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108 Este estudo escolheu o pensamento pedagógico de Wolfgang Ratke, representante do pensamento burguês do início do século XVII, para aprofundar alguns aspectos educacionais da escola pública religiosa. Ratke, em seus escritos, criou formas e práticas de ensino que perpassaram os séculos seguintes, evidentemente adaptadas às novas formações sociais, e que, em sua raiz, são reorganizadas pelas políticas neoliberais. A problemática deste estudo trata a dimensão pedagógica de Ratke à luz da natureza e da revelação e a dimensão revolucionária da “arte de ensinar” aliada à dimensão conservadora dos conteúdos programados para o ensino. Palavras-chave: Função da educação escolar; Trabalho docente; História da atividade didática; educação moderna. The object elected for this study is the pedagogical thought of Wolfgang Ratke, a representative of bourgeois thinking at the start of the XVII century, in an attempt to deepen some educational aspects of religious public schooling. In his writings, Ratke created forms and practices of teaching that demurred in the following centuries, evidently adapted to the new social formations and which, at heart, are being reorganized by neoliberal policies. The problematic of his study deals with the Ratke’s pedagogical dimension in the light of nature and revelation and the revolutionary dimension of the “art of teaching” allied with the conservative dimension of the programmatic contents for teaching. Keywords: The function of school education; Teacher labour; History of didactical activity; Modern education. Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

Introdução · Introdução Clarear as idéias e práticas educacionais de Wolfgang Ratke (Wolfgangus Ratichius), século XVII, através dos holofotes da atualidade, tem algum significado?

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Page 1: Introdução · Introdução Clarear as idéias e práticas educacionais de Wolfgang Ratke (Wolfgangus Ratichius), século XVII, através dos holofotes da atualidade, tem algum significado?

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Este estudo escolheu o pensamento pedagógico de Wolfgang Ratke, representante dopensamento burguês do início do século XVII, para aprofundar alguns aspectoseducacionais da escola pública religiosa. Ratke, em seus escritos, criou formas epráticas de ensino que perpassaram os séculos seguintes, evidentemente adaptadas àsnovas formações sociais, e que, em sua raiz, são reorganizadas pelas políticasneoliberais. A problemática deste estudo trata a dimensão pedagógica de Ratke à luzda natureza e da revelação e a dimensão revolucionária da “arte de ensinar” aliadaà dimensão conservadora dos conteúdos programados para o ensino.

Palavras-chave: Função da educação escolar; Trabalho docente;História da atividade didática; educação moderna.

The object elected for this study is the pedagogical thought of Wolfgang Ratke, a representative

of bourgeois thinking at the start of the XVII century, in an attempt to deepen some educational

aspects of religious public schooling. In his writings, Ratke created forms and practices of

teaching that demurred in the following centuries, evidently adapted to the new social

formations and which, at heart, are being reorganized by neoliberal policies. The problematic of

his study deals with the Ratke’s pedagogical dimension in the light of nature and revelation and

the revolutionary dimension of the “art of teaching” allied with the conservative dimension of

the programmatic contents for teaching.

Keywords: The function of school education; Teacher labour;

History of didactical activity; Modern education.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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IntroduçãoClarear as idéias e práticas educacionais de Wolfgang

Ratke (Wolfgangus Ratichius), século XVII, atravésdos holofotes da atualidade, tem algum significado?Que características educacionais ou formas escolares,criadas pelo pedagogo alemão, sobreviveram atravésdos séculos ou foram recriadas em tempos neoliberais?A resposta à primeira indagação é afirmativa à

medida que a segunda tiver consistência. Esta se evi-dencia quando se contata que Ratke criou específicosaspectos educacionais que são retomados atualmente.Fundado em Descartes e nos empiristas ingleses, intro-duziu nas escolas alemãs o método intuitivo e ao mes-mo tempo o que se denominaria séculos após de “ensinomútuo”. No Brasil, o método intuitivo foi reorganizadoem fins do século passado em substituição ao ensinomútuo. Ratke e Comênio inauguraram uma prática edu-cacional inovadora à base das técnicas, como afirmaALVES, utilizadas no trabalho manufatureiro que per-siste até hoje nas nossas escolas. (ALVES, 1999, p. 57-74). O significado cresce à medida que o método deensino de Ratke pretendeu estender-se a toda a Refor-ma com a mesma universalidade da Ratio Studiorumda Contra-Reforma e à medida que - lá como cá - asformas educacionais e a utilidade prática da educaçãodominaram o pensamento escolar.

Escola Pública Religiosa:RatkeSandino Hoff

Professor da UFMS.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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Importa acrescentar que não se tra-ta de presentismo. Trata-se, sim, de ve-rificar o que de passado está presenteno presente.Em síntese, nosso estudo tem por

objeto o pensamento pedagógico de Ratkecomo representante do pensamento bur-

guês do início do século XVII, susten-tando a tese de que o pedagogo alemãoproduziu temas e práticas educacionaiscomo conquistas definitivas, sempre re-criadas e adaptadas às novas situaçõeshistóricas que os acolhem, como: educa-ção para todos, ensino público, obrigató-rio e gratuito, administração estatal dasescolas, participação intensa da socie-dade na educação escolar, economia detempo e de recursos na aprendizagem,utilização de manuais didáticos na artede ensinar, distribuição grátis de livrosescolares e o lado prático da educaçãoescolar.Posto o objetivo geral de meus estu-

