Liberdade Religiosa x Poder Diretivo Do Empregador - Um Caso Prático

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    http://www.alexandreroque.com/2009/08/liberdade-religiosa-x-poder-diretivo-do_15.html

    Liberdade religiosa x poder diretivo doempregador: um caso prtico

    Neste caso concreto, tive que pesquisar os limites da liberdade religiosaquando em confronto com o poder diretivo do empregador. A situao envolveo conflito entre o trabalhador que guarda o sbado por preceito religioso e oempregador que exige o trabalho nesse dia. Ressalto que a soluo a que

    cheguei reflete as peculiaridades do caso concreto, e no uma regra a serseguida em todo e qualquer conflito desse tipo.

    5 VARA DO TRABALHO DE JOO PESSOA

    SENTENA

    Vistos etc.

    R.P.S, D.B.S e M.P.B ajuizaram ao trabalhista em face de Empresa

    Brasileira de Correios e Telgrafos (ECT), alegando que so fiis da Igreja Adventista

    do Stimo Dia, cuja doutrina probe o trabalho secular no sbado dito natural, que vai

    do pr-do-sol da sexta-feira ao pr-do-sol do sbado imediatamente seguinte. Os

    autores foram punidos com advertncia escrita por se recusarem a atender

    convocao para o trabalho em dia de sbado. Sustentam que a empresa poderia ter

    convocado outros funcionrios para trabalhar nesse dia e que se propuseram a

    trabalhar em qualquer outro dia ou horrio, inclusive no domingo, o que no foi aceito

    pela empresa. Em virtude disso, pedem a anulao da punio sofrida, a emisso de

    uma ordem para que a reclamada se abstenha de exigir o trabalho aos sbados, bemcomo a condenao da empresa ao pagamento de indenizao por danos morais e

    honorrios advocatcios.

    Rejeitada a proposta de acordo, a reclamada contestou os pedidos,

    refutando as alegaes da parte autora. Alega que a ausncia dos autores no sbado

    do dia 6 de dezembro de 2008 causou-lhe transtornos, pois os autores fazem a

    entrega domiciliar, obrigando a empresa a remanejar carteiros de outro distrito. Alm

    disso, a atitude dos autores implicou em atraso na entrega de correspondncias.

    Durante a instruo, foram juntados documentos.

    As partes aduziram razes finais.Foi rejeitada a segunda proposta de acordo.

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    o relatrio. Passo a decidir.

    Declarando-se sem condies de arcar com as despesas processuais, a

    parte autora faz jus aos benefcios da Justia gratuita, ainda que formulado o pedido

    por advogado sem poderes especficos (OJ 331 da SDI-1 do C. TST).

    O caso dos autos de conflito entre o direito fundamental de praticar eexpressar uma religio, de um lado, e o poder diretivo do empregador, de outro.

    Antes de mais nada, preciso enfrentar a objeo que a empresa fez em

    audincia quanto ao fato de os documentos apresentados pelos autores no

    mencionarem desde quando eles so membros da Igreja Adventista do Stimo Dia.

    Os autores comprovaram documentalmente que so fiis da Igreja

    Adventista e que esse grupo religioso exige a abstinncia de trabalho secular aos

    sbados, o que , ademais, pblico e notrio. O fato de os documentos apresentados

    no indicarem desde quando os autores so membros da Igreja Adventista no

    relevante, pois a documentao apresentada pela empresa revela que, no dia da

    convocao para o trabalho no sbado, ela j sabia que os autores eram adventistas.

    Alis, um dos pareceres do processo administrativo que culminou com a punio

    disciplinar revela que esse conflito no novo na empresa.

    Com efeito, um dos documentos diz que o funcionrio no comparece as

    convocaes para o trabalho em dia de sbado, alegando motivo religioso, por ser

    adepto da Igreja Adventista do 7 Dia. Quando da convocao, o colaborador disse que

    se fosse possvel poderia trabalhar no domingo ou na segunda-feira [que era feriado

    local], mas no sbado no viria porque o seu dia de dedicao s atividades

    religiosas.

    J no citado parecer, consta que o funcionrio vem faltando s

    convocaes quando eventualmente convocado para trabalhar aos sbados. Consta

    ainda que a chefia imediata vinha fazendo concesses para este trabalhar no

    domingo, porm para isso acontecer era necessrio que um dos gestores tambm

    trabalhasse, para abrir a unidade e acompanhar o colaborador em suas atividades

    internas.

    Tais declaraes comprovam que a empresa j sabia h algum tempo que

    os autores eram membros da Igreja Adventista do Stimo Dia e j sabia, no momento

    da convocao, que os autores, muito provavelmente, no compareceriam ao trabalho

    no sbado do dia 7 de dezembro de 2008. irrelevante, portanto, que os documentosapresentados pelos autores no mencionem desde quando eles so membros da sua

    congregao religiosa.

