Leitores Meio Rural

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Boa tese sobre os leitores do meio rural.

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    013 RESUMO

    O artigo discute questes relativas prtica de leitura de seis leitores assduos oriundos do meio rural, dando nfase anlise dos acervos particulares e aos meios e modos de ler. A abordagem que se estabelece advm do resultado de uma pesquisa realizada com base nos pressupostos tericos vinculados histria da leitura e nas proposies do historiador Roger Chartier, e aos conceitos da sociologia da leitura e da cultura discutidos por Bernard Lahire. Atravs da anlise dos acervos particulares, classificados a partir das esferas de circulao social, identificaram-se os temas de maior interesse dos leitores, assim como modos de ler que revelam prticas de leituras silenciosas e extensivas.

    HBITO DE LEITURA MEIO RURAL SOCIOLOGIA DA LEITURA

    aCerVo

    PRTICAS RURAIS DE LEITURA: DOS ACERVOS AOS MODOS DE LERLISIAnE SIAS MAnkE

    OutrOs temas

    Este texto resultado

    da tese de doutorado

    defendida no PPGE/FAE

    UFPel, sob a orientao da

    Profa. Eliane Peres, com o

    titulo: Histria e Sociologia das Prticas de leitura: a trajetria de seis leitores

    oriundos do meio rural.

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    RURAL PRACTICES OF READInG: FROM COLLECTIOnS TO MODES OF READInG

    ABSTRACT

    This article discusses issues related to the reading practice of six assiduous readers coming from rural areas; emphasis is given to the analysis of private collections and the means and ways of reading. The approach derives from the results of a survey based on theoretical assumptions related to the history of reading and the propositions by historian Roger Chartier, and the concepts of the sociology of reading and culture discussed by Bernard Lahire. Through the analysis of the private collections, classified according to the spheres of social circulation, the topics of greatest interest to the readers were identified, as well as modes of reading which revealed silent and extensive reading practices.

    READING HABITS RURAL AREAS SOCIOLOGY OF READING

    BooK CoLLeCTion

    PRCTICAS RURALES DE LECTURA: DE LOS ACERVOS A LOS MODOS DE LEER

    RESUMEN

    El artculo discute temas relativos a la prctica de lectura de seis lectores asiduos oriundos del medio rural, dando nfasis al anlisis de los acervos particulares y a los medios y modos de leer. El abordaje que se establece proviene del resultado de una investigacin realizada en base a las presuposiciones tericas vinculadas a la historia de la lectura y en las proposiciones del historiador Roger Chartier, as como a los conceptos de la sociologa de la lectura y la cultura discutidos por Bernard Lahire. A travs del anlisis de los acervos particulares, clasificados a partir de las esferas de circulacin social, se identificaron los temas de mayor inters de los lectores, as como modos de leer que revelan prcticas de lecturas silenciosas y extensivas.

    HBITO DE LECTURA ZONA RURAL SOCIOLOGA DE LA LECTURA

    CoLeCCin

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    ACuLTura esCriTa esT PresenTe no cotidiano da sociedade grafocntrica, e uma prtica recorrente e consolidada entre alguns grupos sociais ou em determinados contextos geogrficos. Os estudos que tratam da aquisio ou do uso da leitura e da escrita esto vinculados, na maioria das vezes, s prticas escolares ou cultura urbana, nas quais as relaes sociais e as atividades profissionais exigem nvel mais elevado de letramento dos indivduos. Dessa forma, por vezes, pode-se considerar a inexistncia ou a rarefao da cultura escrita em outros contextos sociais, como o rural. Diante desse fato, algumas questes podem ser colocadas: qual a presena da leitura no meio rural? Que relao os indivduos vinculados a esses lo-cais estabelecem com a leitura? Se leem, o que leem e como o fazem? Este artigo pretende dar visibilidade s prticas de leitura existentes no meio rural, ao analisar a trajetria individual de seis leitores assduos.

    Esse tema discutido a partir dos resultados de uma pesquisa re-alizada que tinha como objetivo a anlise da trajetria individual de seis leitores assduos1 que viveram grande parte de suas vidas em comunida-des rurais, onde estabeleceram as primeiras relaes com a cultura escrita e incorporaram a disposio leitora. Os seis atores analisados residem em municpios do sul do Estado do Rio Grande do Sul, quatro homens e duas mulheres: Antonio, Nei, Henrique, Ismael, Ondina e Tecla.2 Os leitores em evidncia nasceram entre os anos de 1916 e 1936, tendo cursado de trs a cinco anos a escola primria, com exceo de Ismael, que no frequentou a escola formal, e de Nei, que cursou o secundrio. Todos so oriundos de famlias de agricultores, descendentes de imigrantes europeus, que durante a vida profissional trabalharam em atividades rurais com mo

    1Caracterizam-se como

    leitores assduos

    aqueles indivduos que

    leem constantemente e intensamente com o

    intuito de se instrurem

    ou por prazer de ler.

    2Optou-se por utilizar

    apenas o primeiro nome

    dos atores e no divulgar

    os locais de residncia,

    de modo a preservar

    as identidades deles.

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    de obra familiar, estabelecendo significativo vnculo com o meio rural.

    Diante das questes que se colocam sobre as prticas de leitura, busca-se

    analisar aqui, com mais nfase, a constituio dos acervos particulares, os

    meios e modos de ler desses atores. Para tanto, os pressupostos tericos

    que nortearam a investigao esto vinculados aos estudos da histria da

    leitura e aos conceitos da sociologia da leitura e da cultura, com o suporte

    terico de autores como Bernard Lahire e Roger Chartier.

    Conforme ensina Chartier (2001), para alm de vincular os obje-

    tos e as prticas aos grupos sociais a que pertencem, pertinente com-

    preender a utilizao e o consumo que esses grupos fazem dos impressos.

    Na pesquisa realizada, a partir da trajetria dos leitores em evidncia, foi

    possvel esboar uma imagem sobre as prticas de leitura no mundo so-

    cial, evidenciando o leitor como indivduo singular no campo social, per-

    meado por relaes de sociabilidade que o constituem. Nessa investigao

    em escala individual o indivduo ganha espao e representatividade como

    sujeito nico, porm, vinculado a um determinado grupo social, o que

    possibilita responder a interrogaes do dia a dia, leigas, mas essenciais,

    quanto vida dos indivduos em sociedade (LAHIRE, 2005, p. 36).

    O grupo de leitores analisados foi localizado a partir do que se

    denominou redes de contato. Assim, foi contatado um nmero superior

    a 20 leitores, dos quais 14 foram efetivamente entrevistados. Contudo,

    diante das exigncias metodolgicas que envolvem uma pesquisa em es-

    cala individual, na qual os atores devem ser investigados profundamen-

    te, de modo a apreender a pluralidade interna dos indivduos singulares,

    observou-se a necessidade de diminuir o nmero de leitores pesquisados.

    Dessa forma, o processo de seleo dos leitores ficou condicionado inicial-

    mente disponibilidade e interesse pessoal destes, e disposio de fa-

    lar sobre os acontecimentos socioculturais vivenciados e, especialmente,

    sobre suas prticas de leitura. Esse um aspecto bastante importante no

    processo de seleo do grupo investigado por se tratar de um estudo que

    busca confidncias dos leitores sobre suas leituras. Verificada a dispo-

    nibilidade e disposio dos atores, optou-se por trabalhar com um grupo

    de seis leitores, aparentemente mais homogneo, para que se pudesse ter

    controle de variveis como idade, origem social, perodo e nvel de esco-

    larizao, e ento vislumbrar a unicidade/pluralidade de cada indivduo

    social. Contudo, diante da anlise das seis trajetrias sociais, percebeu-se

    que, mesmo tendo no social desdobrado um grupo homogneo, os ato-

    res possuem dobraduras singulares decorrentes das diferentes formas

    de socializao (LAHIRE, 2002).

