ler Antonio Candido - Quatro Esperas [Kafka - Buzzati - Gracq - Cavafy]

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QUATRO ESPERAS

Antonio Candido

PRIMEIRA: NA CIDADE.

espera dos brbaros O que esperamos no agora reunidos? que os brbaros chegam hoje. Por que tanta apatia no Senado? Os senadores no legislam mais? que os brbaros chegam hoje. Que leis ho de fazer os senadores? Os brbaros que chegam as faro. Por que o Imperador se ergueu to cedo E de coroa solene se assentou Em seu trono, porta magna da cidade? que os brbaros chegam hoje. O nosso Imperador conta saudar O chefe deles. Tem pronto para dar-lhes Um pergaminho no qual esto escritos Muitos nomes e ttulos. Por que hoje os dois cnsules e os pretores Usam togas de prpura bordadas,49

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E pulseiras com grandes ametistas E anis com tais brilhantes e esmeraldas? Por que hoje empunham bastes to preciosos, De ouro e prata finamente cravejados? que os brbaros chegam hoje, Tais coisas os deslumbram. Por que no vm os dignos oradores Derramar o seu verbo como sempre? que os brbaros chegam hoje E aborrecem arengas, eloqncias. Por que subitamente esta inquietude? (Que seriedade nas fisionomias!) Por que to rpido as ruas se esvaziam E todos voltam para casa preocupados? Por que j noite, os brbaros no vm E gente recm-chegada das fronteiras Diz que no h mais brbaros. Sem brbaros o que ser de ns? Ah! eles eram uma soluo. (Traduo de Jos Paulo Paes) Este poema de Constantino Cavafis, escrito nos primeiros anos do sculo XX, seco e preciso, sem qualquer nfase ou mesmo vislumbre de emoo. Ele manifesta uma aspirao contida catstrofe, exprimindo o dilaceramento contraditrio que pode assaltar as conscincias e as civilizaes. Dilaceramento cujas razes vm talvez do perodo romntico, onde avultaram tanto na literatura a diviso da personalidade, o sadomasoquismo e o gosto da morte no plano individual. No plano social, a vertigem da runa e a certeza de que as naes morrem, como os indivduos. O cenrio deve ser algum lugar do mundo helenstico, quem sabe o Oriente Prximo embebido de cultura grega depois da conquista de Alexandre Magno, mas vivendo fase tardia, porque o texto alude a sinais de presena romana. Este momento histrico predileto na poesia de Cavafis, grego de Alexandria do Egito, e tanto nos poemas que se referem a ele, quanto nos que se referem Grcia antiga ou ao Imprio Romano cristianizado, predomina o desencanto na viso do homem e da sociedade, como se ambos fossem vtimas de uma trapaa irremedivel que envenena as situaes e mina os herosmos. Em muitos poemas de Cavafis (este inclusive) notrio o interesse pela situao de beco-sem-sada a que po50

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dem chegar os pases nos momentos de excessiva maturidade, quando passou o esplendor e os horizontes fecharam. Essas situaes ficam mais impressionantes ainda se pensarmos que os seus poemas histricos equivalem a uma espcie de jogo de cartas marcadas. Como se referem geralmente a momentos ou situaes identificveis, eles fazem ver que a premonio vai acabar mesmo em desastre; que a derrota pendente se consumar sem escapatria possvel. Em "O deus abandona Antnio", por exemplo, sabemos que ele ser batido dali a pouco na batalha de Actium, perder Clepatra e se matar. "O prazo de Nero" apenas repassa os antecedentes da queda e morte deste imperador e sua substituio por Galba. O poeta corteso do poema "Dario" ainda no sabe, mas ns sabemos que seu rei Mitridates ser destroado pelos romanos e que a dvida do poema certeza posterior da histria. O rei da Sria no poema "Demtrio Soter, 162-150 antes de Jesus Cristo" desconfia, mas ns sabemos que apesar da aparncia de grandeza que lhe resta os seus dias esto contados desde que os romanos apareceram e assim por diante. Cavafis figura aes presentes carregadas de pressgios, muitos dos quais culminaram em realidade destruidora. Em " espera dos brbaros" no h referncia a um caso histrico concreto, como nos poemas citados. Trata-se de situao genrica, de valor portanto mais exemplar, alusiva talvez ao choque destruidor sobre os estados helenizados do Oriente Prximo, civilizados demais, que no resistiram aos povos mais enrgicos ou mais primitivos que os atacaram. Na filosofia da histria de Arnold Toynbee os chamados brbaros so definidos como "proletariado externo", oriundo de culturas menos refinadas e cobiando a riqueza da civilizao. Quando o "proletariado externo" faz presso de fora, se houver presso simultnea exercida de dentro pelo "proletariado interno" (as camadas inferiores oprimidas), configura-se um dos fatores que provocam o fim de uma civilizao. Neste poema a conjuntura outra. A presso interna provavelmente exercida pelo cansao e a descrena, que geram a perda da razode-ser. Por isso o Estado maduro demais no sabe como resolver os seus problemas e, obscuramente, com temor misturado de esperana, aspira ao surgimento da presso externa, que desencadear o processo de destruio eventual como alternativa para o beco-sem-sada. A ironia corrosiva de Cavafis est na decepo paradoxal causada pela notcia de que a cidade est salva. Portanto, diz bem Jos Paulo Paes, "a queda no estava prestes a acontecer, mas j tinha acontecido". E comenta: "A sutil atmosfera de dissoluo que pervaga ' espera dos brbaros' filia-o desde logo ao decadentismo simbolista, com o seu gosto dos momentos crespusculares de fim de raa, de resignao ante o que se supe seja inevitvel"1. No mesmo sentido Bowra assinala que este "tema tinha certa popularidade no seu tempo", mencionando poemas homlogos de Valeri Brisov, "A chegada dos hunos", e de Stefan George, "O incndio do templo". Mas destaca um trao diferenciador importante para compreender51

(1) "Lembra, Corpo. Uma tentativa de descrio crtica da poesia de Konstantinos Kavfis", em Konstantinos Kavfis, Poemas, Seleo, estudo crtico, notas e traduo direta do grego por Jos Paulo Paes, Rio, Nova Fronteira, 1982, p. 83.

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o nosso texto: enquanto tais poetas participam do sentimento de que o tempo est maduro para a catstrofe, e portanto se situam psicologicamente dentro do tema, Cavafis fica de fora, sem participar. No se trata dos seus prprios sentimentos ou desejos, mas da apresentao desapaixonada de sentimentos dos outros. Da o toque de ironia ldica2 . O drama das civilizaes maduras vspera de extino aparece de modo mais geral do que neste num poema anterior, cujo ttulo varia segundo as tradues espanhola, francesa e inglesa que conheo: "Acabou", "Fim", "Desfechos". Nele a fatalidade da catstrofe mais geral e mais abstrata, completamente desligada de qualquer referncia a instituies e costumes, que abundam em " espera dos brbaros". Num lugar indeterminado, surge a aluso a um perigo terrvel que ameaa a todos e todos procuram evitar no meio do temor e do desnorteio. Entretanto, era um alarme falso, provavelmente notcias mal compreendidas. O que surge de verdade uma catstrofe diferente que ningum sequer imaginava. E como ningum se havia preparado para enfrent-la, ela destri sem remdio. Portanto, parece haver trs nveis na poesia histrica de Cavafis: o das foras inominadas atuando num espao no-identificado, que o caso de "Fim" (ou que melhor nome tenha); o das foras destruidoras atuando no espao de civilizaes mais ou menos definidas, como em " espera dos brbaros"; e o caso da catstrofe historicamente identificada, como em "O deus abandona Antnio". Em " espera dos brbaros" h um Estado rico, hierarquizado, provido de uma cultura que sugere a influncia de instituies romanas em ambiente de luxo oriental (como no Egito dos Ptolomeus ou na Sria dos Selucidas). H Imperador, Senado, Cnsules, Pretores, ttulos honorficos, oradores eloqentes, todos vestidos com as suas togas, trazendo enfeites preciosos e carregando bastes solenes. Do outro lado paira a ameaa dos invasores, que faz toda a gente juntar-se nas praas e sentir que o Estado no vale nada diante deles. Eles so outra raa de gente, com uma cultura provavelmente primitiva e feroz, no se interessando pelas leis nem pelas razes, embora possam ser sensveis lisonja e riqueza. Numa segura composio progressiva, o panorama social e a marcha dos acontecimentos vo se revelando com preciso despojada, sem variao nem modulao. As informaes surgem como perguntas e respostas no mesmo tom de registro desapaixonado, que no se altera nem mesmo quando ocorre o desfecho paradoxal, em dois tempos. Primeiro tempo: a espera resulta intil, porque mensageiros da fronteira vm contar que no h sinal de brbaros, e portanto estes no ameaam nada; assim, est salvo o Estado e desfeito o pavor da sua destruio. A, surge o segundo tempo, incrvel no seu inesperado: isso pena, porque os brbaros teriam sido uma soluo para a sociedade desgastada. Note-se que Cavafis no explica nem comenta nada. Apenas constri a informao pelo mtodo dramtico, expresso numa espcie de coral impessoalizado. Participando at certo ponto da natureza do fragmen52

(2) CM. Bowra, "Constamine Cavafy and the Greek Past", em The Creative Experiment, Londres, Macmillan, 1949, p. 38.