    Ultrapassada essa questo, preciso enfrentar a matria principal.

    Sabe-se que a liberdade de crena e de religio uma das conquistas do

    estado democrtico de direito. Uma das principais conquistas da civilizao. Trata-se

    de um direito fundamental do cidado que garante a liberdade de ter uma crena e de

    express-la. Por ele, o cidado pode ser ateu e pode mudar de religio quando bem

    entender.

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos dispe que todo ser humanotem direito liberdade de pensamento, conscincia e religio; este direito inclui a

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    liberdade de mudar de religio ou crena e a liberdade de manifestar essa religio ou

    crena, pelo ensino, pela prtica, pelo culto e pela observncia, em pblico ou em

    particular (artigo XVIII).

    Para tornar mais claro esse princpio, a ONU fez editar em 1981 uma

    declarao sobre a eliminao de todas as formas de intolerncia e discriminaobaseadas em religio ou crena (Resoluo 36/55). Em um dos considerandos que

    introduzem a declarao, a ONU salienta que a religio ou as convices, para quem

    as profere, constituem um dos elementos fundamentais em sua concepo de vida e

    que, portanto, a liberdade de religio ou de convices deve ser integralmente

    respeitada e garantida.

    Os primeiro artigo dessa declarao dispe o seguinte:

    1. Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de conscincia

    e de religio. Este direito inclui a liberdade de Ter uma religio ou qualquer convico

    a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religio ou suas convices

    individuais ou coletivamente, tanto em pblico como em privado, mediante o culto, a

    observncia, a prtica e o ensino.

    2. Ningum ser objeto de coao capaz de limitar a sua liberdade de ter

    uma religio ou convices de sua escolha.

    3. A liberdade de manifestar a prpria religio ou as prprias convices

    estar sujeita unicamente s limitaes prescritas na lei e que sejam necessrias para

    proteger a segurana, a ordem, a sade ou a moral pblica ou os direitos e liberdades

    fundamentais dos demais.

    Mais adiante, o art. 6 da declarao detalha os direitos da pessoa humana

    relacionados liberdade religiosa:

    Conforme o artigo 1 da presente Declarao e sem prejuzo do disposto

    no pargrafo 3 do artigo 1, o direito liberdade de pensamento, de conscincia, de

    religio ou de convices compreender especialmente as seguintes liberdades:

    ()

    h) A de observar dias de descanso e de comemorar festividades e

    cerimnias de acordo com os preceitos de uma religio ou convico.

    Como se v, o direito liberdade religiosa abrange a liberdade de observar

    os dias de descanso estabelecidos pela crena.

    No mesmo sentido, o art. 12 da Conveno Americana de Direitos

    Humanos (Pacto de San Jos da Costa Rica), ratificada pelo Brasil e incorporada sua

    legislao interna, com status supralegal, dispe que ningum pode ser submetido a

    medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religio ou suas

    crenas, ou de mudar de religio ou de crenas.

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    A Constituio do Brasil estabelece a liberdade religiosa como um direito

    fundamental. claro que ele no ilimitado nem absoluto. Nem mesmo direito vida

    absoluto, pois a Constituio o relativiza nos casos de guerra declarada.

    No obstante, os direitos fundamentais devem ser sempre respeitados, s

    podendo ser relativizados quando outra conduta no puder ser adotada sem relevanteprejuzo de outro direito fundamental (a partir de uma ponderao de interesses) ou

    em caso de prejuzo segurana, sade, ordem e moral pblicas.

    A liberdade religiosa pode e deve ser flexibilizada, por exemplo, quando

    pais que frequentam uma determinada agremiao religiosa que probe a transfuso

    de sangue querem impedir que seu filho beira da morte receba a transfuso que lhe

    salvar a vida. Neste caso, o direito fundamental vida da criana deve prevalecer

    frente ao direito fundamental s convices religiosas dos pais.

    Da mesma maneira, uma religio que impusesse aos fiis que andassem

    nus pela rua, ou que consumissem cocana, ou que os obrigasse a roubar ou a matar

    os infiis, no poderia ser respeitada pela coletividade nesses pontos. O direito

    fundamental crena teria que ceder diante de outros interesses mais relevantes.

    Quanto observncia de dias de guarda, uma hipottica religio que

    prescrevesse seis dias de guarda por semana, todas as semanas do ano, e permitisse

    que os fiis trabalhassem em apenas um, no poderia ser invocada pelo empregado

    como justificativa para faltar a semana quase toda. Num caso como esse, a liberdade

    religiosa estaria sendo invocada para justificar o injustificvel: o direito de ganhar sem

    trabalhar, enquanto os que no professassem a religio teriam que trabalhar para

    ganhar. Isso feriria o direito fundamental igualdade de todos perante a lei.

