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Isie Fernandes Entre a , a razão e o coração

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Isie Fernandes

Entre a fé, a razão e o coração

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Este é apenas um trecho do livro.

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Para Gisela Santanna que se apaixonou

por meus personagens tanto quanto eu.

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“A renúncia é a libertação. Não querer é poder.”

Fernando Pessoa

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Sumário

Capítulo 1 — A transformação ........................ 7

Capítulo 2 — Visita ao Morumbi .................. 15

Capítulo 3 — Vagner ........................................... 22

Capítulo 4 — O Convite ..................................... 36

Capítulo 5 — De volta ao Morumbi.............. 52

Capítulo 6 — Chefs de Cozinha ..................... 59

Capítulo 7 — Toque Blanche .......................... 73

Capítulo 8 — Eles e Ela ..................................... 81

Sobre a autora ....................................................... 100

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Capítulo 1

A transformação

Três coisas que me deixavam arrepiada:

elevador, gente mentirosa e estacionamento vazio. Olhei

mais uma vez no retrovisor, meus olhos estavam miúdos e as

olheiras marcadas denotavam o acúmulo das noites perdidas.

Se alguém me fitasse com atenção, certamente perceberia o

quanto eu havia chorado.

Voltei ao retrovisor pela milésima vez, sabe quando a gente

olha sem ter ideia do que procura? Era assim que eu me sentia.

Quase trinta minutos me arriscando parada num

estacionamento. Morar em São Paulo era muito diferente do

que eu imaginava, não havia ninguém da família por perto,

nem meus melhores amigos, exceto por Bárbara, minha sócia

na empresa, e tudo era tão corrido que eu mal conseguia

enxergar os reflexos da minha própria vida.

Trabalho, a melhor coisa que eu tinha conquistado, mas ali,

uma pergunta: para quê? Tantas pessoas passaram pelo meu

caminho... Onde estavam as melhores companhias? Não havia

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mais ninguém. Um passado de inteira dedicação ao violino —

sem ele eu jamais seria quem sou, bem como sem o apoio dos

meus pais —, viagens, concursos, namorados, conquistas,

festas e solidão.

Olhei de novo no retrovisor...

Cadê meu marido, meus filhos, minha felicidade? Não

havia nada que valesse a pena, que me fizesse resistir.

Que susto!

Um rosto sorridente e três batidas tímidas no vidro do meu

carro. Em meus quase quatro anos naquela cidade, eu nunca

havia sido assaltada. Simplesmente gelei. Ele bateu de novo e

sorriu ainda mais. Que garoto esquisito.

— Bom dia — articulou, fazendo caras e bocas do outro

lado do vidro. Foi engraçado, admito, se eu não estivesse tão

pê da vida, teria dado uma boa gargalhada.

Baixei o vidro.

— Que é?

— Bom dia, aliás, boa tarde, né? — sorriu de novo.

Quantos anos ele teria? Dezessete, vinte? — Pra você.

Panfletagem, só isso. Tchau, muito obrigado pela atenção,

viu?, ele disse e foi saindo com um andar super desengonçado,

quase caipira, infantil. Fiquei distraída, e quem não ficaria?

O garoto cruzou a esquina e desapareceu, lá se foram meus

cinco segundos menos angustiantes do dia. O mundo escuro

retornou. Olhei o papel na minha mão, um simples folhetinho

religioso. Até aqui, dona Laura?, resmunguei e amassei a

literatura sem hesitar.

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Laura conhecera uma igreja cristã e, mesmo contra a

vontade do marido, Marco Antonio, passara a frequentar as

reuniões, levando consigo os dois filhos, Tiago e Christina.

Aquela era uma igreja pequena, humilde e de poucos

membros. Talvez por isso tenham se envolvido tão

rapidamente com as outras pessoas. Seu filho mais velho,

tímido e de caráter introspectivo, surpreendendo a todos, foi o

primeiro a ser inserido nas atividades da singela comunidade

cristã. Logo, e sem acanhamento, manifestou suas maiores

habilidades.

Estando no início da adolescência, Tiago demonstrava

verdadeira paixão pela música. Para ele, poder expressar a sua

vocação daquela maneira parecia uma oportunidade

realmente valiosa. Naquela época, Christina tinha cerca de

dez anos. Já sendo estudante aplicada de violino, por

influência do irmão, constantemente recebia convites para

tocar na igreja aos domingos, o que fazia sem muito prazer,

apenas em obediência aos incentivos da mãe.

Daquela forma, os anos foram se passando e toda sua

família terminou se habituando ao novo modelo de vida. Até

mesmo Marco Antonio, antes cético, havia se rendido aos

apelos da persuasiva esposa recém-convertida à nova religião.

Christina, assim como o pai, quem menos apoiava o novo

costume, forjando uma máscara que sempre retirava ao se

afastar dos olhos da família e das pessoas da igreja, também se

transformara em cristã.

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Aos dezesseis anos, partira para o Conservatoire de

Musique de Genève1, na Suíça, onde passara quatro anos

estudando violino sob a orientação de Corrado Romano.

