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Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 1, p. 211-238, Jan./Abril, 2013. 211 Tradução SOBRE O USO DE PRINCíPIOS T ELEOLóGICOS NA FILOSOFIA, DE KANT Marcio Pires 1 INTRODUçãO A pequena dissertação Sobre o uso de princípios teleológicos na filosofia apareceu no Teutsche Merkur de janeiro-fevereiro de 1788. A circunstância da publicação é o debate entre Kant e Forster, a propósito das raças humanas 2 . Kant responde aqui à objeção que Forster endereça a outros dois textos seus. A propósito de um ponto de relevância metodológica central, Forster ataca o procedimento de Kant, qualificando-o como alinhado à filosofia especulativa e abstrata 3 , a qual, uma vez partindo de definições, poderia incorrer no equívoco da parcialidade no tratamento das questões e, consequentemente, 1 Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor assistente (temporário) do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]. 2 Johann Georg Adam Forster (27 de novembro de 1754 a 10 de janeiro de 1794). Naturalista alemão, Forster escreveu no Teutsche Merkur, de outubro e novembro de 1786, Noch etwas über die Menschenraßen (Algo mais sobre as raças humanas), texto no qual ele se refere a outros dois escritos de Kant: Bestimmung des Begriffs einer Menschenraße (Determinação do conceito de uma raça humana) e Muthmaßlicher Anfang der Menschengeschichte (Começo conjectural da história humana), ambos publicados na Berlinische Monatschrift, de 1785 e 1786, respectivamente. 3 Definições (Bestimmungen) que se fundam sobre um conhecimento limitado podem ser úteis no interior desses limites, mas, tão logo se estenda o horizonte, desloque-se o ponto de vista, não parecerão elas semiverdadeiras e parciais?” (FORSTER, G. Noch etwas über die Menschenraßen. Teutsche Merkur. 4º Trimestre, 1786, p. 61). Um pouco mais adiante, Forster se refere da seguinte maneira a um trecho do texto kantiano de 1785: “Se portanto o princípio (Satz) ‘de que só se encontra na experiência o que se precisa, quando se sabe previamente pelo que procurar’ (Berl. Monatsschrift, Novemb. 1785, p. 390), também tivesse sua exatidão incontestada, então também seria necessária um certa precaução no emprego do mesmo, para evitar a mais comum de todas as ilusões, a saber, que em determinada busca por aquilo de que se precisa crê-se frequentemente encontrá-lo ali onde na verdade ele não está. Quanta calamidade não surgiu desde sempre no mundo porque se partiu de definições (Definitionen) das quais não se desconfiava, logo, inadvertidamente, alguém via por antecedência num certo clarão e enganava a si e aos outros” (Ibid., p.61-62). A digitalização do texto de Forster pode ser encontrada em: http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/teutmerk/ Acesso em: 30 jan. 2013.

Kant - Sobre o uso de princípios teleológicos na filosofia

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Tradução de Marcio Pires

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  • Trans/Form/Ao, Marlia, v. 36, n. 1, p. 211-238, Jan./Abril, 2013. 211

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    Sobre o USo de PrincPioS TeleolgicoSna FiloSoFia, de KanT

    Marcio Pires1

    inTrodUo

    A pequena dissertao Sobre o uso de princpios teleolgicos na filosofia apareceu no Teutsche Merkur de janeiro-fevereiro de 1788. A circunstncia da publicao o debate entre Kant e Forster, a propsito das raas humanas2. Kant responde aqui objeo que Forster enderea a outros dois textos seus. A propsito de um ponto de relevncia metodolgica central, Forster ataca o procedimento de Kant, qualificando-o como alinhado filosofia especulativa e abstrata3, a qual, uma vez partindo de definies, poderia incorrer no equvoco da parcialidade no tratamento das questes e, consequentemente, 1 Doutorando em Filosofia pela Universidade de So Paulo. Professor assistente (temporrio) do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maring. E-mail: [email protected] Johann Georg Adam Forster (27 de novembro de 1754 a 10 de janeiro de 1794). Naturalista alemo, Forster escreveu no Teutsche Merkur, de outubro e novembro de 1786, Noch etwas ber die Menschenraen (Algo mais sobre as raas humanas), texto no qual ele se refere a outros dois escritos de Kant: Bestimmung des Begriffs einer Menschenrae (Determinao do conceito de uma raa humana) e Muthmalicher Anfang der Menschengeschichte (Comeo conjectural da histria humana), ambos publicados na Berlinische Monatschrift, de 1785 e 1786, respectivamente.3Definies (Bestimmungen) que se fundam sobre um conhecimento limitado podem ser teis no interior desses limites, mas, to logo se estenda o horizonte, desloque-se o ponto de vista, no parecero elas semiverdadeiras e parciais? (FORSTER, G. Noch etwas ber die Menschenraen. Teutsche Merkur. 4 Trimestre, 1786, p. 61). Um pouco mais adiante, Forster se refere da seguinte maneira a um trecho do texto kantiano de 1785: Se portanto o princpio (Satz) de que s se encontra na experincia o que se precisa, quando se sabe previamente pelo que procurar (Berl. Monatsschrift, Novemb. 1785, p. 390), tambm tivesse sua exatido incontestada, ento tambm seria necessria um certa precauo no emprego do mesmo, para evitar a mais comum de todas as iluses, a saber, que em determinada busca por aquilo de que se precisa cr-se frequentemente encontr-lo ali onde na verdade ele no est. Quanta calamidade no surgiu desde sempre no mundo porque se partiu de definies (Definitionen) das quais no se desconfiava, logo, inadvertidamente, algum via por antecedncia num certo claro e enganava a si e aos outros (Ibid., p.61-62). A digitalizao do texto de Forster pode ser encontrada em: http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/teutmerk/ Acesso em: 30 jan. 2013.

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    ignorar aquilo para o que as ento recentes navegaes e os relatos de viagens haviam chamado ateno: a notcia da variada constituio fsica e cultural dos homens espalhados pela terra. Alguma dificuldade terminolgica a propsito de termos como gnero, espcie etc. referida pelo prprio Kant, mas, o que mais lhe parece importar ser antes um esclarecimento em torno da questo do mtodo que o naturalista dever empregar nesse tipo de investigao. Forster receia partir do princpio; Kant, por sua vez, do dado bruto. Nesse ponto, a insistncia kantiana ser em torno de uma distino necessria entre descrio da natureza (Naturbeschreibung) e histria da natureza (Naturgeschichte).

    A Crtica da razo pura, na Analtica Transcendental, foi capaz de fornecer um conjunto de regras gerais pelas quais uma natureza em geral podia ser pensada e especificada em juzos capazes de garantir um conhecimento objetivo. No entanto, o quadro de uma objetividade em geral, no sendo capaz de satisfazer a razo em sua busca natural pela totalidade, termina por denunciar a caracterstica essencialmente parcial de todo conhecimento objetivo. O caso que, uma vez pressuposta a dimenso infinita do espao e do tempo em que se circunscrevem os fenmenos, nenhum critrio de deciso pode surgir para assegurar um ponto de interrupo da investigao e permitir afirmar que o todo foi passado em revista. Para alm disso, h fenmenos naturais que se mostram to complexos e to ordenados em vista de certas finalidades, a ponto de tornarem evidente a dificuldade de explic-los meramente a partir de leis fsico-matemticas. o caso em que a estrutura de uma natureza em geral se defronta com a vida4. Com isso, a possibilidade de explicar a totalidade por

    4 Nos Anfangsgrnde, ao tratar da mecnica, Kant estabelece o limite em que deve mover-se uma filosofia da natureza como sendo o prprio lugar da ausncia de vida. Esta ltima tem um princpio interno de ao e a matria, somente um princpio externo, logo, na matria, toda mudana tem causa externa, o que funda a lei da inrcia: A inrcia da matria e nada mais significa do que sua ausncia de vida enquanto matria em si mesma. A vida a capacidade (Vermgen) de uma substncia de se determinar ao por um princpio interno, de uma substncia finita se determinar mudana, de uma substncia material se determinar ao movimento ou repouso como mudana de seu estado. Ora, ns no conhecemos nenhum outro princpio interno de uma substncia para modificar seu estado que no seja a apetio e, em geral, nenhuma outra atividade interna que no seja o pensar, com o sentimento de prazer ou desprazer e desejo ou vontade que dele dependem (...). Na lei da inrcia (a par da permanncia da substncia) repousa inteiramente a possibilidade de uma genuna cincia da natureza. O contrrio da primeira e da a morte de toda filosofia da natureza seria o hilozosmo. (MAN AA 04: 544). As citaes de Kant so feitas a partir da Akademie-Ausgabe, (Kants gesammelte Schriften/herausgegeben von der Kniglich Preussischen Akademie der Wissenschaften), que ser referida pela abreviao (AA), antecedida das iniciais do ttulo e seguida da indicao do volume e da pgina, conforme o padro definido pela Kant-Forschungsstelle (http://www.kant.uni.mainz.de/ks/abhandlungen.html).

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    meio de tal estrutura encontra um limite, o que j significa o surgimento de uma dificuldade para as exigncias sistemticas da razo.

    A questo do sistema frequente na filosofia de Kant. Ela se inscreve no interior das reflexes kantianas sobre o mtodo. A unidade sistemtica, afirma o filsofo j no primeiro pargrafo da Arquitetnica da razo pura, [...] aquilo que primeiramente faz do conhecimento comum uma cincia (KrV. A832/B860). Essa designao geral , poucas linhas adiante, exemplificada pela referncia ao organismo e seu desenvolvimento imanente em vista de fins essenciais. Em que pese no ser essa a nica forma de sistema que a crtica expressa, ela parece ao menos ser a sua metfora mais forte. Por outro lado, muito cedo, em 1755, Kant j tentava vincular as noes de sistema e desenvolvimento no mbito da cosmologia. A sua Histria geral da natureza (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels) esforava-se por no se resumir a uma descrio localizada e parcial dos fenmenos fsicos. A inteno do filsofo ali, uma vez assumidas as leis fundamentais da matria, foi elaborar uma teoria que pudesse fornecer uma explicao da gnese e constituio de um sistema do mundo5. Nesse texto, embora Kant assuma os princpios da fsica de Newton, ele segue adiante onde este ltimo estaciona6. Para Kant, tratava-se sempre de, na maior extenso possvel, explicar a natureza por si mesma, por suas leis internas, tanto quanto o princpio assumido o permitisse.

