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Introdução ao AT - H 1.
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Antigo Testamento II Histricos e Poticos 65
LIVROS HISTRICOS
INTRODUO GERAL
Entre os vrios gneros literrios da Bblia, a histria, por sua extenso, ocupa o
primeiro lugar. Esse fato j prova quanto a histria fosse cultivada pelo antigo povo de
Israel. O fato confirmado pelas fontes de que logo falaremos. E comparando, sob esse
aspecto, a Bblia com a literatura dos demais povos do Oriente antigo, notaremos o lugar
preeminente e singular que cabe aos Livros Sagrados. A abundante literatura histrica que
os egpcios e os assrio-babilnios, os dois povos mais poderosos e evoludos da
Antigidade, nos transmitiram, consiste quase toda em documentos, tais como as inscries
dos soberanos, onde se narram com inteno e estilo laudatrios, as faanhas dos mesmos.
Mais tarde, entre os babilnicos, surge o gnero, menos oficial e mais literrio, da crnica
que registra, ano por ano, os acontecimentos mais importantes. Nenhum povo, porm, nos
legou, como os israelitas, uma srie de escritos que, reunidos, formam como que uma
histria nacional desde as origens at os tempos do cristianismo; tampouco quadros
histricos de perodos particulares comparveis aos dos Juzes e de Samuel.
Rigorosamente falando, devia figurar entre os livros histricos grande parte do
Pentateuco, assinaladamente o Gnesis; estas partes, porm, devido sua estreita relao
com a legislao mosaica, formam um s corpo com o nome de lei.
Os escritos histricos da Bblia propriamente ditos Livros histricos, pela matria e
pelos caracteres internos, so divididos em trs categorias:
1. Josu, Juzes, Rute, Samuel e Reis relatam a histria do povo de Israel desde a
conquista da Palestina at o exlio na Babilnia (586 a.C.);
2. As Crnicas e Esdras-Neemias retomam essa mesma histria sob pontos de vista
particulares desde o reino de Davi (as idades precedentes, desde as origens do homem,
esto, como que resumidas, no princpio 1Cr 1-9 em tbuas genealgicas) at formao da
sociedade judaica depois do retorno do exlio (cerca de 430 a.C.);
3. O livro de Ester ilustra alguns episdios notveis dos ltimos sculos (VII-V
a.C.).
A srie dos livros histricos Josu-Reis, considerados como grupo autnomo, os
hebreus chamam-nos Profetas anteriores, formando com os Profetas posteriores (Isaas, Jeremias, Ezequiel e os Doze menores) a segunda classe (os Profetas) da sua Bblia tripartida. Os livros histricos contidos em Crnicas recebem apreciaes diversas dos
hebreus. A maioria deles admitem no seu cnone as Crnicas, Esdras-Neemias e Ester, mas
colocam-nos, com os restantes Livros Sagrados, na terceira classe dos Escritos. Quase todos os livros histricos da Bblia indicam, ainda que parcamente, uma ou
mais fontes escritas donde tiraram o material e s quais remetem o leitor para maiores e
mais amplas informaes (Nm 21.14 o livro das batalhas do Senhor; ib., 27 os poetas).
Tornam-se mais freqentes nos livros seguintes, especialmente nos Reis e Crnicas. Desde
os primeiros tempos da monarquia (2Sm 8.16), entre outros oficiais do rei encontramos um
monitor ou chanceler encarregado de registrar os acontecimentos do reino (cf. 1Rs 11.41). Da o encontrarem-se freqentemente aluses a tais memrias dos reis de Jud e de
Israel desde 1Rs 14.19-29 at 2Rs 24.5. O autor das Crnicas cita escritos de vrios
profetas: Samuel, Natan, Gad (1 Cr 29.29), Ala, Ado (2 Cr 9.29), Semeia, Je, Hozai
(ib.,12.15; 20.34;33.19). O primeiro deles provavelmente o livro cannico de Samuel; os
outros se perderam, excetuando-se, talvez, alguma parte incorporada aos livros cannicos
dos Reis.
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 66
Comparando-se as passagens paralelas dos livros das Crnicas e dos Reis - quer os
Reis tenham servido de fonte ao redator das Crnicas ou quer ambos haurissem duma fonte
comum - observamos que a fonte geralmente transcrita literalmente conforme os hbitos
da historiografia semtica, numa poca que no conhecia os direitos de propriedade literria.
