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A ÉTICA COMO ELEMENTO

DE HARMONIA SOCIAL EM

SANTO AGOSTINHO

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CAPA: http://4.bp.blogspot.com/-zyE7qqs80GA/T5V8x_-

PjWI/AAAAAAAAAiA/5944oZvLEFU/s400/1.jpg

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Leomar Antonio MONTAGNA

A ÉTICA COMO ELEMENTO

DE HARMONIA SOCIAL EM

SANTO AGOSTINHO

I Edição On-line

Reimpressão

Humanitas Vivens Ltda

“Uma Instituição a serviço da Vida”

Maringá –PR, 2009

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Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda

EDITOR:

Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS

CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA

Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA

Prof. Gunnar Gabriel ZABALA MELGAR

REVISÃO GERAL:

André Luis Sena dos SANTOS

Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS

Paulo Cezar FERREIRA

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Agnaldo Jorge MARTINS

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Montagna, Leomar Antonio

M758e A ética como elemento de harmonia

social em Santo Agostinho [recurso eletrônico]

/ Leomar Antonio

Montagna. 1. ed. -- Sarandi, PR :

Humanitas Vivens,2009. ISBN:978-85-61837-09-9

Modo de acesso:

<www.humanitasvivens.com.br/>

1. Ética. 2. Amor. 3. Santo Agostinho. 4.

Patrologia. 5. Felicidade. 5. Ética agostiniana.

CDD 21. ed. 100

Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de

responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de

vista da Editora, seus representantes e editores.

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por

qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou

banco de dados sem permissão escrita do Autor e da

Editora Humanitas Vivens Ltda.

www.humanitasvivens.com.br – [email protected] Fone: (44) 3046-4667

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................

INTRODUÇÃO ...............................................................

CAPÍTULO I

SANTO AGOSTINHO: VIDA, CONTEXTO

HISTÓRICO E OBRAS .................................................

1 Santo Agostinho:

conhecer-se para conhecer a Deus .......................................

2 Santo Agostinho:

o filosofar na fé por meio de suas obras literárias .................

CAPÍTULO II

PRINCÍPIOS DA ÉTICA AGOSTINIANA ...................... 1 O primado do amor ..........................................................

2 O amor e a noção agostiniana de ordem ..........................

3 O amor e a felicidade ........................................................

4 A moral interior: princípio do agir humano ......................

5 O amor e a experiência de Deus .......................................

6 O amor e a ética do dever:

princípio da moralidade agostiniana .......................................

CAPÍTULO III

A DIMENSÃO ÉTICA E SOCIAL DO AMOR ..................

1 Ética social, prolongamento da moral individual ................

2 O amor enquanto fundamento ético de

socialização do homem ...........................................................

3 Amar o próximo:

a plenitude e as expressões do amor-caridade .....................

3.1 Amar o próximo – os parentes .....................................

3.2 Amar o próximo – os amigos .......................................

3.3 Amar o próximo – os pobres .........................................

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3.4 Amar o próximo – os inimigos .....................................

3.5 Amar o próximo – os frutos ..........................................

4 Fundamento da verdadeira justiça no Estado:

o amor ....................................................................................

5 Finalidade imediata do Estado terreno:

a ordenada concórdia ou a paz temporal ...................................

6 Fundamentos da ordenada concórdia ou

paz temporal no Estado: a verdadeira justiça........................

7 A paz e a “guerra justa” na história .................................

8 Complemento:

A “Paz justa” e o caráter social do Estado ............................

9 Instrumento garantidor da ordenada concórdia ou

paz temporal no Estado o poder temporal ..........................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................

ANEXO 1:

RELAÇÃO DE OBRAS DE AGOSTINHO

EM ORDEM CRONOLÓLIGA ........................................

REFERÊNCIAS

Primárias ................................................................................

Secundárias ............................................................................

Comentários sobre Santo Agostinho ......................................

Outras obras de apoio .............................................................

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APRESENTAÇÃO

Com profunda e plena satisfação, escrevo esta breve

apresentação da obra do Padre Leomar Antonio Montagna: A ética

como elemento de harmonia social em Santo Agostinho. Com especial

alegria, participei do projeto, do esforço e, agora, da colheita dos

frutos.

O Pe. Leomar tem conseguido tecer, com harmonia, fazendo

honra ao título, o tema central da pessoa, pensamento, coração e

paixão do grande Agostinho: o amor com a ética. Um tema importante

nos escritos de Agostinho, porém não tão conhecido e profusamente

estudado como outros.

O leitor e ainda mais o estudioso de Santo Agostinho e da ética

vão tirar proveito mesmo desta obra, pois, com muito fundamento e

habilidade, o autor consegue expressar essa harmonia agostiniana do

amor como peso e medida da vida da pessoa e da justiça social.

Com abundância de textos agostinianos, bíblicos, da doutrina

cristã e de outros autores sobre estas matérias, a exposição consegue,

no decorrer de seus três capítulos, prender o leitor, o estudioso e até o

curioso. O estilo narrativo inquieta o coração, questiona e purifica a

mente e empenha a vida dele na dinâmica da fé e a caridade a fim de

viver na justiça. Tudo bem imbuído do autêntico espírito agostiniano.

Quero me congratular com o autor e com todos os que de

diferentes maneiras participaram deste projeto do qual, hoje,

desfrutamos de seus resultados. Desejo que outros projetos venham a

se realizar, estudos e obras em favor da ética como elemento da

harmonia social.

Fr. Sebastián Olalla del Río, OAR

Prior da Ordem dos Agostinianos Recoletos – OAR

Vicariato do Brasil da Prov. de Santo Tomás de Vilanova da

OAR

Seminário Santo Agostinho – Maringá – Paraná – 2006.

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INTRODUÇÃO

Vivemos atualmente numa sociedade carente de

sentido e de horizontes, por isso sofremos as consequências

mais terríveis nas mais diversas dimensões da vida humana.

A partir do pensamento de Santo Agostinho, pode-se

explicitar uma crítica à modernidade1, pois se deduz que

1 Na Filosofia Antiga, o centro das atenções era o cosmo, isto é a

physis – natureza. Quando os gregos tentam explicar por que existem

livres e escravos, eles vão dizer que é a natureza que decidiu isso: é

por natureza que uns são livres e outros são escravos; é por natureza

que o homem manda na mulher etc.

Na Idade Média, a preocupação central era Deus: desde a Patrística

(período dos Padres da Igreja que, através dos seus escritos,

constituíram-se líderes e pais espirituais tanto na teologia como na

filosofia – entre os séculos II e VII), até a Escolástica (período do

surgimento das escolas e caracterizado pela subordinação da filosofia

à teologia – entre os séculos XI e XIV), a relação entre fé e razão foi

pensada em três formulações: “creio porque é absurdo”, “creio para

entender” e “entendo para crer”. Longo foi o debate em torno dessas

formulações. Santo Agostinho (354 – 430) muito escreveu sobre este

tema, para ele, é preciso crer, pois a fé é necessária para o

conhecimento da verdade religiosa e moral. Mas é preciso também

usar a razão para que a adesão à fé não seja cega e meramente passiva.

Santo Tomás de Aquino (século XIII) entende que fé e razão são

modos diferentes de conhecer, mas não podem contradizer-se, porque

Deus é seu autor comum. Quando aparece uma oposição, é sinal de

que não se trata de verdade, mas de conclusões falsas ou não

necessárias. Nas universidades, estas questões não só eram expostas

(expositio) pelo mestre, mas também debatidas com os alunos

(disputatio).

Na Filosofia Moderna, há um deslocamento da problemática

cosmológica e teológica para a antropológica. Nela, o homem é a

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essa falta de sentido proceda de um tipo de sociedade que

criamos que eliminou os princípios e os fins absolutos; tudo

ficou reduzido ao conhecimento empírico, testável,

deixando de lado pontos referenciais necessários à conduta

humana. Questões fundamentais que caracterizam o

percurso da existência humana foram deixadas de lado, tais

como: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Por

que existe o mal? O que é que existe depois desta vida? Por

falta de um referencial maior, percebe-se, hoje, a dissolução

do indivíduo, da família e da sociedade.

Os contrastes agudos entre as idéias e promessas e a

realidade efetiva são cada vez mais facilmente percebidos;

principal questão. Na modernidade, aparece com força e como ponto

de partida de toda a Filosofia a descoberta da subjetividade – primeiro

ato do conhecimento do qual dependerão todos os outros, é a Reflexão

ou Consciência de si. A consciência é para si mesma o primeiro objeto

de conhecimento ou o conhecimento de que é capacidade de e para

conhecer. O pensamento consciente de si, de sua força, capaz de

oferecer a si mesmo um método e de intervir na realidade natural e

política para modificá-la. A modernidade se caracterizou pelo fato de

a razão humana erigir-se como critério último da verdade e, portanto,

também da eticidade. Mesmo quando Deus não é negado, ele é

colocado entre parênteses ou só é aceito nos limites da racionalidade

humana. Elimina-se qualquer referência ao transcendente e passa-se a

viver uma fragmentação do saber, da doutrina e dos valores. A

modernidade ofereceu quatro grandes revoluções: a econômica, a

cultural, a política e a social; porém não conseguiu cumprir o

prometido. Por isso a crítica que se faz, hoje, é que a profecia

prometida de dar ao homem a felicidade, não só não se cumpriu assim

como ele mesmo se enganou com totalitarismos inumanos, guerras,

bombas atômicas, holocaustos etc. Para Agostinho, o ser humano,

para viver bem socialmente e em harmonia consigo mesmo,

necessariamente, precisa submeter-se a uma vontade superior, isto é, a

Deus.

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enquanto se sonha com um mundo em paz, agravam-se o

ódio e a violência nos mais diversos níveis. Ocorre, não

obstante todo o inédito avanço científico, a crescente

consciência de um incisivo desconforto, de proporções

desmedidas, latente, que atinge toda civilização.

A Filosofia, mãe de todas as ciências, chega ao século

XXI em uma situação penosa de insegurança com relação a

seus próprios fundamentos e, mesmo, no que diz respeito à

justificação de sua própria existência. Os imensos avanços

das ciências, por um lado, e a crescente consciência da

desagregação das certezas da tradição, por outro, colocam o

pensamento filosófico em um impasse de grandes

proporções.2

Como a ética trata do agir do ser humano e o tema

desenvolvido nesta obra versa sobre A ética como elemento

de harmonia social em Santo Agostinho e, tendo em vista

que hoje percebemos grandes conturbações sociais e uma

solidão cada vez mais profunda no ser humano, mesmo os

que moram em “megalópoles”, então, esta obra não é só um

desafio, mas também uma oportunidade para compreender o

homem de hoje, para alguns, denominado “pós-moderno”3.

2 Cf. SANTOS, 2000. 3 Alguns pensadores dizem que a modernidade está em crise e falam

da pós-modernidade. São aqueles que dizem que a modernidade não é

simplesmente antropocentrismo, mas é um antropocentrismo em que

se aposta que os seres humanos podem, por sua própria força, criar um

mundo perfeito. Essa capacidade é posta em cheque, pois dizem:

Como vamos criar um mundo perfeito se, dominando a natureza, o

homem, provoca uma crise ecológica e também a crise social de uns

dominando os outros?

Outros afirmam que a cultura pós-moderna nasceu no século XX, nos

grandes centros urbanos dos países ricos e industrializados. É uma

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Neste sentido, compreender o pensamento ético de Santo

Agostinho será muito válido para poder visualizar um

caminho possível para a recuperação de certos aspectos do

ser humano, pois o modo de agir segue sempre o modo de

ser (Aristóteles).

cultura do tédio, da depressão, do trabalho massacrante e da vida sem

sentido. O ensino não oferece mais uma visão global do mundo, uma

síntese, mas conhecimentos parciais, especializados e fragmentários.

As pessoas se sentem como baratas tontas e sem perspectivas. A

modernidade não trouxe a felicidade. A pobreza aumentou. Os

banqueiros e os grandes empresários tomaram o poder dos políticos e

o Estado deixou de ser o juiz dos conflitos entre capital e trabalho.

Neste contexto, só o capital tem a palavra e o dinheiro manda no

mundo.

Ultimamente, em meio a mudanças tão aceleradas, as teorias pós-

modernas, em suas várias formas de manifestação, também buscam

compreender este homem que, entre tantos seres, não tem conseguido

realmente ser sua totalidade. A própria razão, que se tornou o mito da

modernidade, e todas as verdades cultivadas e vivenciadas durante

séculos, tem sido questionada. Tão perseguida, tornou-se, hoje, em

muitos casos, fonte de exclusão e banalização e, ao mesmo tempo em

que é usada para gerar vida, tem gerado a morte. Alimentos são

produzidos em quantidades nunca vistas e milhares morrem de fome;

inventam-se aparelhos e máquinas nunca imaginados e poucos podem

usufruí-los; o meio ambiente, que nos permite ter vida, tem sido

destruído em ritmo irracional. Em meio a esse turbilhão, a pessoa

humana continua a buscar formas de utilizar-se desse ser racional que,

afinal, faz parte de sua própria constituição, sem conseguir alcançar

seu objetivo maior que é ser mais feliz e mais gente. Enfim, pode-se

dizer que os conflitos, as desigualdades, tensões sociais, revoluções no

âmbito tecnológico e das comunicações, tudo isso determina a direção

que a Filosofia tem de tomar na sua atual relação com o mundo. Trata-

se da direção ética. É a legitimidade da Filosofia, hoje, depende da

melhor fundamentação possível do agir humano, pois é da

racionalidade desse agir ético que depende o futuro do mundo.

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No primeiro capítulo, abordamos os caminhos da vida

de Santo Agostinho, por meio de suas obras, de maneira

especial Confissões4 e, nele, o “Homem Agostinho”

identifica-se com o gênero humano, isto é, o homem

enquanto humanidade, em qualquer tempo e contexto.

Quando descrevemos a vida de Santo Agostinho, não

pensamos numa história singular de uma vida de

inquietudes, angústias, dúvidas, erros e acertos, mas sim em

cada um de nós, em nossas ansiedades e inquietudes, lutas e

contradições interiores, dores e alegrias. Percebemos que,

apesar das conquistas alcançadas ao longo da história, com

seus avanços nas mais variadas áreas do conhecimento, o

homem continua inquieto, angustiado e carente de

felicidade. Agostinho não se contentou em levar uma vida

medíocre, não se conformou com os relativismos éticos que

o dissolviam numa vida sem sentido: buscou, acreditou e

encontrou o horizonte, a paz a segurança, enfim, o Ser-Deus

que tanto procurava. Talvez seja esta a questão principal

para se discutir, hoje, o porquê dessa dissolução ética.5 A

4 Além das Confissões, utilizada desde o primeiro capítulo, far-se-á

uso, nos outros capítulos (segundo e terceiro), de A cidade de Deus,

pois nela encontra-se a essência do pensamento ético-político-social

de Agostinho. Entretanto, como Agostinho é um pensador de

gigantesca produção literária, tomar-se-ão outras de suas obras para

enriquecer nosso tema, assim como muitos filósofos que refletem

sobre seu pensamento. 5 Hoje, vive-se uma ditadura do relativismo, há uma ausência de

objetividade e uma constante mudança de valores. O excessivo valor

que se tem dado nos últimos tempos à pessoa, suas atividades e

sentimentos, tem como consequência uma forte dose de subjetivismo e

uma perda de objetividade. Se as coisas, as circunstâncias e as opções

mudam segundo varia o sentimento da pessoa, não há nada absoluto,

nem fixo, nem objetivo. Os valores mudam e são novos sempre, como

a moda de temporada. Falta uma fundamentação em tudo, a vida é

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dissolução ética remete para o problema da dissolução

ontológica, pois a maneira como expressamos a realidade

depende do que conhecemos e acreditamos. Mas as questões

a que o pensamento ético de Agostinho nos remete são: O

que conhecemos? No que acreditamos? Onde está nossa

segurança? No ter? No prazer? No poder? Será que

teremos que trilhar penosamente o caminho, para, em última

instância, voltar para Deus? Haverá ainda tempo de uma

regeneração individual e coletiva?

Estas questões serão esclarecidas por intermédio do

pensamento de Agostinho, no segundo e terceiro capítulos,

em que são trabalhados os princípios da ética agostiniana e

sua dimensão social que é o amor. Para ele, a força maior da

moral interior é o amor, expresso no duplo preceito da

caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo

como a si mesmo”.6 Esse amor tem a dupla função de

constituir tanto o peso como a medida de todos os

fundamentos ético-morais do homem: “O meu amor é o meu

peso. Para qualquer parte que vá, é ele que me leva”7, como

aqueles relativos à dimensão ético-política do estado:

superficial, valoriza-se a aparência, o contingente e o precário. É a

aparição da chamada “cultura light”. E o mais delicado de tudo: a

atitude ética se rege pela norma de viver o momento presente.

Consequências disso: tudo muda, tudo se acelera e nada está em seu

lugar. Produz-se, assim, uma sensação de precariedade, de

insegurança, de vazio e insatisfação, de instabilidade, porque tudo é

limitado, contingente, passageiro. Por isso se fala hoje de uma cultura

móvel. Não há absolutos. 6 Mt 22, 37-39. 7 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim

Amarante. São Paulo: Paulus, 1997, XIII, 9,10. Nas próximas

indicações referentes a esta, obra indicar-se-á somente o nome da obra

com o respectivo livro, capítulo e parágrafo.

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Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o

amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena;

o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a

celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a

segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos

homens e tem esta por máxima glória de Deus,

testemunha de sua consciência.8

Assim como o amor (caridade) é a fonte da moral

interior individual, tendo como meta a busca da felicidade

do homem, da mesma forma, acontece na vida social. A

caridade gera a concórdia que, num plano social, é a base de

uma sociedade justa. Portanto, Agostinho faz da ordem

social um prolongamento da ordem moral interior, no qual a

organização dos homens em sociedade (Estado),

fundamentada no amor, não tem outra finalidade senão

garantir a paz temporal ou a felicidade temporal dos

homens, com vista à paz eterna ou verdadeira felicidade.

Tendo como máxima aristotélica que a maneira como

expressamos a realidade depende de em que acreditamos,

então, é fundamental resgatar o valor dos princípios e fins

norteadores da conduta humana que, para Agostinho, é a

reta ordem do amor que supõe a primazia de Deus. Para que

o homem alcance a felicidade, Agostinho propõe uma moral

interior orientada para a reta escolha das coisas a serem

usadas e das coisas a serem fruídas. Para ele, devemos gozar

8 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Trad.

Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Editora Universitária São

Francisco, 2003. (Coleção Pensamento Humano). XIV, 28. Nas

próximas indicações referentes a esta obra, indicar-se-á somente o

nome da obra com o respectivo livro, capítulo e parágrafo.

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unicamente em Deus. Devemos apenas utilizar as coisas

terrenas de forma reta, para merecermos o gozo em Deus.

Assim, somente se o homem viver esta reta ordem do amor

poderá atingir a harmonia individual e coletiva e salvar o

planeta, pois da maneira que segue a sociedade, a vida do

planeta corre um grande risco de destruição. Estamos, dessa

forma, colocando em perigo a existência de uma vida futura.

No segundo e terceiro capítulos, percebemos que,

para Agostinho, cabe aos seres humanos a livre escolha para

construir ou não um mundo mais justo e solidário. Mas essa

escolha deve ser a partir de dentro, do íntimo de cada

pessoa. O pensamento cristão insiste na interiorização da

moralidade e, especificamente, em Santo Agostinho, de tal

modo que os valores cívicos não servem mais como

referência fundamental para nossa existência.9 Devemos

buscar na consciência e em sua relação com a verdade o

caminho para a compreensão de nossa liberdade. Com isto,

desmorona o ideal da pólis10: “A partir da descoberta da

9 Uma antiga estória cristã sobre as primícias da liberdade na verdade

da fé diz o seguinte: “Quando a Fé liberta a vida, não se presta atenção

nas pessoas dignas nem se procuram homens fiéis. Os superiores são

como os galhos mais altos das árvores e os inferiores são como os

animais da floresta. Honestos e sinceros, os homens nem têm idéia de

que são cumpridores de seus deveres. Amam-se uns aos outros, sem

saber quem é o próximo, nem imaginam que estão cumprindo o maior

de todos os mandamentos. Não enganam ninguém e não se têm em

conta de pessoas confiáveis. Convivem na liberdade de dar e receber e

não se sentem generosos. Pode-se fiar deles e ignoram o que seja

fidelidade. Seus feitos não deixam vestígios e suas obras não são

alardeadas. A história nem suspeita de suas vidas”. A Cidade de

Deus: contra os pagãos. Vol. I – Introdução. p. 19-20. 10 Pólis, para os gregos, referia-se ao conjunto das pessoas que viviam

na cidade. A cidade era um espaço seguro, ordenado e manso, onde os

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interioridade da moral passamos a ser membros, em

primeiro lugar, de uma comunidade racional que se constrói

a partir de princípios derivados da lei divina, expressos pela

dimensão prática da razão”.11

Trabalhar o tema da ética como elemento de harmonia

social em Santo Agostinho tem como objetivo buscar uma

direção mais segura para o ser humano que, constantemente,

é bombardeado por agentes externos que provocam

inquietações, desajustes estruturais e conflitos sociais.

O tema proposto e o estudo das obras de Santo

Agostinho que, no anexo 01, estão relacionadas em ordem

cronológica, são uma oportunidade para compreender

melhor a Filosofia, principalmente, no início da Idade

Média, e para entender como ocorreu a mudança do

pensamento grego para o pensamento cristão. Além do

interesse filosófico que o pensamento de Santo Agostinho

desperta nos estudiosos e filósofos, também é importante

para os que buscam compreender o pensamento cristão,

desde suas origens, pois a influência do pensamento

homens podiam se dedicar à busca da felicidade. Os cidadãos

ganhavam destaque na hierarquia social, uma vez que cidadão era

quem pensava, ocupava-se com a arte, com a filosofia ou com a vida

intelectual. Por sua vez, as mulheres, as crianças, os estrangeiros e os

escravos não participavam e não decidiam, pois não eram

considerados cidadãos. Pólis, também, é a cidade não como conjunto

de edifícios, ruas e praças, mas como espaço cívico, ou seja, entendida

como comunidade organizada, formada por cidadãos (polítikos), isto

é, pelos homens livres e iguais nascidos em seu território, portadores

de dois direitos inquestionáveis: a isonomia (igualdade perante a lei) e

a isegoria (a igualdade no direito de expor e discutir, em público,

opiniões sobre ações que a cidade deve ou não realizar). 11 BIGNOTTO, Newton. 1992. p. 19

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agostiniano foi decisiva na formação e no desenvolvimento

da filosofia cristã no período medieval. E não só nesse

período, mas também na modernidade muitos pensadores

receberam influência de suas obras. Elas atravessaram os

séculos, influenciando desde as pessoas mais simples até aos

mais eruditos.

Enfim, compreender a filosofia e a teologia de Santo

Agostinho é uma oportunidade única no sentido de uma

verdadeira realização pessoal e de uma vida mais serena e

humana.

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CAPÍTULO I

SANTO AGOSTINHO:

VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E

OBRAS

Santo Agostinho, embora não conhecesse diretamente

os clássicos gregos12, foi, contudo, um homem de cultura

grega no sentido de que seu mundo espiritual era um mundo

essencialmente marcado pela cultura grega. Quando

assumiu a fé cristã13, passou por um formidável

desenvolvimento intelectual, no qual, pouco a pouco, as

categorias históricas vão predominar sobre as categorias

cósmicas. O cristianismo significou uma ampliação de sua

busca filosófica, uma vez que, do ponto de vista do

conteúdo, ele considera o cristianismo como a verdadeira

sabedoria, a filosofia suprema.14 O que há de original é um

12 Seu conhecimento do grego era insuficiente de tal modo que ele não

teve acesso, no original, às obras dos grandes filósofos gregos. Assim,

por exemplo, as posições fundamentais de Platão e Aristóteles lhe

chegaram ao conhecimento por intermédio da tradução da obra de

Plotino ou de Cícero. 13 Para ele, de nenhuma forma, significa uma renúncia à razão, mas a

abertura do espaço para uma compreensão mais profunda de tudo. 14 O cristianismo é o caminho universal de salvação, a filosofia para

qualquer um. Fé e razão não só não se separam, mas se condicionam

mutuamente (Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. Trad.

de Nair de Assis Oliveira, São Paulo: Paulus, 2002, III, 3. Nas

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caminho novo que conduz ao fim, ou seja, o encontro de um

absoluto transcendente no seio da razão como origem

radical e fim da razão mesma. Esse novo caminho rearticula,

pelas raízes, a herança recebida da filosofia grega.

Santo Agostinho, depois de levar uma vida dissoluta,

passar por violenta crise espiritual e se converter à religião

cristã, propiciou valiosíssima contribuição à filosofia, ou

seja, a fusão do cristianismo e do neoplatonismo.15 Isso não

próximas indicações referentes a esta obra, indicar-se-á somente o

nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo). 15 Corrente filosófica do séc. III da era cristã, fundada por Antônio

Sacas e divulgada por Plotino e seus seguidores Porfírio, Iâmblico e

Proclo (séc. V). “O Neoplatonismo se caracteriza por uma

interpretação espiritualista e mística das doutrinas de Platão, com

influência do estoicismo e do pitagorismo. Segundo o neoplatonismo,

o real é constituído por três hipóstases – o Uno, a Inteligência (Nous)

e a Alma, sendo que as duas últimas procederiam da primeira por

emanação. É considerado um sistema um tanto obscuro, embora tenha

tido grande influência no início da formação do pensamento cristão,

sobretudo devido a seu espiritualismo” (JAPIASSÚ, Hilton e

MARCONDES, Danilo. 1996, p. 194). Quanto aos fundamentos do

neoplatonismo, são os seguintes: “1º - caráter de revelação da verdade,

que, portanto, é de natureza religiosa e se manifesta nas instituições

religiosas existentes e na reflexão do homem sobre si próprio; 2º -

caráter absoluto da transcendência divina: Deus visto como o Bem

está além de qualquer determinação cognoscível e é julgado inefável;

3º - teoria da emanação, ou seja, todas as coisas existentes derivam

necessariamente de Deus e vão-se tornando cada vez menos perfeitas

à medida que se afastam d’Ele; conseqüentemente o mundo inteligível

(Deus, Intelecto e Alma do mundo) é distinto do mundo sensível (ou

material), que é uma imagem ou manifestação do outro; 4º - retorno

do mundo a Deus através do homem e de sua progressiva

interiorização, até o ponto do êxtase, que é a união com Deus”

(ABBAGNANO, Nicola. 2000, p. 710-711).

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só proporcionou uma sólida fundamentação intelectual ao

cristianismo, como o vinculou à tradição filosófica grega.

Toda filosofia agostiniana é uma resposta às grandes

preocupações vividas pelo homem Agostinho (a vida de

Agostinho resume, de forma precisa, a vida de todos os

homens de qualquer tempo e espaço – o homem enquanto

humanidade); as suas inquietações interiores (preocupação

ética e antropologia filosófica) e as grandes questões

religiosas, políticas e sociais suscitadas em sua época

(filosofia social). Pode-se dizer que toda a ética filosófica de

Santo Agostinho gira em torno do problema da felicidade do

homem, e que esta se confunde com o problema do homem

Agostinho, o problema de sua dispersão, inquietude e busca

da felicidade: “Tornei-me um grande problema para mim

mesmo e perguntava à minha alma por que estava tão triste

e angustiado, mas não tinha resposta”.16 O centro de sua

especulação filosófica coincide, verdadeiramente, com sua

personalidade. Sua filosofia é uma interpretação de sua vida.

Apresentamos, a seguir, de forma sintética, a vida de

Santo Agostinho e o contexto histórico em que viveu. Ao

narrar sua história singular, Agostinho fala da história de

cada um de nós, de nossas ansiedades e inquietações, de

nossas lutas e contradições interiores, de nossas dores e

alegrias. “Santo Agostinho é humano como nós; ‘é homem’.

E, como nós, conhece a tragédia de viver longe de Deus, a

tristeza do pecado, a dor da ausência e a festa do regresso.

Seu relato obriga-nos a reler o nosso próprio ser, a dolorosa

experiência da difícil arte de viver”.17 Tal empreendimento

16 Confissões IV, 4, 9. 17 LUCAS, Miguel. 1997, p. 06.

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apresenta-se, primeiro, como uma contribuição a todo

aquele que deseja conhecer a biografia de Agostinho e,

segundo, como forma de contextualizar a temática da ética

que é, inequivocamente, uma ética do amor, mais

precisamente, caritas18, que, só depois de uma longa luta

interior, ele consegue viver e entender:

18 Charitas, palavra que vem do latim e que quer dizer caridade.

“Caridade é o amor para os cristãos, que move a vontade à busca

efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de

Deus; ágape, amor-caridade” (In: DE BONI, Luiz Alberto. 1996 p.

41). “Este falso amor que se prende ao mundo e que, por este motivo,

o constitui, e que, como tal, é mundano, Santo Agostinho chama

cobiça (cupiditas), e ao amor justo que aspira à eternidade e ao futuro

absoluto, caridade (caritas)” (ARENDT, Hannah. 1997, p. 24-25). Em

grego, o termo usado pelo Evangelista João é único: ágape. Na versão

latina manuseada por Agostinho, o termo latino usado era apenas:

dilectio. A Vulgata de São Jerônimo traduziu o ágape ora por dilectio,

ora por caritas. Santo Agostinho introduz uma terceira expressão:

amor. O sentido com que Agostinho utiliza esses três termos pode ser

assim traduzido: 1 – Amor: pode ser tomado como amor ao mal ou ao

bem. Presta-se a antíteses. Em A Cidade de Deus (XIV, 28), ele fala

sobre os dois amores: o amor a Deus e o amor a si mesmo, que estão

na origem das duas cidades. Para ele, há duas espécies de amor que se

excluem mutuamente, são incompatíveis: o amor a Deus e o da

criatura; este, se desregrado, é perversão daquele amor que é

movimento da alma para Deus. O amor das coisas criadas é legítimo,

mas não pode nos afastar de Deus, antes, deve conduzir-nos até ele. 2

– Dilectio: este termo, para Agostinho, designa, habitualmente, o amor

das realidades espirituais, é o amor bom e tem o Espírito Santo por

princípio. É amor de benevolência, de oblação; não de cuncupiscência,

obsessivo, de posse ou destruição do outro. 3 – Caritas: Agostinho

identifica este termo explicitamente com a virtude teologal, se bem

que também o empregue como sinônimo de dilectio. Também chama

de caridade ao amor natural e lícito de uns para com os outros, põe em

relevo nessa caridade natural, a gratuidade e desinteresse, que ele

apresenta como característica essencial da verdadeira caridade.

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Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde

demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e

eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme,

lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.

Estavas comigo, mas eu não estava contigo.

Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não

existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e

teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e

brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira.

Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei

por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti.

Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de

tua paz.19

1 Santo Agostinho: conhecer-se para

conhecer a Deus20

Podemos conhecer a vida de Santo Agostinho por

meio de diversas obras, dentre elas, destaca-se a Vita

Augustinus (Vida de Santo Agostinho) escrita pelo primeiro

biógrafo do pensador, o bispo Possídio21, um dos amigos

com quem Agostinho conviveu desde o mosteiro de

19 Confissões X, 27, 38. 20 Cf. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. Trad. introdução e notas

Adaury Fiorótti. São Paulo: Paulus, 1998, II, 1, 1. Nas próximas

indicações referentes a esta, obra indicar-se-á somente o nome da obra

com o respectivo capítulo e parágrafo. 21 POSSÍDIO. 2004.

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Tagaste, onde escreveu suas centenas de cartas epistolares e,

principalmente, sua obra Confissões que aparece sob forma

de autobiografia.

Aurélio Augustinus22 (Santo Agostinho) nasceu em

Tagaste23, província romana da Numídia, na África

romanizada (hoje, chamada Souk-Ahrás, na atual Argélia,

Norte da África), em 13 de novembro de 354.

Santo Agostinho nasceu em meio a uma família

dividida. Seu pai, Patrício, um africano romanizado, era um

curialis, ou seja, conselheiro municipal do ordo

splendissimus de Tagaste24. Além de funcionário público,

era pequeno proprietário de terras. Era um pagão de caráter

duro e difícil, às vezes, brutal e violento. Patrício se

converteu ao cristianismo pouco antes de morrer, em 371.

Sua mãe, Mônica (Santa Mônica), mulher humilde e

piedosa, teria um papel marcante na vida de Agostinho.

Importante personagem de Confissões e presente em outras.

Na época em que Agostinho nasceu, sua mãe tinha 22 anos

de idade, enquanto seu pai já era um homem idoso. Além de

Agostinho, Patrício e Mônica tiveram mais dois filhos:

22 “O Segundo nome de Aurelius nunca aparece nas suas

correspondências, mas lhe é dado pelos seus contemporâneos, ou seja,

apesar de ter ficado conhecido como Agostinho de Hipona ou Santo

Agostinho, este nunca assinava suas cartas e documentos com seu

segundo nome Augustinus, mas apenas o primeiro Aurelius”

(COSTA, Marcos Roberto Nunes. 1999, p. 15). 23 Na época de Agostinho, Tagaste era uma cidade próspera

culturalmente e economicamente, sendo um dos ricos celeiros de

alimentos, especialmente olivas, da África. 24 Cf. HAMMAN, A. G. 1989, p. 13. Outros autores dizem que o pai

de Agostinho era um tenuis municeps, quer dizer, um pequeno

burguês com magros recursos.

