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IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DOS ENTES DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO MARCELO ALEXANDRINO DA COSTA SANTOS 2007

Imunidade de jurisdição dos entes de direito público externo

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Artigo de Marcelo Alexandrino da Costa Santos

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IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO

DOS ENTES DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO

MARCELO ALEXANDRINO DA COSTA SANTOS

2007

• INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 3

• JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA ...................................................................................... 4

• A COMPETÊNCIA DOS ÓRGÃOS JURISDICIONAIS NACIONAIS E OS ENTES

DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO ..............................................................................6

• FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E IMUNIDADE DE

JURISDIÇÃO ...................................................................................................................8

• CONCLUSÃO ......................................................................................................................15

• REFERÊNCIAS ...................................................................................................................16

1. Introdução

A relativização da imunidade de jurisdição dos entes de direito público

externo é questão comumente enfrentada pelos tribunais pátrios, que, por vezes, cedem à

tentação de atribuir às regras de fixação da competência inscritas na Constituição de 1988

autoridade para justificá-la1. Contudo, é relevante delimitar as verdadeiras causas da

mitigação da imunidade, buscando-as na evolução do direito internacional público, sob

pena de confundirem-se conceitos básicos da teoria geral do processo e os limites

territoriais da eficácia do direito nacional – e este é o objetivo do presente trabalho.

Para tanto, analisar-se-ão, nas próximas linhas, temas pertinentes aos planos

interno e internacional, amparando a pesquisa na doutrina e na jurisprudência e esperando-se,

por fim, demonstrar o que está por detrás do atual reconhecimento de imunidade meramente

relativa aos entes de direito público externo.

2. Jurisdição e competência:

Tem-se comumente conceituado competência como o limite ou a medida de

1 Cf., por exemplo, o trecho da seguinte ementa do Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região:“IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. [...]Com o advento da Constituição Federal de 1988, o seu artigo 114 veio a estabelecer expressamente a competência da justiça do trabalho para julgar dissídio envolvendo ente de direito público externo, não prevalecendo mais a teoria da imunidade jurisdicional no caso de demanda trabalhista ajuizada por súdito local contra representação diplomática estrangeira.” RO 08846-93. 3. Turma. Relator: Juiz Paulo Roberto Capanema da Fonseca. DORJ 11-05-2001, P. III, S. II, 3. Recorrente: Centro Pan-Americano de Febre Aftosa. Recorrido: Cleber de Souza Isidoro.

No mesmo sentido, o Tribunal Superior do Trabalho:AÇÃO RESCISÓRIA - IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO NA EXECUÇÃO - POSSIBILIDADE DE LEVANTAMENTO DO DEPÓSITO RECURSAL. O art. 114 da Carta Magna de 1988 incluiu entre as partes que podem ter demandas na Justiça do Trabalho os entes de direito público externo, a par de assegurar à Justiça especializada a apreciação dos litígios decorrentes do cumprimento de suas decisões. Já é pacífica na jurisprudência pátria, em seguimento à orientação do STF, que os Estados estrangeiros e os Organismos internacionais não gozam de imunidade de jurisdição na fase de conhecimento. ROAR 771910/2001. SbDI II. Relator: Min. Ives Gandra Martins Filho. DJ 15-03-2002. Recorrente: José Orlando da Silva. Recorrido: Organização dos Estados Americanos – OEA.

jurisdição atribuída a cada juízo2. Tal conceito carece de séria reavaliação, já que, graças a

ele, temas como a imunidade de jurisdição, não raro, são debatidos à luz de premissas que

dizem respeito, tão-somente, à competência dos órgãos jurisdicionais.

Jurisdição, em sentido estrito, é “uma função do Estado, mediante a qual este

se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a

pacificação dos conflitos que os envolvem, com justiça”.3 É elemento integrante da

soberania, e, tal qual esta, é una e indivisível. Todo juiz é titular desse poder-dever

insuscetível de fracionamento; logo, a idéia de competência como limite ou porção de

jurisdição choca-se frontalmente com a unidade e a indivisibilidade do poder-dever

jurisdicional.