    Para apreender essa realidade social interiorizada no indivduo

    singular, conforme Lahire (2002), necessria uma srie de informaes

    que precisam ser comparadas e cruzadas sobre um mesmo ator. Para tan-

    to, a anlise ocorreu no sentido vertical, ou seja, no cruzamento de di-

    versos dados que correspondem trajetria de um mesmo indivduo. As

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    fontes orais se apresentaram como o principal aporte metodolgico para

    a coleta de dados; foram realizadas 30 entrevistas com os seis atores, defi-

    nidas como entrevistas em profundidade, ou seja, longos depoimentos

    nos quais eles podiam falar livremente sobre suas trajetrias de vida e a

    relao com a leitura. Alm das entrevistas, outros documentos se soma-

    ram aos materiais empricos, como notas de campo (BOGDAN; BIKLEN,

    1994), o registro dos livros que compem o acervo particular dos depo-

    entes, alm de dedicatrias escritas nos livros, inventrios, cartas, fotos

    e textos redigidos pelos prprios leitores sobre suas leituras. Esses docu-

    mentos, na maioria dos casos, eram apresentados como forma de ilustrar

    o que estava sendo narrado.

    O registro dos livros componentes do acervo particular de cada

    um dos entrevistados foi feito a partir do ttulo e dos principais dados bi-

    bliogrficos dos exemplares. Dtrez (2004) diz que a classificao de gne-

    ros literrios depende da experincia pessoal de leitura de cada indivduo

    e sugere que a coleta de dados seja realizada a partir do ttulo das obras:

    la pregunta por los ttulos no excluye en absoluto un anlisis por gne-

    ros. El conjunto de corpus de ttulos fue codificado por gnero a posterio-

    ri (p. 100). Essa foi a postura assumida na pesquisa ao se tratar da anlise

    dos acervos, ou seja, aps o registro dos acervos realizou-se a classificao

    a partir das esferas de circulao social.

    Para a anlise dos dados levou-se em conta o alerta de Lahire (2004)

    em relao ao cuidado que se deve ter para no homogeneizar contextos

    heterogneos, buscando considerar as singularidades dos princpios de

    socializao nos diferentes perodos de uma trajetria. Assim, atentou-

    -se s variaes e permanncias de modo a apreender as dissonncias e

    contradies que os depoimentos apresentavam, mesmo observando que,

    muitas vezes, tais aspectos se colocam de maneiras quase imperceptveis

    ao entrevistado, que, normalmente, procura manter um discurso coeren-

    te sobre sua trajetria social.

    AS PREFERNCIAS LITERRIAS NA COMPOSIO DOS ACERVOS PARTICULARESConforme Darnton (1995, p. 152), o acervo de uma biblioteca particular

    pode identificar o perfil de um leitor, mesmo que os livros possudos no

    correspondam diretamente aos livros lidos, ou mesmo que muitos livros

    lidos no pertenam s bibliotecas particulares. Os leitores podem possuir

    livros que nunca leram, ou mesmo terem lido livros que no possuem,

    considerando as redes de socializao estabelecidas diante do emprsti-

    mo dos materiais escritos. No caso dos leitores analisados, pde-se obser-

    var que vrios livros foram presenteados por amigos e familiares, fato

    que refora a representao desses enquanto leitores assduos entre as

    pessoas com quem convivem, por serem merecedores de tal presente.

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    Inicialmente, com a anlise dos acervos particulares, considera-se poss-

    vel mapear os temas pelos quais os leitores apresentam maior interesse

    e assim ligar o qu com o quem da leitura (DARNTON, 1995, p. 152).

    Contudo, quando ainda se pode contar com os depoimentos sobre a rela-

    o que o leitor estabelece com o seu acervo, a possibilidade de delinear

    os modos de ler torna-se ainda maior.

    Adentrar os espaos nos quais os acervos particulares eram arma-

    zenados exigiu pacincia e, especialmente, respeito a reservas e restries

    dos entrevistados. Na maioria dos casos, os acervos estavam guardados no

    quarto, em gavetas da cmoda ou no guarda-roupa. O registro das obras,

    revistas e jornais que compunham os acervos foi realizado normalmente

    a partir da terceira entrevista realizada com cada depoente, quando uma

    relao de confiana comeava a ser estabelecida. Assim, aps o registro

    dos livros que cada leitor possua, estes foram classificados a partir das es-

    feras de circulao social, tornando possvel vislumbrar suas preferncias

    literrias, mesmo diante da imponderabilidade dos fatores que envolvem

    tal classificao, devido complexa categorizao relacionada aos gne-

    ros literrios.

    O socilogo da leitura Donnat (2004), a esse respeito, questiona:

    Como clasificar los libros? Qu criterio utilizar para definir los gneros?

    Esta cuestin de la categorizacin de los gneros [...] es particularmente

    difcil en el caso de los libros, ya que no existe um verdadeiro consen-

    so para la nomenclatura (p. 70). Isso ocorre, segundo o autor, porque

    o reconhecimento de um gnero no uma propriedade intrnseca e

    atemporal, sendo o estatuto dos gneros varivel. Conforme Marcuschi

    (2002, p.30), os gneros no so entidades naturais como as borboletas,

    as pedras, os rios e as estrelas, mas so artefatos culturais construdos

    historicamente pelo ser humano. Em outras palavras, os gneros so fe-

    nmenos scio-histricos e culturalmente sensveis que resistem a uma

    classificao precisa e estvel. Marcuschi (2002) adota a expresso do-

    mnios de discurso, utilizada por Mikhail Bakhtin, para designar uma

    esfera da atividade humana. Esses domnios propiciam discursos bastante

    especficos que podem ser compreendidos como jurdicos, jornalsticos,

    religiosos, entre outros. As esferas da atividade humana ou esferas de cir-

    culao social no abrangem um gnero em particular, mas do origem a

    vrios gneros que lhes so prprios enquanto prticas ou rotinas comu-nicativas institucionalizadas (MARCUSCHI, 2002, p. 24).

    A classificao dos acervos particulares revela os temas de maior

    interesse dos leitores investigados, que esto vinculados, na maioria das

    vezes, a um processo de reconstruo de suas identidades, como se obser-

    va na preferncia literria de Henrique, um dos seis leitores. Henrique

    um trabalhador rural das mos calejadas pela enxada, conforme suas

    palavras, um leitor que, ao olhar para o acervo de livros que possui, se

    orgulha da relao que estabeleceu com a cultura escrita, transmitida

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    tambm aos seus filhos. A pouca escolarizao (terceiro ano primrio),

    devido ausncia de escolas que permitissem dar sequncia aos estudos

    no meio rural, algo lamentado por Henrique. Ele se refere ainda s di-

    ficuldades de acesso aos impressos na zona rural. Contudo, considera ter

    superado tais dificuldades ao valorizar cotidianamente a prtica da leitura

    e da escrita no contexto familiar como algo indispensvel para a forma-

    o humana.

    O acervo de Henrique composto por 35 livros, conforme relacio-

    nado no Quadro 1.