Nesse caso, o autor sagrado, apropriando-se das palavras da fonte, torna-as expresso do seu
prprio pensamento e, atravs do carisma da inspirao divina, que no se ope ao uso de
fontes profanas, imprime-lhe o selo da sua infalibilidade.
Pode acontecer que o autor sagrado julgue til citar um documento como notcia
interessante deixando, porm, quanto exatido dos fatos, a responsabilidade pela
afirmao ao autor primitivo. Isto pode-se sempre admitir no caso de citao explicita, isto
, com a expressa designao da fonte, como na cartas citada em Esdras 4.7-16. No
havendo indicao da fonte, e, portanto, quando a citao implcita, requer-se maior
circunspeco.
Para apreciar devidamente os livros histricos do Antigo Testamento mister levar
em conta a finalidade dos autores sagrados, bem como o esprito que os animava ao
escreverem seus livros. Os escritores bblicos no pretendem escrever histria propriamente
dita, nem narrar para satisfazer a sede de saber. Eles querem evidenciar a mo de Deus no
dirigir a sociedade humana segundo as altas finalidades de sua Providncia, especialmente
de acordo com a religio e com a salvao do gnero humano. A sua historiografia
religiosa e no profana. Da a escolha, sensvel de modo especial, nos livros dos Reis e das
Crnicas, de poucos fatos dentre a enorme quantidade de acontecimentos que, mesmo
limitando-se Palestina, decorreram nos largos tempos abrangidos pela sua narrativa;
enquanto se atribui um papel importante aos profetas, ministros e porta-vozes de Deus,
junto do seu povo, Segue-se que no devemos esperar dos hagigrafos um quadro completo
da sociedade israelita da poca. Apesar disso oferecem sempre excelente material para a
reconstruo da histria profana, completando os dados transmitidos pelos documentos
extra-bblicos, principalmente as inscries cuneiformes dos reis assrios e babilnicos,
onde se registram muitos fatos e personagens dos livros dos Reis.
Os livros de Josu, Juzes, 1-2 Samuel e 1-2 Reis esto repletos de guerras,
crueldades, massacres, etc. O leitor deve aproximar-se destes livros buscando perceber a
diferena no agir dos seus dois protagonistas: Deus e o seu povo. A histria e as vicissitudes
deste povo esto narradas na Bblia maneira do que se fazia em toda a Antigidade:
guerras, conquistas, duelos, ocupaes, destruies e deportaes. Isto explica, tambm,
porque a Bblia aceita este modo de narrar a histria do povo guiado por Josu, pois este
povo est inserido no seu tempo e na sua cultura, usando a mesma linguagem e as mesmas
imagens dos povos circunvizinhos.
A conquista da Terra Prometida (Josu), as batalhas contra os Filisteus (Juzes), o
evento da monarquia (1-2 Samuel) e as guerras de Jud e de Israel contra os povos vizinhos
(1-2 Reis) no se libertam do violento vocabulrio militar, que caracteriza a histria dos
povos antigos: egpcios, assrios, babilnios, persas, gregos e romanos.
Portanto, ao ler estes livros, preciso discernir neles o que contingente e
pertencente s vicissitudes da histria do povo hebraico (conquista da terra, guerras com os
povos vizinhos, campanhas militares dos seus reis) e o que, pelo contrrio, tem valor eterno
e pertence histria da salvao: a luta de Deus contra o mal e o pecado, e a sua realeza
soberana sobre tudo o que est no mundo (Cf. VV. AA. Guia para ler a Bblia. Paulus, So
Paulo 1997, 37-39).
O livro de Josu na Bblia Hebraica abre o conjunto dos Profetas Anteriores (Js, Jz,
1-2 Sm, 1-2 Rs). O exame atencioso destes livros mostra-nos a continuidade da linha
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 67
histrica iniciada no Pentateuco. So denominados Profetas Anteriores porque apresentam
personagens que atuaram profeticamente, e porque possuem em sua perspectiva teolgica,
aspectos do profetismo. Por isso a designao geral dos Profetas para estes livros est longe de ser falaciosa ou arbitrria (Cf. Pierre GIBERT, Como a Bblia foi escrita:
Introduo ao Antigo e ao Novo Testamento. Paulinas, So Paulo 1999. 36).
