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74 REPRESENTAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDOS O presente artigo pretende explorar o conceito de narrativa visual com base numa animação (a partir de desenho) com recurso ao modo visual (linguagem visual) e apoio sonoro (para-linguagem). Enquadrado numa abordagem da Semiótica Social, iremos mostrar que a escolha do modo vai determinar as estruturas genéricas do género nar- rativo resultante da escolha do modo no qual o género é realizado. Por modo queremos significar o papel da linguagem, ou seja, a natureza do meio pela qual os significados são construídos. De acordo com a categorização proposta por Bor- dwell e Thompson (2001), os filmes são classificados em ficção, documentário, experimental e animação de acordo com a natureza do filme e a forma como o ma- terial foi escolhido. Os autores acrescentam que os fil- mes têm uma forma básica, ou um sistema de relações entre as partes, que podem ser classificados de narra- tiva, categórico, retórico, abstracto e associativo. O cor- pus em análise, de acordo com esta proposta, inscreve- se no filme de animação na forma narrativa. A abordagem da Semiótica Social ao género segue a perspectiva da função do texto nos seus múltiplos contextos, ou seja, aquilo que as pessoas fazem com os textos. Assim, as diferentes estruturas – início, meio e fim – são importantes na construção do acto comunicativo. O corpus é constituído por um filme de animação O Dia em que o Sr. Raposo…, realizado por alunos da Esco- la Superior de Arte e Design, das Caldas da Rainha (ESAD.CR). Andreia Páscoa, João Cabaço e Daniel Sil- va foram responsáveis pelo desenho, som e animação; Narrativa visual: o interplay entre modo e estruturas genéricas* RESUMO O presente artigo pretende explorar a narrativa visual a partir da variante de registo – o modo – para mostrar que as estruturas genéricas do género são determina- das pelo uso dos recursos semióticos que o produtor de texto escolhe para a concretização da função do tex- to. PALAVRAS-CHAVE Estrutura genérica Modo Recursos semióticos ABSTRACT This article aims at exploring the genre, visual narrati- ve, from the register variable –mode – to show how the generic structures of the genre are determined by the use and constituency of semiotic resources chosen by the text producer, in order to accomplish his text. KEY WORDS Generic structure Mode Semiotic resources Carminda Silvestre Professora do Instituto Politécnico de Leiria – ESTG/ILTEC/PT [email protected] Madalena Gonçalves Professora do Instituto Politécnico de Leiria – ESAD/PT [email protected] Revista FAMECOS • Porto Alegre • v. 17 • n. 1 • p. 74-82 • janeiro/abril • 2010

interplay entre modo e estruturas genéricas*

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REPRESENTAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDOS

O presente artigo pretende explorar o conceito de narrativa visualcom base numa animação (a partir de desenho) com recursoao modo visual (linguagem visual) e apoio sonoro(para-linguagem). Enquadrado numa abordagem daSemiótica Social, iremos mostrar que a escolha do modovai determinar as estruturas genéricas do género nar-rativo resultante da escolha do modo no qual o géneroé realizado. Por modo queremos significar o papel dalinguagem, ou seja, a natureza do meio pela qual ossignificados são construídos.

De acordo com a categorização proposta por Bor-dwell e Thompson (2001), os filmes são classificadosem ficção, documentário, experimental e animação deacordo com a natureza do filme e a forma como o ma-terial foi escolhido. Os autores acrescentam que os fil-mes têm uma forma básica, ou um sistema de relaçõesentre as partes, que podem ser classificados de narra-tiva, categórico, retórico, abstracto e associativo. O cor-pus em análise, de acordo com esta proposta, inscreve-se no filme de animação na forma narrativa.

A abordagem da Semiótica Socialao género segue a perspectiva da

função do texto nos seus múltiploscontextos, ou seja, aquilo que as

pessoas fazem com os textos.Assim, as diferentes estruturas –

início, meio e fim – sãoimportantes na construção

do acto comunicativo.O corpus é constituído por um filme de animação O

Dia em que o Sr. Raposo…, realizado por alunos da Esco-la Superior de Arte e Design, das Caldas da Rainha(ESAD.CR). Andreia Páscoa, João Cabaço e Daniel Sil-va foram responsáveis pelo desenho, som e animação;

Narrativa visual: o interplay entre modoe estruturas genéricas*

RESUMOO presente artigo pretende explorar a narrativa visuala partir da variante de registo – o modo – para mostrarque as estruturas genéricas do género são determina-das pelo uso dos recursos semióticos que o produtorde texto escolhe para a concretização da função do tex-to.