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Navígio que se converteu juntamente com Agostinho, mas

que morreu jovem, e uma irmã de nome Perpétua que,

depois de enviuvar, entrou para a vida religiosa, chegando à

superiora de um convento agostiniano feminino em

Hipona.25 Alguns autores trazem notícias de uma segunda

irmã, de que não se sabe o nome. Entre esses autores, temos

Hylton Rocha, que assim diz: “Eles tiveram pelo menos dois

filhos e duas filhas. Entre esses, Navígio, que se converteu

juntamente com Agostinho, e uma irmã que foi superiora do

mosteiro de Hipona”.26

Pelo que tudo indica, a mãe de Agostinho nasceu na

Numídia, Norte da África, e era de descendência bérbere,

seu nome, Mônica, é atribuído a uma das divindades

autóctones, Monnica.27

Após o nascimento, Agostinho ficou acometido por

uma febre muito alta, esteve à beira da morte. Sua mãe,

preocupada em purificar-lhe do pecado original, procurou a

Igreja, e ele foi marcado com o sinal-da-cruz, o que

significa que fora inscrito na lista dos catecúmenos. Mas,

passado o perigo, o batismo foi adiado. Mais tarde,

Agostinho lamenta ter tornado esse seu primeiro batismo em

vão, pois, “como se fosse inevitável que, vivendo, devesse

continuar a corromper-me, sem dúvida porque se pensava

que a responsabilidade pelas faltas cometidas depois do

batismo é ainda mais grave e perigosa”.28

25 RUBIO, Pedro. 1995, p. 392. 26 ROCHA, Hylton Miranda. 1979, p. 24. 27 Cf. HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 13 e ROCHA, Hylton

Miranda. 1981, p. 5-6. 28 Confissões I, 11, 17.

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Agostinho falava púnico ou cartaginês, a língua

natural de sua terra, e latim, a língua do Império Romano.

Mais do que isso, chegou a escrever e pronunciar sermões

em púnico, para melhor atingir aos fiéis, quando bispo de

Hipona, pois “mesmo cidades como Hipona falavam púnico,

dificilmente conseguindo seguir um sermão em latim”.29

Quanto às características físicas de Agostinho: “Não

era de grande estatura: o hábito parecia grande demais para

seu físico”.30 Em outra fonte, Carlo Cremona, referindo-se

às palavras agressivas de Juliano de Eclama, bispo

pelagiano, que assim fala de Agostinho: “És um negro,

coitado, filho de uma beberrona!”31

Desde criança, Agostinho desenvolveu grande paixão

por jogos, o que iria atrapalhar o gosto pelos estudos: “eu

não gostava do estudo e detestava ser obrigado a ele”.32 Por

conta disso, foi obrigado a estudar, sendo muitas vezes

castigado para tal. Agostinho lembra esses momentos e diz:

“era pequeno ainda, mas era grande o fervor com que eu te

implorava para que me evitasses os castigos na escola (...)

Não que nos faltasse memória ou a inteligência, pois nos

dotaste, Senhor, com o suficiente para a nossa idade. O fato

29 HAMMAN. A. G. op. cit., 1989, p. 10. 30 CREMONA, Carlo. 1990, p. 64. 31 CREMONA, Carlo. Op.cit., 1990, p. 240. “O fato de Juliano ter se

referido a Mônica como beberrona está, certamente, associado ao fato

de que em Confissões, cap. IX, 8, 17-18. Agostinho ter narrado que

sua mãe Mônica desde jovem adquiriu o hábito de tomar vinho, e que

repassara o mesmo para seus filhos” (COSTA, Marcos Roberto

Nunes, op. cit., 1999, p. 20). 32 Confissões I, 12, 19.

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é que gostávamos de nos divertir, e o mesmo faziam, é

verdade, aqueles que nos castigavam.”33

Santo Agostinho recebeu, em Tagaste, seus primeiros

estudos de gramática, aritmética, latim e um pouco de

grego, língua que nunca chegou a dominar bem. Vemos, em

Confissões, o lamento por não ter aprendido grego: “Ainda

hoje não sei explicar bem a causa da minha repugnância

pelo estudo do grego, que tentavam inculcar-me desde

criança”.34 Um pouco mais adiante, afirma: “Outrora,

quando menino, nem mesmo do latim eu conhecia alguma

coisa; no entanto, eu aprendi, com um pouco de atenção,

sem temores nem castigos e ameaças, impelido pela

necessidade que sentia no coração de exprimir meus

pensamentos”.35

Mesmo com dificuldades para aprender o grego,

Agostinho gostava das poesias da mitologia grega na versão

latina e, já na infância, sabia de cor muitos versos de

Virgílio, poeta de sua predileção, que seria citado em

diversas de suas obras. Com o passar do tempo,

desenvolveria o gosto pelos poetas e historiadores,

especialmente Varrón36, que teria grande influência no seu

pensamento. 33 Ibid., I, 9, 14-15. 34 Ibid., I, 13, 20. 35 Ibid., I, 14, 23. 36 Marco Terêncio Varrón (116-27 a.C.), amigo de Cícero, grande

erudito e escritor latino. Escreveu uma extraordinária quantidade de

obras sobre história, filosofia e sobre as artes e a cultura romana, das

quais se conservam poucas atualmente. Agostinho cita diversos

escritos de Varrón em algumas de suas obras, principalmente em: A

Ordem (2, 12.35; 2, 20.54) e A Cidade de Deus (4, 6-7; 6,3-5; 7; 18 e

19, 1-3).

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No ano de 365, com 11 anos de idade, foi enviado a

uma cidade maior (Madaura), cerca de 30 quilômetros de

Tagaste, considerada cidade intelectual da região, para

estudar educação geral (Literatura e Gramática). “De acordo

com a tradição, os autores do programa (dentre eles:

Terêncio, Plauto, Sêneca, Salústio, Horácio, Cícero, etc)

eram estudados sob quatro aspectos: lectio (leitura em voz

alta com ensino de dicção); enarratio (explicação dos

textos); emendatio (análise gramatical e literária) e judicium

(estudo de conjunto). Ao mesmo tempo, estudavam o

grego”.37

Bem-sucedido na cidade de Madaura, Agostinho

começa a brilhar entre seus colegas e os mestres prediziam-

lhe um futuro brilhante. Em contrapartida, sua conduta

moral foi, aos poucos, decaindo, na busca de prazeres

mundanos. O ambiente intelectual de Madaura fizera

esquecer, pouco a pouco, os ensinamentos cristãos que

recebera de sua mãe. Agostinho lembra esses momentos

com pesar:

Eu me encontrava, pobre menino, no limiar dessa

escola de moral (...) Eu não percebia o abismo de

ignomínia em que me atirava, longe de tua presença.

Diante de ti, o que havia mais indigno do que eu? Eu

desagradava até mesmo àqueles homens, ao enganar

com inúmeras mentiras o pedagogo, os mestres e

pais, tão grande era o meu amor pelo jogo, a minha

paixão pelos espetáculos frívolos e a mania de imitar

os atores. Eu furtava da despensa e da mesa de meus

37 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit., 1989, p. 19

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pais, ora impelido pela gula, ora para ter com que

pagar aos companheiros, que vendiam seus jogos,

mas que se divertiam tanto quanto eu. Muitas vezes

eu cometia fraudes no jogo para conseguir vitórias,

dominado pelo tolo desejo de superioridade sobre os

outros.38

No início de 370, Agostinho volta para a casa dos pais

em Tagaste, para um período de férias, que duraria quase

um ano. Seus pais se preparavam economicamente para

enviá-lo a Cartago, onde faria os estudos superiores.

De férias em Tagaste, Agostinho continua sua vida de

desfrutes, praticando uma série de desmandos junto com

outros amigos jovens, como, por exemplo, o famoso “roubo

das pêras”, narrado por ele em Confissões.39 Foi naquela

época que iniciou, e manteve até os trinta anos, um romance

com uma mulher de condições modestas, uma vendedora de

violetas, chamada Melânia, com a qual, em 372, um ano

após a morte de seu pai, veio a ter um filho chamado

Adeodato (que significa “dado por Deus”). Sobre isso,

Agostinho confessa:

No entanto - miserável que sou! – eu me abandonava

com furor à torrente das paixões que me afastavam

de ti; eu transgredia todas as tuas leis, sem escapar

naturalmente de teus castigos. Quem dos mortais

conseguiria fazê-lo? Sempre estavas presente em tua

severa misericórdia, entremeando de amargos

38 Confissões I, 19, 30. 39 Confissões II, 4, 9.

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desgostos os meus prazeres ilícitos, a fim de que eu

aprendesse a procurar a alegria sem ofender-te.40

No final do ano de 370, com 16 anos de idade, depois

de quase um ano de ociosidade e vícios, Agostinho foi

enviado a Cartago, capital de uma das províncias do Império

Romano na África do Norte, para fazer seus estudos

superiores que contemplavam o seguinte currículo: retórica,

dialética, direito romano, música, geometria e matemática.

A ida para essa cidade só foi possível graças à ajuda de um

benfeitor amigo da família, o mecenas Romaniano41.

Neste território, Cartago era a maior cidade do

ocidente latino, depois de Roma. Sua importância era tal que

recebeu o nome célebre de Carthago Veneris (Cartago de

Vênus). “Os romanos haviam reconstruído Cartago graças à

prosperidade africana. César e Augusto a haviam povoado

com colonos procedentes da capital e das províncias da

Itália, fazendo-a uma verdadeira Roma de ultramar”.42

Em Cartago, Agostinho chegou totalmente pervertido

e logo passou a fazer parte de um grupo de jovens que se

autodenominava “demolidores”, os quais arrumavam

confusão em toda parte. Seu temperamento fogoso lançou-o

à busca dos prazeres:

40 Ibid., II, 2, 4. 41 “Romaniano – Homem rico de Tagaste. Pagou os estudos de

Agostinho em Cartago. Mostrando sua gratidão, Agostinho tomou a

seu cargo a educação de Trigécio e Licencio, filhos de seu mecenas”

(RUBIO, Pedro. 1995, p. 394). 42 HAMMAN, A. G. op. cit., 1997, p. 11

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Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso

fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já

gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria,

eu me odiava por não ser bastante miserável (...) Era

para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse

gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu

manchava as fontes da amizade com a sordidez da

concupiscência e turbava a pureza delas com a

espuma infernal das paixões.43

Vivendo uma vida frívola, logo foi arrastado para os

teatros, para o prazer dramático, pelo qual tinha uma certa

paixão desde criança, quando desenvolveu o gosto pela

mitologia e historiografia grega. “Extasiavam-me os

espetáculos teatrais, que espelhavam copiosamente as

minhas misérias e alimentavam a minha fogueira”.44

Embora passando por essa realidade de confusões e

desvios, Agostinho dedica-se aos estudos e, em pouco

tempo, já era o primeiro da escola. Com sua inteligência

brilhante e a influência dos pais que lhe desejavam um

futuro promissor, Agostinho sonhava em formar-se em

Direito e sua facilidade de argumentação e de retórica lhe

garantiam tal carreira. Mas a morte do pai, Patrício, em 371,

perturbaria os planos de Agostinho, e só graças à ajuda do

seu benfeitor, Romaniano, pôde continuar seus estudos em

Cartago.

Pelos poucos escritos dedicados ao pai, percebe-se

que Agostinho não o nutria com grande paixão. Em

43 Confissões III, 1, 1. 44 Ibid., III, 2, 2.

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Confissões, pouco comenta a morte deste, diferentemente da

morte de sua mãe, a quem dedica várias páginas para narrar

o fato.

Tendo completado seus 19 anos, em meio aos estudos

em Cartago, conheceu e leu a obra Hortensius45 de Cícero.

Neste livro, o velho tribuno, desiludido das suas ambições

políticas, volta-se para a filosofia e exprime suas tristezas e

suas alegrias na meditação dos problemas eternos. A obra

despertava-lhe o gosto pela filosofia, um amor intenso pela

verdade. Em Confissões, Agostinho fala da importância que

teve o Hortensius em sua vida.

Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às

mãos o livro de tal Cícero, cuja linguagem - mas não

o coração – é quase unanimamente admirada. O livro

é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio.

Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o

modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas

aspirações e desejos. Repentinamente pareceram-me

desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a

aspirar com todas as forças à imortalidade que vem

da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a

ti.46

Este livro de Cícero teve o poder de despertar

Agostinho do marasmo em que vivia. Foi uma espécie de

revelação que o levou a defrontar-se com as verdades

eternas; verdades que o perturbariam até sua conversão.

Entretanto, naquele momento, o famoso livro não foi capaz 45 Neste livro, em diálogo, de que, hoje, só se conhecem fragmentos,

Cícero respondia às dificuldades de Hortênsio contra a filosofia. 46 Confissões III, 4, 7.

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de dar a paz que Agostinho tanto procurava em seu coração

inquieto, pois, por mais que tivesse se desviado da religião

cristã, seu coração fora marcado pelo cristianismo, sua

infância fora marcada pelas palavras de Cristo,

pronunciadas pela boca de sua mãe. Por isso, Agostinho, ao

ler a obra de Cícero, lamenta não ter encontrado nela o

nome de Cristo: “Mas, no meio de tanto fervor, havia uma

circunstância que me mortificava: a ausência de Cristo no

livro”.47

Sem o nome de Cristo no “Hortensius” Agostinho vai

à procura das Sagradas Escrituras: “Resolvi por isso

dedicar-me ao estudo das Sagradas Escrituras, para

conhecê-las”.48 Fato que o deixou decepcionado, pois,

diante da majestade da obra de Cícero, a Bíblia parecia

indigna e modesta: “Tive a impressão de uma obra indigna

de ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não

podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por outro lado,

a agudeza de minha inteligência não conseguia penetrar-lhe

o íntimo”.49 Naquele momento, a Bíblia não preenchia o

coração inquieto de Agostinho. Seu espírito não encontraria

repouso enquanto não encontrasse a verdade.50

47 Ibid., III, 4, 8. 48 Ibid., III, 5, 9. 49 Id. 50 “A incapacidade de pensar, querendo pensar o meu Deus, como

uma coisa diferente de uma massa corpórea, já que me parecia que

nada existisse sem um corpo, era a suprema e quase única razão do

meu inevitável erro” (Confissões 5, 10, 19). Então, para Agostinho, o

materialismo lhe pareceu o único modo de conhecer a realidade. Foi

essa razão, entre outras, que o impediu de aceitar a encarnação

verdadeira e real de Jesus Cristo. “Nosso próprio Salvador, teu Filho

único, eu o imaginava como se proviesse da massa do teu corpo de luz

para a nossa salvação (...) Mas eu não conseguia ver como poderia

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Por causa dessa experiência frustrada da leitura da

Bíblia, em sua angústia e ânsia de encontrar a verdade,

Agostinho foi procurá-la em outros lugares. Foi aí que

entrou para a seita gnóstica dos maniqueus51, onde

permaneceria por nove anos (374-383): “Caí assim nas

unir-se à carne, e ao mesmo tempo não se contaminar, este ser que eu

imaginava” (Confissões 5, 10, 20). Esta concessão do materialismo foi

verdadeiramente profunda enquanto não se libertou com a leitura dos

neoplatônicos e escutando as pregações de Ambrósio em Milão.

Assim, encontrou a solução dos dois problemas: a espiritualidade do

ser e a origem do mal. Da leitura dos livros dos neoplatônicos,

Agostinho trouxe a luz para superar o materialismo e para liberar o

problema do mal. Ele superou o materialismo com a distinção

proposta entre o mundo sensível e o mundo inteligível e com o convite

à interiorização feita pelos mesmos.

Embora a filosofia tenha sido de muita utilidade para Agostinho, foi

somente na Igreja, e a partir da autoridade da revelação, que ele

encontra o valor absoluto e sempre válido, isto é, Deus. “O problema

do mal e do livre-arbítrio suscita, pois, no horizonte da reflexão sobre

a idéia da ordem e da beatitude, a questão fundamental sobre o fim

objetivo último da ordem, que é igualmente seu princípio: a questão

de Deus. Como tal, Deus é necessariamente o objeto supremo da

beatitude, e é nessa supremacia absoluta, a nós dada a conhecer pela

mediação cristológica, cuja ausência é, segundo Agostinho, a grande e

insanável falha da ascensão neoplatônica (Confissões, VII, 9, 13-14),

que a metafísica da ordem e o seu prolongamento ético na doutrina da

beatitude encontram o fundamento último” (VAZ, Henrique C. de

Lima. 1999. p. 192). 51 Do ponto de vista doutrinal, o maniqueísmo é uma seita gnóstica

que mistura seitas orientais, filosofia grega e religião judaico-cristã.

Sua tese fundamental consiste na afirmação de dois princípios

ontológicos originários do mundo. Costa, Marcos Roberto Nunes (op.

cit., 1999, p. 35ss), faz um estudo muito profundo sobre o

maniqueísmo.

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mãos de homens desvairados pela presunção, extremamente

carnais e loquazes”.52

Ao fazer a opção pelo maniqueísmo, Agostinho

refletia sua angústia na busca de uma paz de espírito. De

certa forma, o maniqueísmo respondia, pelo menos num

primeiro momento, às grandes preocupações de sua vida:

encontrar uma explicação ou justificativa para seus erros e

contradições, a força que o impulsionava a praticar o mal.53

O maniqueísmo era uma seita filosófico-religiosa que

se originou na Pérsia, fundada por Mani, que misturava

doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Sua tese

fundamental consistia em afirmar a existência de dois

princípios eternos, criadores do Bem e do Mal, que

continuam em luta no mundo. Trazendo isso para a prática,

o maniqueísmo afirmava que o mal que está em nós, ou que

cada um que o pratica, não é responsabilidade própria, mas

culpa do princípio do mal. Na época, essa idéia satisfazia as

52 Confissões III, 6, 10. 53 Agostinho aceita a doutrina maniqueísta, mais precisamente, aceita

a antropologia maniqueísta. Eis as suas palavras: “Conservava ainda a

idéia de que não éramos nós que pecávamos, mas alguma outra

natureza estabelecida em nós. O fato de estar sem culpa e de não dever

confessar o mal após tê-lo cometido satisfazia o meu orgulho; desse

modo eu não permitia que curasses minha alma que pecara contra ti

preferindo desculpá-la e acusar não sei qual outra força, que estava em

mim, mas que não era eu” (Confissões V, 10, 18). A solução

maniqueísta do problema do mal era fundada na teoria metafísica dos

dois princípios coeternos e contrários. Então o dualismo metafísico se

tornava necessariamente dualismo antropológico. Duas almas no

homem, uma boa e uma outra ruim, em eterno conflito entre elas. A

vitória de uma ou de outra é a vitória do princípio do bem ou do

princípio do mal operante no homem.

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angústias de Agostinho, uma explicação fácil para seus

problemas morais.

Na obra Confissões, Agostinho fala do maniqueísmo

como uma doutrina obscura, confusa e enganadora:

Suas palavras traziam as armadilhas do demônio,

numa mistura confusa do teu nome com o de nosso

Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo consolador

(...) Repetiam: ‘Verdade, verdade’! E me falavam

muito dela, mas não a possuíam; pelo contrário,

ensinavam falsidades, não só a teu respeito, que és

realmente a verdade, mas também sobre a existência

do mundo, criatura tua.54

Voltando para Tagaste no ano de 374, Agostinho

abriu uma escola de gramática para crianças. Um ano

depois, mais uma vez ajudado por seu benfeitor Romaniano,

abriu uma escola de retórica em Cartago, destinada a ensinar

eloquência aos jovens daquela cidade. Os jovens que

frequentavam a escola de Agostinho eram tão vazios quanto

ele, pois procuravam não a verdade, mas a fama, a glória e o

prazer conseguidos com facilidade. Falando sobre essa

experiência de professor em Cartago, Agostinho enuncia:

Durante os nove anos que se seguiram, dos dezenove

aos vinte e oito anos de idade, fui muitas vezes

seduzido e sedutor, enganado e enganador, em meio

às diversas paixões, ensinando, de público, as

54 Confissões III, 6, 10.

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ciências chamadas liberais e, em particular,

praticando uma religião indigna de tal nome.55

Hylton Rocha reforça essa informação ao dizer: “Seus

alunos eram jovens baderneiros, enviados por seus pais ricos

para conseguir uma posição social, por meio de uma

educação ‘esmerada’. Queriam apenas algo que abrisse as

portas para uma situação que fosse fácil e lucrativa”.56

No período que permaneceu como professor em

Cartago, dedicou-se aos estudos de filosofia e foi aí que leu

As Categorias de Aristóteles57, bem como alguns autores

latinos, dentre eles: Varrón, Sêneca, Lucrécio, Apuleio,

Cornélio Celso e Cícero.

Nesse período e ainda em Cartago, Agostinho fez um

grupo de amigos, dentre eles: Licênio, Alípio, Nebrídio,

Eulógio e Fortunato, que formavam a base de sua escola,

com quem discutia questões mais sérias. Dessas discussões

nasceu seu primeiro livro, De Pulchro et Apto58 (Do Belo e

Conveniente) que, apesar da influência do materialismo

maniqueísta, já refletia um pouco as desilusões de

Agostinho por esta doutrina.

Depois de algum tempo e a partir da leitura dos

filósofos gregos e latinos, as respostas maniqueístas já não

satisfaziam mais a Agostinho. Este, depois de muitos

55 Confissões IV, 1, 1. 56 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit. 1989, p. 27. 57 Confissões IV, 16, 28. 58 Esta primeira obra de Agostinho, Tratado de Estética, perdeu-se.

Em Confissões, ele diz que nem ele mesmo sabe como (Confissões IV,

13, 20).

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debates com seus colegas, esperava encontrar respostas nas

palavras do bispo maniqueu Fausto, pois este tinha grande

fama de eloquência. Entretanto, quando esteve com o

referido bispo, viu nele uma pessoa amável, mas não obteve

dele os esclarecimentos de que precisava. Fausto confessou

a impossibilidade de responder às suas indagações.

Agostinho elogiou a honestidade de Fausto, mas

decepcionou-se com sua limitação. A desilusão instalou-se

no coração de Agostinho que não abandonaria

definitivamente o maniqueísmo, mas entraria, aos poucos,

numa fase de ceticismo.

Apesar de participar do maniqueísmo, Agostinho

nunca chegou à classe dos electi (eleitos), mas apenas de

auditor (ouvinte), conforme relato de Carlo Cremona.

É verdade, na seita tinha preferido ficar entre os

‘ouvintes’, não obstante as solicitações dos hierarcas

para levá-lo a entrar no rol dos ‘eleitos’. Mas os

ouvintes podiam ter uma mulher, enquanto os eleitos,

pelo menos explicitamente, não podiam; e aquele

jovem, agora bispo, era de uma paixão tão ardente,

que não podia dormir sem o amplexo de uma

mulher.59

Desiludido por não encontrar no maniqueísmo uma

explicação para a questão que tanto o torturava, ou seja,

“Como explicar que a minha vontade tenda para o mal e não

para o bem?”,60 Agostinho é levado, então, a procurar na

astrologia uma resposta:

59 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 13. 60 Confissões VII, 3, 5.

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Quis também interrogar as estrelas sobre o mistério e

o destino do homem, sempre procurando saber quem,

na realidade, faz decidir, nos atos morais, a agir de

um modo antes que de outro. Ele sentia que não agia

bem e queria jogar a responsabilidade disto sobre um

outro ou sobre alguma coisa exterior a si.61

Após a leitura de alguns livros, Agostino procurou um

famoso astrólogo de nome Vindiciano que, além de

astrólogo, era um excelente médico. Este, que já o conhecia

desde a África, em sua honestidade, aconselha-o: “Meu

jovem, joga logo fora esse livro, não percas tempo (...) Tu

tens um bom talento, empreendeste uma carreira de estudos

dignos de respeito que te dará certamente com que viver. A

astrologia desviar-te-ia do bom caminho”.62

Mais tarde, já no ano de 383, aos 29 anos de idade,

desgostoso com a indisciplina dos jovens alunos de Cartago

e atraído pela possibilidade de maiores lucros e honras,

resolve transferir-se para Roma, onde abriria uma escola de

retórica. A ida para Roma não seria fácil: sua mãe,

percebendo a crise por que estava passando seu filho,

procura impedir de todas as formas sua partida, mas ele

mentiu para ela e fugiu de Cartago. Em Confissões,

Agostinho narra o momento em que enganou sua mãe no

porto:

Quando me apertou estreitamente, tentando

persuadir-me a voltar ou a deixá-la vir comigo,

61 CREMONA, op. cit., 1990, p. 48 62 Confissões IV, 3, 5.

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enganei-a (...) Menti à minha mãe – e que mãe! Fugi

dela. No entanto, apesar da sordidez execrável de que

estava cheio, tu me salvaste, porque me perdoaste

misericordiosamente (...) Nessa mesma noite parti

escondido, e ela ficou a chorar e a rezar.63

Chegando a cidade de Roma, Agostinho hospedou-se

na mansão de um amigo maniqueu de nome Constâncio.

Segundo Carlo Cremona: “Constâncio, como Agostinho e

Alípio, não pertencia à classe dos ‘eleitos’, mas à dos

‘ouvintes’. Era um homem rico que procurava tornar-se

importante pela sua generosidade”.64 Em casa de

Constâncio, Agostinho é acometido por uma febre que o

deixou entre a vida e a morte. Passada essa fase crítica,

Agostinho fundou uma escola de retórica em Roma.

Em Roma, numa nova experiência como professor,

Agostinho decepciona-se, pois os alunos eram de melhor

nível e disciplinados, mas tinham o mau costume de não

pagarem aos professores. Além disso, a sua estadia na casa

de um maniqueu trazia-lhe alguns constrangimentos, pois já

não acreditava mais no maniqueísmo e via-se obrigado a

compartilhar, ou pelos menos, a se passar por um maniqueu.

Ainda em Roma, Agostinho recebeu apoio e ajuda

solidária de seu grande amigo Alípio que, àquela altura,

exercia um cargo público de juiz. Sem este apoio, não teria

sido fácil sua sobrevivência. Alípio procurou ajudá-lo em

muitos outros momentos.

63 Confissões V, 8, 15. 64 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 39.

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Embora com muitas dificuldades, Agostinho, em

pouco tempo, conseguiu grande fama de retórico, tendo sido

procurado por várias autoridades, entre elas, Símaco,

prefeito de Roma, que tinha por ele grande admiração.

No ano de 384, início do verão, Símaco procurou

Alípio, contou-lhe que fora encarregado pela corte imperial

de escolher um professor (rector) de prestígio para a vaga

de eloquência do estudo público de Milão e que pretendia

oferecer o cargo a Agostinho: “Conhecida, através de

Alípio, a proposta de Símaco, superada a prova de dicção

diante do prefeito, o próprio Agostinho interessou-se para

que a partida fosse apressada. Além do mais, aquela

transferência libertava-o dos maniqueus, que nunca mais

frequentaria”.65

Logo em seguida, no verão de 384, Agostinho e

Alípio, que deixou seu cargo público, partiram de Roma.

Em Milão, Agostinho foi recebido pelas autoridades

imperiais, intelectuais e eclesiásticas com grande simpatia e

curiosidade.

Nesta época, Milão florescia como uma cidade

brilhante. Para lá acorria uma legião de poetas, escritores,

oradores e filósofos. A filosofia grega ganhava ali seus

adeptos entre os leigos e o clero. Era Platão, em nova

roupagem (neoplatonismo), que dominava o ambiente

cultural. O catolicismo era importante na cidade. O bispo da

cidade, Ambrósio, pronunciava sermões eruditos,

elaborados segundo a melhor tradição ciceroniana. Seu

65 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 57.

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pensamento deixava sentir a forte influência do

neoplatonismo reinante.

Desejando e atraído pela fama de orador do Bispo

Ambrósio, Agostinho resolveu ouvi-lo, no início, não pela

fé, mas pela curiosidade. As pregações de Ambrósio,

carregadas de conteúdos platônicos, não levaram, de

imediato, Agostinho à Igreja Católica, mas lançaram luz

sobre sua alma e, aos poucos, foram acabando com as

dúvidas dos seus tempos de maniqueísmo e ceticismo.

Agostinho, em Confissões, definiu esse período de

professor e funcionário do Império como momentos de

profunda ambição e miséria de seu coração, e disse: “Eu

aspirava às honras, à riqueza, ao matrimônio, e tu rias de

mim. Nesses desejos amargos eu sofria dissabores, e tu me

querias tanto mais bem quanto menos consentias que eu

experimentasse consolação naquilo que não eras tu”.66 Foi

nessa época que aconteceu o famoso “encontro do

mendigo”, quando Agostinho, ao ser encarregado de

preparar um discurso de louvores para o Imperador

Valetiniano, tendo consciência de que teria de mentir, pois

este não tinha grandes méritos, encontrou um mendigo

bêbado que, na sua pobreza, parecia feliz, enquanto ele, na

sua ambição, vivia angustiado. Agostinho descobriu sua

pobreza de espírito e disse:

É claro que a alegria dele não era a verdadeira; mas

o objeto de minha ambição era bem mais falso. Ele,

pelo menos, estava satisfeito com sua alegria, e eu,

preocupado; ele era livre, estava tranqüilo, e eu,

66 Confissões VI, 6, 9.

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cheio de inquietações (...) Na mesma noite, aquele

mendigo teria curado sua embriaguez, enquanto eu

havia dormido e acordado com a minha, e ainda com

ela tornaria a dormir e acordar; e quem sabe por

quanto tempo!67

Depois de chegar a Milão, um ano depois, em 385,

Agostinho trouxe sua mãe, sua mulher, seu filho Adeodato e

seu irmão Navígio para viverem com ele. Mônica tinha

grandes preocupações com Agostinho, principalmente, por

suas posições céticas dos últimos tempos, mas, ao chegar a

Milão, encontrou-o mudado, pois, pelo menos, não era mais

maniqueísta. Conforme ele mesmo refere: “Ao chegar,

encontrou-me em grande perigo, provocado pela completa

falta de confiança em conhecer a verdade. Quando a

informei de que não era maniqueu, embora ainda não fosse

cristão católico, não saltou de alegria (...) Quanto a este

aspecto de minha miséria, ela estava tranqüila”.68

Na cidade de Milão, depois de receber a influência do

bispo Ambrósio, Agostinho resolveu convidar dois amigos

da África, Alípio e Nebrídio,69 para formarem, juntos com

sua mãe, sua mulher, seu filho e seu irmão Navígio, uma

comunidade. Nessa época, por inquietações de sua

consciência e pressões de sua mãe, que, há tempos, insistia

67 Ibid., VI, 6, 9-10. 68 Ibid., VI, 1, 1. 69 Nebrídio e Alípio eram conterrâneos de Agostinho, filhos de

famílias abastadas. Vieram estudar em Cartago e, ali, juntaram-se ao

grupo de alunos de Agostinho, tornaram-se seus melhores amigos.

Acompanharam Agostinho por Roma e Milão, vindo a fazer parte do

grupo de convertidos. Nebrídio faleceu jovem e Alípio chegou a ser

Bispo de Tagaste um ano antes de Agostinho ser bispo.

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para que se casasse, como forma de sair da condição de

pecado em que vivia ao conviver com uma mulher sem

matrimônio, Agostinho resolveu casar-se, chegando a pedir

em casamento a mão de uma jovem de família rica.

Entretanto, segundo o próprio Agostinho, o casamento não

foi possível, pois, apesar já ter sido feito o pedido de

casamento, “faltavam-lhe, ainda, dois anos para a idade

núbil,70 mas, por ser do agrado de todos, ia-se esperando”.71

Melânia, sua mulher, vendo-se traída por Agostinho

ter pedido uma jovem em casamento, resolveu abandoná-lo

e voltou para África, deixando seu filho Adeodato e fazendo

juramento de que nunca mais se juntaria a outro homem.

Agostinho resolveu, então, ampliar seu projeto

comunitário e convidou outros amigos para fazerem parte

do grupo que, então, chegava a ser composto de cerca de

dez pessoas. Dentre esses amigos, havia homens ricos e de

posição social, como Romaniano, seu benfeitor, que fazia

parte da corte imperial.

Nesse novo estilo de vida, o projeto comunitário era

radical, pois: “Tínhamos organizado o nosso retiro, de modo

a por em comum os bens que possuíamos, formando assim

um patrimônio único. Entendíamos que, diante da sincera

amizade que nos unia, nada deveria pertencer a este ou

àquele. Tudo deveria ser de todos e de cada um”.72 Mas o

projeto de Agostinho não foi possível de ser realizado, pois

70 A jovem que Agostinho pediu em casamento tinha cerca de 10 anos

de idade, pois, segundo este, faltava-lhe cerca de dois anos para

completar a idade de poder casar-se que, em Roma, era de 12 anos. 71 Confissões VI, 13, 23. 72 Ibid., VI, 14, 24.

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alguns membros do grupo eram casados e, na

impossibilidade de renunciarem a suas esposas, o projeto

tornou-se inviável. O próprio Agostinho, que não era

casado, mas que convivia com uma mulher há quinze anos,

não renunciou aos seus desejos carnais.

Sofrendo pelo abandono de sua mulher e tendo que

esperar por dois anos até que sua noiva completasse a idade

núbil, Agostinho não se conteve e procurou outra mulher.

Em Confissões, ele assim descreveu esses momentos:

Ela voltou para a África fazendo a ti o voto de jamais

pertencer a outro homem e deixando para mim o filho

que me havia dado. Mas eu, infeliz, fui incapaz de

imitar a esta mulher! Eu não conseguia suportar a

espera de dois anos para receber a esposa que tinha

pedido. Na realidade eu não amava o matrimônio; eu

era, sim, escravo do prazer. E tratei de arranjar

outra mulher, não como esposa legítima, para manter

e alimentar intacta, ou agravar a doença da minha

alma até o casamento, e aí chegar sem haver

interrompido meus hábitos.73

Ainda em Milão, aos 32 anos de idade, Agostinho

conheceu Mânlio Teodoro, personalidade política que

chegou ao cargo de cônsul. Era um homem culto e

orgulhoso, amante da filosofia neoplatônica. Por intermédio

dele, conheceu e leu as obras neoplatônicas de Plotino,

escritas pelo seu discípulo Porfírio, especialmente, as

Enéadas, traduzidas do grego para o latim por Mário

Vitorino:

73 Confissões VI, 15, 25.

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Encontrei escrito, se não com as mesmas palavras,

certamente com o mesmo significado e com muitas

provas convincentes, o seguinte: ‘No princípio era o

Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era

Deus. No princípio, ele estava com Deus’ (...) Li

escrito nesses livros que o Verbo, que é Deus, nasceu,

não da carne nem do sangue, não da vontade do

homem, nem da vontade da carne, mas de Deus”.74

Foi através das leituras do neoplatônico Plotino que

Agostinho descobriu que Deus é a fonte única de todo bem e

que o mal não forma uma substância. Bem como o “nous”,

ou razão natural, remonta ao “logos” do Evangelho de São

João. Foi um importante passo para que Agostinho vencesse

seu ceticismo e caminhasse para a especulação filosófico-

religiosa.

