História da Ciência como instrumento de reflexão metodológica no ensino de Biologia

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING CENTRO DE CINCIAS EXATAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO PARA A CINCIA E A MATEMTICA

    VERNICA KLEPKA

    HISTRIA DA CINCIA COMO INSTRUMENTO DE REFLEXO METODOLGICA NO ENSINO DE BIOLOGIA

    MARING PR 2014

  • VERNICA KLEPKA

    HISTRIA DA CINCIA COMO INSTRUMENTO DE REFLEXO METODOLGICA NO ENSINO DE BIOLOGIA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao para a Cincia e a Matemtica do Centro de Cincias Exatas da Universidade Estadual de Maring, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao para a Cincia e a Matemtica. rea de concentrao: L4 Histria, Epistemologia e tica da cincia.

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Jlia Corazza.

    MARING PR 2014

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maring PR., Brasil)

    Klepka, Vernica

    K64h Histria da cincia como instrumento de reflexo

    metodolgica no ensino de biologia/ . - Maring, 2014.

    195 f. il. : figs., tabs., color.

    Orientador: Prof.a. Dr.a. Maria Jlia Corazza.

    Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Maring, Centro de Cincias Exatas, Programa de Ps-

    Graduao em Educao para a Cincia e a Matemtica,

    2014.

    1. Histria da Cincia-Ensino de Cincias. 2.

    Descoberta da Clula. 3. Teoria de Galperin. 4.

    Ensino de Biologia. I. Klepka, Vernica, orient. II.

    Universidade Estadual de Maring. Centro de Cincias

    Exatas.Programa de Ps-Graduao em Educao para a

    Cincia e a Matemtica. III Ttulo.

    CDD 22. ED.507

    JLM001623

  • Para todos os professores aos quais dirijo apropriando-me das palavras de Karl Ludwig Von

    Bertalanffy:

    Gostaria de render homenagem a um personagem meio ridculo: o professor. O lugar que lhe reservado na sociedade atual um dos mais

    inferiores. O status do professor inferior ao do proprietrio de armazm de artigos baratos, est

    mais distanciado do status do mdico em seu papel de bruxo moderno, do status de uma cantora de segunda

    categoria, de um manequim ou de um lutador de boxe. A nica exceo para o professor que ajuda a

    fabricar a superbomba ou que descobre um procedimento eficaz para aumentar as vendas de um produto desodorante. De pouco pode vangloriar-se o

    pobre professor... no entanto, pode vingar-se sigilosamente. So as ideias que movem as coisas.

    Neste sentido, os professores manipulam, sem serem vistos, os cordes dos fantoches da histria, forjam as

    opinies, os valores e descobrem as solues.

  • Agradecimentos

    Costuma-se dizer que o orientador, uma vez sendo participante da pesquisa, no entra nesse rol de

    gratido. Mas h uma grande diferena entre um simples orientador e um grande mestre. Mestres no

    encantam por suas conquistas ou batalhas, ao longo do tempo esquecidas, mas pelo seu eterno construir, o

    outro e para o outro. Nesse reconhecimento, minha orientadora Maria Jlia Corazza foi uma grande

    companheira, mais que mestre, foi em suas devidas horas amiga e me, e contribuiu de tal forma a tornar

    esta pesquisa, a princpio uma pedra bruta, em belos diamantes traduzidos em palavras.

    Agradeo ao meu companheiro Fagner de Souza, que h quase uma dcada tem sido o amigo de

    todas as horas, aquele que me mostra a cada dia que nossa dura caminhada pelo aprender uma viagem sem

    fim, cheia de belas paisagens.

    Aos familiares que compreenderam as longas ausncias e angustias sempre apoiando a caminhada:

    meus pais Elisa Biancato Klepka e Joo Srgio Klepka, minha irm Gislle Klepka e meus sogros Laura

    Belizrio de Souza e Angelo Benedito de Souza.

    Entre as inmeras amizades construdas, destaco Bruno Marcondes Umbezeiro, ao qual agradeo

    pelas discusses seja da minha ou da sua pesquisa, sempre amparadas pelo caf, e que proporcionaram grande

    crescimento intelectual.

    Agradeo amiga Brbara Cndido Braz pela prestatividade em todos os aspectos.

    Ana Paula Giacomassi Luciano e esposo Arquimedes pela incondicional amizade e sbias

    palavras de ensinamentos de vida e tambm a respeito da Fsica.

    Agradeo ainda a Rosana Franzen Leite pela parceria nos trabalhos e reflexes filosficas sobre o

    tempo e Claudia Mikie Kato pela ajuda na busca por professores da Rede Estadual para a pesquisa e nas

    referncias bibliogrficas compartilhadas.

    Agradeo muito s amigas e companheiras de trabalho Rosangela Xavier Fujii e Beatriz Cordioli

    pelo auxlio na constituio dos dados e presena em todas as etapas da pesquisa no Pibid.

    Sandra Grzegorczyk e secretria Isabela pelo atendimento prestativo e esclarecedor no auxlio

    s inmeras questes burocrticas da pesquisa, fornecimento de materiais necessrios, alm da confiana nos

    emprstimos de equipamento de filmagem.

    Agradeo, ainda, aos professores do PCM pelas reflexes fomentadas durante as disciplinas que

    enriqueceram grandemente minha formao. Em especial, Prof. Neide Maria Michellan Kiouranis pelas

    vrias explicaes metodolgicas e sugestes que s vieram a melhorar o delineamento desta pesquisa.

    Ao professor Dr. lvaro Lorencini Jnior por se dispor a acompanhar a pesquisa e colaborar com

    reflexes enriquecedoras.

  • Ao professor Dr. Renilson Jos Menegassi por mostrar as incoerncias do trabalho, mas tambm dar

    suporte e condies para que encontrssemos o caminho correto a seguir.

    professora Dra. Maria Elice Brzezinski Prestes por compreender nossas limitaes e contribuir

    impecavelmente em seus pareceres.

    professora Dr. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins por aceitar participar, ainda que no fim da

    pesquisa, com tanta disponibilidade e considerao.

    Ao professor Dr. Fumikazu Saito por apresentar um fascinante percurso histrico da cincia e,

    ainda, nos auxiliar com os pontos obscuros da Micrographia.

    Meu agradecimento se estende tambm ao Igor Corazza pelo auxlio na reviso da traduo de

    Hooke.

    Ao professor Dr. Andr Luis de Oliveira por auxiliar, acompanhar e apoiar as reflexes e

    constituies de dados no Pibid, direcionando as discusses quando necessrio e sendo bastante amigo.

    tcnica D. Olga Fracaro da Silva por disponibilizar e auxiliar na montagem dos equipamentos da

    aula prtica no Pibid.

    Aos pibidianos pelas contribuies e prestatividade em participar da pesquisa. Em especial ao

    Bruno Betiati pelas ricas contrapalavras que fizeram muita falta no decorrer do percurso.

    CAPES pelo subsdio pesquisa.

    E como no poderia deixar de ser, Biologia que revela novos encantos a todos aqueles que desejam

    conhec-la e compreend-la. Como parte dessa paixo, agradeo a meu companheirinho por todo amor e

    carinho devotados ao longo dos ltimos sete anos, nosso querido Kiko.

    Agradeo, enfim, a todos aqueles que estavam presentes direta ou indiretamente nessa caminhada e

    que em poucas linhas no teria condies de manifestar todo meu reconhecimento.

    Meu muito obrigada!

  • A cincia s vezes se v como impessoal, como pensamento puro, desvinculado de suas

    origens histricas e humanas. E, frequentemente, ensinada como se assim fosse

    de fato. No entanto, a cincia representa um empreendimento humano em toda a sua extenso, um desenvolvimento humano,

    orgnico e progressivo, com impulsos e paradas repentinas e, tambm, desvios bizarros. Ela cresce de seu passado mas nunca o ultrapassa,

    como ns mesmos no ultrapassamos nunca nossa infncia.

    Oliver Sacks

  • KLEPKA, Vernica. Histria da Cincia como instrumento de reflexo metodolgica no Ensino de Biologia. 2014, 195 f. Dissertao (Mestrado em Educao para a Cincia e a Matemtica) Universidade Estadual de Maring, Maring, 2014.

    RESUMO

    A Histria da Cincia constitui-se de uma prtica epistemolgica fecunda para o exerccio filosfico e porque no tambm didtico da Cincia. A reflexo sobre o uso da Histria da Cincia no ensino vem apresentar possibilidades para que a abordagem histrica seja includa aos contedos do Ensino de Cincias de maneira a possibilitar o reconhecimento da atividade cientfica como um processo permeado de influncias. Refletindo as contribuies que a Histria da Cincia tem a oferecer ao ensino, a presente pesquisa aborda os paralelos desse enfoque sob a perspectiva sociointeracionista. Especificamente, utiliza como suporte de insero a Teoria de Assimilao por Etapas de Galperin. Teoria que considera o aprendizado resultante de aes organizadas para a formao de conhecimentos e busca partir dos domnios que os alunos j possuem em prol a um ensino prospectivo, transformador e qualitativo com potencial para novos saberes. Objetivou-se compreender como os sentidos a respeito da Histria da Cincia so constitudos, apropriados e utilizados na prtica pedaggica de estudantes de formao inicial em Cincias Biolgicas. A pesquisa foi desenvolvida com licenciandos da Universidade Estadual de Maring, Paran, Brasil, pertencentes ao grupo de estudos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao a Docncia em Biologia (Pibid). A interveno utilizou como suporte metodolgico a Teoria de Assimilao por Etapas de Galperin e como respaldo terico o episdio histrico de Robert Hooke e sua observao da cortia, contida na obra Micrographia. Fizeram parte dos dados de anlise, os discursos provenientes das entrevistas iniciais e finais; as discusses fomentadas durante a replicao do episdio histrico de observao da cortia; as discusses sobre a traduo da descrio original de Micrographia e as atividades de anlise epistemolgica e de trechos de livros didticos de Biologia. A anlise dos sentidos, realizada a partir do dispositivo de Anlise Dialgica do Discurso do Crculo de Bakhtin mostrou que os licenciandos concebem de maneira diversificada a atividade cientfica, ora de maneira neutra ora repleta de influncias. As apropriaes do discurso da Histria da Cincia foram aplicadas nas identificaes de contextualizaes equivocadas no livro didtico quanto ao episdio da suposta descoberta da clula por Hooke. Na prtica pedaggica desses licenciandos, o uso do discurso da Histria da Cincia valorizado e reconhecido como necessrio, porm, seu uso limitado quando ideologias constitudas pelo cotidiano assumem a postura profissional docente.

    Palavras-chave: Descoberta da Clula. Teoria de Galperin. Ensino de Cincias.