PALAVRAS-CHAVEEstrutura genéricaModoRecursos semióticos

ABSTRACTThis article aims at exploring the genre, visual narrati-ve, from the register variable –mode – to show howthe generic structures of the genre are determined bythe use and constituency of semiotic resources chosenby the text producer, in order to accomplish his text.

KEY WORDSGeneric structureModeSemiotic resources

Carminda SilvestreProfessora do Instituto Politécnico de Leiria – ESTG/ILTEC/[email protected]

Madalena GonçalvesProfessora do Instituto Politécnico de Leiria – ESAD/[email protected]

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Narrativa visual: o interplay entre modo e estruturas genéricas

Hugo Guerra, pela montagem. Realizaram este traba-lho no âmbito da disciplina de Animação, do 5º ano docurso de Artes Plásticas, no ano lectivo de 2003-2004.

Trata-se de um remake, em versão humana, da fá-bula O corvo e a raposa. A fábula, que remonta ao séc.VI a.C. e é atribuída a Esopo, conhece a notoriedadeque hoje lhe asseguramos com La Fontaine (1621-1695),que se terá inspirado naquele autor da Antiguidade(bem como em fabulistas italianos do Renascimento)para compor esta e as restantes fábulas que integramos diversos livros dos volumes que compõem a suafamosa recolha. É sabido que La Fontaine se serve deAnimais para instruir os Homens, como ele própriodiz na Dedicatória da obra que oferece ao Delfim (oprimogénito de Luís XIV). Mas a versão de O corvo e araposa que a equipa de estudantes da ESAD.CR trouxepara o cinema de animação elimina os animais da suatrama mantendo, no entanto, o propósito moral rece-bido da tradição, tanto grega e renascentista, quanto aque o séc. XVII francês nos legou pelo punho directode La Fontaine. Ou seja, no final da história que acom-panhamos em versão animada, a lição clássica que atra-vessou séculos e chegou incólume aos dias de hoje per-manece a mesma e vem ao de cima: a lisonja leva àperda de quem se deixa lisonjear.

Porém, a graça e a novidade deste remake residemem dois factores principais: primeiro, no facto de a mo-ral da fábula ser protagonizada por um casal de idosos(de quem não se esperam senão actos moralmente irre-preensíveis), ele no papel de raposa1 (ainda que sem amalícia explícita desta) e ela no de corvo (exibindo umaponta de mal disfarçada afectação), e, segundo, no acha-do feliz de ser uma dentadura a ocupar o lugar do quei-jo na versão tradicional, simbolizando este objecto (porrelação metonímica com o queijo e de forma bem icóni-ca) o desejo básico de comer e o meio prático de o satis-fazer, e dando forma quase caricatural ao problema pes-soal do Sr. Raposo que, por falta de dentes, sofre pornão poder mastigar os alimentos.

No âmbito do trabalho que realizamos, importaestudar tanto textos canónicos como aqueles produzi-dos por pessoas não especializadas, cujos produtos(textos) foram aceites, interpretados e consumidos.Dessa forma, podermos analisar e compreender comofunciona a linguagem naquilo que se constitui comoindividual e único, mas, simultaneamente, fazendoparte do género.

Enquadramento teóricoO conceito de género apresenta nuances na sua for-

mulação em consequência de perspectivas resultantes

dos enquadramentos teóricos onde o conceito é estu-dado (O’ Halloran, 2004). O enfoque teórico determi-na, assim, a forma como definimos o conceito.

Na classificação do género, há três vertentes quesão recorrentes para essa tipificação: o conteúdo, a for-ma e a função (Van Leeuwen, 2005). Por exemplo, oscontos de fadas são classificados de acordo com o con-teúdo; no caso do quarteto de cordas, a abordagem daforma é determinante para a sua classificação. A for-ma de expressão do quarteto de cordas, qualquer queseja a música tocada, é classificada em conformidadecom a composição da forma de expressão; o texto pu-blicitário é classificado em conformidade com a fun-ção do texto, ou seja, o propósito do acto comunicati-vo – vender produtos ou serviços. Existe, assim, algu-ma fluidez na classificação, mas apesar dessa ausên-cia de rigidez classificatória, a audiência, regra geral,reconhece as convenções de género. Estamos peranteum campo em que a diversidade de classificação égrande como também são as abordagens teóricas aosgéneros textuais.

