (coactio externa); quer apenas dizer que tudo o que acontece se encontra debaixo de uma necessidade mais elevada. Portanto não exclui a liberdade psicológica nas ações humanas.

Que Deus age nas coisas más que acontecem não deve, segundo Calvino, entender-se simplesmente como permissio; origina-se antes na vontade ativa de Deus, que não somos capazes de compreender. Portanto, Deus desejou a queda de Adão, assim como decide que alguns homens se perderão e os priva de seu Espírito.

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Com isto já tocamos no conceito calvinista de predestinação, que muitas vezes é denominado a «doutrina central» do calvinismo. Assim como todo curso do mundo se encontra sob a providência de Deus, assim também a salvação ou condenação de cada homem depende da vontade onipotente e predestinação de Deus. Nas palavras do próprio Calvino: «Denominamos predestinação o decreto eterno de Deus, pelo qual decidiu o que acontecerá a cada homem. Pois não foram criados todos nas mesmas condições: alguns são predestinados à vida eterna, enquanto outros à condenação eterna. E uma vez que o homem é criado para alcançar um destes alvos, dizemos que é predestinado à vida ou à morte.»

Isto, pois, é dupla predestinação — tanto para a salvação como para a condenação. Calvino enfatizou que a rejeição também depende da eterna predestinação de Deus, fato que não deve ser ignorado do púlpito. Mesmo a condenação e a punição eterna dos maus servem para glorificar a Deus. Deus não é a fonte do mal, mas o emprega de modo secreto e inescrutável. Deus permanece justo mesmo quando rejeita alguém, mas esta justiça transcende todas as normas humanas. Por este motivo é incompreensível; faz parte da natureza oculta de Deus.

Calvino julgava que este conceito de predestinação devia apoiar e não destruir a certeza a respeito da própria predestinação. Torna-se evidente, desta maneira, dizia Calvino, que a salvação do homem não se baseia no que ele próprio faz mas num decreto eterno. Em outras palavras, a dupla predestinação segundo o modo de pensar de Calvino (como de Agostinho) é a garantia final da salvação somente pela graça. Além disso, o decreto eterno deve estar intimamente associado com o plano de salvação que é levado a efeito no tempo. O chamado e a justificação são sinais evidentes que se é um dos eleitos. De maneira correspondente, os rejeitados encontram um sinal de sua condição no fato que são excluídos do conhecimento de Cristo ou da santificação.

O conceito de predestinação de Calvino pressupõe uma justiça divina que vai além de tudo o que o homem concebe como justo. A ordem divina não pode ser medida pela mesma medida que se usa para a ordem da criação; nem tampouco pode ser perscrutada pela razão humana. Mas Calvino ao mesmo tempo também afirmava que há uma conexão clara entre a justiça divina e a humana. Na obra da criação o homem possui um teste-munho de Deus, e por meios racionais pode atingir certo conhecimento dele — o assim chamado conhecimento natural de Deus. De modo semelhante, a lei que governa a criação é cópia da justiça eterna de Deus. Conhecendo esta lei o homem chega a perceber a lei eterna de Deus e sua justiça.

Ao mesmo tempo, portanto, há semelhança e contraste ou dessemelhança entre o divino e o que é criado. Esta linha de pensamento, que corresponde ao conceito medieval, tomista, da analogia do ser (analogia entis), também contribuiu para a doutrina da predestinação de Calvino. A justiça que é expressa pelo fato de Deus rejeitar homens com base em seu decreto eterno, é inescrutável ao homem e está em oposição ao que normal-mente denominamos justiça. Apesar disso, esta mesma rejeição expressa a justiça divina e concorda com a justiça de Deus. Que Deus se coloque completamente fora da lei (sendo assim exiex), ou que a predestinação devesse ser decretada de modo cegamente arbitrário, está fora de questão. Ao se aquilatar a posição de Calvino na história da teologia, a transição entre as idéias aqui apresentadas é importante ponto a ser lembrado. A doutrina da dupla predestinação associa Calvino à teologia de Lutero, enquanto o conceito de analogia nos lembra

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enfaticamente a Idade Média e, acima de tudo, a tradição tomista. A influência do conceito de analogia foi responsável pelo fato de ser a doutrina da predestinação de Calvino diferente da de Lutero. Calvino também empregou esta doutrina de modo diverso. Relacionou-a com a própria aquisição da salvação, quanto Lutero, em situação correspondente, ressaltou que é preciso afastar-se do Deus oculto e ater-se à vontade revelada de Deus, à expiação obtida por Cristo, que é válida para todos.