Retornando ao Brasil, ingressara na graduação em Composição

e Regência pela UFBA, Universidade Federal da Bahia.

Estudara ainda com Elisa Fukuda, Diretora Artística da

Camerata Fukuda, e em seguida fora aprovada na ferrenha

seleção de violinistas da OSESP, Orquestra Sinfônica do

Estado de São Paulo.

Mudou-se definitivamente de Salvador, sua cidade natal,

em junho de 2005. Enfrentou as dificuldades do primeiro ano

na OSESP. Assumiu a liberdade de quem responde por si e

carregou com pesar as consequências dos seus erros.

Dois anos passados, mesmo realizada profissionalmente,

pôde enxergar o quanto estava longe da vida que havia

idealizado.

Parada no estacionamento, cansada de reclamar

intimamente das minhas questões e de refletir com pesar

sobre aquilo que antes eu consideraria a trajetória perfeita,

resolvi ignorar meus pensamentos. Aquela seria a minha

última chance. Levaria a rotina à risca, sem falhas, como todos

os dias.

1 Conservatoire de Musique de Genève é o Conservatório de Música da cidade de Genebra, na

Suíça, o primeiro do país, que foi fundado em 1835, por François Bartholoni.

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Pensei um pouco em tudo que havia acontecido na noite

anterior e suspirei. Estava ficando tarde, eu tinha que

prosseguir. Só mais uma vez.

Desci do carro e, embora não estivesse com a mínima

vontade de comer, resolvi almoçar. Caminhei devagar até a

entrada do restaurante A Francesa e quando entrei tive a

mesma sensação de sempre: as pessoas eram estranhas.

Acompanhadas ou sozinhas, elas sempre sorriam, olhavam no

relógio, atendiam ao celular ou conversavam, mesmo com

quem não conheciam. Eu não era assim.

Passei pelo lavabo e fui direto ao buffet, para que lavar as

mãos antes de uma inútil e forçada refeição? Segui até a mesa

indicada pela recepcionista e sentei-me de cara fechada. Não

sabia como cheguei àquele ponto, apenas sentia as lembranças

massacrarem meu coração. Tentei focar no prato, talvez

comer um pouco terminasse me ajudando, mas um barulho

irritante de repente me chamou a atenção.

Era uma jovem de cabelos loiros e compridos que ria

freneticamente uma mesa atrás de mim. Olhei tudo em redor.

Fui notada? Claro que não, o mundo inteiro só tinha olhos

para seus próprios interesses. Torci a boca e, aborrecida,

respirei fundo. Eu não podia mais continuar.

Afastei a cadeira para me levantar e terminei esbarrando no

refrigerante. Droga!, resmunguei, o que mais de ruim poderia

me acontecer? Nada. Um garçom apressou-se a me ajudar, me

entregando um guardanapo de linho e limpando a mesa com

sua flanela branca. Me desculpe, sussurrei encabulada, porém

não recebi qualquer resposta. O jovem esquisito fitou meus

olhos e sorriu. Havia algo diferente em seu olhar, alguma coisa

que não me era desconhecida. Fiz um esforço para recordar,

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tentar entender de onde conhecia aquele alegre semblante,

mas ele logo terminou sua tarefa, abriu um largo sorriso, como

se fosse algo automático, e saiu.

Aquele andar...

Sim, era mesmo familiar, era o andar desengonçado do

garoto do estacionamento. Suspirei meio indignada. Como

alguém poderia ser tão feliz?

Isso me fez lembrar o folheto. Minha mente estava

mergulhada em pensamentos mórbidos, mas resisti. Queria

mesmo encontrar um sinal, uma luz no fim do túnel, e talvez

fosse exatamente aquilo que o garoto tivesse me entregado.

Paguei a conta, levantei depressa e retornei ao carro. Abri a

porta e olhei em todas as direções, como para saber se havia

alguém suspeito por ali. Que diferença faria se eu fosse ou não

assaltada? Naquela situação, era irônico e eu ri pela primeira

vez no dia.

Entrei no carro, bati a porta e fui direto ao lixo, puxei o

último papel que havia amassado, o bendito folheto

evangélico, e li o artigo bíblico com avidez: desespero,

tranquilidade; tristeza, alegria; depressão, felicidade;

desesperança, fé; apatia, vivacidade; desejo de morte... Suspirei

outra vez. Eu realmente precisava acertar as contas com a

minha fé, mas tinha que ser daquele jeito? Pouco importava

como seria, aquela era a minha última chance, o meu último

dia, não custava tentar fazer o que quer que me mandassem;

eu nada teria a perder.

Não hesitei. Liguei o carro e parti até o local descrito no

final da literatura. Avenida São João, 791, próximo à esquina

com a Avenida Ipiranga, uma conhecida congregação cristã, a

Igreja Internacional da Graça de Deus, que ficava bem perto

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dali. Foram apenas alguns minutos de trânsito. Estacionei do

outro lado da rua, no local em que antes havia sido um posto

de gasolina, e esperei. Os pensamentos negativos retornaram,

senti vontade de desistir. Estiquei o braço até a chave do

carro, porém me lembrei do sorriso daquele rapaz

desengonçado.