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to, o poema se situa entre duas ausncias de informao, duas "fraturas abissais", diria Ungaretti, entre as quais se eleva a "fulgurao do texto"3. De fato, antes est implcita a notcia sobre a decadncia daquele Estado exausto; depois, a frustrao pattica devida a uma vida social de tal modo vazia que a destruio teria sido uma espcie de redeno trgica. A expectativa de pavor, descrita friamente pelo poeta, se casava misteriosamente com a aspirao profunda catstrofe. Da a imparcialidade irnica da voz narrativa, tornada mais corrosiva pelos vazios da informao. O poema denso e curto de Cavafis, com a sua chave feroz, carregada de subentendidos, serve bem de introduo ao mundo das esperas angustiadas, dos atos sem sentido lgico, da surda aspirao morte individual e social, que formam alguns dos fios mais trgicos do mundo contemporneo e aparecero com maior desenvolvimento nos textos seguintes. SEGUNDA: NA MURALHA. O conto "A construo da muralha da China", escrito na maior parte em 1917, consta de fragmentos que Kafka deixou sobre este tema, alguns dos quais chegou a publicar. Eles tm recebido ttulos e arranjos diversos. Para evitar dvidas, esclareo que o meu comentrio levar em conta as duas seqncias conexas que narram, a primeira, a construo da muralha; a segunda, a mensagem do Imperador. o que se encontra nos volumes La Colonie Pnitentiaire, Paris, Egloff, 1945, traduo francesa de Jean Starobinski, e The Great Wall of China, Nova York, Schoken Books, 1946, traduo inglesa de Willa e Edwin Muir. Mas li tambm o arranjo mais moderno e variado, incorporando outros fragmentos que aumentam as ambigidades, na edio das obras completas da Bibliothque de la Pliade, volume II, 1980. Como acontece em outros textos de Kafka, trata-se de uma narrativa em torno do tema, com desvios e a-propsitos. No se pode dizer se a narrativa intencionalmente picada, pois o que possumos so os pedaos de um relato incompleto; mas preciso lembrar que a obra de Kafka participa toda ela do esprito de fragmento, como a de Nietzsche em filosofia. Ele procede por unidades curtas, s vezes descontnuas, e at pouco tempo o texto de um livro como O Processo continuava sofrendo alteraes quanto ao nmero e ordem das partes. Mas no darei importncia maior a isto, e sim a outra perspectiva em relao ao fragmento. O narrador, que tomou parte na construo e fala sobre ela como obra pronta, vai fornecendo de maneira meio caprichosa dados sobre o mtodo usado, os motivos determinantes, o recrutamento e tratamento dos trabalhadores, a sua prpria vida, os dirigentes supremos da obra, o poder poltico e o Imperador da China. A muralha foi planejada para defender o pas contra os nmades53

(3) Guiseppe Ungaretti, "Difficolt delia Poesia", em Vita d'un Uomo. Saggi e lnterventi, Mondadori, 1974, p. 810.

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brbaros do Norte, mas a sua capacidade defensiva duvidosa. A construo partiu de dois pontos meridionais afastados, um a Sudoeste, outro a Sudeste, devendo encontrar-se os dois lados num certo lugar do Norte, de maneira (parece) a formar um imenso ngulo. Mas o mtodo escolhido foi o de erguer pedaos isolados em cada setor. Os grupos de trabalho deviam refazer em miniatura o andamento geral da obra, isto , construir de fora para dentro dois trechos, de 500 metros cada um. Juntando-se, eles perfaziam uma extenso de 1.000 metros. Mas o cansao e a saturao dos trabalhadores obrigavam a criar um sistema de variao de local, a fim de reanim-los. Assim, terminado o trecho de 1.000 metros, eles eram transferidos para outra regio, no meio de festas e recompensas que refaziam o nimo. O resultado que ficavam largos espaos abertos entre os trechos prontos, tornando precria a funo de defesa, pois os nmades poderiam contorn-los e destru-los. Alm disso, esses nmades, sempre em movimento, tinham viso muito mais completa do conjunto, enquanto os construtores nunca sabiam, e nunca souberam, se a muralha de fato ficou terminada, mesmo depois de oficialmente considerada pronta. O leitor conclui que o resultado poderia ter sido uma espcie de linha pontilhada, uma srie de fragmentos destinados runa eventual, incapazes de cumprir a sua finalidade. Mas de fato no se sabe se assim mesmo ou se ela foi completada. Mesmo porque era uma empresa em grande parte intil, sobretudo para as regies meridionais de onde provinha o narrador, que jamais poderiam ser atingidas pelos brbaros e onde eles funcionavam como simples bichospapes, descritos para amedrontar as crianas. Alguns diziam que a muralha seria a base para se erguer uma nova Torre de Babel, desta vez capaz de chegar ao termo e realizar a sua finalidade, que, como se sabe pela B-blia, era atingir o cu. Mas o narrador afasta esta hiptese, porque os mu-ros ficaram incompletos e porque no tinham a forma circular necessria. De um modo ou de outro, o leitor anota a idia de uma vasta realizao humana que se suporia destinada a alcanar a esfera divina. O que deve ser destacado com particular ateno a prpria natureza fragmentria da empresa, parece que pensada desde o incio para no acabar mesmo. Tanto assim, que o mtodo d a impresso de ter sido adotado com base num paradoxo: j que os homens so incapazes de esforo constante em tarefa montona e cansativa, devem ser deslocados para longe, a fim de que a mudana de lugar os reanime. O leitor conclui que a contradio reside no fato de se projetar uma obra gigantesca, mas admitir simultaneamente a incapacidade visceral dos construtores, isto , um princpio que nega o projeto. possvel, portanto, que a aceitao do fragmento corresponda a uma concepo da natureza humana e equivalha a certa viso da sua debilidade. O absurdo seria ento um modo de penetrar na falta de sentido da vida, da ao, do projeto humano. E tambm de negar as vises simplificadas. At agora estamos pensando na muralha e sua construo fragmen54

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tria do ngulo do narrador e do leitor. Mas preciso complet-los por outro ngulo, que o narrador s pode apresentar em carter muito conjectural: o das instncias supremas que decidiram a respeito da construo e do mtodo, e so chamadas Alto Comando na traduo inglesa de Willa e Edwin Muir. O Alto Comando impessoal, desconhecido, eterno, soberanamente arbitrrio. Ele deve ter decidido desde sempre construir a muralha, e a ameaa dos nmades no passaria de pretexto, inclusive porque sabia que ao adotar o mtodo fragmentrio a defesa no estava garantida. Eis um trecho significativo: O Alto Comando existiu sem dvida desde sempre, assim como a deciso de construir uma muralha. Inocentes povos do Norte, que pensavam ser a causa; venervel e inocente Imperador, que pensava ter dado ordens. Ns, os construtores do muro, sabemos que no nada disso e ficamos quietos.Agora estamos diante das instncias misteriosas que decidem sobre o destino dos homens e das sociedades. Esse Alto Comando sem identificao corresponde s entidades imponderveis que regem o destino nas obras de Kafka: juzes inapelveis e impalpveis d'O Processo; senhor invisvel d'O Castelo. Os protagonistas destes romances procuram em vo saber por que so punidos ou esto submetidos a uma restrio. Aqui, todos os cidados dependem de uma tarefa imensa, prescrita por agncias ignoradas, a fim de realizar uma finalidade inexistente (pois a finalidade alegada simples pretexto). Mas se no obedecerem perdero o sentido da prpria vida e at a conscincia de si mesmos. O leitor chega a imaginar que a muralha incompleta se destinava efetivamente a ser a base impossvel de uma torre imaginria querendo chegar at potncias inatingveis, que seriam o Alto Comando. Este lana o pas inteiro numa aventura que serve apenas para fazer a vida correr e para preservar a sua prpria intangibilidade. Tanto assim que o Imperador no sabe de nada, no pode nada, e nem chega a ter existncia certa, pois o afastamento social e espacial entre ele e o povo tamanho, que este pode pensar que um dado imperador est reinando, e no entanto ele j morreu e se trata de outro. Mesmo quanto s dinastias no h certeza. A prova palpvel desta incomunicabilidade entre o poder aparente e o povo a impossibilidade de transmitir a mensagem que o Imperador moribundo destina a cada sdito: os mensageiros no conseguem sequer deixar o palcio, e se sassem no poderiam ultrapassar os limites da Cidade Imperial. fcil ver que nesta narrativa o tempo suprimido: as notcias chegam ao destino com o atraso dos raios de luz no espao do universo; a identidade dos governantes sempre imprecisa, porque no se sabe quem est no poder, devido a este atraso. Alm disso, a prpria histria incerta, pois o Imperador no manda, no sabe e no pode. O conhecimento parece privilgio do Alto Comando, por isso preciso obedecer cegamente55

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s suas diretrizes. Mas o que ele e quem o compe? Impossvel saber. Resta ao homem a conscincia de si mesmo, mas apenas como reflexo da norma traada pelo Alto Comando, que pesa sobre ele. Portanto, a complicada organizao do imprio, expressa pelo esforo imenso da construo da muralha, repousa sobre razes que no possvel conhecer e a vida no vai alm da existncia diria, limitada ao pequeno mbito da aldeia. Acima desta reina uma irresponsabilidade total, como se evidencia no projeto ciclpico destinado a defender de invasores no fundo inofensivos uma civilizao sem sentido, por meio de um muro cheio de lacunas, devido a diretrizes emanadas de um poder desconhecido. Do lado de c da muralha os homens esperam em vo pelo que nunca vai acontecer, mas o seu destino regido por essa espera inevitvel, e da narrativa de Kafka se desprendem a cada entrelinha as alegorias carregadas de stira sem alegria. A China incaracterstica parece fundir-se aos poucos na sociedade geral dos homens. No meio de tudo sobressaem as contradies incrementadas pelo carter da narrativa, fragmentria no sentido prprio, pois nela o significado maior do fragmento no tanto o isolamento de textos inacabados, mas o fato de ela descrever um mtodo de construir por pedaos. margem, anote-se: Kafka no hesitava em publicar segmentos de obras incompletas, o que parece mostrar que de fato esse tipo de composio no apenas um acidente de escrita inacabada, mas um modo que adotava por corresponder sua viso. Como aconteceu com outros escritos dele, houve diversas interpretaes do simbolismo eventual deste. No faltaram analistas engenhosos, por exemplo Clement Greenberg, que viu aqui a presena de temas judaicos4. Mas prefiro dizer que "A construo da muralha da China" talvez se enquadre no vasto esprito de negatividade que avultou desde o Romantismo, manifestando-se aqui inclusive por meio do processo fragmentrio, sendo um elo a mais na cadeia forjada por Kafka para descrever o absurdo e a irracionalidade do nosso tempo. Indo mais longe do que a meditao desencantada dos romnticos, ele no se limitou a opor os ritmos contraditrios da edificao e da runa, ao longo das idades histricas. Descreveu um processo no qual a construo se faz como runa virtual, pois cada segmento de muralha, isolado dos outros e vulnervel demolio dos nmades, um candidato destruio imediata. Assim, no roteiro para o filme de Marcel Carn, Quai des Brumes, Jacques Prvert faz o pintor desesperado dizer: "Para mim, um nadador j um afogado".TERCEIRA: NA FORTALEZA.

