História do Cartunista Glauco_ por_ Inês Castilho

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  • 8/14/2019 Histria do Cartunista Glauco_ por_ Ins Castilho

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    A histria de nossa Igreja

    Por: Ins Castilho

    Os Traos do Esprito

    Conhecido como cartunista de humor, o criador do Geraldo, da Dona Marta,

    do Z do Apocalipse e do Casal Neuras aprendeu a sonhar com Castaeda e tornou-se

    um lder espiritual do Santo Daime.

    Ferve o caldeiro de raas e culturas brasileiras. De um lado, o culto do Santo

    Daime, criado na Amaznia dos anos 30 pelo negro maranhense Raimundo Irineu

    Serra. De outro, a febril atividade da imprensa alternativa do Rio de Janeiro e de

    So Paulo, na luta contra a ditadura militar. Como imaginar que histrias to

    dessemelhantes viessem a se encontrar, miscigenar, dar frutos? Pois assim sucedeu.

    E a costura foi feita por Glauco Vilas Boas, o Glauco.

    Pouca gente sabe, mas o criador do Geraldo, do Geraldinho, do Casal Neuras,

    da Dona Marta, do Z do Apocalipse, do Doy Jorge, do Neto, da Picadinha,

    d'Ozets, o cartunista das charges polticas, publicado pela Folha de S.Paulo desde

    1977-"so 26 anos, vixe!" - tornou-se um lder espiritual. Juntou um povo e ergueu

    uma igreja do Santo Daime no Morro de Santa F, prximo do Pico do Jaragu, na

    Grande So Paulo, pela qual j passaram milhares de pessoas. "Muita gente se

    conheceu dentro do salo e se casou - j so mais de 20 crianas exclusivas da igreja

    Cu de Maria", diz, satisfeito. E resume, certeiro: " uma faculdade da Nova Era."

    As mos de Deus esto tecendo a rede. Mexendo o doce. Desde quando a

    histria comeou, em 1993 - numa casinha no bairro do Butant, depois numa

    maior, na entrada da Cidade Universitria, at chegar a esse morro -, o ponto foi se

    firmando, virou igreja e, em 2000, acabou escolhida igreja oficial de So Paulo.

    Uma irmandade est indo morar sua volta. " um condomnio de daimistas",

    explica Glauco. "Batizado de Vila Astral pelo Padrinho Alfredo." Padrinho Alfredo,

    filho do Padrinho Sebastio, comanda a doutrina desde a morte do pai, em 1990. "isso a, no tem mistrio", diz ele.

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    Mistrio tem. Porque a histria comeou muito antes, quando ele aprendeu a

    sonhar. Glauco relata coincidncias. Agradece a sorte (mas sorte poder pessoal,

    diz Carlos Castaeda). Sorte de ter encontrado, ainda em Jandaia do Sul, Paran,

    onde nasceu, um amigo que lhe apresentou o Pasquim e os Beatles, e com quem

    criou seus primeiros quadrinhos. De ter topado com dois mestres do jornalismo logo

    que chegou a Ribeiro Preto, interior de So Paulo. De ter sido premiado no Salo

    Internacional de Humor de Piracicaba em 1977, justo quando todo seu panteo -

    Henfil, Angeli, Jaguar, Millr, Ziraldo, os Caruso - fazia parte do jri. De ter sido

    hospedado pelo Henfil e adotado pelo Angeli ao chegar a So Paulo.

    Em 1975, 18 anos, Glauco foi morar em Ribeiro e logo deu as caras no jornal

    editado por Jos Hamilton Ribeiro. "A cidade tinha uma safra de feras - o Srgio de

    Souza, depois do Bondlinho, tambm foi para l montar um jornal alternativo."

    (Para quem no sabe, Jos Hamilton Ribeiro fez a cobertura, pela Realidade, da

    Guerra do Vietn. Srgio de Souza, o Serjo, foi seu companheiro de Realidade e

    o criador da revista Caros Amigos.)

    Z Hamilton Ribeiro lhe ofereceu emprego. "Foi meu primeiro padrinho", diz

    Glauco, que j tinha dois personagens, Rei Magro e Dragolino. "Eles passavam o

    dia todo queimando um", lembra. Z Hamilton tambm se recorda. "Percebi que

    estava diante de algum especial - o artista capta sinais que a gente, comum, no

    percebe. Sua presena fsica j era de oposio." Sobre o Glauco e o amigo Srgio

    de Souza, diz: "Bom mesmo so as pessoas que conseguem fundar sua prpria

    igreja - no sobre pilares de ouro, pois essas podem ser roubadas, mas sobre os

    pilares do esprito".