Jorge Pinheiro Castelo, respaldado em Celso Neves, correlaciona a

competência à capacidade para o exercício da jurisdição.4 Assim, concluiríamos que, pelo

fenômeno da competência, estar-se-ia denegando capacidade a determinados juízes para

decidir sobre certas questões.

Esse raciocínio tem a virtude de dissociar a competência da jurisdição, mas

não se sustenta por muito tempo. É que a subtração da capacidade, como ensina Caio

Mário, é medida de “proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente

apreciável”.5 Ademais, a incapacidade traduz-se numa diminuição de poderes, em maior ou

menor grau, que abarca a prática de todos, e não de apenas alguns atos jurídicos.6

Dizer ser incapaz o juiz (rectius: juízo) incompetente, a toda evidência,

refugiria à idéia de proteção ao portador de deficiência juridicamente apreciável.

2 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile. 1. vol. 3. ed. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1974. p. 43; COSTA, Sergio. Manuale di diritto processuale civile. Torino: UTET, 1966. p. 135; CINTRA, Antonio Carlos de Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 228; TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A Sentença no processo do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 1996. p. 154.3 CINTRA, Antonio Carlos de Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 125.4 CASTELO, Jorge Pinheiro. O direito processual do trabalho na moderna teoria geral do processo. 2. ed. São Paulo: LTr, 1996. p. 86.5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 168.

6 Idem, p. 167-8.

Muito apropriadamente, Alexandre Freitas Câmara faz notar que a questão

concernente à competência “não é de quantidade de jurisdição, mas dos limites em que cada

órgão jurisdicional pode legitimamente exercer esta função estatal”7.

Ora, se trata-se de limites para o exercício de um poder (neste caso, o poder-

dever de prestar a tutela jurisdicional), está-se a falar de legitimação, não de capacidade. Ao

contrário da incapacidade, que se estende à prática de todos os atos da vida civil, a ausência

de legitimação é específica para determinados atos.

A propósito, a lição de Orlando Gomes:

A idoneidade para o exercício de um direito chama-se legitimação. A capacidade é abstrata; a legitimação, concreta. Diz-se que o sujeito capaz está legitimado a exercer o direito de que é titular quando pode agir em concreto.8

É, pois, legitimação para a realização de certos atos que a lei atribui ao juízo

ao fixar a sua competência, visando a dar praticabilidade e, assim, viabilidade à prestação

da tutela jurisdicional. Assim entendida, a competência deixa de espelhar qualquer

comprometimento em relação à quantidade de jurisdição atribuída a cada órgão

jurisdicional, evidenciando, porém, a necessidade de se impor limites ao exercício da

função estatal por questão de ordem prática.

Pode-se, pois, conceituar a competência como a delimitação da legitimação

dos órgãos judicantes para o exercício da função jurisdicional, ou, seguindo Alexandre

Freitas Câmara, como o conjunto de limites dentro dos quais cada órgão do Judiciário

pode legitimamente exercer a função jurisdicional.

3. A competência dos órgãos jurisdicionais nacionais e os entes de

direito público externo:

Seguindo a doutrina de Chiovenda, o direito brasileiro adota os critérios

7 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito processual civil. 1. vol. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998. p. 95.8 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. P. 142/143.

objetivo, funcional e territorial na tarefa de fixação da competência9.

Em breves linhas, podemos afirmar que o critério objetivo subdivide-se em

competência em razão do valor da causa e da matéria, referindo, respectivamente, ao valor

necessariamente atribuído por força do art. 258 do CPC e à natureza da pretensão deduzida

em juízo.

Pelo critério funcional, a competência é distribuída de acordo com a função

exercida no curso de um mesmo processo, por um ou diferentes juízos. Assim, temos o

juízo deprecante e deprecado, o juízo originário e os tribunais, o juízo perante o qual se

desenvolve a atividade de conhecimento e a de execução.10

Finalmente, na fixação da competência territorial ou de foro, leva-se em

conta a localização do órgão jurisdicional legitimado para apreciar a causa.

Diz-se, ainda, da competência em razão da pessoa, ou seja, fixada em

função de uma específica qualidade da(s) parte(s) ligitante(s).