    QUADRO 1

    aCerVo ParTiCuLar de Henrique

    ESFERA DE CIRCULAO SOCIAL

    NMERO DE LiVros

    Literria 14

    Histrica 11

    Poltica 4

    Religiosa 3

    Didtica 3

    A esfera mais presente no seu acervo a literria, composta por

    obras que apresentam, em sua maioria, enredos com temas histricos,

    seguida pelos ttulos da esfera histrica. Nessa relao, encontram-se

    vrios livros sobre os assuntos de mais nfase em seus relatos, como a

    IIGuerraMundial e o governo de Getlio Vargas. Henrique tem interesse

    especial por esses assuntos por ter sido convocado a servir o Exrcito du-

    rante a Guerra e ser partidrio de Getlio Vargas. No entanto, ele parece

    no fazer distino entre os gneros literrios lidos e, por vezes, demons-

    tra compreender os livros somente pelo contedo histrico. Por exemplo,

    ao se referir ao exemplar O homem que matou Getlio Vargas, de J Soares,

    menciona ter encontrado um livro que conta outra histria sobre a morte

    do personagem, sugerindo que essa poderia ser a verso verdadeira da

    histria, sem considerar o carter literrio da obra.

    Para alm dos livros listados, outros impressos foram observa-

    dos na casa de Henrique. As filhas solteiras, que tambm so leitoras,

    mesmo se colocando de forma muito reservada e no se dispondo a fa-

    lar sobre suas prticas, durante uma das entrevistas decidiram mostrar

    alguns dos livros que possuem. Com isso, descobriram-se outros espaos

    da casa que abrigavam materiais escritos. Alm dos livros das filhas de

    Henrique, havia algumas revistas, como, por exemplo, exemplares da

    Veja, Isto e Caras. Em relao a estas, Henrique no deixou de mencio-

    nar: Eu gosto de histria e de tudo que tipo de novidade, isso tudo eu

    prezo. Contudo, embora demonstre interesse, nenhuma de suas falas

    remete a essas leituras, o que parece indicar que as revistas so lidas

    especialmente por suas filhas.

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    A famlia nunca adquiriu jornais ou revistas por assinatura; a com-

    pra desses impressos ocorre quando algum se desloca para a zona urba-

    na do municpio de Pelotas e os compra de forma avulsa, embora seja um

    meio de informao muito valorizado por Henrique: O jornal traz aquilo

    na hora, o livro descreve, mas no como est no jornal. O jornal uma

    grande coisa. Pra mim, ento, que sou curioso por novidade.... Ao falar so-

    bre o acesso aos materiais escritos, Henrique enfatizou as dificuldades de

    aquisio destes na zona rural, citando o exemplo do jornal que, devido

    distncia geogrfica de sua propriedade rural, nunca foi possvel ter uma

    assinatura. Contou ainda que familiares ou amigos, sempre que vo visit-

    -lo, levam jornais de semanas anteriores, que ele l mesmo com atraso.

    O jornal tambm compe o rol de leituras realizadas por Nei, mo-

    rador em outra localidade rural. Ele afirma que, apesar das dificuldades

    de acesso, sempre foi leitor assduo desses peridicos, prtica vivenciada

    desde a infncia e que se tornou indispensvel em sua vida. Nei relem-

    brou que, aos 5 anos de idade, j lia os jornais assinados por seu pai, que

    por longo perodo recebeu o Correio do Sul e O Libertador3: O primeiro

    jornal que ele assinou, at era em sociedade com um cunhado dele, era

    de Bag, o Correio do Sul. Depois meu pai assinou O Libertador, que era de

    Pelotas, s que era um rgo do Partido, tinha o noticirio geral, mas era

    do Partido. Agora, pra chegar aqui no interior.... De acordo com o que

    relatou, os exemplares que seu pai assinava percorriam um longo cami-

    nho at chegar ao destino final: De Bag vinha de trem pra Pelotas, de l

    distribuam para Canguu, vinha numa carruagem chamada diligncia,

    uma carruagem de quatro rodas, ali o encarregado classificava e distri-

    bua. Depois algum ia buscar ou mandavam por algum. Dessa forma,

    a leitura do jornal, por vezes, poderia ser embaraosa diante das vrias

    edies que chegavam ao mesmo tempo, como explicou Nei:

    ...o jornal era dirio, mas pra chegar nas mos aqui no interior s

    quando a gente ia a Canguu, [...] s a cavalo, ento quando ia,

    vinha uma pilha de jornal. Para a gente ler era meio complicado, a

    gente queria ver as ltimas notcias, ento iam ficando aquelas ou-

    tras, que sempre tinha muita coisa interessante. Aquela poca no

    era fcil, as notcias quando chegavam aqui j se estava interessan-

    do nas outras mais novas, j se olhava as mais novas.

    No momento em que as entrevistas foram realizadas, Nei assinava

    o jornal Dirio Popular, que era entregue diariamente na clnica veterin-

    ria de um sobrinho, na cidade de Canguu, e encaminhado sua residn-

    cia; os demais jornais eram comprados esporadicamente. Os textos prove-

    nientes de jornais eram, para ele, uma fonte de leitura com caractersticas

    e benefcios nicos, como revelou:

    3O Correio do Sul foi um jornal dirio, editado em

    Bag (RS), que circulou de

    1914 a 2008. (Disponvel

    em: ).

    O Libertador iniciou suas atividades em 1924, na

    cidade de Pelotas (RS);

    era um jornal de oposio,

    vinculado ao partido Aliana

    Libertadora, e teve suas

    atividades encerradas em

    1937, quando o Estado

    novo aboliu os partidos

    polticos e decretou o

    fechamento de vrios jornais

    partidrios (LOnER, 1998).

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    ...considero o jornal uma das maiores fontes de instruo, porque

    uma leitura diversificada, porque hoje, com a globalizao, a gente

    tem que saber o que h em todo o mundo, apesar de ter outros

    meios de comunicao. Agora o jornal tem uma vantagem, quem

    assina o jornal est a par das modificaes da ortografia.

    Alm do jornal, ele assinou durante alguns anos as revistas Noite

    Ilustrada, Cruzeiro e Selees Readers Digest.

    Em relao ao acervo de livros, a esfera de maior predominncia

    a histrica. Temas relacionados histria local e regional so os de maior

    evidncia tanto no acervo quanto em suas narrativas, como apresenta o

    Quadro 2.

    QUADRO 2

    aCerVo ParTiCuLar de nei

    ESFERA DE CIRCULAO SOCIAL

    NMERO DE LiVros

    Histrica 5

    Literria 3

    Legislativa 2

    Sociolgica 1

    Os livros da esfera histrica eram frequentemente comentados

    por Nei durante as entrevistas realizadas. Ao falar sobre a histria local

    referiu-se obra Canguu: reencontro com a memria, de Claudio Moreira

    Bento, afirmando que naquele livro muitas das histrias que ele conhecia

    s de ouvir falar haviam sido registradas e, assim, conservadas. Nei con-

    tou que um dos livros sobre histria do Brasil ganhou de presente de um

    neto, dias antes da terceira entrevista, e estava lendo naquele momen-

    to. No entanto, fez referncia a outras obras que no foram localizadas

    entre os materiais disponibilizados, pois, segundo ele, lia muitos livros

    emprestados, assim como havia emprestado alguns exemplares que no

    lhe foram devolvidos.

    Ao analisar o acervo particular de Nei, composto por livros, re-

    vistas e jornais, paralelamente aos seus depoimentos, constata-se a di-

    versidade de temas e suportes por ele utilizados. O reduzido nmero de

    materiais escritos encontrados em sua residncia no revela sua ampla

    relao com a cultura escrita, evidenciada durante as entrevistas, mas

    mostra que a prtica de leitura sempre esteve presente em sua vida; en-

    tre as obras encontradas h edies de 1929, 1947 e 1960. No existem

    perodos em que a disposio foi colocada em estado de viglia (LAHIRE,

    2002), ou reativada por determinado contexto, o que confirmado em

    seus depoimentos, especialmente na frase: Vivia de livro na mo, agora

    envelheci, fui envelhecendo e lendo. O acervo particular de Nei corrobo-

    ra o argumento de Darnton (1995) de que o nmero de livros presentes

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    em uma biblioteca particular pode no corresponder diretamente a todos

    os livros lidos por um indivduo.