    Outros padrinhos se seguiram. O cartunista Angeli, que editava o Vira Lata no

    folhetim dos tempos do Tarso de Castro, comeou a publicar seu trabalho. O Henfil,

    sua maior influncia desde que conheceu o Pasquim, o hospedou durante nove

    meses. "Estou falando com Deus, pensava, quando conheci o Henfil. Os Fradinhos,

    aquele trao todo solto, o uso do palavro - o trabalho dele era um avano muito

    grande."

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    Na sombra do cartunista, contudo, nascia o sonhador. Glauco aprendeu a

    sonhar consciente com o livro A Erva do Diabo, de Carlos Castaeda. "Atravs das

    instrues dele passei a sair do corpo e a comprovar que estive em certos lugares -

    perdi muito tempo com isso. Eu ia l na frente da redao do jornal, sonhando, ia l

    e decorava o nmero do poste, numa plaquinha. Acordava e ia correndo ver - estava

    l! Passei uma poca obcecado em convencer minha razo."

    Foi quando sonhou com o Padrinho Eduardo, que ainda no conhecia. No

    sonho um ndio dizia, dirigindo-se a uma multido diante dos dois - olha, ele quem

    vai levar vocs. Acordou achando que tinha sonhado com Dom Juan Matus, o

    feiticeiro yaqui de quem Castaeda foi aprendiz. "Parecia um inca - um narigo,

    baixinho, atarracadinho... nunca esqueci aquele vinho." Foi a sinalizao do

    caminho para o Santo Daime.

    Com The Teachings of Don Juan (ttulo original e mais sensato de A Erva do

    Diabo), o antroplogo Carlos Castaeda abria, em 1968, uma corrente de ateno

    para as plantas de poder dos ndios americanos. "Ele devolveu um valor que estava

    sendo deixado de lado, que prestar ateno nas plantas professoras dos nossos

    caboclos." Muita gente considerava aquilo alienante. Mas Glauco, cartunista de

    esquerda, convivia tambm com o Budismo, com Osho... "A antropofagia me

    ensinava a possibilidade de freqentar todas essas linhas."

    A oportunidade de conhecer o Daime sempre lhe escapava. At que um dia...

    "baixou o Z do Apocalipse numa roda de bar e comecei a alugar o povo com disco

    voador, Eubiose, Dorn Bosco, Smetack, Madame Blavatsky, Rudolf Steiner, o

    Brasil sendo a ptria da Nova Era pela mistura das raas. A moada pensando: essecara doido! Fiquei meio puto e intimei meus guias - vocs tm dez minutos para

    mandar um veio de luz para me ajudar, falei com meus botes. E fiquei olhando o

    relgio." No final do tempo chegou Leo Christo, psiclogo mineiro, irmo do Frei

    Betto." Estava te esperando desde a ndia, veio", o Glauco disse para ele - que s

    relaxou quando soube que se tratava do criador do Geraldo.

    Era 1989 e o Leo lhe apresentou o Daime. Glauco comeou a freqentar acomunidade de Visconde de Mau, na fronteira do Rio com Minas Gerais, liderada

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    pelo escritor, poeta e ex-guerrilheiro Alex Polari de Alverga. Com ele foi ao Cu do

    Mapi, a comunidade-me do Santo Daime, na Amaznia. E foi l, no primeiro

    trabalho de que participou, que viu Padrinho Eduardo, o vinho do sonho. "Entendi

    que aquilo de ele dizer, no sonho, para a multido ele quem vai levar vocs...

    significava que eu ia levar um povo para o Mapi. E criei coragem para abrir um

    ponto do Daime."

    Glauco inaugurou um grupo de estudos, o que causou certo incmodo nos

    daimistas de So Paulo." Mas devagarinho o pessoal entendeu que vinha chegando

    uma moada com o meu jeito - estudantes, o pessoal da night, os viciados, toda a

    fauna paulista. O sonho era a procurao para me dar coragem." O ponto em frente

    USP exigiu mesmo muita coragem. Quando foi alugada, a casa estava ocupada por

    meninos de rua. Na frente dela trabalhavam prostitutas e travestis. A cada trabalho

    os vizinhos chamavam a polcia. Um clima meio dark, digamos.