    O texto Sobre o uso de princpios teleolgicos na filosofia , em boa medida, a explicitao de um modo de investigar pelo qual a constituio de um estado de coisas , por assim dizer, explicitada em seu movimento gentico. Aqui, no obstante o objeto j no ser a natureza em sua constituio fsico-mecnica, tambm se d o caso de ir alm da anotao superficial e meramente classificatria que uma descrio da natureza (Naturbeschreibung) poderia fornecer.

    5 Esse carter, por assim dizer, gentico ilumina o sentido pelo qual se qualifica uma teoria. Apenas descrever um estado atual das coisas, no resulta numa teoria consequente. Inscrever os fenmenos numa totalidade natural, j era para Kant, desde 1755, uma exigncia metodolgica. Assim como entre todas as tarefas da investigao da natureza nenhuma pode ser resolvida com mais correo e certeza do que a da verdadeira constituio do edifcio do mundo em geral, as leis dos movimentos e a mecnica interna das revolues de todos os planetas, at onde a filosofia newtoniana pode garantir perspectivas tais que, alis, no se encontram em nenhuma parte da filosofia; assim, afirmo que entre todas as coisas da natureza, por cuja primeira causa se procura, a origem do sistema do mundo e a produo dos corpos celestes com as causas de seus movimentos, so aquilo que primeiramente se pode esperar esmerada e seguramente compreender. (NTH AA 01: 229).6 Newton no explica o plano das rbitas dos planetas atravs de leis mecnicas, tendo assim que remet-las ao [...] domnio de um ser inteligente e poderoso (NEWTON, I. Princpios matemticos da filosofia natural. Trad. Carlos L. de Mattos e Pablo R. Mariconda. So Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 26).

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    O argumento assenta, sobretudo, na tentativa de construir uma histria da natureza (Naturgeschichte). J no se tratando de um recurso a princpios fsico-matemticos, um princpio teleolgico que, na insuficincia daqueles, dever orientar a investigao para ordenar, unificar e explicar a diversidade que se oferece empiricamente. Esta a tarefa da razo. J prevenido pela Crtica, o texto de 1788 no afirma o carter objetivo dos resultados de semelhante empreitada, como, decerto, seria o caso do texto de 1755, no qual Kant, ao pensar uma totalidade do mundo fsico, precipitava-se inevitavelmente no dogmatismo ainda por ser criticado. Todavia, tal como a tentativa daquele texto pr-crtico de aventar uma hiptese que explique desde o momento inicial como o edifcio csmico teria se ordenado e estruturado, em 1788, o fio condutor da teleologia assumido como critrio para arranjar uma variedade de fenmenos que, por si somente, a nada mais poderia prestar-se do que descrio superficial ou, nas palavras de Kant, s permitiriam ao naturalista um [...] mero andar s apalpadelas pelo emprico (GTP AA 08: 161). Uma histria da natureza, diferente de uma classificao e diviso de seus produtos pelas simples caractersticas atualmente visveis, deve forjar a hiptese do seu desenvolvimento e conjecturar a respeito das condies a partir das quais o presente estado das coisas pode existir, no obstante o estatuto epistmico mais frgil da empreitada7.

    Assim como vrios outros pequenos textos de Kant, escritos de circunstncia, redigidos margem da elaborao da trilogia crtica, este texto tambm se expressa em tom algo mais didtico, ao menos se comparado letra frequentemente rida com que o filsofo comps as trs Crticas. Para l, contudo, da questo do estilo, tambm como em outros pequenos textos, possvel encontrar aqui esclarecimento a respeito de um tema com o qual a filosofia transcendental, na histria de seu movimento constitutivo, deparou-se e absorveu, obviamente, a seu modo prprio de tratamento, isto , no intuito de descortinar-lhe a condio de possibilidade. Nesse caso, trata-se, claro, do rearranjo que, logo depois, a Crtica da faculdade do juzo forneceria teleologia, inscrevendo-a no quadro geral da filosofia transcendental sob a rubrica da conformidade a fins (Zweckmigkeit) enquanto um princpio prprio do juzo reflexionante. Isso, contudo, no diminui o valor do texto de 1788. Ele certamente mantm, ao menos, o carter elucidativo do exemplo, ou seja, ele permite esclarecer como em uma investigao da natureza a assuno de um princpio teleolgico pode e deve nortear a considerao dos fenmenos

    7 Em alguma medida, isso pode ser comparado com o que se afirma logo no incio do texto de 1786, o Comeo conjectural. Trata-se, diz Kant, de algo que se anuncia [...] apenas como um exerccio permitido imaginao em companhia da razo para o recreio e sade do nimo. (MAM AA 08: 109).

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    em vista da elaborao de uma teoria abrangente, no caso em questo, uma teoria antropolgica que pudesse explicar a variada constituio humana catalogada pela observao, sem por isso ter que fender a humanidade em espcies diferentes. Por a, o texto do filsofo faz entrecruzarem-se antropologia e biologia8 ou, mais precisamente, antropologia e embriologia, na medida em que a base de sustentao do argumento kantiano a derivao das diferenas a partir de um estofo originrio de germes e disposies originrias que, uma vez pressupostos num tronco comum da humanidade, poderiam vir tona conforme a ocasio o exigisse, a fim de fornecer espcie certas qualidades teis para contextos e necessidades especficas da vida.

    Por fim, a despeito de no ter sido nomeada, embora indiretamente referida, h aqui um exemplo de como Kant realiza uma aplicao da teoria da epignese, da ideia de uma pr-formao genrica, importante no s para sua concepo do organismo, mas tambm, mutatis mutandis, para a explicao da [...] necessria concordncia da experincia com os conceitos dos seus objetos [...], tal como o testemunha a segunda edio da deduo transcendental da primeira crtica, ao afirmar um sistema da epignese da razo pura (KrV B 166)9.

    Sobre o USo de PrincPioS TeleolgicoS na FiloSoFia10

    Se por natureza se entende o conjunto de tudo o que existe de modo determinado segundo leis, tomado o mundo (enquanto propriamente assim chamado natureza) juntamente com sua causa suprema, ento se pode

    8 Quanto a essa aproximao, veja-se: COHEN, Alix A. Kant on epigenesis, monogenesis and human nature: the biological premises of anthropology. Stud. Hist. Phil. Biol. & Biomed. Sci. 37, p. 675-693, (2006).9 Para uma introduo ao debate sobre a epignese e sua relao com o tema da deduo das categorias, refiro, entre outros, os seguintes artigos: GENOVA, A. C. Kants epigenesis of pure reason. Kant-Studien. Berlin, n. 65, p. 259-273, 1974; SLOAN, Phillip R. Preforming the categories: eighteenth-century generation theory and the biological roots of Kants a priori. Journal of the History of Philosophy. Vol. 40, n.2, p. 229-253, 2002; MARQUES, Ubirajara R. de Azevedo. Kant e a epignese a propsito do inato. Scientiae Studia. So Paulo, v.5, n.4, p. 453-470, 2007.10 Introduo, traduo e notas de Marcio Pires. Reviso: Cllia Aparecida Martins. A digitalizao do texto pode ser acessada em http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/teutmerk/teutmerk.htm. A presente traduo foi feita a partir do texto da Akademie-Ausgabe (Kants gesammelte Schriften/Herausgegeben von der Kniglich Preussischen Akademie der Wissenschaften); a paginao do texto no original consta em colchetes no corpo do texto. As notas do prprio Kant sero seguidas por (K), as do tradutor, por (N.T.). Para esta traduo, foi til ainda o cotejo com a verso francesa de Stphane Piobetta, contida em: KANT. La philosophie de lhistoire: opuscules. Paris: ditions Denol, 1947, e com a verso inglesa de Gnter Zller, contida em: KANT. Anthropology, history and education. New York: Cambridge University Press, 2007.

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    tentar a investigao da natureza por dois caminhos (que, no primeiro caso, se denomina fsica e, no segundo, metafsica), ou pelo caminho meramente terico ou pelo caminho teleolgico, pelo ltimo caminho, porm, enquanto fsica, apenas empregando fins tais que nos possam ser conhecidos pela experincia, enquanto metafsica, ao contrrio, de acordo com seu ofcio, apenas empregando um fim estabelecido pela razo pura para seu propsito. Mostrei algures que na metafsica a razo no pode, a seu bel-prazer, alcanar toda sua inteno pela via terica da natureza (em vista do conhecimento de Deus) e que, portanto, lhe resta to somente a via teleolgica; de maneira que, no os fins da natureza, os quais assentam apenas em argumentos da experincia, mas um fim dado a priori de modo determinado pela razo pura prtica (na ideia do Sumo Bem) deve completar o que falta teoria insuficiente. Semelhante autorizao e at mesmo necessidade de partirmos de um princpio teleolgico ali onde a teoria nos abandona, eu busquei provar num pequeno ensaio sobre as raas humanas. Os dois casos, porm, contm uma reivindicao qual o entendimento se submete a contragosto e que pode dar suficiente pretexto a mal-entendidos.