(4) "At the Building of the Great Wall of China", em Angel Flores and Homer Swandcr (organizadores), Franz Kafka Today, Madison, The University of Wisconsin Press, 1958, pp. 77-81.

II Deserto dei Tartari (1940), de Dino Buzzatti5, conta a histria de um jovem oficial, Giovanni Drogo, destacado ao sair da Escola Militar para a Fortaleza Bastiani, situada na fronteira com um reino setentrional. Pa56

(5) H traduo de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas Andrade: O Deserto dos Trtaros, Rio, Nova Fronteira, 1984.

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ra alm dela se estende uma plancie imensa, o Deserto dos Trtaros, de onde desde sculos no vem sinal de vida. De tal modo que a guarnio parece intil, pela ausncia de inimigos visveis ou mesmo provveis. Mas h a iluso de um perigo virtual e constante, que poderia causar a guerra e dar aos oficiais e soldados a oportunidade de mostrarem o seu valor. Por isso vivem todos numa expectativa permanente, que ao mesmo tempo esperana, a esperana de poder um dia justificar a vida e ter a oportunidade de brilhar. A narrativa se organiza ostensivamente em trinta captulos, mas a sua razo, manifestando a estrutura profunda, parece exprimir-se por um movimento em quatro tempos, gerando quatro segmentos que podem ser denominados, segundo os seus temas bsicos: incorporao Fortaleza (caps. I-X); primeiro jogo da esperana e da morte (caps. XI-XV); tentativa de desincorporao (caps. XVI-XXII); segundo jogo da esperana e da morte (caps. XXIII-XXX). De tudo se desprende uma viso paradoxal e desencantada, expressa numa linguagem econmica, severa, recobrindo o pessimismo melanclico do entrecho. Buzzati, que noutros escritos manipula o humor com tanto engenho, no teve medo de assumir aqui o modo srio em estado de pureza, para revestir com ele a austeridade herica do protagonista, destinado a s ganhar a vida, na hora da morte, depois de gast-la no limiar fantstico do Deserto dos Trtaros. L, o tempo se esvaiu para ele na Fortaleza enorme, estirada de escarpa a escarpa, fechando o mundo numa paragem de pedra antecedida por montanhas e desfiladeiros, cercada de penhascos, sucedida pela estepe. Tudo vazio, tudo segregado, como palco solitrio onde se agitam homens possudos por um impossvel sonho de glria. Incorporao Fortaleza Logo no comeo do livro, chama ateno a maneira pela qual a Fortaleza por assim dizer desligada do mundo. Drogo No sabia sequer onde ficava exatamente, nem quanto caminho devia percorrer. Um dia a cavalo, segundo uns, menos, segundo outros, mas na verdade ningum tinha estado l. O amigo que o acompanha por alguns quilmetros, Francesco Vescovi, mostra-lhe o topo de um morro distante, que conhecia por ter caado daquelas bandas, dizendo que onde ela fica. Portanto, a cavalgada no seria longa. Mas no apenas Drogo perde o morro de vista, como ao fim de certo tempo um carroceiro informa nunca ter ouvido falar de fortaleza por ali. Ao cair da noite chega a uma edificao que lhe parece, mas no , a do seu destino: era um forte abandonado, e dele se avistava no57

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mais remoto horizonte de serras o perfil da Bastiani, "quase inaccessvel, separada do mundo". A seguir ela some de vista e Giovanni dorme ao relento, para s alcan-la no dia seguinte, depois de muitas horas, na companhia do Capito Ortiz, que encontrara no caminho e lhe informa ser aquele um posto secundrio em setor perdido da fronteira; nunca participou de guerras e parece no servir para nada. O primeiro segmento, dominado pela entrada e permanncia do Tenente Giovanni Drogo na Fortaleza Bastiani, comea por essa jornada estranha busca de um local fugidio e regido por ambigidades, a primeira das quais que, chegado l, fica sabendo que foi mandado para um lugar aonde se ia a pedido (o tempo de servio era contado em dobro). Esta circunstncia o contraria, ele no gosta do lugar e decide voltar sem demora. Mas para facilitar os trmites, e por causa de um atrativo inexprimvel, concorda em esperar quatro meses, durante os quais vai ficando preso pelo fascnio que amarra oficiais e praas ao servio montono do Forte. Por isso, no momento de assinar o pedido de retorno decide bruscamente ficar por dois anos. A incorporao vai se processando como efeito, tanto das condies locais (o Forte o atrai misteriosamente), quanto de impulsos arraigados, mas ele no sabe ainda que est preso ao lugar e nunca mais poder desprender-se. Isso produz em relao vida anterior um movimento de ruptura, cujos indcios vo aparecendo aos poucos, como se a narrativa fosse um terreno minado por eles. Alis, j durante a caminhada que o levou pela primeira vez Fortaleza ele comeara a sentir-se desligado da existncia que tivera at ento e agora vai parecendo algo estranho. Percebe-se isto inclusive pelo desacerto simblico entre o passo de seu cavalo e o do amigo Francesco Vescovi. preciso ter em mente esse processo subterrneo para sentir por que, no momento em que poderia voltar, antes mesmo de entrar em servio, ele aceita a sugesto do mdico para esperar quatro meses. Olhando pela janela do consultrio um pedao de rocha, tomado pelo "vago sentimento que no conseguia decifrar e insinuava-se em sua alma; talvez algo tolo e absurdo, uma sugesto sem nexo". Pouco adiante imagina que talvez ela viesse de dentro dele prprio, como "fora desconhecida". Vemos ento que o Forte (que pode ser alegoria da vida) um modo de ser e de viver, que prende os que tm a natureza idealista e ansiosa de Drogo; os que traduzem a prpria situao como longa espera do momento glorioso e nico onde tudo se justifica e o tempo redimido. Desde o Coronel Comandante, chamado Filimore, at o Alfaiate-Chefe, Sargento Prosdoscimo, todos manifestam uma ambigidade que os leva a afirmar que querem ir embora, e ao mesmo tempo desejam ficar para estarem a postos quando vier a hora esperada. Os anos passam, talvez os sculos, e nada acontece, sendo at possvel que nunca tenham existido os trtaros ao Norte. Coisas como estas vo configurando a mencionada ruptura com o mundo anterior. Ela reforada por meio da lei suprema da Fortaleza, a rotina de servio traada pelo regulamento, que funciona como sugesto58

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de vida, isto , modelo proposto como norma de comportamento. A rotina organiza o tempo de cada um e de todos de modo uniforme, padronizando no apenas os atos, mas os sentimentos, aos quais parece querer substituir-se. Ela a "obra prima insana" criada pelo "formalismo militar", gerando uma atitude coletiva que parece condicionada pela guerra iminente. Mas como esta nunca vem, ela gira em falso no vcuo andino que tem sido por sculos a vida na Fortaleza, onde o rigor das sentinelas, dos turnos de guarda, das senhas e contra-senhas se organiza em relao a nada. A rotina de servio equivale a uma paralisao do ser e a um congelamento da conduta, contrastando com o ideal de todos, que o movimento, a variedade, a surpresa da guerra = aventura. Aparecendo como condio desta, a rotina forma com ela um par contraditrio e ambguo. Ao organizar o tempo a rotina o reduz a um eterno presente, sempre igual, enquanto a aventura um modo de abri-lo para o futuro desejado. Por isso a vida na Fortaleza em parte um drama do tempo, que nela parece vazar, no sentido em que a gua vaza de um cano, perdendo-se inutilmente. Drogo sente a sua "fuga irreparvel", pois de fato na Fortaleza o presente uma espcie de prolongamento do passado, j que ambos so igualados pela rotina que petrifica. Da a nsia de futuro (que tornaria possvel movimento e transformao), atravs da aventura da guerra, que no entanto nunca vem. Individualmente, o problema de Drogo pode ser definido como substituio de passados. Ele no pode voltar ao seu prprio, isto , no pode continuar o tipo de vida que levava na cidade e agora ficou para trs de uma vez. Por isso sente desde o comeo da vida de guarnio que lhe fecharam nas costas um "porto pesado". S lhe resta, pois, assumir o passado do Forte, renunciando ao seu e esperando pelo futuro, que por sua vez devorado pela rotina do servio sempre igual, como se o tempo no existisse. Um dos ncleos do livro se define no captulo VI, que de certo modo prefigura o destino de Drogo: inconscincia em relao ao presente, que o empurra para o passado da Fortaleza (a fim de que o presente seja igual ao que foi o passado desta); e iluso em face do futuro. Como a nica realidade acaba sendo reduzir tudo a passado, pois o futuro nunca se configura, surge o desencanto. A Fortaleza o porto fechado atrs de cada um, que mata o presente ao reduzi-lo a um passado que no o individual, mas o que foi imposto, e ao propor como sada um falso futuro. Os oficiais se apegam ento a esta sada nica e duvidosa, sob o acicate da esperana, que se torna uma espcie de doena. Todos esperam o grande acontecimento, vtimas de uma iluso comum alimentada pela perspectiva da vinda dos trtaros imponderveis. Drogo percebe tudo isso e pensa aliviado que tais iluses no tomaro conta dele, pois a sua estadia ser de quatro meses. O que no sabe que tambm ele j est contaminado, preso misteriosamente na teia. O velho ajudante do alfaiate l isso nos seus olhos e o aconselha a ir embora quanto antes. Mas ele um terreno minado, embora se sinta ingenuamen59