JUSTIFICAES PARA O CNON HEBRAICO
1 Os pr-literrios narram as histrias de importantes profetas do Antigo Testamento.
Parece-nos que o motivo mais bvio para a classificao de livros como Josu,
Samuel e Reis como profetas, o fato de esses livros no apenas contarem a histria de Israel, mas tambm serem os principais documentos para a preservao da memria de
importantes profetas do Antigo Testamento. Desde os tempos de Josu, Israel contou com
um vasto nmero de porta-vozes divinos, incluindo-se entre eles algumas mulheres; e no
fossem esses livros, o que seria da memria de Elias, o homem de Deus que jamais
entraria para os registros oficiais dos reis de Israel, mas que influenciou seu tempo de
maneira deveras marcante atravs de incrveis milagres? O que seria de Samuel, figura
decisiva nos primrdios da monarquia de Israel que inevitavelmente seria ofuscado pela
honra dada aos reis Saul, Davi e seus predecessores? E o que seria de Gideo, de Sanso,
de Nat, de Eliseu e tantos outros nomes? bem verdade que o gnero literrio
empregado nos profetas pr-literrios a narrativa, enquanto que nos literrios prevalecem
os orculos e a poesia, mas os profetas de Yahweh so em ambos, figuras de suma
importncia. Elias no escrevera a respeito de si mesmo como Isaas ou Ezequiel fizeram,
mas nem por isso foi menos profeta que eles. Na verdade, o que constatamos que a
atividade proftica em Israel progredira com o passar dos anos, e seus representantes
passaram a registrar seus orculos, suas vises, e as prprias histrias; ou ao menos o
prestgio dos profetas crescera a ponto de outros fazerem tais registros escritos.
2 Os pr-literrios no foram escritos por historiadores, mas por profetas.
Werner H. Schmidt sugere uma outra razo para a colocao dos pr-literrios neste
bloco proftico dizendo:
Nos escritos narrativos anteriores esto reunidas as informaes sobre profetas como Nat, Elias ou Eliseu. Talvez a juno de obras histricas e profticas num
nico bloco se baseie tambm na concepo de que aqueles livros histricos foram
escritos por profetas. (SCHMIDT, Werner H. Introduo ao Antigo Testamento. So Leopoldo: Sinodal/EST, 1994, p 13,14).
Os comentrios escritos a respeito dos livros do bloco profetas pr-literrios normalmente identificam-nos como os registros de um perodo de aproximadamente
setecentos anos (1250-550 a.C.) que separa a conquista da Palestina da destruio de
Jerusalm e do exlio dos seus habitantes. Dentre todos os eventos narrados neste bloco,
h um evidente destaque para o estabelecimento da monarquia em Israel, e o personagem
principal dessas narrativas evidentemente o rei Davi. Certamente que olhando por este
prisma julgamos ter um conjunto de livros histricos; todavia, h de se concordar que a
maneira de se escrever histria nestes livros bastante diferente da que hoje fazemos uso.
Ao avaliarmos mais detidamente a concepo de histria dos escritores pr-literrios
compreendemos o sentido da conjetura de Schimdt: a de que os autores pr-literrios so
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 68
profetas. John Gabel e Charles Wheeler resumem bem a concepo de histria dos escritos
bblicos ao escrever:
... os escritores bblicos foram altamente seletivos no tocante aos itens que escolheram como base. Em alguns pontos da Bblia, dezenas e at centenas de anos so
pulados com uma nica frase, ou simplesmente desprezados [...] eles selecionavam
materiais referentes ao passado e os moldavam nos termos do que sentiam ser as
necessidades da sua audincia presente. (GABEL, John B. Charles B. Wheeler. A Bblia como Literatura. So Paulo: Ed. Loyola, 2003, p 51).
No h dvidas de que a diferente concepo a respeito de registros histricos deve-
se em grande parte poca em que os textos foram compostos, mas h tambm um outro
fator relevante que torna tais textos to diferentes dos nossos livros de histria, que a
viso proftica empregada na sua composio.