Foi neste ponto que a tradição luterana rejeitou a doutrina calvinista da predestinação: em oposição ao conceito de dupla predestinação de Calvino, Lutero apontava às passagens bíblicas que falam do desejo universal de Deus de salvar, ou de reconciliar consigo o mundo inteiro. (Cf. 1 Tm 2.4; 1 Jo 2.2).

Em sua doutrina da predestinação como alhures, Calvino partia acima de tudo do princípio escrituristico: a teologia deve apresentar o que está registrado na Bíblia. Seu conceito de inspiração bíblica ele descrevia em termos de ditado feito pelo Espírito Santo, transmitido infalivelmente pelos que escreveram as palavras da Escritura. Calvino costumava ser considerado o criador da doutrina ortodoxa da inspiração. Isto não corresponde aos fatos, porque teorias semelhantes já tinham sido propostas na igreja antiga. Na tradição calvinista posterior, a doutrina da inspiração recebeu forma diferente, mais mecânica que na ortodoxia luterana. Se a origem desta doutrina mecânica da inspiração pode ser encontrada já em Calvino ou não, é problema debatido.

O Antigo Testamento tinha posição diferente para Calvino do que tem na teologia luterana. Calvino mantinha que o aspecto cerimonial da lei mosaica foi abolido com o aparecimento de Cristo. Mas, por outro lado, ensinava que a lei moral do Antigo Testamento se aplica também aos cristãos. Estão subordinados a ela e devem regulamentar suas vidas de acordo com os preceitos que podem ser extraídos da proclamação escriturística da lei. A sociedade também deve organizar-se de acordo com os princípios da lei bíblica. Até certo ponto, portanto, no pensamento de Calvino, atribuía-se validez permanente à lei mosaica. Apesar de sua atitude face à lei, Calvino salientava com grande ênfase que nossa justiça perante Deus não consiste em obras da lei, nem na regeneração que é efetuada através do Espírito. Criticava tanto Agostinho como Osiandro neste ponto. Em sua própria teologia, Calvino enfatizava vigorosamente a forma forense ou imputativa da justificação.

Havia em Calvino a tendência de tornar a santificação o objetivo da justificação. A santificação, por sua vez, era considerada meio de aumenta a glória de Deus. O homem deve viver em rigorosa concordância com lei divina e deste modo dar testemunho de sua fé e fortalecer a certeza i ser um dos eleitos. A lei, portanto, é a norma da vida santificada. A de Deus é eterna e direta expressão de sua vontade. Portanto, deve ferir-se mesmo aos que renasceram, e serve de norma para suas vidas. Submissão à vontade divina é o alvo da santificação. A piedade calvinista se caracteriza por rigorosa temperança e por j trabalho árduo na vocação terrena. Esse tipo de vida tem sido chamado S «ascetismo mundano», que substituiu o ascetismo monástico medieval para os protestantes. No calvinismo uma atitude prática, responsável, foi combinada com forte ênfase no fato que os cristãos são estrangeiros neste inundo e que a vida no além é o alvo da existência humana e a «única coisa necessária».

Calvino fazia distinção entre igreja visível e invisível. Esta é composta pelos eleitos. A igreja visível é constituída por Palavra, sacramentos e disciplina eclesiástica. A

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organização congregacional deve seguir certas instruções derivadas da Bíblia (inclusive os quatro ofícios: pastor, professor, presbítero e diácono). A igreja tem também, cuidadoso controle da moral e dos costumes. Espera-se que as autoridades seculares colaborem na manutenção da disciplina eclesiástica. Sua tarefa não é só a de manter a ordem pública mas também a de apoiar os interesses da verdadeira religião. As autoridades são servas de Deus e estão subordinadas ao oficio magisterial em todas as questões relativas ò religião e à moralidade.

A constituição eclesiástica modelo que Calvino idealizou para ser empregada em Genebra caracterizava-se por rígida organização e escrupuloso controle da moral e dos costumes. A maneira implacável como as autoridades agiram contra a heresia não foi o resultado de qualquer ânsia de poder despótico da parte de Calvino, mas antes o resultado de seu zelo intransigente pela verdade evangélica. O julgamento de heresia mais co-nhecido (mas de maneira alguma o único) na Genebra de Calvino foi o que condenou Miguel Serveto à morte por recusar-se a aceitar a confissão da igreja no tocante à Trindade.

