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Ç \ o i—p* 0 6  ju a jr ez  T a v a r e s TEORIA DO INJUSTO PENAL 2 * EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA Belo Horizonte - 2002

Juarez Tavarez - Teoria Do Injusto Penal - Ano 2002

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  • \ o i p* 0 6

    ju a jr e z T av a r es

    TEORIA DO INJUSTO PENAL

    2* EDIO

    REVISTA E AMPLIADA

    Belo Horizonte - 2002

  • 1 7 8 TEORIA DO INJUSTO PKNM

    teoria do injusto ficaria reduzida, dessa forma, a questes meramcn te dogmticas, desprovida de seu carter poltico, que lhe d diiu mismo e possibilita sua insero dentro do contexto da proteo ilr direitos fundamentais.

    BUSTOS RAMREZ, por sua vez, acolhe essa ltima classifica^ e ainda acrescenta uma funo, a de instruo, pela qual o*, cidados tomam conhecimento das normas penais334. Esta funio de instruo, todavia, pode estar compreendida na funo poltio criminal, pela qual se assinalam as delimitaes das zonas do jusio do injusto, igualmente como um processo de comunicao.

    Deve-se, ainda, agregar que essa modalidade de comunica: no se destina a instrumentalizar o tipo como forma ideolgica tl

  • 3O CONTEDO DO INJUSTO

    A determinao do contedo do injusto diz respeito no mais relao entre tipo e antijuridicidade, mas sim estrutura desses dois elementos e significao dos jzas'^de?v'afor que necessariamente so emitidos sobre a conduta criminosa. A constituio do contedo do injusto decorre, assim, da anlise diferenciada que se deve realizar sobre os elementos que compem o lipo e a antijuridicidade, d modo a tomar possvel a perfeita delimitao da conduta proibida ou mandada. Isto se impe por imperiosa necessidade dogmtica, que se destina a emprestar c.nefa da deciso jurdica os instrumentos adequados soluo do ciso sobre o fato concreto. Para que isto possa ser efetivado, deve-se dividir a tarefa em duas partes. Na primeira, enfocando a estrutura e i formao, em geral, do tipo. Na segunda, a estrutura da antijuridicidade e os princpios gerais que devem reg-la.

    . l O HPO DE ENJUSTO

    .i-1.1 A estrutura do tipo de injusto

    O tipo, tomado sempre em sentido estrito, compe-se, normalmente; de um ncleo, representado pela ao ou omisso e seu >hjeto, tendo como base a leso a um determinado bem jurdico. A reproduo do tipo como ao indica "que a norma jurdica

  • definidora do injusto uma nonma de conduta e no uma nornu meramente de reconhecimento, na terminologia proposta por haki Como norma de conduta, deve estar associada a determinad.i finalidade: a delimitao do poder de interveno do Estado, a qtul no pode ser alcanada sem um pressuposto material que lhe ti:u os contornos de estabilidade. Da a necessidade de que se estabek-c. .1, como base da ao tpica, a leso de bem jurdico335.

    Geralmente, insere-se o bem jurdico como pressuposto d

  • seguidores, como BINDING, por exemplo, mas unicamente com o M-mido de instrumento de garantia individual, perde ela seu carter ideolgico, que, alis, s tem porque assim lhe concede a l< mtrina e passa a ser vista dentro de sua exata dimenso democr- tu.i, que se lhe deve prescrever. Entendida a norma penal dessa (> uma, no cabe ao tipo a funo de proteo de bem jurdico.

    y 1.1.1 O conceito de bem jurdico

    Dadas as variedades com que se apresenta, praticamente impossvel conceituar exaustivamente bem jurdico. As conceituadas, geralmente, procuram esclarecer de forma sinttica as diretri- /m o prprio bem jurdico. Neste sentido, podemos traar quatro^ vertentes 'conceituais: uma positivista, uma neokantiana, uma 'iUolgica e uma funcionalista, as quais, entretanto, ainda que se .iracterizem por determinada orientao, esto muitas vezes im- I uegnadas de outros parmetros e argumentos que no correspondi riam, no fundo, ao seu programa inicial. Esta mescla de argumentos se reflete, igualmente, nos autores, tomando ainda mais onfusa a concituao que se propem a formular e obscurecen- flu seus reais propsitos e sua viso ideolgica do direito penal. Vi verdade, a questo do conceito de bem jurdico, como fundamento da incriminao, no pode deixar de ser o resultado de mia escolha poltica, ingnua ou comprometida, acerca do que se pretende com a sua proteo. Embora, no mbito de um direito penal democrtiro, o que realmente se~gxlj~~seja a absoluta tr.msparncia do objeto lesado, como forma de comunicao mi irmativa, independentemente do engjamentcTptico do seu miOrprete, o conceito de bem jurdico ou; pelo menos, sua dTimi- i.ieo, por meio de argumentos compatveis ao panorama da linguagem ordinria, deve ser levado a seno, porque nele reside < ido o processo Hp legitimaco_da norma penal.

    Apenas para citar alguns dos principais representantes das veitentes conceituais acima aludidas, pode-se ver que von LISZT

  • 182 TEORIA DO INJUSTO ll NAI

    retratava, inicialmente, o bem [urdiojQomo interesses da vida hmn jridicrrlente protegidos338. J WELZEL o conceituava sob dupla ptica: primeiramente, como um bem vital da comunidade ou do indivduo; depois, como um estado spciaT desejvel 1', atributo este que recolheu de MEZGER340. MUNOZ CONDE concebe-n inserido no mbito da necessidade de convivncia, da como pressuposto existencial de utilidade341. Dessas diretrizes, afora de JAKOBS, que nega importncia ao bem jurdico e o-substitui p elo critrio da validade da norma342, resultam no apenas divergncias ou perplexidades dogmticas, como tambm posies ideolgicas quanto s suas finalidades.

    Se pensamios corretamente sobre a prpria origem da criao do conceito de bem jurdico, veremos - como bem ressalia HASSEMER - que os impulsos de poltica criminal e do prprio 'direito estatal desempenham na soluo de seus problemas uiti papel to significativo quanto suas consideraes de ordem dogmtica343, de tal modo que riem sempre se tenha podido diferenciar, com absoluta preciso, do objeto da ao. Na verdade, se pode dizer, alm disso, que nem sempre se je m -podido diferenciar o bem jurdico dos prprios fins da norma incrimi nadora. Esse argumento por demais relevante, porque "pela evoluo do conceito de bem jurdico se pode ver que sua criaa< i no apenas produto de uma elaborao jurdica pura, ma.s tambm de um contexto potico e econmico.

    Atribui-se, normalmente, a BIRNBAUM344 o conceito de bem jurdico, em oposio tese iluminista de que o delito constituina

    -*-w Franz von Liszc. Tratado de direito penal allemo, p. 219.339 Hans Weizei. Derecho penal alemn, p. 15.340 Kdmund Mezger. Tratado de derecho penal, p. 399-MI Francisco Munoz Conde. Derecho penal, parte general, p. 65.342 Gnther Jakobs. Strafrecbt, AT, p. 46.343 Winfried Hassemer. Theorie und~Soziologie des Verbrechens. Anstze zu einn

    praxisorientierten Rechtsgutslehre. Frankfurt am Main. 1980, p. 27.J. M. F. Bimbaum. ber das Erfordemis einer Rechtsverletzung zum Begrilii- des Verbrechens, nut besonderer Rcksicht auf den Begriff der Ehrenkrnkunn , in Archiv des Kriminairechts, 1934, p. 149 et seq.

  • ' > CONTEDO DO INJUSTO 183

    t uma leso de direito subjetivo. Para entender o porqu desta concepo, preciso salientar que ela no teria tido xito, no fosse :i idia inicial de FEUERBACH, ancorada no contrato social, de afastar< i fundamento do delito da tese de que pudesse ele ser visto como uma simples violao de dever; sancionada criminalmente.