Swales (1993, p. 61), por exemplo, no seu livro Gen-re Analysis refere a narrativa como um pré-género, de-finindo-o da seguinte forma:

A narração (falada ou escrita) opera através de umquadro de sucessões temporais nas quais, pelo me-nos, alguns dos acontecimentos são reacções a acon-tecimentos anteriores. Outras características da nar-rativa são aquelas em que os discursos tendem aser fortemente orientados para os agentes dos acon-tecimentos descritos, em vez de ser para os própri-os eventos, sendo a estrutura tipicamente a de “umenredo”. (nossa tradução)

Iremos partir desta ideia de pré-género para desen-volvermos o nosso raciocínio acerca das variantes queocorrem e vão dar lugar a sistemas de hibridizaçãoemergentes. Em Martin (1984, p. 25), encontramos umadefinição do conceito de género que interessa registar:“A genre is a staged, goal-oriented, purposeful activi-ty in which speakers engage as members of our cultu-re”. Como se vê, aqui o género é considerado uma ac-tividade, orientada para um objectivo, com um propó-sito comunicativo. Nesta definição, a referência de queo género é faseado implica que este seja constituídopor diferentes etapas que levam o produtor de texto,através de escolhas dos recursos semióticos (léxico-gramaticais ou visuais), a alcançar o seu objectivo ge-ral, isto é, a função comunicativa.

A abordagem da Semiótica Social ao género seguea perspectiva da função do texto nos seus múltiploscontextos, ou seja, aquilo que as pessoas fazem com os

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Carminda Silvestre e Madalena Gonçalves

textos. Assim, as diferentes estruturas – início, meio efim – são importantes na construção do acto comuni-cativo.

A Semiótica Social baseia-se numa teoria de lingua-gem sistémico-funcional, no âmbito da qual os estu-dos da linguagem em uso dentro de um contexto desituação e de um contexto de cultura são vistos como apossibilidade de se analisar os vários sistemas semió-ticos, como, por exemplo, a linguagem verbal, a lin-guagem visual, a linguagem gestual.

As sequências das acçõescomunicativas estãoenquadradas em práticassociais que contêm outroselementos como, por exemplo,actores, tempo, ou local,entre outros.

O género tem sido encarado como mutável resul-tante de alterações das variáveis de registo2 (campo,relações e modo). Para Martin (1992), o género (con-texto de cultura) é instanciado mediante escolhas dasvariáveis de registo (contexto de situação) associan-do-as a partes específicas da estrutura esquemática eusando a linguagem, i.e., os recursos semióticos emconformidade. Deste modo, a partir da categoria gé-nero textual, especificamente da narrativa, pretende-mos mostrar que a escolha do modo implica a cons-trução de significados diferentes. De forma sucinta,podemos afirmar que o recurso a diferentes modos éigual a diferentes significados textuais, isto é, signifi-cados que medeiam os significados ideacionais e osinterpessoais em textuais3, como passaremos a expli-car ao longo do ponto seguinte.

O Interplay entre modo e estruturas genéricas: o caso do filmede animação “O dia em que o Sr. Raposo…”

Em termos de orientação espacial das imagens noespaço textual (filme de animação), as imagens, cons-tituídas por frames, seguem o esquema da esquerdapara a direita, à semelhança da escrita na narrativa. Oóbvio desta asserção é-o apenas ao nível da culturaocidental. No mundo árabe, por exemplo, a orienta-ção espacial das imagens é materializada de forma in-

versa, ou seja, da direita para a esquerda, à semelhan-ça da direcção da sua escrita.

Como referido anteriormente, a abordagem da Se-miótica Social ao género focaliza a função dos textosnas interacções sociais, no que as pessoas fazem comos textos. Neste pressuposto, as sequências das estru-turas “princípio-meio-fim” ajudam a ordenar as práti-cas comunicativas. As sequências das acções comuni-cativas estão enquadradas em práticas sociais que con-têm outros elementos como, por exemplo, actores, tem-po, ou local, entre outros. Perguntas como “o que acon-tece aqui?”, “quem são os actores?”, “quem é respon-sável pela acção?”, “quem sofre a acção?”, “onde?”,“quando?” são algumas das questões colocadas maisfrequentemente na narrativa. Por conseguinte, na aná-lise da narrativa visual em estudo iremos dar respos-tas a estas questões através da leitura das frames, con-sideradas importantes no âmbito das estruturas gené-ricas e no avanço da história.