    Antonio, um dos leitores analisados, reside em uma casa cuida-

    dosamente decorada com objetos que fazem do passado uma lembrana

    constante. Ao lado de sua esposa, ocupa-se atualmente de preservar e res-

    gatar a histria familiar e comunitria atravs de objetos, fotos e livros.

    Para ele, o principal suporte de leitura so os livros, tendo sido registrados

    131 em seu acervo particular, como relacionado no Quadro 3.

    QUADRO 3

    aCerVo ParTiCuLar de anTonio

    ESFERA DE CIRCULAO SOCIAL

    NMERO DE LiVros

    Histrica 75

    Didtica 15

    Literria 24

    Jornalstica 2

    Religiosa 2

    Livros em lngua Alem 13

    Antonio diz ser um indivduo que busca conhecer a histria, em

    especial a histria da imigrao alem no sul do Estado do Rio Grande do

    Sul. Em seus depoimentos, ele deixa evidente que a histria a principal

    motivao para suas leituras, o que se confirma na anlise de seu acervo

    particular. A esfera histrica predominante entre seus livros; alm dis-

    so, os livros da esfera didtica em grande parte tambm correspondem

    a temticas histricas. Outro aspecto que caracteriza esse conjunto de

    ttulos so os anos de edio bastante antigos; vrios livros datam da pri-

    meira metade do sculo XX. Antonio no soube precisar a procedncia

    da maioria das obras, dizendo apenas que as comprou ou ganhou, mas

    lembra de dois livros que, segundo conta, fizeram parte de sua infncia e

    adolescncia. Um deles Manuscrito brasileiro, de 1935, utilizado na escola,

    que aborda a histria do Brasil, especialmente a partir da biografia de

    grandes nomes, como Pedro lvares Cabral e Tom de Souza, por exem-

    plo. O outro A juventude no Estado Novo, composto de textos extrados de

    discursos e entrevistas do ento presidente Getlio Vargas que exaltam

    o nacionalismo brasileiro. Ele ganhou esse livro em um evento de que

    participou em Porto Alegre, durante as festividades da Semana da Ptria,

    organizado pelo Estado Novo, que tinha por objetivo propagar os prin-

    cpios do nacionalismo, ou ainda, como disse, ensinar a ser brasileiro.

    Os 13 livros em lngua alem de seu acerco lhe foram presentea-

    dos por parentes e pessoas herdeiras das obras que desconheciam o idio-

    ma. Ao se referir a esse conjunto de livros, afirmou orgulhoso saber ler

    alemo, inclusive em letra gtica: Aprendi aqui na escola So Domingos,

    estudei at o terceiro livro em letra gtica, eu sei ler ainda, quando se

    soletrava letra por letra. Ele possui um significativo nmero de fotos que

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    retratam vrias geraes de sua famlia e de famlias da localidade onde

    reside e uma considervel coleo de documentos inventrios, passapor-

    tes, mapas territoriais, entre outros , alm de vrios objetos que reme-

    tem a prticas socioculturais vivenciadas por ele, demonstrando grande

    preocupao em salvaguardar a histria familiar e local. Bosi, retomando

    Halbwachs, refere-se funo social do indivduo que lembra:

    H um momento em que o homem maduro deixa de ser um mem-

    bro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente

    do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entan-

    to, uma funo prpria: a de lembrar. A de ser a memria da famlia,

    do grupo, da instituio, da sociedade. (BOSI, 1994, p. 63)

    Antonio ocupa-se atualmente de desempenhar esse papel social

    de lembrar, de guardar objetos e documentos histricos, de se voltar ao

    passado a partir da leitura, motivado em apreender o passado. Assim, a

    anlise de seu acervo e de seus depoimentos converge; suas preferncias

    de leitura esto voltadas especialmente a assuntos que lhe permitem revi-

    ver acontecimentos e reconstruir suas memrias.

    No caso de Ismael, que afirmava, sempre que se referia sua con-

    dio de leitor, ser um quase analfabeto, a leitura e a escrita ocupam

    grande parte do seu tempo atualmente. Ele no frequentou a escola for-

    mal e diz, com certa tristeza, no saber o que significa ir escola, lamen-

    tando no ter entre seus documentos nenhum boletim escolar. Devido

    ausncia de escolas no seu local de moradia, ele foi alfabetizado por uma

    professora leiga (sem formao pedaggica para o exerccio da profisso),

    que durante um ano morou na casa de seus pais com o objetivo de alfabe-

    tizar as crianas da vizinhana. Seu acervo, organizado aps a aposenta-

    doria, composto por 17 obras, conforme o Quadro 4.

    QUADRO 4

    ACERVO PARTICULAR DE ISMAEL

    ESFERA DE CIRCULAO SOCIAL

    NMERO DE LiVros

    Histrica 8

    Didtica 7

    Literria 1

    Agrcola 1

    Ismael afirma que as leituras de sua preferncia so aquelas

    relacionadas a temas histricos; entre os livros predominam assuntos re-

    ferentes histria do Rio Grande do Sul e de municpios da sua regio.

    Os livros didticos de histria tambm so bastante utilizados por Ismael

    para suas leitura e escritas, pois atravs deles faz anotaes e escreve re-

    sumos sobre diferentes assuntos. Mas fica evidente que ele leu mais do

    que os 17 livros que possui; seu conhecimento sobre os acontecimentos

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    histricos e geogrficos confirmam sua condio de leitor assduo. Como

    diz Chartier (2000, p. 159), debemos recordar que hay otros accesos al

    libro adems de la posesin privada; que los textos impresos no son todos

    libros ledos en el espacio privado. Alm dos livros, Ismael possui uma

    srie de documentos e fotocpias de textos de obras que lhe foram em-

    prestadas por algum tempo.

    Os livros de seu acervo, em grande parte, tm dedicatria, sobre-

    tudo os que lhe foram presenteados pelas filhas, netos, amigos e demais

    pessoas da famlia. Os presentes recebidos certamente expressam o que

    simbolicamente Ismael representa para as pessoas que convivem com ele.

    Isso pode ser percebido observando-se as temticas dos livros que ganha,

    que no variam substancialmente. Apesar do gosto de Ismael pela leitura,

    notou-se que ele no tem o hbito de comprar livros nem de assinar jor-

    nais ou revistas. Ao relatar que h algum tempo falou s filhas sobre seu

    desejo de ter um Atlas atualizado, deixou transparecer sua impossibilida-

    de de compr-lo por conta prpria. Esse fato pode ser atribudo, mesmo

    com ressalvas, ausncia de livrarias na zona urbana do municpio onde

    reside e distncia de um centro urbano maior. Entretanto, deve-se con-

    siderar a existncia de uma biblioteca pblica a algumas quadras da casa

    de Ismael, local que jamais foi visitado por ele. Quando questionado sobre

    suas possveis visitas biblioteca pblica, respondeu: No, no, eu sou

    um velho quase analfabeto!. Compreende-se com isso que sua condio

    de cidado no escolarizado faz com que no se sinta capaz para frequen-

    tar certos espaos prprios da cultura letrada, o que provavelmente tam-

    bm justifica o fato de Ismael no comprar seus prprios livros.