dos, vou ao tema específico deste artigo.O objetivo deste estudo é discutir duas

dimensões gerais das obras do pedagogoalemão: o ensino à luz da natureza e darevelação e a utilização de um métodoracional aplicado a um conteúdo con-servador. Quanto à primeira dimensãotrata-se de expor a “arte de ensinar” ouo “Método”, em harmonia com a nature-

za não-transformada; a segunda dimen-são refere-se à exposição de uma formade ensino baseada na racionalidade aomesmo tempo em que apresenta umconteúdo conservador, posto que útilàquela sociedade, ou melhor, exatamen-te porque útil à comunidade luterana

da época.Ao expor a peda-

gogia de Ratke, cons-tantemente fazem-sereferências aComênio pois hágrande semelhançanas obras dos doispedagogos. A diferen-

ça de idade entre Ratke e Comênio e,também, entre as obras publicadas poreles, é de duas décadas, sendo que Ratke1

nasceu antes. Os pesquisadores euro-peus postulam uma unidade muito for-te entre os dois. Assim, ocorre com oInstituto de Pedagogia da Universidadede Bochum-Ruhr que possui um Depar-tamento Comeniano de Pesquisa que,também, estuda e publica as suas obras.Recentemente, publicou “O Manual Es-colar de Ratke no Ensino para Todos”(Enciclopédia).A fim de se conseguir bons resulta-

dos, busca-se o lugar de nascimentodessas idéias pedagógicas e a mediaçãodestas com a totalidade do ser da socie-dade manufatureira.O Ensino à Luz da Natureza eda RevelaçãoPara situar a questão da supremacia

do método sobre o conteúdo nas propos-

1 Alguns títulos dos 28 livros escritos por Ratke indicam a semelhança deles com as obras deComênio: A Arte da Linguagem. A Gramática Universal para a Didática. Um Exercício Prático dalíngua grega. Regulamentação do horário escolar para a aplicação da nova arte de ensinar. Dois

Novos Regulamentos Escolares. Compêndio da Gramática Latina de acordo com a Arte de Ensinar.

Pequeno Manual de Leitura para Alunos Novos. Ordenamento de Ensino de Köthen para o novo

Método de Ensinar. A Introdução Geral à Didática ou A Arte de Ensinar. Tratado de Administração

Escolar. Registro de Todos os Ensinamentos. Introdução à Arte de Ensinar. Breve Relato sobre a

Grande Utilidade da Arte de Ensinar. Queixa - admo estação - de Ratke a todos os soberanos e

autoridades da Nação Alemã. Breve Relato sobre o Ensino da Pontuação com seus Sinais. Alguns

Pontos sobre os quais repousa a Didática ou a Arte de Ensinar. O Ensino da escritura das escolas

cristãs. O Ensino do emprego das palavras. O Ensino da Semântica nas escolas cristãs. A Função

do soberano nas escolas cristãs. Manuais das escolas cristãs

Quanto à primeira dimensão trata-se de expor a“arte de ensinar” ou o “Método”, em harmoniacom a natureza não-transformada.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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tas e práticas educacionais dospedagogos Ratke e Comênio, há que sedesenvolver, neste primeiro item, a pro-blemática colocada nos séculos XVI eXVII: a concepção sobre a ciência, a fée a natureza. Um pressuposto se coloca:à medida que o direito natural bur-guês, no século XVII, começava a elimi-nar sua fundamentação transcendente,buscando sua completa emancipação, aescola pública religiosa retomava a con-cepção de uma harmonia entre a “luznatural” e a “luz da revelação”.A concepção burguesa de direito na-

tural emancipava-se de Deus mas nãoconseguia superar o pensamentoespeculativo, a despeito de seus pensa-dores posicionarem-se contra ametafísica. O pensamento burguês apre-senta o direito natural como uma expli-cação causal de momentos históricos eas relações de toda a sociedade passama ser entendidas a partir do direito na-tural. A incapacidade da burguesia emconstruir naquele momento uma lei domovimento da história que fosse sufici-entemente ampla e funcionasse satisfa-toriamente, tinha a ver com as condi-ções objetivas da produção material davida. Na ausência de uma lei suficiente-mente universal a apreender o movi-mento da história, a explicação religio-sa, ampla e especulativa, retomava for-ça e sustentava-se na consciência soci-al. Isso explica porque a ordem naturale a revelação se har-monizavam na esco-la pública religiosa doSeiscentos.Em seu livro “O

Ensino Moral na Es-cola Cristã”, Ratkedefine: “Por moral

entende-se uma inte-

ligência, captada na prática ética, que

se encaminha para a aquisição de um

bem maior” (RATKE, 1994, p. 22). Fun-da a moralidade nas Escrituras e naNatureza: “Conforme Romanos V, 15, os

homens, trazendo inscritos em seus co-

rações uma diferenciação entre o bem e

o mal (...) aprenderam a seguir o bem

e a evitar o mal” (Id., p. 23). Acrescen-ta a seguir: já à época de AlexandreMagno, de Sócrates e de Aristóteles, estalei está em todos os homens; Moisés já ahavia implantado na sua doutrina. Ratkedefine a virtude como “uma capacidade

da mente pela qual o homem inclina-se

para levar uma vida digna, honrar a

Deus e ao próximo”. (Id., p. 30). A vir-tude provém da Natureza, mas é com-pletada por Deus. Dessa forma, a ordemda natureza tem em comum a ordem dalei divina que a complementa.Para Ratke, de 1612 (“Memorial de