Antes de passarmos para a análise, lembramos queLabov, citado por Van Leeuwen (2005, p. 125-126),apresenta as diferentes fases da narrativa como géne-ro na seguinte sequência: (i) o resumo, que inicia a his-tória e contém um sumário ou indicação do tópico paraatrair a atenção do leitor; (ii) a orientação, que introduzo cenário – quem está envolvido, quando, onde – e oacontecimento, que faz avançar a história. Elementosde orientação podem ocorrer mais tarde na história,quando novas pessoas, locais e coisas são introduzi-das; (iii) a complicação, que é o acontecimento que cons-titui o âmago da história; (iv) a avaliação, que pode ocor-rer em vários momentos da história, quando o produ-tor de texto responde a questões como, por exemplo,“por que razão devemos achar isto interessante?”; (v)a resolução, que fornece o acontecimento final da histó-ria; (vi) a coda, que não ocorre sempre, mas que movedo tempo da história para o tempo de a contar e forne-ce a sua relevância aos leitores.

Uma das questões a considerar no âmbito da nar-rativa visual é identificar se as estruturas genéricasconstitutivas da narrativa se aplicam ao modo visual.Considerando as estruturas genéricas propostas porLabov, das seis fases, há três que são obrigatórias parapodermos considerar a narrativa como género e sen-tirmos a existência de uma apropriação do produtorde texto que vai ao encontro das nossas expectativase daquilo que conhecemos do mundo: a orientação, acomplicação e a resolução. Assim, para falarmos emnarrativa visual temos de identificar as estruturasobrigatórias e as estruturas facultativas, que poderãovariar.

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Narrativa visual: o interplay entre modo e estruturas genéricas

Embora o filme de animação seja um texto dinâmi-co por natureza, a metodologia de análise usada é a deum texto estático. Em termos metodológicos, iremosrecorrer à paráfrase do texto multimodal, que inter-pretamos do modo visual, pois essa paráfrase ajuda-nos a percorrer as frames que compõem o filme e a re-contar, a partir destas e de forma mais desenvolvida, asua história. Vamos recorrer a ela como meio de facili-tar o comentário à estrutura narrativa da história e àevolução crono-lógica dos principais acontecimentosnela ocorridos (a reconstituição da sequência de ac-ções).

A primeira parte da animação é dedicada à orien-tação. Esta é constituída pelo cenário (setting) de umbairro típico, que poderá ser Lisboa antiga (Fig. 1), comas suas casas encavalitadas umas nas outras, ruas es-treitas, escadarias, praças, miradouros e uma popula-ção envelhecida, onde os homens têm como ponto deencontro as praças ou pequenos jardins para jogaremàs cartas e, as mulheres, de forma mais individualiza-da, se dedicam às tarefas domésticas, de portas e jane-las bem abertas. Tanto homens como mulheres coabi-tam com gatos e pombos nestes bairros populares, quevão alimentando ao sabor da sua solidão compassiva.

Fig. 1: Bairro típico de Lisboa antiga

A par do cenário, a narrativa tem as suas persona-gens. O Sr. Raposo, personagem principal da história,nomeado através do título do filme de animação, fazparte dessa população envelhecida, com poucos recur-

sos económicos. O Sr. Raposo desloca-se todos os diasao mesmo miradouro para, solitariamente, apanhar solenquanto tenta mordiscar umas bolachas. Ele tem porúnica companhia os pombos daquele local, que acor-rem em bando ao seu encontro para comerem as bola-chas que o Sr. Raposo não consegue mastigar por faltade dentição.

A narrativa visual trata fundamentalmente de ac-ções. Como tal, os processos usados são predominan-temente materiais (verbos de fazer) e comportamen-tais (verbos de comportamento) para mostrar o queestá a acontecer (vide quadro 1). Halliday (1994) atra-vés da categoria da transitividade, na qual o falantemanifesta a sua experiência do mundo (metafunçãoideacional da linguagem), classifica os tipos de pro-cessos em materiais, mentais, verbais, relacionais, com-portamentais e existenciais. O estudo da transitivida-de permite-nos, através da oração (unidade básica deanálise da léxico-gramática), analisar a representaçãode quem faz o quê, a quem, e as respectivas circuns-tâncias.