  • KLEPKA, Vernica. History of Science as an instrument of methodological reflection in the Teaching of Biology. 2014, 195 f. Dissertation (Masters in Education for Science and Mathematics) State University of Maring, Maring, 2014.

    ABSTRACT

    The history of science constitutes of a fecund epistemological practice for philosophical exercise and why not also didactic Science. A reflection on the use of the History of Science in teaching hereby presents possibilities for the historical approach be included to the contents the teaching of science in order to enable the recognition of scientific activity as a process influences permeated. Reflecting the contributions that the History of Science has to offer to education, this research discusses the parallels of this approach in the sociointeracionista perspective. Specifically, bases its insertion Theory of Assimilation by Steps Galperins. Theory that considers that learning is a result of actions organized for the formation of knowledge and search from the domains that students already possess in favor a prospective, transformer and qualitative education with potential for new knowledge. It was aimed to comprehend how the senses about the history of science are constituted, appropriate and used in the teaching practice of students in initial formation in Biological Sciences. The research was conducted with undergraduates at the State University of Maringa, Parana, Brazil, belonging to the study group's Scholarship Program Initiation to Teaching in Biology (Pibid). The intervention used as a methodological support for the Theory of Assimilation Steps Galperin and theoretical support as historical episode Robert Hooke and his cork notice contained in the work Micrographia. Were part of the data analysis, the speeches from the initial and final interviews; discussions fostered during replication of the historical episode cork notice; discussions on the translation of the original description of Micrographia and activities of epistemological analysis and excerpts from Biology textbooks. The analysis of the senses, made from the Dialogic Discourse Analysis device of the Bakhtin Circle has shown that undergraduates conceive a diversified way scientific activity, sometimes neutrally now full of influences. The appropriation of the discourse of history of science were applied to the identification of mistaken in textbook contextualization as the episode the presumed discovery of the cell by Hooke. In pedagogical practice these undergraduates, using the discourse of history of science is valued and recognized as necessary, however, its use is limited when ideologies constituted by the everyday take on teacher professional attitude.

    Keywords for this page: Discovery of the cell. Galperins Theory. Science Teaching.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 ..................................................................................................................................... 92 Figura 2 ................................................................................................................................... 119

    Quadro 1 ................................................................................................................................... 89 Quadro 2 ................................................................................................................................... 90 Quadro 3 ................................................................................................................................... 90 Quadro 4 ................................................................................................................................. 126

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 13 CAPTULO I -A CINCIA NA PERSPECTIVA HISTRICA: DO ILUMINISMO AO SCULO XX. BREVES CONSIDERAES. .................................................................... 19

    1.1 O respaldo histrico no Iluminismo. ...................................................................... 19 1.2 Histria da Cincia no Ensino. .............................................................................. 24

    CAPTULO II -ESTUDO DE CASO: A REDESCOBERTA DA CORTIA POR MEIO DA OBSERVAO DE ROBERT HOOKE. ...................................................................... 32

    2.1 O contexto histrico de Hooke: faces de uma Revoluo Cientfica. .................... 33 2.2 Reflexes construdas sobre os poros da cortia.. .................................................. 45 2.3 Desconstruindo a relao observao das clulas por Hooke e o estabelecimento da Teoria Celular ............................................................................................................... 51

    CAPTULO III-O VALOR DA LINGUAGEM E DAS INTERAES SOCIAIS NA HISTRIA DO HOMEM. ..................................................................................................... 61

    3.1 Vygotsky e as bases para a compreenso do homem. ............................................ 63 3.2 Histria da Cincia ensinada sob a perspectiva sociointeracionista: paralelos possveis. ....................................................................................................................... 68 3.3 A Teoria de Assimilao por Etapas de P. Ya Galperin. ........................................ 75

    3.3.1 As etapas da Teoria de Assimilao de Galperin. ........................................... 77

    CAPTULO IV-A ANLISE DIALGICA DO DISCURSO: EMBASAMENTOS TERICOS. ............................................................................................................................ 81 CAPTULO V -O DISCURSO COMO OBJETO DE ANLISE. ..................................... 86

    5.1 Questes norteadoras e objetivos da pesquisa. ....................................................... 86 5.2 O contexto das enunciaes: sujeitos da pesquisa. ................................................. 87

    5.2.1 Controle prvio. .............................................................................................. 92 5.2.2 Preparao motivacional. ................................................................................ 92 5.2.3 Base Orientadora da Ao - B.O.A. ................................................................ 93 5.2.4 Contato material. ............................................................................................. 94 5.2.5 Compartilhamento verbal. ............................................................................... 95 5.2.6 Possibilitando a internalizao. ....................................................................... 96 5.2.7 Controle final. ................................................................................................. 96 5.2.8 Constituio dos Blocos Analticos. ............................................................... 97

  • CAPTULO VI -ANLISES: INTERPRETANDO PALAVRAS OUTRAS. .................. 98 6.1 Controle Prvio. ...................................................................................................... 98

    6.1.1 Natureza da Cincia. ....................................................................................... 98 6.1.2 Histria da Cincia enquanto arcabouo contextual. .................................... 104 6.1.3 Interface Histria da Cincia e Ensino. ......................................................... 110

    6.2 Interveno realizada. ........................................................................................... 116 6.2.1 Observao da cortia na lupa. ..................................................................... 116 6.2.2 Discusso sobre o experimento. .................................................................... 127 6.2.3 Discusso sobre a observao original de Hooke. ........................................ 133 6.2.4 Anlise epistemolgica da produo e contexto de Hooke........................... 141 6.2.5 Anlise do livro didtico. .............................................................................. 145

    6.3 Controle Final. ...................................................................................................... 155 6.3.1 Sentidos atribudos Histria da Cincia e possibilidade de aplicao em sua prtica pedaggica.................................................................................................. 155 6.3.2 Respaldo da interveno na construo de sentidos sobre o episdio retratado da Histria da Biologia. ......................................................................................... 158

    CONCLUSO ....................................................................................................................... 161 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 164 APNDICES ......................................................................................................................... 177

    Apndice 1 Traduo: Observao XVIII da Obra Micrographia ......................... 178 Apndice 2 Traduo: inquritos feitos por Robert Hooke a respeito do ar............ 183 Apndice 3 Roteiro de Entrevista Inicial. ................................................................ 186 Apndice 4 - Atividade Motivacional ......................................................................... 187 Apndice 5 Estabelecimento da Base Orientadora da Ao. ................................... 188 Apndice 6 Anlise Epistemolgica. ....................................................................... 189 Apndice 7 - Anlise do Livro Didtico. .................................................................... 190 Apndice 8 Roteiro de Entrevista Final. .................................................................. 190

    ANEXOS ............................................................................................................................... 192 Anexo 1 Texto original da Observao XVIII de Robert Hooke . .......................... 193 Anexo 2 - Recortes de Livros Didticos. .................................................................... 193

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    INTRODUO

    O conhecimento em cincia e sobre cincia um dos caminhos de se exercitar a razo, o realismo e a racionalidade, alm de possibilitar uma compreenso significativa, holstica e antidogmtica desse vasto campo de estudos (MATTHEWS, 1994).

    O interesse por uma viso holstica tem como ponto de partida o sculo XVIII, perodo em que a ento Filosofia Natural passou a assumir diferentes contornos tornando-se mais complexa e independente dos pressupostos filosficos da Igreja. Um dos objetivos em torno dessas mudanas correspondeu popularizao do conhecimento acerca do mundo e da nova cincia para as diferentes classes sociais. Esse panorama tambm foi determinante para o rumo dos novos campos da educao no perodo, onde a Filosofia Natural passou a ser reconhecida pela sua produo cultural e pelas diferentes aplicaes resultantes dela (MOURA; SILVA, 2009). Tais demonstraes de aplicabilidade foram interessando diferentes pblicos e

    [...] ao mesmo tempo em que as conferncias populares iam ganhando novos adeptos e mais pblico, circulavam pela sociedade obras sobre a filosofia natural com um teor didtico e acessvel. [...]. Juntamente com as conferncias, essas obras didticas colaboraram para tornar a Filosofia Natural mais prxima das pessoas, levando sociedade um conhecimento antes somente restrito s paredes das universidades e sociedades, como a Royal Society de Londres (MOURA; SILVA, 2009, p.5).

    Obras como as de Newton, por exemplo, foram objetos de recontextualizao em obras de estilo narrativo que no eram consideradas livros cientficos. Tratava-se de [...] um texto baseado em dilogos cotidianos entre duas pessoas, com um carter mais informal, direcionado a um pblico que almejava educar em Filosofia Natural, mas no possua os pr-requisitos para a leitura dos textos originais de Newton (MOURA; SILVA, 2009, p.6). Podemos observar, neste contexto, o incio de uma abordagem histrica da cincia mais aproximada do pblico geral.

    Matthews (1994) complementa que, por volta da metade do sculo XVIII, a incluso da cincia nos currculos, ainda chamada de Filosofia Natural, no foi bem aceita por compor-se de um ensino pautado em obras clssicas da humanidade. Tais obras eram consideradas adequadas apenas para a elite e no para todas as camadas sociais como havia sido proposta inicialmente. Debates em torno da clientela que deveria receber uma educao em cincia permearam o sculo seguinte e caracterizaram as discusses ocorridas na Gr-Bretanha. De um lado estavam alguns a favor de uma cincia acessvel para aqueles que no fossem familiarizados com os enfoques experimentais, e de outro lado, os adeptos de uma cincia mecnica e matematizada. A no concordncia entre esses movimentos provocou, em 1872, o desaparecimento da Filosofia

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    Natural tanto dos colgios britnicos quanto dos americanos. Com a lacuna, os colgios passaram ento a substituir a cincia por textos extremamente lotados de lgebra, matemtica e desenhos mecnicos. Essa nova cincia parecia no ter trazido melhora abordagem anterior e no final do sculo XIX ergueu-se uma nova bandeira em prol ao Novo Movimento no Ensino da Fsica1. Esse movimento defendia o retorno dos antigos cursos e obras da Filosofia Natural e sua abordagem aplicada com foco experimental, como retratado por Matthews (1994).