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te livre da iluso comum, que domina a Fortaleza e se exprime entre outros num trecho do captulo VII: Do deserto setentrional devia chegar a sua sorte, a aventura, a hora milagrosa que toca pelo menos uma vez a cada um. Por causa dessa vaga eventualidade, que parecia ficar cada vez mais incerta com o passar do tempo, homens feitos consumiam naquela altura a melhor parte da vida. No se haviam adaptado existncia comum, s alegrias da gente banal, ao destino mediano; lado a lado, viviam na esperana de todos sem nunca aludirem a ela, porque no se davam conta ou simplesmente porque eram soldados, com o cioso pudor da prpria alma. Dessa combinao de aventura e rotina, conformismo e aspirao, imobilidade e movimento, vai nascendo em Drogo o novo ser. Quando acabam os quatro meses e o mdico est preparando o atestado que o desligar, ele se sente preso ao Forte, cuja beleza lhe aparece de repente em contraste com o cinza da cidade. Ento decide ficar. To poderoso quanto o apelo da aventura possvel, agiu nele o visgo quotidiano da rotina, agiram os hbitos adquiridos. Aventura e rotina se confundem no ritmo prprio da vida militar, formando para Drogo uma segunda natureza, de acordo com a qual a Fortaleza menos um lugar do que um estado de esprito. O primeiro jogo da esperana e da morte No primeiro segmento do romance a ao dura quatro meses. No segundo ela comea dois anos depois e dura dois anos mais. Drogo est realmente incorporado Fortaleza, no apenas no sentido militar, mas no sentido de haver interiorizado tudo o que caracteriza a vida nela: rotina, lazer, redefinio do tempo, voltados para a esperana, a expectativa do grande momento. A partir de agora vai entrar em contacto com a outra realidade que complementa a primeira, mas permanecia oculta: a morte. O segundo movimento do livro o jogo da esperana e da morte, que vo assumir realidade concreta. Certa noite em que est no comando do Reduto Novo, posto avanado que descortina o deserto, surge deste um cavalo perdido. Uma das sentinelas, o Soldado Lazzari, acha que o seu, escapado no se sabe como, e consegue burlar a vigilncia no momento da rendio da guarda para ir captur-lo. O resultado que ao voltar, tendo mudado a senha, no sabe dar a resposta adequada e, apesar de reconhecido por todos, apesar de seus apelos angustiados, morto por um amigo de sentinela, em obedincia norma inflexvel do regulamento.60

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No entanto, o cavalo devia ter fugido de uma tropa do pas vizinho, porque dias depois contingentes distantes e minsculos comeam a marchar no rumo da Fortaleza. Isto cria uma excitao belicosa, todos se preparam para a guerra afinal possvel, o Comandante est a ponto de falar sobre ela oficialidade reunida em alta tenso emocional, quando chega um mensageiro do Estado-Maior, anunciando que s uma tropa encarregada de terminar o trabalho havia muito abandonado de demarcao da fronteira. Deste modo o sonho se desfaz, restando apenas a tentativa de ser mais rpido e eficiente na colocao dos marcos divisrios. Para isso mandado crista dos morros um destacamento comandado pelo Capito Monti, homem enorme e vulgar, tendo como imediato o aristocrtico e um pouco remoto Tenente Angustina, que alm de frgil e adoentado vai com botas normais de montaria, em vez das botinas ferradas que os outros calam, prprias para escalar. Por isso a ascenso para ele um sacrifcio incrvel, agravado pela crueldade do Capito, que fora a marcha e procura veredas difceis a fim de aumentar o seu tormento. Mas Angustina resiste e no fica atrs, mantendo o ritmo e a eficcia com incrvel fora de vontade. Chegando quase ao alto, o destacamento verifica que foi antecipado pelos estrangeiros e que estes plantaram os marcos com vantagem para o seu pas. A escurido chega, a neve cai, faz um frio dos diabos e os do Forte, abrigados numa reentrncia da rocha, se dispem a passar mal a noite, ainda mais sob a caoada dos estrangeiros, instalados pouco acima, na crista do morro, de onde oferecem ajuda com sarcasmo jovial. Expostos ao tempo, os dois oficiais jogam baralho para dar impresso de moral alta; mas o Capito Monti acaba por desistir e se abrigar com os soldados, enquanto Angustina, ao relento, debaixo da nevada, continua sozinho a manejar as cartas e anunciar os pontos, para dar aos de cima um espetculo de desafogo e firmeza. Assim faz at morrer enregelado, sob as vistas atnitas de Monti, que compreende afinal a grandeza estica do seu sacrifcio. Os casos do soldado Lazzari e do tenente Angustina mostram o contraste entre a morte sonhada e a morte real. No sonho, sobretudo no devaneio, os oficiais imaginam (como Drogo) o fragor da batalha, a situao desesperada resolvida pelo herosmo, as feridas gloriosas. Quando anunciam, por exemplo, que o contingente estrangeiro se aproxima atravs do deserto, o Coronel Comandante, lutando embora contra a lembrana das frustraes passadas, acaba acreditando na guerra iminente e v "chegar a sorte com a armadura de prata e a espada tinta de sangue". Numa sala do Forte h um quadro antigo representando o fim herico do Prncipe Sebastio, encostado numa rvore, com a brilhante armadura e ao lado a espada rota. Esta a morte ideal, que justifica a esperana. As mortes reais so diferentes. Acidentais, obscuras, elas contrastam com o fulgor dos sonhos, mas tm papel importante na economia do livro. A de Lazzari, porque encarna o limite de tragdia a que podia chegar a rotina, isto , a lei da Fortaleza. A de Angustina (que nos interessa61

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mais), porque ter funo decisiva na formao do significado final. Por isso ela cuidadosamente preparada, sendo precedida por um sonho premonitrio, onde Giovanni Drogo v o colega, ainda menino, arrebatado por um cortejo de duendes e fadas, pequeno morto flutuando no espao. A importncia da m orte de Angustina est no contraste que forma com o devaneio da morte espetacular, pois mostra que pode haver grandeza num fim igual ao dele, durante uma mesquinha expedio pacfica, sem moldura herica nem situao excepcional. Portanto (verificao decisiva para compreender o livro), o herosmo depende da pessoa, no da circunstncia, e os grandes feitos podem ocorrer sem as marcas convencionais de identificao. Como diz o Major Ortiz, comentando o fim de Angustina: "Afinal de contas, o que nos cabe o que merecemos". Em conseqncia, por que esperar a hora que no chega? Ortiz aconselha Drogo a deixar a Fortaleza antes que fosse tarde, como j era para ele, que no tencionava mais ir embora antes de reformado. Drogo decide ento descer cidade para solicitar transferncia.

Tentativa de desincorporao

O terceiro segmento narrativo ocupado pela tentativa de desincorporao. O segmento anterior descrevera fracassos que atingiram toda a guarnio, frustrada na sua esperana de guerra e ferida na sua integridade pela morte de dois membros, o oficial e o soldado. Este segmento descrever diretamente os fracassos individuais de Drogo, que, munido de uma recomendao obtida pela me, tenta transferir-se. Assim como o segundo segmento tinha duas seqncias centrais a morte de Lazzari e a de Angustina , este tem igualmente duas seqncias bsicas: a entrevista com a antiga namorada, Maria Vescovi, e a entrevista com o General. O encontro com Maria um jogo de hesitaes, impulsos reprimidos, intenes abafadas, tudo numa espcie de ambigidade sem sada. No ambiente composto da sala de visitas, numa conversa regida pela etiqueta, os dois jovens gostariam no fundo de declarar o seu afeto, mas no declaram. Cada um quereria fazer sentir ao outro que est na dependncia de uma deciso sua, mas ambos se contm. Parecem o tempo todo, enquanto a tarde escoa, esperar do parceiro algum movimento que no vem. Assim, a oportunidade se desfaz por culpa de ambos, sem que nenhum queira isso e sem que tambm queira outra coisa. Drogo parece atado por um jogo impossvel de diz-e-no-diz, de quer-e-no-quer. No fim se despedem com uma "cordialidade exagerada" e ele vai embora "com os passos marciais rumo ao porto de entrada, fazendo ranger no silncio o saibro da alameda". A entrevista com o Comandante da Diviso uma comdia de equvocos, marcada pelo esfriamento progressivo da cordialidade postia que o General assumira no incio, empertigado atrs do seu monculo meio62