Para os fins deste trabalho, importa-nos a fixação da competência segundo os

incisos I e II do artigo 109 e I do art. 114 da Constituição da República:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I. As causas em que a União, entidade autárquica ou empresa

pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés,

assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente

de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do

Trabalho;

II. as causas entre Estado estrangeiro ou organismo

internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente

no País;

[...]

9 Idem, p. 96.

10 A questão da competência na execução é controvertida. Pires Chaves, Campos Batalha, Rezende Filho e outros entendem-na material (Cf. PINTO, José Augusto Rodrigues. Execução trabalhista. 8. ed. São Paulo: LTr, 1998. p. 51). Para Carnelutti, “já que em razão da distinta natureza da lide muda também a estrutura do processo, esta é uma competência na qual se confundem os caracteres da competência funcional e material” (CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. 1. vol. Campinas: Servanda. 1999. p. 269)

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I. as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os

entes de direito público externo e da administração pública

direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos Municípios.

Extrai-se de tais regras que (a) as causas que envolvam entes de direito público

externo em litígio com a União, entidade autárquica, empresa pública federal, Municípios ou

pessoa residente ou domiciliada no País serão submetidas à Justiça Federal, desde que (b) não

sejam oriundas da relação de trabalho – caso em que serão apreciadas pela Justiça do

Trabalho. Releva salientar, ainda, que as causas relativas a acidente do trabalho inscrevem-se

na competência residual do Poder Judiciário dos Estados, e que os entes internacionais de que

está-se a tratar não estão, por óbvio, sujeitos à falência ou à legislação eleitoral.

A questão que ora se põe é: são as regras constitucionais acima que conferem

ao Estado brasileiro jurisdição sobre entes de direito público externo e organismos

internacionais? A resposta é negativa; afinal, como já explicitado, essas regras versam sobre

competência, ou seja, sobre os limites nos quais os juízos exercem legitimamente a jurisdição,

não sobre a jurisdição em si mesmo considerada. Se fixam-se limites para o legítimo exercício

da jurisdição, é porque esta preexiste a tais limites. Mais: a Constituição integra o direito

interno e, portanto, suas regras e princípios não impõem-se aos entes de direito público externo

e organismos internacionais, já, a par da questão da soberania, a criação das normas é obra

direta de seus destinatários.11

Que fenômeno, então, autoriza a Constituição pátria a reconhecer a

possibilidade de moverem-se demandas judiciais em face de pessoas jurídicas de direito

público externo? O primeiro passo para responder-se a esta questão está na identificação das

fontes do direito internacional público.

4. Fontes do Direito Internacional Público e Imunidade de Jurisdição:

11 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 1.

De acordo com José Francisco Rezek12, no Estatuto da Corte da Haia, primeiro

tribunal vocacionado a resolver litígios entre os Estados sem qualquer limitação de ordem

geográfica ou temática, estão relacionados como fontes: os tratados, os costumes e os

princípios gerais do direito. O estatuto refere também à jurisprudência e à doutrina como

meios auxiliares na determinação das regras jurídicas, e faculta, sob certas condições, o

emprego da eqüidade.13

Tratando-se a imunidade de jurisdição de fenômeno jurídico atinente ao plano

internacional, é entre essas fontes – e não fontes de direito interno – que deve-se identificá-lo.

Refere o mesmo autor que não há qualquer norma escrita que confira

imunidade absoluta de jurisdição aos Estados, encontrando-se nas Convenções de Viena

dispositivos que apenas asseguram tais prerrogativas aos diplomatas e cônsules, na medida em

que aos negociadores daquelas convenções pareceu supérfluo objetivar uma antiga norma

costumeira segundo a qual um Estado soberano não poderia ser forçosamente submetido, na

condição de parte, à jurisdição de outro14.

Esse antigo costume, expresso pelo aforismo par in parem non habet judicium,

em sua origem medieval era voltado à pessoa do monarca e de seus agentes (par in parem non

habet imperium) e, com o passar do tempo e o deslocamento da noção de soberania do rei para

o Estado moderno, teve sua finalidade direcionada à proteção das relações diplomáticas,

evitando que atos judiciais coercitivos fossem utilizados como represálias em função de

12 Idem, p. 9.13 Dispõe o artigo 38 do Estatuto:

“1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsia que lhe forem submetidas, aplicará:a) as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras

expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;b) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito;c) os princípios gerais do direito, reconhecidos pelas nações civilizadas;d) sob reserva da disposição do art. 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito.2. A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão “ex aequo et bono”, se as partes com isso concordarem.”