Frankfurt”) até 1635 (ano de sua mor-te), a natureza e a fé se harmoniza-vam, sendo esta uma ampliação do con-tido naquela. A harmonia entre a cren-ça e a natureza traz uniformidade atodas as coisas. A sua “Arte de Ensi-nar” baseou-se nessa uniformidade daordem natural quando enuncia que oensino começa com a exposição do gerale se completa com a observação da coi-sas naturais.A harmonia exige que o ensino vá do

geral para o particular, do conhecido parao desconhecido, do confuso e do vagopara o conhecimento distinto, do exercí-cio mais fácil e mais útil para o maisdifícil e menos necessário. Esta é a or-dem das coisas. Reconhece-se aqui ainfluência de Descartes.A luz da natureza é uma intuição que

permite julgar e captar o que é preciso

saber para o bem temporal. Denomina-se assim porque qualquer pessoa, mes-mo não pertencendo a nenhuma fé cris-tã, a descobre e a comprova; e, por meiodela, o homem é capaz de realizar oconhecimento natural de tudo o que énecessário a esta vida. Através dela,adquire-se a harmonia, as maneiras

A harmonia exige que o ensino vá do geral para oparticular, do conhecido para o desconhecido, doconfuso e do vago para o conhecimento distinto...Esta é a ordem das coisas.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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corteses e a ordem (Id., Livro 2, capítu-lo 9).A concepção harmônica encontra-se

em Vives e em Alstedt, amigo de Ratkee de Comênio, que ensinaram a harmo-nia do cosmo (V. RIOUX, p. 240 eHOFMAN, 1974, p. 54). Em “O Registrode Todos os Ensinamentos”, Ratke es-creve: “Todos os ensinamentos são ti-

rados da Sagrada Escritura, da Nature-

za e das Línguas” (RATKE, op. cit., p.

36). Combinando a luz da revelação coma luz natural, o ensino leva mais facil-mente à salvação.Antecipa-se, de forma bem sucinta, o

que será tratado no item seguinte: oconteúdo de ensino era, para Ratke eComênio, extremamente conservadorvisto que o conteúdo religioso era pre-dominante, não havendo necessidade deser renovado. O que necessitava de atu-alização era o que o pedagogo alemãodenomina de Método.Se tudo está em harmonia neste mun-

do e tudo deve ser feito conforme a na-tureza, também a aprendizagem deveser realizada conforme a ordem da na-tureza. (RATKE. Tratado de Adminis-tração Escolar, livro III, p. 26). A apren-dizagem é natural ao homem. (Id., p.31). Séculos após, seguindo-lhe os pas-sos, Pestalozzi dirá: há somente ummétodo, aquele que repousa nas regraseternas da natureza. Para Ratke, a

harmonia é a qualidade essencial danatureza. Até os livros devem ser im-pressos de um modo uniforme e em par-tes simétricas, de acordo com a ordemnatural. Dessa forma, seu conteúdo serámais facilmente ensinado e apreendido.Existe, de acordo com a natureza,

uma ordem nos instrumentos e nas coi-sas. Estas precedem àqueles. E isto pode

ser comprovado pelo seguinte: a natu-reza faz conhecer em primeiro lugar ascoisas; esta é a sua ordem. Por isso, oMétodo deve expor as coisas antes dosinstrumentos visto que estes são inven-tados em função daquelas. Para a inte-ligência esta ordem é cômoda, racionale lhe exige menos fadiga. Os exemplos,para explicar as regras, devem ser ti-rados das coisas e não dos instrumen-tos.A concepção de uma natureza orga-

nicamente em harmonia remete o estu-do também à filosofia e à ciência.Até o século XVII, a filosofia e a ciên-

cia eram inseparáveis, afirma Hellerem seu livro “O Homem do Renas-cimento” (HELLER, s/d, p. 299). Dessaposição podemos explicar porque cien-tistas, como Copêrnico (1473-1543),Kepler (1571-1630), e Galileu (1564-1642) não “entravam” nas aulas dosdois pedagogos. Há fortes comprovações,para quem os lê, que eles ensinavamnos seus livros didáticos uma terra fixa,central no mundo; que não se aventura-vam ao heliocentrismo. A ciência esta-va muito dirigida para a formação dohomem cristão em conformidade com asleis da natureza e não para transfor-mar a natureza. E isto vai durar até amorte de Galileu.Para os dois pedagogos a infinitude do

mundo exprime simultaneamente o ca-ráter sem limites dacapacidade humana eas imensas potencia-lidades do homem,mas este não expres-sa a compreensão ci-entífica do mundo.Comênio posiciona-seefetivamente contra

algumas descobertas científicas.A filosofia da natureza e a ciência

natural também não eram diferencia-das da experiência da natureza. A rela-ção emocional entre os homens e anatureza era feita sem a mediação daciência. O macrocosmo dos filósofos éreproduzido no microcosmo e resultanuma grande harmonia natural. No

Se tudo está em harmonia neste mundo e tudodeve ser feito conforme a natureza, tambéma aprendizagem deve ser realizada conforme aordem da natureza.