    Na idia de FEUERBACH, o delito como violao de direito subjetivo significava, em vez d uma lesao de dever para com o listado, uma leso aoTdirltoTnamdr~3o ofendido de exercer sua prpria liberdade em face da ao de outrem, quer dizer, i-nto, que o delito pressupunha, antes de tudo, um estado de igualdade de direitos de liberdade entre seu autor e a vtima, igualdade esta que se via quebrada com a execuo desse delito, ile forma que uma das partes envolvidas no conflito no mais a pudesse exercer. Com isto, subordinava-se o conceito de delito a um princpio material - a preservao da liberdade individual - independentemente dos propsitos polticos do Estado, dando lugar, tambm, possibilidade de se ver no delito uma prpria k-so de bens materiais e no simplesmente uma violao de dever343. Este conceito de delito constitua, nesse sentido, uma lorma_de dlimitco da incriminac e do arbtrio estatal na i (mfigujao.. d_g_ JipQS-p.enais^_porque representava^ no campo iurdip, a43je.mpa.qjde retratar o direito subjetivo como sm- l>olo de demarcao do dano social que pudesse decorrer da conduta criminosa. O Es3 i5~nao~podria, assim,'TncrmiHr qualquer conduta, mas apenas aquelas condutas quHTmpTicssnT a violacI~3e~difit svibav e~conseqgntemente. qTmpicas- scm um danosocial. conhecida, inclusive, ITdra crtica traada por FEUERBACH T g a llu s KLEINSCHROD quanto a alguns tipos de tlelito constantes do projeto de cdigo penal da Baviera, elaborado por este ltimo, em especial quanto ao delito de alta traio. Segundo o 403 do projeto, KLEINSCHROD. conceituava o delito de .ilta traio como a ao dolosa orientada no sentido de alterar a constituio vigente. Opondo-se a esta redao, afirmava I KUERBACH que, com tal tipificao, qualquer ao, sem qualquer

    Winfried Hassemer, ob. cit., p. 35.

  • 184 TEORIA DO INJUSTO PENAI.

    exceo, poderia constituir alta traio, at mesmo uma ao originariamente lcita, j que essa se exauria exclusivamente no atuar doloso346. A crtica parece ainda hoje oportuna, porque a redao do projeto de KLEINSCHORD no est to distante, por exemplo, da redao do art. 25 de nossa antiga lei de segurana nacional, instituda pelo Decreto-lei 898/69, que definia como delito praticar atos destinados a provocar guerra revolucionria ou subversiva. Com apoio na sua teoria do delito como violao de direito subjetivo e, assim, construda sobre uma base material, FEUERBACH argumentava que a alta traio s poderia subsistir se, efetivamente, ocorresse um ato concreto de hostilidade que viesse a violar a estabilidade do Estado, no sentido de um dano social347; quer dizer, aplicvel ao nosso exemplo da antiga lei de segurana, no se poderia caracterizar como contrrio segurana do Estado a prtica de simples atos que se destinassem guerra revolucionria ou subversiva, mas atos concretos de hostilidade que implicassem a execuo da guerra e a conseqente desestabilizao do regime, da qual resultasse um-dano social.

    preciso ressaltar, todavia, que esse sentido material do conceito de bem jurdico, que hoje se desfruta como fundamento de qualquer incriminao, no havia sido despertado, propriamente, em BIRNBAUM. Este,' na verdade, tinha outro propsito, com sua elaborao, que era justamente o de adequar a teoria jurdica do delito s normas do direito penal vigente, que cnflitavam com a idia da violao de direito subjetivo, principalmente nos chamados delitos contra a religio, contra o Estado ou contra a comunidade. Com a introduo do conceito de violao de bem jurdico, em substituio ao conceito de violao de- direito subjetivo, como fundamento do delito, desde que se pudesse reconhecer que, igualmente, interesses comunitrios ou religiosos fossem contemplados como espcies de bens jurdicos,

    546 Paul Johann Anselm Feuerbach. Kritik des Kleinschrodischen Entwurfs zu einem peinlichen Geselzbuchefr die Chur-Pfalz-Bayrischen Staaten, Parte III, p. 34 el seq., reedio a cargo de Wemer Schmid, da edio de Giesen: Tasch u. Mller, 1804, Frankfurt am Main: Keip, 1988.Paul Johann Anselm Feuerbach. Ob. cit., loc. cit.

  • > CONTEDO DO INJUSTO 185

    ainda que se ganhasse em clareza, quanto incriminao das respectivas condutas, se perdia - e de fato se perdeu - a vinculao dessa incriminao aos seus pressupostos de legitimidade348, que cstavam, de qualquer modo, presentes na estrutura idealizada por i-EUERBACH. Embora os regimes autoritrios, por seu turno, se tenham manifestado contra a noo de bem jurdico, considerando-a um estorvo aos seus fins polticos, nem sempre tem ficado muito claro se esta noo efetivamente os prejudica nesse desiderato. Como todo conceito, o de bem jurdico s pode servir a uma autntica teoria democrtica do injusto, medida que correspocda aos seus fins limitativos e no aos propsitos punitivos. Da a necessidade de sualorm lpb dentro de um sentido de linguagem que expresse, na su a ^ ropn^TigSrfTlrBofy os contornos exatos das zonas de intervenlo do EsHd,lTprtir'3 crtica dessa mesma jnren/enn, nh n grssu post5 de sua legitimidade.

    A anlise da evoluo histrica desse conceito pode, em certa medida, contribuir para sua reformulao, ao demonstrar como esse conceito se amolda aos vrios segmentos da evoluo da poltica criminal do pensamento jurdico em geral. No se deve descartar, nessa evoluo, como bem ressalta NILO BATISTA, a identidade da noo de bem jurdico, como bem material tal como na proposta inicial de BIRNBAUM, como conceito de mercadoria, elevado, na poca, condio essencial do capitalismo industrial, em franco desenvolvimento349. Da mesma forma que a criao do processo de composio, to caro ao direito germnico primitivo, pode ser considerada, em certo sentido, um reflexo no mundo jurdico do sistema de trocas de mercadorias, o bem jurdico nasce justamente no contexto da grande produo e do incremento do consumo e. afora consideraes de ordem poltica, tambm sofre,

    Sobre isso, ver a magnfica abordagem de Klaus Gnther, De la vulneracin de un derecho a la infraccin de un deber. Un 'cambio de paradigma en el derechopenal ?, in La insostenible situacin dei derecbopenal, traduo espanhola sob coordenao de Carlos Maria Romeo Casabona, Granada, 2000, p. 489 et seq.

    v9 Nilo Batista. Ocupaes do MST e propriedade, in Boletim do IBCCRIM, 95, outubro 2000, p. 7.

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    .jaa sua conceituao, o influxo desse processo econmico. NeMc sentido, importante tambm observar, ao estio da crtica de makx chamada fetichizao e, depois, metamorfose da mercadoria'v>. inserida na evoluo do capitalismo, as alteraes que, posten< >i mente, se vo procedendo no conceito de bem jurdico que gradativamente, perde seu substrato material (deixa, portanto. il>- ser uma mercadoria real) at o ponto de se inserir como meu pressuposto formal da norma incriminadora, como na teoria dr BINDING, correspondendo, da, ao capitalismo financeiro (os tiu los de crdito so, por si mesmos, mercadorias), e cheg;ir .1 confundir-se com a noo de funo, j agora no capitalismo de servios. A viso ps-moderna do funcionalismo, que propugna. enfim, em prol da substituio da noo de bem jurdico pela de estabilidade normativa, pode ser considerada, dentro de certi-> limites, tambm um reflexo dissimulado dessa evoluo da vida material, agora desprovida de propsitos edificantes e simplesmeu te satisfeita com a manuteno de regras de organizao. N mencionado processo de fetichizao da mercadoria, MARX procu rava demonstrar como o valor de uso dos bens postos em circul;i o, aliado aos interesses de consumo de seus adquirentes, ocultavao seu valor de trabalho e, assim, as contradies havidas no seu processo de produo. Se tomannos o bem jurdico como objeto de proteo e no como condio limitativa da incriminao, parec e

    /perfeitamente cabvel a analogia com esse argumento de MABXjTal (como na fetichizao da mercadoria, pela qual se ocultam a.s relaes de produo, ao retirar-se do tipo de delito a exigncia de um dano social decorrente da violao de direito subjetivo e justific-lo to-s com a violao de um bem, que poderia sei confundido com a prpria finalidade da norma, se legitima a incriminao, sem mais, por meio da simples legalidade. Seguindo a trilha dessa evoluo, podemos entender, ento, s correntes de pensamento que se dedicam a retratar o conceito de bem jurdio > sem se desvincularem da estrutura formal da norma, a comear d positivismo.

    150 Karl Marx. O capital, traduo brasileira de Reginaldo Sant'Anna, Rio de Janeiro. 1968, livro 1 , vol. 1, p. 79 e 116.

  • >NTEDO DO INJUSTO 187

    No se pode traar, com preciso, o conceito positivista de (in jurdico, quer no plano puramente jurdico, quer no plano

    >i iolgico, sem uma definio dos contornos da cincia do luvito, segundo aquela concepo. Todo o arcabouo cientfico l positivismo j foi esclarecido no captulo 2.2 da primeira parte, mi que foram salientados os diversos objetos empricos que do lunar s distintas propostas de sua apreenso no campo jurdico. \>|ui basta que se considere sua postura fundamental, a de que ioda norma incriminadora deve possuir um antecedente causai.I Me antecedente causai poder ser a vontade do Estado, ou da .uKoridade, como no positivismo jurdico propriamente dito, ou< < mdies de vida, como no positivismo sociolgico.