O fato de o Estatuto não contemplar as decisões unilaterais dos Estados e aquelas tomadas pelos organismos internacionais é irrelevante para os fins deste estudo.14 REZEK, José Francisco. op. cit. p. 173.

decisões alienígenas contrárias aos interesses de um determinado Estado.15 Seu

reconhecimento pela jurisprudência deu-se sobretudo no século XIX, quando os tribunais das

mais variadas nacionalidades, embora com algum grau de divergência, passaram a aplicá-lo

em larga escala, contribuindo para o desenvolvimento progressivo da noção doutrinária da

imunidade de jurisdição.

A princípio, dava-se ao costume em tela a nota de absoluto16, isentando os

entes de direito público externo e organismos internacionais – salvo expressa renúncia da

imunidade - de toda e qualquer demanda judicial em face deles proposta, com inspiração no

conceito “hobbesiano-maquiavélico ex parte príncipe de soberania”17. Assim, não submetiam-

se à jurisdição local caso viessem a descumprir a legislação local, muito embora sujeitos a

esta quando atuando em território estrangeiro. Jurisprudência brasileira ainda recente espelha

esse entendimento, como revela a seguinte ementa:

"Imunidade de Jurisdição. Sendo o reclamado órgão de estado

estrangeiro, goza de imunidade de jurisdição perante a justiça

brasileira, especialmente perante a justiça do trabalho, sendo

carecedor de ação neste caso o reclamante.". TRT-RJ. RO

4020-79. 1a Turma. Relator: Juiz Walther Torres. Julgado em

09-07-80. DORJ, III. Fonte: < http://www.trtrio.gov.br/cgi-bin/

om_isapi.dll?

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%5d&infobase=JURIS4.NFO&record={618C}&recordswithhi

ts=on&softpage=Doc_Frame_Pg > Acesso em 16 DEZ 2006.

15 ALVES, Laerte Meyer de Castro. Imunidade de jurisdição dos estados estrangeiros em matéria trabalhista no Brasil. disponível em < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8115>. Acesso em 10 Dez 2006. 16 Segundo Meyer de Castro, op. cit., tal pensamento enraizou-se na jurisprudência a partir do julgamento do caso The Schooner Exchange vs McFaddon pela Suprema Corte norte-americana, em 1812.17 VIEIRA, Oscar Vilhena. Imunidades de jurisdição e foro por prerrogativa de função. Disponível em < http://dhnet.org.br/direitos/sip/tpi/textos/tpi_vilhena.html> Acesso em 10 Dez 2006.

Não é difícil de imaginar que o caráter absoluto atribuído ao princípio

sacrificava significativas aspirações de justiça social, já que, graças à expansão do liberalismo,

os Estados passaram a celebrar os mais variados contratos privados com particulares, que

viam-se em situação de inferioridade ao pleitear o cumprimento de obrigações eventualmente

inadimplidas pelos entes estatais estrangeiros ou seus representantes, cabendo salientar que

“quase todos os postulantes da prestação jurisdicional, frustrados ante o reconhecimento da

imunidade, eram ex-empregados de missões diplomáticas e consulares, desejosos de ver

garantidos seus direitos trabalhistas”.18

Assim, pouco a pouco a questão da imunidade de jurisdição passou a ser

enfrentada com um grau de rigidez não tão acentuado já na metade do século XX sendo

comum que nos grandes centros de negócios negasse-se imunidade até mesmo aos

representantes diplomáticos e agentes consulares – protegidos, como já referido, pelas

Convenções de Viena – quando os atos por ele praticados não se inserissem nas atividades

típicas de diplomacia ou serviço consular.