“Eu já estou perdida mesmo...”

Saí rapidamente, antes que pudesse retroceder, e atravessei

a rua. Enquanto pisava nas listras da faixa de pedestres, sentia

como se estivesse presa num lugar onde havia apenas o som

dos meus próprios pensamentos, dentro de uma bolha

invisível e pesada de carregar. Mesmo assim, continuei. Fui

me arrastando aos poucos e os segundos que levei para chegar

à igreja pareceram uma eternidade. Então foram as pessoas.

Muita gente ia entrando comigo, eu tinha chegado

exatamente na hora da reunião. Quando, enfim, cheguei à

entrada do templo, duas mulheres muito sorridentes me

cumprimentaram. Entrei e mais sorrisos, tantos que me

deixaram constrangida por não retribuí-los.

A igreja era enorme por dentro e bem-acomodada. As luzes

clareavam tudo e as câmeras espalhadas por todo o recinto

registravam aquela interessante manifestação de fé. Na parte

elevada, o altar, tinha um púlpito transparente de onde um

homem estava falando. Ele era branco, magro, meio grisalho,

de estatura aparentemente mediana e falava com um

carregado sotaque carioca. Suas palavras eram as mais

profundas que eu havia escutado na vida. Os cânticos também

eram lindos.

Chorei feito uma criança durante toda aquela hora e meia,

e não era um choro de tristeza, era de pura emoção. Ao longo

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do discurso do pregador, fui invadida pela boa sensação de que

eu ainda era um bebê totalmente protegido pelo zelo dos meus

pais, e isso gerou um fio de esperança em mim.

Quando a reunião terminou, continuei sentada, bem quieta

em meio à multidão barulhenta, tentando entender o que

havia acontecido comigo. Lembrei do sorriso do garoto

desengonçado e sorri... Para onde quer que eu fosse, queria

seguir com aquela alegria.

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Capítulo 2

Visita ao Morumbi

A hora avançou e eu desisti de passar na

empresa. Peguei minha agenda, nunca perdia a mania de

rabiscar, e fiz uma breve consulta. Passavam das 15h, não

daria tempo de fazer tudo, resolvi tentar a tarefa mais

procrastinada da semana, uma visita ao condomínio Voo dos

Pássaros, na Avenida Giovanni Gronchi, zona sul. Era uma

simples reforma com decoração, mas eu tinha que visitá-la,

analisar o andamento, ouvir as explicações dos responsáveis

pelo projeto e satisfazer, enfim, o ego do setor comercial da

nossa empresa.

São Paulo já não tinha horários sem que o trânsito

apresentasse engarrafamentos ou lentidão, imagine ir do

Centro ao Morumbi bem no meio da tarde... Virei à direita na

Rua da Consolação, depois segui rumo à Avenida Rebouças e

comecei a relembrar as palavras daquele singelo pregador, um

completo estranho que parecia conhecer e recitar cada um dos

meus dilemas. Engraçado, tantas vezes fui à igreja, e nunca

havia entendido os sermões de maneira tão clara.

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Pensamentos bons parecem mesmo fazer o tempo voar.

Cheguei, me identifiquei, estacionei o carro numa das vagas

para visitantes e prossegui. Era um belíssimo condomínio de

luxo: segurança garantida, prédio único de doze andares,

apenas um apartamento por andar, dois elevadores sociais e

dois de serviço.

Sequei as mãos úmidas na calça e respirei fundo antes de

entrar no elevador — nem mesmo elevadores de condomínios

de alto padrão conseguiam vencer o meu medo. Por sorte,

cheguei depressa e em completa segurança. Relatórios,

explicações, palheta de cores, fotografias, assinaturas. A obra

estava ficando perfeita. Quanto tempo passei ali? Não deve ter

sido muito, como sempre, perdi a noção.

Terminei a visita com sensação de tarefa cumprida.

Caminhei até o hall do andar, apressada e meio distraída. O

chão brilhava, como se nenhuma obra estivesse sendo feita

por ali. Chamei o elevador e comecei a sorrir, sei lá por que

razão, de repente, me senti feliz. Sabe quando você fica no

automático? Minha mente voou no garoto do estacionamento,

quando dei por mim já estava apertando o botão do

playground. Que combinação mais maluca, sorriso perfeito

com andar desengonçado... Sorri outra vez e a porta se fechou.

Minhas pernas tremeram? As luzes falharam.

Ai, meu Deus, o elevador despencou!

Meu estômago foi parar na cabeça, a cabeça foi parar no

teto e as cordas vocais no espaço, tamanho o grito que dei.

Durou apenas frações de segundo, senti um solavanco brusco e

a queda terminou. Fiquei paralisada, tentando pensar em

alguma coisa, mas todos os botões do painel haviam se

apagado, tudo ao meu redor era escuridão.