Nos profetas anteriores ou pr-literrios, o narrador da histria no mero
espectador que conta o que v, ele interpreta a histria e julga as aes segundo os seus
padres religiosos. Para o autor bblico, a religio controla a histria; Yahweh
responsvel pelas vitrias, pelas derrotas, e quando o povo sofre, por conseqncia de
seus prprios pecados, conforme o exemplo a seguir:
Enviou o SENHOR contra Jeoaquim bandos de caldeus, e bandos de siros, e de moabitas, e dos filhos de Amom; enviou-os contra Jud para o destruir, segundo a
palavra que o SENHOR falara pelos profetas, seus servos. Com efeito, isto sucedeu a
Jud por mandado do SENHOR, que o removeu da sua presena, por causa de todos os
pecados cometidos por Manasss, como tambm por causa do sangue inocente que ele
derramou, com o qual encheu a cidade de Jerusalm; por isso, o SENHOR no o quis
perdoar. (2Rs 24.2-4). por isso que os escritores bblicos so mais do que historiadores, eles colocavam-
se na posio de verdadeiros profetas. Historiadores comuns no saberiam explicar os
motivos dos fenmenos naturais com tanta facilidade quanto os escritores dos profetas
pr-literrios, eles tentariam encontrar razes mensurveis para a vitria de exrcitos
numericamente inferiores, no atribuiriam a loucura de Saul a um demnio, no declarariam quais os pensamentos de Deus a respeito dos homens como aqui se faz. Esse
conhecimento transcendente peculiar ao ministrio proftico; Yahweh revelava seus
pensamentos aos seus servos, o que permitiria que os mesmos interpretassem a histria
como faziam. A atuao proftica ao longo dos textos parece ter sido evidente desde os
primrdios dos mesmos, tanto que a tradio atribuiu desde cedo a autoria desses
escritos a profetas como Samuel. Essa maneira particular de escrever histria produz um
efeito negativo nalguns leitores, que procuram encontrar na Bblia um fiel registro do
passado. Estes se decepcionam com a parcialidade dos textos que insistem em incluir a
vontade de Deus em tudo o que acontece, deixando pouco espao para o acaso e para que se perceba a astcia poltica dos governantes do passado e a destreza estratgica dos
lderes militares. Por outro lado, por objetivar ensinar mais sobre o Deus de Israel do que
sobre a histria, esses livros puderam permanecer populares, sendo todos eles de grande
valia para todo aquele que tem f, e no apenas para os pesquisadores. basicamente por
esse motivo que homens e mulheres simples sempre estiveram mais perto do real
significado desses livros do que os historiadores, afinal, Esperar que a Bblia nos diga o que de fato aconteceu esperar algo que os seus escritores nunca pretenderam que ela fizesse. (GABEL, John B. Charles B. Wheeler. A Bblia como Literatura. So Paulo: Ed. Loyola, 2003. p. 57).
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 69
3 Os pr-literrios e os literrios fazem uso de caractersticas literrias semelhantes.
claro em diversos momentos dos pr-literrios que os autores destes conheciam a
linguagem proftica dos literrios, pois empregam caractersticas literrias peculiares aos
livros dos seus predecessores no ministrio proftico em Israel. Esta mais uma das
semelhanas que ligam os livros que chamamos de histricos com os profetas.
Tanto nos profetas anteriores como nos posteriores podemos identificar o uso estereotipado dos orculos que denunciam os pecados; tambm o uso de certas imagens
centrais como, por exemplo, Israel retratado como filho desobediente, e de Iahweh como
pai; e tambm comum a semelhana de frmulas lingsticas prprias como o bastante
comum: Assim diz o Senhor, que aparece 386 vezes no grande bloco proftico, e apenas 21 vezes fora dele (dez vezes no livro de xodo e onze vezes em 1 e 2Crnicas).
(Contagem segundo a verso de Almeida Revista e Atualizada (RA).).
Tambm coincidem os contedos dos profetas pr-literrios e literrios quando nos
voltamos para os seus acentos teolgicos. Como exemplo, para ambos os sub-blocos
profticos a transgresso ao 1 e 2 mandamentos (idolatria) a culpa principal do povo.
Sendo assim, tambm pela anlise das caractersticas literrias empregadas na
composio dos textos, constata-se que os profetas anteriores merecem pertencer ao
mesmo grupo dos posteriores.
4 Os pr-literrios so profetas com contexto histrico.
Como temos visto, os autores dos pr-literrios consideravam-se profetas, e
utilizaram-se caractersticas literrias semelhantes quelas empregadas pelos autores dos
profetas literrios. Mas h uma distino bastante evidente entre esses dois grupos de
livros, que levaram os cristos a separ-los em definitivo em dois blocos distintos,
chamando o primeiro deles de livros histricos. Esta diferena a que nos referimos que
para os escritores dos pr-literrios o contexto histrico era muito importante, enquanto
que os literrios praticamente os ignoraram.