Mais uma vez Agostinho foi sacudido em seu íntimo,

pois as leituras neoplatônicas lançavam grandes

inquietações em seu coração. Então, resolveu procurar o

bispo Ambrósio, em cujos sermões ouvira falar, muitas

vezes, de Plotino. Depois de uma longa conversa, o bispo o

aconselhou a procurar Simpliciano,75 um cristão exemplar

que poderia trazer-lhe as respostas que precisava.

74 Ibid., VII, 9, 13-14. 75 São Simpliciano era um sacerdote instruído que viera de Roma a

Milão para instruir Santo Ambrósio nas Sagradas escrituras como

diretor espiritual. Por isto Agostinho se refere a este como pai de

Ambrósio. Mais tarde, em 397, com a morte de Ambrósio, este lhe

sucedeu no bispado de Milão.

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Quando procurou Simpliciano, Agostinho contou-lhe

que havia lido os escritos neoplatônicos e revelou suas

insatisfações. Este reforçou os enganos dos neoplatônicos e,

para exaltar o sentido da humildade e redenção divina,

contou-lhe acerca da recente conversão de Vitorino (o que

havia traduzido os escritos de Plotino), como exemplo de

humildade.

Este relato da conversão de Vitorino comoveu

Agostinho, como ele mesmo declarou: “Logo que teu servo

Simpliciano me contou esses fatos sobre Vitorino, senti

imenso desejo de imitá-lo”.76

Ao término da conversa, Simpliciano aconselhou

Agostinho a ler as Sagradas Escrituras, especialmente, as

cartas paulinas: “Lancei-me avidamente à venerável

Escritura inspirada por ti, especialmente à do apóstolo Paulo

(...) Começando a leitura, descobri que tudo o que de

verdadeiro tinha encontrado nos livros platônicos, aqui é

dito com a garantia de tua graça”.77 Com uma grande

diferença: os livros platônicos, ao identificarem o Verbo de

Deus, ou “logos”, com o “nous”, ou razão, esqueciam de

dizer que “o Verbo se fez homem e habitou entre nós”.78 Por

isso Agostinho afirma: “Eu tagarelava como se fosse

competente, mas se não tivesse procurado o teu caminho em

Cristo nosso Salvador, não teria sido perito e sim

perecido”.79

76 Confissões VIII, 5, 10. 77 Ibid., VII, 21, 27. 78 Jo 1,13. 79 Confissões VII, 20, 26. “Perito” - Verdadeiro saber que leva à

salvação. “Perituro” – Perecido falso saber que leva à morte, ou à

condenação.

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Depois da conversa com Simpliciano, Agostinho

passou a viver o dilema entre servir a Deus, a exemplo de

Vitorino, ou continuar sua vida devassa. Conflito que se

agravaria até o momento de sua conversão e que se

caracterizava pela luta entre duas vontades:

A nova vontade apenas despontava; a vontade de

servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade

segura, ainda não era capaz de vencer a vontade

anterior, fortalecida pelo tempo (...) Eu estava certo

de que me entregar ao vosso amor era melhor que

ceder ao meu apetite. Mas o primeiro agradava-me e

vencia-me; o segundo aprazia-me e encadeava-me

(...) Deleitava-me com vossa Lei segundo o homem

interior, mas em vão, porque em meus membros outra

lei repugnava à lei do meu espírito, e me mantinha

cativo na lei do pecado que está em meus membros.80

Agostinho continuaria com sua angústia à espera de

um momento, mas este dilema levaria alguns dias até que

acontecesse sua conversão.

Não se pode deixar de mencionar outro

acontecimento importante para a conversão de Agostinho

que fora o encontro com Ponticiano, um cristão fiel e

compatriota africano que exercia um alto cargo no palácio e

que viera visitar Agostinho e seus conterrâneos Alípio e

Nebrídio. Agostinho conta que, ao chegar a sua casa,

Ponticiano viu uma Bíblia sobre uma mesa e, acreditando

estar numa casa de cristãos, felicitou-os como tal. Em

80 Confissões VIII, 5, 10-12.

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seguida, falou acerca da vida de Santo Antão, um monge do

Egito até então desconhecido de Agostinho, de seus amigos

e de seus seguidores. A narrativa de Ponticiano levou

Agostinho a comparar a vida dos jovens que seguiram Santo

Antão com a sua, e isso aumentou ainda mais sua angústia e

seu conflito interior.

Agora, no entanto, quanto mais ardentemente amava

aqueles dois de quem conhecera a salutar decisão de

se entregarem completamente a ti para serem

curados, mais profundamente eu me detestava, ao

comparar-me com eles (...) Vós, Senhor, enquanto ele

falava, me fazíeis refletir sobre mim mesmo (...) Vós

me colocáveis a mim mesmo diante de mim, e me

arremessáveis para frente de meus olhos, para que,

‘encontrando a minha iniquidade, a odiasse’.

Conhecia-a, mas fingia que não via, procurando

esquecê-la. (...) Vós me colocáveis perante o meu

rosto, para que visse como andava torpe, disforme,

sujo, manchado e ulceroso. Via-me e horrorizava-me;

mas não tinha por onde fugir (...) Assim me roía

interiormente, confundindo-me com horrível e

acentuada vergonha, enquanto Ponticiano falava.81

Após a conversa de Ponticiano, Agostinho ficara

profundamente perturbado, sua alma recusava-se a se

escusar, “pois temia que me atendesses logo e me curasses

imediatamente do mal da concupiscência, que eu achava

melhor satisfazer do que extinguir”.82 Depois de discutir

com Alípio sobre o que ouviram, Agostinho, perturbado,

81 Confissões VIII, 7, 16-18. 82 Confissões VIII, 7, 17.

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retirou-se para os jardins de sua casa a fim de meditar. “Para

aí fui levado pelo tumulto do coração, onde ninguém podia

interferir na luta violenta que travava comigo mesmo, e cujo

resultado nem eu mesmo conhecia, somente tu (...) Eu

fremia de violenta indignação contra mim mesmo, por não

ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus”.83

Muito agitado interiormente, Agostinho fez diversos

movimentos corporais, conforme narra: “Assim, eu

arrancava os cabelos, batia na testa, apertava os joelhos

entre os dedos entrelaçados”.84 Mas nada resolvia, pois o

problema não estava no corpo, mas na alma, na vontade.

Não suportando mais essa luta interior, Agostinho caiu em

choro e, em meio as suas lágrimas, interrogou-se:

Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda:

amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não

pôr fim agora à minha indignidade? Assim falava e

chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração.

Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa

vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo

continuamente uma canção: ‘Toma e lê, toma e lê’.85

Como de impulso, Agostinho lembrou-se da narrativa

de Ponticiano acerca do momento em que Santo Antão

recebeu um sinal de Deus, este interpretou sua experiência

como um chamado de Deus para ler a Bíblia. Daí correu ao

encontro de Alípio que lhe entregou o Novo Testamento e

este abriu-o espontaneamente e leu o que lhe veio aos olhos,

caindo sobre a Epístola de São Paulo (Rm 13,13s) que dizia: 83 Ibid., VIII, 8, 19. 84 Ibid., VIII, 8, 20. 85 Ibid., VIII, 12, 28-29.

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Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em

desonestidades e dissoluções, nem em contendas e

rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não

procureis a satisfação da carne com seus apetites

(Rm 13,13s). Não quis ler mais, nem era necessário.

Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no

coração uma espécie de luz serena e todas as trevas

da minha dúvida fugiram.86

Partilhou a passagem da epístola com Alípio e, juntos,

discutiram a experiência. Em seguida, foram ao encontro de

Mônica contar o ocorrido: estava decidido a ser católico,

queria batizar-se.

Ocorria, assim, o início da conversão de Agostinho

que desistiu da idéia de casar-se e pensou, logo, em deixar a

cadeira de retórica.

Era verão de 386, três semanas antes do término do

curso acadêmico. Anteriormente, ele já pensava em

pedir demissão do cargo, no final do curso. Sua voz

era fraca e alguma enfermidade dos brônquios que

iria molestá-lo toda vida, agravada pelo frio da

Itália, tinha aumentado e prejudicado seu

desempenho como professor de retórica.87

Quando terminou o curso, Agostinho pediu demissão

de seu cargo. Um de seus amigos, Verecundo, colocou a sua

disposição uma casa de campo, num lugar chamado

86 Confissões VIII, 12, 29. 87 ROCHA, Hylton, op. cit., 1989, p. 36.

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Cassicíaco, perto de Milão, para onde se retirou com os

amigos africanos: Alípio, Licênio e Trigécio, filhos de

Romaniano, seus dois primos Rústico e Lastidiano, seu

irmão Navígio, seu filho Adeodato e sua mãe Mônica, para

se dedicarem aos estudos e à leitura da Bíblia. Ali, iriam

preparar-se para o batismo, sob as orientações do bispo

Ambrósio.

Mais tarde, já quase no final de sua vida, nas

Retratações, Agostinho chama este retiro em Cassicíaco de

“Christianae vitae otium”, “ócio ou lazer da vida cristã”, no

qual o grupo se dedica à vida contemplativa, tendo como

modelo a vida de Santo Antão88.

Foi a partir desse retiro que nasceram as suas

primeiras obras: Contra Acadêmicos (386), De Beata Vita

(386), De ordine (386) e Soliloquia, libri duo (387). Esses

tratados, comumente chamados de “Diálogos de

Cassicíaco”, estão ainda profundamente marcados pela

experiência da vida anterior de Agostinho. Neles, Agostinho

procurou respostas as suas inquietações.

No entanto, em 387, Agostinho, seu amigo Alípio e

seu filho Adeodato voltaram a Milão para receberem o

batismo. E, no Sábado Santo (25 de abril) de 387, foram

batizados pelo bispo Ambrósio. Não sabia Ambrósio que,

daquela pia batismal, nascia um dos maiores “gênios

cristãos” da razão e da fé: “Quando chegou o momento em

88A vida de Santo Antão, narrada por Ponticiano, teria grande

influência no modelo de vida contemplativa adotado por Agostinho

durante sua vida religiosa e em seus mosteiros, ao longo dos séculos.

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que devia dar o meu nome para o batismo89, deixando o

campo, voltamos para Milão (...) Fomos batizados, e

desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada”.90

Agora como cristão, batizado, Agostinho permanece

em Milão, onde escreve o tratado De Immortalitate Animae

(387), e começa o projeto, que nunca chegou a realizar, de

escrever uma enciclopédia de artes liberais, à maneira de

Varrón. Escreveu, também, De Gramatica (387) e começou

De Musica que só veio a terminar em 39l.

Agostinho tinha como grande meta retornar a

Tagaste, sua terra natal, onde pretendia dedicar-se à vida

monástica. Ainda em 387, iniciou o caminho rumo a

Tagaste, mas, em passagem por Óstia, sua mãe faleceu

tendo, então, 56 anos de idade. Mônica foi sepultada na

igreja de Santa Áurea, em Óstia. Em 1430, seus restos

mortais foram transferidos para Roma e depositados,

primeiro, na Igreja de São Trifão, e, em 1455, transladados

para a igreja de Santo Agostinho, construída pelos

agostinianos. Em 1566, a urna que contém os restos mortais

de Mônica foi colocada na capela dedicada à Santa, na

mesma igreja de Santo Agostinho. Em Confissões, no

momento em que narra a morte de sua mãe, Agostinho

dedica várias páginas para falar das suas virtudes e

qualidades. Na mesma ocasião, narra o famoso “êxtase de

Óstia”91, vivido por ele e sua mãe, poucos dias antes de esta

falecer.

89 Entenda-se: ser batizado. Os catecúmenos, no início da quaresma,

deviam pedir o batismo. 90 Confissões IX, 6, 14. 91 Confissões IX, 10, 23-26. Aqui se encontra a síntese do pensamento

de Agostinho acerca do conhecimento da Verdade-Deus. Ele percorre

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Após a morte da mãe, Agostinho voltou para Roma,

onde permaneceu por quase um ano. Nesse período,

escreveu De Quantitate Animae (388), De Moribus

ecclesiae Catholicae et Manichaeorum (388) e iniciou o De

Libero Arbitrio, que só veio a terminar na África, em 395.

No ano de 388, regressou à África, estabelecendo-se

em Tagaste. Ali, seguindo o preceito evangélico da pobreza,

vendeu as modestas propriedades de seus pais, ficando com

apenas a casa paterna, onde estabeleceu uma espécie de

mosteiro, vivendo em companhia de seus amigos e

discípulos. Assim, daquela primeira comunidade, nascia o

ideal de vida monástica do Ocidente. Agostinho tinha uma

paixão fascinante pela vida comunitária, pois, desde seus

tempos de juventude, vivera em comunidade com amigos e

familiares. Segundo Carlo Cremona, Agostinho “nunca teria

sido capaz de viver sozinho (...) Este homem, imerso nos

livros (que gostava de ler e escrever em paz) era incapaz de

viver só”.92 Nessa época, escreveu: De Genesi contra

manichaeos (388-390), De Magistro (389), De Vera

Religione (388-391), De Diversis Quaestionibus Octoginta

Tribus (389-396).

Depois de um ano que estava em Tagaste, morreu seu

filho Adeodato; tinha 17 anos de idade. Em Confissões,

Agostinho assim se refere a seu filho:

Juntamos também a nós Adeodato, filho carnal do

meu pecado, a quem tinhas dotado de grandes

as etapas do conhecimento humano: análise dos sentidos,

conhecimento da alma e da razão superior. 92 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 17

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qualidades. Com quinze anos apenas, superava em

talento muitas pessoas maduras e eruditas (...)

Escrevi um livro intitulado O mestre (De Magistro),

no qual meu filho conversa comigo. Tu bem o sabes,

todos os pensamentos aí manifestados por meu

interlocutor são realmente dele, então com dezesseis

anos (...) Reconheço os teus dons, Senhor meu Deus,

criador de todas as coisas e tão poderoso para

corrigir nossas deformidades, pois, de meu, naquele

rapaz, nada havia senão o pecado.93

Estabelecido em Tagaste, Agostinho vive seu ideal

religioso, uma vida dedicada à contemplação e aos estudos

das Sagradas Escrituras, dosada de uma atividade pastoral,

especialmente, escrevendo seus livros e cartas. De sua

experiência de vida comunitária, iniciada já antes de sua

conversão, nasceriam as famosas Regras, um ideal de vida

monástica que tinha como máxima: “Ama e faze o que

queres! A medida para amar a Deus é amá-lo sem medida”

(Reg. 34, 4,7), que seria seguida pelos mosteiros

agostinianos e que influenciaria grande parte das Ordens e

Congregações Religiosas de outras denominações

espalhadas pelo mundo até hoje.

Agostinho nem pensava em ser sacerdote, chegando,

inclusive, a evitar passar por cidades onde não houvesse

sacerdotes, para que não lhe atribuíssem tal encargo.

Agostinho queria contribuir com a Igreja Católica, mas

como um intelectual, um pregador da Palavra de Deus. Em

um de seus sermões, encontramos uma confirmação dessa

postura, ao afirmar: “Temia o ofício de bispo de tal forma

93 Confissões IX, 6, 14.

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que não ia a nenhum lugar, onde soubesse que estava

vacante a sede”.94

Sem querer, Agostinho caiu numa armadilha.

Segundo Possídio, em sua Vita Augustinus, O bispo Valério,

de Hipona, um grego de nascimento, achava-se em

dificuldades para combater as seitas heréticas que se

espalhavam em sua diocese, pois, devido às dificuldades de

falar o latim, pouco convencia seus adversários. Sabendo da

fama de orador de Agostinho, pede a um amigo, “homem de

negócios”, que escrevesse a Agostinho contando-lhe seu

desejo de entrar para a vida monástica, pedindo-lhe que

viesse até Hipona para apresentar-lhe sua experiência de

vida. Agostinho, desejoso de conhecê-lo, veio visitá-lo. Em

Hipona, Agostinho sentia-se tranquilo, pois esta não era

uma diocese vacante. Chegando à cidade, o referido

“homem de negócios” convidou Agostinho para ir conhecer

a catedral. Era um momento de assembléia e, vendo

Agostinho se aproximar, o bispo Valério começou a explicar

ao povo o seu desejo de encontrar alguém, um sacerdote

culto, zeloso e de doutrina segura que o ajudasse a combater

as heresias. Agostinho avançava pela catedral quando,

subitamente, uma multidão de fiéis gritava em coro:

Agostinho! Agostinho! e o arrastou forçosamente até o

bispo Valério:

Como um animal manso preso pelo braço, teve medo.

Olhou assustado o primeiro que lhe tocou as mãos

como lhe implorar piedade. Mas outras mãos vieram

sobre ele, levantaram-no e carregaram-no até o 94 Sermão 355, 2. As citações dos Sermões e das Epístolas que serão

mencionadas nesta obra serão extraídas a partir da tradução que se

encontra em: RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. 1984.

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presbítero, abrindo passagem entre a multidão, que

gritava sempre mais forte: ‘Agostinho! Agostinho!’

Começou então a debater-se e a implorar com as

lágrimas (...) Agostinho, sempre pronto a acolher os

sinais de Deus quando este estava convencido de que

a Graça e somente a Graça, o atraía, disse então,

entre lágrimas: ‘Sim, eis aqui”.95

Agostinho foi recebido no dia seguinte pelo bispo

Valério. Queria confessar-lhe as suas hesitações de ser

sacerdote, mas, como era da vontade de Deus, aceitaria.

Entretanto queria um tempo para preparar-se, bem como

pedia permissão para continuar sua vida monástica naquela

cidade. O bispo concedeu-lhe o tempo desejado e prometeu

ajudá-lo a fundar um mosteiro em Hipona. Na despedida, já

se sentindo padre, ciente de suas responsabilidades,

entregou nas mãos do bispo Valério uma carta que havia

escrito na noite anterior. Esta carta é uma verdadeira obra-

prima de consciência sacerdotal. Nela, Agostinho apresenta

o seu conceito de sacerdócio:

Nesta vida e sobretudo neste tempo, não há nada

mais fácil e honorífico para um homem do que a

dignidade de bispo, de padre ou diácono. Mas

igualmente não há nada mais miserável, prejudicial e

reprovável aos olhos de Deus, se isto é feito com

desleixo ou por vil ambição.96

Depois de alguns meses de preparação espiritual, aos

trinta e sete anos de idade, Agostinho foi ordenado

95 POSSÍDIO, apud CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 146. 96 Epístola 21, 2.

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sacerdote, pelas mãos do bispo Valério. A partir daí, Hipona

seria a residência definitiva de Agostinho, até o fim de sua

vida. Hipona, a Hippo Regius para os latinos, uma simples

cidade portuária, passaria para a História Universal, não por

sua importância, mas por causa da grandeza de Agostinho,

que ainda hoje é conhecido como Agostinho de Hipona.

Com o tempo, Hipona passaria a se chamar Bona, hoje, é

Anabá, na Argélia.

Depois da ordenação, o bispo Valério, atendendo ao

seu desejo monástico, “entrega-lhe parte de um jardim,

junto à residência. Agostinho, presbítero da Igreja,

estabelece aí a continuidade de sua experiência de vida

comunitária”.97 Este mosteiro, de grande importância na

história de Agostinho, ficaria conhecido como o “mosteiro

do jardim”.

Agostinho sempre foi muito admirado pelos cristãos

de Hipona, pois ele tinha muito prestígio, não só em Hipona

e região, mas em toda África, temiam que, a qualquer

momento, este fosse chamado a servir em outros lugares. O

bispo e os clérigos não gostavam que ele se afastasse de

Hipona. Tinham medo de que o raptassem para fazê-lo

bispo de outra diocese. Por isso, o bispo Valério escreveu ao

Primaz da África, pedindo-lhe que ordenasse Agostinho

bispo auxiliar de sua diocese.

Tentou fugir mais uma vez de tal compromisso, mas,

diante da insistência de Valério, no mês de junho de 395,

seria sagrado Bispo Coadjutor de Hipona pelas mãos de

Magálio, Bispo Primaz da África. Posteriormente, em

97 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit., 1989, p. 94.

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sermão, diante dos fiéis, Agostinho diz: “Cheguei a esta

cidade para visitar um amigo com a esperança de ganhá-lo

para Deus e para nosso mosteiro. Fui, porém, apreendido,

ordenado sacerdote e mais tarde bispo”.98 Um ano depois,

com o falecimento de Valério, Agostinho ficaria como

Bispo titular de Hipona.

Sua capacidade não era só a de um intelectual ou

homem de gabinete, mas era um homem preocupado e

envolvido com as grandes questões doutrinais da época. Ele

vivia no meio do seu povo. “Basta percorrer suas obras,

particularmente os seus sermões, pronunciados em Hipona e

Cartago, para ver desenrolar-se a vida cotidiana: a habitação

e a alimentação, os jogos e o lazer, a caça e a pesca, as

viagens e a acolhida. Nada escapa ao olhar observador do

Bispo”.99

Atuando no ministério episcopal, Agostinho era

bastante popular, convivia com seu povo, conhecia as suas

ansiedades, sofrimentos e alegrias. Basta vermos as centenas

de cartas e sermões dirigidos aos seus diocesanos e amigos

de outras regiões. Agostinho era um bispo que participava

ativamente da vida política e social de sua época,

interferindo, reivindicando e intercedendo junto às

autoridades por seu rebanho. Por isso, é errônea a imagem

que os artistas da Idade Média e dos tempos modernos

pintaram de Agostinho, como um bispo vestido

pomposamente com trajes episcopais, com mitra, báculo,

anel e um livro na mão. Agostinho era um bispo humilde

que se vestia como um sacerdote do povo. Ele usava uma

98 Sermão 355, 2. 99 HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 41

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túnica de lã branca, sem ornamentos e sandálias, mesmo

quando estava pregando ou celebrando. Em um de seus

sermões, ao comentar acerca dos presentes pessoais que os

fiéis lhe ofereciam, diz: “Dá-me, de preferência , uma

túnica, bem simples, que eu possa dar de presente a um

pobre, e a um diácono ou a um subdiácono, senão eu

devolverei. Uma veste luxuosa me cobre de vergonha e não

convém à minha função, nem a meu corpo envelhecido, nem

a meus cabelos brancos”.100

Quanto à linguagem na época em que fora bispo,

falavam-se em Hipona duas línguas: o púnico e o latim. A

elite culta falava e escrevia em latim e o povo das cidades

periféricas e do campo falava o púnico: “Roma não apenas

suplantou o grego, língua cultural e internacional até o

século III, mas também fez recuar o púnico, trazido pelos

fenícios, que parece ter-se mantido na costa mediterrânea,

onde se escalonavam os entrepostos comerciais”.101

Agostinho gozava do privilégio de falar as duas línguas.

Muitas vezes, chegou a traduzir seus sermões para o púnico,

como forma de atender aos fiéis que falavam esta língua.

No ano de 410, Agostinho acompanhava atentamente

todos os acontecimentos acerca do saque de Roma, pelos

Godos de Alarico. Diante das acusações dos romanos de que

a debilidade do Império Romano estaria na sua adesão ao

cristianismo, Marcelino, tribuno romano, pediu a Agostinho

que escrevesse uma obra a ser intitulada A Cidade de Deus

contra tais acusações e em defesa dos cristãos.

100 Sermão 356, 13. 101 HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 41.

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Próximo ao final de sua vida, iniciaria outra

importante obra Retractationum Libri Duo, com um olhar

retrospecto de todas as suas obras anteriores, mas que ficaria

inacabada.

Finalmente, em pleno cerco dos invasores vândalos a

Hipona, Agostinho faleceu no dia 28 de Agosto de 430.

2 Santo Agostinho: o filosofar na fé por

meio de suas obras literárias

Agostinho, um dos maiores gênios de todos os tempos

e o maior de todos os Padres da Igreja, foi também o maior

filósofo dos quinze séculos que separam Aristóteles de

Tomás de Aquino. Escreveu muitíssimas obras, embora sem

a intenção de elaborar um sistema filosófico completo,

conseguiu, melhor do que qualquer outro pensador cristão,

estruturar sobre uma base racional marcada pelo platonismo

todas aquelas doutrinas que, reveladas pelo cristianismo, são

também acessíveis à razão.

Não temos a certeza quanto ao número exato de obras

escritas por Agostinho. Alguns comentadores dizem que ele

escreveu 94 obras, divididas em 232 livros, mais algumas

centenas de sermões e cartas, além de pequenos tratados.

Waldecy Tenório102 fala de 113, já Pedro Rubio103 diz que,

na Coleção Latina de Escritores Cristãos, encontram-se mais

102 TENÓRIO, Waldecy. 1986, p. 78. 103 RUBIO, Pedro. op. cit., 1995, p. 398

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de 150 títulos diferentes, sem contar as centenas de cartas,

sermões e pequenos tratados.

Para uma melhor visão de seus escritos, ao final desta

obra, destacar-se-á uma relação de seus escritos em ordem

cronológica.104

104 Ver Anexo 1: Relação de Obras de Santo Agostinho.

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CAPÍTULO II

PRINCÍPIOS DA ÉTICA

AGOSTINIANA

1 O primado do amor

A ética agostiniana, sem equívoco, “é uma ética do

amor, mais precisamente caritas”.105 Para formular uma

moral baseada no amor, Santo Agostinho empreende um

estudo, seguindo o que lhe foi transmitido pela tradição

pagã, cristã, grega e latina. Para Agostinho a força que

impulsiona a realização da ordem moral é o sentimento de

amor, que tem como fim a caridade. Sua força orientadora é

a vontade, que culmina na liberdade, tendo como

consumação a ordem da caridade. O amor é “a força da

alma e da vida”, cuja sua morada é a virtude.

105 Charitas, palavra que vem do latim e que quer dizer caridade.

“Caridade é o amor para os cristãos, que move a vontade à busca

efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de

Deus; ágape, amor-caridade” (DE BONI, Luiz Alberto. 1996 p. 41).

Para uma melhor compreensão, deste termo, ver nota 7 (sete) do

capítulo I desta obra.

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De acordo com Philotheus Boehner e Etienne

Gilson,106 o problema central da ética agostiniana é “o da

reta escolha das coisas a serem amadas”. Nesta perspectiva,

o problema moral não consiste em perguntar-se se há que

amar, senão o que amar. Para Agostinho, o amor está na

própria natureza humana. Trata-se de um apetite natural,

pressuposto pela vontade livre que deve, iluminada pela luz

natural da razão, orientá-lo finalmente para Deus. O amor é,

pois, uma atividade decorrente do próprio ser humano.

Donde se deduz que, quando se tem no fundo do coração a

raiz do amor, dessa raiz não pode sair senão o bem, o que

resulta na tão citada máxima agostiniana: “Ama e faze o que

quiseres”.107

Neste sentido, seria um equívoco querer separar do

homem o seu amor. Pois, se há um problema, este não diz

respeito ao amor como tal, nem à necessidade de amar, mas

unicamente à escolha do objeto a ser amado, ou melhor, ao

valor ou intensidade que se dá ao objeto amado, pois, em si,

o objeto é um bem. Portanto, o problema da liberdade é o da

reta escolha das coisas amadas, da intensidade ou medida

em que se amam as coisas, isto é, da reta ordem do amor:

Vive justa e santamente quem é perfeito avaliador das

coisas. E quem as estima exatamente mantém amor

ordenado. Dessa maneira, não ama o que não é

digno de amor, nem deixa de amar o que merece ser

amado. Nem dá primazia no amor àquilo que deve

106 BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. 1988. 107 AGOSTINHO, Santo. Comentário da primeira Epístola de São

João. Trad. de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

Livro VII, 8. Nas próximas indicações referentes a esta obra, indicar-

se-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo.

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ser menos amado, nem ama com igual intensidade o

que se deve amar menos ou mais, nem ama menos ou

mais o que convém amar de forma idêntica.108

Dentro do princípio da ordem dos seres, o amor é o

parâmetro na hierarquia de valores das coisas a serem

amadas: “O amor, que faz com que a gente ame bem o que

deve amar, deve ser amado também com ordem; assim,

existirá em nós a virtude que traz consigo o bem viver”.109 E

dentro da hierarquia das coisas a serem amadas, Deus

aparece em primeiro lugar, a Ele deve-se amar com todo o

amor: “O Criador, se é verdadeiramente amado, isto é, se é

amado Ele e não outra coisa em seu lugar”,110 aí reside o

verdadeiro amor, que faz do homem um ser reto e feliz. Do

contrário, chegamos à origem e natureza do pecado ou mal.

Pecado ou mal consiste em submeter a razão humana à

paixão, em desobedecer às leis divinas, em afastar-se do

Bem supremo. Portanto, se a perfeição moral consiste em

amar a Deus, em dirigir a vontade a Deus e em por todas as

potências, os sentidos, por exemplo, em harmonia com

aquela direção, o mal consistirá em afastar-se da vontade de

Deus. Por isso o mal é sempre mal moral e tem como

origem a vontade livre do homem. O homem é o autor do

mal moral. O mal moral nada mais é que um ato insuficiente

da vontade, uma escolha corrupta: para não cair e, portanto,

para bem usar o livre arbítrio, é indispensável à intervenção

divina. Alcançar a Deus, isto é, conhecer e amar a verdade é

a única felicidade que pode satisfazer o espírito humano;

toda satisfação nos bens terrenos, imperfeitos e caducos,

108 A doutrina Cristã. I, 27, 28. 109 A cidade de Deus XV, 22. 110 Ibid., X, 22.

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está destinada a desiludir amargamente a aspiração inata do

homem.

Agostinho, em O Livre Arbítrio e, também, em A

Cidade de Deus, chega à conclusão de que o problema não

está nas coisas temporais, que em si são boas, uma vez que

foram criadas por Deus, mas no mau uso dessas coisas pelo

homem. O problema está no homem que, por um ato de

liberdade, resolve inverter a ordem estabelecida por Deus,

preferindo amar antes as coisas criadas, inclusive, a si

próprio, do que ao Criador; a isso Agostinho chama de má

vontade, soberba ou pecado.111 111 O problema do mal perpassa toda a filosofia de Santo Agostinho,

pondo em discussão a conduta moral humana e suas implicações

éticas. A identificação do mal como pecado (do latim pecus, que

significa emperrar, travar), é oriundo do cristianismo. De fato, entre os

gregos e outros povos antigos, o mal sempre foi pensado de maneira

“passiva”, sobretudo, entre os povos politeístas, pois acreditavam que

fazia parte de uma relação natural com os deuses. A partir dos escritos

paulinos, não temos mais os males humanos como decorrência da

vingança dos deuses (como narram os mitos), mas os males do mundo

(morais e físicos), como decorrentes do mal ou pecado humano. Mais

explicitamente, contrapondo-se à sabedoria, a concupiscência causa

males à natureza e, no homem, seus efeitos podem ser percebidos,

inclusive, no seu próprio corpo (ex: algumas doenças, a morte...). O

pecado é então, o mal que se lança do interior do homem não

permitindo que o bem prevaleça e somente é conhecido por ser

refletido nas relações com as coisas. Diferentemente do mal

metafísico que seria uma realidade externa ao homem, o mal moral

parte das paixões humanas; elas são interiores e se concretizam no

agente moral que é dotado de consciência, liberdade e vontade. Por ser

interior, revela-se somente nas ações morais exteriores e reveste-se de

coletividade, ou seja, todos partilham seus efeitos, portanto, capaz de

determinar o justo e o injusto, o sensato e o insensato, indistintamente.

O mal moral tem sua raiz na má vontade humana orientada pelo livre

arbítrio que, movida pelos vícios e não pelas virtudes, não escolhendo

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Para Agostinho, a força maior da moralidade é o

amor, que é a medida e o peso da vontade humana: “As

tendências dos pesos são como que os amores dos corpos,

quer busquem, por seu peso, descer, quer busquem, por sua

leveza, subir, pois, como o ânimo é levado pelo amor aonde

quer que vá, assim também o corpo é por seu peso”.112 Para

ele, o que pode levar-nos a Deus é a “caritas”, ou seja, o

amor indivisível a Deus. A caridade consiste principalmente

num peso interior que atrai a alma para Deus: “Meu peso é o

amor; por ele sou levado para onde sou levado”.113 Mas esta

caridade se diferencia de todas as outras modalidades de

“amor”, pelo fato de referir-se exclusivamente a seres

pessoais.

O amor a uma pessoa difere do amor a uma simples

coisa. Nós amamos as coisas em atenção à nossa

própria pessoa, a cujo serviço elas perdem sua

existência, como sucede com outros amores terrenos

que se ama, mas que se consome com o passar do

tempo. Já o amor puro, sincero e generoso a um ser

corretamente, não proporciona o bem que poderia em potencialidade.

Assim, também as más ações cometidas por ignorância, inadvertência

e involuntariamente não deixam de ser males, pois têm sua origem no

primeiro pecado. Esse, com efeito, como antecedente, provocou todos

os outros consequentes, isto é, os males físicos. Agostinho,

identificando a origem do mal com a liberdade, solidifica seus

argumentos, fundamentando na vontade humana (desordenada e

depravada), o surgimento de uma realidade não existente, mas que

passa a existir decorrente do mau uso da liberdade, não subsistindo

por si própria. 112 A cidade de Deus XI, 28. 113 Confissões XIII, 9, 10.

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pessoal, ao contrário, visa à pessoa como tal, e em si

mesma.114

2 O amor e a noção agostiniana de ordem

A originalidade do pensamento de Agostinho consiste

no fato de ele ter realizado uma síntese entre a filosofia

antiga, que lhe foi possível conhecer, e a revelação judaico-

cristã. Só entendemos bem sua noção de ordem, se

entendemos o que dela pensaram seus antecessores.