    A partir das primeiras dcadas do sculo XX puderam ser identificadas, nos Estados Unidos, trs tradies no Ensino da Cincia: a terica, que enfatizava a estrutura das disciplinas; a aplicada, que salientava o funcionamento das coisas do cotidiano; e a contextual, tambm chamada de tradio liberal, que contemplava o carter histrico e o desenvolvimento da cincia ao longo dos tempos. Alm de ressaltar suas implicaes para a vida e sociedade, explica Matthews (1994). No entanto, nenhuma delas era tida como exclusiva, apesar de apresentar, por meio da contextual, os contornos de uma educao em cincia pautados no reconhecimento de seus aspectos sociais e humanos. A Biologia, por exemplo, deixou de ser totalmente terica e passou a abordar aspectos ecolgicos e de bem estar humano devido s inmeras presses, entre elas a industrial, complementa o autor. Mas foi logo aps a Segunda Guerra Mundial que a contextualizao histrica foi utilizada com objetivo de promover o entendimento da sociedade sobre a funo social da cincia (MATTHEWS, 1994). A Guerra Fria e o incio da era digital tambm foram marcos para o uso da Histria da Cincia no ensino. Enquanto em meados da dcada de 1940 buscava-se reumanizar as cincias, que h tempo encontravam-se abaladas por seu uso indiscriminado a favor da raa pura (ariana), nas dcadas seguintes o objetivo era convencer de que a pesquisa e a cincia necessitavam de ateno, financiamento. J na era digital, a Histria da Cincia seria crucial para o desenvolvimento da tecnologia aliada alfabetizao cientfica entre seus usurios (SEROGLOU; ADURIZ-BRAVO, 2012; DICKSON, 1984).

    A partir da dcada de 1970 observamos em vrios pases um crescente interesse por estudos que buscassem contextualizar os aspectos histricos, filosficos e sociais da atividade cientfica como meio de tornar o Ensino de Cincias mais atrativo e significativo para os estudantes. Esses estudos intensificaram-se a partir da Primeira Conferncia Internacional em Histria e Filosofia da Cincia e Ensino de Cincias2 realizada na Flrida em 1989 e estendida para inmeros outros pases, sendo o Brasil palco desta conferncia em 2015. As discusses possibilitaram tambm dilogos que contriburam para o aparecimento do peridico Science & Education em 1992. Esse enfoque vem se refletindo no Brasil, onde as pesquisas tm 1 The New Movement in Physics Teaching.

    2 First International Conference on History and Philosophy of Science and Science Teaching.

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    demonstrado as contribuies da Histria da Cincia para o ensino. Entre as contribuies est a de promover a compreenso da atividade cientfica e sua intrnseca relao com a sociedade, alm de dar ao cientista seu carter humano. Com essas perspectivas, surgiu entre as dcadas de 1970 e 1980 uma linha de pesquisa em Ensino de Cincias, hoje tambm presente em inmeros cursos de Ps-Graduao, voltada para a aplicao da Histria da Cincia no ensino, de modo a promover a aprendizagem e possibilitar sua avaliao (PRESTES; CALDEIRA, 2009).

    Os documentos: Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000) e Diretrizes Curriculares da Cincia e da Biologia do Estado do Paran (PARAN, 2008) contemplam, entre as capacidades e habilidades necessrias para o estudante brasileiro, o reconhecimento do sentido histrico da cincia, a compreenso das relaes entre a produo cientfica e a sociedade nos seus aspectos econmicos e polticos, assim como os confrontos ocorridos entre teorias e pesquisadores ao longo de um dado perodo histrico.

    Uma vez preconizada nos suportes legais da educao, diferentes pesquisas direcionam-se s contribuies e mtodos de aplicao da Histria da Cincia em sala de aula nos seus mais variados nveis de ensino. Todavia, esses estudos apresentam lacunas, principalmente no que se refere a como utilizar a Histria da Cincia em sala de aula (ALMEIDA, 2012). Ressalta-se a falta de preocupao com aspectos didtico-metodolgicos para sua incluso como elemento enriquecedor do ensino, alm da ausncia de referenciais tericos da psicopedagogia que embasam a ao docente, de modo que possa articular o enfoque histrico ao processo de ensino e aprendizagem dos conhecimentos cientficos. Outros autores atentam ainda para a importncia da incluso da Histria da Cincia no ensino, como ponto de partida no processo, aliada valorizao do conhecimento prvio do aluno (TEIXEIRA; GRECA; FREIRE JR., 2009).

    A Histria da Cincia ao ser inserida no ensino como abordagem inclusiva, assim como sustentada por Matthews (1994), permite diferentes metodologias (JUSTINA, 2011; PESSOA JR, 1996). No entanto, parece ser nova a aproximao de estudos que buscam aliar o sociointeracionismo com a Histria da Cincia. Gehlen e Delizoicov (2012) defendem a incluso da Histria da Cincia no currculo do Ensino de Cincia, alegando que os problemas solucionados pela cincia ao longo da Histria fazem parte do processo de humanizao (GEHLEN; DELIZOICOV, 2012, p.76). Nessa perspectiva, o sociointeracionismo, enquanto considera a cincia como uma construo humana em dialtica, pode contribuir para efetivar mudanas nas vises errneas atribudas a ela como a neutralidade, dogmatismo e imutabilidade, formando pensamentos coerentes e relevantes para caracterizar a natureza da cincia na escola e na sociedade (RIVERO; WAMBA, 2011).

    Galperin (2009a), ao considerar que a aprendizagem e o desenvolvimento dependem da interao da palavra (falada ou escrita) e do comportamento, ou seja, aes sobre imagens e

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    objetos do mundo material e dilogo social, prope a Teoria da Assimilao por Etapas, que integra as ideias de diferentes tericos da Escola Sovitica, permitindo que a participao do aluno no processo educativo seja consciente e ativa. Esta Teoria caracteriza-se por possibilitar uma aprendizagem cognitiva, formativa e social (RAMALHO, 2009) e destaca-se tambm por priorizar a experincia social como pr-requisito para a ocorrncia de processos internos, no plano individual. Dessa forma, o social enriquecido [...] pela aprendizagem, que engendra a assimilao dos produtos, meios e tipos de atividade elaborados socialmente em um processo de interao social (NEZ, 2009, p. 96).

    Ao pressupor que as imagens formadas ilustram o modo como conhecemos o mundo e o representamos, os conhecimentos formados na escola se estruturam no apenas como reflexos reais de uma ao sobre determinado objeto, mas como forma de express-la por meio da comunicao. Assim, o ato de verbalizar deve caracterizar um dado significado, compartilhado pelas demais pessoas do mesmo convvio social (GALPERIN, 2009c). Isso consigna que a linguagem ganha significados constituindo-se o foco central dessa corrente que estabelece a dialtica como ponto principal da estrutura social (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1990). Desse modo, a significao compartilhada diante de um objeto e ao perpassa pela fala, a enunciao, e afirma sua natureza social, no individual: a fala est indissoluvelmente ligada s condies da comunicao, que, por sua vez, esto sempre ligadas s estruturas sociais (YAGUELLO, 1990, p. 14). Isso amplia a potencialidade da Teoria Histrico-Cultural bem como a possibilidade de instrumentalizao do ensino dialogado.

    Observa-se que na perspectiva sociointeracionista pouco se avanou quanto construo de modelos didticos que contribuam como ferramentas para a prtica pedaggica (RAMALHO, 2009). Menor ainda o desenvolvimento de modelos que considerem a Teoria de Galperin. Tal fato representa o desconhecimento sobre esse enfoque sociointeracionista, suas teorias e de seus colaboradores. no intuito de resgatar a Teoria de Assimilao por Etapas de Galperin que consideramos que essa perspectiva terica e metodolgica pode enriquecer ainda mais o potencial da Histria da Cincia no ensino. Essa abordagem d condies aos alunos de compreender o processo pelo qual um conhecimento, uma descoberta, ou qualquer outra produo humana foram construdos, possibilitando tambm a construo de sentidos e significados acerca desses conhecimentos no indivduo.

    Com este arcabouo terico internalizado, buscamos compreender como os sentidos sobre a Histria da Cincia so constitudos por licenciandos do curso de Cincias Biolgicas da Universidade Estadual de Maring-Paran, bem como delimitar os sentidos produzidos por eles Histria da Cincia em suas prticas pedaggicas. Procuramos identificar como o licenciando se apropria do discurso da Histria da Cincia e o utiliza em sua prtica pedaggica. Desta

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    problemtica surgiram outras, por exemplo: Como a Histria da Cincia tem contribudo na formao destes licenciandos? Que dificuldades eles apresentariam ao usarem a Histria da Cincia em suas aulas? Estas perguntas possibilitaram a presente investigao, realizada por meio de uma interveno didtica, reportando-se a um episdio da Histria da Cincia sob os pressupostos metodolgicos da Teoria de Galperin, em que se considera que a atividade do sujeito no mbito escolar deve acontecer em etapas organizadas para uma efetiva assimilao dos contedos que se pretende ensinar. Por isso a pesquisa est organizada e direciona as aes pedaggicas em etapas de ao sobre o conhecimento histrico.

    No primeiro captulo realizamos um recorte a partir do Movimento Iluminista europeu, perodo que enfatiza o pensamento crtico e desencadeia um grande avano no que diz respeito cincia ocidental. Tambm evidenciou o uso da Histria da Cincia em vrios aspectos, entre eles, para contextualizar ideias e pensamentos, posteriormente abordados tambm no ensino. Situamos esse recorte destacando as pesquisas de Histria da Cincia relacionadas ao ensino na contemporaneidade e as principais discusses decorrentes delas.

    Trouxemos luz no Captulo 2 um pequeno episdio que caracteriza o perodo de passagem rumo a uma Revoluo Cientfica. Utilizamos do personagem Robert Hooke e, em especial, de sua observao de nmero XVIII sobre a cortia para resgatar, tanto o perodo, quanto os conhecimentos decorrentes dele, que so associados inadequadamente descoberta da clula na Biologia. Demos abertura s esferas de conhecimento epistemolgico, histrico e contextual de Hooke para uma melhor compreenso e apresentamos uma traduo realizada da observao deste pesquisador no que diz respeito cortia e suas estruturas. Em seguida, retomamos um breve percurso histrico que permitiu compreender o distanciamento desta descoberta com a caracterizao da clula na Teoria Celular. Ao fim, construmos algumas reflexes sobre esse episdio e seu contexto.

    O captulo 3 tratou das contribuies de Vygotsky e de seus colaboradores para o entendimento dos processos de desenvolvimento do indivduo. Procurou tambm traar as aproximaes entre o sociointeracionismo e a Histria da Cincia justificando as possveis conexes entre essas duas abordagens. Ainda neste captulo, apresentamos a Teoria da Assimilao por Etapas de Galperin, decorrente da Escola Sovitica e seus pressupostos, que justificam a unio com a Histria da Cincia.

    O captulo 4 apresenta os embasamentos tericos resgatados a respeito da Anlise Dialgica do Discurso a partir do Crculo de Bakhtin e retrata nossa construo de um possvel dilogo entre Vygotsky e Bakhtin.