Além da predestinação, a doutrina da ceia do Senhor tem sido o ponto mais controverso entre o calvinismo e o luteranismo. O que Calvino objetava na posição luterana era, acima de tudo, que nela se considerava o pão como sendo o corpo de Cristo em sentido substancial, sem permitir-se uma interpretação figurativa das palavras da instituição. Calvino também rejeitou a idéia que o corpo de Cristo é infinito e está presente em toda parte, sem limitações locais.

Contudo, ao mesmo tempo, Calvino de maneira alguma defendia um conceito puramente simbólico da ceia do Senhor. Para ele era realmente uma questão de participar do corpo e do sangue de Cristo. Mas em vista do fato que o corpo de Cristo está no céu, localmente limitado, não pode estar presente nos elementos de modo físico, «substancial*. Também, uma presença física nem é necessária no sacramento. O Espirito de Cristo é capaz de unir os fiéis com Cristo no céu. Pois o Espirito não tem limites, e pode reunir aquilo que está separado pelo espaço. Por intermédio da mediação do Espírito, portanto, os fiéis participam do corpo e do sangue do Senhor, e assim são trazidos à vida. Esta comunhão ocorre na ceia do Senhor sob os símbolos de pão e vinho.

Como já foi dito, a perspectiva básica de Calvino com respeito à ceia do Senhor era diferente da de Lutero. Concebia o céu, onde o corpo de Cristo está desde a ascensão, como um lugar definitivo, restrito, além da esfera terrestre. O corpo de Cristo não pode participar do infinito que caracteriza a divindade; está localmente limitado. Quando se fala da presença do corpo de Cristo na ceia do Senhor, ou se diz que os fiéis participam dele, isto não pode referir-se à presença física ou ao comer físico do corpo e sangue de Cristo, mas apenas à presença espiritual ou ao comer espiritual. Trata-se da comunhão da fé ou do Espirito com o Cristo que subiu ao céu.

Com base nas premissas de Calvino é preciso supor que apenas os fiéis recebem os dons outorgados na ceia do Senhor. E esta participação ocorre através do comer espiritual, isto é, mediante a comunhão da fé com Cristo, simbolizada pela refeição sacramental.

Por último, Calvino objetou à interpretação literal das palavras da instituição. A seu próprio modo, Calvino certamente acreditava na presença real de Cristo na ceia do Senhor, mas os elementos eram considerados apenas símbolos da comunhão espiritual ou comunhão que pertence exclusivamente à esfera da fé.

A distinção rigorosa entre o espiritual e o físico, portanto, caracteriza o ponto de vista de Calvino, posição que posteriormente foi expressa na fórmula.

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• URETA, Floreal – Elementos de Teologia Cristã, Rio de Janeiro, JUERP, 1995

• LANGSTON, A.B. – Esboço de Teologia Sistemática, 12 impressão Rio de Janeiro, Ed. JUERP,1999.

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AVALIAÇÃO DO MÓDULO: HISTÓRIA DA TEOLOGIA 1. Fale sobre a teologia de Ário, apresentada e discutida no concílio de Nicéia, em 325: 2. Quem são os “Pais Apostólicos”? Cite pelo menos 3. 3. Quem eram os apologistas? Que importância tiveram no desenvolvimento da teologia,

no decorrer dos séculos? 4. Relate como era o cristianismo judaico, também conhecido como “ebionismo”.

TRABALHO – VALOR: 6 PONTOS: Faça uma breve pesquisa sobre a vida de Agostinho. Quais as principais doutrinas por ele defendidas. OBS: Não se esqueça de colocar nome em sua avaliação

a) O aluno deverá enviar a avaliação para o e-mail: [email protected]@[email protected]@esutes.com.br

b) O tempo para envio da avaliação corrigida para o aluno é de até 15 dias após o recebimento da avaliação Enquanto a prova é corrigida o aluno já pode solicitar NOVONOVONOVONOVO MÓDULO MÓDULO MÓDULO MÓDULO

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DICAS DE ESTUDO ON-LINE 1- Procure utilizar em seu computador um protetor de tela para minimizar a claridade do monitor. Temos que cuidar de nossa visão 2- Se for estudar a noite, duas dicas: a) Não deixe para estudar muito tarde, pois o sono pode atrapalhá-lo em sua concentração; b) Não deixe a luz do ambiente em que estiver, apagada, pois a claridade da tela do computador torna-se ainda maior, provocando dor de cabeça e irritabilidade. 3- Pense na possibilidade de imprimir sua apostila, pois pode ser que isso dê a opção, por exemplo, de carregá-la para onde quiser e de grifar com caneta, partes que ache importante.