Para a filosofia antiga, isto é, para os gregos, o mundo

era inicialmente o imenso caos que, de algum modo, passou

a ser cosmos. A grande preocupação dos pré-socráticos era,

exatamente, a de saber qual era o arché ou o princípio

ordenador do universo. Na verdade, toda filosofia grega

procurou esclarecer esta questão. Sabemos, porém, que o

período socrático era mais antropológico e o pós-socrático

mais ético, mas foi, sem dúvida, o paradigma cosmológico

que marcou toda a filosofia grega. Contudo, apesar de

divergências, ficou a idéia da existência de um logos, uma

razão universal responsável pela origem e manutenção da

ordem cósmica. O homem, por sua vez, enquanto ser

racional, está submisso a esta ordem e, ao mesmo tempo,

ligado ao próprio logos, uma vez que traz em si uma

centelha dele. Essa racionalidade o torna capaz de conhecer

114 Coment. da 1ª Epístola de São João VIII, 4-5, apud BOEHNER,

Philotheus e GILSON. 1988. p. 189.

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a ordem da natureza e de ter a independência de aceitá-la ou

rejeitá-la. Decorre daí a noção de que a perfeição moral

consiste na identificação da vontade com a reta ordem da

natureza. Portanto, na visão clássica, a idéia de ordem tem

duas faces: uma ontológica e outra ética.

Santo Agostinho absorve esta noção de ordem e a

articula com algumas idéias fundamentais da revelação

judaico-cristã, tais como a de um Deus subsistente, criador

de todas as coisas e, especialmente, do homem. Nesta

síntese, ele leva a ordem ontológica a sua perfeição e, ao

mesmo tempo, leva a ordem ética ao seu pleno

esclarecimento.

Agostinho, para aperfeiçoar a ordem ontológica,

introduz nela a figura do Deus criador, que, em muito,

ultrapassa tanto o Demiurgo platônico que, ordenando o

caos, faz surgir o cosmos, como o Uno plotiniano do qual

procedem espontaneamente todos os seres. O Deus da

revelação judaico-cristã, diferente e superior, cria, ou seja,

faz surgir do nada: “Ele é o criador... Daí vem ter criado do

nada todas as coisas”115, por sua livre e suprema vontade,

tudo o que existe116. Em seu ato criador, Ele dá não só a

existência a todas as criaturas, mas as dota também de uma

lei interna e natural que as rege em harmonia com a sua

própria lei eterna117. Além disso, neste mesmo ato, aquele

que é o Ser e o Bem supremo comunica às criaturas seu ser

e sua bondade; portanto, estas são ontologicamente boas,

não por si mesmas, mas por uma participação na suprema

bondade do seu criador: “Tais seres não conservariam a 115 O livre arbítrio I, 2, 5. 116 Confissões XI, 4-6 e XII. 117 O livre arbítrio I, 2, 4 e 6, 15.

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própria ordem, se não houvessem sido feitos por Aquele que

é em sumo grau, e é sumamente sábio e sumamente

bom”.118

Portanto, fica evidente que a ordem ontológica é o

fundamento da ordem ética, pois, embora as leis que regem

as duas ordens tenham a sua origem no mesmo Deus

criador, a moralidade diz respeito à manutenção ou

perturbação da ordem natural. Logo, enquanto a ordem

ontológica aplica-se a todas as criaturas, a ordem ética é

específica do homem, uma vez que somente ele tem o poder

de respeitar ou transgredir a lei natural e eterna. Isto é

possível porque, ao criá-lo à sua imagem e semelhança119,

Deus o dotou de vontade livre; tornando-o capaz de uma

transgressão culposa ou de uma aceitação respeitosa da reta

ordem dos seres.120 Em um outro momento, Agostinho

afirma: “Toda criatura, pois sendo boa, pode ser amada bem

e mal. Amada bem, quando observada a ordem; mal, quando

pervertida”.121 Dessa forma, a virtude já não pode mais ser

concebida como uma contenção do desejo ou do amor.

Portanto, se em seu diálogo sobre A Vida feliz122, ele havia

118 A cidade de Deus XI, 28. 119 Agostinho expõe essa questão em A Trindade XII, 7,12 e XIV,

8,11, e em A cidade de Deus XII, 23 e 27. 120 Cf. O livre arbítrio II, 18,47. 121 A cidade de Deus XV, 22. 122 Nesta obra, Agostinho é ainda muito influenciado pelo pensamento

grego, principalmente pelos estóicos. Na concepção estóica, os

princípios éticos da harmonia e do equilíbrio baseiam-se, em última

análise, nos princípios que ordenam o próprio cosmo. Assim, o

homem, como parte desse cosmo, deve orientar sua vida prática por

esses princípios. A ataraxia, apatia, imperturbabilidade, é o sinal

máximo de sabedoria e felicidade, já que representa o estado no qual o

homem, impassível, não é afetado pelos males da vida.

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definido a virtude como moderação da alma, em A Cidade

de Deus, ele a define, de modo mais perfeito, como ordem

do amor. “O amor, que faz com que a gente ame bem o que

deve amar, deve ser amado também com ordem; assim,

existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem. Por

isso, parece-me ser a seguinte a definição mais acertada e

curta de virtude: A virtude é a ordem do amor”.123

Para Agostinho, o amor é a essência e o motor da vida

humana, não amar significa não viver, ser infeliz e contê-lo

é o mesmo que viver precariamente ou morrer. Para ele, na

verdade, o coração vive inquieto, não porque amamos, mas

porque amamos desordenadamente. Portanto, não será

limitando o amor que encontraremos a paz, mas sim

ordenando-o: “As coisas que não estão no próprio lugar

agitam-se, mas quando o encontram, ordenam-se e

repousam”.124 Ainda uma questão: ao amar, que tipo de

ordem o homem deve seguir? Ora, “a ordem é a disposição

que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhe

corresponde”.125 Assim, o homem amará ordenadamente se,

julgando e apreciando todas as coisas com justiça, submeter

os bens exteriores ao corpo, este, por sua vez, à alma, em

seguida, na própria alma subordinar os sentidos à razão e

esta a Deus: “Por conseguinte, quando a razão domina esses

impulsos da alma, deve dizer-se que o homem está

conformado segundo a norma da ordem”.126

123 A cidade de Deus XV, 22. 124 Confissões XIII, 9, 10, e também A cidade de Deus XIX, 13. 125 A cidade de Deus XIX, 13, 1. 126 O livre arbítrio I, 8, 18. Agostinho também diz o seguinte: “Com

efeito, quando a mente não se ama como deve é ré de pecado e seu

amor não é perfeito. Isso acontece, por exemplo, quando a mente do

homem se ama com a mesma intensidade com que ama o seu corpo -

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A ordem do amor é a perfeita justiça: “Essa é a

perfeita justiça – a que nos leva a amar mais o que vale

mais, e amar menos o que vale menos”.127 Portanto, é

somente quando o homem ama, por sua livre vontade, de

acordo com a ordem natural e eterna que o próprio Deus

imprimiu no interior de todas as criaturas, que ele estará

vivendo a autêntica ordem do amor. Além disso, é esta

virtude do amor ordenado que, mesmo em meio às

adversidades desta vida que perturbam a paz, permite-nos

usar ordenadamente os bens e até os males deste mundo,

garantindo-nos, assim, a verdadeira paz: “Esta paz, ansiada

por todos”.128 Isto se esclarece melhor quando ele enuncia:

Quando nós, mortais, entre a efemeridade das coisas,

possuímos a paz que pode existir no mundo, se

vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus

bens; mas, quando não a possuímos, a virtude faz

bom uso até mesmo dos males de nossa condição

humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em

fazer bom uso dos bens e males e em referir tudo ao

fim último, que nos porá na posse da perfeita e

incomparável paz.129

pois ela é superior ao corpo. Peca do mesmo modo, e seu amor não é

perfeito, se ela se ama mais do que exige o seu ser, como no caso de

se amar a si mesma, com o mesmo ardor exigido pelo amor devido a

Deus - pois ela é incomparavelmente inferior a Deus. Incorre em

pecado de maior malícia e maldade, se ela amar o seu corpo tanto

como Deus deve ser amado” (A Trindade IX, 4,4). 127 A doutrina cristã I, 27, 28. 128 A cidade de Deus XIX, 11. 129 Ibid., XIX, 10.

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Como vimos, quando o homem ordena o seu amor,

encontra a sua paz. E, como em Agostinho, paz e felicidade

se identificam, podemos dizer que, amando ordenadamente,

o homem será feliz e terá paz: “E tão nobre bem é a paz, que

mesmo entre as coisas terrenas e mortais nada existe mais

grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem

superior em excelência (...) doçura da paz, ansiada por

todos”.130

Porém, uma outra questão vem à tona: à medida que o

homem ordena o seu desejo a fim de amar a todos os seres

de acordo com o lugar que cada um ocupa na escala

ontológica, vai crescendo nele a consciência de que não há,

entre eles, nenhum que seja o ser supremo, exceto Aquele

que os criou. “Sendo, pois, Deus suma essência, isto é,

sendo em sumo grau e, portanto, imutável, pôde dar o ser às

coisas que criou do nada, não, porém, o grau sumo, como é

Ele”.131 E para conhecê-Lo precisamos transcender com o

poder da razão. “É grande e bem raro esforço transcender

com o poder da razão todas as criaturas corpóreas e

incorpóreas, que se apresentam mutáveis, e chegar à

substância imutável de Deus, e dele próprio aprender que

toda a natureza que não é Ele não tem outro autor senão

Ele”.132 Ora, a consolidação desta consciência o leva a

desejá-Lo, preferencialmente, pois a própria ordem do amor

assim o exige. Falando de maneira diferente, à medida que

amamos ordenadamente as criaturas, percebemos que elas

se constituem num convite para que amemos em primeiro

130 Ibid., XIX, 11. 131 A cidade de Deus XII, 2. 132 Ibid., XI, 2.

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lugar o seu Criador133. Assim, a virtude do amor não apenas

faz o homem amar retamente todas as coisas, mas também

desperta e ordena o seu amor-desejo em direção a Deus.

Para Agostinho, o homem virtuoso ama a Deus não

pelo simples cumprimento de um dever, mas porque O

deseja. Porém, mesmo vivendo a ordem do amor e

experimentando toda paz e alegria que esta lhe proporciona,

ele ainda não é completamente feliz. Pois, se deseja Deus,

como pode ser feliz, se ainda deseja? “Não é feliz, senão

aquele que possui tudo o que quer...”.134 Também: “Não é

feliz aquele que não tem o que deseja”.135 Entretanto, desde

então, este homem já é feliz: “Feliz o que Vos ama...”.136,

porque ama, acima de todas as coisas, o Único que pode,

realmente, conduzi-lo à plena felicidade.

3 O amor e a felicidade: o eudemonismo137

antropológico em Santo Agostinho

Será que existe alguém que não queira ser feliz?

Existirá alguém que não ame? Amar e ser feliz, dois anseios

133 Cf. Confissões: “Diálogo com as criaturas à procura de Deus” (X,

6,9-10) e “Deus, no poema da criação” (XI, 4,6). 134 A Trindade XIII, 5, 8. 135 Ibid., XIII, 6, 9. 136 Confissões IV, 9, 14. 137 Doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o

fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente

boas as condutas que levam à felicidade.

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de todo homem. Mas em que consiste a felicidade? O que

devemos amar para sermos felizes? Que tipo de amor pode

realmente fazer-nos felizes? Seriam muitas as perguntas e

respostas. No entanto, mais do que perguntas, transparecem

o desejo de felicidade e a necessidade de amor. Santo

Agostinho, como todo ser humano, não somente

experimentou estas realidades e percebeu a estreita relação

que existe entre elas, mas também se esforçou para

compreendê-las e partilhar as suas luzes intelectuais com

seus ouvintes e leitores. Agostinho tinha a certeza e fez isto

na esperança de que, compreendendo-as melhor, nós

amaríamos o que realmente necessitamos amar e, desse

modo, também neste amor, seríamos felizes.

Neste sentido, podemos afirmar que toda sua

antropologia filosófica gira em torno do problema da

felicidade do homem e que esta se confunde com o

problema do homem Agostinho; o problema de sua

dispersão, inquietude e busca da felicidade: “Tornei-me um

grande problema para mim mesmo e perguntava à minha

alma por que estava tão triste e angustiado, mas não tinha

resposta”.138 O centro de sua especulação filosófica coincide

verdadeiramente com sua personalidade. Sua filosofia é uma

interpretação de sua vida, conforme expusemos no primeiro

capítulo desta obra, através do itinerário de sua vida.

Na obra A Cidade de Deus, Agostinho diz que todos

os homens querem ser felizes: “É pensamento unânime de

todos quantos podem fazer uso da razão que todos os

mortais querem ser felizes. Mas quem é feliz, como tornar-

se feliz, eis o problema que a fraqueza humana propõe e

138 Confissões IV, 4, 9.

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provoca numerosas e intermináveis discussões”.139 Esta

constatação ele a põe na base e no início de todas suas

argumentações, em resposta às mais variadas interrogações

ou situações. O problema da felicidade humana perpassa

toda sua produção literária, desde os primeiros diálogos

filosóficos de Cassicíaco140, passando pelas dezenas de

obras filosófico-teológicas e centenas de cartas e sermões.

Ao escrever uma de suas cartas para aconselhar à rica

viúva Proba sobre o que pedir em oração, Agostinho coloca

que a busca da felicidade é algo imanente à natureza do

homem, fazendo, assim, parte da natureza humana; todos os

homens, bons e maus, a desejam: “Todos os homens querem

possuir vida feliz, pois mesmo os que vivem mal não

viveriam desse modo, se não acreditassem que, assim, são,

ou que podem vir a ser felizes. Que outra coisa te convém

pedir se não o que bons e maus procuram adquirir, ainda

que somente os bons consigam?”141 No final do diálogo,

Agostinho chega à conclusão de que a verdadeira felicidade

está em Deus, isto é, só é verdadeiramente feliz quem possui

a Deus. Para ele, a busca da felicidade do homem converte-

se na procura ou busca de Deus, o único que pode dar-lhe

consistência e estabilidade. A inquietude, as dúvidas, a

necessidade de amor e de felicidade fundamentam a

natureza própria do homem. Esta inquietação não é senão a

ânsia por conhecer a si mesmo e a Deus: “Onde estava eu

quando te procurava? Estavas diante de mim, e eu até de

139 A cidade de Deus X, 1. 140 Cassicíaco, lugar onde Agostinho se retirou junto com seus amigos

e sua mãe para se preparar para o batismo. Frutos deste retiro foram as

obras: A Vida Feliz, Solilóquios, Da Ordem e Contra Acadêmicos. 141 AGOSTINHO, Santo. Cartas a Proba e a Juliana: direção

espiritual. São Paulo: Paulus, 1987. Ep. 130, 4,9.

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mim mesmo me afastava, e se não encontrava nem a mim

mesmo, muito menos podia encontrar-te a ti”.142 Agostinho,

de certa forma, renova a especulação filosófica sobre o

homem, ao transformar o princípio filosófico-natural de

Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”, em um princípio

filosófico-religioso: “Que eu me conheça a mim mesmo e

que te conheça, Senhor!”.143

Nisso, Agostinho introduz um importante elemento

para a compreensão de sua especulação filosófica racional: a

fé revelada que daria um caráter original ao seu pensamento

filosófico e que se caracterizaria por uma Filosofia Cristã.

Agostinho, neste sentido, faz uma perfeita conciliação entre

a fé e a razão ou filosofia, chegando à sua máxima de

“Crede ut intellegas, intellege ut credas”, ou seja: “Crê para

que a fé ajude o intelecto a entender; entender, para que o

intelecto procure a fé”.144 Alguns comentadores de suas

obras afirmam que toda filosofia de Agostinho é filosofia

cristã, desenvolvendo-se no âmbito da fé, não sendo senão

esforço para reencontrar, pela razão, a verdade recebida por

via da autoridade. Eles reconhecem que a necessidade de

crer para compreender é exigência essencial do

agostinianismo, completada pelo compreender para melhor

crer.145 Para Agostinho, o objetivo da filosofia será sempre a

procura da felicidade: “Que o filósofo tenha amor a Deus,

pois se a felicidade é o fim da filosofia, gozar de Deus é ser

feliz”.146 O filósofo procura a verdade, não simplesmente

142 Confissões V, 2, 2. 143 Solilóquios II, 1, 1. 144 Sermão 43, 9. 145 Cf. BROWN, Peter. Apud OLIVEIRA, Nair de Assis. In:

AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. 1993. 146 A cidade de Deus VIII, 9.

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para ser sábio, mas para ser feliz, e coloca tal felicidade

onde realmente ela se encontra, a saber: na posse de um bem

imutável, na verdade, em Deus. Quem procura a felicidade

busca a Deus, e só ao encontrar a Deus encontrará a

felicidade. “Ninguém faz feliz o homem senão aquele que o

criou”.147

Portanto, para responder aos questionamentos sobre

onde encontrar a felicidade ou como pode o homem ser

feliz, Agostinho não tem dúvidas de que uma só é a

resposta: a sabedoria. Sabedoria, entretanto, que é a posse

do conhecimento, de verdade tal, capaz de saciar

plenamente a aspiração humana pela beatitude. Ele

proclama, com convicção, ser a Sabedoria um dos nomes de

Deus, mais precisamente, o nome do Filho de Deus, Cristo.

Ele vincula sabedoria, posse do conhecimento ou da

verdade, com a felicidade. Para ele, não é possível a

felicidade sem a verdade. Quando, mais tarde, ao rever a

própria atitude de inquietação e angústia que o dominou

toda sua vida, Agostinho dá-se conta de que, na realidade,

nunca desejou outra coisa senão a verdade, e que a verdade

é o próprio Deus, que Deus se encontra no interior do

homem, na sua alma. A partir de sua experiência, ele ensina:

“Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a

Verdade habita no coração do homem”.148

147 Epístola 155,2. 148 A verdadeira religião 39, 72.

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4 A moral interior: princípio do agir

humano

Para Agostinho, como vimos no item anterior, o

grande problema do homem é a busca da felicidade, a qual

consiste na plena posse e gozo do amor, da sabedoria, da

verdade. Ou seja, da verdadeira felicidade que se encontra

em Deus, “sumo bem do homem... ser supremo... imutável,

ao qual todos os outros bens se referem”.149 A partir desse

pressuposto, Agostinho orienta suas teses morais para a

busca da beatitude e, por ela, para Deus que,

exclusivamente, pode assegurá-la. Nesse sentido, toda moral

agostiniana se enquadra dentro de seu eudemonismo

antropológico, cuja preocupação primeira e última é a

felicidade do homem que, em Agostinho, adquire um caráter

cristão, em que o início e o fim da procura é Deus.

Santo Agostinho chega à certeza de que só em Deus o

homem encontra a verdadeira felicidade. Entretanto, o

homem é um ser concreto, que vive em meio a bens

materiais. Daí, como conciliar a felicidade temporal,

proporcionada pelos bens temporais, mutáveis e

corruptíveis, e a verdadeira felicidade que se encontra em

Deus, imutável e eterno? De que forma o homem pode

usufruir dos bens temporais em vista dos bens eternos?

Para ele, viver, segundo os bens temporais, tendo em

vista os bens eternos, constitui o grande drama existencial

do homem em busca da felicidade:

149 Epístola 137.

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Há uma certa vida do homem envolvida nos sentidos

carnais, entregue aos gozos da carne (...) A felicidade

de tal vida é temporal (...) Mas há outra vida, cujo

gozo está na alma, cuja felicidade é interior e eterna

(...) O que importa é saber para onde a alma racional

prefere dirigir pela vontade o uso da mesma razão ou

para os bens da natureza exterior e inferior; isto é,

para que goze do corpo e do tempo ou, ao invés, da

divindade e da eternidade.150

Buscando resolver tal drama, Agostinho desenvolve

sua doutrina moral e ascética, centrada nas regras da ordem

e do amor, ou amor ordenado, que se baseia no princípio

cristão da divina ordem, como vimos no item anterior, e

cujo papel fundamental é desempenhado pela vontade

humana, a qual, conhecendo a reta ordem através da razão,

irá escolher, por um ato livre, viver segundo essa ordem ou

desrespeitá-la.

Neste sentido, a doutrina moral agostiniana supõe a

existência de uma ordem divina no mundo. O

reconhecimento e enquadramento nessa reta ordem pela

razão ou vontade humana é a condição da posse e gozo da

verdadeira felicidade do homem.

Reconhecendo essa ordem, a vontade humana evita

perturbá-la e a respeita em suas ações, mediante a justa

apreciação de valores e reta conduta de vida, frente a ela.

Assim, o fim da moralidade é a reta manutenção da ordem,

que se identifica com a vontade divina; ao passo que o mal,

desordem, consiste na transgressão culposa desta ordem:

150 Epístola 140, 2,3.

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“Deus, Autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem

reto; mas, o homem, depravando-se por sua própria vontade

e justamente condenado, gerou seres desordenados e

condenados”.151 Mesmo o mal, fruto da livre vontade do

homem, passa a fazer parte da ordem divina, pois, segundo

Agostinho, “o Criador permanece bom, usando bem,

mesmo do que é mau. Quem, pois, se põe fora da ordem

pela injustiça dos pecados, volta a esta ordem mediante a

justiça dos castigos”.152

Em diversos momentos de A Cidade de Deus,

Agostinho insiste em afirmar que toda natureza é boa, visto

que todas as coisas foram criadas por Deus, o problema é o

valor que a vontade humana atribui às coisas criadas:

“Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal”.153

Por último, ele defende que, na ordem dos valores,

não devemos antepor as coisas superiores às inferiores, mas

dar a cada um o que é seu. Para defender essa idéia, ele

parte do conceito ciceroniano de justiça (fundado no direito

natural), segundo o qual justo é dar a cada um o que é seu:

“E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a

virtude pela qual damos a cada um o que é seu?”154 Ele lhe

dá um caráter religioso, tendo como fundamento o duplo

preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e

ao próximo como a si mesmo” 155, ou seja, dar a cada um o

151 A cidade de Deus XIII, 24. 152 Epístola 140, 2, 4. 153 A cidade de Deus XI, 27. 154 O livre arbítrio I, 13, 27. Também em A cidade de Deus XIX, 21 e

XXI, 16. 155 Lucas 10, 27.

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amor devido; a Deus em primeiro lugar e a si mesmo e ao

próximo em segundo lugar.

5 O amor e a experiência de DEUS

Somente o amor a Deus é o único caminho que

conduz o homem à perfeita felicidade; porém, como este

amor é ainda um desejo, uma vez despertado em seu

coração, ele não repousará enquanto não possuir a Deus:

“Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,

enquanto não repousa em ti”.156 Quando o desejo de Deus

desperta em nós e que, movidos por ele, resolvemos amá-Lo

acima de todas as coisas, a nossa vida transforma-se num

constante exercitar-se e o fim não pode ser outro senão a

sua completa satisfação. Este desejo de Deus marca o início

de um novo movimento na caminhada do homem em busca

da felicidade. Antes de sua conversão, Agostinho buscava a

felicidade fora de si mesmo e só encontrava insatisfação

com a posse das coisas e das criaturas; isso o fez sentir a

necessidade de realizar o movimento de retorno para seu

próprio interior, a fim de, pela prática da virtude, ordenar o

seu amor-desejo. Agora, tendo a ordem do amor despertado

nele o desejo de Deus, apresenta-se a ele a oportunidade de

encontrar não apenas a si mesmo, mas de ir além de seu

próprio espírito a fim de atingir o transcendente, isto é,

Deus.

156 Confissões I, 1, 1.

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O desejo de Deus não é algo acrescentado

culturalmente, mas é algo que já se encontra no interior do

homem, está implícito no desejo de felicidade: “desejam ser

felizes, como a verdade o proclama, como o exige a própria

natureza, na qual o Criador inseriu esse desejo”157; é algo

tão natural e inato quanto o desejo de autoconservação e o

próprio desejo sexual. O desejo de Deus é parte constitutiva

da estrutura psico-ontológica do homem; e ele o carrega

dentro de si, como uma fome interior.158 O homem deve

tomar consciência desse desejo e canalizá-lo para Deus,

senão, ele permanecerá secretamente vivo em seu coração,

provocando nele uma constante inquietude.159 Para

Agostinho, Deus colocou esse desejo no coração do homem

não porque precisasse dele, visto que Ele é imune às

necessidades, mas porque queria que ele participasse de sua

suprema beatitude.160 Portanto, buscar ser feliz é buscar a

Deus e o desejo universal de felicidade é a explicitação do

desejo de Deus que secretamente habita todo homem.

Para encontrar a Deus, o homem deve encontrar-se a

si mesmo, imagem e semelhança do seu Criador, aí está a

dignidade do homem, não no sentido corpóreo, mas na sua

alma “imagem de Deus... que se encontra na alma”161, ou,

157 A Trindade XIII, 8, 11. 158 “Fome de Deus...” Confissões III, 1,1. 159 Confissões I, 1,1. 160 “São felizes aqueles (...) por estarem unidos a Deus, somente Deus

é o bem que torna feliz a criatura racional ou intelectual. Assim,

embora nem toda criatura possa ser feliz (pois não alcançam nem são

capazes de tal graça as feras, as plantas, as pedras e coisas assim), a

que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou.

Torna-a feliz a posse daquele cuja perda a torna miserável” (A cidade

de Deus XII, 1,2). 161 A Trindade XIV, 16,22.

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precisamente, na sua parte mais nobre, também chamada de

razão, mente ou espírito que é diferente dos irracionais162,

isto é, no homem interior.163 Mas, para o pensamento

agostiniano, o fato de Deus habitar no interior do homem,

mesmo que o homem entre em seu interior e conheça sua

alma, logo perceba que mesmo esta parte mais nobre dele

ainda não é Deus, será ainda necessário transcender

totalmente a si mesmo e, subindo interiormente, ir para além

de seu próprio espírito: “A Verdade habita no coração do

homem (...) vai além de ti mesmo (...) dirige-te à fonte da

própria luz da razão”.164 É na alma, interioridade do homem,

o lugar onde o homem experimenta a vida feliz.165 Esta,

porém, só fixará morada se o homem encontrar, não

somente a si mesmo, mas também a Deus.

Encontrar Deus é uma necessidade de todo ser

humano, é um desejo e o desejo é um dos afetos básico da

vontade, está presente em todas as partes da alma. Portanto,

a mente, enquanto sua parte superior, é dotada não somente

da capacidade de conhecer e contemplar a Deus, mas

também de desejá-Lo, amá-Lo e, consequentemente, possuí-

Lo: “Ninguém é capaz de amar a Deus, antes de o conhecer.

E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar e perceber

com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um corpo

para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos

corporais”.166 Amar a Deus é renunciar a si mesmo e

entregar-se completamente. Quando o homem entrega-se

totalmente ao amor de Deus, entra na posse de Deus, e quem

162 Ibid., XV, 1, 1. 163 A Trindade XIV, 8, 11, e O livre arbítrio I, 8, 18. 164 A verdadeira religião 39, 72. 165 A vida feliz IV, 25. 166 A Trindade VIII, 4, 6.

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O possui já não tem necessidade de mais nada, pois Ele é o

soberano bem, já que possuí-Lo é tudo possuir. Amando a

Deus desta forma, o homem estará, de fato, amando a si

mesmo, uma vez que somente a posse de Deus o satisfaz

plenamente.167 A este amor que é união com Deus

Agostinho chama de caridade, pois é o amor com perfeição,

sem inquietudes, porque atingiu o seu Bem supremo e,

portanto, sua completa satisfação.168

Estar unidos a Deus e amá-Lo é tornar-nos

semelhantes a Ele: “Cada um é tal qual aquilo que ama.

Amas a terra? Terra serás. Amas a Deus? Que direi? Serás

deus? Não ouso afirmá-lo por minha conta. Escutemos as

Escrituras: ‘Eu disse sois deuses e todos sois filhos do

Altíssimo”.169 Quanto mais estamos unidos a Ele, mais

compreendemos que “Deus é Amor”, e quem O ama

realmente participa do seu amor. Portanto, amar a Deus é

tornar o nosso amor semelhante ao Seu; pois, uma vez que a

sua essência170 é o Amor, é somente quando amamos do

jeito Dele que nos tornamos semelhantes a Ele.

167 A Trindade VIII, 8,12 e XIV, 14,18. 168 A verdadeira religião 47, 90. Agostinho também faz uma síntese

da moral, baseada no amor, em A doutrina cristã, nos capítulos 22 a

34. 169 Comentário da 1ª Epístola de São João II, 14. 170 Para os gregos, a idéia de um Deus que ama era impensável; para

eles, o amor era um desejo, um eros, próprio de um ser imperfeito; não

poderia existir em Deus, ser perfeito e imutável por natureza.

Agostinho, porém, é fiel à revelação cristã; para ele, Deus não

somente ama, mas o amor é a sua própria essência.

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6 O amor e a ética do dever: princípio da

moralidade agostiniana

Partindo do pressuposto de que a finalidade da

moralidade é garantir a perfeita ordem, ou a reta ordem dos

valores, Agostinho desenvolve os conceitos de “uti-frui”

como princípio da moralidade, através do qual, pela

vontade livre, o homem distingue as coisas a serem gozadas

das coisas a serem usadas.

Para Agostinho, a vida moral se traduz, forçosamente,

numa sequência de atos individuais. Cada um deles implica

numa tomada de posição face às coisas; ou fruímos, ou nos

utilizamos delas. “Fruir”171 significa afeiçoar-se a algo por

si mesmo, ou seja, “fruir é aderir a alguma coisa por amor a

ela própria”.172 “Utilizar”, ao contrário, é servir-se de algo

para alcançar um objeto que se ama; ou seja, dizemos “usar,

quando buscamos um objeto por outro”.173 Logo, podemos

usar de todas as coisas, desde que as usemos com a

finalidade de atingir a fruição de Deus; pois, sendo Ele o

nosso sumo bem, é também o único que merece ser amado

por si mesmo. O uso ilícito, por sua vez, recebe o nome

apropriado de abuso, ou seja, “quando se oferece onde não

171 “Ninguém é feliz, se não goza do que ama” (A Cidade de Deus

VIII, 8). 172 A doutrina cristã I, 4. Ou também: “Dizemos gozar, quando o

objeto nos deleita por si mesmo, sem necessidade de referi-lo a outra

coisa” (A cidade de Deus XI, 25). 173 A cidade de Deus XI, 25. Assim como: “Usar é orientar o objeto de

que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto

mereça ser amado” (A doutrina cristã I, 4).

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convém ou o que não convém neste lugar, mas noutro, ou

quando se oferece quando não convém ou o que não

convém na ocasião, mas noutra”.174

Assim, Agostinho deixa bem claro que, entre as

coisas, há algumas para serem fruídas, outras para serem

utilizadas e outras, ainda, para os homens fruírem e utilizá-

las. As que são objeto de fruição fazem-nos felizes. As de

utilização ajudam-nos a tender à felicidade e servem de

apoio para chegarmos às que nos tornam felizes e nos

permitem aderir melhor a elas.175

Considerando-se que nós, homens, “somos peregrinos

para Deus nesta vida mortal”,176 que não podemos viver

felizes a não ser na “pátria celestial”, que, “se queremos

voltar à pátria, lá onde podemos ser felizes, havemos de usar

deste mundo, mas não fruirmos dele”,177 isto é, por meio dos

bens corporais e temporais, devemos procurar conseguir as

realidades espirituais. Disto decorre que “devemos gozar

unicamente das coisas que são bens imutáveis e eternos. As

outras coisas devemos usar para poder conseguir o gozo

daquelas”.178

174 A cidade de Deus XV, 7. 175 A doutrina cristã I, 3. 176 2Coríntios 3, 6. 177 A doutrina cristã I, 4. 178 Ibid., I, 22. Ou ainda: “Das coisas temporais devemos usar, não

gozar, para merecermos gozar das eternas. Não como os perversos,

que querem gozar do dinheiro e usar de Deus, porque não gastam o

dinheiro por amor a Deus, mas prestam culto a Deus por causa do

dinheiro” (A cidade de Deus XI, 25).

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Como se vê, através dos conceitos de uti-frui,

Agostinho estabelece a distinção entre as coisas das quais o

homem pode gozar, que asseguram a verdadeira felicidade,

e as coisas que deve usar, e usar bem, como instrumentos

para atingir a felicidade:

A alma pode também usar bem da felicidade temporal

e corporal, se não se entregar à criatura,

desprezando o Criador, mas antes pondo aquela

felicidade a serviço do mesmo Criador (...) Assim

como são boas todas as coisas que Deus criou (...) a

alma racional se comporta bem em relação a elas, se

guardar a reta ordem e distinguir, escolhendo,

julgando, subordinando os bens menores aos

maiores, os corporais aos espirituais, os inferiores

aos superiores, os temporais aos sempiternos; evitará

de fazer decair em si mesma e ao corpo da sua

nobreza, com o desprezo dos bens superiores e o

desejo daqueles inferiores.179

Dentro dessa ótica, o homem não pode ser, por si

mesmo, o bem capaz de fazê-lo feliz,180 o que significa dizer

que “ninguém deve gozar de si próprio, porque ninguém

deve se amar por si próprio, mas por aquele de quem há de

gozar”181, pois “somente Deus é o bem que torna feliz a

criatura racional (...), pois, embora nem toda criatura possa

ser feliz, a que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por

Aquele que a criou”.182

179 Epístola 140, 2, 4. 180 A doutrina cristã I, 23. 181 Ibid., I, 22. 182 A cidade de Deus XII, 1.

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Com essas palavras, não devemos entender que o

homem deva odiar-se a si próprio, mas, tão somente, que o

homem deve amar a si mesmo, mas em função de Deus,

afinal, diz o preceito evangélico: “amarás o Senhor teu Deus

de todo coração, de toda a alma e todo entendimento; e

amarás o teu próximo como a ti mesmo”.183 Também não

devemos entender que o homem deva odiar o seu próprio

corpo, pois “ninguém jamais quis mal à sua própria

carne”.184 Pelo contrário, na epístola 130, Agostinho afirma

que, entre os bens que devemos desejar para vivermos

convenientemente, está a saúde do corpo, pois a

conservação da saúde relaciona-se com a própria vida: com

a sanidade e integridade da alma e do corpo.185 Agostinho

propõe que devemos “ensinar ao homem a medida de seu

amor, isto é, a maneira como deve amar-se a si próprio para

que esse amor lhe seja proveitoso (...) como deve amar seu

corpo, para que tome cuidado dele, com ordem e

prudência”.186 O que Agostinho condena é o amor

desordenado ao corpo. Em A Cidade de Deus, falando a

respeito do amor ao corpo das mulheres diz:

A beleza do corpo, bem criado por Deus, mas

temporal, ínfimo e carnal, é mal amado, quando o

amor a ele se antepõe ao devido a Deus, bem eterno,

interno e sempiterno. Assim como o avaro,

abandonando a justiça, ama o ouro, o pecado não é

do ouro, mas do homem. E assim sucede a toda

criatura, pois, sendo boa, pode ser amada bem ou

183 Mateus 22, 37. 184 Efésios 5, 29. 185 A doutrina cristã I, 13. 186 Ibid., I, 24.

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mal. Amada bem, quando observada a ordem; mal

quando pervertida.187

Vimos que o princípio norteador de toda moral

agostiniana é a distinção entre bens a serem gozados e bens

a serem usados. Segundo Manfredo Ramos188, esta

separação é consequência da distinção que este faz entre Ser

Imutável (Bem ontológico - Deus) e seres mutáveis (bens

éticos - corpos); há uma dependência destes em relação ao

primeiro, resultando que, na ordem moral, o ontológico

comanda o ético189, o que dimana numa “moral da

felicidade” e numa “moral do dever”, ambas fundamentadas

na busca da felicidade.