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insolente. Drogo passara quatro anos no Forte e isto lhe dava um direito tcito remoo. Mas acontece que tinha havido no regulamento certa mudana de que no soubera e segundo a qual deveria ter feito requerimento prvio, fato que os colegas interessados na prpria remoo lhe haviam ocultado. Alm do mais, a sua folha trazia uma "advertncia" por causa da morte acidental do Soldado Lazzari sob o seu comando. E embora estivesse prevista uma reduo considervel do contingente, o seu pedido no satisfeito. Sentindo-se enganado pelos colegas, injustiado pelo comando, Drogo mergulha na decepo. No entanto, a leitura atenta mostra que no apenas esta a causa da sua volta ao Forte. Logo que chegou cidade, sentiu que no pertencia mais quele mundo da casa, da famlia, dos amigos, onde sua prpria me tinha agora outros interesses. Mas se tudo lhe pareceu estranho, foi porque j estava preso ao Forte e manipulava inconscientemente o destino para ficar nele, sob a ao convergente de uma fora externa, que o mandava de volta, e outra interna: o sentimento de no pertencer mais ao mundo originrio. A tentativa de desincorporao acaba portanto confirmando o seu vnculo irremedivel com a Fortaleza. Ele sobe de novo a serra com melancolia e se recolhe espera intil. At aqui passaram quatro anos de vida de Drogo e cerca de dois teros do livro; daqui at o fim, isto , em pouco menos de um tero do nmero de pginas, transcorrer o tempo de uma gerao. que os dados essenciais esto lanados e s falta mostrar as suas combinaes finais. O segundo jogo da esperana e da morte Os episdios do terceiro segmento duraram o curto lapso de uma licena. No quarto a vida de Drogo vai sendo descrita em seqncias separadas por largos intervalos, num total de quase trinta anos, durante os quais a esperana e a morte se entrelaam mais do que nunca ao ritmo do tempo, que corre ora rpido, ora lento, e afinal pra de uma vez. O relato comea com a partida de metade da guarnio, deixando semideserta a Fortaleza onde parecem ter ficado os esquecidos. Mas eis que uma noite o Tenente Simeoni, dono de um poderoso culo de alcance, chama Drogo para mostrar vagos pontos luminosos movimentandose no limite mais remoto do deserto, onde a vista se perde numa barreira de nvoa constante. E a comea para ambos uma fase de expectativa acesa, pois Simeoni percebe tratar-se da construo de uma estrada. A ansiedade dos dois rapazes, debruados sempre que podem no parapeito para sondar a imensido, d ao ritmo narrativo uma lentido que corresponde impacincia sfrega. Mas o Comando, escaldado com o falso alarme de dois anos antes, probe o uso de lunetas fortes e Simeoni se retrai, ficando apenas Drogo como uma espcie de depositrio isolado da velha esperana secular, que virou um estado forte da sua alma. Entrementes a ativida63

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de dos estrangeiros fica visvel a olho nu, mostrando que de fato a construo de uma estrada. Mas os trabalhos demoram muito, a expectativa sempre a mesma e Drogo sente que agora o tempo corrosivo, arruinando o Forte, envelhecendo os homens, arrastando tudo numa espcie de fuga inexorvel. Sacudido entre um ritmo de progresso (a durao dos trabalhos que no terminam) e um ritmo de regresso (a runa incessante do lugar e dos homens), ele continua esperando o grande momento. Assim passam quinze anos, registrados nalgumas linhas, antes de acabar a construo da via pavimentada. Os morros e os campos so os mesmos, mas o Forte est decado e os homens mudados. Drogo foi promovido a Capito e a fase final comea por uma rplica do comeo: ns o vemos subir a serra depois de uma licena, quarento, definitivamente estranho na sua cidade, onde a me j morreu e os irmos no moram mais. No comeo do livro o jovem Tenente Drogo, subindo a montanha misteriosa, vira o Capito Ortiz do outro lado do precipcio e o chamara com ansiedade juvenil. Agora, o Capito Drogo sobe cansado e do outro lado chama-o do mesmo modo o jovem Tenente Moro. A recorrncia do tempo marcada pela igualdade das situaes, expressa na rima toante dos sobrenomes, que parecem igualar-se: Drogo-Moro. As geraes se substituem, o tempo corre, a Fortaleza continua espera do seu destino. No captulo seguinte passaram mais dez anos, Drogo Major SubComandante, est com 54 anos, doente, acabado, sem foras para levantar da cama. E ento acontece o inverossmil, que era todavia o esperado: do deserto vm vindo fortes batalhes inimigos, com artilharia e tudo, em marcha de guerra. Finalmente, depois de sculos, parece chegar o gran-de momento. O Estado-Maior manda reforos, comea uma exaltante movimentao belicosa de vspera de combate, Drogo, quase invlido, se alvoroa com a perspectiva do ideal realizado, mas o Comandante, TenenteCoronel Simeoni, fora-o a partir, porque precisa do seu velho quarto espaoso para alojar os oficiais da tropa de reforo que est chegando. Desesperado, trpego, com o corpo sobrando dentro do uniforme, ele faz de volta a estrada do vale, descendo-a numa carruagem enquanto as tropas sobem para o combate. No caminho resolve dormir numa hospedaria, amargurado pela ironia incrvel da sorte, que o fez perder a vida inteira na Fortaleza e ser posto fora dela quando chegou a hora esperada. Este final de livro escrito com firmeza leve, cheia de preciso e mistrio, manifestando a convergncia dos grandes temas do romance: a Esperana, a Morte, o Tempo que as modula e combina. uma tarde encantadora de primavera, com perfume de flores, cu macio e os morros cor de violeta perdendo-se na altura. Sentado no quarto pobre, Drogo est a ponto de romper no pranto por causa da sua vida nula, coroada por essa desero forada, quando percebe que vai morrer. Ento, compreende que a Morte era a grande aventura esperada, no havendo por que lamentar que tenha vindo assim, obscura, solitria, aparentemente a mais insignificante e frustradora. O Tempo parece estacar,64

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como se a fuga para a decepo constante tivesse esbarrado afinal numa plenitude que a conscincia de enfrentar com firmeza e tranqilidade o momento supremo da vida de todo homem. A batalha de agora lhe parece ento mais dura do que as outras com que sonhava, e mais nobre do que a travada por Angustina sob as vistas do Capito Monti e dos soldados. Ele no tem testemunhas, est absolutamente s, no pode mostrar a ningum a fibra do seu carter e a disposio com que morre. Por isso mesmo esta morte se revela mais nobre que a das batalhas. E o tempo, que pareceu perdido durante a vida, surge ao cabo como ganho completo. O Tempo redimido e a Morte encerra o seu longo jogo com a Esperana. Eis as linhas finais: O quarto est cheio de escurido, s com muito esforo possvel distinguir a brancura da cama, e o resto inteiramente preto. Dali a pouco a lua devia aparecer. Ser que Drogo vai ter tempo de v-la, ou precisar ir embora antes? A porta do quarto freme com um rangido tnue. Talvez seja um sopro de vento, um simples remoinho de ar dessas noites de primavera. Talvez seja ela que entrou com andar silencioso, aproximando-se agora da poltrona de Drogo. Fazendo esforo, Giovanni endireita um pouco o busto, ajeita com uma das mos a gola do uniforme, d uma olhada fora da janela, uma olhada muito breve, para o seu quinho de estrelas. Depois, embora ningum possa v-lo no escuro, sorri. Definies O Deserto dos Trtaros pertence lista dos romances do desencanto, que contam como a vida s traz coisas frustradoras e acaba no balano negativo dos grandes dficits. No entanto (ao contrrio de certos finais terrveis, como o das Memrias Pstumas de Brs Cubas), o seu desfecho um caso paradoxal de triunfo na derrota, de plenitude extrada da privao. Isto confirma que um livro de ambigidades em vrios planos, a comear pelo carter indefinvel do espao e da poca. Onde decorre a ao? Num pas sem nome, impossvel de localizar, como nos contos populares, a despeito do corte europeu dos usos e costumes, assim como do substrato italiano sendo que a nica referncia geogrfica precisa , ocasionalmente, Holanda (e suas tulipas), aonde a namorada de Drogo anuncia que vai passear. Alis, de certo modo nem h lugar propriamente dito, mas apenas uma vaga cidade sem corpo e o stio fantasmal da Fortaleza Bastiani, que fica a uma distncia elstica, ningum sabe direito onde. O nome dela italiano, e quanto ao sobrenome das pessoas, alguns poucos so usuais nesta lngua, como Martini, Pietri, Lazzari, Santi, Moro.65