    Em toda investigao da natureza a razo apela, com direito, primeiramente teoria e, s depois, determinao do fim. Nem a teleologia, nem a conformidade a fim prtica pode reparar a falta da primeira. Ainda que possamos tornar assim to manifesta a exatido de nossa pressuposio a causas finais, sejam elas da natureza ou de nossa vontade, ns permanecemos sempre ignorantes relativamente s causas atuantes. Antes de tudo, essa demanda parece estar fundada l onde (como naquele caso metafsico) devem mesmo preceder leis prticas para, primeiramente, indicar o fim em funo do qual pretendo estipular o conceito de uma causa, o qual, de tal modo, em absolutamente nada diz respeito natureza do objeto, parece [160], porm, ser simplesmente uma ocupao com nossas prprias intenes e necessidades.

    sempre difcil chegar a acordo sobre princpios nos casos em que a razo tem um interesse duplo que se limita reciprocamente. Mas, inclusive, difcil entender-se sobre princpios desse tipo, pois eles dizem respeito ao mtodo de pensar antes da determinao do objeto, e as pretenses da razo, conflitantes entre si, tornam ambguo o ponto de vista a partir do qual se tem que considerar seu objeto. Na presente revista, dois ensaios meus, sobre dois assuntos muito diferentes e de relevncia muito desigual, foram submetidos a um exame aguado. Em um, eu no fui compreendido, embora esperasse s-lo; no outro, porm, fui bem compreendido para alm de toda expectativa;

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    em ambos os casos, por homens de talento excelente, vigor juvenil e prspera fama. No primeiro, ca na suspeita de querer responder a uma pergunta da investigao fsica da natureza atravs de documentos da religio; no outro, livrei-me da suspeita de prejudicar a religio, pela prova da insuficincia de uma investigao metafsica da natureza. Em ambos, a dificuldade de ser compreendido funda-se sobre a autorizao, ainda no suficientemente posta s claras, de poder valer-se do princpio teleolgico onde as fontes do conhecimento terico no so suficientes, embora com uma limitao tal de seu uso que assegurado o direito de precedncia investigao terico-especulativa, para primeiramente experimentar nisso toda a sua capacidade (pelo que, nas investigaes metafsicas, , com direito, exigido da razo pura que ela justifique previamente isso e sua pretenso em geral de decidir sobre qualquer coisa e, ao mesmo tempo, porm, descubra completamente a condio de sua capacidade para que se possa lhe imputar confiana) e que, igualmente, essa liberdade sempre lhe permanea assegurada. Uma grande parte da divergncia assenta aqui sobre o receio da runa com a qual a liberdade do uso da razo fica ameaada; se isso for suprimido, ento, creio poder remover facilmente os obstculos unanimidade.

    Contra uma explanao da minha opinio expressa h muito tempo e inserida na Berl. M. S. de novembro de 1785, sobre o conceito e a origem das raas humanas, o conselheiro privado, Sr. Georg Forster, exps, no Teutschen Merkur de outubro e novembro de 1786, objees [161] que, como me parece, resultam simplesmente da incompreenso do princpio do qual parto. Na verdade, esse homem ilustre acha precrio desde o incio estipular previamente um princpio pelo qual o investigador da natureza deva deixar-se conduzir, inclusive, nas pesquisas e observaes e, principalmente, por um princpio tal, que dirija a observao a uma histria da natureza que por a se promove, em contraste com a simples descrio da natureza; assim como essa prpria diferenciao ele acha inadmissvel. No entanto, essa divergncia facilmente superada.

    A respeito da primeira dificuldade, indubitavelmente certo que com o mero andar s apalpadelas pelo emprico, sem um princpio condutor segundo o qual se tem que investigar, nada conforme a fins jamais seria encontrado; pois, dispor a experincia metodicamente significa apenas observar. Agradeo ao viajante meramente emprico e a seu relato, especialmente quando tem a ver com um conhecimento coeso, do qual a razo pode fazer algo em proveito de uma teoria. Usualmente, depois de questionado, ele responde: eu bem poderia

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    ter reparado nisso, se soubesse que me perguntariam depois. O prprio Sr. F., apesar disso, segue a orientao do princpio de Lineu da constncia do carter dos componentes da fecundao nas plantas, sem o qual a descrio sistemtica da natureza do reino vegetal no teria sido ordenada e ampliada de modo to notvel. Infelizmente, bem verdade que alguns sejam to imprudentes a ponto de levar suas ideias para dentro da prpria observao (e como sucedeu tambm ao grande conhecedor da natureza, de tomar a semelhana daquelas caractersticas, segundo certos exemplos, como uma indicao da semelhana das foras das plantas) e infelizmente bem fundada a lio para pensadores apressados (o que presumivelmente em nada nos diz respeito); contudo, esse abuso no pode revogar a validade da regra.

    Mas, no que concerne diferena posta em dvida, pura e simplesmente rejeitada, entre descrio da natureza e histria da natureza, se sob a ltima se quis entender um relato dos eventos naturais at onde nenhuma razo humana alcana, por exemplo, a primeira origem das plantas e animais, tal coisa evidentemente seria, como diz o Sr. F., uma cincia para deuses que estivessem presentes criao ou mesmo que fossem autores, e no para os homens. Todavia, apenas perseguir regressivamente a conexo de certas qualidades atuais das coisas da natureza com suas causas em poca remota, que ns no inventamos, mas [162] deduzimos das foras da natureza tal como elas agora se apresentam a ns, meramente recuar to longe quanto no-lo permite a analogia, seria isso uma histria da natureza e, na verdade, uma tal que no s possvel, mas tambm, por exemplo, nas teorias da terra de naturalistas metdicos (entre as quais a do famoso Lineu tambm encontra seu lugar) foram frequente e suficientemente tentadas, quer tenham elas alcanado muito ou pouco com isso. Tambm a prpria conjectura do Sr. F. sobre a primeira origem dos negros no pertence descrio da natureza, mas apenas histria da natureza. Essa diferena est posta na natureza das coisas, e atravs disso eu no reclamo nada de novo, mas simplesmente a cuidadosa separao de uma coisa da outra, pois elas so completamente heterogneas e, se aquela (a descrio da natureza), em toda suntuosidade de um grande sistema, aparece como cincia, a outra (a histria da natureza) apenas pode indicar fragmentos ou hipteses vacilantes. Atravs dessa separao e apresentao da segunda como uma cincia prpria realizvel, ainda que at agora (talvez tambm para sempre) mais como esboo do que como obra (cincia na qual para a maioria das questes se poderia encontrar marcado

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    um Vacat11), eu espero conseguir que no se faa, com pretenso conhecimento, em proveito de uma cincia algo que, na verdade, pertence to somente outra, e chegar a conhecer mais seguramente a extenso dos conhecimentos reais na histria da natureza (pois se possuem alguns da mesma), ao mesmo tempo, tambm os limites da mesma que se encontram na prpria razo juntamente com os princpios, segundo os quais ela se ampliaria da melhor maneira possvel. H que se considerar bem esse escrpulo, j que anunciei ter experimentado noutros casos tanta calamidade por causa da negligncia de soltar entre si os limites das cincias e no ter agradado precisamente a todos; alm do mais, com isso eu fiquei inteiramente convencido de que, pela simples separao do dissemelhante que antes se havia tomado num agregado, abre-se frequentemente uma luz inteiramente nova para as cincias, com a qual, na verdade, se descobre muita mesquinhez, que antes se pde esconder por detrs de conhecimentos estranhos, mas igualmente se abrem ao conhecimento muitas fontes autnticas onde absolutamente no se poderia ter presumido. A maior dificuldade nessa pretensa inovao est apenas no nome. A palavra histria, visto que exprime o mesmo que a grega Historia (relato, descrio) j est muito usada e h muito tempo, para que se deva facilmente consentir [163] competir-lhe uma outra significao que possa designar a investigao natural da origem; uma vez que nesta ltima tambm no se est isento de dificuldade para descobrir uma outra expresso tcnica que lhe seja ajustvel12. Todavia, a dificuldade da lngua em discernir no pode suprimir a diferena das coisas. Presumivelmente, precisamente a mesma divergncia por causa de um afastamento conquanto inevitvel das expresses clssicas, tambm no caso do conceito de raa, tem sido a causa da desunio sobre a mesma coisa. Ocorreu-nos aqui o que Sterne disse por ocasio de um debate sobre fisionomia que, segundo suas ideias caprichosas, ps em alvoroo todas as faculdades da Universidade de Estrasburgo: os lgicos teriam decidido o assunto, no tivessem eles apenas se deparado com uma definio. O que uma raa? A palavra absolutamente no figura em um sistema de descrio da natureza, presumivelmente, portanto, tambm a prpria coisa no est na natureza. O

    11 Vacat, de acordo com o dicionrio latino-portugus de Saraiva, designa o estar vazio, vago, desocupado (SARAIVA, F. R. dos Santos. Novssimo dicionrio latino-portugus: etimolgico, prosdico, histrico, geogrfico, mitolgico, biogrfico, etc. Rio de Janeiro: Garnier, 2006). Sigo aqui a nota explicativa da j referida traduo inglesa de Gnter Zller, a propsito da expresso acima: Latim para ficar vazio, indicando uma falta de resposta. (On the use of teleological principles in philosophy. Translated by Gnter Zller. In: Immanuel Kant: Anthropology, History and Education. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 198). (N.T.)12 Eu proporia para a descrio da natureza a palavra Fisiografia, para a histria da natureza, porm, Fisiogonia. (K)

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    conceito que essa expresso designa , porm, muito bem fundado na razo de cada observador da natureza, o qual, para uma caracterstica herdada de animais diferentes que se procriam por cruzamento, a qual no est no conceito de sua espcie, faz a ideia de uma comunidade da causa e, na verdade, de uma causa originalmente posta no tronco da prpria espcie. Que essa palavra no ocorra na descrio da natureza (mas que em seu lugar se encontre a palavra variedade) no pode impedi-lo de julg-la necessria em vista da histria da natureza. Ele, decerto, apenas deve defini-la claramente em funo disso; e isso ns desejamos tentar aqui.

    O nome de uma raa, enquanto caracterstica radical que d informao sobre a origem em uma linhagem comum e, ao mesmo tempo, admite vrios caracteres que persistem passando posteridade no somente da mesma espcie animal, mas tambm do mesmo tronco, no concebido de modo imprprio. Eu o traduziria por derivao (progenies classifica), para diferenciar uma raa da degenerao (degeneratio s. progenies specifica)13 [164], a qual no se pode conceder, pois contraria a lei da natureza (na conservao de suas espcies em forma constante). A palavra progenies indica que no so caracteres originais distribudos por tantos troncos quanto espcies do mesmo gnero, mas, caracteres que primeiramente se desenvolvem na srie das geraes, por conseguinte, no so tipos diferentes mas, derivaes, todavia, to definidas e persistentes que autorizam uma distino de classes.