Fig. 2: O Sr. Raposo dá comida aos pombos

A forma que dá origem ao enredo é a série de sequ-ências onde a motivação do Sr. Raposo se constrói apartir de semelhanças e repetições, diferenças e varia-ção da conhecida fábula A raposa e o corvo. A persona-gem principal caminha até ao miradouro e tenta levarà boca as suas bolachas. Só a partir das várias tentati-vas inglórias para mastigar, ele resolve dá-las aos pom-bos.

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Fig. 3: O Sr. Raposo está triste por não ter dentespara comer as bolachas

A estrutura genérica que institui a complicação éconstituída pela consciência que o Sr. Raposo tem emrelação à sua triste condição: a de um velho desdenta-do, incapaz de saborear umas simples bolachas.

Um dia, o Sr. Raposo é arrancado da tristeza emque está mergulhado (fruto da sua desconsolada con-dição de desdentado) pelo cantarolar de uma voz fe-minina (Fig. 4).

Fig. 4: O Sr. Raposo ouve alguém cantar

Seguindo o som daquela voz maviosa é surpreen-dido pela visão de uma velhota que sacode o tapete àjanela (Fig. 5).

Fig. 5: Caminha em direcção ao local de onde ouve cantar

A narrativa visual tratafundamentalmente de acções.Como tal, os processos usados

são predominantementemateriais (verbos de fazer) ecomportamentais (verbos de

comportamento) para mostrar oque está a acontecer.

Cabe aqui fazer um parêntesis para lembrar que anossa intenção é mostrar como esta narrativa visualtem um esquema constituído por estruturas genéricasobrigatórias, fazendo das ausentes as estruturas gené-ricas opcionais. A variação é determinada nas esco-lhas feitas pelo produtor de texto relativamente aomodo. Assim, escolhido o modo, urge determinar quaisas estruturas genéricas obrigatórias, quais as opcionais,quais as estruturas que podem ocorrer mais de umavez ao longo do texto, qual a ordem fixa e a ordemvariável das respectivas estruturas. Importa referirtambém que a paráfrase ajuda-nos a trazer à evidên-cia um aspecto que não deverá ser esquecido quandose trata de observar narrativa em filme. Recontando ahistória a partir da sucessão de imagens em “frames”,é mais difícil esquecer que o efeito da tridimensionali-dade criado dentro do mundo da história é obtido tan-

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to a partir de linhas, cores, ângulos, formas, etc. (quetêm como quadro de referência o jogo de claro/escurobi-dimensional criado no espaço do ecrã) como a par-tir de um sistema de sons (palavras, música e ruídos)que sofrem transformação tanto no mesmo referido es-paço do ecrã como na relação dos objectos entre si nointerior da história. Este último ponto é particularmen-te importante na narrativa em causa, já que ela joga naausência de palavras, na opção explícita de eliminardo universo do narrado a linguagem verbal. Em alter-nativa, aposta na criação de um discurso “articulado”a partir de sons vocais indiscerníveis, e em música, cujoefeito para o sentido geral da história advém da arti-culação entre intensidade (pitch) e contraste auditivos.É portanto preciso ouvir para se perceber o que se pas-sa no plano da diegese desta animação e, nesse senti-do, o som nesta narrativa visual animada levanta tam-bém questões de narração (ou de discurso narrativo),que, sendo fundamental para a criação de significado,não será analisado no presente estudo.

O Sr. Raposo aproxima-se, ouve a canção que a se-nhora canta e aplaude (Fig. 6).

Fig. 6: O Sr. Raposo lisonjeia a autora da cantoria

Repara na sua bela dentadura. O Sr. Raposo en-contra na autora da cantiga, a segunda personagemdo enredo (uma senhora também idosa, provavelmenteviúva e sozinha), uma fonte de inspiração para ultra-passar aquilo que é o seu problema e que constitui acomplicação do enredo. Assim, lisonjeia a senhora,

pedindo-lhe para cantar mais e mais alto. Tomada debrio e vaidade, a velhota canta mais alto e tanto e tãomais alto que, boca aberta, inadvertidamente deixa caira dentadura da janela abaixo (Fig. 7).