    Tecla, por sua vez, frequentou a escola at o quinto ano do prim-

    rio, tendo convivido desde a infncia com livros, revistas e jornais presen-

    tes na casa paterna. Atualmente, organiza seu acervo particular em trs

    grupos distintos: os livros que pertenceram ao seu pai, os de sua irm e os

    seus prprios. O conjunto de livros que eram de seu pai composto por

    25 obras, todas em lngua alem, e, segundo Tecla, so de literatura, reli-

    gio e at de histrias infantis tem, alguns em letra gtica. O acervo que

    pertenceu irm consiste de 12 ttulos, todos da esfera literria. Entre os

    que foram adquiridos por Tecla, existem diferentes esferas de circulao

    social, contudo, tambm predomina a literria, como mostra o Quadro 5.

    QUADRO 5

    aCerVo ParTiCuLar de TeCLa

    ESFERA DE CIRCULAO SOCIAL

    NMERO DE LiVros

    Literria 23

    Administrativa 3

    Religiosa 4

    Outros 4

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    As entrevistas realizadas com Tecla revelaram que, aps os 50

    anos de idade, quando ficou viva, ela voltou a ler com mais intensidade

    e assiduidade, como fazia quando morava na casa paterna. Assim, nos

    ltimos anos, teve a possibilidade de adquirir mais livros; 13 obras do seu

    acervo foram editadas entre 2002 e 2010, indicando, portanto, aquisies

    mais recentes. Esses livros no foram comprados de maneira convencio-

    nal, em livrarias, como ela esclarece: Sabe de onde eu tenho comprado?

    Do Avon [risos]. Agora ultimamente no tem vindo muito bom, o que vem

    mais de autoajuda. Tecla disse que comprar atravs do Catlogo Avon4

    uma forma de facilitar a compra, pois no precisa se deslocar at a cidade

    de Pelotas (RS) para adquirir um livro. Alm disso, o preo oferecido tam-

    bm motiva a aquisio: s vezes so bem baratos os livros do Avon. No

    municpio onde ela reside, mesmo no meio urbano no h livrarias, o que

    dificulta o acesso aos materiais escritos obriga a adotar outras estratgias

    de aquisio, como o caso da compra atravs do Catlogo Avon.

    Alm dos livros que possui, Tecla l os que retira na biblioteca

    do seu municpio, espao que passou a frequentar assiduamente aps a

    viuvez: Depois dos 50 anos que eu comecei a ir na biblioteca, eu sem-

    pre tirava alguma coisa. Em todas as entrevistas referiu-se Biblioteca

    Municipal5 como um lugar de muitas opes de leitura, que teria con-

    tribudo significativamente para o seu acesso a diferentes obras. Tecla

    parece ter encontrado ali um lugar de liberdade, de descobertas, um

    ponto de encontro com os livros lidos por prazer, por deleite. Para Petit

    (2008), a razo de ser das bibliotecas justamente permitir a cada um

    o acesso a seus direitos culturais, o acesso a um universo cultural mais

    amplo (p. 177).

    Alm dos livros, Tecla leitora do jornal Zero Hora e das revistas

    Veja e Selees. Segundo ela, essas so leituras atualizadas e indispensveis:

    Ns recebemos o jornal sbado e segunda, na tera vem a revista [Veja]

    e depois, uma vez por ms, vem a Selees. E quando chega o jornal eu

    no deixo, e o que eu mais gosto do caderno Donna.6 A leitura de jor-

    nal, a presena de revistas e livros no algo novo em sua trajetria. Ela

    mencionou que na infncia presenciava a ansiedade do pai ao aguardar

    a chegada do jornal impresso e a importncia dispensada a esse meio de

    informao. Tecla herdou no apenas o acervo de livros que pertenceu

    sua famlia, mas tambm a disposio para a prtica da leitura, para a bus-

    ca do conhecimento e exerccio da cidadania. Como afirma Lahire (2005,

    p.21), quando a socializao ou a instalao corporal dos hbitos tiver

    ocorrido de forma precoce, regular e intensa, maior ser a probabilidade

    de se ter uma disposio fortemente interiorizada. O relato de Tecla mos-

    tra que ela incorporou na casa paterna um estoque de disposies, se-

    gundo a expresso de Lahire (2002), que, embora tenha ficado em estado

    de viglia durante a vida de casada, encontrou contextos de atualizao e

    de reorganizao aps a viuvez.

    4A empresa Avon, conhecida

    por seus cosmticos

    vendidos de porta em porta,

    vem se destacando, nos

    ltimos anos, no segmento

    de venda de livros, atuando

    em regies onde o acesso

    aos livros praticamente no

    existe por outros meios.

    (Reportagem Exame Como a Avon se transformou

    numa mquina de vender...

    livros, 21/04/2011).

    5Trata-se da biblioteca de

    Canguu (RS), municpio

    com cerca de 53 mil

    habitantes. Conforme

    informaes fornecidas

    pela bibliotecria, ela est

    em funcionamento desde

    o ano de 1945. Atualmente,

    apresenta um acervo

    de aproximadamente 12

    mil volumes, mantidos e

    atualizados com verbas

    municipais e com o

    auxlio de programas

    do governo federal.

    6Donna um caderno

    especial dominical do

    jornal Zero Hora que trata de temas como beleza,

    moda, relacionamento,

    comportamento e sade.

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    Ondina, a outra participante da pesquisa, uma leitora da Bblia

    (O meu livro a Bblia, diz ela) que compreende a leitura como uma

    prtica de reverncia e f. Sua trajetria foi marcada pela religiosidade da

    famlia, pela submisso sogra aps o casamento e pelas duplas jornadas

    de trabalho, no lar e na lavoura. A leitura intensiva da Bblia comeou aps

    os 60 anos de idade, quando ficou impossibilitada de trabalhar devido a

    uma doena. Quando questionada sobre a leitura de outros gneros lite-

    rrios, afirmou: No, outro livro no, porque se eu quiser ler outra coisa

    eu arrumo, mas minha leitura da Bblia.

    Ondina possui um pequeno acervo de livros, composto por oito

    obras, todas da esfera religiosa, como livros de orao e de devoes

    dirias. Todos os volumes foram editados nos anos 2000, o que, segundo

    seus depoimentos, se justifica pela dificuldade que tinha anteriormente

    de acesso ao impresso. Mas tambm se observa que existe uma cultura

    do no guardar. Ela mesma disse que folhetos recebidos ou adquiridos

    na igreja com o tempo eram deixados de lado e se perdiam, revelando

    o hbito de no guardar ou de no reservar espao especfico na casa

    para a organizao dos materiais escritos, o que parece ainda ocorrer

    nos dias atuais. Contudo, sua primeira Bblia foi preservada mesmo de-

    pois de ter sido substituda, certamente por ser reconhecida como um

    livro diferenciado, por vezes no sendo considerado como um livro, mas

    como objeto sagrado.

    A primeira Bblia que Ondina ganhou em lngua portuguesa, visto

    que na casa paterna havia somente uma Bblia em lngua alem, foipre-

    sente de casamento do pastor que realizou a cerimnia. Em 2007, foi

    presenteada por sua filha com uma nova Bblia, editada em 2001 pela

    Sociedade Bblica do Brasil, com uma nova traduo atualizada para a lin-

    guagem de hoje. Essa a Bblia que Ondina l atualmente e que esteve em

    suas mos durante as entrevistas. A primeira Bblia, que foi lida por quatro

    vezes integralmente, somente foi mostrada durante a quinta entrevista.

    Percebeu-se depois que um dos motivos para essa reserva, mesmo diante

    do pedido para que a mostrasse, era o seu mau estado de conservao.

    Ela era guardada no fundo de um guarda-roupa, sem capa, com muitas

    dobras e com folhas amareladas, manchadas e soltas; sua materialida-

    de demonstrava o quanto havia sido manuseada. Como afirma Chartier

    (1994, p. 8), uma obra no existe fora de sua realidade fsica. No caso da

    Bblia de Ondina, seu uso irrestrito, dirio e intensivo se d a ver no estado

    de desgaste material de seu suporte.