Essa distinção, que não é nada mais do que as duas

faces de uma mesma moeda, explica por que Agostinho

procura a felicidade não como uma felicidade qualquer, mas

a própria vita beata do homem, aquele bem ao qual

devemos dirigir todas as nossas ações, sem que haja mais

nada além dele que procurar,190 ou seja, Deus, verdadeira

felicidade, bem em si mesmo ou Bem ontológico. Nesse

sentido, a moral agostiniana fundamenta-se numa “moral da

felicidade” enquanto um bem a ser buscado por si mesmo.

Entretanto, Agostinho reconhece que o homem é um ser

existencial que vive numa realidade temporal, na qual, quer

queira ou não, precisa dos bens temporais para sobreviver.

187 A cidade de Deus XV, 22. E ainda: “Não há dúvida de que todas as

coisas que podem ser desejadas de modo útil e conveniente o devem

em função daquela vida, na qual se vive com Deus e de Deus”

(Epístola 130, 7,14). 188 RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. 1984. 189 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo T. op. cit. p. 62. 190 A cidade de Deus VIII, 8.

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Daí que, sendo a preocupação primeira do homem a busca

da verdadeira felicidade, este precisa usar os bens temporais

de tal forma que o levem a alcançar os bens eternos. Surge,

assim, o segundo aspecto da moral agostiniana: a “moral do

dever”.191

A “moral da felicidade”, fundamentada na busca do

Bem ontológico (Deus), orienta ou determina a “moral do

dever”, que se caracteriza pela reta utilização dos bens

temporais, pois “os homens não se tornam bons por meio

191 “O dever é uma categoria fundamental da filosofia prática. Isso, de

modo algum, significa que só tenha uma importância técnica

filosófica. Na vida cotidiana, expressa o que se tem a obrigação de

fazer, o que convém fazer. Serve também para formular e descrever a

relação existente entre nossas ações e os objetivos que elas buscam

atingir” (COUTO, Sperber Monique, 2003). Para Santo Agostinho,

tudo foi criado por Deus segundo ordem, peso e medida, isto é, tudo

está sabiamente ordenado numa escala hierárquica: Deus, homem,

animal, vegetal e mineral. Essa hierarquia é a Lei eterna de Deus, não

é uma Filosofia, pois, segundo Santo Agostinho, a lei eterna é a

vontade Divina que manda conservar a ordem natural e não perturbá-

la. A Lei eterna Divina é interior à criatura (o objetivo fundamental do

ser humano, da sua felicidade, é realizar a vontade de Deus. Por isso o

dever moral é definido como a ação em conformidade com a vontade

divina). É a conjugação do pensamento de Deus com as criaturas

ordenadas traduzido na escala Cósmica. A “moral do dever” consiste

no amor à ordem. Para ele, Deus não está “lá fora”, nas criaturas, nos

prazeres, na Filosofia e nem na riqueza (“nem lá em cima, nem lá em

baixo”), mas está dentro de nós. Assim, ele consegue encontrar Deus

dentro de si por meio da verdade. Então, a “moral do dever” é tão

somente amar a verdade Divina presente em mim. “Não saias de ti,

mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do

homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças,

vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças

que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da

própria luz da razão” (A verdadeira religião 39,72).

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desses bens, mas os que se fizeram tais por outro meio é que

fazem com que estes se tornem bons, usando-os bem (...)

Segue-se que qualquer bem que é desejado útil e

convenientemente deve ser sem dúvida referido àquela

única vida que se vive com Deus e de Deus”.192

Como se vê, numa relação de consequência,

Agostinho mostra que não há verdadeira felicidade sem

vontade reta, isto é, sem a virtude que, usando corretamente

os bens temporais, torna-os bons (moralmente), ordenando-

os para a vida eterna, que é a única bem-aventurada.

Manfredo Ramos chama a atenção para o fato de

Agostinho orientar toda sua moral para a busca da felicidade

enquanto Bem ontológico, a ser alcançado na vida eterna,

dando, assim, um caráter teleológico a sua moral. Para ele,

essa é uma característica genuína da moral agostiniana que

permite diferenciá-la da dos antigos filósofos, pois, como na

antiguidade não se tinha uma convicção clara de vida eterna,

a moral dos antigos não tinha este caráter teleológico.193

Diante do exposto, ainda, poderíamos nos perguntar:

seria o homem capaz, por suas próprias forças, de alcançar a

felicidade perfeita? Agostinho, desde o seu diálogo sobre A

Vida Feliz, apesar da forte influência grega, já começa a

delinear o que virá a ser a sua filosofia cristã, pois se, de um

lado, ele concorda com os estóicos que a felicidade só se

encontra na posse da sabedoria,194 de outro, supera-os,

quando afirma: “Mas a que devemos chamar de sabedoria,

192 Epístola 130, 2,3,4. Mais adiante diz: “A única verdadeira vida e a

única bem-aventurada (...) em vista desta única coisa procuram-se e

desejam-se honestamente todas as demais coisas” (Ibid., 130, 14). 193 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo T. op. cit. p. 69. 194 A vida feliz IV, 33.

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senão a sabedoria de Deus?”195 E, se ele concorda com os

platônicos que a autêntica felicidade só se encontra na

fruição de Deus,196 também a estes supera, quando diz que

há “uma certa admoestação que age em nós, para que nos

lembremos de Deus, para que O procuremos, O desejemos

(...) emana até nós da própria fonte da verdade”.197 É o

próprio Deus-uno-e-trino que, agindo em nós, conduz-nos à

fruição de sua Verdade e de seu Ser. Mas uma das grandes

novidades da ética de Agostinho é, exatamente, a idéia de

que a felicidade perfeita é atingível; porém, não devemos

entendê-lo, como fizeram os gregos, enquanto uma

conquista exclusivamente humana.198 Na verdade, para que

a alcancemos, faz-se necessário que o próprio Deus seja

nosso aliado nesta busca; de modo que possamos contar

com sua ajuda, ou melhor, com a sua graça: “A graça,

mediante a qual, unindo-se a Ele, somos felizes”.199 A

felicidade é um dom de Deus.200 E, mesmo que se diga que

ela é um dom merecido, uma vez que é dada em resposta ao

esforço de busca do homem, ela é sempre um dom. É o

próprio Deus que, fazendo-se Ele mesmo dom, quer doar-se

inteiramente a nós para saciar completamente o nosso ser.

Feita a experiência da fruição de Deus, permanecerá para

sempre: “E como ninguém pode lhe arrebatar, nem a sua

virtude nem o seu Deus, tampouco pode lhe ser tirada a

felicidade”.201 Somente a união com Deus assegura a nossa

fruição Dele e a nossa imortalidade, condições para sermos

195 Ibid., IV, 34. 196 A cidade de Deus VIII, 8. 197 A vida feliz IV, 35. 198 A Trindade XIII, 7,10. 199 A cidade de Deus VIII, 10, 2. 200 A vida feliz I, 5. 201 A verdadeira religião 47, 91.

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plenamente felizes. Nossa união com Deus se dá através da

caridade, então, podemos concluir que é somente a caridade

que nos garante a verdadeira felicidade. A caridade, além de

nos fazer felizes já nesta vida, é também a garantia de que

ainda maior será a felicidade na vida futura. Embora ainda

não saibamos como será esta vida bem-aventurada que nos

espera, já temos convicção de que, por mais feliz que

possamos imaginá-la, a sua realidade supera todas as nossas

expectativas:

Pois naquela felicidade, nada desejará que lhe falte e

não faltará nada do que desejar. Tudo o que amar

estará lá presente e não desejará nada que esteja

ausente. Tudo o que ali estará para o gozo de todos

os que o amam. E eis o que será o maior grau de

felicidade: estará certo de que será assim por toda a

eternidade. 202

Quanto à felicidade da vida presente, Agostinho

afirma: “Segue o mesmo caminho que a salvação, o da

esperança. E como não temos a salvação já, mas a

esperamos futura, assim se passa com a felicidade”.203 Neste

sentido, enquanto se vai adiando a perfeita felicidade para a

vida futura, outro movimento vai se operando no

pensamento de Santo Agostinho. Assim, aquela primazia do

conhecimento tão presente no diálogo sobre A Vida Feliz vai

202 A Trindade XIII, 7,10. Em outro texto, Agostinho assim afirma:

“Pois a ninguém que a deseja, a beatitude concedida é menor do que a

desejada. Logo não poderá sentir-se decepcionado quem a encontrar,

pois não será inferior à idéia que dela se fizera. Por mais alta que

alguém queira tê-la imaginado, mais preciosa achará quando a

abraçar” (A doutrina cristã I, 38, 42). 203 A cidade de Deus XIX, 4, 5. Cf. também: A Trindade XIII, 7,10.

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cedendo lugar, nas obras da maturidade, a um primado da

vontade sobre o intelecto. E como o desejo é a principal

afeição da vontade e é também amor, a partir desta nova

primazia, o amor aparece como a categoria central de todo o

seu pensamento e, mais especificamente, de sua ética.

Portanto, a caridade surge agora como a virtude primeira e o

fundamento de toda a vida ética. Para ele, a caridade é a

essência da ética e, se somarmos a estas conclusões o fato

de que o homem é um ser social, e, se ele ama a Deus, deve

também amar os outros, poderemos desenvolver, assim, a

dimensão ética e social do amor. Isso será desenvolvido no

próximo capítulo.

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CAPÍTULO III

A DIMENSÃO ÉTICA E SOCIAL DO

AMOR

Como já vimos, para ser plenamente feliz, o homem

precisa amar a Deus, numa entrega total de si mesmo; pois

somente amando-O deste modo, se unirá a Ele, fruindo-O e,

dessa forma, experimentará a verdadeira felicidade. No

capítulo anterior, vimos que toda a moralidade Agostiniana

tem como base a distinção entre as coisas a serem gozadas

(amadas) e as coisas a serem usadas que, em última

instância, é uma distinção entre os seres imutáveis ou

superiores, nos quais devemos concentrar todo nosso amor,

e seres mutáveis ou inferiores, dos quais devemos apenas

nos utilizar em função das coisas superiores, e que a reta

ordem do amor consiste em não amarmos as coisas

inferiores em detrimento das coisas superiores.

No que se refere ao homem individual, classificado

entre os seres mutáveis, Agostinho não tem dúvida de que

este não deve amar-se por si mesmo, mas amar a si mesmo

em função de Deus.

Entretanto, no mundo real, o homem não vive isolado,

ele vive em sociedade, em relação concreta com os demais

homens, seres, também, mutáveis. Daí surge a questão:

como atender ao preceito bíblico de nos amarmos

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mutuamente? Devemos amar o nosso semelhante por ele

próprio ou por outro fim? Se for por ele próprio, nós

estaremos gozando204 dele; se for por outro motivo, nós nos

servimos205 dele.

Partindo do mesmo preceito evangélico que justifica o

amor do homem a si mesmo: “amarás o Senhor teu Deus de

todo coração, de toda a alma e de todo entendimento e

amarás o teu próximo como a ti mesmo”,206 Agostinho

recomenda que devemos amar nossos semelhantes nas

mesmas condições em que nos amamos a nós mesmos, ou

seja, que amemos nossos semelhantes não por si mesmos,

mas em função de Deus: “todo homem, enquanto tal, deve

ser amado por causa de Deus”.207

Assim, pelo preceito evangélico do amor, Agostinho

estabelece que é nosso dever amar ao próximo como a nós

mesmos. E, mais do que isso, que esse amor deve ser

universal; deve ser estendido a todos os homens: “todos

204 Pode ser traduzido por fruir. “Fruir é aderir a alguma coisa por

amor a ela própria” (A doutrina cristã I, 4). Fruir de Deus, em

Agostinho, significa a interioridade espiritual, encontrar Deus dentro

de si, entregar-se inteiramente ao Seu amor e unido a Ele, pela

caridade, experimentar todo prazer que esta união pode lhe oferecer.

Fruir de Deus é sentir Sua presença em nós a nos satisfazer

plenamente; é, enfim, participar de seu Ser, de sua Bondade e de seu

Amor. “É preciso permanecer junto a ele, aderir plenamente a ele,

para gozarmos de sua presença” (A Trindade VIII, 4, 6). 205 Também, pode-se dizer usar. “Usar é orientar o objeto de que se

faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser

amado” (A doutrina cristã I, 4). 206 Mt 22, 37. 207 A doutrina cristã I, 28.

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devem ser amados de forma igual”,208 inclusive, “devemos

amar até nossos inimigos”,209 pois “quem não vê que

ninguém se exclui do preceito e a ninguém pode-se negar o

dever da misericórdia? Esse serviço foi estendido até a

nossos inimigos pelo Senhor: ‘amai os vossos inimigos,

fazei bem aos que vos odeiam’ (Mt 5,44)”,210 não por nós

mesmos, nem por eles mesmos, mas por “querer, acima de

tudo, que todos amem a Deus conosco”.211 Daí que, em A

Cidade de Deus, Agostinho afirma: “a própria misericórdia

que alivia o próximo não é, em absoluto, sacrifício, se não

feita por amor a Deus”.212 E comenta:

A esse Bem devemos ser conduzidos por aqueles que

nos amam e conduzir os que amamos, para que,

assim, se cumpram os dois preceitos (...) A quem sabe

amar a si mesmo, quando lhe manda amar ao

próximo como a si mesmo, que outra coisa se lhe

manda senão, quando esteja ao seu alcance,

encarecer a outrem o amor a Deus? Quem ama ao

próximo como a si mesmo, outra coisa não quer

senão ser feliz.213

Assim, a partir do duplo preceito evangélico,

Agostinho aponta o amor ao próximo (a caridade) como

força que dá movimento a toda socialização entre os

homens. As relações humanas têm como sangue e energia o

amor. O amor é a força motriz da vontade que culmina na

208 Ibid., I, 29 209 Id. 210 Ibid., I, 31. 211 Ibid., I, 29. 212 A cidade de Deus X, 6. 213 Ibid., X, 3.

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liberdade para Deus, supremo Bem, para o qual tudo se

dirige. Esse amor dirigido aos semelhantes, em função de

Deus, é a caridade. Assim, pela caridade, Agostinho faz a

ponte entre o homem individual e o homem social, pois a

realização do amor em Deus exige a realização do amor

entre os homens. Pela caridade, o amor assume uma

dimensão social, enquanto princípio de socialização do

homem.

A preocupação em ressaltar a dimensão social do

amor fez com que, um ano antes de iniciar A Cidade de

Deus (411-412), em carta ao senador Volusiano,

respondendo às objeções deste ao Cristianismo, Agostinho

apresentasse ao amigo o duplo preceito do amor, como

única forma possível de se alcançar a paz temporal, ou

concórdia, sendo esta, a finalidade imediata do Estado:

Que discussões, que doutrina de qualquer filósofo

que seja, que leis de qualquer Estado se podem de

algum modo confrontar com os dois preceitos nos

quais Cristo diz que se compreendia toda Lei dos

Profetas: ‘Amarás o Senhor teu Deus com todo o

coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente

e amarás o teu próximo como a ti mesmo’? Nestas

palavras se inclui a filosofia natural, visto que as

causas todas de todos os elementos da natureza estão

em Deus Criador; está compreendida a filosofia

moral, uma vez que uma vida boa e honesta não de

outra fonte recebe o seu sacrifício senão quando

aquilo que é para se amar, a saber, Deus e o

próximo, se ama como se deve; está incluída a lógica,

pois a verdade e a luz da alma racional não são

senão Deus; está contida também a salvação de um

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Estado louvável, pois não se funda nem se conserva

melhor um Estado do que mediante o fundamento e o

vínculo da fé e da sólida concórdia, a saber, quando

se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta

e verdadeira é Deus mesmo, e n’Ele os homens se

amam mutuamente com a máxima sinceridade, no

momento que se querem bem por amor d’Aquele ao

qual não podem esconder o espírito com que

amam.214

Assim, dentro do princípio da caridade, o amor a si

mesmo e ao próximo em função de Deus gera a concórdia

que, num plano social, é a base de uma sociedade justa. O

amor próprio, ou o amor ao próximo em função de nós

mesmos gera a soberba que, num plano social, é a base de

uma sociedade injusta. Por isso, ao iniciar a análise da

origem, natureza, desenvolvimento e fins das “duas

cidades” em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho começa

por dizer: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a

saber: o amor próprio, levado ao desprezo de Deus, a

terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a

celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em

Deus, porque aquela busca a glória dos homens, e tem esta

por máxima a glória de Deus”215.

Como se vê, pelo duplo preceito do amor, Agostinho

faz da ordem social um prolongamento da ordem moral

individual, pois a organização dos homens em sociedade

(Estado), fundamentada na reta ordem do amor, não tem

outra finalidade senão garantir a paz temporal, ou felicidade

214 Epístola 137, 5, 17. 215 A cidade de Deus XIV, 28.

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temporal imediata dos homens; mas tendo em vista a “paz

eterna” ou “verdadeira felicidade” a ser alcançada em Deus.

Neste sentido, podemos dizer que toda a moral, toda a

sociologia, toda a política de Santo Agostinho não é senão a

aplicação do primeiro de todos os mandamentos: “Amarás

ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua

alma e de todo o teu espírito”.216

Assim, a pedra angular sobre a qual está assentado

todo o eudemonismo antropológico agostiniano é o desejo

do homem de ser feliz, ou seja, a “vita Vera beata” que não

é senão alcançar a vida eterna ou “verdadeira felicidade”.

Esses “Fundamentos Ontológicos do Homem” vão nortear a

vida social dos homens organizados em sociedade

(Estado).217 Vamos, portanto, indicar que há uma

continuidade entre o problema central do homem, a busca

da “verdadeira felicidade”, e o problema do Estado, garantir

a paz temporal ou felicidade temporal dos homens, com

vista à “verdadeira felicidade”. A filosofia moral

agostiniana constitui uma ampla e compreensiva síntese

entre o caráter íntimo e pessoal do ético e a imersão do

homem na vida universal da humanidade.

216 Mt 22, 37. 217 A ética política de Agostinho é, também, coerentemente regida por

este mesmo princípio.

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1 Ética social, prolongamento da moral

individual

Todos nós queremos ser felizes, mas ninguém

consegue se imaginar feliz sozinho. O homem não consegue

ser feliz sozinho, porque a sua natureza é intrinsecamente

social, ele tem uma necessidade natural de conviver com os

outros e a causa fundamental desta tendência é exatamente

a “natureza comum que une todos os homens entre si”,218

isto é, os homens têm uma mesma origem, estão ligados por

um parentesco comum:

Quanto ao homem, chamado, por criação, natural, a

ocupar lugar entre os anjos e os irracionais, Deus

criou apenas um (...) Deus fê-lo um e só, não para

privá-lo da sociedade humana, e sim para encarecer-

lhe sempre mais a unidade social e o vínculo da

concórdia, que aumentaria, se os homens não se

unissem apenas pela semelhança da natureza, mas

também pelos laços de parentesco.219

Não só por causa da unidade ontológica o homem

sente necessidade de viver em sociedade, mas também por

outros motivos: sobrevivência física, aquisição de bens,

satisfação de carências psíquico-afetivas220 etc.

218 Epístola 130, 6, 13. 219 A cidade de Deus XII, 21. 220 “Que consolo melhor encontramos, entre as agitações e amargores

da sociedade humana, que a fé sincera e o mútuo amor dos bons

amigos?” (A cidade de Deus XIX, 8).

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Para Agostinho, o homem é um ser social por

natureza, depende dos outros para nascer, crescer e viver.

Sua humanidade estaria comprometida fora desta dimensão

social. Seria racionalmente impensável viver isolado,

ausente da convivência com os seus semelhantes, pois,

dessa forma, não poderia ser feliz: “A vida do sábio é vida

de sociedade”.221 Ao deixar sua família de origem, o homem

forma uma outra família e, assim, as várias famílias,

enquanto pequenas sociedades articuladas entre si, formam

a cidade; e estas, unidas uma as outras, o estado ou país; e

estes, a grande sociedade humana:

Depois da cidade ou urbe vem o orbe da terra,

terceiro grau da sociedade humana, que percorre os

seguintes estágios: casa, urbe e orbe.222 Estendida

pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada

pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos

mortais (...) Sociedade que com palavra genérica

chamamos cidade deste mundo.223

Sendo uma exigência da natureza racional do homem

viver em sociedade, então, para serem felizes, eles devem

amar-se mutuamente e querer uns para os outros o mesmo

bem que desejam para si próprios. Quando isso não for

possível por amor recíproco, ao menos seja em razão da

natureza comum que une todos os homens entre si.224

Reconhecendo a sua natureza social, o homem tem se

utilizado da razão para estabelecer normas de vida que o

221 Ibid., XIX, 5 e XIX, 3,2. 222 Ibid., XIX, 7. 223 Ibid., XVIII, 2, 1. 224 Cf. Epístola 130, 6, 13.

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conduzam à felicidade.225 Ele tem procurado uma conduta

que ordene todas as partes do seu ser e lhe traga a paz

interior.226 Esta procura tem sido não apenas para criar uma

moral individual, mas também para produzir uma ética que

seja capaz de gerar a ordem e a paz entre os homens: “paz

dos homens entre si e sua ordenada concórdia”.227

Ainda neste capítulo sobre a Dimensão Ética e social

do Amor, desenvolvemos, mais adiante, alguns tópicos

sobre as normas que conduzem à harmonia social, tais

como: finalidade imediata do Estado terreno, a ordenada

concórdia ou a paz temporal e, também, sobre a verdadeira

justiça.

225 Agostinho trabalha esta questão em A Cidade de Deus, livro XIX.

Nesta obra, vemos que, para preservar a ordem da paz na sociedade

humana, é preciso obedecer algumas normas: não fazer mal a ninguém

e socorrer a todos os que padecem necessidades. Sobre esta ordem que

é condição indispensável para se obter a verdadeira paz, Agostinho

fala de algumas normas. Estas normas obrigam a cuidar primeiro dos

próprios familiares, assegurando, assim, a paz doméstica. O marido

deve cuidar da esposa, os pais dos filhos, os patrões dos criados. Por

outro lado, a reta ordem exige que aqueles que são objetos de tais

cuidados prestem obediência aos que cuidam deles; assim, as

mulheres devem obedecer aos maridos, os filhos, aos pais, os criados,

aos patrões. Contudo, esta relação puramente natural estabelecida pela

obediência é grandemente suavizada e enobrecida na casa do justo,

que vive da fé. Pois, só na família cristã, os que parecem mandar são

na realidade os servos dos outros: “Quem manda também serve

àqueles que parece dominar. A razão é que não manda por desejo de

domínio, mas por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas

por misericórdia de auxiliar” (A cidade de Deus XIX, 14). 226 “Como não há ninguém que não queira sentir alegria, assim

também não há ninguém que não queira ter paz” (A cidade de Deus

XIX, 12). 227 Ibid., XIX, 13,1.

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2 O amor enquanto fundamento ético de

socialização do Homem

Para Agostinho, o que está na base de todas as

sociedades humanas, sejam quais forem, sem dúvida, é o

amor. O amor é uma força capaz de unir os homens entre si,

este os une em torno daquilo que amam. Quando

consideramos algo como um bem supremo, nós o amamos e

logo desejamos que os outros também se unam a nós neste

amor, não propriamente por eles, mas por causa deste bem

que elegemos como merecedor de nosso amor. Vejamos

com Agostinho este exemplo:

Nos palcos da iniqüidade, é um fato o espectador

gostar, em especial, de um artista e julgar a arte dele

como de grande valia ou ainda a considerar isso

como o bem supremo. Igualmente, gosta de todos os

que partilham dessa sua admiração. Não por causa

desses admiradores, mas por causa do ídolo comum.

E quanto mais o amor por aquele artista for ardente,

tanto mais o admirador esforçar-se-á, por todos os

meios a seu alcance, de o fazer admirar por muitos e

desejará exibi-lo a uma grande platéia. Se encontrar

alguém indiferente, estimula-lo-á quanto pode, com

elogios ao artista de sua predileção. Se encontrar um

que se oponha, aborrece-se veementemente com o

menosprezo a seu favorito. Por todos os meios,

procura reparar esse descaso.228

228 A doutrina cristã I, 29, 30.

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Toda sociedade humana, como vimos no exemplo

citado por Agostinho, está fundada neste amor-desejo.

Assim, o fundamento da vida social é, exatamente, o fato de

os homens nutrirem desejos pelos mesmos objetos e

pressuporem que a associação entre eles facilitará a sua

aquisição. Para Agostinho, a avaliação do nível de uma

determinada sociedade pode ser feita observando-se a

qualidade dos objetos desejados pelos seus integrantes, isto

é, pelo amor-desejo que os mantém unidos.229

Para que se cumpra esse amor-desejo em qualquer

sociedade humana, é necessário que nela reine a paz,

embora uma paz temporal comum aos bons e maus; pois ela

é o maior bem da cidade.230 “Uma cidade é a dos homens

que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que

querem viver segundo o espírito, cada qual em sua própria

paz. E a paz de cada uma delas consiste em ver realizados

todos os seus desejos”.231 Esta paz da cidade é de grande

valor, porque é ela que garante aos cidadãos a posse e o

usufruto dos objetos que eles amam e desejam. Cabe

229 “O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde

comunidade de objetos amados, é preciso, para saber o que é cada

povo, examinar os objetos de seu amor. Não obstante, seja qual for

seu amor, se não é conjunto de animais desprovidos de razão, mas

seres racionais, ligados pela concorde comunhão de objetos amados,

pode, sem absurdo algum, chamar-se povo. Certo que será tanto

melhor quanto mais nobres os interesses que os ligam e tanto pior

quanto menos nobres” (A cidade de Deus XIX, 24). 230 “E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas e

mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao

desejo, nem superior em excelência (...) doçura da paz, ansiada por

todos” (A cidade de Deus XIX, 11). 231 Ibid., XIV, 1.

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ressaltar que, para Agostinho, a paz temporal é fruto da

justiça: “Onde não existe verdadeira justiça não pode existir

comunidade de homens fundada sobre direitos

reconhecidos”.232 Sobre este assunto, desenvolvemos, mais

adiante, um tópico para fundamentar que a ordenada

concórdia entre os homens ou paz temporal é a verdadeira

justiça.

3 Amar o próximo: a plenitude e as

expressões do amor-caridade

A caridade é a perfeição do amor, pela qual o homem

se entrega totalmente a Deus, mas Deus nada pede para si

mesmo, já que não há nada que possamos lhe oferecer que

O favoreça: “Não penses que dás algo a Deus. Deus não

precisa de servos, mas são os servos que precisam de

Deus”.233 Deus é Sumo Bem que de nenhum bem precisa e

tudo o que Ele exige do homem é em vista de seu bem; ao

contrário, tudo o que o homem oferece a Deus se reverte em

benefício próprio,234 pois “Deus é aquele que quer ser

amado não para obter para si alguma vantagem, mas para

conceder aos que o amam uma recompensa eterna”.235

Como Deus nada quer para si, Agostinho nos diz que Deus

quer que amemos aqueles que Ele ama: nós e nossos

semelhantes: “A Deus nós o amamos por ele mesmo, e a nós

232 Ibid., XIX, 21. 233 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 14. 234 A doutrina cristã I, 32,35. 235 Ibid., I, 29,30.

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mesmos e ao próximo por amor a ele”.236 Esta é uma

questão fundamental, porque da sua compreensão depende o

entendimento de toda a ética de Agostinho. Quanto a nós, já

nos amamos naturalmente,237 resta-nos, pois, que amemos

nossos irmãos por amor a Deus e nisso está a perfeição da

caridade: “Todo homem deve ser amado por causa de

Deus”.238 Portanto, o amor é perfeito quando chega ao nível

da caridade fraterna239:

Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu

irmão é mentiroso. Como provar que ele é

mentiroso? Escuta: Pois quem não ama seu irmão a

quem vê, a Deus que não vê, não poderá amar (1Jo 4,

20). Como assim? Quem ama a seu irmão, também

ama a Deus? Sim, se ele ama a seu irmão,

necessariamente também ama a Deus, que é o

próprio amor.240

Podemos concluir com Agostinho que, para amar a

Deus, não precisamos buscá-lo muito distante de nós: “Se

Deus é Amor, porque caminhar e correr às alturas dos céus

ou às profundezas da terra à procura daquele que está junto

de nós, se quisermos estar junto dele”.241

Como o amor de Deus, a nossa caridade deverá ser

benevolente, gratuita e universal, pois Deus ama a todos

236 Epístola 130, 7, 14. 237 A doutrina cristã I, 26,27. 238 Ibid., I, 27,28. 239 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 10 e 12. 240 Ibid., IX, 10. 241 A Trindade VIII, 7,11.

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com gratuidade e benevolência242, antes mesmo que

existíssemos, conhecêssemos e O amássemos: “Ele nos

amou em primeiro lugar”,243 criou-nos a Sua imagem e

semelhança, amando-nos mais do que outras criaturas,

dotando-nos de livre arbítrio244 tornou-nos partícipes de seu

ser,245 de sua bondade e de sua felicidade: “Somente Deus é

o bem que torna feliz a criatura racional e intelectual.

Assim, embora nem toda criatura possa ser feliz (...) a que

pode sê-lo não pode por si mesma, mas por Aquele que a

criou”.246 Quando, por soberba, afastamo-nos Dele, não nos

abandonou, ao contrário, continuou a nos amar e, usando de

misericórdia para conosco, tudo fez para restaurar a nossa

natureza decaída e devolver-nos a dignidade que, por nossa

culpa, perdemos. Neste sentido, Deus é o modelo da

caridade perfeita ou fraterna.247

Mesmo com todo esforço de ordenar sua vontade a

fim de amar os outros com perfeita caridade, o homem, por

suas próprias forças, não consegue, precisa pedir a ajuda da

graça divina: “Rogai a Deus a graça de vos amar uns aos

outros”.248 Esse jeito de amar, mais do que uma virtude, é o

maior dom de Deus e, sem a caridade, nenhum outro dom de

Deus nos leva até Ele.249 Este dom é o único e

verdadeiramente necessário que o homem deve buscar antes

de qualquer outra coisa. “A caridade é a própria essência de

242 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 5. 243 Ibid., VII, 7 e VII, 9. 244 O livre arbítrio II, 18, 48. 245 A Trindade XIV, 8, 11. 246 A cidade de Deus XII, 1, 2. 247 Comentário da 1ª Epístola de São João IX, 3. 248 Ibid., X, 7 249 A Trindade XV, 17,27; 18,32 e 19,36.

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Deus”.250 Portanto, a caridade fraterna é o próprio Deus

amando, em nós e através de nós, a todos os homens, ela é

uma realidade tão interior quanto o próprio Deus. Cada um

deve sempre examinar sua consciência e verificar se possui

a caridade, uma vez que, exteriormente, as suas obras

podem confundir-se com as do orgulho.251 Assim, se, para

encontrar a Deus e contemplá-Lo, é necessário um processo

de interiorização, para vivermos a perfeita caridade,

precisamos, igualmente, acompanhar os movimentos do

amor em nosso coração a fim de percebermos o que ele nos

leva a amar.252

Para Agostinho, a caridade não pode enclausurar-se

somente no nosso interior, pois é de sua natureza agir e

expandir-se em ações de amor fraterno253. Quem a possui,

ama interiormente a Deus com todas as suas forças, ao

mesmo tempo em que, do mais profundo do seu coração,

transborda um amor benevolente e gratuito em direção a

todos os homens: “A caridade interior nunca se interrompe!

As obras da caridade, porém, se exercem conforme as

exigências do tempo”.254 Nestas exigências do tempo, a

caridade vai exteriorizar-se, mas a questão que se coloca é

em direção a quem e de que modo? Primeiramente,

Agostinho responde dizendo que: “todos têm direito ao

nosso amor e caridade; isso é o mesmo que dizer que não

250 Ibid., XV, 17, 31. 251 Cf. Comentário da 1ª Epístola de São João V, 6 e VIII, 9. 252 Cf. Confissões XIII, 9, 10. 253 “Se quereis conservar a caridade, irmãos, guardai-vos sobretudo de

pensar que ela seja sem iniciativa, sem atividade” (Comentário da 1ª

Epístola de São João VII, 11). 254 Ibid., VIII, 3.