Fig. 7: Cedendo aos elogios, a senhora canta alto

Nesse momento, o Sr. Raposo vê a oportunidadeque não pode perder: apodera-se da dentadura damulher e coloca-a na sua própria boca (Fig. 8).

Fig. 8: O Sr. Raposo apanha a dentadura

A resolução foi materializada através da dentadu-ra da senhora que caiu, enquanto cantava, e imediata-mente apropriada pelo Sr. Raposo.

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Fig. 9: O Sr. Raposo está feliz com a sua dentadura nova

Obtido o objecto de desejo, a história termina como Sr. Raposo a regressar às suas rotinas, mas mais felizpor ter resolvido o seu problema. Regressa ao bancodo jardim para, na companhia dos pombos seus ami-gos, poder, enfim, mastigar e engolir as tão desejadasbolachas (Fig. 10).

Visualmente, essa resolução é-nos dada pelo trave-lling inicial e final sobre a cidade – deslocamento físicoda câmara sobre o espaço das acções da personagem,assinalando a resolução do seu problema de forma pla-

na e sequencial a fim de percebermos que tudo o quevimos não passou de um episódio na vida (rotineira)do Sr. Raposo.

Fig. 10: O Sr. Raposo regressa à sua rotina, feliz,porque já tem dentes para mastigar

Esquematicamente apresentamos o enredo do filmeno quadro 1, permitindo, desta forma, visualizar as fa-ses constitutivas do género visual com a identificaçãodas imagens, a legenda correspondente à linguagemvisual, o respectivo processo e a identificação da fase.

Quadro 1: Estruturas genéricas da narrativa visual

Figura Linguagem visual (descrição) Classificação Estrutura genérica

1 Bairro típico de Lisboa antiga Cenário Orientação

2 O Sr. Raposo dá comida aos pombos quem; onde; processo material Orientação

3 O Sr. Raposo está triste por não ter dentes processo relacional Complicaçãopara comer as bolachas

4 O Sr. Raposo ouve alguém cantar processo mental Complicação

5 Caminha em direcção ao local de onde processo material Complicaçãoouve cantar

6 O Sr. Raposo lisonjeia a autora da cantoria processo comportamental Complicação

7 Cedendo aos elogios, a senhora canta processo comportamental Resoluçãodeixando cair a dentadura

8 O Sr. Raposo apanha a dentadura processo material Resolução

9 O Sr. Raposo está feliz com a sua nova processo relacional Resoluçãodentadura

10 O Sr. Raposo regressa à sua rotina processo material Resolução

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Uma narrativa puramente no modo visual poderánão contemplar todas as estruturas de uma narrativaque recorre aos dois sistemas de linguagem – verbal evisual, por exemplo. Para além do modo, o meio (me-dium) como este é organizado implica uma variação.Uma narrativa verbal escrita ou oral implica escolhasque vão determinar a variação relativamente ao pré-género. Também o meio de suporte digital ou suportepapel são determinantes no género. Uma narrativaconstruída para a criação de um jogo digital pode de-terminar uma variedade no género, em relação a umanarrativa em suporte papel.

Como referido anteriormente, e retomando a ideiade que o género segue a perspectiva da função do tex-to nos múltiplos contextos (aquilo que as pessoas fa-zem com os textos), um dos objectivos da narrativa écontar uma história que envolve personagens integra-das num determinado contexto. As diferentes estrutu-ras – início, meio e fim – são importantes na constru-ção do acto comunicativo.

O estudo do modo refere o papel que a linguagemdesempenha na realização da acção social. Este influ-encia os significados textuais, os significados que aonível ideacional e interpessoal constituem o textual,

fazendo da linguagem usada uma variante fundamen-tal tanto para o co-texto como para o contexto.