    A noo de bem jurdico varia, conforme essas duas vertentes do positivismo. Segundo o. positivismo jurdico,- somente a lei expressa os objetos jurdicos, porque encerra a vontade declaracla do Estado. O bem jurdico sericiuz. aqui, a. um elemento da prpria norma, que tanto pode ser sua finalidade quanto a ratio i le sei sistema. Representante deste posicionamento QlNDING^. Segundo o ^positivismo sociolgico ou naturalista, derivado, por desdobramento, da es.cola histrica, o direito tem sua fonte no :i penas na lei, mas principalmente no csmmToilT spIrito dol H)vo, Q m o^ _sin t tizad .Q tyon jLadj^eraiT ^ axT ^ estlto mntratualista ou organicista. A noo de bem jurdico ojnp interesse juridicamente protegido, taTcomo na proposta de^ON) i ISZ3V* produto dessa idi "privatstica dominante no sculo passado, que se intrometeu na formulao da teoria do injusto ilesde VON JHERING e constitua um pressuposto indcinvel umbm do desenvolvimento da vida material. Aqui, o marco penal encontra suas delimitaes no momento subjetivo, quer dizer, na materializao do exerccio da capacidade de contratar por parte do sujeito, de modo que, protegendo-se o interesse, se

    ,l KarI Binding. Die Normen und ibre bertretung, Leipzig, 1922, vol. I, cap. I, p. 188.

  • 188 TEORIA DO INJUSTO I I

    concebe a vida social como uma resultante de pretenses inili\ i duais, as quais, dependendo de sua importncia, se vem ani|u radas pela norma de direito pblico. No obstante a origem privatstica desse conceito, deve-se reconhecer que h aqui, m- bem que ingnua, uma idia utilitarista da norma penal sobiv .1 base de uma realidade. O interesse no algo imaginrio, nli.;- perceptvel, assim, por exemplo, a manuteno da vida, da intcuu dade corporal, do patrimnio e sua possibilidade de transmi.s.s.n i. da reputao como expresso da prpria individualidade no sn>> da comunidade, da incolumidade pblica, como estado social

  • >NTEDO DO INJUSTO 1 8 9

  • 190 TEORIA DO INJUSTO I I

    jurdico da prpria elaborao normativa, que expressa o compl>- xo cultural, coincide com a proposta do positivismo jurdico jurdica, sem question-los. A perquirio acerca do bemjuridu'> em cada um dos delitos, portanto, que sempre chama a aten.n* nos manuais ou nos comentrios do Cdigo Penal, se limita a di/i-io que, na realidade, o legislador quer proteger ou incriminar. Kv-.i metodologia garante a aplicao da norma incriminadora mui nenhum questionamento acerca de sua legitimidade, valendo bem jurdico como mero exerccio retrico ou marco de refern< 1.1 classificatrio, isto , s serve mesmo para possibilitar, sistemati< .1 mente, a classificao dos delitos na parte especial dos cdigo-, penais e fornecer aos comentadores assunto para sua interpreta;:i< desde que respeitada a incolumidade da ordem jurdica. Convim no confundir, todavia, a concepo de MEZGER, como represei 1 tante tardio da viso neokantiana, com a de MAX ERNST maykk. igualmente um puro adepto daquela orientao filosfica. Nu captulo 1.2.1.2 da segunda parte, j se havia salientado ess. distino. Aqui basta recordar seu ponto essencial. Contrariamenir a MEZGER, entende MAX ERNST MAYER que a noo de bem jurdiro no se desprende da noo de valor. H, portanto, uma ntid.i diferena entre o bem jurdico e a finalidade da norma. Por bem jurdico at se poderia conceber, como fazia VON LISZT, o interesM- juridicamente protegido, mas se deve ressaltar, todavia, que ank-v mesmo de a ordem jurdica incorporar determinado bem com seu objeto de proteo, as normas de cultura j o teriam feito.v' Este pensamento de MAX ERNST MAYER, independentemente ili sua filiao filosfica, reflete sua postura liberal, em oposio :is teses que se seguiram e que deram lugar, por meio de um processo de corrupo ideolgica de seus intrpretes, como n caso de MEZGER, fundamentao de um Estado fascista358. .Com :i

    357 Max Ernst Mayer. Normas jurdicas y normas de cultura, traduo castelhana tl

  • . MTEDO DO INJUSTO 191

    dependncia dr> ronrpim He bem iurfdico s normas de cultura, nucebidas como um substrato pr-jurdico de qualquer processo legislativo, j comea a delinear-se sua ontologicidd.

    s ' \U .1 .1 .3 A visjo ontolgica ^

    Na concepo ontolgica dejwELZElJo bem jurdico conserva .eu sentido de objeto de proteo da norma, tal como no neokan- hmho, mas se v substitudo, em grau de prefereiS~~plos . Iiamados valores co-sclsl Para chegar a esta posio, w elzel m ga, em primeiro pri7q'ruma proibio, ou um comando, possa resultar exclusivamente de um determinado poder externo, .e deve dar ao humansP^TEste sentido, pelo qual se manifesta i> imperativo, incorporado conscincia de cada um como um verdadeiro projeto sensvel, ou modelo de ao. Este projeto no i'tinstitui, assim, um elemento da ao, mas o repositrio de dados m ibre o contedo do dever, pelos quais o homem procura esclare- cr o sentido de seu ser no mundo e interpretar os fins de sua i onduta, segurido as orientaes de valor. Como esse projeto no pode ser conhecido, de modo absoluto, porque nem sempre .uessvel a todos, em determinadas condies histricas, o homem s pode tom-lo em considerao transformando a transcendncia dos valores em imanncia de sua prpria conscincia e i:izo361. Isto significa, pois, que a questo do dever no pode estar dissociada da pessoa, sobre a qual repousa a responsablida- i le por seu desatendimento362. Como os valores tico-sociais serao sempre valores-de--QrientaoZ5e^conciuta e no derivados do sucesso de eventos ma renais causais, constituem seu dado exis

    vn Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerecbligkeit, Gttingen, 1957, p. 237Haas Welzel. Naturrecht und materiale Gerecbligkeit, cit., p. 238.Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 242.Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 329 241.

  • 192 TEORIA DO NIUSH ri

    tencial tanto o dever transcendental, ao qual esto subordinados r qual, desde logo, se toma imanente na conscincia e na razo O ontologismo de WELZEL representa uma mescla dos enim ciados neokantianos e da filosofia de valores, sem que assum.i uma posio definida em favor de uma ou de outra tese. Aqm. ressalta a existncia de. um imperativo categrico.transcendente, que constitui o fundamento da ao - no sentido, portanto, d:i Escola da Marburg mas cujas normas no se orientam pelos princpios da universalidade e dignidade da pessoa human;i. seno por um projeto social de proteo de pressupostos elemen tares de sua existncia, tratados como valores tico-sociais, por tanto, como dados nticos, ao estilo de MAX SCHELER. Convm demonstrar a identidade, por um lado, e a contradio, por outro, destes dois posicionamentos, desde a tentativa, por parte cU- WELZEL, de rediscutir um novo programa de direito natural como

    363 Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 244 e 245.364 Hans Welzel. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, p. 252 e 253-

  • >\ ITiDO DO INJUSTO 193

    iumlamento sua teoria do bem jurdico. Enquanto WELZEL trata > valores elementares - os valores tico-sociais - como valores k-i-orrentes de uma totalidade, engajada naqueles pressupostos rntpricos da pessoa humana, e de sua sociabilidade, MAX SCHELERl.i li >s proceder, porm, da prpria coisa365, no sentido como era Ir.tiizado por HUSSERL, de que as normas da lgica no seriam mumas da razo, mas teriam seu fundamento na lei dos prprios l>i i:ilidade idealizada por WF.LZF.L_ ao contrrio, est embutida na

  • 194 TEORIA DO 1NJUST ou conscincia coletiva, ou vontade geral da nao, on moralidade pblica, para que se instaure um regime de terror, sem fronteiras e ontologicamente legitimado. De qualquer forma. >> conceito ontolgico de bem jurdico corresponde nitidamente :io Estado de bem-estar social, no qual o processo de gerao de riqueza se v associado a um fundamento tico, de sua base material, que cria a expectativa de que possa ser repartido poi todos, como bem vital da comunidade.