    De acordo com esses conceitos prvios, a espcie humana (tomada segundo o trao caracterstico da mesma na descrio da natureza) poderia, em um sistema da histria da natureza, ser dividida em tronco (ou troncos), raas ou derivaes (progenies classificae) e diferentes tipos humanos (varietates nativae), esses ltimos no contendo traos caractersticos perdurveis que se transmitam segundo uma lei indicada, portanto, seriam tambm insuficientes para uma diviso de classe. Tudo isso, porm, uma simples ideia do modo como a maior multiplicidade na gerao unificada pela razo com a maior unidade da origem em uma linhagem. Se efetivamente h um tal parentesco

    13 As designaes classes e ordines exprimem de modo inteiramente inequvoco uma abstrao meramente lgica, que a razo faz entre seus conceitos em proveito da simples comparao: mas genera e species podem significar tambm a separao fsica que a prpria natureza faz entre suas criaturas relativamente sua produo. O caractere da raa pode, portanto, bastar para, [164] segundo isso, classificar criaturas, mas no para tirar da uma espcie particular, pois essa poderia tambm significar uma descendncia particular que ns no pretendemos que seja entendida sob o nome de uma raa. claro que ns no tomamos aqui a palavra classe no significado amplo, tal como tomada no sistema de Lineu; mas ns a utilizamos tambm para a diviso com um propsito inteiramente diferente. (K).

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    na espcie humana, as observaes que do a notar a unidade da descendncia devem decidir. Aqui se v claramente que se deve ser guiado por um princpio determinado para simplesmente observar, isto , atentar para aquilo que indica a linhagem original e no s os caracteres semelhantes; porque temos a ver com uma tarefa da histria da natureza e no com a descrio da natureza e uma nomenclao meramente metdica. Algum que no tenha disposto sua investigao de acordo com aquele princpio, deve novamente investigar, pois, por si mesmo, no se lhe apresenta aquilo que ele precisa para estipular se h um parentesco real ou apenas nominal entre as criaturas.

    No pode haver caracterstica mais segura da diversidade do tronco original do que a impossibilidade de obter uma prole frtil pelo cruzamento de duas divises humanas hereditariamente dis- [165] tintas. Mas se esse cruzamento tem xito, ento, ainda assim a grande diferena da forma no obsta para, ao menos possivelmente, encontrar uma linhagem comum aos mesmos; pois, no obstante esta diferena, assim como eles puderam se unificar atravs da procriao em um produto que contm as caractersticas de ambos, eles, tambm pela procriao, poderiam se dividir em tantas raas a partir de um tronco que originalmente ocultava em si as disposies para o desenvolvimento de ambas as caractersticas; e, sem necessidade, a razo no parte de dois princpios, quando ela pode contentar-se com um. No obstante, o trao caracterstico seguro das peculiaridades hereditrias, como os sinais distintivos de tantas raas, j foi mencionado. Agora, de se observar ainda algo das variedades hereditrias que do ocasio para a denominao de um ou outro tipo humano (tipos de famlias e de povo).

    Uma variedade a caracterstica hereditria que no classificvel, porque no se reproduz infalivelmente; pois uma semelhante constncia do carter herdado exigida, mesmo para a descrio da natureza, para justificar a diviso em classes. Uma forma que na reproduo s de vez em quando reproduz o caractere dos pais mais prximos e, precisamente na maior parte, apenas de um lado (seguindo o tipo do pai ou da me), no um sinal distintivo pelo qual se pode conhecer a linhagem de origem dos dois pais; por exemplo, a diferena de loiros e morenos. Do mesmo modo, a raa, ou derivao, uma peculiaridade hereditria perdurvel que, na verdade, autoriza a diviso em classes, mas no , todavia, especfica, porque a reproduo miscigenada que perdura (portanto, a fuso dos caracteres de sua diferena), ao menos, no permite julgar como impossvel considerar sua diferena tambm primitivamente em seu tronco, como unificadas em simples disposies e

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    apenas desenvolvidas e separadas gradualmente na reproduo. Pois no se pode fazer de um gnero animal uma espcie particular, se ele pertence com outro a um mesmo sistema de procriao da natureza. Por conseguinte, na histria da natureza, gnero e espcie14 significariam o mesmo, a saber, a caracterstica herdada que no partilhada com uma linhagem comum de origem. Porm, a caracterstica hereditria que pode coexistir com isso necessariamente hereditria ou no. No primeiro caso, constitui o carter da raa, no outro, o da variedade.

    Daquilo que na espcie humana pode ser chamado variedade, eu observo aqui que tambm relativamente a esta no se tem que considerar a natureza [166] como formadora em completa liberdade, mas, assim como no caso dos caracteres das raas, apenas como desenvolvendo predeterminadamente a mesma, atravs de disposies originais: porque, na variedade, encontra-se igualmente uma conformidade a fins e uma medida conveniente mesma, que no pode ser obra do acaso. O que j notou Lord Shaftsbury, a saber, que em cada face humana se encontra uma certa originalidade (por assim dizer, um design efetivo) que definitivamente distingue o indivduo por fins especficos que ele no tem em comum com outros e, embora decifrar esses traos ultrapasse nossa capacidade, isso todo retratista que pensa sobre sua arte pode confirmar. Em uma imagem pintada e bem expressa sobre a vida v-se a verdade, ou seja, que ela no tirada da imaginao. Entretanto, em que consiste essa verdade? Sem dvida, para, em uma determinada proporo de uma das vrias partes da face com todas as outras, exprimir um carter individual que contm um fim obscuramente representado. Nenhuma parte da face, ainda que nos parea desproporcional, pode, conservando-se as demais, ser mudada no retrato, sem que imediatamente se torne perceptvel ao olho de um perito, ainda que ele no tenha visto o original, ao comparar com aquele retrato copiado da natureza, qual de ambos contm a pura natureza e qual a inveno. Conforme toda probabilidade, a variedade entre homens da mesma raa foi posta no tronco original de maneira to adequada maior multiplicidade, em proveito de fins infinitamente diversos, assim como a diferena de raas o foi para fundar e, na sequncia, desenvolver a aptido a menos fins, porm, mais essenciais; com o que, portanto, reina a diferena, pois as ltimas disposies, aps terem se desenvolvido uma vez (o que j deve ter sucedido em tempo mais remoto) no deixam nascer novas formas desse tipo, nem as velhas se extinguirem; ao contrrio, as primeiras disposies, ao menos segundo nosso conhecimento,

    14 No original: Gattung und Species (N.T.).

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    parecem indicar uma natureza inexaurvel em novos caracteres (tanto externos como internos).

    Quanto s variedades, a natureza parece evitar a fuso, porque esta contrria a seu fim, a saber, multiplicidade de caracteres; ao contrrio, no que concerne s diferenas de raas, ainda que no favorea, ela ao menos permite a mesma (isto , a fuso), porque, atravs disso, a criatura torna-se apta a vrios [167] climas, embora a nenhum deles em grau adequado, como o havia feito a primeira conformao aos mesmos. Quanto opinio comum, segundo a qual as crianas (de nossa classe de brancos) devem herdar da parte de seus pais (como se diz: isso a criana tem do pai, isso ela tem da me) os traos caractersticos que pertencem variedade (como estatura, a forma do rosto, a cor da pele, mesmo alguns defeitos tanto internos como externos), no posso aderir a tal opinio depois de atentar cuidadosamente ao tipo das famlias. As crianas, ainda que no do pai ou da me, seguem o tipo, sem mistura, ou da famlia de um ou de outro; e malgrado a repulsa s misturas de parentes muito prximos tenha em grande parte causas morais, mesmo a infertilidade delas no poderia ser suficientemente provada: assim, sua ampla difuso at mesmo entre os povos rudes d ocasio suspeita de que o fundamento para isso esteja posto de modo distante na prpria natureza, a qual no quer que sempre sejam reproduzidas as velhas formas e sim que venha tona toda multiplicidade que ela tinha posto no germe originrio da espcie humana. Um certo grau de uniformidade, que se descobre num tipo de famlia ou at mesmo num povo, no pode ser atribudo conformao miscigenada de seus caracteres (que na minha opinio, absolutamente, no encontra lugar quanto s variedades). Pois a preponderncia da fora de gerao de uma ou outra parte das pessoas casadas, j que s vezes quase todas as crianas seguem ou a linhagem paterna ou a materna, pode ao lado da grande diferena inicial de caracteres, pela ao e reao, isto , por meio do que as reprodues do tipo de um lado se tornam sempre mais raras diminuir a multiplicidade e produzir uma certa uniformidade (que s visvel a olhos estranhos). Isso, todavia, apenas minha opinio casual, que deixo ao leitor para julg-la a seu gosto. O mais importante que nos outros animais quase tudo o que neles se poderia chamar variedade (como a estatura, o tipo de pele etc.) conforma-se parcialmente, e isso, quando se considera o homem, como convm, em analogia com os animais (a propsito da reproduo), parece conter uma objeo minha diferenciao entre raas e variedades. Para julgar isso, preciso j tomar um ponto de vista mais elevado para a explicao desse arranjo natural, a saber, que os animais desprovidos de razo, [168] cuja existncia somente pode ter

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    um valor como meio, deviam, por isso, j na disposio, serem distintamente dotados para diferentes usos (como as diversas raas de ces, que para Buffon so derivadas da linhagem comum do co pastor); na espcie humana, ao contrrio, a maior unanimidade do fim no reclamou to grande diferena de formas naturais conformadas, que, necessariamente conformadas apenas para a conservao, poderiam ser postas em alguns poucos climas diferentes entre si. Contudo, j que eu apenas quis defender o conceito de raas, no tenho a necessidade de responder pelo fundamento de explicao das variedades.