    A prtica constante de leitura de Ondina ocorre de duas maneiras:

    atravs da leitura integral de todos os livros da Bblia e da releitura de al-

    guns livros eventualmente. Ela justifica essas duas prticas intensivas de

    leitura de forma diferente. Quanto leitura integral de toda a Bblia, diz

    que motivada unicamente pela f: porque eu tenho muita f, ento a

    minha religio ler a Bblia. [...] Me traz alegria, eu fico to feliz. Quando

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    eu estava ruim mesmo, a Bblia que me levantou. J em relao relei-

    tura de apenas alguns textos explicou que o propsito outro: Eu estou

    cortando pasto, estou capinando, estou trabalhando na lavora, e fico pen-

    sando o que li ontem. [...] Fico pensando como que foi, como que , a

    eu tenho que ler de novo. Desse modo, Ondina distingue o ato intensivo

    de ler motivado pela f, que se relaciona aos seus sentimentos mais nti-

    mos, da releitura de alguns textos, que ocorre de modo a relembrar ou a

    buscar um melhor entendimento sobre o que j havia sido lido.

    Os acervos particulares dos seis leitores participantes da pesqui-

    sa permitem visualizar, no conjunto das obras listadas, o perfil dos en-

    trevistados. As esferas de circulao social mais presentes entre os livros

    arrolados histrica, literria, didtica e, em especial, religiosa pos-

    sibilitam compreender as preferncias de leitura. Os assuntos de maior

    interesse de suas leituras referem-se a aspectos relacionados origem

    familiar, a acontecimentos que marcaram suas trajetrias, a fatos que

    correspondem histria regional ou local. So leituras de temas que

    permitem, como afirma Petit (2008, p. 78), pensar a prpria vida, com

    a ajuda de textos de fico ou de testemunhos que tocam no mais pro-

    fundo da experincia humana.

    Para Lahire (2002), so variados os fatores que produzem as pre-

    ferncias literrias dos leitores. Aspectos profissionais, sociais ou econ-

    micos no agem sozinhos, mas dependem do estoque de resumos de

    experincias incorporados (LAHIRE, 2002, p. 96), ou seja, da gama de

    situaes vivenciadas por cada ator que, somadas, produzem suas experi-

    ncias sociais.

    OS MODOS DE LER NA EXPERINCIA DOS INDIVDUOS LEITORESConforme Chartier (2001b), na anlise dos acervos preciso compreender

    a utilizao e o consumo que os grupos fazem dos impressos antes de

    vincul-los diretamente a determinados grupos sociais. Segundo o autor,

    necessrio acrescentar ao conhecimento da presena dos livros as ma-

    neiras de ler (2001, p. 79). Ao se referir s pesquisas relacionadas hist-

    ria das prticas de leitura da sociedade do Antigo Regime europeu, ele

    afirma que falta s enumeraes dos livros impressos ou possudos uma

    questo central, a dos usos, dos manuseios, das formas de apropriao

    dos materiais impressos (CHARTIER, 2001, p. 78). Assim, fundamental

    compreender que o ato de ler produz sentidos plurais e mveis que es-

    to relacionadas s maneiras de ler, coletivas ou individuais, herdadas

    ou inovadoras, ntimas ou pblicas e de protocolos de leitura deposita-

    dos no objeto lido, [...] em conformidade com os hbitos de seu tempo

    (CHARTIER, 2001, p. 78).

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    Em uma obra anterior (CHARTIER, 1994), o autor trata das mudan-

    as pelas quais passaram as maneiras de ler ao longo dos anos. Segundo

    ele, a primeira revoluo das prticas de leitura estaria relacionada mo-

    dalidade fsica e corporal do ato de ler que incide sobre a importncia

    decisiva da passagem de uma leitura necessariamente oralizada, indis-

    pensvel ao leitor para a compreenso do seu sentido, a uma leitura pos-

    sivelmente silenciosa e visual (p. 98). A passagem da leitura oral para a

    leitura silenciosa teria ocorrido durante a longa Idade Mdia, tornando-se

    prtica recorrente no sculo XIV entre a aristocracia leiga. Essa revoluo

    foi sucedida por uma segunda, relativa ao estilo de leitura, situada na

    segunda metade do sculo XVIII, na qual a leitura intensiva, limitada a

    um seleto nmero de textos, que so lidos e relidos, alterada por uma

    prtica de leitura extensiva, vida e veloz, que consome significativo n-

    mero de impressos.

    Contudo, com as revolues nas maneiras de ler, no houve a

    substituio de uma prtica pela outra, mas a ampliao de uma em rela-

    o outra, como esclarece Chartier (2001, p. 89): Valeria dizer que esse

    estilo antigo estava desaparecendo no curso do sculo XVIII e que existiu

    somente antes? Sem dvida que no, seria necessrio reinterpretar a opo-

    sio entre os dois modos de leitura.

    Os leitores analisados revelam, nas narrativas sobre suas prticas,

    que realizam a leitura de forma silenciosa e extensiva, com exceo de

    Ondina, a leitora da Bblia, que l intensivamente e de forma silenciosa.

    Para Nei a leitura silenciosa representa agilidade: Eu leio s com os olhos,

    tem pessoas que leem baixo pronunciando as palavras, a fica uma leitura

    que o sujeito l um poucadinho por dia. Nenhum deles fez qualquer

    meno a momentos de leitura coletiva em voz alta, realizada durante

    reunio familiar que corroborasse a representao da leitura enquanto

    prtica oralizada e coletiva prpria dos grupos camponeses, recorrente

    nos estudos sobre as prticas de leitura na sociedade antiga (CHARTIER,

    2001, p. 93).

    Mesmo para aqueles que cresceram em famlias em cujos pais

    tinham o hbito da leitura, como no caso de Tecla e Nei, a leitura no

    relembrada como uma prtica coletiva e oral. E eles prprios afirma-

    ram nunca terem lido em voz alta para os filhos. Henrique disse ter tido

    grande preocupao em relao ao ensino da cultura escrita para os

    seus 12 filhos. Em seus relatos, relembrou vrias vezes os momentos em

    que os filhos eram colocados sentados em volta da mesa para aprender:

    Enquanto a mulher fazia a janta, eu lecionava. Mesmo nessas oportu-

    nidades Henrique no lia para os filhos, mas apenas lhes ensinava a ler,

    escrever e fazer as quatro operaes. As leituras que realizava ocorriam de

    forma individual, para a sua prpria instruo: Ali eu bebia do conheci-

    mento para depois ensinar os filhos. Assim, a famlia apenas presenciava

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    a leitura como um exemplo de instruo a ser seguido, mas como prtica

    silenciosa e individual. Ondina, ao realizar a leitura da Bblia, nunca teve por hbito ler

    em voz alta para o marido, os filhos ou os netos: Sempre em silncio,

    no leio alto, sempre quietinho. No entanto, os ensinamentos bblicos

    so transmitidos para a famlia de forma oral: Muitas vezes eu explico

    tudo, mas as crianas no do muita ateno, eu j expliquei muitas vezes

    o livro de J, como aconteceu, como que aconteceu, para ele tambm

    [marido], mas a leitura em silncio.

    Para Chartier (2001, p. 84), essa leitura ouvida no distingue o

    ler do contar e alimenta-se dos mesmos textos escutados muitas vezes.