    3-1.1.1.4 A viso funcionalista '

    Diversamente da postura ontolgica, j agora sob os in f lu x o s de um Estado mnimo, cujas tarefas essenciais se encontram, em grande escala, privatizadas, o funcionalismo enfrenta a questo d<

    368 Juarez Cirino dos Santos. Direito penal, a nova parte geral. Rio de Janeiro, 19* ' p. 23; Nilo Batista. Introduo critica ao direito penal brasileiro, Rio de Jancim. 1999, p- 116 .

  • * ( 1NTEDO DO INJUSTO 195

    U m jurdico, partindo da idia de que o Fim do direito penal est Miuado na estabilidade da norma penal, como instrumento_ade- liuido manuteno do sistema. Sob st~perspectiva, podem ser s(. lecionados diversos modelos funcionais, desde o modelo< ihemtico at o mqdelo mais ortodoxo de JAKOBS. Os enuncia- l( >s gerais desses diversos modelos j foram perfilados no captulo1 1 da primeira parte. Aqui, interessa apenas o tratamento que

    oses modelos dispensam aos bens jurdicos, ou aos fins de (uoteo da norma que, para muitos, se vem confundidos com .K|iieles. Para evitar uma exposio casustica, podemos reduzir os iliversos modelos funcionais a trs grupos: o estrutural, o funcional I Mprio e o funcional imprprio.

    Ao primeiro grupo se associam as posies que entendem ser .1 nonma penal um instrumento de controle social, pelo qual se .issegura e, ao mesmo tempo, se legitima o autocontrole do poder Iilitico. Esta legitimidade, contudo, est condicionada manuteno i.lc um estado de estabilidade, que pode corresponder aos fundamentos da convivncia, ou simples organizao do sistema. Como i norma penal tem como escopo exercer o controle social, I >i eciso que seja comunicada a todos em um fluxo permanente de imposies ou proibies, as quais devem ser aceitas e atendidas |K-la comunidade para impedir as perturbaes do sistema. As I >erturbaes input) do sistema, entretanto, so necessrias pro- iluo de um processo de reao (.outpui), que se executa me- ili;inte a imposio de uma sano, que adquire legitimidade to-s tom o fato de que tenha de ser aplicada em decises dogma- tu nmente fundamentadas. Com isso, garante-se a reproduo do Msiema, a sua estabilidade e, socialmente, a convivncia. Essas idias i. orrespondem, em parte, posio de MUNOZ CONDE, que se situa iiuma esteira giratria, entre as exigncias de uma realidade social, de um lado, e as idias funcionais, de outro, na relao sistmica tk- input e output, isto , os conflitos (inpui) geram a necessidade ik- uma interveno (outpui) sob o pressuposto de utilidade. Esta utilidade, por sua vez, no implica desatender realidade social e existencial da pessoa humana, mas apenas um delimitador do

  • 196 TEORIA DO INII M-

    iderio funcional, assim, no afasta MUNOZ CONDE de .nit-n.lU-.H como necessrios para a convivncia alguns pressupostos cmm. * ciais que, conforme sua utilidade, so conceituados coni U m jurdicos, no sentido de que a pessoa necessita para sua realizao e o desenvolvimento de sua personalidade na ' i aproxima-se MUNOZ CONDE de uma viso crtica, na medl.i que submete tambm aos mesmos pressupostos os bens jin u l>. coletivos e descarta se possam elev2 r a essa categoria sim| S t interesses de classe ou de polticas estatais370.

    Ao modelo funcional prprio correspondem, basiam nu as propostas de JAKOBS. que panem do pressuposto de tos existenciais, identifica os bens jurdicos com a validade ....... .das normas, das quais se possa esperar a proteo dos bens. funes e da paz jurdica371. Ao reformular o conceito de 1 jurdico para indicar que por tal se deva entender a validade lan. .* das normas, regressa velha proposta de MEZGER de na. diferenci-lo de seus prprios fins de proteo. Mais radical mostra, neste setor, AMELUNC., para quem a teoria do bem juridn. danosidade social372. Embora seja correto associar-se todo o sisiv ma normativo danosidade social produzida pelo delito, > .

    369 Francisco Munoz Conde. Derecho penal, parte general, 3. ed., Valencia, 199f\ |> 63 et seq.

    570 Francisco Munoz Conde. Ob. cit., p. 66.371 Gnther Jakobs. Strafrecht. AT. 2. ed.. Berlin/N. York. 1993. p- 44 et seq.372 Knut Amelung. Rechtsgtencbutz und Schutz der Gescllscbaf Frankfurt :

    Main, 1972, p. 393.

  • ............ DO INJUSTO 197

    iu lonalistas utilizam esse critrio, meramente,- como princpio formador e no como fundamento material da incriminao.

    O modelo funcional imprprio se associa teoria de ROXIN, tf (| uer revitalizar o conceito de bem jundico a partir de uma m- tle poltca criminal ancorada nos preceitos da Constituio,

    mu) restrio ao poder de punir. A par de dar a entender, h i i ; i interpretao iluminista, que ^oncitoTlfl5(^iurdic 'nao

    flMr ser dissociado do pressuposto de liberdade que cerca a jV -Miu humana. concurqu~, rifundo, otem nJridic serve para

    in.muteno do sistema. Este pensamento ecltrco^dflui de sua j|n< ipria definio de bem- jurdico como dados da realidade ou *l< i n minados objetivos, teis ao funcionamnto do sistema, ou ao liuli viduo, e ao seu livre desenvolvimento 'nos" limtHS" de~um *Mrina global, estruturado sobr~T>se d represnfao desses (uis.573 Sustentando sua definio na Constituio, admite qe"o v i 11 cito de bem jurdico possa derivar tanto de dados anteriores i lei penal - mas no anteriores Constituio - quanto de Irwres criados por el msm.~ErnBr o conceito de ROXIN IMissa ser posto em discusso, porque - ao estilo neokantiano -

  • 198 TEORIA DO INJUSTO H '.v .

    poder punitivo, em face das modificaes estruturais havidas tu sociedade e no Estado. De uma sociedade liberal-individualistn .n

  • ( 1NTEDO DO INJUSTO 199

    imponentes. Sendo um valor e. portanto, um.objeto de prefe- uncia real e no simplesmente ideal ou funcional do sujeito, o lu m jurdico condiciona a validade da norma e, ao mesmo tempo, Mibordina sua eficcia demonstrao de que tenha sido lesado-^L ou psto em perigo. Por isso s invlidas normaslncriminadoras .cm refernciliirel2r'qlquer bem jurdico. nem se admite sua iplicao sem um resltd^e drcTou de perigo a esse mesmo tx-in jurdico. A existncia de um" bem jurdico e a demonstrao

  • 2 0 0 TEORIA DO 1NJU.VK i :

    fundamento, tambm neste sentido se pe a observao de HA.sm v< k de que. ...bens jurdicos universais somente requerem proiit,.*" como condio da possibilidade de proteo dos bens juridi.. individuais, os quais, por isso, possuem uma funo orieniadi .!* Deste modo, o fim de proteo dos bens jurdicos a reuliAi>k.condio delimitadora que assinala a caracterstica essencii bem jurdico e deve ser levada em conta em qualquer circunsii h : ainda que sob a idia de subordin-lo aos preceitos constitucion.n

    Embora sob outro contexto, mas levando em considera. .1. igualmente, a subordinao de seu conceito aos ditames da Con- tituio, esse mesmo raciocnio foi bem esboado ainda DOLCINI e MARINUCCI, que concluem, em oposio a toda fornu autoritarismo legalista e diante dos movimentos em favor de im.> acentuada represso penal sob o manto da proteo de U n, jurdico, no haver obrigatoriedade constitucional explciia >! incriminao para a salvaguarda de qualquer bem jurdico, sal\- quando demonstrada sua estrita necessidade380. O mesmo :u>:> mento levou PAULO DE SOUSA MENDES a afirmar que a importam u do bem jurdico, por maior que seja, em face do princpio i. subsidiariedade, no pode implicar a criminalizao da condm- que o lese ou o ponha em perigo, porque a Constituio, u* verdade, apenas deve encarregar-se de delimitar o mbito d.i incidncia penal, mas no de impor criminalizaes3m.