    Aps a dissoluo desse desacordo lingustico, que frequentemente mais culpado pela contenda do que aquele desacordo em princpios, eu espero agora encontrar menos obstculo contra a afirmao de meu modo de explicao. Nisso o senhor F. est de acordo comigo, pois, entre as diferentes figuras humanas, a saber, a dos negros e dos demais homens, ele encontra ao menos uma propriedade hereditria suficientemente importante, para no tom-las por um mero jogo da natureza e efeito de impresso casual, mas exige para isso disposies originalmente incorporadas linhagem e arranjo especfico da natureza. Tal unanimidade de nossos conceitos j importante e torna possvel uma aproximao quanto aos princpios de explicao de ambos os lados; em vez do modo comum e superficial de representao que toma em p de igualdade toda a diferena de nossa espcie, isto , sob o acaso, e sempre ainda a deixa surgir e desaparecer como o dispem as circunstncias externas, declara superficial todas as investigaes desse tipo e, com isso, nula a prpria constncia da espcie na mesma forma adequada. Apenas duas diferenas entre nossos conceitos ainda permanecem, as quais no esto to distantes entre si para necessariamente jamais tornar supervel a divergncia: a primeira que as propriedades hereditrias a cogitadas, a saber, aquelas dos negros em contraste com todos os outros homens, so as nicas que devem merecer ser tomadas por originalmente implantadas; nesse caso, eu julgo, ao contrrio, que ainda vrias outras tambm so autorizadas para uma diviso de classificao completa (a do indiano e americano, acrescidas quela dos brancos): o segundo distanciamento, o qual porm no concerne tanto observao (descrio da natureza) quanto teoria a admitir (histria da natureza), que o Sr. F. acha necessrio [169] dois troncos originais para esclarecer esses caracteres; ora, na minha opinio (que considero igual do Sr. F. para os caracteres originais), possvel e, nesse caso, mais conforme ao modo de explicao filosfico, consider-las como desenvolvimento de primeiras disposies conformes a fins implantadas num tronco; o que, com efeito, tambm no dissenso to grande que a razo a esse respeito no

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    oferea tambm a mo, se se considera que a primeira origem fsica do ser orgnico permanece insondvel para ns dois, e em geral para a razo humana, bem como a conformao hbrida na reproduo deles. J que o sistema dos germes desde o incio separados e isolados em dois troncos embora harmoniosamente de novo logo fundidos na mistura do at ento segregado no proporciona, em vista da compreenso pela razo, a menor facilidade mais do que aquele sistema dos germes diferentes, originalmente implantados em um e mesmo tronco, desenvolvendo-se, na sequncia, em conformidade ao primeiro povoamento geral; e, nesse caso, a ltima hiptese comporta ainda a prerrogativa de poupar diversas criaes locais; j que, alm disso, no , absolutamente, de se pensar na economia dos princpios teleolgicos de explicao para, nesse caso do ser organizado, naquilo que diz respeito conservao de seu tipo, substitu-los pelos princpios fsicos, e o ltimo modo de explicao no impe investigao da natureza nenhuma nova carga alm daquela, da qual, alm disso, ela jamais pode estar isenta, a saber, de unicamente seguir a o princpio dos fins; j que, tambm, o Sr. F., na verdade, somente atravs das descobertas de seu amigo, o famoso anatomista filosfico, Sr. Smmering, foi levado a achar a diferena entre os negros e os outros homens mais relevante do que o poderia agradar queles que de bom grado confundem entre si todos os caracteres hereditrios e gostariam de consider-los meras matizaes contingentes; e esse homem distinto qualifica15 a formao do negro, relativamente sua terra natal, como uma perfeita conformidade a fins, apesar de que no , todavia, precisamente observvel na estrutura ssea da cabea [170] uma adequao ao seu solo mais compreensvel do que na organizao da pele, esse grande instrumento de eliminao de tudo aquilo que deve ser purgado do sangue por conseguinte, ele parece entender essa a partir de todo o distinto arranjo natural restante (do que a qualidade da pele uma parte importante) e somente estabelece aquela como um sinal mais claro da mesma para o anatomista: quando provado que h ainda em menor nmero outras propriedades que se transmitem to constantemente, que absolutamente no confluem entre si segundo as gradaes do clima, mas so

    15 Smmering, Sobre a diferena corporal do negro e do europeu. p. 79. Encontram-se na estrutura do negro propriedades que o tornam para seu clima a mais perfeita criatura, talvez, mais perfeita que o europeu. Esse homem distinto pe em dvida (no mesmo escrito 44) a opinio de D. Schott de que a pele do negro seria mais habilmente organizada para uma melhor eliminao de matrias nocivas. Mas, quando se vinculam a isso as informaes de Lind (Das doenas dos europeus etc.) sobre a nocividade do ar [170] flogstico das florestas pantanosas nos arredores do rio Gmbia, que to rpido se torna mortal aos marinheiros ingleses, em meio ao qual, todavia, os negros vivem como que em seus elementos, ento aquela opinio ganha muita probabilidade. (K).

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    nitidamente segmentadas, ainda que elas no caiam na especialidade da arte da anatomia, de se esperar que o Sr. F. no ser avesso a conceder-lhes uma igual pretenso a germes particulares originais, convenientemente implantados no tronco. Se, porm, necessrio admitir para isso vrios ou apenas um tronco comum, de se esperar que, quanto a isso, poderamos ainda, por fim, nos colocarmos em acordo.

    Assim, seria preciso apenas remover as dificuldades que impedem o Sr. F. de aderir minha opinio, no tanto relativamente ao princpio, mas muito antes quanto dificuldade de adapt-lo convenientemente a todos os casos de aplicao. Na primeira seo de seu ensaio de outubro de 1786, p. 70, o Sr. F. faz uma escala de cores da pele desde os habitantes da Europa do norte, passando pela Espanha, Egito, Arbia, Abissnia at o equador, de l, porm, novamente volta, em matizao inversa com o afastamento pela zona temperada do sul, passando pelas terras dos cafres e hotentotes, com uma gradao do moreno at o negro e vice versa, (segundo sua opinio) to proporcional ao clima das terras (com o que, ele admite, ainda que sem prova, que as colnias provindas dos negros que rumaram para o extremo da frica se transformaram nos cafres e hotentotes simplesmente pelo efeito do clima) que lhe surpreendeu como ainda no se poderia ter feito caso disso. Mas, justamente deve surpreender ainda mais, como se poderia no fazer caso do trao caracterstico conservado, suficientemente determinado e, com fundamento, o nico decisivo para a procriao infalivelmente miscigenada, do que tudo depende aqui. [171] Pois, nem o europeu que est mais ao norte, no cruzamento com aqueles de sangue hispnico, nem o mauritano ou rabe (presumivelmente tambm o abissnio, que lhe estreitamente aparentado) no cruzamento com as mulheres circassianas esto minimamente sujeitos a essa lei. No h igualmente motivo para, depois de pr de lado o que o sol de sua terra imprimiu a cada indivduo, julgar sua cor como algo diferente dos morenos entre os tipos humanos brancos. Contudo, no que tange semelhana dos cafres com os negros e, em menor grau, dos hotentotes na mesma parte do mundo, o que presumivelmente sustentaria a prova da gerao mestia, ento, muitssimo provvel que isso no poderia ser outra coisa do que procriaes bastardas de um povo negro com aqueles rabes, visitantes dessa costa desde muito tempo. Como, pois, no se encontra tambm a mesma suposta escala de cores na costa oeste da frica, onde a natureza do rabe moreno ou mauritano d um salto ainda mais repentino para os mais escuros negros no Senegal, sem antes ter passado pela via mediana dos cafres? Com isso, fica suprimida a tentativa de prova previamente decidida e aduzida na

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    pgina 74, que deveria demonstrar a inadmissibilidade do meu princpio, a saber, que o abissnio moreno escuro cruzado com uma cafre no resultaria, segundo a cor, em nenhum tipo intermedirio, porque ambas as cores so a mesma, isto , o moreno escuro. Pois, j que o Sr. F. admite que a cor morena do abissnio, na intensidade como a tm os cafres, lhe seja inata, e tal que, na verdade, na gerao cruzada com uma branca deveria resultar necessariamente em uma cor intermediria: assim o ensaio resultaria tal como o quer o Sr. F.; ele, todavia, tambm nada provaria contra mim, porque no se ajuza a diferena das raas conforme aquilo que nelas igual, mas de acordo com o que nelas diferente. Apenas se poderia dizer que tambm h raas de um moreno intenso que se distinguem do negro ou de sua linhagem de origem em outros sinais distintivos (por exemplo, pela estrutura ssea); porque, apenas em vista destes a gerao daria um bastardo e minha lista de cores s aumentaria em um. Porm, a cor intensa que o abissnio crescido em seu pas ostenta no herdada, mas apenas, mais ou menos como a de um espanhol que na mesma terra fosse educado desde pequeno: assim, sem dvida, sua cor natural daria com aquela dos cafres um tipo mediano de gerao, o qual, todavia, por conta da aparncia contingente [172] acrescida pelo sol, seria escondido e (segundo a cor) pareceria ser um tipo idntico. Portanto, esse ensaio projetado nada prova contra a aptido da cor da pele necessariamente herdada para uma distino das raas, mas apenas a dificuldade de poder determin-la corretamente, na medida em que ela inata, no lugar onde o sol a cobre ainda com uma maquiagem casual, e confirma a legitimidade da minha reivindicao de preferir, para esse fim, as geraes dos mesmos pais no estrangeiro.

    Ora, das ltimas ns temos um exemplo decisivo na cor da pele indiana de um pequeno povo que desde alguns sculos se reproduz em nossos pases nrdicos, a saber, os ciganos. Que eles sejam um povo indiano prova sua lngua, independentemente da cor de sua pele. Mas, para conserv-la, a natureza foi to obstinada que, se com efeito se pode observar sua presena na Europa em at doze geraes atrs, ela ainda sempre aparece to integralmente que, se eles crescessem na ndia no seria encontrada, segundo toda suposio, absolutamente nenhuma diferena entre eles e os nascidos l naquele pas. Agora, dizer aqui que ainda se deveria esperar 12 vezes 12 geraes at que o ar do norte tenha descorado completamente sua cor hereditria seria entreter o investigador com respostas dilatrias e buscar subterfgios. No entanto, fazer sua cor passar por simples variedade, mais ou menos como a cor do espanhol moreno frente aos dinamarqueses, seria duvidar da impresso da natureza. Pois, com os nossos antigos nativos, eles geram infalivelmente crianas

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    miscigenadas, lei qual a raa dos brancos no est submetida relativamente a nenhuma de suas variedades caractersticas.