    Apresentamos no Captulo 5 nosso contexto e sujeitos de pesquisa, bem como a construo das atividades realizadas, nossas produes e coletas de dados organizadas tal qual a

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    interveno fora construda, ou seja, orientada pelas etapas da Teoria de Galperin. As anlises e os resultados provenientes de uma amostra de nossos inmeros dados coletados encontram-se no Captulo 6 onde tambm fazemos uma breve discusso dos principais resultados obtidos ao final de cada item.

    Por fim, nossa concluso admite o potencial das pesquisas que envolvem as aproximaes da Histria da Cincia com o sociointeracionismo, especificamente por meio da Teoria de Galperin, para contribuir com o Ensino de Cincias.

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    CAPTULO I

    A CINCIA NA PERSPECTIVA HISTRICA: DO ILUMINISMO AO SCULO XX. BREVES CONSIDERAES.

    Procuramos apresentar, ao longo deste captulo, a literatura pertinente que nos possibilitou conhecer os resgates e a perspectiva histrica de parte dos conhecimentos produzidos pela humanidade. Para isso, iniciamos com um recorte a partir do movimento iluminista por encontrarmos nesse perodo usos da Histria da Cincia de maneira bem diversa. Posteriormente, com a criao do Ensino de Cincias, observamos o dinamismo e as utilizaes dessa abordagem na educao bem como suas discusses mais recentes.

    1.1 O respaldo histrico no Iluminismo.

    O movimento intelectual europeu denominado Iluminismo tambm chamado de sculo das luzes permeou os sculos XVII e XVIII e assumiu, como um de seus compromissos, a difuso do pensamento cientfico. O Iluminismo preconizava a valorizao da razo e garantia com isso o acesso ao conhecimento acerca da natureza por meio da cincia, do aprimoramento moral e da emancipao do sujeito frente poltica (MATOS, 1993). Essa perspectiva vislumbrava ainda produzir [...] efeitos positivos para a sociedade e cultura; se as pessoas pensassem cientificamente fundamentando-se sobre poltica, religio, tica, direito, histria, prticas sociais e culturais, grande parte da discrdia, perseguio, guerras e revolues na sociedade seria minimizada (MATTHEWS, 2009, p.1, traduo nossa)3. A cincia, amparada pela razo, possibilitaria ao homem vencer o saber mtico caracterizado por crendices, supersties e preconceitos.

    Dentre as potencialidades e as alienaes relacionadas ao iluminismo suas luzes bem como suas sombras, destacadas por Matos (1993) e Scremin (2004), resgatamos o aporte cincia no perodo.

    Alfonso-Goldfarb (1994) explica que, antes mesmo do perodo iluminista, a chegada Europa de obras clssicas traduzidas e at mesmo originais provocou contrapontos nas ideias dos pensadores. Kragh (1987) descreve que o respeito pelas obras antigas era garantia para o progresso, isto , construir a partir do que j foi construdo. No final do sculo XVII, por

    3 [...] positive flow-on effects for society and culture; if people thought and reasoned scientifically about politics,

    religion, ethics, law, history, social and cultural practices then much of the discord, persecution, wars and upheaval in society would be minimized(MATTHEWS, 2009, p.1, on line).

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    influncia da igreja, muitas dessas obras passaram a ser consideradas pags e o respeito nos relatos histricos ali presentes foi abalado. Com o Iluminismo esses textos histricos foram considerados testemunhos do que j havia sido feito e tambm um estmulo para o que ainda poderia ser feito de modo a representar uma histria em progresso.

    Observamos na obra de Alfonso-Goldfarb (1994) trs modificaes quanto ao uso do respaldo histrico. A primeira diz respeito necessidade de encaixar as novas ideias no velho conhecimento trazido pelos clssicos. Para isso, a histria narrada ou aludida tinha como objetivo justificar essas novidades. Essa histria, segundo a autora, era mais um exerccio filosfico de comparao entre teorias.

    Outro modo de ver esse crescente nmero de textos histricos era consider-los como prova da verdade, nos quais nada deveria ser corrigido ou acrescentado s ideias iniciais. Em contraponto, medida que esses textos e teorias eram conhecidos, notava-se a inadequao das ideias ali expressas para o contexto e complexidade europeia, de modo que se passou a contest-los (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).

    Assim, os pensamentos organizados ao longo dos sculos na Europa possuam pontos bastante frgeis, sendo necessrio pensar em substituies e reformas. Isso provocou a dicotomia de opinies entre aqueles para os quais a cincia deveria estar fundamentada nos clssicos e outros que acreditavam nos novos conhecimentos. A soluo do embate seria convencer os pensadores mais conservadores acerca das mudanas que valiam a pena serem realizadas. Para isso, os modernos utilizaram-se da histria de modo diferente da ento abordada pelos seus antepassados (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).

    Esse conflito entre o extremo antigo e o radical moderno permeou os sculos XVI e XVII permanecendo ao longo deste ltimo at desaparecer. Algumas consideraes direcionaram a formao de grupos, sociedades e academias para a pesquisa cientfica moderna. Essas comunidades cientficas representavam a necessidade de atrair cada vez mais adeptos, apoio e at propagandistas da nova cincia, explica Alfonso-Goldfarb (1994).

    Hankins (1985) exemplifica que esses acontecimentos refletiram tambm na literatura da poca. A Filosofia Natural que se encarregava de diferentes questes sobre a natureza, a matria e a prpria alma procurava apresentar evidncias cada vez mais crescentes e contraditrias aos conhecimentos at ento produzidos.

    Os filsofos naturais do sculo XVII conheciam o que os antigos sabiam, e adicionaram a esses conhecimentos as verdades que haviam sido descobertas em tempos mais recentes. [...]. Assim, os filsofos naturais pareciam possuir um

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    mtodo seguro de aumentar o conhecimento humano e de melhorar a condio humana (HANKINS, 1985, p.8-9, traduo nossa)4.

    Alfonso-Goldfarb (1994) complementa que, alm das obras escritas em uma linguagem acessvel, visando divulgao da cincia; demonstraes pblicas recorrentes desde o sculo XVI continuaram at parte do sculo XVIII amparadas por experimentos cientficos, novas mquinas, equipamentos e invenes, buscando serem polmicas e instigantes para o pblico em geral. Portanto, a nova cincia tinha a educao como uma bandeira de propaganda, uma vez que promovia o interesse e a curiosidade dos sujeitos em favor de novos conhecimentos. Assim, o pblico deveria ser conquistado e convencido sobre o potencial das promessas da cincia emergente para o novo mundo.

    Era acessvel tambm ao pblico em geral divulgaes como crnicas sobre a cincia. Estas podiam ser de dois tipos: as produzidas por sociedades e academias, respaldando-se na histria das cincias naturais, apresentando relatos de experincia e novas possibilidades de explorar a natureza; e as descritas pelo cronista ou secretrio da associao cientfica. Esta ltima, diferente da anterior, poderia assumir um teor mais cultural, pois alm de se pautar na histria do desenvolvimento da Histria Natural, enfatizava os sucessos do grupo, seus feitos e descobertas, alm de incrementar com personagens para o divertimento do leitor (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).

    Ao utilizarem dessas crnicas com respaldo histrico, os filsofos e educadores que encabearam o Iluminismo esboaram a utilizao da Histria da Cincia para contextualizar e divulgar a atividade cientfica na sociedade. Estes, a princpio, no tinham como foco o ensino, mas sim formar sujeitos capazes de julgamento dos produtos e saberes que a cincia produzia de forma cada vez mais acelerada para o progresso da sociedade.

    No intento de uma cincia que ultrapassasse os limites do laboratrio5 e pudesse resolver os problemas da sociedade sendo conhecida e valorizada por todos, a perspectiva dos representantes iluministas deve ter sido tambm direcionada a um tipo de ensino que contemplasse esses saberes. A concretizao desse fato pode ter ocorrido a partir da criao da turma de Ensino em Cincias sob a responsabilidade de Joseph Priestley, na cidade de Nantwich/Inglaterra, no ano de 1758, em pleno Iluminismo, como evidencia Matthews (2009).

    4 The seventeenth-century natural philosophers knew what the ancients knew and added to them the truths that had

    been discovered in more recent times. [...]. Thus the natural philosophers appeared to possess a sure method of increasing human knowledge and of improving the human condition (HANKINS, 1985, p.8-9). 5 O termo laboratrio, expresso em alguns momentos deste captulo histrico, deve ser entendido como uma

    denominao contempornea para os locais ou quartos nos quais se realizavam a manipulao dos organismos retirados do ambiente natural.

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    Esse foi um grande passo para debates acerca da amplitude do ensino da cincia nos sculos seguintes.

    Por esse vis apresentamos, no subitem a seguir, de modo bastante abreviado, alguns percalos para o reconhecimento da Histria da Cincia at chegar ao Ensino de Cincias. Antes disso, para alm do percurso temporal retratado sobre as utilizaes da Histria da Cincia, preciso igualmente diferenciar o entendimento histrico dos sculos XVII e XVIII da compreenso atual.

    Naqueles sculos, o relato histrico representava as descries da condio de um fato que no precisava necessariamente ser remetido ao passado (KRAGH, 1987). Essa distino possibilita entender os distintos termos encontrados na literatura correspondente: histria e historiografia, como delimita Martins (2004).

    Para este pesquisador, a historiografia corresponde a tudo aquilo produzido pelos historiadores, ou seja, textos que, em sua maioria, abordam conhecimentos e acontecimentos do decorrer da histria, no apenas descrevendo-os, mas tambm refletindo a respeito deles. A histria, por outro lado, pode ser entendida como um conjunto de situaes e acontecimentos pertencentes a uma poca e a uma regio (MARTINS, 2004, p. 115). Desse modo, a Histria da Cincia no vem desvendar fenmenos naturais, mas sim prestar esclarecimentos sobre algum aspecto do trabalho cientfico envolvido nesses fenmenos. Ela constituda pelas atividades e produes dos cientistas e seu contexto (MARTINS, 2004, p. 117).

    Disso decorre que os mtodos pelos quais os historiadores da cincia abordam determinados episdios cientficos dependem dos objetivos de sua pesquisa (MARTINS, 1997). Em geral, as abordagens historiogrficas do conta de dois aspectos: internos ou internalistas e externos ou externalistas da cincia. Ambos as aspectos comportam na literatura uma srie de pontos de vistas que estabeleceram, em tempos mais recentes, conflitos entre epistemlogos e filsofos da cincia (OLIVEIRA; SILVA, 2012). Apesar de ser um debate considerado ultrapassado por alguns historiadores, importante o reconhecimento dessas facetas para aqueles que, assim como ns, pretendem fazer uso de um estudo de caso histrico no ensino, possam compreender as discusses de modo holstico.