Alguns estudiosos acreditam que a mensagem dos profetas literrios talvez seja
destituda de um contexto histrico propositalmente, a fim de facilitar a aplicao da sua
mensagem em dias posteriores. Mais uma vez Schimdt nos d um bom exemplo dessa
forma de compreender os profetas:
Por via de regra a palavra dos assim chamados profetas literrios se transmite de forma independente, sem estar vinculada a uma descrio mais pormenorizada da
situao em que ocorreu [...] Ela tambm pode preservar com maior facilidade a
perspectiva do futuro; pois geraes posteriores podem relacionar diretamente consigo
mesmas o que originalmente no tinha a ver com elas, visto que falta a moldura
narrativa (SCHMIDT, Werner H. Introduo ao Antigo Testamento. So Leopoldo: Sinodal/EST, 1994, p 175).
Em geral, a atividade dos profetas sofreu uma mudana significativa com o passar
dos anos, e eles deixaram de atuar diretamente na poltica, de intervir ativamente na vida
dos reis e sacerdotes de Israel. Nos pr-literrios, personagens como Saul e Davi so mais
importantes que os profetas; suas conquistas e atitudes so tratadas com grande cuidado, e
os profetas sempre aparecem ligados a eles; como se Deus procurasse agir em favor do
seu povo ao guiar o seu ungido nos caminhos certos. Com o passar do tempo os reis tornaram-se cada vez mais obstinados, e a exemplos dos monarcas das outras naes,
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 70
colocaram a religio em segundo plano, priorizando em suas medidas a manuteno do
prprio poder, e no mais a vontade do Deus dos seus antepassados.
Talvez o fracasso desse tipo de ministrio proftico levou os profetas a atuarem de
maneira distinta, proclamando os seus orculos ao povo, dirigindo-se para um pblico bem
mais amplo. Esse desinteresse pelos registros de eventos histricos e interesse pelo
alcance do povo motivam o processo de escrita dos orculos para maior preservao e
divulgao da mensagem, mas sem que o contexto histrico tenha importncia nesse
processo.
Desta forma, podemos defender a sub-diviso do grande bloco proftico do cnon
judaico em dois: o primeiro o conjunto de livros profticos que registram a mensagem
divina dos profetas em meio aos registros dos eventos histricos simultneos; o segundo
o conjunto de livros profticos que registram a mensagem divina dos profetas sem
interesse nos eventos histricos. Em todo caso, o primeiro sub-bloco continua a ser
primordialmente proftico, e no histrico.
Concluso.
Toda a argumentao acima apresentada revelou-nos que o cnon do Antigo
Testamento hebraico melhor organizado do que o cnon do Antigo Testamento cristo. O
segundo conjunto de livros que os judeus chamam de nebiim mais do que um apanhado de orculos profticos, um registro da evoluo do ministrio proftico em Israel. Os
profetas respondiam com a Palavra de Deus s necessidades do seu mundo, e quando este
mudava, mudava com ele o teor da voz proftica. Sendo assim, notvel a maneira
diferente da atuao proftica nos grandes ciclos de histria do antigo Israel (tribalismo /
monarquia / exlio / ps-exlio).
Quer dizer que no foram novidades teolgicas ou novas inspiraes divinas que
levou o profetismo bblico a passar por transformaes, mas as transformaes polticas e
sociais da nao ao longo dos sculos. Na verdade, um ministrio proftico que no muda
em estreita associao com a histria no seria legtimo. Quando o cnon cristo apresenta
os pr-literrios separadamente dos demais livros profticos chamando-os de livros histricos, condiciona a leitura deles desviando a ateno do leitor da viso proftica que estes livros possuem da histria. E quantos no so os equvocos na interpretao desses
livros ocasionados pela errnea classificao: histricos? provvel que a tradio nos impea de mudar o cnon do Antigo Testamento cristo, mas tal barreira no deve, todavia,
nos impedir de ensinar sobre os resultados dessa breve pesquisa. O nosso interesse deve
focar-se na compreenso que o povo de Deus tem do texto sagrado, e nossa contribuio,
embora nos parea pequena e isolada, possui certamente o seu valor.