    No obstante, as pginas 155-156 apresentam o mais importante contra-argumento, pelo qual, caso ele fosse fundado, se demonstraria, ainda que se me concedesse as minhas disposies originais, que a convenincia dos homens em suas terras natais junto de sua difuso pela superfcie da terra no poderia subsistir com isso. Talvez, diz o Sr. F., se possa ainda defender que precisamente aqueles homens, cuja disposio convm a este ou quele clima, teriam nascido aqui e ali por um sbio arranjo da providncia: mas como, continua ele, a mesma providncia tornou-se to mope para no pensar numa segunda transplantao onde aquele germe, que apenas servia para um clima, se tornaria completamente intil?

    [173] No que diz repeito ao primeiro ponto, h que se recordar que eu no tinha admitido aquelas primeiras disposies como repartidas entre vrios homens porque ento resultariam em muitos troncos diferentes mas, como unidas no primeiro par humano; e assim, seus descendentes, nos quais a inteira disposio original para todas as futuras derivaes est ainda indivisa, conviriam a todos os climas (in potentia), isto , tal que aquele germe que os tornaria adequados para aquele lugar da terra no qual eles ou seus primeiros descendentes chegariam poderia desenvolver-se. Portanto, no foi necessrio nenhum particular arranjo sbio para lev-los a lugares tais que suas disposies fossem adequadas; entretanto, onde quer que casualmente chegaram e sua gerao continuou por muito tempo, ali se desenvolveu o germe existente em sua organizao para essa regio da terra e que os tornou adequados a semelhante clima. O desenvolvimento das disposies orientou-se de acordo com os lugares e no os lugares, por acaso, tiveram que ser selecionados para as disposies j desenvolvidas, como equivocadamente o entende o Sr. F. Tudo isso alhures, s se compreende de um tempo remoto que deve ter durado o suficiente (para o povoamento gradual da terra) para, primeiramente, proporcionar a um povo, que tinha um lugar permanente, a influncia do clima e do solo requerida para o desenvolvimento de suas disposies adequadas aos mesmos. Mas agora, continua ele: como o mesmo Entendimento, que calculou aqui to corretamente quais pases e quais germes deviam coincidir (segundo o que precede, eles tinham que sempre coincidir, ainda que no se queira que um Entendimento, mas, que apenas a prpria natureza, que arranjou internamente a organizao dos animais assim to universalmente adequada, tambm os tenha equipado precisamente de

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    modo to cuidadoso para sua conservao), de repente tornou-se to mope que tambm no previu o caso de uma segunda transplantao. Pelo que, a peculiaridade inata que serve somente para um clima se torna inteiramente intil etc.

    Agora, no que concerne ao segundo ponto da objeo, eu admito que aquele Entendimento, ou caso se preferir, aquela Natureza por si mesma convenientemente atuante segundo germes j desenvolvidos, de fato, no tenha, absolutamente, dado ateno transplantao, sem que por isso, todavia, possa ser culpada de imprudncia e miopia. Pelo contrrio, pela sua adequao ajustada ao clima, ela impede a mudana do mesmo, especialmente do quente por frio. Pois, precisamente essa m acomodao do novo clima para a natureza j [174] conformada do habitante do clima antigo, o impede disso por si mesmo. E onde indianos e negros tentaram se espalhar nas regies nrdicas? Aqueles que, porm, para l so expulsos (como os negros crioulos ou os indianos sob o nome de ciganos) jamais quiseram em sua descendncia dar um tipo til, para o cultivo domiciliado da terra ou para o trabalho manual16.

    16 Esta ltima nota no mencionada aqui como prova, porm, tambm no irrelevante. Nas Contribuies do Sr. Sprengel, 5 Parte, p. 287-292, contra o desejo de Ramsay de usar todos os escravos negros como trabalhadores livres, um perito alega que, entre os milhares de negros livres que se encontram na Amrica ou na Inglaterra, ele no conhece nenhum exemplo de qualquer um que se dedique a uma ocupao que, propriamente, se possa chamar trabalho, pelo contrrio, quando chegam liberdade, imediatamente renunciam a um ofcio fcil, que antes foram forados a exercer como escravos, para se tornarem mascates, estalajadeiros miserveis, serviais livres, que vo pesca ou caa, numa palavra, errantes. Igualmente isso ocorre entre ns com os ciganos. O mesmo autor observa nessa ocasio que no o clima nrdico que os torna pouco inclinados ao trabalho, pois, quando atrs do carro de seus senhores ou quando, nas mais fortes noites de inverno, precisam esperar nas frias entradas do teatro (na Inglaterra), eles preferem resistir a ter que debulhar, cavar, levar cargas etc. Disso no se deveria concluir que, alm da capacidade de trabalhar, ainda haja, imediata e independentemente de toda atrao, uma inclinao para a atividade (especialmente a atividade persistente, que se chama assiduidade), a qual particularmente entretecida com certas disposies naturais e que, tanto indianos como negros, em outros climas, no tragam mais consigo e no transmitam mais desse impulso, tal como, em seu antigo pas natal, eles precisavam para sua conservao e tinham recebido da natureza; e, to pouco, que se extinguiu essa disposio interna tanto quanto a visvel externamente. As necessidades extremamente diminutas naqueles pases e o pouco esforo que se exige para tambm garanti-las no demanda grandes disposies para a atividade. Eu quero ainda mencionar aqui algo da cuidadosa descrio de Sumatra de Marsden (Ver Sprengel, Contribuies, 6 Parte, p. 198-199). A cor de sua pele (dos Rejangs) comumente amarela sem a mistura do vermelho, que produz a cor de cobre. Eles so, quase sem exceo, um tanto mais claros de cor do que os mestios de outras regies da ndia. A cor branca dos habitantes de Sumatra, em comparao com outros povos de clima semelhante, , a meu ver, uma forte prova de que a cor da pele de modo algum depende imediatamente do clima. (Ele diz o mesmo das crianas de europeus e negros l nascidas na segunda gerao, e presume que a cor escura dos europeus que esto aqui h tempos seja uma consequncia das muitas doenas da blis s quais todos esto expostos l). Aqui devo ainda observar que as mos [175] dos nativos e mestios, apesar do clima quente, habitualmente so frias (um fato importante que d a informao de que a

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    [175] Mas justamente isso que o Sr. F. mantinha, contra o meu princpio, como uma dificuldade insupervel, lana sobre a mesma, numa certa aplicao, a mais vantajosa luz e resolve as dificuldades contra as quais nenhuma outra teoria era capaz de algo. Eu admito que muitas geraes foram necessrias, desde o tempo do incio da espcie humana, para a completa conformao a um clima, por um desenvolvimento gradual das disposies nela existentes e que ento a difuso da mesma sobre a parte mais considervel da terra, forada na maioria da vezes por uma violenta revoluo natural, poderia ter acontecido com uma escassa multiplicao da espcie. Se, pois, tambm por essas causas um pequeno povo do mundo antigo foi conduzido das regies do sul para as nrdicas: assim, a conformao, que talvez ainda no estava inteiramente acabada para ser adequada s primeiras, teve que ser gradualmente suspensa para, em compensao, dar lugar a um desenvolvimento oposto das disposies, isto , para o clima nrdico. Agora, posto que esse tipo humano tivesse se deslocado sempre mais para nordeste at a Amrica uma opinio que, francamente, possui a maior probabilidade ento, antes que ele naquela parte do mundo pudesse de novo se espalhar consideravelmente para o sul, suas disposies naturais estariam j to desenvolvidas quanto possvel e aquele desenvolvimento, agora acabado, deveria ter tornado impossvel toda ulterior conformao a um novo clima. Nesse ponto, surgiria uma raa que, em seu afastamento em direo ao sul permaneceria sempre a mesma para todos os climas, portanto, na verdade a nenhum convenientemente adequada, porque sua conformao ao sul, anterior sua partida, foi interrompida no meio de seu desenvolvimento pela mudana para o clima nrdico e produziu ento uma condio constante para essa populao. Na verdade, Dom Ulloa (uma excelente e importante testemunha, que conheceu os habitantes das Amricas nos dois hemisfrios) assegura ter achado as feies caractersticas dos habitantes dessa parte do mundo, em geral, muito semelhantes (no que diz respeito cor, um dos novos navegadores, cujo nome agora eu no posso dar com segurana, a descreve como a ferrugem misturada com leo). Mas, que a sua ndole natural no alcanou nenhuma adequao completa a um clima qualquer, disso deixa-se tambm deduzir que dificilmente [176] pode ser indicada uma outra causa pela qual essa raa, to frgil para o trabalho pesado, to indiferente ao assduo, e incapaz de toda cultura (para o que,

    ndole caracterstica da pele no deve advir de causas externas superficiais). (K). Embora o etnnimo Rejangue tenha ocorrncia registrada e expresse um aportuguesamento possvel, preferimos manter a escrita original de Kant, j que no encontramos a grafia, acima citada, formalmente expressa em dicionrio. (N.T.).

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    todavia, encontra-se na proximidade exemplo e encorajamento suficientes) est ainda muito abaixo do prprio negro, o qual, contudo, ocupa o mais baixo de todos os demais nveis daquilo que ns nomeamos diferena de raas.

    Agora, que se considere todas as outras hipteses possveis quanto a este fenmeno! Se no se quer acrescentar criao particular do negro, j proposta pelo Sr. F., uma segunda, a saber, a dos americanos, ento no resta nenhuma outra resposta: que a Amrica seja muito fria ou muito nova para jamais produzir a derivao dos negros ou dos indianos amarelos, ou para ter j produzido no to curto tempo em que ela povoada. A primeira afirmao, no que diz respeito ao clima quente dessa parte do mundo, est agora suficientemente refutada; e, no que tange segunda, ou seja, de ainda que se tivesse a pacincia de se esperar alguns milnios (pelo menos a propsito da cor da pele) aqui tambm por influncia gradual do sol algum dia se encontrariam negros: primeiramente, seria preciso estar certo de que o sol e o ar podem fazer semelhante enxerto, apenas para se defender das objees de um efeito meramente presumido, posto distncia e sempre a bel-prazer mais longe afastado, j que aquela ainda muito passvel de dvida, quo pouco pode uma simples presuno arbitrria ser posta contra os fatos!