Iniciou-se desta forma a tendência jurisprudencial de análise casualística com

base na separação entre os atos de império e os atos privados ou de mera gestão, excluindo-se

os praticantes destes últimos da proteção absoluta até então conferida. Ementa recente espelha

o entendimento que já ganhava força naquela época:

JUSTIÇA DO TRABALHO - COMPETÊNCIA –

IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO – ESTRANGEIRO. Na

hipótese, a relação entre recorrente e recorrido nada tem a ver

com o privilégio da imunidade, por força da vinculação da parte

contratante a ente público internacional. ao contratar o serviçal,

não o fez o recorrido em nome do estado que representa, sendo

pessoal a responsabilidade, no particular. TRT-RJ. RO 17571-

91. 8a Turma. Relatora: Juíza Amélia Valadão Lopes. DORJ,

III, de 06-04-94. Recorrente: Severino Ramos Filho. Recorrido:

18 REZEK, José Francisco. op. cit. p. 174.

Marc Gerber. Fonte: < http://www.trtrio.gov.br/cgi-

bin/om_isapi.dll?

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ts=on&softpage=Doc_Frame_Pg > Acesso em 16 DEZ 2006.

Abriu-se caminho, assim, à adoção da chamada “imunidade relativa”, cuja

implicação prática é

que um Estado não mais se beneficiará da prerrogativa de ser

imune perante a jurisdição de outro Estado, quando a

controvérsia for oriunda de um ato de gestão praticado pelo

primeiro. Isso quer dizer que o Estado estrangeiro figurará

como parte na ação judicial proposta perante o tribunal local,

que poderá apreciar o mérito da causa, vinculando as partes

por meio da sua decisão.19

Em função da evolução da leitura do costume, logo surgiram normas escritas,

muitas de caráter estritamente nacional, com o fim de mitigar as dificuldades inerentes à

diferenciação dos atos de impérios daqueles de gestão em determinados casos. Em tal rol

incluem-se: Projeto de Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e

de seus Bens (Comissão de Direito Internacional da ONU); Convenção Européia Sobre

Imunidade do Estado (Convenção da Basiléia, 1972); U.S. Foreign Sovereign Immunity Act

(Estados Unidos, 1976); U.K. State Immunity Act (Reino Unido, 1978); Singapore State

Immunity Act; (Singapura, 1979); South Africa Foreign States Immunities Act (África Do Sul,

1981); Pakistan State Immunity Ordinance (Paquistão, 1981); Canada Act to Provide for State

Immunity in Canadian Courts (Canadá, 1982); Australia Foreign States Immunities Act

(Austrália, 1985); Inmunidad Jurisdiccional de los Estados Extranjeros ante los Tribunales

19 ALVES, Laerte Meyer de Castro. op. loc. cit.

Argentinos (Argentina, 1995).20

A seguinte ementa, extraída do acórdão proferido no agravo 4107/05-4 do

Tribunal da Relação de Lisboa (Relatora Maria João Romba), ilustra bem o desenvolvimento

da jurisprudência a respeito do tema ora tratado:I - Configura acção de indemnização fundada em responsabilidade civil,

emergente do incumprimento de uma obrigação acessória do contrato de

trabalho – como é a obrigação contributiva perante a Segurança Social – ou,

pelo menos, fundada no enriquecimento sem causa (art. 473º e segs. do CC),

e não execução para pagamento coercivo das contribuições à

Segurança Social, como à primeira vista se poderia pensar, aquela em que

um trabalhador demanda a entidade patronal pedindo a respectiva

condenação a pagar à Segurança Social as contribuições relativas à

actividade

prestada ao seu serviço durante certo período, como forma de obter a

reparação, por reconstituição natural, do prejuízo causado ao A. pelo

comportamento da R. que consiste na omissão de tal pagamento, o que, pela

repercussão que necessariamente terá no valor da pensão de velhice a que o

A. terá direito, é causa adequada do prejuízo que se traduz na diferença

entre o valor da pensão calculada com base em todos os salários que auferiu

ao longo da sua carreira profissional e da pensão calculada sem considerar

os salários do período em causa.