BIBLIOGRAFIA
ASURMENDI, Jesus. O profetismo, das origens poca moderna. So Paulo: Paulinas,
1988.
SCHMIDT, Werner H. Introduo ao Antigo Testamento. So Leopoldo: Sinodal/EST,
1994.
GABEL, John B. Charles B. Wheeler. A Bblia como Literatura. So Paulo: Ed. Loyola, 2003.
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 71
Razes pelas quais os livros histricos pr-literrios fazem parte do bloco proftico
1. Histria numa perspectiva proftica
Os livros que compreendem os Profetas Anteriores no so historia, conforme
definem os historiadores modernos. Josu trata do estabelecimento de Israel em Cana; mas
como um registro de eventos, o relato no uniformemente detalhado. A travessia do
Jordo, os ritos religiosos em Gilgal, a captura de Jeric e de Ai so mencionados com
detalhes considerveis. Mas a conquista do sul de Cana relatada de maneira bem sucinta
e a do norte, de maneira ainda mais breve. Em alguns casos, os povos implicados ou as
cidades tomadas no so indicados.
Juzes ainda desconcertante compreende uma srie de histrias aparentemente de vrias partes do pas e de vrias pocas. H um alto grau de interpretao teolgica. O
propsito de Juzes no era fornecer um relato contnuo do desenvolvimento da nova nao,
mas apresentar o padro dos atos divinos de julgamento e de graa em relao ao povo
durante aquele perodo.
Os livros de Samuel parecem mais satisfatrios como histria, pois fornecem um
bom quadro do estabelecimento da monarquia e dos primeiros reis.
1 e 2 Reis mais um relato cronolgico completo, um tanto intrincado porque as
histrias dos reinos do norte e do sul esto intercaladas. Mesmo aqui, os reis so avaliados
mais segundo suas prticas religiosas do que pelo seu significado poltico.
Ao longo dos Profetas Anteriores domina a perspectiva religiosa. Isso, portanto, no
histria conforme escreveria um historiador de hoje. Antes, historia de uma perspectiva
proftica:
1. D-se destaque aos mensageiros profticos, em especial Samuel, Nat, Elias e Eliseu, e ao lugar deles na histria;
2. H um ponto de vista anti-institucional, como o dos profetas pr-exlicos nos Profetas Posteriores as falhas e os fracassos entre os lderes da sociedade israelita so continuamente expostos;
3. Os eventos so analisados de acordo com a verdade proftica de que Jav soberano na histria, tanto ao proferir como ao cumprir sua palavra proftica.
Portanto, os Profetas Anteriores contm dados histricos de acordo com uma
perspectiva proftica.
2. A Mensagem Espiritual
O elemento histrico nos Profetas Anteriores ou em todo o Antigo Testamento est ligado sua mensagem espiritual. Os Profetas Anteriores seguiram o exemplo do
movimento proftico e interpretaram os eventos de acordo com a vontade proftica de Deus.
3. Diferenas entre os Profetas Anteriores e Posteriores
Os dois conjuntos de livros diferem pela poca que se abrange. Os Profetas
Anteriores dispensam maior ateno ao perodo de assentamento em Cana e os primrdios
da monarquia, embora prolonguem a histria at o exlio. Os profetas posteriores
preocupam-se com os sculos finais dos dois reinos e com a histria subseqente de Jud.
Uma diferena mais fundamental que os Profetas Anteriores so constitudos de
narrativas. Eles registram de modo seletivo uma narrativa contnua dos eventos da histria
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 72
de Israel. De Josu a 2 Reis, possvel reconstruir em forma de esboo ao menos e, em alguns casos, com detalhes considerveis a seqncia da histria de Israel desde a entrada em Cana at o exlio, cerca de 1250-586 a.C. por isso que esses livros so chamados de
histricos em nosso cnon. Ao contrrio, possvel reconstruir um vago esboo de histria somente a partir dos
Profetas Posteriores. Personagens histricos e eventos so mencionados, mas no h
seqncia de eventos. Os profetas posteriores concentram-se na mensagem pregada por eles
e relegam a narrativa a um plano secundrio.
provvel que a escrita proftica mais extensa dos Profetas Anteriores seja a do crculo de Elias (1Rs 16 - 2Rs 1). Mesmo assim, esses captulos e os do crculo de Eliseu
que se seguem (2Rs 2-9) nada tm de profecia de Elias ou de Eliseu como tm, por exemplo, os livros de Miquias ou de Sofonias. Os Profetas Anteriores apresentam uma
histria contnua de Israel, mas principalmente de uma perspectiva proftica. Quando
Crnicas recorre aos livros de Reis como fonte, em geral lhes d ttulos profticos.