    Sendo assim, pode-se considerar que, no ato de contar as passagens bbli-

    cas a partir da leitura do texto impresso, Ondina estaria realizando no

    uma leitura oral, mas a oralizao da leitura. As maneiras de ler, porm,

    no se limitam a esses dois grandes modelos; h outros aspectos a se-

    rem analisados, como, por exemplo, os protocolos de leitura (CHARTIER,

    2001, p. 89). A leitura , portanto, uma prtica que envolve o corpo leitor

    que interage com o texto, que ocupa um espao, um horrio e exige de-

    terminada posio corporal.

    Goulemot (2001) fala do rito da leitura, da instituio do corpo

    que l. Ao longo dos anos, as prticas de leitura foram desenvolvidas em

    diferentes posies corporais e mediante alternados suportes tcnicos de

    auxlio a essa prtica (vela, lampio, abajur): Somos um corpo leitor que

    cansa ou fica sonolento, que boceja, experimenta dores, formigamentos,

    sofre de cibras (2001, p. 109). Os livros tambm determinam a posio

    e o lugar da leitura, por exemplo: Ler em pblico uma obra de filosofia

    ou um texto pornogrfico reconhecer, atravs da provocao, que tais

    livros constituem por si mesmos o espao de suas leituras (p. 109). Dessa

    forma, para o autor, o comportamento dos leitores tanto uma imposio

    quanto uma livre escolha e dessas atitudes leitoras que os sentidos so

    constitudos e empregados nos textos lidos.

    Os leitores analisados nesta pesquisa tambm relatam as altera-

    es pelas quais passaram seus modos de ler ao longo dos anos, em es-

    pecial em relao ao horrio destinado leitura. Henrique, por exemplo,

    disse que atualmente no tem hora nem local para ler, fazendo dos livros

    seu principal entretenimento, mas prefere ler durante o dia devido ilu-

    minao, sentado sombra de uma rvore nos meses de vero. Diferente

    do tempo em que tinha vida profissional, quando s tinha disponibilidade

    noite e costumava ler mesa, luz de lampio.

    Para Antonio e Ismael, aps a aposentadoria, o principal entrete-

    nimento so os livros. Em seus relatos, eles no mencionaram um lugar

    ou posio de preferncia para realizar suas leituras; apenas lembraram

    que durante a vida profissional o perodo da noite era o que destinavam

    para esta prtica. E se referiram a posturas e lugares que acreditam no

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    serem condizentes com a atitude de um leitor. Por exemplo, ambos decla-

    raram que nunca liam sentados na cama. Como afirma Darnton (1995),

    alm das atitudes prprias s geraes, h uma disposio pessoal de cada

    um em relao posio adequada leitura.

    Nos depoimentos de Tecla, a figura do pai leitor sempre lembra-

    da, inclusive em relao postura corporal que assumia ao ler. Segundo

    contou, seu pai sentava-se aps o trabalho rural, cobria as pernas com

    uma manta e, assim, deleitava-se com seus livros. Em duas das entrevistas

    realizadas, Tecla estava sentada com as pernas cobertas por uma manta

    e em uma dessas ocasies lembrou: Assim como estou, com os ps tapa-

    dos, ele tapava, sentava e ali ele lia. Essa era tambm uma das posturas

    preferidas para fazer suas leituras, sentada no sof com as pernas cobertas

    por uma manta. Observa-se que os modos de ler presentes na casa paterna

    foram incorporados e conservados, inclusive no que diz respeito ao hor-

    rio destinado leitura. Durante a infncia e a adolescncia Tecla apren-

    deu que essa uma prtica a ser realizada quando o dia chega ao fim e as

    atividades de trabalho foram encerradas. Em relao ao horrio destinado

    leitura na casa paterna, segundo ela, era de noite, porque naquele tem-

    po a gente tinha muitas obrigaes, no como hoje. Atualmente, Tecla

    est aposentada, mora sozinha e h menos afazeres dirios. Mesmo assim

    a leitura uma prtica que continua a ser realizada noite: Durante o

    dia eu fao tric, croch, s vezes escuto rdio. Mas sempre leio noite,

    e nos domingos de tarde, a eu sento na cama e leio. Durante o dia fazer

    tric e croch algo permitido e bem visto, como uma conduta correta

    a uma dona de casa, que se dedica a uma atividade til.

    Michele Petit, ao se referir prtica de leitura de moradores rurais

    da Frana, menciona o interdito da leitura enquanto prtica do cio:

    Ao ler, a pessoa se entrega a uma atividade cuja utilidade no

    bem definida. nossos interlocutores se referiam a essa prescrio

    secular da seguinte forma: no se deve perder tempo, no se

    deve ficar desocupado, no se deve ficar sem fazer nada. Eles

    recordavam essa tica compartilhada que, por muito tempo, foi a

    garantia da sobrevivncia em toda a Frana rural, fazendo do traba-

    lho o valor mais alto e rejeitando o cio. (2008, p. 105)

    Para alm de uma atividade de lazer concebida como cio e que,

    portanto, deve ser realizada em momentos especficos, compreende-se

    que o tempo destinado leitura mais restrito, sobretudo no caso das

    mulheres que se dedicam cotidianamente a tarefas domsticas. Tecla, por

    exemplo, afirmou que na casa do pai s liam noite, pois tinham muitas

    obrigaes. No entanto, mesmo estando aposentada atualmente e tendo

    menos afazeres domsticos, continua no lendo durante o dia, mas so-

    mente noite, exceto nos domingos, dia em que faz suas leituras tarde.

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    Percebe-se, assim, que h uma relao entre prticas de leitura e gnero.

    As representaes acerca das prticas de leitura de homens e de mulheres

    podem variar na sociedade, inclusive entre os prprios leitores, a exem-

    plo de Tecla, que revelou ter uma conduta controlada e cuidadosa com

    sua prtica de leitura pelo fato de ser mulher.

    O mesmo ocorre no caso de Ondina em relao ao tempo dedica-

    do leitura. No perodo em que o trabalho era realizado com seus sogros,

    os momentos destinados leitura eram bastante restritos: Eu lia, mas

    conforme dava, aos domingos e dia de chuva. O envolvimento cotidiano

    com as tarefas domsticas e com o trabalho na lavoura foi evidenciado

    por diversas vezes em seus relatos ao se referir-se dupla jornada de tra-

    balho da mulher rural. Ondina disse ter tido tempo integral para a leitura

    somente quando esteve enferma e no podia trabalhar nem na lavoura,

    nem em casa: Aquele tempo que eu estava com cncer, eu passava o

    dia lendo e fazendo o que podia. Depois de curada da doena, mesmo

    aposentada, voltou a realizar todas as tarefas s quais se dedicava ante-

    riormente, reservando alguns momentos leitura: Agora leio domingo

    de tarde, [...] de noite e nos domingos, porque tambm no d, durante o

    dia eu vou pra lavoura ainda. Assim, sentada em uma cadeira de praia, na

    cozinha, com a Bblia sobre as pernas, Ondina desfruta das horas noturnas

    dedicadas leitura.

    No caso dos quatro leitores homens, com a aposentadoria, o tem-

    po destinado leitura foi sendo ampliado. Para os que liam especialmente

    noite, por ser o momento de descanso do trabalho rural, os horrios

    de leitura se tornaram mais flexveis, sendo o ato de ler assumido como

    prtica de lazer, realizado a qualquer hora, sem constrangimento. Ao con-

    trrio, para as mulheres, que assumem inmeras responsabilidades do-

    msticas, a aposentadoria parece no ter alterado significativamente suas

    rotinas, e por isso a leitura continua sendo uma prtica noturna. No caso

    de Tecla e Ondina, a construo social dessa imagem e dessa representa-

    o da mulher ligada s tarefas domsticas e ao desempenho constante de

    atividades consideradas teis parece resistir aposentadoria, contribuin-

    do para estabelecer interditos em relao s prticas de leitura entendidas

    como prticas do cio.