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Mas h preferncia pelos menos freqentes, como Lagrio, Andronico, Consalvi; ou raros, como Batta, Prosdoscimo, Stizione, e pelos que parecem inventados a partir de outros, como Drogo, de Drago; Fonzaso, de Fonso ou Fonsato; Angustina, de Agostino; Stazzi, de Stasi. Significativo o caso da derivao que leva o nome para outras lnguas, como Morei (francs), que pode ter Morelli como ponto de partida; ou Espina (espanhol), parecido com Spina; ou Magnus (forma latina ao gosto da onomstica alem), com Magni ou Magno. No limite, os puramente estrangeiros: Fernandez, Ortiz, Zimmermann, Tronk, enquanto o do comandante, Filimore, parece no pertencer a lngua nenhuma. Esse jogo antroponmico contribui para dissolver a identidade possvel do vago universo onde se situa a Fortaleza. Mais ainda: para alm dela h um deserto onde andam nmades, o que poderia sugerir a frica ou a sia. Os supostos trtaros, que talvez nunca tenham existido, estariam ao Norte, mas as tropas que vm de l para colocar os marcos divisrios parecem da mesma natureza e grau de civilizao que as da Fortaleza. Quem so na verdade os inimigos esperados? Trtaros, s a Rssia os teve como vizinhos na Europa. Note-se a propsito que o mdico militar usa gorro de pele, maneira russa, e os reis do pas se chamam Pedro, como (excludo o caso de um da Srvia no comeo deste sculo) s os houve na Rssia e em Portugal. O nome do prn-cipe herico representado moribundo num quadro Sebastio, igual ao do rei portugus morto heroicamente em Alcacer-Quebir. E a poca? As pessoas andam a cavalo e de carro, havendo mais para o fim referncia a estrada de ferro. No entanto, ainda existem carruagens douradas, o que puxa para o sculo XVIII. O culo de alcance a luneta de um s canho, indicando que ainda no havia binculos. Os fuzis no tm repetio e so carregados de modo arcaico, puxando pelo menos para o meado do sculo XIX. Quer dizer que so tomadas cautelas para desmanchar tambm a cronologia, inclusive porque no h sinal de mudana nas armas, uniformes, objetos ao longo de uma ao que dura mais de trinta anos. E h outros indcios de baralhamento, como o fato da guarnio do forte ser ( o que se infere) de infantaria, onde, segundo a norma, s os oficiais tinham cavalos; no entanto, um episdio importante regido pelo fato do soldado Lazzari reconhecer o dele, como se se tratasse de cavalaria. Estamos num mundo sem materialidade nem data. Quanto composio, vimos que a narrativa parece ordenar-se em quatro segmentos, que se opem entre si, opondo-se tambm internamente: incorporao e desincorporao, iluso e desiluso, esperana e frustrao, vida e morte, tempo rpido e tempo vagaroso. Ao longo deles vo brotando os significados parciais, alguns dos quais j vimos, que nos conduzem aos significados gerais. Para capt-los, preciso comparar as primeiras pginas com as ltimas. O comeo diz abertamente que Giovanni Drogo no tinha estima por si mesmo. Ora, o fim consiste na aquisio dessa auto-estima que lhe faltava. Durante a vida inteira ele esperou o momento que permitiria uma66

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espcie de revelao do seu ser, de maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria a reconhec-lo ele prprio. Mas aqui surge a contradio suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte. Portanto, ela que define o seu ser e lhe d a oportunidade de encontrar justificativa para a prpria vida. De algum modo, uma afirmao por meio da suprema negao. Assim, o romance do desencanto desgua na morte, que aparece como sentido real da vida e alegoria da existncia possvel de cada um. Como na de todos ns, ela esteve sempre na filigrana da narrativa. Primeiro, sob a forma de alvo ideal, sonhada na escala grandiosa. Depois, como realidade banal, nos casos de Lazzari e Angustina. Quando o tempo pra, ela surge e o redime, justificando Drogo, que adquire ento a cincia que no aprendera nos longos anos de esperana frustrada e que, se no tivermos medo do tom sentencioso, poderia ser formulada assim: o sentido da vida de cada um est na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenrio dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida. Por isso O Deserto dos Trtaros um romance desligado da histria e da sociedade, sem lugar definido nem poca certa. Nele no h dimenso poltica, no h organizao social ou crnica de fatos. um romance do ser fora do tempo e do espao, sem qualquer intuito realista. Do ponto de vista tico um livro aristocrtico, onde a medida das coisas e o critrio de valor o indivduo, capaz de se destacar como ente isolado, tirando o significado sobretudo de si mesmo, e por isso podendo realizar na solido a sua mensagem mais alta. A morte coletiva e teatral dos sonhos militares, desejada como coroamento da vida, cede lugar glria intransfervel da morte solitria, sem testemunhas e sem ao em torno, significando apenas pela sua prpria fora. E ns lembramos Montaigne, quando diz que "a firmeza na morte sem dvida a ao mais notvel da vida".QUARTA: NA MARINHA.

Le Rivage des Syrtes, de Julien Gracq, publicado em 1951, forma um curioso par com O Deserto dos Trtaros por causa das afinidades, mas sobretudo das diferenas, que so essenciais, inclusive porque a tnica deste existencial, enquanto a dele claramente poltica6. Ele conta na primeira pessoa a histria de um jovem aristocrata de Orsenna, Aldo, nomeado Observador, isto , Comissrio Poltico, junto s magras e antiquadas foras navais teoricamente em operao no Mar das Sirtes, que separa Orsenna de um outro pas, o Farguesto (Farghestan, no texto francs), e lembra o Mediterrneo pela situao interior. Ele vai para o posto de comando, pomposamente chamado Almirantado como resqucio dos tem67

(6) H traduo de Vera Harvey: O Litoral das Sirtes, Rio, Guanabara, 1986.

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pos antigos de movimentao guerreira, ao lado de uma velha fortaleza meio arruinada, perto da cidade litornea de Maremma. Orsenna uma repblica patrcia visivelmente inspirada em Veneza, governada por velha oligarquia cuja prosperidade foi devida ao comr-cio, sobretudo com o Oriente, apoiado no forte poderio naval. Agora est parada e decadente, guardando o tom refinado das civilizaes muito ma-duras em face de um Farguesto que talvez seja vitalizado pela fora ape-nas entrevista de seus povos primitivos, e cujo nome lembra pases ou regies asiticas: Azerbaijo, Afeganisto, Turquesto. Na parte russa deste ltimo h uma zona chamada Fergana (Ferghana antes da ortografia sim-plificada), que foi dominada por rabes, persas, mongis, como o foi tam-bm Rhages, localizada na antiga Prsia e que no romance uma cidade importante do Farguesto; situada perto do vulco Tengri, nome dado pe-los mongis ao cu concebido como divindade nica. Alm desses traos orientais, vagas aluses deixam ver que os farguianos (referidos pela ret-rica oficial de Orsenna como "os infiis", tradicional designao dos mu-ulmanos pelos cristos) so de pele escura, sofreram invases mongli-cas e h no seu pas nmades sarracenos, o que introduz um toque de frica do Norte. Isto seria geograficamente compatvel com um pas situado no outro lado do mar mediterrneo das Sirtes, que na realidade o nome de um golfo da Tunsia. Nos confins de Orsenna h lugares de nomes pa-lestinos, como Engadi e Gaza, alm de desertos e grupos nmades, sem falar que nas partes meridionais manifestam-se tendncias messinicas, uma religiosidade apocalptica, ritos orientais, visionrios e profetas. E como os dois pases podem comunicar-se por terra em certas regies, o leitor sente em tudo isso um espao de encontro entre Ocidente e Oriente, atravs da mediao veneziana de um Estado que os vincula pela atividade mercantil. E tambm pela rivalidade armada, pois Orsenna e o Farguesto lutaram muito e tm um passado de guerras. Entre ambos nunca se oficializou a paz, mas h trezentos anos reina uma espcie de armistcio tcito. A palavra de ordem no falar no Farguesto, no sair das guas territoriais e deixar tudo como est. A histria de Orsenna parece estagnada como as lagunas de onde emergem a sua capital e a cidade de Maremma. Este trao veneziano reforado por vrios outros, que o leitor vai anotando, como: so italianos todos os nomes de pessoas e lugares; a aristocracia ocupa os cargos pblicos, e se o chefe do Executivo Podest, no Doge, houve um deles no passado que se chamou Orseolo, nome de uma famlia histrica de Veneza que forneceu mais de um Doge. Assim como a aristocracia veneziana tinha as suas casas de campo ao longo do Canal de Brenta, as da aristocracia de Orsenna ficavam nas margens do rio Zenta. Tambm maneira de Veneza a designao do governo Senhoria e h colegiados temveis, lembrando o Conselho dos Dez (aqui, o de Vigilncia). E ainda: em Orsenna a espionagem normal, a delao um servio pblico e sabe-se de tudo por vias oblquas. At o grande pintor nacional se chama Longhone, composio feita provavelmente a partir dos68

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nomes famosos de dois pintores venezianos de pocas diferentes: Longh(i) e (Giorgi)one. Estes dados, que o leitor vai inferindo e ordenando aos poucos por conta prpria a partir de uma narrativa marcada pela disperso ou impreciso das referncias, mostram que a inteno de Julien Gracq diferente da de Dino Buzzatti: em vez de montar um drama do ser individual, ele esboa uma sociedade, um Estado e uma complicada trama poltica. O Litoral das Sirtes um tipo raro de narrativa, onde o indivduo e a sociedade se desvendam reciprocamente como dois lados da realidade, segundo uma tcnica aparentemente o mais inadequada possvel para sugerir mecanismos polticos, pois nela reinam a aluso, a elipse, a metfora, gerando um universo de subentendidos e informaes to fragmentrias quanto obscuras. Parece que o intuito fazer de Aldo algum coextensivo ao pas e sugerir a realidade a partir do mistrio, como se tudo fosse alegoria ou smbolo; como se as pessoas, cenas, lugares estivessem meio dissolvidos num halo magntico do tipo que o Surrealismo cultivou. A este respeito correta a observao de Maria Teresa de Freitas, para quem o livro oscila entre realismo e surrealismo, tendo do primeiro a deliberao de verossimilhana ficcional e do segundo o emprego de uma viso transfiguradora, organizada em torno de situaes marcadas pela "decadncia", o "inslito", a "espera" e o "encontro"7. De qualquer modo, esse esfumaado pas nada tem de literariamente anlogo a outros tambm inventados, mas de enquadramento realista, como a Costaguana, do Nostromo de Joseph Conrad, to palpvel e definido apesar dos toques simblicos. Isso mostra que O Litoral das Sirtes um livro mais difcil e de anlise mais delicada que O Deserto dos Trtaros. Enquanto este curto e seco, deixando-se ordenar pelo crtico segundo um esquema plausvel, ele abundante e mido, fugidio, sem ndices evidentes, necessitando de releituras atentas para podermos sentir que cada linha carregada de sentido e forma o elo de uma cadeia perdida na bruma narrativa, despistadora e insinuante. Com efeito, as releituras mostram no subsolo do texto a concatenao latente, que no formada pela articulao necessria com o momento anterior, mas obedece a algo ominoso, regido por causalidade estranha. Lida assim a narrativa parece uma caminhada obsessiva, quase fatal, justapondo sugestes que levam Aldo a transformar o possvel em realidade concreta: ao atravessar o limite proibido das guas territoriais de Orsenna e chegar s costas do Farguesto ele interrompe o velhssimo armistcio virtual e uma imobilidade de trezentos anos. Tendo este ato como eixo, o livro se organiza em duas partes, a primeira ocupando dois teros e a segunda um tero. Antes, foi o misterioso preparo indefinido; depois, sero as conseqncias, tambm indefinidas. O comandante da flotilha e da estao naval, Capito Marino, sente uma vaga inquietude com a presena de Aldo. Ele um homem bovino69