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Quatrocentos já se escrevia nesta pers-pectiva. Policiano diz: “A formosura de

toda essa ordem provém de sua parti-

cipação no primeiro inteligível, ou seja,

entendida como a natureza da própria

razão dos números que, difundindo-se e

penetrando em todo o universo, está na

própria fonte de uma

beleza divina e ordem

misteriosa” (POLI-

CIANO, 1998, p. 7)

Em Kepler, as leisdas estrelas eramanálogas às leis damúsica; ambas sefundavam na harmo-nia dos números, de acordo com osneopitagóricos e Vitorino da Feltre; oude maneira mais ampla, de acordo como Quadrivium. Somente a partir desuas obras maduras, a realidade e anatureza deixaram de ter uma estru-tura orgânica e foram captadas meca-nicamente estruturadas. Isso, no en-tanto, não significou que tivesse che-gado o momento de estudos científicoscom vistas à transformação da nature-za ou que a mecânica celeste tivesseassento nos bancos escolares das esco-las públicas religiosas. A filosofia e aciência continuavam inseparáveis emComênio e em Ratke. Ambas explica-vam o mundo organicamenteestruturado. A observação e a experi-ência figuravam como bases comunsnos seus métodos, porém, não esta-vam dirigidas para o sentido da trans-formação da natureza; eram apenas ins-trumentos construídos de acordo coma ordem natural.A natureza e a natureza humana tam-

bém eram concebidas como harmônicas,observadas não como um resultado daatividade dos homens, mas como umauto-movimento. Como se percebe, à baseda harmonia está a legitimação do na-tural. Uma natureza concorde com anatureza humana não significava umanatureza humana igualitária. Ospedagogos ainda tinham muito presen-tes a violência das armas na Boêmia edos anabatistas em Münster, para se

deixarem guiar por idéias revolucioná-rias de igualdade social.A arte inseria-se também na compre-

ensão de uma estrutura harmônica.Assim como os artistas imitavam os fe-nômenos da natureza, também a “artede ensinar” era um instrumento

construído de acordo com a natureza eapresentava resultados práticos maisrápidos do que os da ciência que, à épo-ca, com Kepler, Galileu e outros, traba-lhava com novas hipóteses. O pedagogodevia ser como um bom artista: ser umfilósofo da natureza, um cientista natu-ral e um inovador técnico, isto é, sercapaz de reconhecer a ratio naturae.O termo “arte de ensinar” provém dacompreensão de que o método tinha queestar de acordo com a natureza a fim deexecutar uma obra com o auxílio dainteligência e conforme a luz da nature-za e a fim de ajudar a ver melhor ascoisas naturais e a entendê-las.Bacon teve um papel importante nes-

ta compreensão. Alves o cita quandoafirma que qualquer pessoa humana,normal, seria capaz de traçar uma li-nha reta ou fazer um círculo perfeito.Com a ajuda de instrumentos - régua ecompasso - qualquer pessoa poderiaentender o desenvolvimento da ciência.Há que se observar que as leis, formu-ladas por Bacon, propõem que o objeti-vo da ciência é simplesmente descobriras formas das coisas. E forma significaapenas a coisa enquanto observável,uma certa organização interna da ma-téria, segundo as leis da natureza.Bacon, querendo descobrir as formas dascoisas, não se manteve a par do pro-gresso científico de sua época. Lendo ocapítulo de ROSSI, pode-se concluir queBacon rejeitou Copêrnico e ignorou

O pedagogo devia ser como um bom artista:ser um filósofo da natureza, um cientistanatural e um inovador técnico, isto é,ser capaz de reconhecer a ratio naturae.

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Kepler; depreciou Gilbert e parecia des-conhecer Harvey (ROSSI, 1989, p. 153s).Em síntese, para a época, “arte” sig-

nificava estudar as coisas na sua formainterna tal qual a natureza as apresen-tava. Significava observar a organiza-ção interna da matéria segundo a har-monia natural das coisas.

Alves escreve: “Por isso, enquanto

termo definidor das novas condições

criadas pelo surgimento e expansão das

manufaturas, arte revelava-se anacrô-

nico” (ALVES, p. 58). O anacronismo,conforme ele, manifestava-se num ter-mo proveniente do artesanato mas quetem em vista a organização da manufa-tura.À base da explicação sobre a harmo-

nia estruturada do cosmo e a harmoniaentre a natureza, a fé, a filosofia, aciência e a arte, proponho que se presteatenção ao termo “arte”, utilizado pelopedagogo alemão Ratke e pelo pedagogomorávio Comênio. Cito Aristóteles emmeu auxílio para entender melhor oque eles queriam dizer. O que citar querdizer? Para o pensador grego “arte”não significava apenas a figura domi-nante de uma técnica (techné) para seefetivar algo, mas é concebida tambémcomo a forma de organizar o espaço paraa harmonia da sociedade.Dessa maneira, introduzo uma possí-

vel explicação sobre o conceito, confor-me o qual Ratke e, também, Comênio,aplicavam à “arte” um duplo significa-do: o de uma técnica, de um método oude uma forma para se conseguir umautilidade prática para a vida, no caso, aeducação e, ao mesmo tempo, o de umatécnica ou de uma forma para se conse-guir resultados práticos na sociedade,ou seja, a construção harmônica da so-

ciedade. Nessa construção, as idéias decooperação e de elos sucessivos einterdependentes na corrente, propos-tas pelos pedagogos, tomam significado.Assim, reconhece-se a presença da

idéia de cooperação que se caracterizapor uma estrutura em que todas asmatérias se organizam em elos de cor-

rente sucessivos einterdependentes, talcomo Alves propõequando liga “arte” àmanufatura. No “Re-gulamento Escolar deGotha” encontra-seque as lições prescri-tas para cada classe

devem ser ministradas corretamente,sem pressa, indo de uma à outra e cap-tando-se bem o antecedente. O Regula-mento, em seu artigo 19, continua:

“Da mesma forma é preciso terminar

o conteúdo que foi prescrito antes de

se proceder ao que pertence à outra

classe. Por exemplo, nas classes

iniciantes, é preciso realizar a apren-

dizagem de sentenças e de salmos

junto à silabação que deve preceder

à exposição do catecismo e, ainda, na

classe intermediária, deve ser estu-

dado o Conceito Conciso antes de

aprender o catecismo em seu todo na

lousa de escrever e com pequenas

perguntas” (Regulamento Escolar de

Gotha, art. 19).

A harmonia natural aconselha pas-sar-se às outras lições somente quandotodas as anteriores forem assimiladas.Não há saltos na natureza.A “Arte de Ensinar”, enquanto uma

“arte”, também têm dois aspectos: umatécnica didática escolar e uma technépara construir uma sociedade harmô-nica.A pedagogia ratiquiana do “Método”

ou da “Arte de Ensinar” prioriza a for-ma tanto num quanto noutro aspecto. Arelevância dada ao método do ensinoindica o caráter inovador tanto de Ratke(1617) quanto de Comênio (1635). Aprimeira preocupação deles foi a derevolucionar a “arte de ensinar”, a for-

A “Arte de Ensinar”, enquanto uma “arte”,também tem dois aspectos: uma técnica didáticaescolar e uma techné para construir umasociedade harmônica.

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ma ou o “Método”. Por que não revoluci-onou o conteúdo?O Método é Racional e oConteúdo Pertence aoIrracionalismo ReligiosoO conteúdo de ensino era, para am-

bos os pedagogos, extremamente con-servador visto que o religioso era pre-dominante, não havendo necessidade deser renovado. O que necessitava de atu-alização era o que o pedagogo alemãodenomina de Método.O livro “De Revolutionibus” de

Copêrnico não faz parte dos conteúdospropostos pelos manuais didáticos deRatke e de seus colaboradores. Copêrnico,Galileu, o telescópio, a concepção denatureza como uma estrutura orgâni-ca, não entram nas escolas dos doisgrandes mestres fiéis às suas crenças.Não fazem parte do Método a concep-

ção de uma natureza mecanicamente emconcordância e a concepção científico-natural, isto é, a ciência aplicada à na-tureza a fim de transformá-la. Dessamaneira, sua consciência social refleteas leis gerais de um universo harmôni-co. A resposta a essas questões pode serformulada na seguinte hipótese: oracionalismo do método revela a arteda prática do trabalho manufatureiro,uma prática objetivada, racionalizada euniversalizada, masa consciência socialenraíza-se na har-monia universal e noirracionalismo soci-al de cunho religio-so, base da socieda-de harmônica.Por que o ir-

racionalismo? As seitas e as igrejasreformadas sempre se baseavam na in-tuição e apareciam com seu fundamen-to místico. A interpretação da Bília foi,no entanto, racional e crítica a ponto defirmar-se em decisões concretas e obje-tivas no critério de verdade das ques-tões, como transubstanciação, batismo

de crianças, milagres, hierarquia sacer-dotal, indulgências, imagens, soberaniapapal, etc.Eliminava-se radicalmente tudo o que

não resistia ao claro entendimento e aosentido da realidade. Zwinglio, com a opo-sição de Lutero, levou a explicação reli-giosa à completa racionalização. No en-tanto, o profano deveria submeter-se àfé; a vontade livre do indivíduo, à von-tade divina.A opacidade das relações sociais ar-

ticulava o pensamento com uma com-preensão irracionalista da sociedade. Adespeito do caráter não cognoscível dosnexos objetivos, estes eram experimen-tados como algo que se encontra emharmonia com a liberdade individual.Imputava-se ao plano divino tal harmo-nia.A construção de uma sociedade orga-

nicamente harmônica exigia que a “edu-cação para todos” fosse direcionada parafins úteis e práticos. Este foi o objetivodo príncipe Ernest I e de Andreas Reyherao elaborar o Regulamento Escolar deGotha. O Método de Ratke e a Arte deEnsinar de Comênio forneceram os fun-damentos para este Regulamento(1642), ressalvando-se que RIOUX con-sidera o Regulamento “inteiramente e

profundamente ratiquiana”. (RIOUX, p.

272)

No primeiro ponto, o Regulamentoprescreve o ensino das horas e revela autilidade do ensino para a vida: o pro-

fessor mostra a duração de uma horana ampulheta ou no relógio de sol. Háuma nova concepção de tempo, o do re-lógio, na prática do trabalho ma-nufatureiro, uma concepção diferente dado artesão e das cerimônias religiosasda igreja.