    Uma importante confirmao da derivao das diferenas constantemente herdadas atravs das disposies que se encontram originalmente juntas e conformes a fins em um tronco humano para a conservao da espcie : que as raas da desenvolvidas no se espalharam esporadicamente (em todas as partes do mundo, no mesmo clima, do mesmo modo), mas por ciclos17 em pores unidas que so encontradas distribudas no interior da linha de demarcao de uma terra onde cada uma das mesmas pde se formar. Assim, a descendncia pura dos Amarelos est contida no interior dos limites do Hindusto e, no muito distante da, a Arbia, que em grande parte ocupa um clima semelhante, no contm nada disso; ambos, porm, no contm negros, o quais somente so encontrados na frica, entre Senegal e Cabo Negro (e assim por diante, no interior dessa parte do mundo); a Amrica inteira, entretanto, no contm nem um nem outro, tambm nenhum carter racial do Velho Mundo [177] (exceto os esquims que, de acordo com as diferentes caractersticas tiradas tanto de sua feio quanto de seu prprio talento, parecem ser descendentes posteriores de uma raa da parte antiga do mundo). Cada uma dessas raas est, de algum modo, isolada e, j que no mesmo clima elas se diferenciam entre

    17 No original, Zykladisch. Certamente, trata-se de uma referncia s Ilhas Cclades: um arquiplago grego de formato circular em cujo centro se encontra a ilha sagrada de Delos. (N.T.)

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    si e, na verdade, por um carter inseparavelmente dependente da capacidade de procriao de cada uma das mesmas, assim elas tornam muito improvvel a opinio sobre a origem do ltimo, a partir do efeito do clima; ao contrrio, confirmam a suposio de um parentesco universal de procriao pela unidade do tronco de origem, ao mesmo tempo, porm, a de uma causa da diferena que classifica as mesmas e que se situa nelas mesmas e no meramente no clima e que deve ter demandado muito tempo para fazer seu efeito adequado ao lugar de propagao, o que depois de, uma vez realizado, no permite mais possveis novas derivaes por meio de transposies, porque no pode ser tomado por nada mais que uma disposio original, posta no tronco em um certo nmero, limitada pelas principais diferenas de influncia do ar e que se desenvolve gradativamente conforme a fins. Esse argumento parece ser prejudicado pela raa dos Papuas, dispersa pelas ilhas ao sul da sia e mais ao leste, pelo Oceano Pacfico, que eu e o cap. Forrester denominamos cafres (presumivelmente porque, em parte na cor da pele, em parte no cabelo e na barba que, contrariamente caracterstica dos negros, eles podem pentear num vistoso volume, ele encontrou motivo para no cham-los de negros). No obstante, alm disso, a admirvel disperso que se encontra de outras raas ainda, a saber, dos haraforas e de certos homens mais prximos linhagem indiana pura, vem a propsito, porque tambm fragiliza a prova do efeito do clima sobre sua qualidade hereditria, na medida em que esta sai, todavia, to diferente sob um e mesmo clima. Por isso tambm com boas razes no se pode tom-los por aborgenes, mas, provavelmente, por estrangeiros expulsos de seus lugares (os Papuas talvez de Madagascar), sabe-se l por que motivo (talvez uma poderosa revoluo da terra que deve ter atuado do oeste para o leste). Com os habitantes da ilha de Freville, dos quais mencionei de memria (talvez incorretamente) o informe de Carteret, seja l como quer que se tenha formado, se dever buscar as provas do desenvolvimento das diferenas raciais no domiclio provvel de sua linhagem no continente e no nas ilhas, que [178], como parece, foram povoadas s muito tempo depois de acabado o efeito da natureza.

    Tudo para a defesa de meu conceito de deduo da multiplicidade hereditria das criaturas orgnicas de uma e mesma espcie natural (species naturalis, na medida em que elas podem estar em ligao por sua capacidade de procriao e ter provindo18 de um nico tronco) para a diferenciao da

    18 Pertencer a um e mesmo tronco no significa imediatamente ter sido produzido de um nico par original; isso apenas quer dizer: as multiplicidades que agora so encontradas numa espcie animal no podem por isso ser consideradas como tantas diferenas originais. Agora, se o primeiro tronco humano

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    espcie da escola (species artificialis, na medida em que elas ficam sob uma caracterstica comum para a simples comparao) com o que, a primeira pertence histria da natureza, a segunda, descrio da natureza. Agora, ainda algo mais sobre o sistema particular do Sr. F. e da origem do mesmo. Nisso ambos estamos de acordo: que tudo em uma cincia da natureza tem que ser explicado naturalmente, pois, do contrrio, no pertenceria a essa cincia. Eu tenho seguido esse princpio to cuidadosamente que, tambm um homem perspicaz (Sr. O. C. R. Bsching, na recenso de meu escrito acima mencionado), por conta de expresses como propsitos, sabedoria e providncia da natureza etc., me toma por um naturalista, todavia, com a ressalva, de um tipo prprio, porque, nas discusses que concernem a meros conhecimentos da natureza e quo longe esses alcanam (onde inteiramente conveniente expressar-se teleologicamente), no acho aconselhvel usar uma linguagem teolgica; para assinalar muito cuidadosamente os limites para aquele tipo de conhecimento.

    Precisamente o mesmo princpio, de que tudo na cincia da natureza deve ser explicado naturalmente, assinala ao mesmo tempo os limites da mesma. [179] De fato, chegou-se a seus limites extremos quando se faz uso do ltimo entre todos os princpios explicativos que ainda pode ser confirmado pela experincia. Onde esses terminam e se tem que comear com foras da matria que se inventa, segundo leis fabulosas e incapazes de quaisquer justificativas, a j se est alm da cincia da natureza, mesmo que sempre se nomeiem coisas naturais como causas, ao mesmo tempo, porm, atribuindo-lhes foras cuja existncia por nada pode ser provada e, inclusive, cuja possibilidade dificilmente pode ser conciliada com a razo. Visto que o conceito de um ser organizado j comporta em si que ele seja uma matria na qual tudo est relacionado entre si reciprocamente como fim e meio, e isso, inclusive, s pode ser pensado como um sistema das causas finais, por conseguinte, a possibilidade do mesmo, ao menos para a razo humana, permite apenas um modo de explicao teleolgico, mas de maneira alguma um modo de explicao fsico-mecnico: assim, na fsica, no se pode informar de onde, pois originalmente provm toda organizao. A resposta

    consistiu ainda de vrias pessoas (de ambos os sexos), as quais porm eram todas similares, ento eu posso tanto derivar precisamente os homens de hoje de um nico par, como de vrios do mesmo. O Sr. F. suspeitava que eu queria afirmar o ltimo como um Faktum e na verdade por causa de uma autoridade; s que isso apenas a ideia que inteira e naturalmente resulta da teoria. No que, porm, diz respeito dificuldade de que o gnero humano, com seu incio a partir de um par nico, dificilmente estaria seguro por causa dos animais ferozes, isso no pode causar-lhe nenhum particular incmodo. Pois sua terra todo-criadora podia ter criado os mesmos s depois dos homens. (K).

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    a essa questo, caso, alis, ela nos seja acessvel, evidentemente ficaria fora da cincia da natureza, na metafsica. De minha parte, eu derivo toda organizao do ser orgnico (por gerao) e formas posteriores (desse tipo de coisas da natureza) segundo leis do desenvolvimento gradual de disposies originais (as mesmas que frequentemente se deixam encontrar nas transplantaes das plantas) e que foram encontradas na organizao de seu tronco. Como esse mesmo tronco se originou um problema que fica alm dos limites de toda fsica possvel ao homem, no interior da qual eu acreditei ter que me manter.

    Assim, nada receio de um tribunal da inquisio pelo sistema do Sr. F. (pois isso seria aqui exatamente como arrogar-se uma jurisdio fora de seu domnio), tambm, em caso de necessidade, voto por um jri filosfico (p. 166) apenas de pesquisadores da natureza e, todavia, mal creio que sua sentena possa resultar-lhe favorvel. A terra em parto, (p. 80) que de seu tenro seio maternal fecundado pela lama do mar, deixou surgir animais e plantas, sem gerao a partir de seus iguais, criou, nisso fundadas, as geraes locais de espcies orgnicas, ento, a frica e seus homens (os Negros), a sia e os seus (todos os demais) (p. 158), o parentesco de tudo da derivado, em uma imperceptvel gradao desde o homem baleia (p. 77) e ainda mais para baixo (presumivelmente at os musgos e liquens, [180] no simplesmente num sistema de comparao, mas num sistema de procriao a partir de um tronco comum) em contnua cadeia natural19 de seres organizados isso, de fato, no faria que o investigador da natureza perante tal recuasse estremecido, como que perante um monstro (p. 75), (porque um jogo com o qual muitos uma vez se divertiram, do qual porm logo desistem, pois nada se consegue com isso), ele, contudo, seria afugentado da, ao considerar que com isso desapercebidamente se extravia do solo frtil da investigao da natureza para o deserto da metafsica. Alm disso, conheo ainda um medo, no (p.75) precisamente afeminado, a saber, recuar de medo frente a tudo o que desprende a razo de seus primeiros princpios e lhe torna permitido divagar por quimeras ilimitadas. Talvez o Sr. F. tenha apenas desejado fazer um agrado a um hipermetafsico qualquer (pois h igualmente tais que no conhecem mesmo os conceitos elementares, que ainda se colocam a depreci-los e, todavia, intentam heroicamente conquistas) e dar matria para aquelas fantasias, para depois se divertir com isso.

    19 Sobre essa ideia, popularizada principalmente por Bonnet, merece ser lida a Memria do Sr. Prof. Blumenbach (Manual de histria natural, 1779, Prefcio, 7). Esse homem sagaz atribui tambm o impulso de formao, pelo qual ele levou muita luz para a doutrina da gerao, no matria inorgnica, mas apenas aos membros do ser organizado. (K).