4. OHDt Obra Historiogrfica Deuteronomstica
O OHDt, como um todo tem a caracterstica de agrupar os conceitos que os profetas
se utilizavam em suas mensagens, tais como: a observao da situao, apontando para a
causa; a palavra direcionada para as lideranas; a palavra de juzo; o retorno ao Deus dos
Patriarcas; e a situao do povo.
Como uma obra em retrospectiva, nos til como ensino, da mesma forma que foi
para os que estavam no exlio. Pode-se argumentar contra esta obra, j que os fatos so
passados. Entretanto a inteno aqui prosseguir para um futuro com Deus, prximo a Ele. Este conjunto proftico orientou os exilados e a ns tambm.
5. Converso
O tema converso surge ao longo dos textos, desde Dt, at 2Rs. Aparece com Moiss,
em Dt 10.16, fazendo referncia a Aliana. Porm, a gerao seguinte j apresentava traos
de no cumprir a Aliana, em Js 24.23. A partir desta gerao, com o conseqente
espalhamento em Cana, a tendncia se tornou realidade: distanciamento da Aliana, do
Deus dos Patriarcas, do Deus do Sinai.
Este texto em Reis se apresenta como um resumo de toda Palavra enviada ao povo.
Temos alguns exemplos bem pontuais, entre os profetas. Em Jeremias, que viu a queda de
Jerusalm, lemos sobre a converso em 11.10, 23.14 e 35.15. Neste ltimo versculo, chega
a ser bem semelhante com o de Reis. Eram os ltimos momentos.
A mensagem de Osias 7.10: A arrogncia de Israel testifica contra ele, mas, apesar de tudo isso, ele no volta para o Senhor, para o seu Deus, e no o busca. nos d, como em uma radiografia, do motivo da posio do povo.
Os livros histricos, como textos profticos, relatam o caminho que o povo e sua
liderana seguiu, apesar a ao dos profetas, denunciando e chamando para o
arrependimento.
6. Combate idolatria
A partir de Deuteronmio at 2 Reis, por diversas vezes e at mesmo passagens
longas, o escritor aponta a questo da idolatria. Ora fala dos conselhos de Moiss e Josu
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 73
para o povo, tais como Dt 4.15s.20.23, etc., ora descreve a idolatria instalada, de uma forma
at mesmo oficial, em 1Rs 11.1-13. Entretanto acredito que o principal texto que nos ajuda,
em primeiro lugar a entender o por que de tanta influncia dos povos cananeus e vizinhos e,
em segundo lugar, e ver o resultado desta influncia Jz 2.1-5. Aqui, o Senhor decide, por
causa da conduta que o povo recm chegado Palestina estava tomando, a favor da futura
influncia das religies locais teriam sobre as futuras geraes. As conseqncias so
relatadas nas vidas das pessoas, principalmente nas lideranas. O combate maior na poca
dos profetas Elias e Eliseu, por conta dos influentes cultos a Baal, vindos dos sidnios.
poca de perseguio aos homens de Deus, porm poca de libertao. Este tipo de situao
tambm lemos nos livros dos profetas, no diferente.
7. A defesa da justia e dos pobres
Desde Dt lemos a preocupao de Deus com as vivas, rfos e estrangeiros, tipos de
condio de vida difcil, at mesmo para os dias de hoje.
Da mesma forma que os profetas denunciavam as condies de vida das pessoas,
lemos em trechos dos livros histricos a no omisso destas situaes, como em 2Sm 12.1-4
e 1Rs 21.1-3. Talvez este seja o ponto mais importante do deuteronomista: no omitir estas
situaes, exp-las histria.
8. Crtica liderana
Profetas no escritores surgem em posturas at certo ponto desafiadoras, sem receios
de expor a real situao que estas lideranas estavam levando, tais como Samuel, Nat, Elias
e Eliseu. As funes de liderana, por serem polticas, exigem equilbrio e proximidade de
Deus. Entretanto, a proximidade de Deus no para ser uma posio religiosa, mas sim de
comunho. Lemos os lderes, se afastando de Deus e usando a religio como o instrumento
da poltica.