Não fazem parte do Método a concepção de umanatureza mecanicamente em concordância e aconcepção científico-natural, isto é, a ciênciaaplicada à natureza a fim de transformá-la.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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A seguir dá outras orientações paraoutros conteúdos que revelam especifi-camente o lado prático da educação es-colar na vida do aluno:

“Os doze zodíacos e a mudança da lua

devem ser ensinados no calendário;

as figuras que significam as quatro

fases da lua, devem ser aprendidas e,

posteriormente, o professor deverá de-

monstrar a que mês pertence cada sig-

no e quando se diz: o sol anda em Leão

ou em Virgem, demonstrar a que mês

pertence o signo; o mesmo se deverá

fazer para o mês do feno ou para o

mês de agosto” (art. 2).

O artigos seguintes estão a indicar acompreensão do tema através da expe-riência comparativa:

“Em relação ao relâmpago e o trovão,

há que se entender porque o raio

aparece antes do trovão ser ouvido,

apesar de os dois ocorrerem ao mes-

mo tempo. Isso pode ser experimen-

tado com um tiro de espingarda dis-

parado de longe: não obstante o fogo e

o tiro ocorrerem ao mesmo tempo, o

fogo é visto logo e o tiro é ouvido de-

pois” (art. 5).

A ordem natural das coisas práticasestá indicada nas recomendações se-guintes:

“Os quadrantes do mundo devem ser

ensinados a partir da igreja, pois o

altar sempre está posicionado no ama-

nhecer e quem olhar para o altar está

olhando para o oriente e tem atrás de

si o ocidente, à mão direita o sul e à

esquerda o norte” (art. 6).

“O salgueiro não serve apenas como

lenha para queimar, mas também

serve para naturalmente proteger

as margens dos rios em forma de di-

ques” (art. 11).

As “lições das coisas” são a tônicaprincipal do Regulamento, como se per-cebe nos três exemplos seguintes:

“Para que se possa ensinar melhor

as hortaliças, os arbustos e as árvo-

res, deve-se buscar as plantas nas

hortas e nos arredores, além de apre-

sentar folhas secas, cosidas ou cola-

das no papel a fim de servir de de-

monstração” (art. 8)

“Ao se ensinar as partes do corpo hu-

mano, os preceptores devem aprovei-

tar a ocasião quando se mata um por-

co ou um outro animal por perto; levar

ali as crianças e ensinar-lhes as par-

tes componentes do corpo” (art. 14).

Nas aulas de artmética, há que seapresentar a ordem natural do territó-rio, dividido socialmente:

“Os professores não devem apenas

ditar à juventude a medida, como, por

exemplo, a polegada; devem fazer com

que os alunos a desenhem na lousa

de escrever. Devem fazer a demons-

tração com a régua como medir pre-

cisamente uma vara (N. T.: 1,10m),

informando ainda que a figura do li-

vro foi retirada da Ordem Florestal

dos Príncipes, pois, foi a partir dessa

Ordem que o território foi medido,

dividido e vendido. (...) O professor

faz perguntas: quantas polegadas tem

um palmo? Quantas polegadas mede

o sapato? O professor também deve

ensinar e mostrar as diferentes me-

didas existentes” (art. 1 do III)

Cabe bem a frasedo poeta argentinoJose Larralde a per-guntar após cadatema introduzido nosseus versos criollos:“Hé, pa’ qué sirve?”

(“Herencia pa’ un

Hijo Gaucho”). 350anos antes, Ratke fazia a mesma per-gunta: “Para que serve?” (“Was nützt

es?”) Ali estava uma questão que ostempos não conseguiram resolver. A pro-paganda da reforma do Ensino Médio,em 1999, quer resolvê-la de vez: oensino serve para a vida!

A utilidade prática que têm as coisas, a formainterna que elas possuem e a experiência paraverificar como elas funcionam, perfazem aproblemática a ser analisada por Ratke.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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A utilidade prática que têm as coi-sas, a forma interna que elas possuem ea experiência para verificar como elasfuncionam, perfazem a problemática aser analisada por Ratke. A tarefa esco-lar resume-se nisso e nunca na de daruma explicação cien-tífica das coisas.Acentuamos aci-

ma que, à época, omovimento burguêsassumia nova con-cepção sobre o direi-to natural, orientadapara o sentido “cien-tífico-natural”. Observa-se isso nos es-critos de Grotius e nos de Bodin. Ratkeconhecia esses escritos. Comênio tam-bém. Observamos acima que nem umnem outro orientavam sua Didática pelodireito natural emancipado, como que-ria Grotius. A harmonização entre a fée a natureza implicava também a har-monia entre a fé e a ciência, sendo estaúltima considerada como entendimentoe explicação das coisas naturais.Propunha-se uma instrução escolar

voltada para o ensino prático e útildas coisas; de preferência, objetos na-turais. Por que Ratke não apresentouum ensino prático e útil, tendo por re-ferência o desenvolvimento das forçasprodutivas, como a utilidade da mine-ração, da metalurgia, das bombas hi-dráulicas, etc.?Ratke apresenta uma lista grande das

profissões de sua época. O que dizerdessa lista? A simples enumeração nadadiz sobre as relações de produção, pois,Marx nos ensina: “Não é o que se faz,