    A diferena principal entre eles est no destaque que um ou outro pode dar a um determinado episdio, podendo encobrir ou desconsiderar o outro lado do fato. O vis internalista considera os aspectos internos de um episdio cientfico de modo que aqueles que o utilizam buscam priorizar momentos que acreditam estar relacionados ao fato cientfico em si, ou seja, atividade do cientista, tornando o relato descontextualizado. Essa prtica pode dar a impresso de que determinado acontecimento na cincia s poderia ter ocorrido daquela maneira e naquela sequncia e momento histrico. Levando ainda a uma valorizao de alguns nomes em

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    detrimento de outros, alm de desvalorizar as intensas relaes entre homens, sociedade e cultura (DIAS; SAITO, 2009).

    Por outro lado, o enfoque externalista considera todos os fatores no ligados ao desenvolvimento intelectual do episdio, como as influncias da poca, religio, cultura e sociedade no trabalho realizado, delimitando o que ou quais coisas permitiram que o acontecimento cientfico fosse realizado naquele espao e tempo (OLIVEIRA; SILVA, 2012). Nesse sentido, tanto Martins (2004) quanto Dias e Saito (2009) ponderam que as tendncias mais recentes nas pesquisas em Histria da Cincia tm primado considerar uma abordagem contextualizada, ou seja, ambos os enfoques internalistas e externalistas, visto que nenhum dos extremos vlido, pois empobrecem nossa compreenso sobre a dinmica da cincia (MARTINS, 2004).

    Martins (1997) encerra essas consideraes avaliando que apenas estando imerso no conhecimento histrico da poca, bem como na Filosofia e Metodologia da Cincia, o pesquisador (historiador) poder abordar de modo coerente os aspectos epistmicos, no epistmicos e tambm os sociolgicos em consonncia com seu foco de pesquisa.

    Na perspectiva anteriormente explicitada torna-se importante que um relato histrico considere alm do momento social vivido pelos personagens de um episdio da cincia, tambm as ideias existentes no perodo, levando em conta as modificaes sofridas at seu estabelecimento. As influncias advindas de pocas e pesquisadores anteriores tambm so importantes para discutir os valores existentes, complementam os autores Oliveira e Silva (2012). Isso faz com que a Histria da Cincia apresente no apenas os fatos e ideias construdos em determinados momentos da humanidade, mas tambm que determine suas origens em seus mais variados contextos que corresponderam a diferentes vises de mundo (JAPIASSU, 1981).

    Refletimos, portanto, que a Histria da Cincia tem um papel por vezes bastante diverso mesmo nos dias atuais. Isso porque seus usos correspondem a diferentes perspectivas. Contudo, possvel considerar que a Histria da Cincia no tem a pretenso de ensinar conceitos, mas sim permitir o acesso, que no teramos, ao conhecimento em nveis epistemolgicos. Ou seja, ela permite que conheamos a lgica intrnseca de um determinado fato, tempo e poca na histria. Permite conhecermos as verdades vlidas para o momento e como um determinado conhecimento modificou-se ao ser reinterpretado ao longo dos anos. Portanto, a Histria da Cincia permite vislumbrarmos o modo de se fazer cincia de cada poca.

    Desta forma, ao possibilitar uma maior compreenso do fazer cientfico, a juno das duas abordagens faz com que a incluso da Histria da Cincia ao ensino de cincias seja defendida por muitos pesquisadores (PEREIRA; AMADOR, 2007; NASCIMENTO, 2008; FERREIRA;

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    FERREIRA, 2010; LUCAS; BATISTA, 2011; BATISTA; NASCIMENTO, 2011) como destacamos no prximo item.

    1.2 Histria da Cincia no Ensino.

    Observamos que se tornou uma caracterstica do Iluminismo considerar a via histrica um caminho para o progresso da cincia e do homem, de maneira a no permitir o retorno dos princpios feudais. Todavia, esse perodo tambm comportou paradoxos como o descrdito histria em detrimento da razo cartesiana e o retorno do senso histrico pelo Romantismo no final do sculo XVIII. J no sculo XIX, o interesse histrico foi fortalecido ao justificar a importncia da cincia pelo reconhecimento de sua presena cada vez mais marcante em todas as esferas sociais. O positivismo presente no mtodo das cincias naturais distanciou novamente os relatos histricos no sculo XIX, mas no impediu que muitos pesquisadores apresentassem introdues histricas em seus textos, como fez Darwin ao considerar em sua obra A Origem das Espcies as ideias e contribuies levantadas por Lamarck (KRAGH, 1987).

    Ernst Mach (1838-1916) tambm procurou integrar a Histria com a Filosofia e a Cincia. Esse fsico e filsofo austraco defendia que a histria era o meio adequado para compreender o mtodo cientfico. Essa ideia parece ter cativado outros filsofos, j que na virada do sculo XX passou-se a olhar para a Histria da Cincia com valor educativo, acreditando que ela poderia fazer compreender, de forma clara, a organizao da cincia (KRAGH, 1987; MARTINS, 2004; PEDUZZI; MARTINS; FERREIRA, 2012).

    Portanto, a aproximao da Histria da Cincia ao ensino decorre de um longo perodo de diferentes concepes e ideais que em poucas palavras no poderamos apresent-los em sua totalidade. Desse modo, faremos um recorte histrico a partir de Auguste Comte (1798-1857) porque consideramos que parte de suas ideias foi retomada em prol do ensino. Muito embora estejamos conscientes de que elementos importantes deixaro aqui de ser enfatizados, esperamos que este texto tenha como objetivo fornecer a compreenso mnima sobre a tradio histrica a qual presenciamos no sculo XXI.

    Comte foi o principal representante do positivismo do sculo XIX. Ele defendia que a histria no poderia estar isolada em disciplinas especficas, pois era necessrio dar destaque s interaes entre cincia, sociedade e sua cultura. No entanto, Comte considerava esta defesa no como um modo de compreender a natureza da cincia, mas em favor de razes filosficas e pedaggicas. Suas contribuies foram consideradas superficiais para se efetivarem (KRAGH, 1987), principalmente pelos idealistas alemes que retomaram a discusso da importncia da relao social, desconsiderada pelas cincias naturais (BONAVIDES, 2000).

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    Pouco tempo depois Marx e Engels, fundadores do socialismo moderno, tambm destacaram a Histria da Cincia com vistas a uma conscincia racional sobre a histria e a prpria cincia. Consideravam a Idade Mdia como sendo o perodo que impediu, por meio de foras mitolgicas e anti-histricas, o modo de pensar racional. Porm, seus ideais dialticos tambm foram ignorados por aqueles na maioria historiadores que valorizavam o mtodo cientfico ao invs do carter humano e seus mltiplos fatores envolvidos, como os econmicos e polticos no desenvolvimento cientfico. Em algumas excees encontravam-se simpatizantes pelos pressupostos dialticos e tratados sobre qumica e at medicina que puderam contemplar esse enfoque, nos explica Kragh (1987).

    O autor acrescenta que o sculo XIX foi permeado por conflitos de ideais e que, a partir do sculo XX, a Histria da Cincia passou a ser reconhecida como uma profisso, o que acarretou na criao de sociedades para seu estudo. Cursos sobre a histria da medicina, por exemplo, passaram a ser frequentes a partir de 1950 em universidades da Europa. Um nome importante nesse novo status da Histria da Cincia foi Paul Tannery (1843-1904) que, assim como Comte, defendia essa abordagem como parte da histria humana e no como subdisciplinas divididas em reas. Aps longas dcadas de novas e grandes descobertas em fsseis, textos e civilizaes antigas como as gregas e egpcias, muitos pesquisadores, j no final do sculo XIX, destacaram a importncia da Histria da Cincia para o ensino.

    Na Frana, George Sarton (1884- 1956), influenciado pelas ideias de Comte e Tannery, iniciou uma srie de publicaes e o desenvolvimento de um programa sobre Histria da Cincia para que fosse trabalhado nas academias. Entre suas inmeras colocaes destaca-se a compreenso da Histria da Cincia enquanto forma de estudar o passado para justificar a cincia contempornea e a futura. Segundo ele, esse enfoque poderia inspirar novas pesquisas e estudos, alm de possibilitar um bom conhecimento sobre os pesquisadores antigos, de modo a avaliar as contribuies deixadas por eles. Contudo, Sarton era um positivista e internalista e acreditava que as condies socioeconmicas pouco tinham, at ento, influenciado a cincia. Talvez por isso seu programa nunca tenha sido de fato realizado. Apesar disso, Sarton contribuiu no que diz respeito popularizao da Histria da Cincia uma vez que fomentou a admirao de diferentes figuras como cientistas e humanistas que deram ainda mais status profisso acadmica de historiador da cincia (KRAGH, 1987).

    Foi tambm nos Estados Unidos que Sarton exerceu maior influncia. Algumas de suas ideias foram inclusive ensinadas em universidades americanas. O interesse dos estados americanos vinha ao encontro dessa popularizao cientfica porque pretendiam principalmente atrair alunos para os cursos de cincias naturais. Interesse que tambm adquiriu contornos de um propsito moral, sendo que por volta de 1914 o conhecimento da atividade cientfica de modo

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    racional deveria servir para aumentar o sentimento humanitrio. Portanto, o ensino destinava-se para todo o tipo de pessoa homens e mulheres, de diferentes raas e credos visando atribuir f no progresso humano. Parte das ideias de Sarton tambm foi considerada por Charges Singer (1876-1960) que, em 1923, criou o departamento de histria e mtodos da cincia no colgio universitrio de Londres (KRAGH, 1987).

    Na perspectiva curricular, Matthews (1994) acrescenta que, na segunda metade do sculo XIX na Gr Bretanha, a Associao Britnica para o avano da cincia enfatizava que no s os mtodos da cincia e seus resultados deveriam ser ensinados aos jovens, mas tambm tudo que dissesse respeito atividade cientfica, logo, sua histria. Este autor tambm relata que a incluso da Histria da Cincia nos currculos americanos e britnicos estes ltimos com um pouco mais de dificuldades ocorreu a partir do ano de 1920. Iniciada por qumicos que advogavam a favor de um ensino com abordagem histrica, esta incluso ocasionou a elaborao de inmeros textos histricos. Estudos de caso passaram a ser largamente adotados em universidades como a de Harvard logo aps a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, ocasionando mudanas nos currculos americanos com exceo da verso amarela do BSCS High School Biology que se manteve a mesma.