(7) Fiction et Surralisme dans Le Rivage des Syrtes de Julien Gracq, Universidade de So Paulo, 1974, Dissertao de Mestrado, pp. 56-158 (mimeografada

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e leal, servidor perfeito que encarna a tradio de prudncia imobilista adotada pela Repblica estagnada. Os seus marinheiros foram transformados em mo-de-obra agrcola para as fazendas da regio, por meio de contratos que ele administra como homem da terra, a cavalo, de bota e espo-ra. Nesse quadro a presena de Aldo cria alguma coisa nova, e a partir da segunda leitura percebemos que, embora no tivesse recebido instrues definidas nem alimentasse qualquer intuito perturbador, ele vai sendo levado surdamente a quebrar a rotina. Isso afina com a circunstncia de ter havido em Orsenna certa mudana no seio da oligarquia, dando influncia a pessoas irrequietas e mesmo suspeitas, como o Prncipe Aldobrandi, membro de uma famlia cheia de traidores e rebeldes, que estava no exlio e voltou. Nomeado nesta fase nova, Aldo, mesmo inconsciente do que representa, traz o halo inquietador que interfere na estabilidade encarnada em Marino. Encaminhamento

Portanto, O Litoral das Sirtes construdo como Encaminhamento do ato, e depois como Conseqncia do ato. Tudo se ordena em funo deste e a narrativa, em toda a primeira parte, consiste numa progresso obscura mas decisiva que conduz a ele, segundo uma estrutura ondulatria na qual cada ocorrncia mais carregada de destino do que a anterior, desfechando no cruzeiro ao Farguesto. O primeiro indcio premonitrio a visita de Aldo Sala dos Mapas, na qual se sente estranhamente desnorteado, sob a influncia de um efeito igual ao que as estepes russas exercem sobre a bssola. As cartas martimas o fascinam, com a linha cheia marcando o limite permitido navegao. Pouco adiante surge um segundo sinal, quando, deitado noite na praia, v um barco suspeito deslizar ao longo da costa, numa quebra da rotina de que d notcia a Marino, contrariando-o bastante, pois na quietude tri-secular qualquer novidade incmoda. A seguir, passeando a cavalo at as runas de Sagra, Aldo v o tal barco (que clandestino, pois no traz a matrcula obrigatria na popa) ancorado perto de uma casa onde h gente armada, mostrando que a paragem provavelmente esconderijo ou ponto de encontro. Entra ento em cena a Princesa Vanessa Aldobrandi, que lhe pede silncio a respeito deste achado. O leitor pressente que alguma coisa se prepara, envolvendo um membro da perigosa famlia que tanto mal j causou a Orsenna. Mas Aldo no s faz o que a amiga pede, como passa a freqentar o seu palcio de vero em Maremma, com os outros oficiais do Almirantado, envolvendo-se pouco a pouco numa relao amorosa. O policial Belsenza lhe conta que Maremma est cheia de boatos. Quais, no ficamos sabendo nunca, nem chega a configurar-se qualquer informao; mas intumos de algum modo que concernem o Farguesto. Nas palavras de Vanessa tudo vai ganhando um ar premonitrio,70

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no entanto Aldo continua freqentando e amando este rebento de traidores. Que h problemas no ar sugerido pelo fato dos principais empregadores da mo-de-obra oficial no quererem renovar os contratos. Para ocupar os marinheiros ociosos, um dos oficiais, Fabrizio, prope empreglos para limpar e melhorar as condies da fortaleza abandonada, o que feito como se ela estivesse sendo preparada para funcionar. Depois de limpa e clara ela se destaca das tonalidades cinreas ou trevosas que predominam no livro e os oficiais hesitam, significativamente, em comparla a um vestido de noiva, ou a um sudrio. Cumprindo as obrigaes, Aldo tinha escrito Senhoria sobre os boatos de Maremma, assinalando que no lhes dava grande importncia. A resposta oficial nebulosa e ambgua: o governo quer que acredite nos rumores; e insinua de maneira esconsa que o limite permitido para a navegao no precisa ser tomado ao p da letra. Mas ao mesmo tempo, contraditoriamente, reprova os trabalhos de reforma. Em face desse estilo burocrtico escorregadio Aldo percebe que alguma coisa pode acontecer. ento que Vanessa o convida para um cruzeiro e o leva at a ilha de Vezzano, no Mar das Sirtes, a terra mais prxima da costa do Farguesto. Nessa altura, tempo de Natal, h grande fermentao em Maremma. No povo, os adivinhos profetizam; na aristocracia, h um sentimento obscuro de catstrofe pendente; na Igreja de So Dmaso, onde floresce velho rito oriental, o padre faz uma inquietadora pregao apocalptica. O velho Cario, o mais importante dos fazendeiros empregadores da mode-obra do Almirantado, que no renovou o contrato, manifesta o mesmo sentimento de premonio aziaga. Marino, a fora da prudncia tradicional, est ausente, em viagem capital, e os jovens oficiais se renem num "ltimo jantar". Aldo e Fabrizio saem ento para um cruzeiro que deveria ser de rotina e Aldo d ordem para ultrapassar a linha proibida, prosseguindo em ritmo de exaltada embriagues da alma at Rhages, onde so recebidos com alguns tiros de canho. Mas visivelmente estes no passam de uma salva de aviso, e curioso que o navio parecia esperado, pois de outro modo no haveria como identific-lo na escurido da noite, nem as baterias estariam prontas depois de trezentos anos de tranqilidade. Houve portanto um misterioso encontro de intenes, talvez uma espcie de entendimento tcito dos dois pases para romper a trgua tri-secular. A partir da segunda leitura, torna-se evidente que a desobedincia de Aldo foi obedincia a sugestes externas casadas a impulsos dele; e que ela o eixo da narrativa, organizada em torno da sua lenta motivao. Tornase evidente tambm que Marino a velha Orsenna parada e Aldo o agente das tendncias novas de uma Orsenna disposta a estranhas aventuras. Mas preciso no concluir da minha descrio que a narrativa proceda com esta clareza. Pelo contrrio, nada explcito e tudo vai indo por tateios. Que boatos esto circulando? O que anunciado pelos visionrios? Quais as indicaes catastrficas do padre? A que acontecimentos possveis se refere o velho Cario? Vanessa tem algum propsito definido? O governo quer ou no quer o ato de Aldo? Aldo quis ou no quis execut-lo? Afliti71

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vamente, o leitor s dispe de sugestes vagas, que vo surgindo nas ondas sucessivas do relato e ganham sentido com a exploso do ato transgressor. A narrativa insinuante e opulenta, flutuando entre imagens carregadas de implicaes, escorre como um lquido escuro e magntico no rumo de catstrofes possveis, vista de um horizonte selado pela morte.

Conseqncias

Nesse livro os personagens dbios entram em cena de maneira imperceptvel, como o caso do Enviado do Farguesto, vulto impreciso que parece brotar diante de Aldo, e que este reconhece como algum ligado ao Palcio Aldobrandi, provavelmente um barqueiro que j o conduzira. Era portanto um espio dentro de Maremma, e vem agora, escuro na sala escura, sugerir que Aldo apresente desculpas pela transgresso a fim de evitar represlias. Mas ao mesmo tempo impede que isto acontea, porque afirma que nem todos, isto , Orsenna, merecem o fim glorioso de uma guerra. Deste modo ele suscita o brio e fixa Aldo na atitude assumida. Do seu lado, Vanessa, que vai desaparecer da narrativa, lhe faz sentir que ele e ela no passaram de instrumentos, e o importante caminhar conscientemente para a morte. Aldo perceber mais tarde que Vanessa lhe "foi dada como guia", e que depois de "entrar na sua sombra" ele passa-ra a atribuir "pouco valor parte clara do (...) esprito: ela pertencia ao sexo que empurra com toda a sua fora as portas da angstia, ao sexo misteriosamente dcil e antecipadamente de acordo com o que se anuncia para alm da catstrofe e da morte". Perceber ainda que todos so instrumentos, inclusive os capazes de traio por conta prpria, como o pai de Vanessa e seus comparsas, e que ele apenas executara um desgnio profundo da prpria Orsenna busca de outro rumo. Diante disso no espanta o suicdio de Marino, que volta cansado, sem reprovaes, pronto para a morte inevitvel de quem representa uma fase ultrapassada. Quando ele pula da torre na lagoa, perdendo-se simbolicamente no lodo, como se levasse junto a velha Orsenna imobilista. Na capital, para onde Aldo voltou, o amigo Orlando lhe diz que o cruzeiro foi uma coisa sem importncia nem conseqncia, e tudo permaneceria como sempre. Mas numa entrevista suprema com o velho Danielo, um dos dirigentes do pas, fica evidente que ele de fato cumpriu o que a Senhoria desejava sem formular. Orsenna tinha necessidade de precipitar alguma coisa nova, e (diz expressamente o estadista) se Aldo no existisse ela o inventaria, como inventaria o perigoso pai de Vanessa. Do lado das Sirtes estava o que havia de perturbador, e portanto de renovador. A sua misso visava no fundo a transform-lo em estopim de uma eventual catstrofe, desejada por ser talvez o meio de sacudir o torpor da velha Repblica. Na verdade Aldo fora instrumento do destino de Orsen72