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existe ninguém que não tenha direito ao nosso amor”.255 Ele,

de maneira especial, relaciona quatro tipos específicos de

pessoas ou de próximos aos quais devemos expressar nosso

amor-caridade: os parentes, os amigos, os pobres e os

inimigos.

Quanto ao modo, além de nos indicar o segundo

mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”,256

ele preceitua: “Eis a regra da dileção: querer também para o

outro o bem que se quer para si. E não querer para ele o mal

que não se quer para si mesmo. E isso serve para todos os

homens”.257 Neste sentido, devemos buscar para os outros

todo bem que procuramos para nós mesmos; isto quer dizer

que nenhum bem adquirido deveria ser possuído

individualmente, ou melhor, todos os bens deveriam ser

socializados. Entendido dessa forma, o simples

cumprimento deste segundo mandamento já seria mais do

que suficiente para tornar justa e igualitária qualquer

sociedade humana. Dentro dessa compreensão de amar o

próximo, de querermos para ele todo o bem que desejamos

para nós, devemos também ajudá-lo a encontrar e possuir o

seu Bem supremo; já que, só a fruição Dele lhe

proporcionará a verdadeira felicidade, pela qual ele anseia,

tanto quanto nós.258 Assim, estaremos cumprindo

plenamente o preceito de amar o próximo como a nós

mesmos.

255 Epístola 130, 6,13. 256 Mt 22, 39. 257 A verdadeira religião 46, 87. 258 “Devemos querer acima de tudo que todos amem a Deus conosco,

e que toda ajuda que lhes dermos ou que deles recebermos seja

orientada para essa única finalidade” (A doutrina cristã I, 29, 30).

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3.1 Amar o próximo – os parentes

Para Agostinho, em primeiro lugar são os parentes os

que têm direito a nossa caridade, porque Deus nos dotou,

assim como aos irracionais, de uma afeição e de um amor

instintivo por eles; de modo que, natural e socialmente, eles

são o nosso próximo, mais próximo: “Em primeiro lugar

está o cuidado com os seus, porque a natureza e a sociedade

humana lhe dão acesso mais fácil e meios mais oportunos.

Por isso, afirma o Apóstolo: Quem não provê aos seus,

mormente se familiares, nega a fé e é pior que infiel”259

Embora devamos amar e fazer o bem a todos

igualmente, em caso de nos depararmos com duas pessoas

necessitadas, uma estranha e a outra um parente, e nossos

recursos nos permitirem atender a apenas uma delas, é nosso

dever socorrer, primeiramente, nosso parente. Em casos

como estes, deve-se aceitar a proximidade de parentesco

como se fosse algo determinado pela sorte:

Todos devem ser amados de forma igual. No entanto,

já que não podemos ser úteis a todos indistintamente,

devemos atender de modo especial aos que estão mais

ligados pelas circunstâncias concretas de tempo e de

lugar, ou por quaisquer outras, de ordem diferente.

Isso por assim dizer, como se fosse por sorteio. Deves

considerar como determinado pela sorte o grau de

proximidade que, por razão de circunstâncias

259 A cidade de Deus XIX, 14.

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temporais, te ligou a cada um deles, de modo mais

estreito.260

Agostinho ressalta que o amor aos nossos parentes

não se deve basear apenas na afeição natural própria dos

laços consanguíneos, pois esta não é suficiente para mantê-

lo por muito tempo; prova disso é a situação de instabilidade

em que se encontram nossas famílias. Assim, se quisermos

que realmente a estabilidade e a paz reinem nelas, é

necessário que amemos os nossos familiares com um amor

que esteja acima dos vínculos carnais: “É porque,

chamando-nos a recobrar a perfeição de nossa primeira

natureza, a mesma Verdade nos admoesta a resistir aos

liames carnais e ensina que ninguém é apto para o reino de

Deus se não se desprender desses vínculos carnais”.261

Portanto, além deste amor natural, devemos amá-los em

Deus, porque a união que nasce da “caridade é superior a

todas as outras”.262 Assim, alcançaremos a tão sonhada

harmonia familiar, que Agostinho chama de “a paz

doméstica”263: somente quando amarmos os nossos parentes

com verdadeira caridade.

260 A doutrina cristã I, 28, 29. Em outro texto, Agostinho diz: “Como

não pode aliviar a sorte de todos os homens, a quem ama igualmente,

pensaria faltar à justiça se não atendesse de preferência aos que lhe

estão mais unidos” (A verdadeira religião 47,91). 261 Ibid., 46, 88. 262 Ibid., 47, 91. 263 A cidade de Deus XIX, 14.

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3.2 Amar o próximo – os amigos

Para Agostinho, também, os amigos devem ser

amados com caridade. Os amigos são aqueles a que estamos

ligados, não necessariamente por laços consanguíneos, mas

por afeição. Porém, não bastam somente os vínculos

afetivos para manter uma verdadeira amizade, pois esta se

manteria somente enquanto durarem as atenções, as ajudas e

as gratidões mútuas. Na ausência desses elementos, a

amizade tenderia a se enfraquecer e correria o risco de

desaparecer. Portanto, a caridade deve ser o fundamento

consistente na amizade para que ela permaneça inabalável e

faça os amigos felizes: “Só não perde nenhum amigo aquele

a quem todos são queridos n’Aquele que nunca

perdemos”.264 Quando a amizade tem Deus como

fundamento, independente de quaisquer desequilíbrios, ela

continuará viva, porque cada um procurará antecipar-se em

seu amor pelo outro, já que, aquilo que os une, além da

afeição própria deste relacionamento, é a mútua caridade.

Os verdadeiros amigos são aqueles que suportam

todas as dificuldades próprias da amizade, sem se deixarem

abater ou perecer, justamente porque a cultivam e a

fundamentam no amor de Deus. Agostinho sempre buscou e

quis viver entre verdadeiros amigos265, pois estes são os

mais doces laços das relações humanas266 e são justamente

264 Confissões IV, 9, 14. 265 “Qualquer que seja sua situação, o homem não pode considerar a

vida amiga, se não tiver outro como amigo” (Epístola 130, capítulo 2,

4). 266 Cf. A cidade de Deus XIX, 8.

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eles que necessitamos ou devemos preservar: “Se possuímos

tais amigos, é preciso rezar para conservá-los. Se, porém,

não os possuímos, é preciso orar para os conseguir”.267

3.3 Amar o próximo – os pobres

Para Agostinho, os pobres devem ser amados com

caridade. Eles, geralmente, não estão ligados a nós por

vínculos naturais e afetivos. Além disso, a própria condição

econômica, social, cultural e até física em que se encontram

mais nos afastam do que nos aproximam deles. Portanto, se

o nosso amor por eles for movido apenas por interesses

deste tipo é sinal que, de fato, jamais os amaremos. Então,

só a verdadeira caridade pode nos aproximar dos pobres e

nos fazer reconhecer neles o próximo, a quem devemos

amar como a nós mesmos. Quem ama a Deus pratica seus

ensinamentos e passa a ver em cada ser humano, carente de

misericórdia, o seu próximo.268 É diante dos pobres que

somos provados se realmente amamos a Deus e

demonstramos realmente o que move as nossas ações:

“Pode haver obra mais manifesta da caridade do que atender

aos pobres?”269

Provamos que encontramos a Deus e estamos em

comunhão com Ele se amamos os pobres, caso contrário,

267 Epístola 130, 6, 13. 268 A doutrina cristã I, 30, 31-32. 269 Comentário da 1ª Epístola de São João VI, 2.

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resta-nos ainda uma última chance: fazer da misericórdia

para com os indigentes e necessitados o nosso caminho mais

seguro para o encontro com Deus. É a caridade que nos une

a Deus.

Agostinho assevera que não devemos desejar que

sempre existam pobres a fim de que não nos falte esta

oportunidade de salvação. Pensar assim seria o mesmo que

admitir que a nossa misericórdia não é autêntica, visto que

ela não brota da verdadeira caridade. Quem age movido pela

caridade não aceita que nenhum homem lhe seja inferior, ao

contrário, tudo faz para torná-los iguais. Assim, aquele que

ama com perfeita caridade, não se contenta apenas em dar

do que lhe sobra; uma vez que ela desperta nele uma nova

inquietude, chamada fome e sede de justiça, que o leva a

lutar para corrigir as desigualdades sociais:

Na verdade, não devemos desejar que haja miseráveis

para termos ocasião de realizar obras de misericórdia. Tu

dás pão a quem tem fome, mas melhor seria que ninguém

passasse fome, que não tivesse ninguém para dar! Vestes o

que está nu. Aprouvesse ao céu que todos fossem vestidos e

que essa necessidade não se fizesse sentir! Todos esses

serviços, com efeito, respondem a necessidades. Suprimi as

carências e as obras de misericórdia cessarão. E as obras de

misericórdia cessarão, quer dizer que o ardor da caridade

cessará? Mais autêntico é o amor que dedicas à pessoa feliz,

que não precisa de teus dons (...) Isso porque, prestando

serviço a um necessitado, talvez deseje te exaltar diante dele

(...) Ele está carente, tu lhe dás parte de teus bens, e porque

dás, tu te imaginas superior àquele a quem dás. Deseja, ao

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contrário, que ele te seja igual! Isso para que ambos estejam

sujeitos Aquele a quem nada se pode dar.270

No sentido acima proposto, percebemos que “muitas

coisas podem ser feitas sob a aparência do bem, mas que

não procedem da raiz da caridade”.271 Nos relacionamentos

humanos com aparência de caridade, também reside o

egoísmo, e este consiste em querer o bem somente a si

próprio, esquecendo-se do outro, mas também há a

generosidade que é a doação de si ao próximo. Egoísmo e

generosidade estão misturados no ser do homem: “Tratava-

se de um profundo desgosto pela vida, aliado ao grande

medo de morrer. Quanto mais eu amava, creio eu, tanto

mais odiava e temia a morte (...) tal era meu estado de

espírito”.272

Portanto, se amamos a Deus, devemos nos aproximar

dos pobres e não permitir que a mendicância os humilhe

ainda mais; devemos devolver o que lhes pertence por

direito, isto é, nosso supérfluo. O supérfluo dos ricos é o

necessário dos pobres. Possuem bens alheios os que

possuem bens supérfluos.

Agostinho, quase no final da obra A Cidade de Deus,

fala da paz temporal e da paz espiritual e afirma que o

homem realiza a sua felicidade só quando há equilíbrio entre

estas duas formas:

Por paz temporal ele entende a satisfação das

necessidades do homem; por paz espiritual, a da

alma. Porém, ele acrescenta que não há paz 270 Ibid., VIII, 5. 271 Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 8. 272 Confissões IV, 6, 11.

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espiritual sem a paz temporal. Com isto quer dizer

que o fundamento, a base ou, melhor, a condição da

paz espiritual é a paz temporal, isto é, a satisfação

das necessidades materiais do homem. Santo

Agostinho pergunta-se: o que é sobra? É o supérfluo.

Então o versículo evangélico significa: daí aos

pobres o supérfluo. Mas Santo Agostinho não pára

aqui: Há que dar aos pobres como se fossem cães, as

sobras? Excessivamente cômodo, mas pouco cristão.

Santo Agostinho analisa profundamente o conceito de

supérfluo. Supérfluo em relação a quem? Todo

homem não está só, vive em sociedade; quando o

supérfluo define-se dentro da sociedade, então ele

não é considerado em relação a mim, como se eu

estivesse sozinho no mundo ou se pudesse isolar-me

dos demais. O supérfluo é definido em relação a mim

porque sou “socius”, membro pertencente a uma

sociedade. Por conseguinte, para definir o meu

supérfluo, aquilo que para mim é supérfluo, devo

definir em relação ao outro, diz Santo Agostinho.

Portanto, define-se assim: aquilo que é supérfluo

para você, é o necessário para o outro. Definido

assim, o supérfluo adquire uma enorme importância

social, ou seja, cada homem deve definir o seu

supérfluo não em relação a si, mas em relação à

necessidade da sociedade em que vive.273

Agostinho adverte quanto ao orgulho e a ostentação

que, muitas vezes, aparentemente, promovem ações em prol

da justiça social e que, exteriormente, confundem-se com as

273 SCIACCA, Michele Federico. 2002.

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ações da caridade.274 Devemos distinguir o seguinte:

enquanto os que possuem a perfeita caridade buscam

realmente a igualdade entre os homens, os que agem por

ostentação e orgulho, apesar das aparências, de fato, não

desejam esta igualdade, visto que, com a chegada dela,

desapareceriam as suas oportunidades de autopromoção.

Devemos querer que todos os homens sejam iguais, pois a

busca sincera e ativa desta justiça social é uma das mais

profundas expressões da verdadeira caridade.

3.4 Amar o próximo – os inimigos

Agostinho refere que a verdadeira caridade leva a

amar os nossos inimigos, pois eles também estão incluídos

naquela categoria de próximo, de modo que amá-los é um

dever dos que amam a Deus: “Homem algum, de fato, está

excluído por aquele que nos disse de amar o próximo”.275

Somente estendendo o nosso amor até o próximo (inimigos)

estaremos cumprindo plenamente o preceito da caridade.

Agostinho mesmo afirma:

Estende o teu amor aos que estão próximos, mas, na

verdade, ainda não chames a isso estender. Porque é a

ti mesmo que amas, quando amas os que te estão 274 “Ora, muitos fazem isso por ostentação, não por dileção”

(Comentário da 1ª Epístola de São João VI, 2). 275 A doutrina cristã I, 30, 31. “Devemos amar até os inimigos” (Ibid.,

I, 29, 30).

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estritamente unidos. Estende o teu amor até aos

desconhecidos que não te fizeram nenhum mal. E vai

mais longe ainda. Chega até a amar os teus inimigos.

Sem dúvida, é isso o que o Senhor te pede.276

Deus nos pede para amá-los, porque Ele é o próprio

modelo supremo do Amor e nos convida a imitá-Lo em sua

perfeição. Portanto, assim como Ele ama igualmente a toda

pessoa humana, dando-lhes a vida e distribuindo,

igualmente, a bons e maus, os dons da natureza, será

exatamente quando amamos até os nossos inimigos que O

estaremos imitando em seu jeito de amar.277

Agostinho assevera que devemos amar os nossos

inimigos, não porque nos odeiam, causam sofrimentos e nos

fazem mal, não por esses motivos278, mas porque

contemplamos neles algo de mais profundo, isto é, o fato de

serem imagem e semelhança de Deus: “Como não haveria

de ser invencível em seu amor, aquele que ama o homem

como homem, isto é, como criatura feita à imagem de

Deus”.279 Portanto, vamos amá-los não para que continuem

sendo nossos inimigos, mas para que se tornem nossos

irmãos e um dia possamos, juntos, desfrutar de Deus.280 Eles

são nossos inimigos, porque estão distantes de Deus e ainda

não O conheceram:

276 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 5. 277 Ibid., IX, 3. 278 “O que ama nele, não é o que cai sob seus olhos, ou sob os sentidos

corporais. O que é preciso amar é a natureza humana perfeita ou em

via de se aperfeiçoar, independentemente de suas condições carnais”

(A verdadeira religião 46, 86. 89). 279 Ibid., 47, 90 280 Cf. Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 10 e I, 9.

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Nós não os tememos, na verdade, visto que não

podem nos tirar aquele a quem amamos. Mas nós nos

compadecemos deles, porque nos odeiam, tanto mais

quanto estão distantes do objeto de nosso amor. E se

acaso voltassem a ele, necessariamente ama-lo-iam,

como o Bem beatificante, e a nós, como co-

participantes de tão grande bem.281

Agostinho insiste que devemos alcançar a perfeição

da caridade, não somente pelo nosso esforço humano, mas

também pela ajuda divina; portanto, devemos pedir a Deus a

graça de amar sempre e a todos. “Rogai a Deus a graça de

vos amar uns aos outros. Rogai para estardes sempre

abrasados do amor fraterno. Seja para com o que já é vosso

irmão, seja para com o inimigo, afim de que se torne vosso

irmão”.282 Para Agostinho, só o amor tem o poder de

converter um inimigo num irmão: “Teu amor faz um irmão

daquele homem que era teu inimigo (...) Ama-o com amor

fraterno. Ainda ele não é um irmão, mas já o amas como se

o fosse”.283 Enfim, para alcançarmos a perfeição da

caridade, devemos preparar um espaço interior para ela,

esvasiando o nosso coração do amor do mundo e enchendo-

o do amor de Deus. Assim, nascerá em nós a caridade

fraterna que deverá ser sempre alimentada nesta perfeição:

Há dois amores: o amor do mundo e o amor de Deus.

Se o amor do mundo fixar residência em nós, o amor

de Deus não poderá entrar. Que se afaste o amor do

mundo e tenha morada em nós o amor de Deus. Não 281 A doutrina cristã I, 29, 30. 282 Comentário da 1ª Epístola de São João X, 7. 283 Id.

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ames o mundo! Afasta de teu coração a má dileção

do mundo, para o deixar encher-se do amor de Deus.

És um vaso, mas ainda estás cheio. Derrama o que

está em ti, para receberes o que não está.284

Agindo assim, tornar-nos-emos fortes o suficiente

para, se necessário for, darmos a nossa própria vida por

aqueles a quem amamos.

3.5 Amar o próximo – os frutos

Para Agostinho, a caridade não gera benefícios

apenas para os que são amados, ela também produz frutos

maravilhosos na vida e no ser daqueles que amam, pois, se o

que está na base de um relacionamento é a perfeita caridade,

todos os envolvidos nele se beneficiam: “essa misericórdia,

que exercemos para com um homem necessitado, Deus não

a deixa sem recompensa”.285 Os maiores agraciados não são

os que recebem da caridade alheia, mas sim aqueles que

amam com caridade, ou seja, os que partilham, servem e

doam-se aos outros, porque, se aceitamos que Deus é

caridade, a lógica nos obriga a admitir que quem possui a

caridade também possui a Deus. Quando o homem possui a

Deus, torna-se plenamente livre, a ponto de Agostinho

determinar: “Ama e faze o que quiseres”.286 Neste sentido,

284 Ibid., II, 8-9. 285 A Trindade XV, 17,28. 286 Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 8.

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quando a raiz das ações é a caridade, não poderá surgir o

mal287, mas somente o bem:

Não se distingam as ações humanas a não ser pela

raiz da caridade. Uma vez por todas, foi-te dado

somente um breve mandamento: Ama e faze o que

quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se

falas em tom alto, fala por amor; se perdoas, perdoa

por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor:

dessa raiz não pode sair senão o bem!.288

Quando amamos dessa forma, somos realmente

livres, porque a nossa vontade já não quer outra coisa senão

o bem de todos aqueles que são o nosso próximo.

Acrescentamos, com Agostinho, que a grande

realização da caridade é a de tornar-nos semelhantes a Deus,

já que ela nos faz capazes de amar os outros, não somente

como a nós mesmos, mas do modo como Deus os ama. A

caridade permite amá-los com o amor do próprio Deus; pois

a caridade não é outra coisa senão Deus amando, por meio

daqueles que acolheram o dom do seu Amor: “O Espírito

Santo, que procede de Deus, quando é outorgado ao homem,

inflama-o de amor por Deus e pelo próximo, sendo ele

mesmo o Amor”.289 Para Agostinho, a questão da

semelhança do homem com Deus tem dois aspectos. O

primeiro diz respeito ao momento da criação, quando Deus

faz o homem a sua imagem e semelhança; nesse sentido

287 “Quando esvaziares o coração do amor terreno, haurirás o amor

divino. E nele logo começa a habitar a caridade da qual nenhum mal

pode proceder” (Ibid., II, 8). 288 Ibid., VII, 8. 289 A Trindade XV, 17, 31.

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todo homem carrega dentro de si esta imagem divina. Um

segundo momento é quando o homem, por sua livre

vontade, deve esforçar-se para imitar o modo de amar de

Deus; neste último aspecto, tornam-se semelhantes a Deus

os que O buscam e O amam verdadeiramente. Este segundo

momento é, na verdade, uma restauração do primeiro, visto

que, ao assemelhar-se a Deus pela caridade, o homem não

está fazendo outra coisa senão restaurando em si a imagem

divina deteriorada pelo egoísmo. Assim, ao tornar-nos

semelhantes a Deus, a caridade nos faz também filhos seus:

“A caridade é o único sinal que distingue os filhos de Deus

dos filhos do demônio”.290 Pois, assim como entre os

homens é a semelhança física o que caracteriza alguém

como filho de outrem; do mesmo modo, o sinal distintivo

dos verdadeiros filhos de Deus é, exatamente, a vivência da

caridade. Embora muitos aleguem ser filhos de Deus,

somente os que amam com caridade, de fato, o são.

Portanto, se quisermos ser realmente felizes, não devemos

perder tempo com amores particulares, egoístas e

passageiros; ao contrário, amemos, sem reservas, a todos:

parentes, amigos, inimigos e, especialmente, os pobres deste

mundo. Seremos felizes nesta vida e por toda eternidade, se

todas as nossas ações forem movidas pelo amor, mas não

por qualquer amor, e sim por aquele que chamamos de amor

fraterno ou de perfeita caridade.

Para alcançar esta meta do amor eterno, precisamos

nos amparar nos meios do poder temporal: a Justiça e o

Estado. Passamos a descrever, nos itens seguintes, ainda

dentro deste capítulo, como Santo Agostinho pensa estes

meios em relação à dimensão ética e social do amor.

290 Comentário da 1ª Epístola de São João V, 7.

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4 Fundamento da verdadeira justiça no

estado: o amor

Uma das quatro virtudes cardeais (ou cristãs)

apresentadas por Agostinho é a justiça pela qual “nos

uniremos com suma retidão ao bem ao qual com toda razão

deveremos nos submeter”.291 Analisamos, agora, a

importância do conceito de justiça no eudemonismo ético-

político de Santo Agostinho, seus fundamentos e

determinações.

Para denunciar o estado de corrupção em que se

encontravam os romanos, fruto dos vícios espalhados pelos

deuses pagãos, e demonstrar que o Império Romano, por sua

adesão aos cultos pagãos e promoção desses, já não podia

ser mais chamado de República (ou Estado), Agostinho,

num primeiro momento292, vai buscar em Cícero, tribuno

romano, os argumentos necessários para afirmar que um

dos elementos essenciais para que haja uma república é a

Justiça, virtude que ele não encontra mais no Império

Romano de seu tempo.

Cícero, falando pela boca de Cipião, afirma:

“República é coisa do povo, e povo não é um ajuntamento

qualquer de indivíduos, mas uma associação de homens

baseada no consenso do direito e na comunidade de

interesses”.293 E coloca a justiça como fundamento da

291 Epístola 155, 1. 292 A cidade de Deus II, 21. 293 A República I, apud A cidade de Deus II, 21.

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concórdia, ao dizer que “aquilo que no canto os músicos

chamam de harmonia, na cidade é a concórdia, o mais suave

e estreito vínculo de consistência em toda república; que

sem justiça não pode, em absoluto, subsistir”.294 Assim, no

dizer de Cícero:

Só existe república, isto é, coisa do povo, quando a

mesma é governada com honestidade e justiça, seja

por um rei, seja por um grupo de nobres, seja ainda,

pelo povo todo inteiro. Ao contrário, se tais

governantes forem injustos, já não existe mais

república, pois não existirá a coisa do povo (...) E o

povo mesmo não seria mais um povo se ele fosse

injusto.295

No final de sua obra “A República”, Cícero lamenta a

perda dos costumes antigos e as instituições dos

antepassados que garantiam a continuidade da República

romana: “por causa de nossos vícios, não por causalidade,

da república nos fica o nome apenas, pois na realidade

tempo faz que a perdemos”.296 Servindo-se das últimas

palavras de Cícero, Agostinho comenta: “Se tais coisas

fossem afirmadas depois da encarnação de Cristo,

certamente não faltariam pagãos para atribuí-las à religião

cristã!”.297 E vai mais além: “de acordo com as definições

de Cícero, em que resumidamente consignou que era a

república o que era do povo, nem mesmo ao tempo daqueles

costumes e varões antigos, a romana jamais foi república,

294 Id. 295 Id. 296 Id. 297 Id.

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porque jamais conheceu a justiça”.298 Apesar de admitir que

o que se chama de república romana foi mais bem

administrada pelos antigos do que pelos de seu tempo.

Assim como em Cícero, para Santo Agostinho, a

justiça é a pedra angular da sociedade civil, pois,

“desterrada a justiça, que é todo reino senão pirataria? Pois,

também é punhado de homens, rege-se pelo poderio do

príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a

presa de acordo com certas convenções”.299 No entanto, não

podemos chamar a pirataria de República. Entretanto, para

este, enquanto pensador cristão, a justiça não se encerra no

puro conceito filosófico natural, mas adquire um sentido

filosófico religioso, o qual tem uma estreita relação com a

“verdadeira justiça”, cujo objetivo principal é o sumo bem

do homem, ou a “verdadeira felicidade”, a ser alcançada em

Deus.

Assim, apesar de concordar com Cícero que a justiça

fundamenta o Estado, Agostinho vai além da visão

ciceroniana (fundada no direito natural) e, dentro de uma

perspectiva filosófico-religiosa, transforma a justiça em

“verdadeira justiça”, fundamentada no princípio da “divina

ordem”, ou lei eterna, cujo caminho para alcançá-la é o

duplo preceito evangélico da “verdadeira caridade” (amar a

Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo).

O conceito ciceroniano de justiça foi retrabalhado por

Agostinho, inicialmente, em O Livre Arbítrio, no qual

adquiriu um caráter religioso, tendo como fundamento o

298 Id. 299 A cidade de Deus IV, 4.

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princípio da “divina ordem”. Enuncia ele: “Com efeito,

nenhuma força, nenhum acontecimento, nenhuma catástrofe

nunca conseguirá fazer com que não seja justo que todas as

coisas estejam conformes a uma ordem perfeita”.300

Na referida obra, diante das interrogações

apresentadas por seu interlocutor, Evódio, acerca da justiça

praticada na sociedade (Cidade terrena), interpretada por

este como lei (jus), Agostinho reconhece que existem, de

fato, leis na sociedade. Entretanto, esclarece que devemos

distinguir dois tipos de leis: A “lei temporal” e a “lei

eterna”. A lei temporal é a lei dos homens, mutáveis e

subordinados ao tempo; consequentemente, uma lei também

mutável e sujeita a mudanças. A esta chamamos de “jus”, ou

seja, “a lei que, embora justa, pode legitimamente ser

mudada ao longo do tempo”.301 A outra, ao contrário, “é

chamada Razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer

sempre e em virtude da qual os bons merecem a vida feliz e

os maus, vida infeliz, é ela o fundamento da retidão e das

modificações daquela outra lei que justamente

denominamos temporal”.302 Essa é a lei eterna e imutável.

Apesar de reconhecer que a lei temporal pode (ou

não) ser justa, fica claro que esta, para ser justa, deverá

submeter-se à lei eterna.303 Em outras palavras, a lei

temporal (jus) não tem vida própria, ou não se constitui em

300 O Livre Arbítrio I, 6, 15. 301 Id. 302 Id. 303 “Na primeira, a temporal, só é justo e legítimo o que os homens

para si tenham feito derivar da segunda, a eterna (...) aquela, em

virtude da qual é justo que todas as coisas sejam inteiramente

conformes à norma absoluta da ordem” (Id.).

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um bem em si mesmo; ao contrário da lei eterna (verdadeira

justiça) que se constitui em um bem em si mesmo (bem

onto).304

Mais adiante, ainda em O Livre Arbítrio, Agostinho

conclui o diálogo com Evódio, definindo que, “no tocante à

justiça, que diremos ser ela senão a virtude, pela qual se dá a

cada um o que é seu?”305

Essa é a “verdadeira justiça”, “que faz com que o

único e supremo Deus, segundo sua graça, impere à

obediente cidade que não se sacrifique a ninguém senão a

Ele”,306 pela qual “nos uniremos com suma retidão ao bem,

ao qual, com toda razão, deveremos nos submeter”.307 Pois,

“quando a alma está submetida a Deus, impera com justiça

sobre o corpo e, na alma, a razão, submetida a Deus, manda

304 Em outra oportunidade, em carta a Consêncio, Agostinho chega a

identificar a Justiça com o próprio Deus, quando diz: “A justiça que

vive em si mesma, sem dúvida, é Deus; essa vive imutavelmente.

Assim como, porém, sendo ela a vida em si mesma, torna-se também

a nossa vida, quando dela de qualquer maneira participamos, do

mesmo modo enquanto justiça perfeita torna-se também nossa justiça,

quando aderimos a ela vivamente. E seremos mais ou menos justos,

conforme a nossa adesão a ela seja maior ou menor” (Epístola 120, 1). 305 O Livre Arbítrio I, 13, 27. Esse conceito reaparecerá, mais tarde,

em A Cidade de Deus, quando, comentando acerca dos castigos

eternos, por ocasião do juízo final, diz: “Não se deve, porém, negar

que o fogo será, segundo a diversidade de merecimentos maus, para

uns mais brando e para outros mais vivo, quer varie sua intensidade e

violência segundo a pena merecida, quer arda por igual, mas nem

todos lhe sintam por igual o sofrimento que causa” (A cidade de Deus

XXI, 16), pois “a justiça é a virtude que dá a cada um o que é seu”

(Ibid., XIX, 21). 306 A cidade de Deus XIX, 23. 307 Epístola 155, 1.

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com justiça a libido e as demais paixões. Portanto, quando o

homem não serve a Deus, que justiça há nele?”308

E, para alcançarmos ou possuirmos a “verdadeira

justiça”, Agostinho aponta a caridade, ou “verdadeira

caridade”, como virtude pela qual escolhemos, com justiça,

as coisas a serem fruídas e as coisas a serem utilizadas.309

Nisso reside o fundamento da “verdadeira justiça”

que consiste em dar a Deus, “Sumo Bem”, todo o nosso

amor, no qual se encontra a justa medida a todos os outros

valores criados, concordando com a definição já vista

anteriormente de que “a justiça não é, senão, a virtude pela

qual se dá a cada um o que é seu”.310 A justiça “que submete

no homem a alma a Deus, a carne à alma e, por conseguinte,

a alma e a carne a Deus”,311 pois “somente quem criou o

homem pode torná-lo bem-aventurado”,312 ou

verdadeiramente feliz.

E este mesmo princípio ético-moral individual que

recomenda que devemos amar a Deus sobre todas as coisas

também recomenda que “cuidemos, pois, com todo esforço,

de que cheguem a Ele também aqueles que amamos como a

308 A cidade de Deus XIX, 2. 309 “A justiça não é outra coisa senão amar o que deve ser amado... O

que, porém, devemos escolher como objeto mais digno de nosso amor,

senão aquilo que é o melhor que podemos encontrar, isto é, Deus?”

(Epístola 155). 310 O livre arbítrio I, 13, 27. 311 A cidade de Deus XIX, 4. 312 Epístola 155.

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nós mesmos”,313 transformando-se em um princípio ético-

político social, segundo o qual:

“Como um só justo vive da fé, assim também o

conjunto e o povo de justos viverão dessa fé que age

pela caridade, que leva o homem a amar a Deus

como deve e ao próximo como a si mesmo”,314 pois

“uma coisa não é a ventura da cidade e outra do

homem, pois toda cidade não passa de sociedade de

homens que vivem unidos.315

Assim, ao introduzir o amor (ou a caridade cristã)

como fundamento ético-político capaz de levar o homem e o

Estado a alcançar a “verdadeira justiça”, Agostinho

reformula o conceito de povo proposto por Cícero (fundado

no direito natural), redefinindo-o como “o conjunto de seres

racionais associados pela concorde comunidade de objetos

amados”.316 Daí que, para sabermos o que é um povo, basta

313 Id. 314 A cidade de Deus XIX, 23. 315 Ibid., I, 15. Por isso, um ou dois anos antes de começar a escrever

A Cidade de Deus, em passagem já anteriormente citada, Agostinho

interrogava o Senador Volusiano sobre “quais leis de qualquer Estado

se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos quais

Cristo diz que se compreendia toda a Lei e os Profetas: ‘Amarás o teu

Deus (...) Amarás o teu próximo (...) Nelas se encontra a salvação de

um Estado digno de louvor, pois não se funda nem se conserva melhor

o mesmo do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida

concórdia, a saber, quando se ama o bem comum, que na sua

expressão mais alta e verdadeira é Deus mesmo, e n’Ele os homens se

amam mutuamente com a máxima sinceridade” (Epístola 137). 316 A cidade de Deus XIX, 24.

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examinarmos os objetos de seu amor.317 Por isso, no final do

Livro XIV, de A Cidade de Deus, ao analisar a origem, a

natureza, o desenvolvimento e os fins das duas cidades,

Agostinho toma como medida o amor:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o

amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena;

o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a

celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a

segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos

homens, e tem esta por máxima a glória de Deus,

testemunha de sua consciência.318

Ao colocar o amor como fundamento da justiça,

Agostinho transforma não só o conceito de justiça, mas

repensa a visão negativa que tinha do Império Romano. É

por isso que, treze anos depois do que havia escrito no Livro

II, Agostinho reaparece mais conciliador e, buscando um

conceito próprio de povo, afirma: “O povo é o conjunto de

seres racionais associados pela concorde comunidade de

objetos amados”,319 reformulando parcialmente as

afirmações negativas que fizera no início da obra (Livro II)

acerca do Império Romano. Ele assevera: “Não diríamos

que não é povo ou que seu governo não é República,

enquanto subsista o conjunto de seres racionais unidos pela

comunhão concorde de objetos amados (...) de acordo com

317 Os nossos costumes, diz Agostinho: “são julgados não pelo que

cada um conhece, mas pelo que cada um ama; nem se tornam bons ou

maus os costumes, senão pelos bons ou maus afetos” (Epístola 155). 318 A cidade de Deus XIV, 28. 319 A cidade de Deus XIX, 24.