    Principalmente aps a Segunda Guerra Mundial os mtodos utilizados pela cincia foram tambm relacionados s questes sociais e ocasionaram avanos nas reas cientficas. Essas abordagens possibilitaram, por meio do ensino, o entendimento das pessoas quanto funo que a cincia ocupava na sociedade. Passaram, por exemplo, a ser ensinados no somente contedos sobre eletricidade, mas as relaes que esse conhecimento tem com a vida cotidiana. Assim, passou-se a explicar o funcionamento do telefone e dos circuitos eltricos em uma residncia por exemplo, bem como as aplicaes da eletricidade em outros campos. Portanto, os aspectos histricos de uma cincia feita por homens passaram a ser considerados de modo crtico, buscando entender as aplicaes e implicaes na vida pessoal, qualificao profissional, sociedade e meio ambiente. Esses aspectos estabeleceram o que chamamos hoje de relaes entre a Cincia, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) (MATTHEWS, 1994).

    Nas ltimas dcadas, apesar das diferenas no tipo de abordagem histrica apresentada nos currculos sejam da Europa, Gr-Bretanha e at mesmo da Amrica Latina em relao aos dos Estados Unidos as razes para a incluso da Histria da Cincia parecem ser compartilhadas por todos. Destaca-se a promoo de uma compreenso ampla, crtica e racional sobre os conceitos e mtodos cientficos, o trabalho dos cientistas e seu contexto histrico.

    Inmeros autores tambm consideram que a Histria da Cincia se faz necessria tanto na formao docente quanto no currculo escolar do Ensino Bsico e nos livros didticos, uma vez que permite uma conexo entre a cincia e seu percurso histrico possibilitando um

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    conhecimento e aprendizado mais significativos e fundamentados para professores, futuros professores e seus alunos (SIQUEIRA; LEITE, 1988; MATTHEWS, 1995; MARTINS, 1998; MARTINS, 2007; MATTHEWS, 2009; PRESTES; CALDEIRA, 2009).

    Por outro lado, a insero de contextos histricos e filosficos nas cincias no garante solues para os problemas educacionais e sociais (MATTHEWS, 2009), apesar de permitir o exerccio de uma epistemologia filosfica salienta Japiassu (1981, p. 47). Poderamos considerar que o primeiro problema consiste no prprio fazer cientfico, que direta ou indiretamente dissemina concepes errneas sobre seu exerccio.

    Creio ser lamentvel o fato de os cientistas no darem a devida importncia ao estudo dos processos histricos de constituio, de formao, de desenvolvimento e de estruturao de seus conceitos e de suas teorias. Ora, privados do aparato histrico e conceitual, no conseguem elaborar uma crtica de seu saber, do saber que lhes transmitido, quase sempre dogmaticamente, para detectarem as opes filosficas e ideolgicas nele implicadas (JAPIASSU, 1981, p.48).

    Esse modo de olhar para a cincia passa da academia sociedade, repleto de concepes errneas, como se a cincia fosse imutvel, verdadeira, dogmtica, neutra, etc. (RIVERO; WAMBA, 2011). J na sala de aula, tanto professores quanto alunos apresentam concepes distorcidas e descontextualizadas que dificultam o ensino e a aprendizagem cientfica, como tem sido considerado em diferentes pesquisas (TAKAHASHI; BASTOS, 2011; ALMEIDA, 2012; KOSMINSKY; GIORDAN, 2002).

    Por volta de 1970 algumas pessoas foram contrrias aproximao da Histria da Cincia no ensino. Matthews (1994) comenta que alguns historiadores alegaram que a insero de uma abordagem histrica no ensino de cincias poderia ser fraca levando a pseudoconhecimentos, alm de construir vises ideolgicas sobre a cincia atual. Paralelamente, alguns cientistas completaram que a incluso histrica seria uma perda de tempo, pois deixaria de lado o mais importante que seria o fazer cincia. Acrescentaram de maneira dogmtica que ensinar a Histria da Cincia seria enfraquecer as certezas neutras da cincia, desviando o aprendizado dos estudantes do verdadeiro esprito cientfico.

    Todavia, nas situaes de ensino nas quais a contextualizao histria se tornou frequente ou mesmo pontual, observaram-se contribuies na compreenso da cincia e sobre cincia (GATTI; NARDI, 2009; EL-HANI; TAVARES; ROCHA, 2004; VILLANI et al., 1997). Por esse motivo, no Brasil, desde a dcada de 1990, tanto os documentos curriculares oficiais para o Ensino Fundamental e Mdio quanto para o Ensino Superior indicam o papel que a Histria e Filosofia da Cincia tm para com a educao cientfica. Entretanto, estes documentos no

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    correspondem perspectiva que essa temtica tem em relao a um ensino que possibilitaria uma viso sistmica da cincia em detrimento fragmentao de contedos observada nos currculos escolares (PRESTES; CALDEIRA, 2009).

    Visando dar auxlio aos professores e contribuir para a compreenso da cincia, alguns autores, como Justina (2011) e Pessoa Jr. (1996), descrevem as possibilidades nas quais as recontextualizaes histricas podem ser utilizadas no ensino. Destacam-se entre elas: a explicao de como os conceitos e concepes acerca de um dado conhecimento foi desenvolvido ao longo do tempo; e o reconhecimento do papel intelectual de algum pesquisador, no qual suas ideias e problemas envolvidos na pesquisa so enfatizados. E ainda, a exposio da sociedade da poca e suas influncias no desenvolvimento de um conhecimento, a leitura de originais por meio de tradues disponveis, a discusso de determinado episdio histrico sob a luz de uma perspectiva epistemolgica e as reconstrues de experimentos, instrumentos e debates histricos por meio de dramatizaes ou charges. Estas formas de abordagem so contempladas em uma perspectiva denominada por Matthews (1994) de abordagem inclusiva. Ela diz respeito insero de contextos histricos que evidenciam tanto os aspectos internos quanto os externos da atividade cientfica que envolvem a construo de determinados conhecimentos ao longo da histria, hoje refletidos nos contedos escolares de cincias. A insero de episdios, relatos histricos ou biografias tm como finalidade estimular e motivar a capacidade de interpretao e problematizao dos alunos contribuindo no processo de ensino e aprendizagem. Para Justina (2011), a incluso da Histria da Cincia no ensino permite ao aluno conhecer as diferentes formas de ver e explicar o mundo, podendo ainda questionar as explicaes atuais fornecidas pela cincia e despertar modos de pensar diferenciados. Ao ter contato adequado com a Histria da Cincia possvel estabelecer uma concepo de construo humana da cincia (JUSTINA, 2011, p. 60). Duschl e Grandy (2012) reforam que a incluso de contextos da cincia contribui para estimular a capacidade de questionamento e at rejeio frente s informaes recebidas quebrando aos poucos a ideia de uma cincia verdadeira e imutvel. Os autores salientam que preciso reconhecer a cincia como uma forma de saber que abrange no somente a produo conceitual traduzida nos contedos escolares conhecidos, mas que tambm consiste de um processo amparado por pesquisas e aprendizagens em cincia. Em sntese, a Histria da Cincia pode contribuir para o desenvolvimento de capacidades que permitem ao aluno utilizar e interpretar a cincia no mundo que o rodeia, avaliar as explicaes e evidncias cientficas recebidas, compreender como e por que o conhecimento cientfico se desenvolveu e participar de forma ativa de discursos e prticas na cincia.

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    Estas tm sido as principais defesas em torno de uma abordagem inclusiva estabelecida por Matthews (1994), mas que, devido pequena carga horria atribuda s disciplinas de cincias naturais no Ensino Bsico do Brasil, encontram dificuldades para serem efetivadas. Apesar disso, muitas aplicaes direcionadas a esse enfoque buscam resgatar estudos de caso ou episdios histricos disponveis em diversos artigos cientficos com o objetivo de possibilitar uma maior compreenso da natureza do conhecimento cientfico e das teorias e conceitos levando a uma viso crtica da atividade cientfica.

    Portanto, no se trata de um ensino que aborde apenas os aspectos da descoberta, seus dados temporais e cronolgicos que, por serem muitas vezes limitados e simplificados, ocasionam uma viso cumulativa e linear voltada para uma cincia inquestionvel. E sim promover um ensino pautado em um contexto histrico que no desconsidere as influncias sociais na descoberta, que permita identificar os diferentes mtodos cientficos existentes e que foram acompanhados por dvidas, tentativas, equvocos e tambm por criatividade e imaginao. Uma cincia aberta s crises e mudanas, na qual h um intenso trabalho coletivo e intercmbio de ideias e conhecimentos entre comunidades cientficas. Vale ressaltar que publicaes dessa natureza vm crescendo em nmero e qualidade.

    Outra abordagem pouco difundida tambm proposta por Matthews (1994) chamada de integrada uma vez que permite organizar toda uma disciplina ou curso sob as bases histricas de uma rea cientfica. Nesta abordagem so trabalhados os conceitos e frmulas no como meras aparies estanques no contedo de uma cincia, mas permitindo visualizar todo seu desenvolvimento, as mudanas ocorridas desde sua origem e os embates que possibilitaram sua validao criando uma linha histrica dentro do contedo cientfico. Esta abordagem parece ter adquirido destaque em universidades do exterior como Harvard (MATTHEWS, 1994).

    Em correspondncia aos historiadores da cincia que creditam Histria da Cincia uma contribuio valiosa para o ensino por meio de uma abordagem historiogrfica, cabe tambm ao professor estar consciente de que ao levar para a sala de aula as histrias que esto nos livros, [...], tende a reforar a linearidade do desenvolvimento do conhecimento apresentando aos alunos uma cincia como uma sucesso de fatos organizados de forma lgica e cronolgica, omitindo debates e outras questes extra-cientficas que, direta ou indiretamente, estiveram ligadas no momento de sua formulao resultando em uma cincia isolada e apartada de outras reas do conhecimento cientfico das quais recebeu e tambm deu contribuies (SAITO, 2010, p. 5).

    Alguns fatores que justificam as dificuldades dessa aproximao foram destacados pelo pesquisador Roberto de Andrade Martins ainda na dcada de 1990. Entre esses fatores est a escassez de materiais, a falta de tempo suficiente para uma abordagem eficaz e, principalmente, a

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    carncia de uma formao adequada de nossos professores para cumprir tal tarefa. A nosso ver, os trs fatores anteriormente apontados por Martins (1990) encontram-se ainda presentes em maior ou menor medida.

    Com relao s abordagens inclusiva (add-on approach) e integrada (integrated approach) propostas por Matthews (1994) e no ilustrativa, como querem denominar os autores Santos (2006) e Silva (2004a) apud Santos (2006), vislumbramos que a incluso dos fatos histricos em livros didticos condiz com as problemticas destacadas por Martins (1990) anteriormente. Principalmente no que diz respeito ao desconhecimento dos materiais j existentes que contribuem para a incluso de aspectos coerentes em determinados contedos. Alm disso, a falta de tempo para uma abordagem eficaz culmina na escolha do professor por uma abordagem mais sintetizada, mesmo que o livro didtico apresente a Histria da Cincia para alm dos aspectos cronolgicos e superficiais. Por isso o problema no so especificamente os livros ou at mesmo a carncia de materiais, mas a inexistncia de uma formao adequada para que os professores possam produzir sentidos e significados sobre a temtica, apropriando-se desses para sua prtica pedaggica.