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na, e ento mandado de volta ao seu posto, agora com funo de comando, a fim de preparar o provvel estado de guerra. No entanto este no o verdadeiro fim do livro. Fiel ao tom geral da narrativa, o narrador pra nessa suspenso inconcludente, que um toque vago a mais; mas o leitor atento sabe que o desfecho estava dissimulado numa frase casual a meia altura da narrativa, pouco antes de Aldo aludir sua "detestvel histria": "(...) o vu de pesadelo que se ergue para mim do rubro claro da minha ptria destruda". Guardemos por enquanto na lembrana a cor deste claro e verifiquemos que no enredo latente do livro o cruzeiro ao Farguesto provocou entre os dois pases uma guerra oculta por elipse, cujo desfecho foi a destruio de Orsenna, isto , a catstrofe depois de trs sculos de expectativa. A expectativa que era a lei da Fortaleza Bastiani em O Deserto dos Trtaros e da China por trs da muralha de Kafka. Da nevoenta exposio do narrador emergiu o vulto da destruio total (apenas sugerida num desvo do texto), como o sentido emerge da aluso e da elipse.

Metforas e significados

A atmosfera de impreciso singularmente reforada pelo ambiente ficcional. A ao decorre quase sempre noite, tudo so horizontes pardacentos, salas escuras, terra e vegetao cinzentas. visvel o gosto romntico, que os surrealistas herdaram, pela escurido melanclica, a lua e os palcios sombrios, as janelas altas abrindo para o mar ou a noite estrelada, os castelos em runas, os corredores lbregos, as princesas aventurosas e os aristocratas rebeldes. A poca imprecisa, mas h automveis sugeridos pelo rudo do motor, como toque moderno no espao intemporal e descolorido. Na verdade, a nica nota de cor o vermelho, j presente na divisa da Repblica ("Perduro no sangue dos vivos e na prudncia dos mortos"). Ele irrompe no selo do Estado ou na citada imagem do claro final de sua queda, mas sobretudo num sistema de metforas que traam a rota indefinvel da calamidade. O leitor percebe ento que a coerncia do livro deve ser procurada mais nas metforas do que nos enunciados fugidios ou nas aluses vagas. A primeira apario metaforizada do vermelho se d na vasta Sala dos Mapas, onde Aldo gostava de consultar as cartas martimas espalhadas sobre a mesa enorme, posta em cima de um estrado que a destaca. Na parede, atrs, pende como mancha de sangue o estandarte vermelho da nau capitnia que trs sculos antes bombardeara as costas do Farguesto. o estandarte do padroeiro de Orsenna, So Judas, ambiguamente simblico, quem sabe um estmulo obscuro para eventuais transgresses, porque73

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alude indiretamente ao apstolo traidor. Ele parece apontar para os mapas, nos quais Aldo examina fascinado a linha tambm vermelha que marca o limite intransponvel das guas territoriais. Quando mais tarde percebemos que ele foi enviado para transp-la, compreendemos que o estandarte o prprio dedo imperioso da Senhoria, marcando o seu destino como encarnao do destino da Repblica. Desde a Sala dos Mapas tudo estava traado pelas duas indicaes complementares dotadas de fora metafrica o estandarte que sugere a transgresso e a linha que se levanta como barreira. Da filigrana do texto comea a destacar-se o trao de uma poltica figurada, e eu lembro o conceito de Maria Teresa de Freitas, na pgina 39 do citado estudo: O romance surrealista ideal seria um relato cujo desenrolar fosse obedincia ao poder e direo implcita das imagens, agrupadas em acontecimentos. Outro empurro misterioso ocorre adiante, quando, na primeira visita ao Palcio Aldobrandi, em Maremma, Aldo, apesar de s com Vanessa, sente uma presena indefinvel, que verifica de repente ser a do retrato do traidor Piero Aldobrandi, defensor das fortalezas de Rhages contra a sua prpria ptria. A descrio deste quadro, obra-prima do pintor Longhone, dos momentos mais belos do livro. Depois de descrever o fundo, com a paisagem fargueana convulsionada pelo combate, mas ao mesmo tempo pacificada pela serenidade esttica da fatura, o narrador se fixa na figura central: Tudo o que s a distncia assumida pode comunicar de cinicamente natural aos espetculos da guerra reflua ento e vinha exaltar o inesquecvel sorriso do rosto, que surdia da tela como um punho estendido e parecia vazar o primeiro plano do quadro. Piero Aldobrandi, sem capacete, trazia a couraa preta, o basto e a faixa vermelha de comando que o amarravam para sempre a esta cena de carnificina. Mas ao voltar as costas para ela o vulto a dilua na paisagem com um gesto, e o rosto distendido por uma viso secreta era o emblema de um desapego sobrenatural. Os olhos semicerrados, com sua estranha mirada interior, boiavam num xtase pesado; um vento de alm do mar agitava o cabelo crespo, dava ao rosto uma castidade selvagem que o remoava. Num gesto absorto, o brao de metal polido com reflexos sombrios levantava a mo altura do rosto. Entre as pontas dos dedos da manopla guerreira, carapaa quitinosa cujas articulaes tinham a crueldade e a elegncia de um inseto, num gesto de graa perversa e meio amorosa, como se lhe aspirasse a gota de perfume supremo pelas narinas frementes, com os ouvidos fechados ao trovo dos canhes, ele esmagava uma flor sangrenta e pesada, a emblemtica rosa vermelha de Orsenna. O aposento desvaneceu. Meus olhos se pregaram nesse ros74

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to, surdido da gola cortante da couraa numa fosforescncia de hidra renascida e cabea decepada, parecendo a ostenso ofuscante de um sol preto. Sua luz se erguia sobre um inominado alm de vida remota, criando em mim uma espcie de aurora sombria e prometida. Obviamente, na cadeia de inculcamentos estranhos que comeam a envolv-lo, este um momento-chave no qual Aldo pressente algum vago papel que lhe cabe na nvoa do futuro, fazendo o leitor pensar no lema herldico dos Aldobrandi: Fines transcendam ("Ultrapassarei os limites"). No palcio da perigosa famlia, enredado na seduo de Vanessa, ele contempla a imagem simblica da traio que pode resultar em catstrofe para Orsenna, representada no quadro pela rosa vermelha prestes a ser esmagada nos tentculos do astrpodo formado pela luva de guerra, para a qual convergem o movimento da cena e a disposio feroz do antepassado trnsfuga, cingido pela faixa vermelha. Vermelho dos comandos, vermelho de barreira, vermelho de transgresso, vermelho de catstrofe se ordenam a partir da evocao sangrenta da divisa de Orsenna e do seu rubro emblema floral, num sistema metafrico que mostra os significados do livro. No meio, como instrumento nas suas malhas, Aldo representa em cenrio cheio de toques surrealistas o drama da Tentao, a que alude no fim do romance o velho estadista Danielo, justificando implicitamente o seu ato infrator: "O mundo floresce por meio daqueles que cedem tentao. O mundo s se justifica s custas da prpria segurana". Em casos clssicos, como os de Fausto e Peter Schlemihl, a tentao possui carter alegrico relativamente simples, porque, embora possa ser visto como projeo do tentado, o tentador assume identidade definida (Mefistfeles, o Homem de casaca cinzenta) e corresponde a uma situao estritamente pessoal. Em O Litoral das Sirtes a tentao se manifesta como aprofundamento das contradies interiores e assume a forma exterior de mltiplos agentes, que no tm a funo nica nem definida de tentar, e podem ser uma mulher sedutora, como Vanessa, um quadro simblico, os boatos trazidos pelo policial Belsenza, as instrues sibilinas do governo tudo afinando surdamente com os impulsos de Aldo, que o aproximam, sem que ele suspeite, dos atos de transgresso. Por isso a sua personalidade dividida a mola principal, de um lado, mas, de outro, a caixa de ressonncia duma conjuntura histrica. Uma coisa depende da outra. Seria de fato impossvel imaginar a ruptura do status quo a partir de Marino, por exemplo, com a sua fidelidade macia. Sendo como , Aldo vem a ser no fundo cmplice permanente das foras que o solicitam, e isso confere necessidade ao seu ato. o que sugere Danielo na entrevista final, quando diz que a transgresso puxou para a luz do dia uma parte oculta da sua personalidade (que com certeza precisava manifestar-se). Conclui-se que a transgresso deu a esta uma unidade que sem ela no seria atingida. De maneira mais complexa do que em O Deserto dos Tr75

Antonio Candido crtico e historiador da literatura. J publicou nesta revista "A Revoluo de 30 e a Cultura" (Vol. 2, n 4).

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aros, aqui o ser est ligado aos outros, ao meio, histria. Aldo se incorpora a Orsenna, que existe o tempo todo como fora e limite dele prprio. Graas a isto a longa espera desgua no risco assumido, que desfechou numa negao suprema, a destruio do Estado, obscuramente desejada como possibilidade de pelo menos provocar um sinal de vida na sociedade parada.

Novos Estudos CEBRAP N 26, maro de 1990 pp. 49-76

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