    '70 Winfried Hassemer. Theorie und Soziologie des Verbrechens. Anslze zn rm. praxisorientierten Rechtsgutslebre. Frankfurt am Main. 1980, p. 222; da iik--.ii . forma, vendo os bens jurdicos como relaes sociais concretas, que nasivm prpria relao democrtica, como uma superao do processo que m l.i desenvolve, Tadeu Antonio Dix Silva, Liberdade de expresso e direitopennl l>aulo, 2000, p. 349.

    31,0 Emilio Dolcini/Giorgio Marinucci. "Constituio e Escolha dos Bens Jurdn > in Revista Portuguesa de Cincia Criminal, n 2, ano 4, 1994. p. 151 et serj

    WI Paulo de Sousa Mendes. Vale a pena o direito penal do ambiente?, Li.slu Associao Acadmica Faculdade de Direito, 2000, p. 174.

  • . iNTEDO DO INJUSTO 2 0 1

    A questo da criminalizaro de condutas no pode ser< uifundida com as finalidades polticas de segurana pnfitica. iwnc| se insere como" uma condio do Estado democrtico, i'.iscado no respeito dos direitos fundamentais e na proteo da s-cvsoa humana. Isto quer significar que, em um Estado democrti- .' o bem jurdico deve constituir um limite ao exerccio da poltica l segurana pblica, reforado pela atuao do Judicirio, como mo fiscalizador e controlador e no como agncia seletiva de urntes merecedores de pena, em face da respectiva atuao do U uislativo ou do Executivo. A deciso jurdica, portanto, que inndamenta a interveno do Estado, mediante a afirmao de 111cr detrminada conduta injusta, s ter legitimidade se for pronunciada sob a perspectiva de uma poltica de garantia indivi1 liial, tomada sobre- a base de argumentos racionais, que tm. i mio pressuposto a imparcialidade do rgo jurisdicional todos".11 meles critrios que fundamentam o discurso ideal, dntro~do >jiial se devem incluir, n.e.ces.sariamente, todos os argumHntos"m l.ivor da proteo de direitos humanos. Nesta linha de raciocnio,< utende KOBBERS. a partir do art. 6 da Declarao dos Direitos-do I lomem e do Cidado de 1789, que um Estado s ser dmCrti-- c > ria medid'm qii 'recnh a separao de pderes~e o i cspito pelos direitos humanos *3 .

    Desse modo, a proteo de direitos humanos, como condi-j _ ...io de defesa individual perante o Estado desptico, alm de seq / um programa, fundamento do prprio Estado democrtico, quet- r deve, pois, ocupar de garantir a todos o pleno exerccio de seus^A. I irei tos fundamentais. Isso quer dizer que a legitimidade da ' iiuao estatal, no sentido de um exerccio protetivo, est vinculada x i que sua atuao se faa necessria para impedir a interferncia ! Ir outrem no exerccio de direitos do prprio indivduo, o que lundamenta a constituio de um direito subjetivo desse indivduoi determinada condio de garantia. Isto no implica, porm, o \ uso da pena criminal, pois a funo de garantia, impulsionada I

    Gerhard Robbers. Scrafpflichten aus der Verfassung?", in Aufgeklrte Kriminalpolitik, Frankfurt am Main, 1988, vol. 1, p. 147 et seq.

  • 2 0 2 TEORIA DO INJUSTi 1 l i

    pelo exerccio de um direito subjetivo do cidado proU\.i-> jurdica, deve estar de qualquer modo condicionada preservat,.'" dos direitos humanos, que tm como princpio primordial a soIik .k pacfica dos conflitos, dando como concluso de que a pena n:i< de DOHNA, a necessidade de que seja determinado com precis.i< > para que possa servir de barreira diante da intencionalidade c d.i vacuidade384.

    3-1.1.1.6 Bem jurdico e objeto da ao

    O bem jurdico, por seu turno, no se confunde com o objeto da ao, pois no pode ser entendido no sentido puramente material, como se fosse uma pessoa ou uma coisa, mas no sentido da caracterstica dessa pessoa e de suas relaes, isto , como v;il> penal, mas tambm para todos os demais ramos do direito, encerra um valor, tanto por seu lado puramente biolgico, ou material, quanto e principalmente porque est relacionada .1 pessoa, entendida como categoria primria de todo o sistenu jurdico. Assim, a vida humana, mesmo quando apresente deli cincias materiais graves ou ainda quando se encontre em fonua o, independentemente de a quem pertena, se a um homem socialmente valioso ou desvalioso, ao culpado ou ao inocente, a< > rico ou ao pobre, constitui um bem jurdico fundamental.

    383 Gerhard Robbers - ob. cit., p. 152.384 Edegardo Alberto Dohna. EI problema dei derecho penal en Ia actualidad", i

    Estdios crticos sobre la cuestin criminal I, Buenos Aires, 2001, p. 66-67.

  • i >NTEDO DO 1NTUSTO 203

    Normalmente, para os efeitos delimitativos, os bens jurdicos prescindem de qualquer classificao, porque todos devem ter< >i igem na pessoa humana. A doutrina, porm, os classifica segundo .d.nuns critrios, puramente aleatrios. Segundo seu titular, haveria l h mis jurdicos individuais (vida, integridade fsica, honra, liberdade, luirimnio), coletivos (incolumidade pblica, meio ambiente, f publica, paz pblica) ou estatais (administrao pblica, adminis- luo da justia, soberania, ordem pblica econmica). Segundo a /acepo, haveria bens jurdicos concretos (yida, integridade corpo-i.il. patrimnio) e abstratos (incolumidade pblica, f pblica, paz pblica). Segundo a natureza, haveria bens jurdicos naturais i vida, integridade fsica, liberdade) e normativos (patrimnio, administrao pblica, ordem pblica econmica). Segundo seus elementos, dever-se iam distinguir bens jurdicos de origem real (vida, integridade corporal, sade) e de origem ideal (honra, sentimento religioso). Deve-se alertar que esta classificao meramente metodolgica e serve apenas para, em determinado contexto e limitadamente, identificar a qualificao do bem que se pressupe lesado ou posto em perigo pela ao do agente.

    Mais..aditite,geremos como essa modalidade de classificao-eiitre bens jurdicos individuais e coletivos - pd rondazir t ( rnfso entr!5m"irdrc^e~funo. Trida q s possa reconhe.- i cr a existncia de um bem jurdico estatal ou coletivo, sua insero como tal no desnatura o ccTrtedo estritamente pssl ~3sses I >ens. inteFess''fisSr'a'nEsHar'pr eXBffipl',' na' "pde"ser erigido em bem jurdico unicamente por causa dos interesses

  • 204 TEORIA DO INJUSTi i I I

    sua liberdade no ser molestada por mera adoo de poliu. pblicas, no mbito administrativo, econmico ou social, ou finalidades eleitoreiras. Ser preciso demonstrar, para tornar v:ili.!. a eleio desta categoria de bem jurdico, que sua leso sigi i^l i* p . um dano igualmente pessoa e s suas condies sociais. Por i- se deve descartar da noo de bem jurdico a noo de fuiu que encerra atividades administrativas do Estado, referentes .controle sobre detenninado setor da vida de relao ou de -.i ; prprio organismo.

    Acostumados herana positivista e normativista cU--. i. BINDING e MEZGER, os doutrnadores sentem dificuldades de pi.. ceder necessria distino entre bem jurdico e funo. Ci i.il mente, acoplam suas assertivas a um modelo bsico de fun< > >administrao pblica ou a administrao da justia - e da f-i/i-m derivar todas as demais funes como corolrios daquelas, ( "n. este critrio de derivao, comparvel analogicmente construi i dos tipos penais, pretendem justificar a validade e a legitimiiLuI' das respectivas normas incriminadoras. O raciocnio simpU-s . primrio: se o direito penal tem como objeto de proteo a admim . trao pblica, est claro que, igualmente, podem ser protegid.> todos os atos de controle decorrentes dessa administrao, aiml.t que sejam meros atos administrativos sem qualquer repercusvi- na vida da pessoa humana. Este raciocnio , evidentemcm. falacioso e deve ser combatido. Para faz-lo, no entanto, conu-n. precisar melhor, primeiramente, o conceito de funo, depois. fundamentos pelos quais se possa efetuar sua distino dos lu-ii- jurdicos e, finalmente, indicar sua verdadeira importncia iu definio do injusto.