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isto, o povo romano é um povo e seu governo,

República”.320

Entretanto, paralelamente a essa nova visão,

Agostinho lamenta que, ao longo dos tempos, a República

Romana se tenha corrompido. E, mais uma vez, retoma a

sua posição de que a República Romana já não merece tal

nome, pois não possui a “verdadeira justiça”, ao afirmar

que, “em geral, a cidade dos ímpios, refratária às ordens de

Deus, que proíbe sacrificar a outros deuses afora Ele, e, por

isso, incapaz de fazer a alma prevalecer sobre o corpo e a

razão sobre os vícios, desconhece a verdadeira justiça”.321

Agostinho conclui sua denúncia sobre a República

Romana:

A justiça consiste em que Deus mande no homem

obediente, a alma no corpo e a razão nos vícios (...) e

em que se peça a Deus a graça do merecimento e o

perdão dos pecados e se dêem graças pelos favores

recebidos”.322 Pois, “a verdade é que, se o homem

não serve a Deus, a alma não pode com justiça

imperar sobre o corpo, nem a razão sobre as paixões.

E, se no homem individualmente considerado não há 320 Id. Ele já havia dito isso no Livro V, quando, servindo-se dos

relatos de Salústio, afirma: “Os antigos e primitivos romanos, segundo

nos ensina e lembra a História, como outros povos (...) eram ávidos de

louvor, liberais em dinheiro e queriam a glória imensa e riqueza

honesta. Amaram-na com ardente amor, por ela quiseram viver e não

vacilaram em morrer por ela. Pelo amor à liberdade, primeiro, depois

pelo amor ao domínio, e pelo desejo de louvor e glória, levaram a

cabo diversas façanhas” (Ibid., V, 12 ). 321 Ibid., XIX, 24. 322 Ibid., XIX, 27.

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justiça alguma, que justiça pode haver em associação

de homens composta de indivíduos semelhantes?”.323

Logo, “onde não existe semelhante justiça não

existe tampouco a congregação de homens, fundada

sobre direitos reconhecidos e comunidades de

interesses. E, se isso não existe, não existe o povo.324

5 Finalidade imediata do estado terreno: a

ordenada concórdia ou a “paz temporal”

Vimos anteriormente, quando da exposição do

fundamento da justiça no Estado, que Agostinho apresenta

um certo “vínculo da concórdia” como elemento

determinante na concepção de Estado: “O que é, por outro

lado, o Estado senão uma multidão de pessoas unidas entre

si por um certo vínculo de concórdia?”,325 concórdia que

não será alcançada sem a “verdadeira justiça”: “onde não

existir verdadeira justiça não pode existir comunidade de

homens congregados em concordes interesses”.326

E, como já visto, superando o conceito filosófico-

natural ciceroniano de justiça, fundado no direito natural,

transforma a justiça em um conceito filosófico-religioso,

fundado no amor (a caridade):

323 Ibid., XIX, 21. 324 Ibid., XIX, 23. 325 Epístola 138. 326 A cidade de Deus XIX, 21.

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Então, para saber o que seja cada povo, deve-se ter

em conta o que amam. Pois o povo é uma multidão de

seres racionais associados pela concorde

participação nos bens que eles amam”,327 que não é

senão o amor ou busca do bem comum: “um Estado

louvável não se funda nem se conserva melhor do que

mediante o fundamento da fé e da sólida concórdia, a

saber, quando se ama o bem comum.328

Assim, fica evidente que a tarefa ou finalidade

imediata do Estado terreno é proporcionar o bem comum,

conforme atesta Agostinho, ao interpelar Ceciliano,

Comissário imperial da África: “O que, porém, fazeis de

bom em meio a tantas preocupações e fadigas, senão

procurar o bem dos cidadãos? Com efeito, se não fazeis isto,

então será melhor dormir noite e dia do que vigiar nas

fadigas impostas pelo Estado, se estas não fossem de

nenhum proveito para os cidadãos”.329 Isso leva a dizer que

um dos fundamentos ético-políticos do Estado em

Agostinho é a concórdia ou “paz temporal” que, por sua

vez, enquadra-se em seu eudemonismo ético-político, uma

vez que promover o bem comum é o mesmo que promover

a paz ou felicidade temporal do homem.

Além de identificar a concórdia ou “paz temporal”

com o bem comum, Agostinho a classifica como o maior de

todos os bens temporais a que os homens almejam,

afirmando que: “tão grande, com efeito, é o bem da paz que,

mesmo nos negócios terrenos e perecíveis, nada se possa 327 Ibid., XIX, 24. 328 Epístola 137. 329 Epístola 151.

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ouvir de mais agradável, nada procurar de mais desejável,

nada encontrar de melhor. Podemos dizer da paz o que

dissemos da vida eterna, a saber, que é o fim de nossos

bens”.330

Para Agostinho, a paz é um bem imanente à natureza

humana. Todos a desejam: bons e maus331, com efeito, “a

paz é aspiração última de toda natureza e de todos os

homens, mesmo os maus”332 e, consequentemente, o maior

bem temporal que um Estado pode proporcionar. A paz, diz

Agostinho, “é o bem supremo da cidade”.333

Sendo a paz um desejo imanente a todos os homens, a

vida social aparece como uma necessidade interior ao

homem; está na própria natureza humana viver em

sociedade. Ainda em estado de inocência, os homens

haviam buscado companhia. Por isso Agostinho afirma que

“nenhum animal é mais feroz por vício, nem mais social por

natureza que o homem”.334 Agostinho acrescenta, ainda,

que todos os homens aspiram à paz, e que ninguém pode ser

tão perverso que não queira viver em paz. Até os animais

ferozes que vivem solitários, que brigam pela sobrevivência

e pela alimentação e evitam a companhia dos outros animais

da mesma espécie, em determinadas épocas do ano, juntam-

se para a procriação e para proteger seus filhotes. Quanto

330 A cidade de Deus XIX, 11. 331 “Quem quer que repare nas coisas humanas e na natureza delas

reconhecerá comigo que, assim como não há quem não queira ser

feliz, assim também não há quem não queira a paz” (A cidade de Deus

XIX, 12). 332 Id. 333 Id. 334 Ibid., XII, 27.

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mais o homem, que é racional, que sabe distinguir o bem do

mal e que, levado pelas leis da sua natureza a formar

sociedade, deverá conviver o mais pacificamente possível

com todos.335

6 Fundamento da ordenada concórdia ou

paz temporal no estado: a verdadeira justiça

Sendo a paz um bem natural almejado por todos os

homens, bons e maus, Agostinho alerta-nos para os perigos

na interpretação ou concretização deste tão sublime bem,

pois muitos, por vontade ou livre arbítrio, subvertendo a

“divina ordem”, constroem a paz a partir de interesses

próprios e não tendo em vista o bem comum.336 Para ele, a

sociedade não cumpre a sua função, se nela não reinar a paz

ou a ordenada concórdia, e esta não será possível enquanto

não imperar a justiça entre os seus cidadãos. Neste sentido,

a justiça é o fundamento da sociedade.

Daí que, para evitar tal risco, Agostinho faz uma

íntima relação entre a paz e a justiça, fundada no princípio

335 Cf. A cidade de Deus XIX, 12. 336 “Os maus combatem pela paz dos seus e, se possível, querem

submeter todos, para todos servirem um só. Odeiam a justa paz de

Deus e amam a sua própria, embora injusta. Impossível é que não se

ame a paz, seja qual for” (A cidade de Deus XIX, 12). Mas “quem

sabe antepor o reto ao torto e a ordem à perversidade reconhece que,

comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece

sequer o nome de paz” (Ibid., XX, 12).

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da “divina ordem”, “que não é senão a virtude pela qual se

dá a cada um o que é seu”.337 Assim, “a ordem é a

disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o

lugar que lhes corresponde”.338

Da mesma forma que, ao falar da justiça, enquanto

“justa associação de homens concordes”, Agostinho não

está falando de uma justiça qualquer, mas da “verdadeira

justiça”. Também, ao relacionar a justiça com a concórdia,

ele não está falando de uma concórdia qualquer, mas da

“ordenada concordia”, ou seja, a paz temporal que garanta a

justa ordem, aquela que “subordina as coisas somente às

dignas, as corporais às espirituais, as inferiores às

superiores, as temporais às sempiternas”.339

Seguindo esse princípio, Agostinho afirma que “a

paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada

pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua

ordenada concórdia. A paz da cidade, a ordenada concórdia

entre os governantes e os governados”.340

Partindo do princípio de que a paz é o melhor de

todos os bens temporais, quando fundamentada na justiça,

Agostinho admite até a guerra como instrumento justo de

realização da paz, ou ser a paz o verdadeiro fim da guerra,

pois, “com efeito, os próprios amigos da guerra, apenas

desejam vencer e, por conseguinte, anseiam, guerreando,

chegar à gloriosa paz. O homem, com a guerra, busca a paz,

337 O livre arbítrio I, 13, 27. 338 A cidade de Deus XIX, 13. 339 Epístola 140. 340 A cidade de Deus XIX, 13.

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mas ninguém busca a guerra com a paz”.341 Não que

Agostinho defenda ser a guerra um bem em si mesma, mas

que devemos fazer bom uso até das coisas más para

alcançarmos o bem342, desde que em nome de uma causa

justa, ou seja, as “guerras justas” são permitidas, mas só

devem empreender-se por necessidade e para o bem da paz.

Para que o Estado faça “guerra justa”, Agostinho

apresenta o amor como princípio regulador; ou seja, que a

mesma tenha como finalidade não a vingança e a maldade,

mas o amor, ou o desejo de salvação do inimigo pecador:

Se o Estado terreno observasse os preceitos de

Cristo, nem mesmo as próprias guerras se fariam

sem benevolência (...) Aquele, de fato, a quem se tira

a possibilidade de fazer o mal é vencido com

benefício dele mesmo. Assim, com tal espírito de

misericórdia, se fosse possível, os bons fariam

também as guerras, a fim de que, prevalecendo sobre

as paixões licenciosas, fossem eliminados estes vícios

que um justo governo deveria extirpar ou reprimir.343

E, mais uma vez, Agostinho adverte que a “guerra

justa” não é um bem em si mesma. Ela é apenas um

instrumento que nos leva à paz (bem comum), devemos usá-

la em última necessidade: “A paz deve residir na vontade, e

a guerra deve ser apenas uma necessidade, para que Deus

341 Ibid., XIX, 12. 342 “A verdadeira virtude consiste, portanto, fazer uso dos bens e dos

males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de

perfeita e incomparável paz” (Ibid., XIX, 10). 343 Epístola 138.

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nos livre da necessidade e nos conserve em paz!”.344 E,

sempre dentro de seu espírito pacificador, recomenda antes

o poder da palavra que o da guerra: “Mas, título maior de

glória é matar a guerra com a palavra, antes de matar os

homens com a espada; é procurar manter a paz com a paz e

não com a guerra”.345

Como se vê, a “ordenada concórdia” está

fundamentada na “verdadeira justiça” e esta, por sua vez,

deverá estar assentada no princípio do amor. Mais uma vez,

Agostinho apresenta o preceito da “verdadeira caridade”,

expressão maior do amor ou do duplo preceito da caridade

(amor de Deus e do próximo por causa de Deus) como

caminho para se alcançar a “paz temporal” ou “ordenada

concórdia”: “na falta da piedade ou da caridade, a paz deste

mundo não passa de uma isca, um convite ou um reforço

para a luxúria e a perdição”.346 O amor guarda a ordem do

ser: “A piedade, pois, a saber, o culto do verdadeiro Deus, é

útil para tudo: ela, de fato, nos ajuda a afastar ou avaliar as

moléstias desta vida e nos conduz àquela vida de salvação

em que não devemos mais sofrer nenhum mal, mas somente

gozar do sumo e eterno Bem”.347

344 Epístola 189. 345 Epístola 229. 346 Epístola 231. 347 Epístola 155.

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7 A Paz e a “guerra justa” na história

Desde Santo Agostinho, a questão da guerra justa é

um desafio constante, até hoje, para a teologia, para a moral

e para a praxe política das Igrejas. A formulação clássica da

doutrina medieval sobre a guerra justa, recordada pelo

Catecismo da Igreja Católica, publicado em 1992,348

procede de Tomás de Aquino349 e de Santo Agostinho. São

quatro as condições estabelecidas para que uma guerra

possa ser considerada justa: 1ª) que seja declarada pela

autoridade legítima; 2ª) que haja uma intenção e uma causa

justas: instaurar a justiça, restaurar a paz, castigar os

culpados e defender a comunidade dos ataques injustos; 3ª)

que a guerra seja o último recurso, uma vez esgotadas outras

348 Embora o Catecismo da Igreja Católica desenvolva, nos

parágrafos, 2.302 ao 2.317, toda uma teologia da paz: a paz é a

tranqüilidade da ordem, não é somente ausência de guerra, não pode

ser obtida sem o respeito pela dignidade das pessoas e dos povos, sem

a prática da justiça e da caridade, ele ainda recorda os elementos

tradicionais enumerados na assim chamada doutrina da “guerra

justa”. 349 Tomás de Aquino, assim como Agostinho e outros teólogos

medievais, considera a guerra justa último recurso da suprema

autoridade, legitimamente constituída. A guerra é um meio para

defender ou reconstruir a paz interna e externa, a ordem e a justiça. O

fim da guerra e sua reta intenção não é o castigo do inimigo, mas o

bem comum da paz e da justiça. Citando Agostinho diz: “Removida a

justiça o que são os Reinos, senão grandes latrocínios?” (Tomás de

Aquino, 1, II/2, q. 34; q. 40, art. 1).

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formas de solução; 4ª) que haja proporção entre os meios a

serem utilizados e o fim para conseguir.350

Atualmente, questiona-se esta doutrina clássica da

guerra justa e cresce a convicção de que, no marco das

armas nucleares, não há possibilidade de que nenhuma

guerra possa ser justa; todas as guerras são injustas e

injustificáveis. O Concílio Vaticano II condena, na sua

Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança

- 1965), a defesa com o uso de meios nucleares de

aniquilação de massa como crime contra Deus e os homens:

“Pelo progresso das armas científicas, o horror e a

perversidade da guerra cresceram sem medida. Com o

emprego dessas armas, as operações bélicas podem causar

destruições enormes e indiscriminadas, que portanto,

ultrapassam de muito os limites da legítima defesa”.351 O

Papa João XXIII, em sua carta encíclica sobre a paz, Pacem

in Terris (1963), declara: “no nosso tempo, que se vangloria

de possuir a força atômica, é irracional continuar a

considerar a guerra como meio apropriado para restabelecer

direitos feridos”.352 Esta encíclica marca a substituição da

doutrina da guerra justa pela doutrina da paz justa, que é

entendida como desenvolvimento social. A paz não pode

mais ser definida a partir do conceito de guerra, mas se

determina apoiando-se estritamente na tradição bíblica,

como justiça em favor dos injustiçados socialmente, os

pobres e famintos. Numerosos moralistas católicos resumem

350 Neste item, o Catecismo assim se expressa: “Que o emprego das

armas não acarrete males e desordens mais graves do que o mal a

eliminar. O poderio dos meios modernos de destruição pesa muito na

avaliação desta condição” (CIC, 2309). 351 GS 80. 352 PT 127.

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esta visão nos seguintes termos: “As armas nucleares

exigem uma nova ética da paz em que as distinções

tradicionais entre pacifismo e guerra justa deixem de ter

vigência. A oposição, por princípio, a todas as guerras é,

hoje, a única posição ética cristã e humana”.353

A nova ética tem uma proposta: a paz justa. Nesta, o

trabalho pela paz se apresenta como indissociável da luta

pela justiça e, por fim, da opção pelos pobres. A paz justa é

a condenação sem reservas da corrida armamentista como

loucura, injustiça, crime e erro contra os pobres.

O contraste manifesto entre superprodução profusa

de material de guerra e a multidão de necessidades

vitais não satisfeitas (países em desenvolvimento, os

pobres que vivem à margem da sociedade de bem-

estar) representa em si e por si uma agressão que

pode tornar-se crime: mesmo quando não usadas, as

353 Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. 1999,

p.590.

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armas matam, por seus altos custos354, os pobres ou

os fazem passar fome.355

A busca da paz requer questionamento sobre as raízes

dos atentados contra a paz em forma de guerra. Uma das

raízes mais profundas costuma ser a diferença entre ricos e

pobres e as assombrosas desigualdades socioeconômicas

entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. A ética da

paz tem sua base em uma ética da justiça, que implica a

proposta de nova ordem econômica internacional igualitária

e um modelo de desenvolvimento solidário com os povos do

Terceiro Mundo e com os marginalizados do Quarto Mundo

e o respeito da natureza como morada da humanidade.

A proposta moral de uma paz justa não pode

compartilhar com a moral judaica do Antigo

Testamento que pede a Deus extermínio dos inimigos

e fala de ‘guerra de Iahweh’, ou com a moral grega

bélica, ou com a moral imperialista da paz romana,

ou com a moral medieval das guerras justas, ou com

354 Quanto aos gastos bélicos, o mundo começa a ficar indignado.

Surgem instituições em defesa da paz em muitos países. “Essas

instituições fazem pesquisas e divulgam dados que têm impacto sobre

a opinião pública mundial. Por exemplo: para cada dólar que a ONU

gasta em missões de paz, o mundo investe 2 mil dólares em guerra;

em 1997 foram gastos 740 bilhões de dólares em armas, o que

representa 1 milhão e 400 mil dólares por minuto; em 2003, o total

mundial de gastos militares chegou a 960 bilhões de dólares, o que

representa mais de US$ 30 mil (cerca de R$ 100 mil) por segundo!

Esses e outros dados alimentam uma indignação nova, e a população

mundial é convidada a tomar posição” (Texto Base da Campanha da

Fraternidade – 2005 Ecumênica, 51). 355 Comissão Pontifícia Justiça e Paz – A Santa Sé e o

desenvolvimento, 1977.

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a ética ilustrada e burguesa da paz, que considera a

mesma como irrevogável mandato da razão prática,

mas que defende também a guerra entendida como

fator de promoção do progresso civilizador.356

Construir a paz é um dever de todos nós. Hoje, a

guerra perde o apelo de ato heróico e passa a ser vista pelo

seu lado trágico e desumano. Há que se construir uma

cultura da paz.

8 Complemento: A “Paz justa” e o caráter

social do Estado

A paz é um valor, um dever universal e encontra seu

fundamento na ordem racional e moral da sociedade que

tem as suas raízes no próprio Deus, “fonte primária do ser,

verdade essencial e bem supremo”.357 A paz não é

simplesmente ausência de guerra e, tampouco, um equilíbrio

estável entre forças adversárias, mas se funda sobre uma

correta concepção de pessoa humana e exige a edificação de

uma ordem segundo a justiça e a caridade.358

A paz é fruto da justiça, entendida em sentido amplo

como o respeito ao equilíbrio de todas as dimensões da 356 Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. 1999, p.

591. 357 João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da

Paz, 1982. 358 Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 51.

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pessoa humana. A paz está em perigo, quando não se

reconhece o que é devido ao homem enquanto homem,

quando não é respeitada a sua dignidade e quando a

convivência não é orientada em direção ao bem comum.

Para a construção de uma sociedade pacífica e o

desenvolvimento integral de indivíduos, povos e nações, são

essenciais a defesa e a promoção dos direitos humanos.

Quando não há paz, é essencial a busca das causas e, em

primeiro lugar, as que se ligam a situações estruturais de

injustiça, de miséria, de exploração, sobre as quais é

necessário intervir com o objetivo de removê-las: “Por isso,

o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a

responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo

modo, há a responsabilidade coletiva de promover o

desenvolvimento”.359

Hoje, o atual sistema sócio-político-econômico

mundial em vigor, de forma hegemônica, é internalizado em

cada país e tende a destruir a democracia, liquidar com a

ética e tornar supérfluos os parlamentos das nações.360 Sabe-

se que todas as sociedades modernas e as democracias

nasceram sustentadas pela tríade: cidadania, solidariedade e

359 Ibid., 52. 360 “Domina cada vez mais, em muitos países americanos, um sistema

conhecido como ‘neoliberalismo’; sistema este que, apoiado numa

concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de

mercado como parâmetros absolutos a prejuízo da dignidade e do

respeito da pessoa e do povo. Por vezes, este sistema transformou-se

numa justificação ideológica de algumas atitudes e modos de agir no

campo social e político que provocam a marginalização dos mais

fracos. De fato, os pobres são sempre mais numerosos, vítimas de

determinadas políticas e estruturas freqüentemente injustas” (João

Paulo II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in América. São

Paulo: Ed. Paulinas, 1999, p. 92, nº 56).

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construção do bem comum. Mas esses valores estão sendo

sistematicamente mudados por um outro sistema: o "deus do

mercado", que é a liberalização, a desregulamentação e a

privatização,361 em todos os campos da sociedade, não só na

economia.

A lógica fundamental que preside o processo atual e

que quase não encontra resistências obedece à lógica do

capital. Essa lógica orienta-se, fundamentalmente, por

valores e critérios identificados como referência exclusiva,

fundados no individualismo (egolatria) e na concorrência. O

processo hoje mundial, hegemonizado pelo capital, coloca a

economia como eixo estruturador das relações mundiais. A

lógica não é cooperativa, é competitiva. A crise reside em

tomar os valores e os critérios dessa lógica como referências

e critérios exclusivos daquilo que é bom, que é útil, que é

desejável para toda a sociedade.

Essa lógica está criando uma dupla cultura. A cultura

da conquista: trata-se de conquistar novos mercados,

conquistar posições, conquistar mais dinheiro, conquistar

mais "status" pessoal; tudo é objeto de conquista, numa luta

de todos contra todos, porque se trata de individualismo. É

uma cultura, também, dos meios, dos instrumentos. O fim

desse processo não é o ser humano, não são os povos. O fim

é a acumulação cada vez mais crescente de bens e serviços,

é a criação de riqueza e, por isso, o desenvolvimento da

economia tem de ser viável, esquecendo que tudo isso,

economia, mercado, mercadoria, é da natureza dos meios.

361 O ponto principal da desestatização consiste em vender empresas

públicas aos capitalistas particulares, com o pretexto de reduzir a

participação do Estado na economia, aumentar a eficiência e a

rentabilidade das empresas.

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São meios para atender a necessidades coletivas dos povos

ou necessidades pessoais e individuais, porque esses são os

fins. O ser humano não tem centralidade. A centralidade é

ocupada pela busca acelerada e maximizada da riqueza.

As pessoas são indivíduos e não pretendem mais

viver juntas, mas buscam assegurar seu bem-estar material

individual e maximizar sua utilidade individual. Em função

disso, não se dá prioridade à solidariedade, à erradicação da

pobreza, à luta contra as exclusões, contra o racismo, contra

a xenofobia, mas ela é concedida à eficácia produtiva e à

rentabilidade financeira em curto prazo. Essa lógica

dominante está destruindo os laços de sociabilidade e a

possibilidade de uma real democracia.362

Em que reside a crise do capitalismo? Na ordem do

capital, hoje, mundializada, tudo se transformou em

mercadoria, desde o sexo à mística, até à mercadoria mais

direta, como produção material de bens e serviços. Não há

mais espaço para as dimensões da gratuidade e da

sociabilidade. A crise é esta: a razão utilitarista,

aproveitadora, acumuladora, está ocupando todos os espaços

da sociedade. Na sociedade, na qual todos dizem "eu", em

362 Tais conceitos, expostos acima, quando vivenciados no cotidiano

social, traduzem-se no chamado darwinismo social que quer dizer

desenvolvimento social baseado na luta e na seleção natural dos mais

fortes sobre os mais fracos. É desta forma que o mercado - “sagrado”

para os neoliberais nos divide entre “ricos cada vez mais ricos às

custas de pobres cada vez mais pobres”. E esse grande grupamento

humano caminha à margem da própria cidadania, surgem então

aqueles a que chamamos de excluídos. São os que estão fora das

políticas públicas, não produzem para o sistema e não se enquadram

nos padrões dominantes do sistema.

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que há a guerra dos "eus", destroem os laços de

sociabilidade.

Portanto, a questão não é discutir se esse ou aquele

procedimento é ético ou não; é discutir se este projeto é

absolutamente antiético, porque ele se orienta por formas de

relação de produção e de destruição e não de construção

coletiva que implica a introdução de uma máquina de

morte363 que atinge as sociedades, as classes, as pessoas, a

humanidade; que atinge a natureza, pilhada

sistematicamente; e destrói o nosso futuro, o futuro comum

da terra, como planeta, como casa comum, e a humanidade,

como filhos e filhas da terra. Há quem diga que, se não

superarmos a crise desse capitalismo selvagem, poderemos

ir ao encontro do pior. Poderemos conhecer, quem sabe

dentro da nossa geração ainda, o destino dos dinossauros,

talvez possa haver uma devastação fantástica de seres vivos,

humanos e não-humanos.

Cidadania, solidariedade, bem comum eram os

princípios fundadores da sociedade moderna que,

desaparecidos, agora, importa resgatá-los. Quanto à

cidadania, nas suas três dimensões já conhecidas: a

363 Para os “excluídos”, o sistema neoliberal preparou uma nova

política: a morte. Seja pelo extermínio direto ou pela ausência de

políticas básicas que garantam condições de vida. Este nefasto projeto

político de morte visa eliminar este “excedente social”, sem lugar no

mundo. São imigrantes, crianças, jovens, velhos, mulheres e homens

que têm a morte como destino certo. Eles não são bonitos, não

frequentam os shopping center, geralmente, são migrantes e

desabrigados, carregam a expressão de dor, da revolta e do

sofrimento, não se enquadram nos nossos padrões. Para quem os vê, é

difícil crer que haja vida por dentro deles. Para o sistema, eles são

números.

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cidadania civil: garantir os direitos, as liberdades básicas de

falar, de se comunicar, de se expressar; a cidadania política:

garantir os meios de participação do poder por partidos,

sindicatos, imprensa etc.; e a cidadania social: garantir os

meios de uma dignidade mínima para os seres humanos, em

termos de trabalho, saúde, relação social, qualidade de vida.

A realidade mostra alguns dados: 1,9 bilhões de

pessoas vivem com menos de um dólar por dia e 2,8 bilhões

vivem com menos de dois dólares por dia; isto é, para mais

da metade da humanidade, a vida não é sustentável. Essa

economia é uma máquina de morte que as tritura, que as

devora. Os cálculos já foram feitos. O sistema hoje

integrado da economia e da política funciona bem, e muito

bem, para 1,6 bilhões de pessoas. Ocorre que somos mais de

seis bilhões para os quais a vida é um purgatório ou um

inferno.

Essa economia política é desastrosa para a

humanidade, é absolutamente antiética, desde que a ética

seja a forma de os seres humanos buscarem aquilo que é

bom para todos, útil para as comunidades, que é desejável

para estar conforme a natureza social do ser humano.

Essa estratégia, hoje mundializada, impossibilita a

democracia, destrói a ética. Um dos passos importantes dela

é desacreditar o Estado e o mundo político, porque o Estado,

e esta é a sua função, é o promotor e a garantia do bem

comum. Hoje, é criticado e condenado, não o Estado

burocrático ou Estado corrupto, mas o Estado em si, pura e

simplesmente. Por quê? Porque ele impede, coloca barreiras

à voracidade do capital e aos itinerários meramente

individuais das pessoas que buscam o bem-estar individual;

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e também dos políticos que representam, finalmente, a

coletividade. Então, procura-se desacreditar essas instâncias,

desmantelar o Estado, tornar ridícula a política.

Precisamos estar atentos às críticas contundentes e

contínuas que são feitas ao Estado e ao mundo político por

toda a mídia. Há uma segunda intenção, que não é só a

busca do combate à corrupção, o que é legítimo, mas é a

busca da invalidação do Estado e das políticas, para deixar o

campo limpo à voracidade individualista. O bem comum é

entendido assim: o interesse daquele que ganha, de forma

individual, converte-se em interesse geral, em bem comum;

mas não deixa de ser individual. É preciso reordenar as

prioridades, isto é, submeter a economia à política e a

política à ética.

Hoje, a economia tem uma natureza perversa que

contradiz toda reflexão filosófica e a reflexão social dos

últimos dois mil anos. Desde Platão e Aristóteles, a

economia era sempre, e a palavra, filologicamente, significa

isto: o atendimento das necessidades da casa. A economia

não tem mais essa natureza. Transformou-se na técnica de

enriquecimento linear e, cada vez mais crescente, às custas

das classes e da natureza. A economia deve voltar a ser um

capítulo da política, porque é na política que os seres

humanos decidem as formas de produzir, as maneiras de

distribuir e estabelecem os consensos de como, juntos, viver

e sobreviver.

A economia é da ordem dos meios e não da ordem

dos fins. A política estabelece os fins para os cidadãos

viverem em paz e alimentar a seguridade da sua existência

coletivamente garantida. Entretanto a economia deve ser

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submetida à política e a política à ordem ética. A ética com

aquela dimensão, aquele senso dos seres humanos de

buscarem a justa medida, o comportamento reto que se

adapta a nossa natureza de seres sociais e que faz com que

nossa convivência não seja uma trégua e um processo de

guerra de todos contra todos, mas seja a construção coletiva

da paz, como algo perene nos seres humanos.

Reafirmar a primazia do ético e do político-

democrático sobre o financeiro-econômico. Isso se faz ao

reforçar a fonte de todo o poder que pode controlar esses

processos, que é reforçar a sociedade civil com todos os

seus movimentos.

O segundo ponto é promover novas formas de

representação política. Não bastam os partidos, porque

partido é sempre parte de algo. É preciso estabelecer uma

nova ponte entre o Congresso, governo e sociedade, que

mais e mais se organiza em mil movimentos para que haja

novas formas de poder e antipoder. Que o poder se

descentralize. Que o consenso não seja negociado e

construído só dentro do Parlamento, mas seja continuamente

frutificado e amadurecido no diálogo com a sociedade civil

e com todos os seus movimentos.364 364 O caminho é a participação. Engajar-se nas organizações do

movimento social, fortalecer a democracia participativa por meio de

conselhos populares, incentivar a gestão coletiva governo e sociedade,

rever os padrões e quebrar preconceitos. O grande desafio que temos

pela frente é a busca da plena cidadania para todos e o resgate dos

Direitos Humanos. Temos, também, que investir numa representação

política que venha defender os interesses dos trabalhadores e dos mais

pobres e fazer com que o Estado garanta a justiça, a dignidade e os

direitos fundamentais da pessoa humana. É fundamental que se

fortifiquem a consciência e a organização política. Só assim os

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Em terceiro, com esse novo diálogo, com essa

interação do poder social com o poder político, pode-se

garantir, postular e reforçar a busca do acesso a bens e

serviços necessários e indispensáveis para uma vida

minimamente digna a todos os cidadãos. Essa vida não vem

por si mesma; vem por meio de muita pressão e negociação.

Mediante a pressão e a negociação da sociedade com

esse poder social e político, deve-se resgatar uma dimensão

básica do Estado: a dimensão ética. O Estado não é só

mecanismo de poder. Representa valores, sonhos e ideais

que a sociedade quer ver realizados nos portadores de poder,

que não devem ser corruptos, mas pessoas altamente éticas

que apresentam, nas suas próprias vidas, nos seus percursos

biográficos, na forma como manejam e gerenciam o poder,

os valores da solidariedade, os valores éticos da colaboração

e da transparência do poder. Hoje, com a recuperação do

estatuto ético, o Estado ganha credibilidade.

É necessário resgatar o caráter social do Estado,

porque o próprio Estado, por sua natureza social, está sendo

privatizado. Talvez ele seja a maior instituição que ainda

não foi totalmente manipulada pelos interesses das grandes

corporações multinacionais que o querem para garantir o

mínimo de segurança e poderem circular dentro dos espaços

econômicos. Recuperar o caráter social do Estado, isto é,

que as políticas sociais do Estado não sejam relegadas a um

só departamento: à Comunidade Solidária. Que as políticas

sociais sejam imperativo e presença em todos os

direitos dos trabalhadores e dos cidadãos e cidadãs, em geral, podem

ser respeitados.

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Ministérios, em todas as políticas, porque o Estado é

instância delegada do poder popular e do poder social.365

Se a luta por essa sociedade que quer mais ética é

resgatar o sentido da democracia como solidariedade e

como busca do bem comum, hoje, globalizado, e de uma

cidadania mais integrada, ela não é só desejável, mas é

possível e produz frutos. Ela inviabiliza as artimanhas dos

poderosos que, de costas à humanidade, reúnem-se para

defender privilégios, estabelecer políticas que garantam os

seus ganhos e continuam sacrificando e martirizando mais

da metade da humanidade.

Não é impossível que os caminhos sejam abertos para

resgatarmos a democracia com o sentido de cidadania plena,

com sentido ético nas relações sociais, com horizonte aberto

em que não sejamos condenados a ser lobos uns dos outros,

mas que possamos ser cidadãos concidadãos, filhos e filhas

da alegria, e não condenados a viver e a sofrer num vale de

lágrimas.