    Por esse motivo, as abordagens propostas por Michael R. Matthews encontram desafios para serem adaptadas realidade brasileira. Ainda assim, se fssemos fazer uma defesa acerca delas para o ensino, optaramos por advogar a respeito de uma abordagem inclusiva para o Ensino Bsico e uma abordagem integrada para a formao em nvel superior conforme tambm defendem as autoras Prestes e Caldeira (2009). As autoras compartilham com o ponto de vista de Allchin (2007 apud PRESTES; CALDEIRA, 2009, p. 9) sobre o valor dessas abordagens no ensino, assim como consideram que a [...] elaborao de contribuies pontuais [...] torna-se a possibilidade neste momento por permitir ao professor maior autonomia e flexibilidade na tomada de decises quanto aos contedos a serem abordados. Isso no quer dizer que a cincia no deva ser tratada de modo interdisciplinar, como se sugere ao no usar uma abordagem integrada conforme apontado por Macedo (2001).

    Essa justificativa reflete nosso atual sistema de ensino bsico e permitiria ao estudante que atualmente pouco ou nada conhece sobre a Filosofia e Histria da Cincia ingressar aos poucos nesse cenrio, aprofundando-se de acordo com sua formao de modo a avaliar sua prtica. Seja ela uma atividade cientfica, tcnica ou cotidiana.

    Por fim a necessidade da abordagem integrada direciona-se Educao Superior brasileira visando a plena formao de bacharis e licenciandos. Com esse foco, cientistas poderiam ser formados com uma viso mais adequada sobre a cincia a qual se debruam, como defendido em recente artigo da rea ecolgica (LEITE et al., 2010). Possibilitaria ainda a formao de professores com uma epistemologia mais coerente com o trabalho cientfico, reduzindo as

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    constantes concepes equivocadas presenciadas na educao, mas no creditando incluso desta abordagem a expectativa de que, por meio da histria, as dificuldades de aprendizagem em cincias so solucionadas (SAITO, 2010, p. 2). preciso destacar que embora a Histria da Cincia seja uma mediadora para a aprendizagem de cincias, no mtodo de ensino, mas uma provedora de recursos que conduz reflexo sobre o processo de construo do conhecimento cientfico (SAITO, 2010, p. 2). Contudo, tais reflexes no podem deixar de considerar a atual carncia de intervenes desse gnero na formao inicial de professores o que dificulta a efetivao das propostas. Justamente nesta perspectiva, o captulo seguinte apresenta as reflexes tericas realizadas em prol a uma interveno na formao inicial de professores de Cincias e Biologia. Nele, um estudo de caso abordado sob as perspectivas epistmicas e no epistmicas com vistas incluso de maneira add-on em um grupo de estudos de formao docente.

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    CAPTULO II

    ESTUDO DE CASO: A REDESCOBERTA DA CORTIA POR MEIO DA OBSERVAO DE ROBERT HOOKE.

    Neste captulo, apresentamos o respaldo terico de fontes originais consultadas e que permitiram compreender aspectos relevantes do episdio da Histria da Cincia utilizado na interveno pedaggica realizada.

    Os aspectos observados, de modo independente em nossa pesquisa, foram similares aos apresentados pelas autoras Tavares e Prestes (2012) em recente publicao e com as quais procuramos dialogar neste captulo.

    Portanto, ao aprofundarmos no episdio da observao de Robert Hooke sobre a cortia, procuramos inicialmente conhecer esse episdio em seu original. A partir dele, inmeras curiosidades foram surgindo e nos direcionaram busca por respostas tanto em obras histricas primrias, como secundrias, que envolviam o pesquisador em questo. Aps nossas ltimas construes e reflexes, localizamos tambm recentes trabalhos, alguns ainda em prelo, que ao tomarem o mesmo episdio como estudo, abordaram sob o olhar historiogrfico consideraes teis para a discusso sobre a descoberta da clula no ensino de Biologia. Tendo em vista que nosso olhar parte de sujeitos voltados para o uso da temtica Histria da Cincia no ensino, tomamos como respaldo essas recentes discusses para o dilogo conjunto.

    Consultamos, inicialmente, como fonte primria a obra original Micrographia: ou algumas descries fisiolgicas de pequenos corpos feitas com lentes de aumento com observaes e investigaes sobre os mesmos (HOOKE, 1665)6, mais especificamente, a observao XVIII Do esquema ou textura da cortia, e das clulas e poros de alguns outros corpos ocos7 (ANEXO 1). Vale ressaltar que as primeiras obras existentes de Micrographia apresentam a observao XVIII em conjunto com a descrio de uma planta sensvel, mas nas edies posteriores tais observaes encontram-se separadas, j que no apresentam relaes em suas descries. Isso pode ser observado na obra Observaes microscpicas; ou, Maravilhosas descobertas feitas pelo Dr. Hooke ao Microscpio, ilustradas em trinta e trs placas de cobre, curiosamente gravadas: nas quais as mais valiosas particularidades deste clebre autor de Micrographia so reunidas em uma agulha estreita; e misturadas, ocasionalmente, com muitas

    6 Micrographia: or some physiological descriptions of minute bodies made by magnifying glasses with observations

    and inquiries there upon (HOOKE, 1665). 7 Of the schematisme or texture of cork, and of the cells and pores of some other such frothy bodies (HOOKE, 1665).

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    descobertas e observaes divertidas e instrutivas da Histria Natural (HOOKE, 1780)8, pginas 16 e 17. Desse modo, preconizamos traduzir e discutir apenas aquilo que se refere cortia e sua configurao.

    Alm dessas obras, as argumentaes aqui descritas acerca desse episdio da Histria da Cincia foram fundamentadas no relatrio original da Royal Society de Londres, volumes 1 e 2 lavrados por Thomas Birch (1756a; 1756b). As fontes secundrias utilizadas referem-se aos textos de Moore (1986), Martins (2011), Prestes (1997) e Tavares e Prestes (2012).

    Como resultado dessa pesquisa, a traduo realizada, bem como as discusses que dela derivaram, serviram como fonte de consulta para professores atuantes e estudantes da formao inicial durante nossa interveno no grupo de estudos Pibid/Biologia.

    Este contexto tornou-se relevante, j que encontrado na literatura estreitamente vinculado descoberta da clula. Como veremos, necessrio que ele seja compreendido de modo distante da perspectiva biolgica celular e consequentemente da Teoria Celular. Assim, ao resgatarmos o episdio histrico que envolve Robert Hooke e o microscpio, redescobrimos aspectos deste relato que contradizem os conhecimentos ensinados ao longo dos anos no Ensino de Cincias e Biologia, o que o tornou alm de um suporte histrico, uma interveno, objeto de nossas discusses.

    2.1 O contexto histrico de Hooke: faces de uma Revoluo Cientfica.

    Robert Hooke considerado um precursor de observaes e estudos sobre as clulas. Mas por que Hooke teria utilizado a cortia? Poderia ele ter chegado a consideraes semelhantes a partir de outros tecidos vegetais? Qual era o objetivo de Hooke ao realizar essa observao?

    Questes em torno desta temtica, quando abordadas, so apresentadas como verdades absolutas em alguns livros didticos ao discorrerem que [...] Robert Hooke (1635-1703) [...] construiu um dos primeiros microscpios e o utilizou para observar fatias muito finas de cortia [...] (CANTO, 2009, p. 43). Ou ainda que [...] o fsico e astrnomo Robert Hooke (1635-1703) [...] o primeiro a construir um microscpio para observar material biolgico (PARAN, 2006, p. 20).

    H livros que destacam ainda com exatido que Em 13 de abril de 1663, o ingls Robert Hooke apresentou recm-fundada Royal Society of London [...] o resultado de suas observaes, ao microscpio, de finas fatias de cortia, entre outros materiais (SILVA JR.; 8 Microscopic Observations; or, Dr. Hookes wonderful discoveries by the Microscope, illustrated by Thirty-three

    Copper-Plates, curiously engraved: whereby the most valuable Particulars in that celebrated Authors Micrographia are brought together in a narrow compass; and intermixed, occasionally, with many entertaining and instructive discoveries and observations in natural history (HOOKE, 1780).

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    SASSON; CALDINI, 2010, p. 200). Mais inadequadas so as analogias que podemos encontrar sobre a observao deste pesquisador ao descrever que ele comparou as cavidades microscpicas da cortia s celas (pequenos quartos) de um convento, denominando-as, em ingls, cells (AMABIS, 2010, p. 94). De modo semelhante outros autores de livro didtico apresentam que O estudo da clula s comeou de fato no sculo XVII, quando foi inventado o microscpio, um instrumento capaz de gerar imagens enormemente ampliadas (GEWANDSZNAJDER, 2009, p. 13). tambm encontrado em bases de dados informais, como o wikipedia.org, que A Teoria Celular, criada por Robert Hooke, em 1665, estabelece a clula como a unidade morfofisiolgica dos seres vivos, ou seja, a clula a unidade bsica da vida (WIKIPEDIA, 2013, on line).

    Informaes descontextualizadas, desencontradas e at incoerentes como esta ltima, alm de outras conhecidas, demandam a necessidade de aprofundamento nos estudos dessa temtica, no sentido de buscar evidncias que permitam desmitificar interpretaes e reconstrues distorcidas e equivocadas da atividade cientfica reproduzidas ciclicamente no ensino. Mais ainda, promover, por meio desses estudos (em parte j disponveis), a formao coerente de professores. Para isso, procuramos resgatar brevemente o contexto no qual Hooke estava imerso: a Europa em pleno sculo da razo e da cincia.

    A gnese de um pensamento baseado na razo decorreu dos diversos entrelaamentos econmicos, culturais, sociais e histricos (CHASSOT, 2004, p. 35), portanto, a cincia tal como hoje conhecemos resultou da produo de uma cultura que possu razes e como produo tambm foi determinada pelas teorias, experincias ou ideias de nossos antepassados. Como qualquer outro bem material, a cincia enquanto produo sofreu influncias tornando-se um projeto da sociedade com objetivos prticos, sociais e tambm cognitivos, haja vista que no foi por acaso que um novo tipo de saber definiu-se na aurora dos tempos modernos (JAPIASSU, 1985, p. 115).