mas como, com que meios de trabalho

se faz, é o que distingue as épocas eco-nômicas” (MARX, I, p. 151). O que sequer inserir aqui é a posição burguesade Ratke. Ele se alinha no pensamentoda burguesia e não na do feudalismo.Isso ele deixa claro em vários pontos desua obra.As manufaturas se desenvolviam nos

principados alemães. A indústria mi-neira, a metalúrgica e a de panos sesobressaíam. Lã, roupa branca, algo-

dão, linho, fustão e seda eram merca-dorias produzidas e comercializadas. Aindústria européia de terciopelos,passamanes e brocados localizava-setambém no Sul da Alemanha. O segun-do ramo mais importante foi a meta-

lurgia em combinação com a minera-ção, na Saxônia e no Tirol. A constru-ção de poços, galerias, drenagens,bombas hidráulicas para a elevaçãodas águas, altos fornos para produzir ocarvão vegetal, a produção de vidro eas artes gráficas estavam ali bem de-senvolvidos. A obtenção e a transfor-mação do ferro ocupava, nesta época,mais de mil trabalhadores só na Ale-manha. Entretanto, nenhuma dessasprofissões é mencionada na lista elabo-rada por Ratke, uma lista que dá sus-tento ao ensino das coisas naturais.Nos textos de Ratke não se encontra

referência a: microscópio composto,telescopia, instrumentos náuticos(astrolábio e sextante), invenção astro-nômica de Brahe, hidro-mecânica, óticana base de Kepler, magnetismo, botâni-ca, biologia, anatomia de Vesalio, arteda navegação, engenharia técnica, tece-lagem, metalurgia, mineração, abasteci-mento de água etc. O leitor pode-mecontestar dizendo que são matérias quenão cabem na instrução primária. Éverdade. Mas, não há sequer referênciaprática a essas matérias. Talvez porisso é que Bodin exigia um ensino pro-fissional.Não se tem notícia de nenhuma ciên-

cia, que desenvolvia o conhecimento ouo domínio da natureza, estivesse nosconteúdos do pedagogo. Bacon, o pen-sador da utilidade prática da ciência,teve influência em Ratke. Propôs oexperimentalismo, a investigação co-

Propunha-se uma instrução escolar voltada parao ensino prático e útil das coisas; de preferência,objetos naturais.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, 4(8): 108-120, 1998.

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operativa da natureza e a observaçãono intuito de descobrir novas formaspara se entender a natureza. O Métodode Ratke propôs a observação e oexperimentalismo e o exame das coi-sas. Observação e experimentalismo emRatke e também em Comênio, são, no

entanto, diferentes de comprovação cien-tífica; têm a ver com a eficiência e autilidade.Laski escreve que o século XVII co-

meçou a ver tudo de um novo modo,provocativo e criador (LASKI, p. 58). Àemergência do secularismo, Ratke opõea emergência do príncipe cristão numEstado religioso; a um novo modo dever a sociedade e a ciência, opõe umanova forma de ensinar, com postuladosinteiramente novos. Não se deixa levarpelos novos resultados da ciência; im-porta-se, sim, com o novo espírito admi-nistrativo, com a racionalização do prin-cípio administrativo na escolarização dascrianças e dos jovens em favor da reli-gião reformada.De um lado, a crescente racionaliza-

ção do trabalho do artesão e sua ten-dência a dominar racionalmente a ma-téria e a natureza - dos círculosartesanais ligados à religião calvinistaascendeu um estrato a partir do qual sefoi configurando a burguesiamanufatureira -, e, de outro, o sucessodo trabalho manufatureiro na produçãoda vida material, orientam a consciên-cia social para a totalidade das relaçõessociais. O ser social articulado com opensamento de Ratke resulta em pos-tulados pedagógicos orientados para aprodução de instrumentos para fins nãomateriais na “Arte de Ensinar” ou no“Método”.

ConclusãoA grande acentuação que Ratke - tam-

bém Comênio, a meu parecer - deu à for-ma de ensinar, à Didática, à Arte deEnsinar, ao Método, habilitou as suaspropostas a terem a universalidade deque gozaram. À semelhança das técni-

cas descobertas naprodução manufatu-reira, as descobertasde Ratke e de Comêniona utilização da pro-dução não-material ouno ensino, mantêmuma universalidadeatravés dos tempos.

A pergunta: por que Ratke e Comênionão tiveram maiores sucessos em suaépoca?As respostas são muitas e variadas.

Anotemos algumas. As guerras religio-sas acabaram por deslocar a produçãoe o comércio do interior da Europa - dosrios e do Mediterrâneo - para os portosdos mares ao norte, deixando os princi-pados sem recursos para manter asescolas. As guerras, também, diminuí-ram a população pela metade, na Ale-manha.O século XVII caminhava para o que

se denominou de Absolutismo e, conse-qüentemente, para o que os autoresdenominam de “refeudalização” de umagrande parte da Europa. Os historiado-res falam da “Idade Barroca” que suce-de à Reforma e antecede ao Iluminismo.Nesta época a “União Hanseática” - con-federação política e comercial de cida-des prósperas - se enfraquecia e ospríncipes fortificavam-se em detrimen-to das cidades e dos pequenos senhores.A administração central dos soberanospenetrava em todas as camadas bur-guesas e eliminava as gestões autôno-mas. Cabia ao Estado melhorar a econo-mia e a sociedade; cabia, também, a elea tarefa da educação popular. Ao pensa-mento individualista sucediam os gran-des sistemas filosóficos; à escola dossábios, a escola popular. Ratichius seinscrevia no primeiro período da “Idade

Observação e experimentalismo em Ratke e tambémem Comênio, são, no entanto, diferentes decomprovação científica; têm a ver com a eficiênciae a utilidade.