    Ao pr em discusso os objetivos das leis ambientais italian.i-. FRANCESCO i>ALAZZO tem salientado a necessidade de uma pre; ( identificao dos objetos de proteo nos delitos da deriva d> em oposio noo de funo. Embora seja um esforo louvam ! enfrentar essa tarefa sem ateno s orientaes ideolgicas < polticas de diversos matizes que imperam nesse setor, seu projn.i no pode ser considerado exitoso, porque acaba relativizando m m . escopo, at o ponto de tambm admitir que alguns delitos In m especficos, como os delitos contra o ambiente, possam ter pm

  • < iNTEDO DO INJUSTO 205

    >l>icto jurdico o prprio controle ambiental e no bens jurdicos m.iicriais, imediatamente lesados. Parece que essa relativizao < iii sua fonte no enunciado de seu conceito de funo como i > mjuntos de homens e meios normativamente organizados para

    .ilcance de fins institucionais ou sociais385. Este conceito de luiio, derivado da noo de fim e do sentido de organizao, U iuasiadamente impreciso e pode abarcar at mesmo bens jurdi-< > >s pessoais. Afinal de contas, o genocdio tem como objeto de pioteo uma particularidade da organizao de certos grupos humanos, em tomo de sua etnia, raa, origem e condio social > um conceito dessa ordem, natural que se passe a confundir Ixm e funo.

    A principal fonte de confuso entre bem jurdico e funo ' M:i situada, pofitTTTT indTTn ao acr~d objet~3"referncia l.i norma. bem jurdico constitui, a mesmo tempo, objeF~cf 1'ivfernia, cmo valor vinculado___finai_idad~3~rcfem jurdica lr lesoxiu.xioiQcaca ernT^engo do brh~jurdc. A doutrina tem normalmenfe trabalhado, indistintamente, com essas duas catego-ii.is, ou modos de expresso do bem jurdico, sem atentar para o .'.no de que a segunda (objeto de referncia) constitui um objeto li-pendente da primeira (objeto de preferncia). Na medid2 em> i*ie se toma o bem jurdico apenas como objeto de referncia^ .u ii confundi-io com qualquer funo, pois na condio de objeto ,l(' referncia desempenha o bem jurdico, efetivamente, uma lunco de validade e eficcia da norm~' fim de torn-lo objeto !>' garantia e no simplesmente de incfumh, indispensvel pi ns-o como objeto de preferncia, vinculado a um valor. Uma n-z cnBS^i'mffi&~valor:~RSggsi~lmperioso estabejEceFTa ililerena para com o conce.it) de funo.

    l-rancesco Palazzo. Princpios fundamentales y opciones poltico-criminales en Ia tutela dei ambiente en Italia, in Reuista Penal, Salamanca, 1999, n 4. p. 76.

  • 206 TEORIA DO IN JIM '

    3.1.1.1.7.1 O conceito de funo

    O conceito de funo deve partir da idia de que ! bros de uma classe determinada a um certo membro de classe. Se, por exemplo, dois objetos imantados forem colocad.. > determinada distncia e provocarem, por fora disso, uma ati.i., > de um para outro, dizemos que essa fora atrativa constitui * funo da distncia que os separa586.

    indissocivel, portanto, do conceito de funo o com< n. de relao. Este raciocnio aplicvel a todas as demais cin< i.r. Na medicina, o conceito de funo est vinculado ao conceito propriedades de um rgo ou aparelho e s adquire significada. t.. medida em que se veja dentro de variveis de uma relao. Assim > funo digestiva est sempre associada quantidade de alinum.-1. ingerida e capacidade de sua absoro ou processamento m< i. blico do respectivo aparelho. Sem as variveis do alimcnti< relao sistmica, de modo que se poderia entender por funa. > ,i eficincia ou a fora de um determinado elemento social paia .. construo, manuteno ou alterao de uma condio do sistcuu global, ao qual aquele mesmo elemento pertence. No dissmi. deste conceito geral de funo a diversidade de atributos que- II so dispensados ou o mtodo de sua determinao. Enquam- DURKHEIM chama de funo a fora de manuteno da condk.i*- de normalidade de uma sociedade, fornecida por um determinad. elemento social, avaliado segundo o grau de desenvolvimento d.r. condies preexistentes desta mesma sociedade387, em PARSOi\'> -

    ^ Eduard Kasner e James Newman. Matemticas y imaginacin, tradu. .

  • .M liDO DO INJUSTO 207

    v i i< cito de funo abstrado do conceito de sociedade e diz >cito fora de manuteno, exclusivamente, de um sistema

    global. Invertendo os plos da proposio, j entendia MERTON quNa filosofia, podem ser encontradas vrias acepes para a luno. Em todas elas, porm, o conceito de funo continua se r\|>rimindo dentro de uma relao. Assim, por exemplo, em KANT 4 luno estaria imbricada no processo do conhecimento, inserido igualmente numa relao, cuja funo se resumiria na unidade da 4\.io que consiste em ordenar diversas representaes sob uma rpresentao comum389, quer dizer, a funo corresponderia Jota dos conceitos na formao do entendimento. Para FICHTE, o mundo em sua totalidade nada mais seria do que a funo do 1'ioprio eu, ou seja, um instrumento de sua realizao, na qual o

  • 208 TEORIA no INIIISM I

    No momento em que as grandezas individuais (1, 2, 3 hoim n - >-. mulheres) foram substitudas por variveis (x, y, z homens mulheres), erigiu-se a relao como condio necessria dr '>** significao. Para tanto, contribuiu tambm a alterao da propii. natureza do conceito de relao, que deixou de ser um conceiio >< exprimiria sempre uma realidade - como na formulao .!

  • >NTEDO DO INJUSTO 209

    ttnlox amam todos, algum ama algum ou, em sentido negativo, :i formulao funcional mondica, ou de propriedade, x a m a y e

  • 210 TEORIA DO INIlisl* i

    A funo administrativa de controle do trfego rod\i.ii*-r por exemplo, exercida pelo Estado sobre a base de uma ivI.k, de que veculos circulam por estradas e ruas. O controle trfego por si s no tem a menor relevncia, mas apenas (|iuii controle resultam, pois, de uma simples equao de ajuste enue > quantidade de veculos e a dimenso das vias, sem nenhum., referncia aos objetos reais em circulao, mas apenas ao u nmero estatstico. Neste passo, como se trata de um coniro!. annimo, pode a funo se exaurir na regra que a expressa, poi

    esta regra nada mais do que a forma ou o modo de ser do pr| >i i- controle difuso ou annimo.

    Esta forma de controle annimo caracterstica da socied.i de ps-moderna, que, ao lado da eliminao do Estado do proee-, so de produo, impe uma contnua substituio de relao materiais, ou reais, por funes de comunicao. Neste caso. controle do trfego, por exemplo, deixa de ser um controle maie rial, efetuado por fiscais, para se transformar num mero controle-

  • \ 1'IIDO DO INJUSTO 211

    p.iis, que tem por objeto a comunicao do ato de entrada ou de independentemente de suas repercusses na economia, ou

  • 2 1 2 TEORIA DO INJUSTO lI NM

    pblico, somente a funo de controle de informao. A gravidulr desta ltima hiptese est em que a. sano, aqui, no meramente administrativa, mas tambm criminal, nos termos da legislao vigente394, sem ter havido leso ou perigo de leso a um bem jurdico, quer dizer, faz-se de uma simples funo de controle um objeto de proteo penal, o que um absurdo e viola os pre.s.su postos constitucionais da incriminao^,

    3-1.1.1-7.3 A distino entre bem jurdico e funo \

    Observando-se as diversas funes, como as de controle do trfego ou de entrada ousda de bens, dentre outras, verifidi-.se que elas no tm carter de universalidade, porque esto submetidas exclusivamente a critrios de oportunidade. Isto no caractersiu .i exclusiva das funes administrativas ou de gesto, se d tanto nas cincias da natureza quanto no sistema normativo. Voltando a>> exemplo da relao entre dois objetos imantados e a distncia que os separa, a funo expressada pela fora atrativa depende nau apenas da distncia, mas tambm dos outros termos da relao, u que demonstra sua caracterstica de instabilidade, j que se encon tra condicionada variao das respectivas grandezas. O mesmo >e passa no caso do controle do trfego, que , afinal, contingente d.i produo de veculos e da edificao pblica das vias de drcula:i< Se tomarmos a ordem jurdico-penal sob o pressuposto de garantia, a*incriminao de uma conduta s deve ter por objeto jurdico que possa decorrer de rii ente real estvel - pessoa humana - e no de uma funo, sendo invlidas as normas que assim o tratem A distino entre funo e bem jurdico , pois, essencial a um direito penal democrtico.