A partir da narrativa visual O dia em que o Sr. Raposo…e a fábula A raposa e o corvo, apresentamos de forma sucin-ta, no quadro 2, três dimensões do modo que, alteradauma dessas dimensões, contribuirá para uma variedadeno género e, consequentemente, nas estruturas genéricasque o constituem, bem como na léxico-gramática usadaou, melhor dizendo, nos recursos semióticos. Assim, po-demos dizer que em ambos os textos (O dia em que o Sr.Raposo… e a fábula A raposa e o corvo) o canal usado é grá-fico. Outra dimensão do modo é o meio. O dia em que o Sr.Raposo… é visual, enquanto a fábula é verbal. Esta di-mensão vai determinar uma mudança no género narra-tivo. Estamos perante dois sistemas semióticos com ca-racterísticas e potencialidades diferentes. Por conseguin-te, as características léxico-gramaticais através das quaisos propósitos das fases são realizados na fábula não sãoiguais às características dos recursos semióticos atravésdos quais os propósitos das diferentes fases são realiza-dos na animação. Assim, se for introduzida uma mudan-ça nas variáveis canal, meio e papel, a linguagem do tex-to, como produto, necessariamente mudará também, con-tribuindo, dessa forma, para uma variação no género.

Quadro 2: Dimensões do modo

Dimensões Sr. Raposo(narrativa visual) A raposa e o corvo(narrativa verbal)

Canal gráfico gráfico/fónico

Meio Visual verbal (escrito/falado)

Papel constitutivo – contar uma história humoristicamente constitutivo – instruir os Homens

A possibilidade de diversidade de tipos específicosde narrativa pode ocorrer, variando cada uma da nor-ma pré-género.

Considerações finaisApesar das fraquezas resultantes de trabalharmos

o filme de animação, um texto dinâmico, recorrendo auma metodologia de análise de um texto estático, comas inevitáveis omissões de outros sistemas semióticosque se articulam na produção de significados, acredi-tamos que o presente trabalho alcançou o seu objecti-vo principal: mostrar como a variável modo é determi-nante na realização das estruturas genéricas do géne-ro narrativa visual. Aqui, as escolhas semióticas estãoconstruídas visualmente e com recursos sonoros não

verbais. A imagem visual é o meio que o produtor detexto usa de forma a construir os significados inter-pretados pelo leitor/espectador. Cabe, assim, ao es-pectador, com base no conhecimento que tem do mun-do, e perante o enredo, a organização do material nofilme, criar a história individualmente com base nosdados do enredo.

Em forma de conclusão, e porque trabalhámos oremake da fábula A raposa e o corvo, cabe dizer que afelicidade do Sr. Raposo foi conseguida à custa da in-felicidade alheia. Porém, como a vaidade é um víciocondenável e foi por causa dela que quem não souberesistir-lhe perdeu o que tinha de tão precioso, a acçãoparcialmente reprovável do Sr. Raposo que fica comaquilo que lhe não pertence é justificada, e mesmo su-

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plantada pela função moral correctora que esta sua“transgressão” acaba por adquirir no contexto em queocorre. No entanto, mais do que elaborarmos sobre oensinamento a retirar da história, quisemos debruçar-nos sobre a importância do modo na construção da nar-rativa, objectivo principal deste artigo. As estruturasgenéricas identificadas na análise são constituídas poractores, lugares, acções e tempo. As respostas coloca-das nas perguntas mais frequentes na narrativa forammediadas através de imagens e sons mostrando quemfez o quê, a quem FAMECOS

REFERÊNCIAS

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VAN LEEUWEN, Theo. Introducing Social Semiotics.London: Routledge, 2005.

NOTAS

*Texto vinculado ao Seminário XI: Semiótica Social: dateoria à prática, ministrado no período de 26 a 28 deagosto de 2009 aos acadêmicos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul.

1 O nome da personagem não engana: ele é o Sr. Rapo-so, deixando adivinhar, nos actos que pratica, todo oprograma de acção da velha raposa da fábula.

2 As variáveis de registo são o campo (a natureza daprática social – o que está a acontecer), as relações(quem está envolvido), o modo (o papel desempe-nhado pela linguagem), responsáveis pela configu-ração textual.

3 Halliday (1994) classifica as formas através das quaisos humanos usam a linguagem em três grandes me-tafunções: a ideacional em que a linguagem é usadapara representar, construir os significados da nossaexperiência e percepções do mundo físico e interior;a interpessoal em que a linguagem é usada para nospossibilitar a comunicação e interacção com os ou-tros; a textual em que a linguagem é usada para or-ganizar a textualização (a linguagem envolvida naorganização do próprio texto).

Carminda Silvestre e Madalena Gonçalves

Revista FAMECOS • Porto Alegre • v. 17 • n. 1 • p. 74-82 • janeiro/abril • 2010