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Barroca”: concentrava nas mãos dopríncipe, responsável perante Deus, pelagestão global e uniforme do país. A edu-cação concedia a cada indivíduo, con-forme seu mérito, os conhecimentos ge-rais e as técnicas indispensáveis prauma vida coletiva solidamenteestruturada e hierarquizada, tendo-seem vista o bem-estar terreno e a felici-dade eterna. Uma língua única purificadacontribui para a coesão da sociedadeharmônica (V. RIOUX, 1963, p. 271s.).Essas explicações são importantes

mas não se esgotam nesse contexto. Épreciso observar que as técnicasmanufatureiras não se modificam mui-to com as máquinas que surgiram como desenvolvimento posterior do capita-lismo. A maquinaria insere na produ-ção técnicas mais aceleradas e um con-teúdo novo: a aplicação científica natransformação da natureza. Percebe-seque os novos conteúdos inseridos pelamaquinaria podiam ser ministrados coma utilização das mesmas técnicas utili-zadas na manufatura, ou seja, a produ-ção em série, a decomposição das tare-fas em parcelas etc.A consciência social, impregnada

pelas idéias luteranas e hussitas, gera-va movimentos favoráveis para a “edu-cação para todos” e gerava métodosque viabilizassem a universalização dosconteúdos religiosos. Dessa forma, osconteúdos religioso-naturais prevaleci-am sobre os cientí-fico-naturais. Isso, àépoca das propostaspedagógicas. A acei-tação delas em sécu-los posteriores tem aseguinte explicação.A consciência so-

cial forma-se a par-tir das condições materiais e estas tam-bém se modificam a partir daquela. Aprodução em bases manufatureiras -e, depois, com as máquinas - implicavaem leis de produção, leis gerais, válidasuniversalmente, leis objetivas e racio-nais. A universalidade da produção fa-zia originar também uma consciência

social que considerava suas leis acimadas pessoas, leis supra-humanas a queos homens tinham que se submeter.A presença da manufatura que inau-

gurou um método de trabalho objetivo,racionalizado e universal na criação deinstrumentos de trabalho, influenciouRatke e Comênio a aplicar as técnicasda produção material ao método de en-sino, uma produção não-material. Aobjetivação do trabalho na produção davida material e a coisificação das rela-ções humanas, no entanto não estavamna consciência social à época de Ratkee de Comênio.Especificamente tem-se em Ratke e

em Comênio um método de ensino racio-nalizado, universal e objetivo; junto àcriação de instrumentos de trabalho di-dático para a escola - os livros escola-res -, a arte de ensinar baseou-se maisno método do que no conteúdo das disci-plinas. Copêrnico, Galileu, o telescópio,a concepção de natureza como uma es-trutura mecânica não entram nas esco-las dos dois pedagogos, fiéis às suascrenças. Suas idéias sobre a adminis-tração escolar encontram-se firmadosna arte de ensinar, no método de ensinoe efetivam-se com a utilização de manu-ais, instrumentos didáticos racionais,uniformes, objetivos e universais; fun-dam-se no racionalismo individual aconviver com o irracionalismo da situa-ção social. Para que se efetivasse uma

educação para todos, no caso de Ratke,o Estado era a garantia: com a ajuda daigreja reformada, devia organizar e con-trolar toda a educação escolar. O méto-do, baseado nas técnicas da manufatu-ra, dá o alcance de universalidade, deeficiência e do que Alves denomina de“barateamento do ensino”.

A arte de ensinar baseou-se mais no métododo que no conteúdo das disciplinas.

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A “arte de ensinar” garantia uma“technè” eficiente na “educação paratodos” e uma arte capaz de efetivar asociedade harmônica. Ratke lutava pelaunificação da Alemanha, por uma lín-

gua única, por uma nação burguesa eluterana. Essa luta de Ratke traduz-sepor escritos que propõem um pensamen-to único, um tema fecundo a ser estu-dado no pedagogo alemão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Luiz Alves. A Produção da Escola Pública. São Paulo: UNICAMP, 1998.

COMÊNIO, João Amós. Didáctica Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

HELLER, A O Homem do Renascimento. Lisboa, Ed. Presença, s/d

HOFMANN, F. Das Schulbuchwerk Wolfgang Ratkes zur Allunterweisung. Ratingen:Aloys Henn Verlag,1974.

KOFLER, L. Zur Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft. Hamburg. Verlag GMBH, 1966

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Economistas).

RATKE, W. Allunterweisung. Ratingen:Aloys Henn Verlag, 1974

RATKE, W. Die SittenLehr der Christlichen Schule. Oberhausen:Context-Verlag, 1994.

RATKE, W. Etliche Punkten, auf Welchen die Didactica oder Lehrkunst beruhet. Halle: Hohendorf,1842.

RIOUX, G. L’Oeuvre Pédagogique de Wolfgangus Ratichius. Paris:J. Vrin, 1963.

ROSSI, P. A Ciência e a Filosofia dos modernos. São Paulo: UNESP, 1989

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