    Isso equivale dizer que as faces de uma revoluo pela cincia vo muito alm de interesses intelectuais. Vinculam-se a essa revoluo o desenvolvimento, o comrcio, a indstria e a tcnica resultantes do racionalismo burgus do sculo XVII. Esse novo racionalismo trouxe um paradoxo para a cincia: a possibilidade e a necessidade de avanar. Possvel, porque esquemas quantitativos e experimentais ganharam mais fora. Necessrio, visto que novos

    mtodos e saberes eram almejados por meio de instrumentos de pensamento e concepes de vida. No tardou para que a cincia fosse a forma para se apropriar do mundo e dominar a natureza (JAPIASSU, 1985). Novas formas de ver a natureza emergiram e com elas novos sistemas de produo e explorao cada vez mais eficientes. Nesse contexto, um novo tipo de classe trabalhadora adquiriu contornos: o cientista. Seu objetivo era [...] detectar as leis gerais da

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    Natureza, complementa Japiassu (1985, p. 119). Em outras palavras, decifrar as leis divinas j existentes buscando encontrar a verdade ltima segundo estas leis, testando sua veracidade por meio de previses e experimentos (MAYR, 2008, p. 51).

    A busca em recuperar o perdido tornou os homens de negcios interessados em compreender, manter-se informados, conhecer os fatos e deles tirar utilidade. Para isso, as experincias tinham um papel decisivo. A Revoluo Cientfica tinha uma relao bastante estreita entre cincia e os negcios, contudo, quanto a esse quesito faz-se necessrio ter cautela j que nem toda produo tem por nico e exclusivo objetivo interesses comerciais e econmicos. Em muitos casos ela no pode ser considerada apenas um domnio da cincia. Existe uma necessidade em se diferenciar um saber socialmente determinado de seu carter utilitrio. Embora a cincia moderna tenha sido socialmente condicionada, no devemos aceitar que isso remeta a uma cincia utilitarista, pragmtica (JAPIASSU, 1985).

    Apesar das observaes apresentadas por Japiassu (1985), Mayr (2005) defende que o princpio teleolgico que tende a direcionar as explicaes e processos a um fim ou utilidade deve ser abandonado. A nosso ver, tal viso empobrece o conhecimento da (e sobre a) natureza, fazendo dela uma causa em si mesma e desse modo no teramos porque desvend-la. Ao que parece, essa viso bastante comum na compreenso de processos biolgicos resulta de concepes distorcidas sobre a cincia formadas ao longo dos sculos. Isso pode ser constatado, por exemplo, em pesquisas cientficas que buscavam identificar a compreenso acerca do processo evolutivo por professores e alunos (OLEQUES; BARTHOLOMEI-SANTOS; BOER, 2011; MEGLHIORATTI; BORTOLOZZI; CALDEIRA, 2005).

    H de se considerar que existe uma relativa dependncia da cincia ou da atividade cientfica enquanto produto cultural para com as condies sociais, assim como tambm relativa sua autonomia. Nessa perspectiva, o desenvolvimento de tcnicas importantes para a cincia, como o telescpio para a Astronomia e o microscpio para a Biologia (JAPIASSU, 1985), no podem ser consideradas meros instrumentos para o avano da cincia.

    A tcnica deve ser vista como um conjunto de operaes mentais e motoras que buscam satisfazer determinadas necessidades do mesmo modo quando foi desenvolvida nos primrdios da humanidade. Assim, os inventos e aperfeioamentos so resultados dessas tcnicas muitas vezes direcionadas vida cotidiana, como o telescpio adaptado por Galileu que, primeiramente, foi utilizado para suprir as necessidades martimas de Veneza.

    Para quem desconhece os detalhes desse episdio histrico conta-se que a chegada de um estrangeiro holands cidade de Veneza, em 1609, buscando o registro para seu novo instrumento, despertou a curiosidade de Galileu Galilei, que procurou apresentar um instrumento ainda melhor para o Doge de Veneza. O instrumento consistia de uma luneta holandesa e permitia

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    ver ao longe, uma qualidade ideal para uma cidade martima que dependia de avistar os navios antes mesmo que atracassem no porto. Galileu, reconhecendo o potencial da luneta, construiu a sua a partir do zero, com vidro comprado na Ilha de Murano, bolas de canho e tubo de rgo. Poliu suas prprias lentes e as testou no tubo, prtica comum de fabricao e teste do prprio instrumento nos sculos XVI e XVII. Determinou a distncia entre as lentes obtendo uma melhor nitidez e a apresentou aos influentes da cidade que no subestimaram o potencial da luneta. Com isso, navios poderiam ser vistos duas horas antes de sua visualizao a olho nu (BBC, 2010). Devemos destacar que o potencial dos culos para ampliar o tamanho das coisas j era conhecido antes mesmo deste episdio, fato que encontramos com maiores detalhes na pesquisa de Saito (2008).

    No h dvidas que o emprego desses instrumentos e tcnicas tambm acarretou em avanos de pesquisas e descobertas cientficas pelos estudiosos que os manipulavam. Desse modo, ora as invenes eram feitas antes das leis de aplicao, ora eram direcionadas por elas, fornecendo cincia novos instrumentos para a pesquisa (JAPIASSU, 1985).

    preciso destacar que a cincia do sculo XVI considerava todos os cinco sentidos e por isso, tanto a busca por novos instrumentos como por novos mtodos experimentais direcionou a mudana do modo de fazer cincia, deixando de ser apenas contemplativa e descritiva para se tornar operativa. Muda-se tambm a concepo de natureza, passando-se a considerar o instrumento como forma do homem transcend-la, de modo a fazer dela seu objeto de investigao. a partir disso que a natureza se revela deixando captar suas essncias. Com a inteno de controlar as mudanas ocasionadas na natureza, decorrentes de uma nova concepo acerca dela, usaram-se os aparatos que nada so alm de imitaes da natureza, mas que no sculo XVII separaram-se dela tornando-se instrumentos (SAITO, 2013). assim, que na segunda metade do sculo XVII, os instrumentos e os aparatos utilizados para investigar a natureza passaram a ser concebidos como auxlios para melhorar a percepo (SAITO, 2008, p. 10).

    Os ideais de uma sociedade em meio a Revoluo Cientfica conjecturavam que a verdadeira cincia deveria ser experimental em consonncia com a prtica dos comerciantes, industriais e engenheiros da poca. A experimentao no era apenas uma metodologia, mas uma transposio do nvel das atividades intelectuais nobres da poca. Portanto, a escolha dos temas e procedimentos submetia a cincia s exigncias sociais. Torna-se impossvel separar teoria e aplicao ou cincia e tcnica, alm disso, uma cincia pura seria ilusria (CHASSOT, 2004; JAPIASSU, 1985).

    A indissociao entre cincia e tcnica pode ser bem caracterizada pela filosofia mecanicista do sculo XVII. Nessa corrente, os fenmenos naturais deveriam ser explicados

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    segundo uma matria em movimento. Como metfora, tinha-se a mquina. Assim, naquela poca buscavam-se os elementos e as leis que direcionavam o fenmeno estudado. Por meio da cincia e da tcnica o homem acessava a realidade e a natureza das coisas. Observa-se que havia um rigor demonstrativo e uma grande fidelidade expresso do que se via (JAPIASSU, 1985). Essa concepo, que perdurou por um longo perodo no sculo XVII, tornava artificial a compreenso dos organismos vivos (MAYR, 2008).

    Japiassu (1985) salienta que existe algo oculto por trs da metfora da mquina. No h apenas um desejo em conhecer, mas um projeto para dominar e manipular. A cincia se torna instrumento de ao. Ainda que no interpretem seu prprio trabalho dessa forma, os cientistas trabalham a favor de um ideal mecanicista h mais de trs sculos. Na Biologia, apesar de no ter tido grandes xitos, tornou-se evidente esse tipo de tendncia, como por exemplo, ao considerar o organismo como uma mquina complicada e o corao como uma bomba.

    Na perspectiva de domnio e manipulao da natureza, as relaes de saber e poder se justificam nas declaraes de Francis Bacon, em que o progresso do saber contribui para o progresso da sociedade e de um mundo melhor. Ainda porque, nesse tipo de pensamento, a cincia verdadeira til uma vez que nos torna possuidores da natureza (JAPIASSU, 1985).

    Francis Bacon (1561-1626) frequentou o Trinity College em Cambridge e interessava-se por assuntos filosficos, polticos e cientficos. Sempre muito prximo ao poder, tomou assento na cmara como representante de um pequeno distrito, em 1584, aos 23 anos de idade. Foi nomeado Lorde Conselheiro em 1616, Lorde Guardio em 1617 e Lorde Chanceler em 1618. Sua grande busca intelectual concentrava-se nos mtodos de pensamento, na pesquisa experimental e na lgica. Bacon acreditava que no se deveria dedicar muito tempo teoria e pouco observao como fizeram os filsofos gregos. Isso para ele era tido como um erro (GALVO, 2007).

    Sua obra Novum Organum (Novo Instrumento), publicada em de 1620, justamente uma contraposio s concepes e mtodos que partiam de dogmas e da metafsica para se chegar a concluses. Portanto, o mtodo cientfico de Bacon pretendia corrigir as deficincias apontadas na teoria aristotlica clssica. Enquanto esta ltima descrevia o curso espontneo da natureza, contemplando-a, Bacon procurava tirar a natureza de seu curso ordinrio, torturando-a (SAITO, 2013).

    Bacon vivia em uma poca em que o estudo da natureza tinha sido ofuscado pela busca incessante das causas finais. Por isso, acreditava que somente o mtodo emprico indutivo poderia devolver ao homem o domnio da natureza. Assim, a experincia seria a condio da verdade. Suas ideias serviram de alicerce para a cincia moderna e sua grande conquista foi nos ter antecipado os obstculos para o progresso cientfico. No pensamento de Bacon os sentidos

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    seriam infalveis e fonte de conhecimento quando guiados por um mtodo, sendo que a induo como mtodo garantiria os princpios dos fenmenos naturais. Nota-se claramente que seu objetivo era o domnio sobre a natureza considerada fonte de grande poder. Nesse sentido, somente a observao controlada, investigao e experimentao poderiam ser o mtodo de alcance deste objetivo, j que conhecer era o mesmo que poder para Francis Bacon (GALVO, 2007).

    Ramos, Neves e Corazza (2012) enfatizam que, muito embora Bacon no tenha finalizado seu novo mtodo, chegou a convencer as geraes seguintes de que o mtodo experimental poderia ser utilizado para resolver fenmenos ocultos em explicaes cientficas. Por conseguinte, a metodologia experimental baconiana permitia usar fenmenos fsicos inexplicveis, ou ainda no explicados, desde que seus efeitos pudessem ser evidenciados experimentalmente.

    No h dvidas de que, entre essas experincias, o uso dos vidros veio a ser frequente no sculo XVI, assim como nos sculos seguintes, espalhando-se por toda Europa. O conhecimento das