    Ademais, est claro que, em face da complexidade da vida. algumas funes se vo materializando, de tal modo que suas variveis possam constituir uma realidade, ainda que puramente normativa, mas irredutvel a simples grandezas, fato que as torna indispensveis existncia do Estado ou do prprio indivduo

    w Lei 7492/86, art. 22, pargrafo nico, em consonncia com a Lei 9069/95, n

  • > ONTEDO DO INJUSTO 213

    Isso ocorre, por exemplo/com a administrao da iustica. que lioje uma funo mdecKnvel do Estado democrtico. A caracterstica dessa funo de servir, indistintamente, a todos, no sentido de iii 11a universalidade e sua vinculao prpria estrutura do Estado, tl;i-lhe estabilidade e a converte em bem jurdico, porque se constitui valor da pessoa humana.

    A distino entre bem jurdico e funo no pode partir da prpria norma e de s" infrao, e nem o conceito de funoI >< >de derivar exclusivamente dos fins que persegue. A distinoI sica reside em que a funo no existe por si mesma, depende tle uma relao e de suas variveis, possibilitando unicamente ;ilculos de predicados, qu n podem ser confundidos com v alores. No importa, ssm7~""conceito "de funo "q* essa ou aquela atividade de controle possa ser til ou intil, adequada ou inadequada. Confira-se o caso do controle da circulao de \ culos, acima exposto. A chamada utilidade da funo nada mais do que uma derivao da variao de grandeza de suas variveis, ou seja, da quantidade de veculos e-da dimenso das vias. Se as ruas forem de tal forma amplas e suficientes circulaoi Io todos os veculos, essa diferena quantitativamente favorvel aos v cculos faz diminuir a intensidade da funo, da mesma forma que< i aumento da .distncia toma menor a fora atrativa dos objetos nnantados. Isto no quer dizer, porm, que a funo detenha um valor substancial; d-lhe apenas um valor quantitativo, cogno- minado de valor de utilidade, assim como na digresso marxista acerca do valor de troca ou til da mercadoria, em oposio ao seu valor real, tomado como valor de trabalho, assentado nas condies u-ais das relaes de produo. A suposta emisso de juzos de valor sobre funes acerca de sua utilidade ou inutilidade e sua< ntronizao como objeto de proteo correspondem, portanto, a uma falsa interpretao de seu sentido dentro de uma relao ^T oI >cm jurdico - por exemplo, a vida humana - devejjerjo m adoi Dino valor poFiTm esmo, quer se retira a uma pessoa virtuosa, I uer a uma pessoa moralmente e x e c r a vTnSIl''possibTII

  • 214 TEORIA DO INJUSTO n

    puramente utilitarista, de todo modo inadmissvel. No contnuli/assertiva, igualmente, a relativizao de alguma modalidade

    de projeo da vida, como a ampliao das causas'd^prmTssiI >t lidade do aborto, porque, neste caso, a vida humana em formaro se~faz objeto de um juzo de valor em face da pessoa humana d.t me e de suas condies reais de existncia. Quer dizer, no se est procedendo a uma avaliao meramente predicativa ou de quantidade, mas de substncia, entre a manuteno da vid:i |.i formada da me, e de suas condies reais e qualitativas de existncia, e a da vida em formao do feto. H, aqui, um conflito

    _ real de bens jurdicos e no de funes.

    Como a funo depende da relao na qual se processa e cuj:i entidade , no fim, a conseqncia de uma metamorfose e no :i representao de uma realidade substancial, no detm a funo carter de autonomia ou Independncia. Em oposio a isto, deve-se entender o bem jurdico como um valor da pessoa humana, de carter universal, material ou ideal, mas real, que independe, pau sua existncia e essncia, de qualquer relao funcional.

    Nao desnatura essa caracterstica do bem jurdico o fato de que muitos bens sejam concebidos como um conjuntcTde relaes, como o caso d patrimnio, porque neste caso se trata de relaes reais e no meramente simblicas, isto , no se constituio patrimnio exclusivamente de um ato de informao, mas de uma relao de titularidade de um direito, oponvel a todos. (> prprio patrimnio, pode ser a varivel de uma funo, por exemplo, na medida em que tenha de ser acessvel a todos. Isto no implica que o patrimnio seja uma funo do Estado, mas sim que a relao funcional, neste caso, se estabelece entre o patrimnio, como condio da pessoa e varivel independente, por um lado, = a capacidade de sua aquisio, por outro. Ao Estado compete ampliar a capacidade de aquisio. Para tanto, poder reduzir o nmero concentrado de titulares patrimoniais, mediante redistribuio de rendas ou aumentando a prpria grandeza patrimonial, com o incremento da produo de bens ou do poder aquisitivo de todos. Em qualquer caso, o patrimnio, como tal, no se desconstri em funo, continua sendo um valor da pessoa,

  • > INTEDO DO INJUSTO 215

    .1

  • 216 TEORIA IX ) INJUSTO M Svs

    doutrina penal proceder, grosso modo, a uma classificao do bens jurdicos consoante seus titulares, entre bens jurdicos individuais e coletivos, ou consoante sua percepo, entre bens com ritos e abstratos. Esta classificao, alm de arbitrria, implica, desde logo, trs conseqncias. A primeira, de impor a adoo di i da comunidade em certa organizao ou status. Significativa desia confuso , por exemplo, como j vimos, a corrente identidade que se faz entre as funes de controle da arrecadao e o prpri< > patrimnio pblico, entre as funes de controle ambiental e prprio meio ambiente, ou entre a funo de controle e estabilidade da economia com a ordem pblica econmica, tomada como ente coletivo e abstrato.

    Esta confuso , no fundo, a conseqncia inevitvel de um sistema penal de proteo, como normalmente ocorre quando se fala das tarefas do direito penal, porque, com isso, se passa a entend-lo em face de suas caractersticas programticas e no como instrumento de delimitao de poder, como deve ser num Estado democrtico.

    Se o objetivo do direito penal, porm, no o de simplesmente proteger bens jurdicos, mas o de traar, nitidamente, os contorno.s das zonas do lcito e do ilcito, do proibido e do permitido, nu sentido de s justificar a interveno do Estado sobre a liberdade da pessoa humana, em casos de extrema e demonstrada necessidade, a primeira condio de seu implemento a de descartar, desde logo, essa classificao entre bens individuais e coletivos e trabalhai com a noo de bem jurdico como bem jurdico pessoal. Esse o primeiro e indeclinvel pressuposto para se proceder, com segurana, identificao do bem jurdico e diferenci-lo da funo.

  • i ONTEDO DO INJUSTO 217

    Contudo como em termos de percepo muitos bens jurdi-11 >s nitidamente pessoais (por exemplo, a honra e a intimidade) so materiais, por sua natureza, a simples assero do bem jurdico< < >mo individual (e no coletivo), embora constitua um pressupos-ii > indeclinvel de um direito penal democrtico, no basta para Mia perfeita distino das funes. indispensvel, quanto a estes, l>ioceder-se.a uma segunda tarefa, a de estabelecer os princpiosi u irmativos de sua prpria limitao.

    A jiercefto^lg urn bem jurdico passa, portanto, por duas ' lases seqenciais. A primeira, de correspori3e~ao'process' de ivdu individual. A segrrda~, ~d'lncr sscaractersticas ou piopriedads e dedispr srcefCds princpios normativos d ?su a delimitao. ..... ................................... ----------- -

    No caminho da primeira seqncia, .s poder ser reconhecido rumo bem iurdico o que possa ser reduzido a um. ente prprio da pessoa humana, quer dizer, para ser tomado como bem jurkjico ser preciso que determinado valor possa implicar, direta ou indiretamente, um interesse individual, indpendntemen-te'de~se esse interesse individual corresponde a uma pessoa..determinada

  • 218 TEORIA DO INJUSTO I I

    naturais) ser entendido como bem essencial da pessoa humanu t sua relao com outras pessoas e com a natureza, e no como lu m por si mesmo, protegido e sufragado como interesse exclusivo il.. Estado e de seu poder de controle. Por sua vez, as relaes ili- consumo no valem como simples relaes, mas como projeo il reduzidos a bens pessoais, ser possvel evitar incriminaes altr:ii< > rias, de simples proteo a funes. Seria, pois, incompatvel com sistema dessa reduo e com os princpios de um direito penal il de contaminao ambiental. Tal incriminao no teria por ba.sr ,t leso de bem jurdico, mas a simples funo de controle ambienl. pois no se pode deduzir da que essa proibio tivesse coiim pressuposto a leso ou o perigo concreto de leso a um bem cl.i pessoa e de sua vida de relao. Quer dizer, ento, que o contn .lide acesso praia pode ser exercido como ato administrativo, m:is jamais na forma de incriminao, como tipo de delito, porque II u- falta a leso de bem jurdico.