Enfim, a paz justa é aquela que possibilita a

segurança, a tranquilidade e a unidade. O trabalho pela paz

se apresenta como indissociável da luta pela justiça e, por

fim, da opção pelos pobres. A busca da paz requer

questionamento sobre as raízes dos atentados contra a paz

em forma de guerra. E a raiz, pelo menos, uma das raízes

mais profundas costuma ser a assimetria entre ricos e

pobres, as assombrosas diferenças socioeconômicas entre

países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Por consequência,

a ética da paz tem sua base em uma ética da justiça que

365 Cf. BOFF, Leonardo. 2000.

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implica a proposta de nova ordem econômica internacional

igualitária e um modelo de desenvolvimento solidário com

os povos do Terceiro Mundo e os marginalizados do Quarto

Mundo e o respeito da natureza como morada da

humanidade.366

9 Instrumento garantidor da ordenada

concórdia ou paz temporal no estado: o

poder temporal

O poder temporal, para Agostinho, é um dos

elementos essenciais para preservação da “ordenada

concórdia” ou “paz temporal” e está fundamentado no

princípio da “verdadeira justiça”, ou da “divina ordem”,367

ou seja, que haja a subordinação das coisas inferiores (os

mandados) às superiores (aos que mandam). Assim, no caso

da paz doméstica, por exemplo, Agostinho afirma que é

justo que “mandem os que cuidam, como o homem à

mulher, os pais aos filhos, os patrões aos criados e

obedeçam quem é objeto de cuidados, como as mulheres aos

maridos, os filhos aos pais, os criados aos patrões”.368

366 Cf. Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. 1999, p.

590-591. 367 Princípio segundo o qual é justo que se “subordine as coisas

somente às dignas, as corporais às espirituais, as inferiores às

superiores, as temporais às sempiternas” (Epístola 140). 368 A Cidade de Deus XIX, 14. O mesmo princípio da justiça

doméstica seria aplicado à cidade, fazendo da família um protótipo do

Estado: “A casa deve ser o princípio e o fundamento da cidade. Por

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Mais do que isso, a “verdadeira justiça” justifica

também o uso do poder como força coercitiva (castigo),

como punidora dos que desrespeitam a justa ordem, ou a

“ordenada concórdia” entre os homens, segundo a qual,

além de ser justo que uns mandem e outros obedeçam, é

também justo que se castigue o infrator; isto é, aquele que

não quer obedecer ao que manda: “se em casa alguém turba

a paz doméstica por desobediência, é para sua própria

utilidade corrigido com a palavra, com pancadas ou com

qualquer outro gênero de castigo justo e lícito admitido pela

sociedade dos homens, para reuni-lo à paz de que se

afastara”.369

Não que o castigo seja um bem em si mesmo, mas um

instrumento da justiça, pelo qual se aplica o princípio de

“dar a cada um o que é seu”.Então, “o jugo da fé impõe-se

com justiça ao pecador”.370 E entre os castigos sociais

admitidos pela sociedade, e justamente aplicados para

preservação da “ordenada concórdia”, está a escravidão.

Agostinho não justifica a escravidão como um direito

natural, como o fez Aristóteles. Deus não criou os homens

para que dominassem seus semelhantes, mas somente os

animais. Se a escravidão existe, deve ser vista como um

castigo infligido à humanidade por conta de seus pecados.

Assim, quando os vencedores transformam seus vencidos

isso (...) deve a ordenada concórdia entre os que mandam e os que

obedecem relacionar-se com a ordenada concórdia entre os cidadãos

que mandam e os que obedecem” (Ibid., XIX, 16). 369 Ibid., XIX, 16. 370 Ibid., XIX, 15.

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em servos, ou seja, numa classe socialmente inferior, isso

acontece por merecimento do pecado.371

Agostinho assevera que as relações de poder devem

ter, como princípio, a caridade, sem a qual o poder não será

justo, isto é, “que não mande por desejo de domínio, mas

por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por

misericórdia de auxílio”.372

Para Agostinho, a legitimidade do poder está na sua

relação com Deus, do qual provém todo poder: “Não há

autoridade que não venha de Deus”,373:

Se, por conseguinte, se rende culto ao Deus

verdadeiro, servindo com sacrifícios sinceros e bons

costumes, é útil que os bons reinem por muito tempo

e onde quer que seja. E não o é tanto para os

governantes como para os governados. Quanto a

eles, a piedade e a bondade, grandes dons de Deus,

lhes bastam para felicidade verdadeira, que, se

merecida, permite a gente viver bem nesta vida e

conseguir depois a vida eterna.374

Agostinho faz uma estreita relação entre o uso do

poder e a caridade, ao dizer que “nada é mais feliz para as

coisas humanas que o fato de virem a obter o poder, por

371 “A primeira causa da servidão, é, pois, o pecado, que submete um

homem a outro pelo vínculo da posição social. Por natureza o homem

não é escravo, mas por causa do pecado a escravidão penal está regida

e ordenada por lei, que manda conservar a ordem natural e proíbe

perturbá-la” (Id.). 372 A cidade de Deus XIX, 14. 373 Rm 13, 1. 374 A cidade de Deus IV, 3.

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bondade de Deus, homens que vivem bem, dotados de uma

verdadeira piedade”.375

Já em 390, muito antes de escrever A Cidade de Deus,

Agostinho, apesar de elogiar o amor patriótico do pagão

Nectário, governador de Calama, preocupado “em deixar, ao

morrer, sua pátria incólume e florescente”,376 lamentava

faltar-lhe o preceito da “divina caridade”, a única capaz de

garantir a “verdadeira felicidade” dos cidadãos que não é

senão levá-los a alcançar a pátria celeste. Ele diz:

Também pelos serviços prestados à pátria terrena, se

fizeres com amor vero e religioso ganharás a pátria

celeste (...) deste modo, proverás, de verdade, ao bem

de teus concidadãos a fim de fazê-los usufruir não da

falsidade dos prazeres temporais, nem da

funestíssima impunidade da culpa, mas da graça da

felicidade eterna. Suprimam-se todos os ídolos e

todas as loucuras, convertam-se as pessoas ao culto

do verdadeiro Deus e a pios e castos costumes; e

então verás a tua pátria florir não segundo a falsa

opinião dos estultos, mas segundo a verdade

professada pelos sábios, quando esta pátria, em que

nasceste para vida mortal, será uma porção daquela

pátria para a qual se nasce não com o corpo, mas

375 Ibid., V, 19. E acrescenta: “Quem não é cidadão da cidade eterna,

que em nossas Sagradas Letras chama-se cidade de Deus, é mais útil

à cidade terrena quando tem, pelo menos, essa virtude que se carece

dela. Os verdadeiramente piedosos, que à vida moral unem a ciência

de reger os povos, constituem verdadeira bênção para as coisas, se,

por misericórdia de Deus, gozam do poder. Tais homens, sejam

quantas forem as virtudes que podem ter nesta vida, atribuem-nas à

graça de Deus” (Id.). 376 Epístola 90.

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pela fé, onde, após o inverno cheio de sofrimentos

desta vida, florescerão na eternidade que não

conhece ocaso (...), pois o amor mais ordenado e

mais útil pelos cidadãos consiste em levá-los ao culto

do sumo Deus e à religião. Este é o amor verdadeiro

e pio da pátria terrestre, que te fará merecer a pátria

celeste.377

Como se vê, para Agostinho, todas as instituições da

sociedade, dentre elas, o poder, têm por fim último fazer

arder no coração do homem o desejo expresso no Pai-

Nosso: “Venha a nós o vosso reino”. Por isso, visto que

amar a Deus e amar os homens é a mesma coisa, é

necessário que as instituições sociais sejam moldadas pela

caridade.

Concluindo, pode-se afirmar que a ética agostiniana

realiza-se à medida que se realiza a ordem moral, isto é, o

amor. Orientando-se pela razão, o homem pode conhecer o

bem, mas a vontade pode rejeitá-lo, porque, embora

pertencendo ao espírito humano, a vontade é uma faculdade

diferente da razão, tendo uma autonomia própria em relação

à razão, embora seja a ela vinculada. A razão conhece e a

vontade escolhe, podendo escolher, inclusive, o irracional,

ou seja, aquilo que não está em conformidade com a razão,

por exemplo, evitando fazer o bem e praticando somente o

mal. Portanto, para vivermos bem, precisamos aspirar ao

desejo da paz e da tranquilidade. Agostinho ensina a invocar

o nome de Deus para conseguir essa tão sedenta paz:

377 Epístola 104.

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Senhor Deus, concede-nos a paz, tu que tudo nos

deste. Concede-nos a paz do repouso, a paz do

sábado, uma paz sem ocaso. Essa belíssima ordem

das coisas muito boas, uma vez cumprindo o seu

papel, toda ela passará; porque terão tido um

amanhecer e uma tarde.378

378 Confissões XIII, 35, 50.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Santo Agostinho foi um pensador que conseguiu ser,

ao mesmo tempo, poeta, filósofo, teólogo e sábio. Suas

obras permanecem atuais, embora os séculos que nos

separam delas. Seus ensinamentos filosóficos e suas

virtudes são exaltados por muitos: “Pelo gênio agudíssimo,

pela riqueza e sublimidade de doutrina, pela santidade da

vida e pela defesa da verdade, ninguém ou certamente

pouquíssimos, de quantos floresceram desde o início do

gênero humano até hoje, podem ser comparados a ele”379.

Todo o esforço intelectual e pastoral de Agostinho foi o de

mostrar que a força da Razão e da Fé leva o homem a

conhecer mais sobre a totalidade do ser humano. Os

primeiros séculos do cristianismo representam um momento

forte da relação fé e razão, principalmente, quando os

cristãos entraram em contato com o pensamento filosófico

grego, período das grandes questões teológicas e momento

de desestruturação dos antigos valores que sustentavam a

sociedade no Império Romano. Santo Agostinho se destaca

neste ambiente e foi o grande baluarte da fundamentação

filosófica do cristianismo até a Idade Média.

O caminho da sua conversão é bastante conhecido por

seus próprios escritos, evidenciados, principalmente, no

379 Pio XI, Encíclica Ad salutem humani generis. Apud, João Paulo II.

Carta Apostólica Augustinum Hipponensem: pelo 16º centenário da

conversão de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 5.

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primeiro capítulo desta obra.380 Mas é, sobretudo, mediante

as célebres Confissões, obra que é, ao mesmo tempo,

autobiografia, filosofia, teologia, mística e poesia, e, na

qual, homens sequiosos da verdade e cônscios dos próprios

limites se encontraram e se encontram a si mesmos.

Também hoje, as Confissões de Santo Agostinho estimulam

e comovem não só os crentes; também aquele que não tem

fé, mas está à procura de uma certeza que, pelo menos,

permita-lhe compreender a si mesmo, as suas aspirações

profundas e os seus tormentos. A conversão de Santo

Agostinho, dominada pela necessidade de encontrar a

verdade, tem muito a ensinar aos homens de hoje, com

frequência, tão desorientados ante o grande problema da

vida.381

Aquela harmonia constante entre fé e razão vivida na

Idade Média se vê ameaçada na época moderna que marca

um período de progressiva separação entre a fé e a razão,

atingindo seu apogeu com o iluminismo e teve como

consequência a deformação da razão, levando-a a se tornar

uma “razão instrumental ao serviço de fins utilitaristas, de

prazer e de poder”.382 Como resultado desta caminhada

histórica do homem, evidencia-se, hoje, que tudo aquilo que

sustentava nossa forma de viver está em plena deterioração

no que tange à religião, à economia, ética, sociologia e

política; as mudanças são cada vez mais bruscas. Nesta crise

de civilização cultural, não se fortalece a tradição e cada

380 As que ele escreveu no retiro de Cassicíaco antes do batismo (A

vida feliz, Contra Acadêmicos e Solilóquios) e principalmente

Confissões. 381 Cf. João Paulo II. 1986, p. 7. 382 João Paulo II. Carta Encíclica Fides et Ratio. São Paulo: Paulinas,

1998, nº 47.

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pessoa se vê chamada a criar um projeto de vida muito

particular. Percebe-se, então, que a tentativa da humanidade

de criar uma cultura nova e racional, rejeitando toda e

qualquer ligação entre fé e razão e entre Deus e os homens,

ou seja, tirar Deus como possibilidade, princípio e fim,

gerou uma cultura de morte, sem horizonte e sem sentido.

Nesse sentido, pode-se dizer que não haverá encontro com a

verdade para aquele que se detém apenas nos estreitos

limites da razão e despreza a fé como possibilidade de

transcendência. A razão, por si só, não alcança a plenitude

do mistério.

Santo Agostinho, com o auxílio do pensamento

platônico, libertou-se do conceito da vida material obtido do

maniqueísmo: “Instigado por esses escritos a retornar a mim

mesmo, entrei no íntimo do meu coração sob tua guia (...)

Entrei e, com os olhos da alma (...) e acima de minha

própria inteligência, vi uma luz imutável”.383 Foi esta luz

imutável que lhe abriu os horizontes imensos do espírito e

de Deus. Compreendeu que em relação à grave questão do

mal, que constituía o seu grande tormento,384 a primeira

pergunta a ser feita não era de onde ele provém, mas que

coisa é,385 e intuiu que o mal não é uma substância, mas uma

privação do bem.386 Deus, portanto, concluía ele, é o criador

383 Confissões, VII, 10, 16. 384 “Minha juventude cheia de vícios estava morta. Caminhava para a

maturidade, e quanto mais avançava em anos, tanto mais

vergonhosamente me deixava contaminar pelas coisas vãs”

(Confissões VII, 1, 1). 385 “Eu pesquisava mal a origem do mal, e não enxergava o mal que

havia na própria busca” (Confissões VII, 5, 7). 386 “Em ti o mal não existe de forma alguma; e não só em ti, mas em

quaisquer criaturas tomadas em sua universalidade. Porque, fora da

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de todas as coisas e não existe substância alguma que não

tenha sido criada por Ele.387 Ele também compreendeu que o

pecado se origina da vontade do homem, uma vontade livre

e defectível: “era eu quem o queria, e ao mesmo tempo era

eu quem não o queria: sempre eu. Não tinha uma vontade

plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo

mesmo, deixando-me dilacerado”.388 Agostinho, a partir

dessa experiência, tem consciência de que os maiores

obstáculos no caminho para a verdade não são de ordem

teórica, mas de ordem prática, isto é, de ordem moral:

“Admirava-me de agora amar a ti, e não a um

fantasma em teu lugar. Mas, ao mesmo tempo, eu não

era estável no gozo do meu Deus. Atraído por tua

beleza, era logo afastado de ti por meu próprio peso,

que me fazia precipitar gemendo por terra. Esse peso

eram os meus hábitos”.389

Compreendeu, então, que uma coisa é conhecer a

meta e outra alcançá-la, deduz, assim, que o homem não

pode salvar-se a si mesmo, tão pouco no âmbito intelectual:

tem que começar pela fé na autoridade da Palavra de Deus,

para que a inteligência, liberta dos erros, assim como o

coração do orgulho e da soberba, possa logo exercitar sua

razão no caminho da verdade revelada. Foi, então, nas cartas

de Paulo, que ele descobriu Cristo Mestre, como sempre o

tinha venerado, mas também Cristo Redentor, Verbo

encarnado, único Mediador entre Deus e os homens.

tua criação nada existe que possa invadir ou corromper a ordem por ti

estabelecida” (Confissões VII, 13, 19). 387 Cf. Confissões VII, 12, 18. 388 Ibid., VIII, 10, 22. 389 Ibid., VII, 17, 23.

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Agostinho vê o esplendor da filosofia, era a filosofia do

Apóstolo Paulo que tem Cristo como centro, poder e

sabedoria de Deus, e que tem outros centros: a fé, a

humildade, a graça; a filosofia que, ao mesmo tempo, é

sabedoria e graça, pela qual se torna possível não só

conhecer a pátria, mas também alcançá-la.390

Para Agostinho, todos os homens querem ser alegres

e felizes, mas a verdadeira alegria só vem de Deus. A carne

e seus apelos, a matéria, podem levar o homem a confundir-

se e a fazer aquilo que pode fazer, mas não aquilo que

realmente quer fazer. Deus é a felicidade, porque é a

verdade. E a alegria reside na verdade. Esta é uma só e Deus

é a sua fonte. O homem deve invocar a Deus, mas este já

habita nele. Para voltar a encontrar a verdade, tem de

purificar sua alma, livrando-se, principalmente, do orgulho e

da soberba, das comoções da carne, seguindo exemplo de

Jesus Cristo, que foi, ao mesmo tempo, Deus e homem,

verbo imortal e carne perecível. Este morreu para salvar o

homem do pecado original.

Depois da experiência com a Palavra de Deus,

Agostinho reconduz toda sua doutrina e toda sua vida cristã

à caridade, entendida como adesão à verdade para viver na

justiça.391 A caridade constitui a alma de tudo, o centro de

irradiação, a mola secreta do organismo espiritual. Na

caridade, ele pôs a essência e a medida da perfeição cristã,

como foi exposto no segundo e terceiro capítulos desta obra,

nos quais se constatou que o sentido da existência humana

passa pela vertente do mistério do amor: “Meu peso é o

390 Cf. Confissões VII, 21, 27. 391 Cf. A Trindade VIII, 7, 10.

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amor; por ele sou levado para onde sou levado”.392

Conforme Agostinho, o amor é o peso do coração capaz de

fazê-lo inclinar-se para um lado ou para outro e cujo objeto

da busca é sempre o bem, não no sentido moral, mas no

sentido ontológico, isto é, o bem comum. O fim último

dessa tendência amorosa do homem é a felicidade, isto é, o

gozar do bem supremo, que é gozar do próprio Deus.

“Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,

enquanto não repousa em ti”.393

Quanto a isso, todos concordam que todos os homens

querem ser felizes, mas nem todos estão de acordo em que

consiste a felicidade: nos prazeres, nas vanglórias, no poder,

na fama, em Deus. Santo Agostinho ensina, portanto, que o

amor em si é neutro e que pode ser bom ou mau, segundo

seja ordenado ou desordenado. E ele será ordenado ou não,

segundo se coloque ou não às exigências objetivas da ordem

real e ontológica dos bens. Esta ordem consiste na primazia

absoluta de Deus, que é o Bem Supremo. Pode-se concluir,

então, que o amor ordenado é o amor que ama a Deus acima

de todas as coisas, pelo mesmo Deus, a todos os demais e,

portanto, de acordo com sua lei.

É desordenado o amor que coloca acima de Deus

algum bem criado, por amá-lo fora ou em contradição com

as leis de Deus. Mas o que ama com amor ordenado, e

somente este, tem a lei divina interiorizada no seu coração,

gravada de tal maneira que, para ele, e só para ele, vale a

máxima de Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”.394

392 Confissões XIII, 9, 10. 393 Ibid., 1, 1, 1. 394 Comentário da Primeira Epístola de São João 7, 8.

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É, pois, na filosofia e teologia do amor que Santo

Agostinho fundamenta a sua concepção filosófica e

teológica da história. Quando, nA cidade de Deus, ele

apresenta toda a história da humanidade como a história da

luta entre duas cidades, a cidade de Deus e a cidade do

mundo ou dos homens, as quais estariam constituídas,

fundamentalmente, por dois amores: “Dois amores

fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio,

levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado

ao desprezo de si próprio, a celestial”.395

Portanto, sem a graça de Deus, o amor humano,

necessariamente, volta-se, ilicitamente, sobre as criaturas,

sob o peso da herança de Adão. Para Agostinho, é a morte

de Jesus Cristo, Filho de Deus, na cruz, a que, abrindo as

portas da graça celestial, torna possível o amor humano por

cima de todos os seus próprios limites existenciais, fazendo-

o participar, pela fé e pela esperança da caridade divina:

“Porque Deus é Amor”.396

Pelo amor pode-se chegar a uma atitude ética para

com os outros. Este é o primeiro passo para o altruísmo e a

fraternidade social, cujo resultado é a harmonia no convívio

entre as pessoas.

395 A cidade de Deus 14, 28. 396 1João 1, 8.

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ANEXO 1

RELAÇÃO DE OBRAS DE SANTO

AGOSTINHO EM ORDEM CRONOLÓGICA

Guilherme Fraile397 apresenta a seguinte relação, em

ordem cronológica, de obras escritas por Santo Agostinho:

01 - De Pulchro et Apto (374)

02 - Contra Academicis (386)

03 - De Beata Vita (386)

04 - De Ordine (386)

05 - Soliloquia (386/387)

06 - De Immortalitate Animae (387)

07 - De Grammatica (387)

08 - De Quantitate Animae (387-388)

09 - De Musica (388-391)

10 - De Moribus Ecclesiae Catholicae et

Manichaeorum (388)

11 - De Libero Arbitrio (388-395)

12 - De Genesi Contra Manichaeos (388-390)

13 - De Magistro (389)

14 - De Vera Religione (388-391)

15 - De Diversis Quaestionibus Octoginta Tribus

(388-396)

16 - De Utilitate Credendi (391-392)

17 - De Duabus Animabus Contra Manichaeos (391-

392)

397 FRAILE, Guillerme. 1966, p. 191-231.

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18 - Contra Fortunatum Manichaeos (392)

19 - De Fide et Symbolo (393)

20 - De genesi ad litteram Liber Imperfectus (393)

21 - Psalmus Abecedarius Contra Partem Donati

(393)

22 - De Sermone Domini in Monte (393-396)

23 - Contra Adimantum Manichaei Discipulum (393-

396)

24 - Expositio 84 Propositionum ex Epistola ad

Romanos (394-396)

25 - Expositio Epistolae ad Galatas (394 - 395)

26 - De Mendacio (394)

27 - De Continentia (394)

38 - Expositio in Epistolam ad Romanos Inchoata

(394-396)

29 - Contra Mendicacium (395)

30 - De Agone Christiano (396)

31 - De Diversis Quaestionibus ad Simplicianum

(396-397)

32 - Contra Epistolam Manichaei Quam Vocant

Fundamenti (396-397)

33 - De Doctrina Christiana (397)

34 - Annotationes in Iob (397-400)

35 - Contra Hilarium (399)

36 - De Divinatione Deamonum (399)

37 - De Catechizandis Rudibus (400)

38 - Confessionum (400)

39 - Contra Faustum Manichaeum (400)

40 - De Concensu Evangelistarum (400)

41 - Ad Inquisitiones Iaunaurri (400)

42 - De Opere Monachorum (400)

43 - De Fide Rerum Quae Non Videntur (400)

44 - Quaestiones Evangeliorum (400)

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45 - Contra Epistolam Parmeniani (400)

46 - De Baptismo Contra Donatistas (400)

47 - De Trinitate (412 - 420)

48 - De Bono Coniugali (401)

49 - De Sancta Virginitate (401)

50 - Contra litteras Petiliani (401)

51 - De Unitate Ecclesiae (401)

52 - De Genesi ad litteram (401-415)

53 - De Actis Cum Felice Manichaeo (404)

54 - De Natura Boni (405)

55 - Contra Secundinum Manichaeum (405-406)

56 - Contra Cresconium Grammaticum Partis Donati

(406)

57 - Sex Questiones Expositae Contra Paganos (409)

58 - De unico Baptismo Contra Petilianum (411)

59 - Breviculus Collationis Cum Danatistis (411)

61 - De Gratia Novi Testamenti ad Honoratum (412)

62 - Contra Donatistas Post Collationem (412)

63 - De Peccatorum Meritis et Remissione et de

Baptismo Parvulorum (412)

64 - De Fide et Operibus (413)

65 - De Spiritu et littera ad Marcellinum (413)

66 - De Videndo Deo (413)

67 - De Civitate Dei (412-426)

68 - De Bono Viduitatis (414)

69 - De Octo Quaestionibus ex Veteri Testamento

(414)

70 - De Natura et Gratia (415)

71 - De Patientia (415)

72 - Contra Priscillianistas et Origenistas ad

Orosium (415)

73 - De Origine Animae Animis ad Hieronymum

(415)

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74 - De Setentia Jacobi ad Hieronymum (415)

75 - De Perfectione Justitiae Himinis ad Eutropium et

Paulum (415)

76 - Enarrationes in Psalmos (415 - 422)

77 - Tractatus in Joannis Evangelium (416-417)

78 - Tractatus in Epistolam Joannis ad Parthos (416)

79 - De Gestis Pelagii in Synodo Diospolitano (416)

80 - De Corretione Donatistarum (417)

81 - De Prasentia Dei (417)

82 - De Gratia Christi et Peccato Originali (418)

83 - De Gestis Cum Emerito Caesareensi

Donatistorum Episcopo (418)

84 - Contra Sermones Arianorum (418)

85 - De Coniugiis Adulterinis (419)

86 - Locutionum in Heptateuchum (419)

87 - Questiones in Heptateuchum (419)

88 - De Nupitiis et Concupiscentia (419-420)

89 - De anima et eius Origine (419-420)

90 - Contra duas Epistolas Pelagianorum (420)

91 - Contra Gaudentium Donatistarum Episcopum

(420)

92 - Contra Adversarium legis et Prophetarum (420)

93 - Contra Julianum Haeresis Pelagianae

Defensorem (421)

94 - Enchiridium ad Laurentium (421)

95 - De Cura pro Mortuis Gerenda (421)

96 - De Octo Dulcitii Quaestionibus (422)

97 - Regula ad Servos Dei (423)

98 - De Gratia et Libero Arbitrio (426-427)

99 - De Correptione et Gratia (426-427)

100 - Retractationum (426-427)

101 - Speculum de Scriptura Sacra (427)

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102 - Collatio cum Maximino Arianorum Episcopo

(428)

103 - Contra Maximinum Arianorum Episcopo (428)

104 - Tractatus Adversus Judaeus (428)

105 - De Dono Perseverantiae (428-429)

106 - De Praedestinatione Sanctum (428-429)

107 - Opus Imperfectum Contra Juliano (430)

108 - Questionum Septemdecim in Ev. Secundum

Mathaeum (data incerta)

109 - Expositio Epistolae ad Duodecim Tribus (data

incerta).

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REFERÊNCIAS

Primárias

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. A doutrina

Cristã: manual de exegese e formação cristã. Trad. e

not. Nair de Assis Oliveira; rev. H. Dalbosco e P.

Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2002. 284 p.

(Patrística; 17).

______. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Trad. Oscar

Paes Leme. Bragança Paulista: Universitária São

Francisco, 2003. v. 1, v. 2. (Coleção pensamento

humano).

______. Cartas a Proba e a Juliana: direção espiritual. 2. ed.

Trad. e not. Nair de Assis Oliveira, rev. E.

Gracindo. São Paulo: Paulus, 1987. 100 p. (Série

Espiritualidade).

______. A Trindade. 2. ed. Trad. e int. Agustinho Belmonte;

rev. e not. Nair de Assis Oliveira. São Paulo:

Paulus, 1994. 726 p. (Coleção patrística).

______ Confissões. 2. ed. Trad. Maria Luiza Jardim

Amarante. São Paulo: Paulus, 1997. 450 p. (Coleção

Patrística; 10).

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182

______ O Livre Arbítrio. 3. ed. Trad, org. introd. e nota, Nair

de Assis Oliveira; rev. Honório Dalbosco. São

Paulo: Paulus, 1995. 296 p. (Coleção patrística).

______. Solilóquios e a vida feliz.: Solilóquios. Trad. e nota,

Adaury Fiorótti. A Vida Feliz: Trad. Nair de Assis

Oliveira; introd. e nota, Roque Frangiotti; rev. H.

Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1998. 160 p.

(Patrística; 11).

______. A verdadeira religião: o cuidado devido aos .mortos.

Trad. e nota, Nair de Assis Oliveira, rev. Onório

Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2002. 196 p.

(Patrística; 19).

______. Comentário da Primeira Epístola de São João. Trad,

org, introd. e nota, Nair de Assis Oliveira; rev. José

Joaquim Sobral. São Paulo: Paulinas, 1989. 219 p.

(Coleção espiritualidade).

_______.Comentário aos Salmos. Trad. das Monjas

beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997. v. 1 – Salmos

1 a 50, v. 2 – Salmos 51 a 100 e v. 3 – Salmos 101 a

150.

BIBLIOTECA DE AUTORES CRISTIANOS (B.A.C).

Obras de San Agustín. Madrid: La Editorial

Catolical, 1950. tomo I a XVII.

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Secundárias

Comentários Sobre Santo Agostinho:

ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo

Agostinho: ensaio de interpretação filosófica. Trad.

de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget,

1997. 189 p.

CREMONA, Carlos. Agostinho de Hipona: a razão e a fé.

Trad. Pergentino Stefano Pivatto, apres. Cardeal

Carlo Maria Martini Petrópolis: Vozes, 1990. 262

p. (Coleção vidas famosas).

FITZGERALD, Allan D. (Dir.). Diccionario de San

Agustín: San Agustín a traves del tiempo. Monte

Carlo: Burgos, 2001. 1352 p.

GUERRINI, Maria Rosa. Tarde te amei: Santo Agostinho

um homem de Deus... um homem para o homem.

Trad. João Paixão Netto, rev. Lígia Silva, ilust.

Maria Rosa Guerrini. São Paulo: Paulinas, 1988.

150 p.

HAMMAN, A.G. Santo Agostinho e seu Tempo. Trad.

Álvaro Cunha, rev. Nair de Assis Oliveira. São

Paulo: Paulinas, 1989. 365 p. (Coleção patrologia).

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JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Augustinum

Hipponensem: pelo 16º centenário da conversão de

Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 1986. 48 p.

______. Carta encíclica Fides et Ratio: sobre as relações

entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998. 143 p.

LUCAS, Miguel. Concentra-te em Ti Mesmo: a felicidade

está dentro de nós. São Paulo: Loyola, 1987. 85 p.

_______. Conhecer-se; um caminho para ser feliz. Trad.

João Augusto Pereira. São Paulo: Paulus, 1996. 107

p.

OLIVEIRA, Nair de Assis (Org.). Orando com Santo

Agostinho. São Paulo: Paulus, 1996. 155 p.

POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. Trad. Monjas

Beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997. 95 p.

RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. A Idéia de Estado na

Doutrina Ético-Política de Santo Agostinho: um

estudo do epistolário comparado com o “De Civitate

Dei”. São Paulo: Loyola, 1984. 370 p. (Coleção fé e

realidade, 15).

REINARES, Tirso Alesanco. Filosofia de San Agustín:

Síntesis de su pensamiento. Madrid: Editorial

AVGVSTINVS, 2004. 511 p.

RETA, José Oroz y RODRIGO, José A. Galindo (Dir.). El

pensamiento de San Augustín el hombre de hoy.

Tomo I: la filosofia agustiniana. Valencia: Edicep,

1998. 759 p.

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Curso de Graduação em Filosofia

pelo Instituto Filosófico

Arquidiocesano de Maringá IFAMA.

Presbítero da Arquidiocese de

Maringá, Pe. Leomar Antonio

Montagna, atualmente, é Assessor da

Pastoral Universitária, Diretor e

Professor do Curso de Licenciatura

em Filosofia da Pontifícia

Universidade Católica do Paraná

(PUCPR) Câmpus Maringá;

Professor convidado da Faculdade

Missioneira do Paraná (FAMIPAR)

de Cascavel;

Assessor e Professor da Escola

Teológica Para Cristãos Leigos da

Arquidiocese de Maringá.

Membro do Conselho Editorial da

Editora Humanitas Vivens LTDA –

Editora On-line;

PUBLICOU esta mesma obra em

uma primeira edição on-line pela

Editora Humanitas Vivens LTDA,

disponível no site

www.humanitasvivens.com.br.

Autor do volume Como ler

Agostinho, que será publicado na

coleção Como ler os Pensadores, da

Editora Humanitas Vivens LTDA,

coordenada pelos professores

Claudinei Luiz CHITOLINA e José

Francisco de Assis DIAS.

Autor de vários artigos para revistas e

jornais, palestras e cursos de breve

duração.

Na área de Filosofia, atua,

principalmente, nos seguintes temas:

Filosofia, Ética, Filosofia Política,

Santo Agostinho, História da

Filosofia e História do Pensamento

Brasileiro e Latino-americano.

Na área de Teologia tem experiência

em Moral Social e Doutrina Social da

Igreja.

Prof. Pe. Leomar Antonio

MONTAGNA, possui Mestrado em

Filosofia pela Pontifícia Universidade

Católica do Paraná PUCPR;

Curso de Especialização, ênfase em

Ética, também, pela Pontifícia

Universidade Católica do Paraná

PUCPR;

Pós-Graduação em História do

Pensamento Brasileiro pela

Universidade Estadual de Londrina

UEL;

Reconhecimento de Graduação em

Filosofia pela Universidade Estadual do

Oeste do Paraná UNIOESTE;

Graduação em Teologia pelo Instituto

Teológico Paulo VI de Londrina;

Graduação em Ciências: Licenciatura

de 1º Grau pela Fundação Faculdade de

Filosofia Ciências e Letras de

Mandaguari FAFICLEM e ...

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A presente obra. A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho,

procura demonstrar que o amor é o sinal distintivo dos cidadãos da Cidade Celeste e o

fundamento da moral tanto individual quanto da sociedade humana e tem por meta a

busca da felicidade do homem. O amor gera a concórdia que, num plano social, é a

base de uma sociedade justa. Dessa forma, Agostinho faz da ordem social um

prolongamento da ordem moral interior; assim, a organização dos homens em

sociedade, fundamentada no amor, não tem outra finalidade senão garantir a paz ou

felicidade temporal dos homens, com vista à paz eterna ou à verdadeira felicidade.

Esta obra é composta de três capítulos. No primeiro capítulo, descrevem-se os

caminhos da vida de Santo Agostinho, e, nele, o “Homem Agostinho”, identifica-se o

homem enquanto humanidade em qualquer tempo e contexto. No segundo e terceiro

capítulos, abordam-se os princípios da ética agostiniana e sua dimensão social que é o

amor.

Estudar a ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho é estudar o

problema do amor. Para ele, o amor está na própria natureza humana. Trata-se de um

apetite natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da

razão, orientá-lo para Deus. O amor é, pois, uma atividade decorrente do próprio ser

humano. O amor, neste sentido, é uma espécie de desejo. O desejo é uma tendência

que inquieta o homem, fazendo-o querer possuir tudo aquilo que é distinto dele

mesmo, tendo como fim último torná-lo feliz. Mas, para que o homem seja realmente

feliz, é necessário que, por meio da virtude, ele ordene o seu amor-desejo em relação a

todas as coisas e o oriente para Deus, único capaz de satisfazê-lo plenamente.

No pensamento de Agostinho, o amor é intrínseco ao ser do homem do qual não

podemos separá-lo. E, se há um problema, este não diz respeito ao amor como tal, nem

à necessidade de amar, mas unicamente à escolha do objeto a ser amado, ao valor ou

intensidade que se dá ao objeto amado, pois, em si, ele é um bem.

Dentro do princípio da ordem dos seres, o amor é o parâmetro na hierarquia de valores

das coisas a serem amadas. Nesta hierarquia das coisas a serem amadas, Deus aparece

em primeiro lugar: a Ele deve-se amar com todo amor. Para Agostinho, a força maior

da moral interior é o amor, expresso no duplo preceito da caridade: “Amar a Deus

sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.

Palavras-chave: Santo Agostinho, ética, amor, patrologia, felicidade.