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    A verdadeira metafsica conhece os limites da razo humana e, entre outros, esse seu defeito hereditrio que ela jamais pode renegar: que ela simplesmente no pode e no deve forjar foras fundamentais a priori (porque ento ela maquinaria conceitos meramente vazios), mas nada mais pode fazer do que reconduzir ao menor nmero possvel aqueles que a experincia lhe ensina (na medida em que apenas segundo a aparncia so diferentes, mas no fundo so idnticos) e procurar no mundo a devida fora fundamental, quando se trata da fsica, contudo, caso necessrio, quando porm se trata da metafsica (isto , de indicar o que no mais dependente) procur-la fora do mundo. Mas de uma fora fundamental (j que ns apenas a conhecemos pela relao de uma causa a um efeito) ns no podemos dar nenhum outro conceito nem descobrir para isso outra denominao do que aquela tomada do efeito e que expressa exatamente apenas essa relao20. [181]. Ora, o conceito de um ser organizado este: que ele seja um ser material possvel apenas mediante relao recproca, como fim e meio de tudo aquilo que nele est contido (como tambm todo anatomista, enquanto fisilogo, realmente parte desse conceito). Uma fora fundamental pela qual se produziria uma organizao deve, pois, ser pensada como uma causa que atua segundo fins e, na verdade, de tal modo que esses fins devam ser postos como fundamento da possibilidade do efeito. Entretanto, ns conhecemos semelhantes foras, segundo seu fundamento de determinao, apenas pela experincia em ns mesmos, isto , em nosso entendimento e vontade, como uma causa da possibilidade de certos produtos dispostos inteiramente segundo fins, a saber, as obras de arte. Entendimento e vontade so foras fundamentais em ns, das quais a ltima, na medida em que determinada pela primeira, uma faculdade de produzir algo conforme a uma ideia que chamada fim. Ns no devemos, porm, conceber nenhuma

    20 Por ex., no homem a imaginao um efeito que ns no reconhecemos como igual a outros efeitos do nimo. A fora que [181] diz respeito a isso s pode ento ser chamada de fora da imaginao (como fora fundamental). Do mesmo modo, sob o ttulo de foras motrizes, fora de repulso e atrao so foras fundamentais. Para a unidade da substncia, vrios acreditaram ter que admitir uma nica fora fundamental e at pensaram conhec-la ao qualific-la pelo ttulo comum de diversas foras fundamentais, por ex. a nica fora fundamental da alma seria a fora de representao do mundo; como se eu dissesse: a nica fora fundamental da matria a fora motriz, pois repulso e atrao esto ambas sob o conceito comum de movimento. Deseja-se, porm, saber se elas podem ser deduzidas dessa, o que impossvel. Pois os conceitos mais baixos jamais podem ser deduzidos dos superiores, segundo o que eles tm de diferente; e no que tange unidade da substncia, a qual parece que j comporta em seu conceito a unidade da fora fundamental, ento esse equvoco repousa sobre uma definio incorreta de fora. De fato, essa no o que contm o fundamento da realidade dos acidentes (isso a substncia), mas apenas a relao da substncia aos acidentes, na medida em que ela contm o fundamento de sua realidade. substncia, porm, podem muito bem ser atribudas diversas relaes (sem prejuzo de sua unidade). (K).

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    Pires, M.

    nova fora fundamental independentemente de toda experincia, isso seria o mesmo do que aquilo que atua em um ser de modo conforme a fins sem, contudo, ter o fundamento de determinao em uma ideia. Assim, o conceito da capacidade de um ser de, por si mesmo, atuar de modo conforme a fins, porm, sem fim e inteno que nele ou em sua causa repousasse como uma fora fundamental particular da qual a experincia no d nenhum exemplo seria complemente fictcio e vazio, isto , sem a menor garantia [182] de que, em geral, lhe pudesse corresponder qualquer objeto. Dessa maneira, quer a causa do ser organizado seja encontrada no mundo quer fora do mundo, ou ns temos que renunciar a toda determinao de sua causa ou pensarmos para isso um ser inteligente; no como se ns compreendssemos (como o acreditava o saudoso Mendelssohn, entre outros) que tal efeito fosse impossvel a partir de outra causa, mas, porque ns, para colocarmos como fundamento uma outra causa com excluso das causas finais, deveramos imaginar uma fora fundamental para a qual a razo no tem absolutamente nenhuma autorizao, porque ento no se lhe arrebataria nenhum esforo para explicar tudo o que ela quer e como ela quer.

    * * *

    E agora, a soma extrada de tudo isso. Os fins tm uma relao direta com a razo, seja ela estranha, seja a nossa prpria. Contudo, para situ-los tambm em uma razo estranha, ns temos que colocar a nossa prpria como fundamento, pelo menos como um anlogo da mesma; pois sem isso eles absolutamente no poderiam ser representados. Ora, os fins so ou fins da natureza ou os fins da liberdade. Que devam existir fins na natureza, nenhum homem pode compreender a priori, ao contrrio, ele pode muito bem compreender a priori que a deva existir uma vinculao de causas e efeitos. Por conseguinte, o uso do princpio teleolgico em relao natureza sempre empiricamente condicionado. Precisamente assim seria condicionado com os fins da liberdade, se os objetos do querer tivessem que ser previamente dados a esta atravs da natureza (em necessidades e inclinaes) enquanto fundamentos de determinao para, meramente pela comparao das mesmas entre si e com sua soma, determinar por meio da razo aquilo que ns nos erigimos como fins. S que a Crtica da razo prtica mostra que h princpios prticos puros, pelos quais a razo determinada a priori e que, portanto, indicam mesma o fim a priori. Se, pois, o uso do princpio teleolgico nas explicaes da natureza,

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    visto ele ser limitado s condies empricas, jamais pode, completamente e para todos os fins, indicar determinada e suficientemente a origem da ligao conforme a fins; logo, ao contrrio, preciso esperar isso de uma doutrina pura do fim (que no pode ser outra seno aquela da liberdade), cujo princpio contm a priori a relao de uma razo em geral totalidade de todos os fins e s pode ser prtica. No obstante, visto que uma teleologia prtica [183], isto , uma moral, determinada a tornar seus fins reais no mundo, ela no pode descurar daquela possibilidade no mesmo, tanto no que diz respeito s causas finais nele dadas, como tambm no que concerne adequao da causa suprema do mundo totalidade de todos os fins como efeito, por conseguinte, tanto de uma teleologia natural, como tambm da possibilidade de uma natureza em geral, isto , a filosofia transcendental, para assegurar realidade objetiva doutrina prtica pura do fim, no intuito da possibilidade do objeto na execuo, a saber, aquela do fim que prescreve realizar no mundo.

    Agora, ao considerar ambas, o autor das Cartas sobre a filosofia kantiana mostrou de maneira exemplar seu talento, sagacidade e modo de pensar digno de renome, ao empregar aquela de modo proveitoso para fins necessariamente universais; e conquanto seja demasiada exigncia ao esmerado editor da presente revista, o que parece ofender a discrio, eu no pude, todavia, faltar em pedir-lhe permisso para poder inserir em sua revista meu reconhecimento do mrito do autor annimo, e at pouco tempo por mim desconhecido, daquelas Cartas, pela causa comum de uma razo, tanto especulativa como prtica, conduzida por princpios slidos, na medida em que eu tenho me esforado por fazer uma contribuio para isso. O talento de uma apresentao elucidativa e, inclusive, elegante de doutrinas ridas e abstratas sem a perda de sua profundidade to escasso (ao menos modesto, para um velho) e igualmente to proveitosa, no quero dizer meramente por recomendao, mas mesmo pela clareza do exame, da inteligibilidade e do convencimento a vinculado, que me julgo obrigado a agradecer publicamente quele homem que de tal maneira completou meus trabalhos, aos quais no pude propiciar essa facilitao.

    Nesta ocasio, quero ainda apenas aludir sumariamente censura de supostas contradies descobertas numa obra de considervel envergadura, antes que se a tenha compreendido inteiramente bem. Elas desaparecem todas por si mesmas, se as consideramos em ligao com o resto. Na Leipz. gel. Zeitung, 1787, n. 94, aquilo que est na Crtica etc., edio de 1787, na Introduo p. 3, linha 7, apontado como em franca contradio com o que

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    Pires, M.

    se encontra logo depois, p. 5, linhas 1 e 2; pois, no primeiro lugar, eu disse: dos conhecimentos a priori chamam-se puros aqueles aos quais absolutamente [184] nada de emprico acrescentado e, como exemplo do contrrio, mencionei a proposio: toda alterao tem uma causa. Em compensao, na p. 5, mencionei precisamente essa proposio como exemplo de um conhecimento puro a priori, isto , de um tal que em nada dependente do emprico; duas significaes da palavra puro, das quais porm em toda obra eu tenho a ver somente com a ltima. Decerto, eu poderia ter evitado o mal-entendido atravs de um exemplo do primeiro tipo de proposies: todo contingente tem uma causa. Pois aqui absolutamente nada de emprico acrescentado. Mas quem pensa em todos os motivos para mal-entendidos? Precisamente isso me ocorreu com uma nota do prefcio aos Princpios metafsicos da cincia da natureza, p. XVI-XVII, j que eu, na verdade, dava por importante a deduo das categorias, mas no por extremamente necessria, embora, por fim, diligentemente o afirmasse na Crtica. V-se facilmente, porm, que l elas foram tomadas em considerao apenas com um intuito negativo, isto , para provar que somente por meio delas (sem intuio sensvel) absolutamente nenhum conhecimento das coisas se realiza, o que j fica claro ainda que apenas se leve em conta a exposio das categorias (meramente como funes lgicas aplicadas a objetos em geral). Destarte, porque ns fazemos um uso delas, na medida em que realmente pertencem ao conhecimento do objeto (da experincia), logo foi preciso ser particularmente provada a possibilidade de uma validade objetiva de tais conceitos a priori em relao ao emprico, com o que elas no seriam julgadas como desprovidas de significao ou tambm como originadas empiricamente; e este foi o intuito positivo, em vista do qual a deduo , sem dvida, imprescindivelmente necessria.

    Eu soube exatamente agora que o autor das Cartas acima citadas, o Sr. Conselheiro Reinhold, h pouco tempo professor de Filosofia em Jena; um acrscimo que s pode ser muito vantajoso para essa renomada universidade.

    I. Kant