    "Mas tinha uma luz que transcende essa trevinha", diz Glauco. "Era o amor do

    Cristo, mesmo, que eu sentia. Quando abri o porto daquela casa tinha dez meninos

    de rua ali no fundo, numa fuinha, atocaiada. Um pacotinho, de presente, pronto para

    comear o trabalho. Lembrei-me do banquete do Cristo, quando Ele convidou todo

    mundo, mas estavam todos ocupados com seus negcios. E a Ele chamou o povo,

    os simples, os desvalidos. Quando o Cu de Maria abriu ali, senti que tinha a fora

    da caridade contra a misria humana. Dois daqueles meninos esto comigo at

    hoje."

    Glauco colheu ali o seu povo. "Chegaram os artistas, a turma da Vila

    Madalena." E as mulheres. Primeiro a Kiki, madrinha da Flor das guas, igrejapioeira de So Paulo. Em seguida, as irms Paula e Bia, que se tornaram o esteio da

    casa. Depois as irms Silvia e Lu, filhas do Serjo de Souza.

    Na FM do astral:

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    Com a unio entre Bia e Glauco, firmava-se

    a igreja. "A Bia me ajudou muito a chegar a esse

    grau do Cu de Maria", diz Glauco. "A Juliana

    tambm, ela segurou o canto, junto com a Gercila,

    do Mapi." O Cu de Maria cresceu e se mudou

    para o Pico do Jaragu. Glauco e Bia construram

    ao lado da igreja

    uma casa que est

    sempre cheia de

    mapienses.

    Padrinho Eduardo,

    que j ficava muito em So Paulo, veio morar no

    condomnio com Tonho, o filho dele.

    A energia que rege o Cu de Maria feminina, diz

    Glauco. "Mestre Irineu recebeu a doutrina da Virgem Me, o

    Padrinho Sebastio falava da fora e da firmeza das mulheres. A

    msica aqui firmada nas mulheres." A msica o elemento

    ritual que lhe mais caro. O canto e os instrumentos - violo,

    flauta, percusso, o Glauco sempre na sanfona -so a base de um

    bom trabalho. "Se estiver desafinado.o couro come." Ele

    considera os hinos do Daime um tesouro musical. Seu hinrio, o Chaveirinho, traz os

    hinos ofertados plos padrinhos e os 37 que recebeu at agora (no Daime, hinos no

    so compostos, mas "recebidos").

    O culto do Santo Daime, que consagra o uso da ayahuasca, tem razes naimemorial utilizao de plantas de poder pelas tribos indgenas da Amrica, nos

    rituais de xamanismo, nos movimentos messinicos do Brasil e nas formas de

    produo no-capitalista incrustadas no sistema. H vrios livros publicados sobre o

    assunto. Podem tambm ser encontrados os relatrios do Conselho Federal de

    Entorpecentes, elaborados nas ocasies em que foi chamado a deliberar, e sempre

    liberou, o uso dessa substncia psicoativa em rituais coletivos.

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    O ch, feito das plantas professoras Banisteriopsis caapi (cip) e Psychotria

    viridis (folha rainha), tem reconhecido poder de cura, particularmente da dependncia

    de drogas, lcool, nicotina. " um dos poucos lugares onde o pessoal consegue se

    recuperar do crack, uma droga devastadora. J existem muitos depoimentos de

    pessoas que se curaram aqui", afirma Glauco. H tambm relatos de estabilizao de

    casos de Aids e cncer. "A cura todos vivem, seja ela fsica, mental ou espiritual. Se

    voc est harmonizado, o Daime lhe mostra realidades muito finas, superiores. Mas

    enquanto no arruma a casa no d para sintonizar naquela FM do astral", diz.

    Glauco considera que estamos vivendo, h tempos, um apocalipse ambiental.

    Mas tem esperana na conscincia que v despertar no mundo. "Vai que, de repente,

    vira e o povo comea a dar valor a essa cultura que sempre negou, acho que d tempo

    de mudar." Sua ligao com os ndios forte. Os dois filhos, ambos com 18 anos, tm

    nomes indgenas - Ipojucam e Raoni, este j iniciado na doutrina. "O Daime uma

    floresta concentrada. Quando entrei na mata pela primeira vez senti que era habitada,

    cheia de seres espirituais. Cada rvore derrubada tinha uma energia espiritual que no

    vai mais poder ser aparelhada. Mas acho que o Brasil ainda tem muita mata, d para a

    gente acordar, para segurar esse povo".