    Na segunda seqncia, tem-se de estabelecer aquilo qu

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    m-co ou imanente da pessoa quanto como uma relao vital, guando vista sob o ngulo da convivncia dessa mesma pessoa. Neste caso, a relao de convivncia delimita os contornos do exerccio dessa liberdade e a transforma num dado significativo da sistncia coletiva, que deixa de ser uma simples referncia imaginria ou simblica (afinal, o que a existncia coletiva?). I>:ira se constituir numa projeo real da pessoa.

    Percebendo a necessidade de o bem jurdico possuir uma (leterminada substancialidade e no ser simplesmente inferido de mn dado normativo, JGER e ROXIN ressaltaram, j h alguns anos, por ocasio das respectivas teses de ctedra, o seu carter d I>jeto valorado, isto , vinculado a um juzo de valor e suscetvel cm comum, ao sentimento do povo e outras semelhantes. Apesar ile trabalharem com a exigncia de substancialidade no conceito tle bem jurdico, JGER e ROXIN no o vincularam, necessariamente. condio de objeto sensvel, quer dizer, no o condicionaram :i uma coisa somente cognoscvel pelos sentidos, mas, sim,' a um dado real, da vida material ou espiritual, capaz de ser lesado por uma conduta humana. Diante dessa postura, flexibilizaram sua crtica e abriram a possibilidade de ampliar o elenco dos bens jurdicos e, assim, permitir que nele fossem includos tanto objetos sensveis, como a vida, a integridade corporal e o patrimnio,

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    substancialidade, isto , em determinar at que ponto pode o In i jurdico se afastar de sua expresso sensvel e se espiritualizar4''' \ resposta adequada a esta questo o grande desafio a enfrentado pela dogmtica penal.

    Exaurindo o contedo dessa questo, podemos dizer qm .11 caractersticas de universalidade e substancialidade, conferiil.i-. aos bens jurdicos, no podem ser, simplesmente, inferidas dc um procedimento denotativo, mas conotativo. Isto implica consick i.n como o faz WITTGENSTEIN relativamente ao significado das p:il. vras e das frases399, que o significado do bem jurdico, conforme essas duas caractersticas (que seriam, poitanto, tomadas com< > . fossem paites constitutivas de uma frase), no est subordinado .1 sua logicidade, mas, sim, ao contexto de garantia e de limitao il

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    aracterizado como bem jurdico aquilo que possa ser concreta- mente lesado .'.u pst m.pexigQ^. rnas de tl modo que a afirmao dessa leso ou desse perigo seja suscetvel d um procedimento de contestao. No mbito dos estreitos limites do injusto penal, para caracterizar, assim,'umW lrcin bm' jurdico, no basta que ele possa ser reduzido, direta ou indiretamente, .1 sua caracterstica de pessoTcfade, isto , que interesse,"antes ilc tudo^ pessoa humana. Tpreciso que esse valor apresente, .iilemais, substancialidade, de forma a fundamentar um procedi-11 lento de_^mojQSEca~He que tenha siclcrfesada" o posto em perigo. Jusfmente a possibilidade deste procedimento que assinala um limite normativo (a_regra do jogo, pi WITTGNSTEIN) lesto da espiritualizao do bem jurdico.

    3.1.1.1.7-5 As funes, os bens jurdicos e o injusto

    No setor do injusto, por isso mesmo, as funes no podem >er havidas como pressupostos indeclinveis da incriminao ou ihjetos de proteo, porque carecem de substncia e no podem se submeter a qualquer exame ou demonstrao emprica de que

    "" Wolfgang Wohlers. Deliklstypen des Prventionsstra/rechts - zur Dogmatik modemer"Gefbrdungsdelikte, Berlin, 2000, p. 232; JClaus Ldersseen. Genesis und Geltung in derjurisprudenz, Frankfurt ara Main, 1996, p. 49.

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    tenham sido lesadas ou postas em perigo. A importncia de im.- funo de controle, portanto, s se manifesta nas relaes lui\ i*i.m nos atos de sua deciso, pelas quais se possa identificar o respo 11\ ** as funes do tipo, referentes aos seus fins sistemticos, polui. criminais e dogmticos, todos imbricados no complexo da lingua;.;< pela qual se expressa a proibio, a qual tem, como conseqn. u a efetiva leso ou o perigo de leso a um bem jurdico. I >. delimitao das zonas do lcito e do ilcito, da qual decoru- >. proibio ou a imposio de condutas, segue-se a funo < ! respectivos bens jurdicos, como instmmentos de referncia de-.-.. delimitao. A exigncia, portanto, de que esses bens venham

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    corresponderia a uma ordem pblica ideal, insuscetvel de apreenso conceituai, delimitao e juzo de refutabilidade402.

    Se, por um lado, se deve distinguir entre bem jurdico e luno, por outro, se pode divisar, como j se assinalou anteriormente, uma funo prpria ao bem jurdico, que a de servir de demento estrutural do injusto e, ao mesmo tempo, de objeto de cferncia da incriminao, mediante a demonstrao de sua leso ou perigo de leso. Como a identificao do bem jurdico sc faz mediante um processo discursivo, edificado sobre a norma penal, que deve ser, assim, absolutamente clara e expressa na linguagem construda por todos, o bem jurdico serve tambm .i< >s propsitos garantistas, vinculados proteo da pessoa Immana, de admitir uma incriminao no apenas quando ocorra n m leso ou um perigo de leso do prprio bem jurdico, mas i|iiando da incriminao no resulte uma dessocializao da pessoa humana. Independentemente da sano penal aplicvel, .1 prpria incriminao pode produzir, muitas vezes, um efeito ilcssocializador, por exemplo, quando passe a retratar como penalmente proibidas, por si ss, sem qualquer exame do dano social da resultante, condutas situadas no mbito normal de u lao das pessoas.

    O juzo de refutabilidade aqui referido segundo uma exigncia normativa de garantia da pessoa humana, no se confundindo, por isso, ainda que tenha pontos aparentes de semelhana, com o critrio de falseabilidade, ou falibilidade, de Karl Popper, que no fundo apenas um critrio de verdade. No se quer, na identificao do bem jurdico, conhecer a verdade, ms estabelecer limites negativos sua espiritualizao. Quanto questo da verdade, o texto busca seguir as linhas traadas por Wittgenstein, no sentido de que a identificao do bem jurdico, assim como a identificao de uma realidade, deve, em todo caso, estar subordinada a um contexto, no qual o que menos importa sua concluso acerca da verdade ou da falsidade da preposio, e muito mais a exigncia de que esse bem, para ser um bem jurdico, comporte um procedimento de demonstrao de que seja, efetivamente, lesado ou posto em perigo, e que, portanto, a afirmao dessa condio de lesividade ou perigosidade possa igualmente ser negada, mediante idntico procedimento. A exigncia de elementos procedimentais, como limites do poder e do discurso de validade jurdica, j fora, inclusive, proposta de forma bastante clara por Habermas e outros autores, cujos parmetros essenciais se encontram expostos no captulo 4.4.

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    Por exemplo, ainda que a honra constitua um bem jurili. a incriminao de atentados honra no pode valer exclush.i mente sob este aspecto da leso deste bem jurdico e nada m:iK < preciso que a incriminao desses atentados no implique unu dessocializao das pessoas, no sentido de proibir-lhes todos . .1 comentrios sobre os demais, o que impossibilitaria a vida soci.il < a sua convivncia. Imagine-se como seria intolervel a vida soi 1.1I se se proibisse, simplesmente, qualquer comentrio spero ou .u. amparados na proteo da dignidade da pessoa humana.

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    1.1.2 A conduta tpica

    Por outra parte, o bem jurdico s pode,'.( esta violao se der na zona do ilcito. C iuidamentalmente uma norma de conduta,-I. marcar as zonas do lcito e do ilcito em n ili limitar o poder de interveno do Estado, a ao ou a omisso it|>ica violadora de bem jurdico sempre representada por um mtIx> dotado de certo sentido. A representao da ao por meio de um verbo demonstra, por seu turno, o sentido dinmico da conduta l>ica, que passa a ser operada por um sujeito determinado.

    A vinculao do sujeito execuo da ao pe de manifesto< p ic o tipo deve estar amparado tambm por critrios de imputao, ntolgico403. Naquela ocasio, embora tivssemos em conta que .1 distino entre dolo e culpa s pudesse ser realizada dentro da estrutura do injusto, ainda o configurvamos como uma avaliao

    juarez Tavares. Direito penal da negligncia, S. Paulo, 1985, p. 114 etseq.