    Observando-se os meios e os modos que envolvem as prticas de

    leitura dos leitores pesquisados, assim como o comportamento ligado ao

    seu ato de ler, tem-se a possibilidade de compreender esses indivduos e

    as prticas leitoras que caracterizam suas trajetrias. Esses so aspectos

    externos leitura que, segundo Darnton (1995), podem responder a per-

    guntas relacionadas a quem, onde e quando, o que contribui signifi-

    cativamente para responder a questes mais complexas sobre os como

    e os porqus da leitura. Lahire (2002), referindo-se sociologia da leitu-

    ra, afirma que as anlises estiveram sempre muito voltadas ao consumo

    cultural, e que o sentido das leituras, ou melhor, as experincias que os

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    leitores vivem com os livros, so questes que os socilogos praticamente

    deixaram de lado (p. 95).

    CONSIDERAES FINAIS

    Parodiando o Dr. Assis Brasil:

    Bem-vindo seja a esta manso que encerra,

    Encerra dura lida e doce calma;

    Abriga o arado que lavra a terra,

    E o livro que educa a alma. (nei)

    Esses versos de Nei, ditos quando se despediu ao final da primeira

    entrevista realizada em 2007, so bastante representativos da acolhida,

    da receptividade e da vontade de contar dos seis leitores investigados.

    Tecla, Nei, Ismael, Antonio, Henrique e Ondina, atravs de seus depoi-

    mentos, deram visibilidade presena da cultura escrita entre moradores

    do meio rural, possibilitando que a representao da rarefao destas pr-

    ticas no contexto rural pudesse ser questionada e problematizada.

    As trajetrias individuais revelaram as estratgias de acesso a

    livros, revista e jornais, considerando-se especialmente as distncias

    geogrficas, caractersticas do meio rural. Sendo possvel observar a cul-

    tura escrita nas prticas de indivduos inseridos no meio rural, ainda na

    primeira metade do sculo XX, mesmo quando a presena da escola era

    ainda bastante discreta, como relevam os depoimentos. O que ratifica a

    presena e os usos da cultura escrita a presena de jornais como princi-

    pal meio de comunicao neste perodo. Conforme as narrativas, o jornal

    era enviado por diversos meios; s vezes, os destinatrios recebiam vrias

    edies de uma nica vez, o que dificultava, em razo da sequncia a ser

    escolhida, a prtica da leitura. Percebe-se, contudo, que o jornal, mesmo

    chegando com atraso ao meio rural, no deixou de despertar interesse,

    pelos artigos, crnicas, palavras cruzadas e, at mesmo, pelas ltimas

    notcias. Assim, o jornal no se limitava brevidade da notcia datada,

    que faz da edio do dia anterior uma fonte desatualizada. Na prtica de

    leitura desses leitores o jornal era uma fonte de informao que possibili-

    tava o acesso s notcias, mesmo que fossem da semana anterior.

    Para todos eles, frequentar a escola, entre as dcadas de 1920 a

    1940, significou vencer obstculos ou criar estratgias em face da distn-

    cia, da inexistncia ou do custo das mensalidades, no caso das escolas

    paroquiais. As dificuldades de acesso escola eram muitas e as trajetrias

    escolares, quando havia escolas nas localidades, no ultrapassavam, em

    mdia, cinco anos, durante a primeira metade do sculo XX. Contudo,

    o valor atribudo s prticas escolares revela a crena na cultura escrita

    como algo fundamental para a formao cidad, o que observado nos

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    relatos que apontaram para a iniciao dos filhos na cultura escrita antes

    mesmo do ingresso na escola.

    Atravs da anlise dos acervos de livros particulares, classificados

    a partir das esferas de circulao social e dos depoimentos que foram co-

    letados, identificaram-se os temas de maior interesse dos leitores, que, de

    modo geral, esto relacionados ao que se caracterizou como esferas hist-

    ricas, literrias e religiosas. No caso dos leitores homens, eles leem espe-

    cialmente textos sobre assuntos histricos, mesmo que em alguns casos o

    texto seja literrio e ficcional, mas apresente em seu enredo a histria de

    determinada personalidade ou acontecimento histrico. Nestas leituras

    histricas, os textos mais lidos so aqueles que se concentram em assun-

    tos que dizem respeito histria familiar, da origem tnica ou regional e

    local. A propsito das maneiras de ler, relevante reafirmar que os leito-

    res investigados apresentam prticas de leitura silenciosas e extensivas.

    Com exceo de Ondina, que l intensivamente e de forma silenciosa, os

    demais leitores leem extensivamente, mas tambm de maneira solitria e

    em silncio, o que possibilita agilidade na leitura, segundo relatam.

    Constatou-se ainda que o gosto e a sensibilidade literria esto

    vinculados ao momento do ciclo de vida dos leitores e s experincias

    sociais que os absorvem no perodo da leitura, assim como, pertena

    sexual destes (LAHIRE, 2002, p. 96). Os seis perfis analisados revelam que

    os temas de leitura privilegiados so aqueles que fazem trabalhar as ex-

    perincias sociais, a memria de acontecimentos pblicos e privados; so

    leituras sobre o passado realizadas com os olhos do presente. relevante, tambm, salientar que o gosto literrio tambm est relacionado per-

    tena sexual, ou seja, a questes de gnero. As leitoras mulheres pare-

    cem conceber de modo diferente a experincia que estabelecem com os

    textos que leem. Tecla, por exemplo, l especialmente textos literrios

    com o objetivo de adquirir conhecimento sobre outros espaos, outros

    modos de vida, o que evidencia o sentido prtico e utilitrio de suas leitu-

    ras, paralelamente leitura realizada pela emoo literria, pelo deleite.

    Os leitores homens dizem no ler literatura, mesmo que alguns textos

    histricos sejam literrios. Tambm so variadas as estratgias de aces-

    so ao impresso, vrias so as redes de socializao estabelecidas para o

    acesso dos materiais impressos: compra de livros em livrarias, sebos e,

    at mesmo, atravs do Catlogo Avon, assinaturas de revistas e jornais;

    emprstimo entre amigos e em biblioteca pblica; recebimento de livros

    como presente, entre outros. Os leitores demonstraram ainda que tm

    interlocutores de leitura, pessoas que possibilitam o acesso aos livros e

    que trocam informaes e indicam leituras, motivando e possibilitando

    novas prticas.

    Considerando o que foi apresentado e problematizado, necess-

    rio frisar que o trabalho em escala individual permite visualizar a varia-

    o das prticas e preferncias em um mesmo grupo social. Ao analisar

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    o perfil destes leitores no se teve por objetivo realizar a generalizao das prticas de leitura no meio rural, limitando a anlise a um registro cultural nico, mas, antes, dar visibilidade s prticas de leitura neste contexto, observando as especificidades, as variaes e as ambivalncias de cada trajetria social. Assim, pode-se afirmar que a leitura enquanto prtica cultural permeada por experincias sociais que intervm nos modos e nas apropriaes realizadas pelo indivduo social, sendo uma prtica criadora que possibilita a elaborao de uma identidade que ultra-passa os modelos preestabelecidos e que permite a construo de sentidos prpria existncia.

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    LISIANE SIAS MANKEProfessora do Departamento de Histria da Universidade Federal de Pelotas UFPel; mestre e doutora pelo Programa de Ps-Graduao em Educao PPGE; integrante do grupo de pesquisa Histria da Alfabetizao, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares HISALES ; coordenadora do Laboratrio de Ensino de Histria da mesma [email protected]

    recebido em: MAIO 2012 | aprovado para publicao em: SETEMBRO 2013

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