20 Segundo Laerte Meyer de Castro Alves, que relaciona essas normas no artigo já citado, “fazendo-se uma análise dos dois mais importantes documentos de direito internacional sobre imunidades dos Estados (o Projeto de Convenção da CDI sobre Imunidades dos Estados e a Convenção Européia de 1972) podemos concluir que em termos gerais, os Estados estrangeiros não fazem jus às imunidades: quando atuam como particular em atividades industriais, comerciais, financeiras ou de prestação de serviços; em litígios oriundos de contratos de trabalho ou de prestação de serviços (salvo se o objeto for o recrutamento, a renovação ou reintegração do contratado) celebrados com indivíduos nacionais ou habitualmente residentes no Estado do foro, em que o trabalho ou serviço seja executado neste, desde que os indivíduos não sejam nacionais do Estado empregador ou tenham sido admitidos para exercerem funções estreitamente relacionadas com a autoridade governamental; em ações de indenização por danos causados a pessoas ou bens materiais no território do Estado do foro, nas quais seja apurada a responsabilidade civil do Estado estrangeiro; em procedimentos que envolvam direitos reais ou estejam relacionadas à propriedade ou posse de bens imóveis; em questões sucessórias onde o Estado recebeu bens a título não oneroso e em procedimentos falimentares de empresas onde o Estado figure como sócio, acionista ou proprietário; em demandas que tenham como objeto bens incorpóreos concernentes a direitos autorais, intelectuais e industriais; ao participar de uma sociedade comercial ou outro ente dotado de personalidade jurídica que tenha sede, filial ou agência no Estado do foro, em conflitos que versem sobre o relacionamento do Estado com a própria sociedade ou com os outros participantes, desde que estes não sejam somente outros sujeitos de personalidade internacional; em lides envolvendo operações de navios de propriedade do Estado que não sejam utilizados para fins governamentais; na hipótese do Estado se submeter à arbitragem, cujos procedimentos decorram no território do Estado do foro ou quando o seu direito seja aplicável, exceto conste diferente previsão no compromisso arbitral.

II- Porque a competência do Tribunal se afere pelos termos em que o

A. delineia a causa, é competente para esta acção o Tribunal do Trabalho,

por se tratar de uma acção emergente de uma relação de trabalho

subordinado, já que, subjacente ao comportamento ilícito e culposo

imputado

ao R., ou pelo menos ao enriquecimento ilegítimo do mesmo, está uma

obrigação legal que só existe porque entre as partes vigorou um contrato de

trabalho.

III- Face ao objecto da acção tal como ficou delineado, o prazo de

prescrição a considerar é o previsto para os créditos resultantes

do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação (art. 38º nº 1 da

LCT) e não o previsto no art. 49º da Lei de Bases da Segurança Social (L. nº

32/2002).

IV- A imunidade jurisdicional dos Estados é um princípio de direito

internacional público, corolário da igualdade dos Estados, que

visa garantir o respeito pela soberania.

V- Se alguma vez tal princípio teve carácter absoluto, tem vindo

a perdê-lo, sendo hoje dominante na doutrina e na

jurisprudência internacionais a concepção restrita da imunidade judiciária

dos Estados.

VI- De acordo com a teoria restrita da imunidade, importa saber se o

caso em litígio diz respeito à actividade soberana do Estado (jure imperii)

ou a actos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados

por um particular (jure gestionis).

VII- A actuação do Estado estrangeiro que, enquanto empregador, omitiu

o pagamento à Segurança Social das contribuições relativas a um

seu trabalhador subordinado, sem funções de responsabilidade no

serviço público prestado pelo Consulado, configura um acto jure gestionis,

não beneficiando, pois, de imunidade

jurisdicional.

VIII- O mesmo não vale relativamente às acções de impugnação

de despedimento colectivo, na medida em que o fundamento para o

despedimento se enquadre numa reestruturação dos serviços consulares, em

conformidade com orientações do respectivo Ministério das Relações

Exteriores, por esse acto configurar um verdadeiro acto de soberania (jure

imperii) relativamente ao qual tem cabimento a invocação da

imunidade jurisdicional, falecendo assim à jurisdição portuguesa

competência internacional para conhecer do litígio.21

Como se vê, a orientação internacional corrente é de reconhecer imunidade de

jurisdição aos praticantes de atos de império – “a um domínio regido seja pelo direito das

gentes, seja pelas leis do próprio Estado estrangeiro: suas relações com o Estado local ou co

terceira soberania, com seus próprios agentes recrutados de origem, com seus súditos em

matéria de direito público”22 - sejam ou não arrolados de forma mais ou menos taxativa, em

normas escritas, quais atos estariam excluídos de tal conceito.

Essa orientação foi definitivamente reconhecida pela jurisprudência brasileira a

partir do voto condutor do então ministro Francisco Rezek, proferido no caso Genny de

Oliveira vs. Embaixada da República Democrática Alemã. Eis a ementa do acórdão do Pleno

do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo Ministro Sidney Sanches:

ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE JUDICIÁRIA.

CAUSA TRABALHISTA. Não há imunidade de jurisdição

para o estado estrangeiro, em causa de natureza trabalhista. em

princípio, esta deve ser processada e julgada pela Justiça do

Trabalho, se ajuizada depois do advento da Constituição

Federal de 1988 (art. 114). Na hipótese, porém, permanece a

competência da Justiça Federal, em face do disposto no

parágrafo 10 do art. 27 do A.D.C.T. da Constituição Federal de

1988, c/c art. 125, II, da E.C. n. 1/69. Recurso Ordinário

conhecido e provido pelo supremo tribunal federal para se

afastar a imunidade judiciária reconhecida pelo juízo federal de

primeiro grau, que deve prosseguir no julgamento da causa,

como de direito. (Aci 9696/SP. Data de Julgamento:

31.05.1989).

Releva, ainda, citarem-se exemplos mais recentes:

21 Cf. o inteiro teor do acórdão em <http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/98cff20fb559315b8025709f0033c537?OpenDocument > Acesso em 16 Dez 2006.22 Rezek, José Francisco. Op. cit. p. 177.

IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. LITÍGIO ENTRE ESTADO ESTRANGEIRO E O DISTRITO FEDERAL. AÇÃO CIVIL DE REPARAÇÃO PATRIMONIAL (ACIDENTE QUE ENVOLVE VEÍCULO DIPLOMÁTICO). COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (CF, ART. 102, I, "e"). EVOLUÇÃO DO TEMA NA DOUTRINA, NA LEGISLAÇÃO COMPARADA E NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: DA IMUNIDADE JURISDICIONAL ABSOLUTA À IMUNIDADE JURISDICIONAL MERAMENTE RELATIVA. PRECEDENTES DO STF (RTJ 133/159 e RTJ 161/643-644). (STF, ACO 575/DF. Despacho Monocrático, Ministro Celso de Mello. Data: 01.10.2000).

e

RECURSO DE REVISTA. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. ORGANISMO INTERNACIONAL. ONU/PNUD. Os organismos internacionais não detêm imunidade de jurisdição em relação às demandas que envolvem atos de gestão, como na presente hipótese, em que se debate o direito a parcelas decorrentes da relação de trabalho mantida entre as partes. Recurso a que se dá provimento. (Tribunal Superior do Trabalho, RR-797/2004-001-10-00.9. Relator: Ministro Gelson de Azevedo, 5a Turma. DJU 23 de junho de 2006).

Em suma, a imunidade de jurisdição dos Estados tem a natureza de norma

consuetudinária de direito internacional público, e, consoante a interpretação atual, não se

aplica a atos privados ou de gestão. Foi essa evolução do costume – da imunidade absoluta

para a relativa – que possibilitou ao constituinte pátrio dispor sobre a competência dos órgãos

jurisdicionais quanto às causas que envolvam pessoas jurídicas de direito público externo e

organismos internacionais.

6. Conclusão

Com este trabalho, espera-se ter demonstrado, ainda que sucintamente,

como a evolução das regras costumeiras do Direito Internacional Público – e não as regras

constitucionais de fixação competência – levou à relativização do conceito de imunidade de

jurisdição dos entes de direito público externo e organismos internacionais no Brasil,

especialmente no que concerne à fase de conhecimento.

O tema é extenso, ainda que se o tenha delimitado ao máximo; portanto, não

se espera tê-lo esgotado, mas sim aberto portas para novos questionamentos.

Cabe acrescentar que, por força das Convenções de Viena de 1961 e 1963,

os bens afetos à representação diplomática ou consular gozam de inviolabilidade; logo,

somente poderão ser penhorados e alienados por via judicial caso haja expressa renúncia a

essa proteção por parte do Estado estrangeiro. Mas essa é uma outra história.

7. Referências:

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