    O direito observncia de um dia de guarda por semana, contudo, nadatem a ver com as exigncias absurdas que citei nas linhas acima. Trata-se de um

    preceito milenar, que inspirou o legislador a estabelecer o repouso semanal

    remunerado. A origem desse costume pode estar no livro do Gnesis, segundo o qual

    Deus criou o mundo em seis dias e descansou no stimo.

    Por essa razo, se o prprio direito positivo incorporou a folga semanal

    como medida de sade, para possibilitar o descanso do trabalhador, no parece

    razovel simplesmente ignorar, de antemo, o direito a guardar um dia da semana em

    funo da religio. Somente a anlise da situao concreta que pode conduzir

    legitimao de um ato de restrio do direito de liberdade religiosa, quando tiver queceder a um interesse superior.

    Isso significa que dever do Estado e da sociedade, ou seja, de todas as

    pessoas, respeitar a liberdade religiosa de cada um, fazendo o possvel para no

    sacrificar o pleno exerccio dessa liberdade. Atenta a essa realidade, a jurisprudncia

    vem autorizando que candidatos a concursos pblicos que estejam impedidos, por sua

    f, de realizar os exames em dias de sbado, possam realiz-los em horrio

    diferenciado. No mesmo sentido, algumas unidades da Federao vm produzindo leis

    que possibilitam aos alunos enquadrados nessa situao prestar exames em horrios

    alternativos e substiturem a frequncia s aulas aos sbados por trabalhos escritos.

    Transportando-se essa compreenso para o mbito da relao de

    emprego, pode-se concluir que dever do empregador fazer o possvel para respeitar

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    a liberdade de religio do seu empregado, inclusive no tocante a eventual dia de

    guarda. Nesse caso, deve o patro fazer o que estiver ao seu alcance para flexibilizar o

    horrio do trabalhador, permitindo que ele descanse no dia de guarda e trabalhe nos

    demais.

    A crena de cada um algo sagrado. Entender que ela deve ceder ao poderdiretivo do empregador, em toda situao, retroagir ao tempo em que a garantia da

    liberdade de culto no existia. O trabalhador no deixa de ser cidado quando veste a

    farda da empresa ou adentra ao interior de suas instalaes. Ele continua sendo uma

    pessoa com suas convices polticas, filosficas e religiosas, que devem ser

    respeitadas.

    Nesse sentido, o catedrtico Juan A. Sagardoy Bengoechea, da Universidad

    Complutense de Madrid, cita decises do Tribunal Constitucional da Espanha no

    sentido de que la celebracin de un contrato de trabajo no implica em modo alguno la

    privacin para una de las partes, el trabajador, de los derechos que la Constitucin le

    reconoce como ciudadano (S. TC 106/1996) e que las organizaciones empresarialesno forman mundos separados y estancos del resto de la sociedade, ni la liberdad de

    empresa que, estabelece el art. 38 del Texto Constitucional que legitime que quienes

    prestan servicios en aqullas por cuenta y bajo la dependencia de sus titulares deban

    soportar despojos transitorios o limitaciones injustificadas de sus derechos

    fundamentales y libertades pblicas, que tienen un valor central en el sistema jurdico

    constitucional (Los derechos fundamentales y el contrato de trabajo.Cizur Menor

    (Navarra): Editorial Aranzadi, SA, 2005, p. 29).

    Com respeito acomodao entre as crenas religiosas e a atividade

    produtiva, o mesmo autor segue dizendo: Respecto a la acomodacin razonable de laorganizacin productiva, tenemos un ejemplo, en el art. 23 ET, respecto de los

    trabajadores (exmenes, permissos para estudios, etc). Y, asimismo, con motivo de

    creencias religiosas o ticas descansos en das determinados de la semana, actos

    contrarios a las mismas, etc. - el empresario, en la medida de lo posible, debe

    acomodar la organizacin del trabajo para no ir contra tales creencias (ob. cit., p. 43-

    44).

    Os esforos da sociedade devem convergir para a incluso, no a excluso,

    das minorias. Impor aos guardadores do sbado que so nfima minoria a

    obrigao de trabalharem nesse dia, implica em excluso social, pois s resta ao

    cidado escolher entre duas alternativas: contrariar um mandamento que julga divino emanter o emprego ou obedecer ao mandamento e ficar margem do mercado de

    trabalho. Como muitos escolheriam a segunda opo, por fidelidade sua crena, o

    resultado seria o desemprego de muitas pessoas. Isso poderia ser evitado, na maior

    parte dos casos, se a atividade produtiva, com um mnimo de desconforto, fizer o

    possvel para permitir o repouso no dia de guarda. Sem dvida, a soluo que

    privilegia o interesse pblico e o direito fundamental religio.

    No h duvida, portanto, que o direito liberdade de crena deve ser

    respeitado, s podendo ser relativizado em hipteses excepcionais.

    No caso dos autos, vrios so os motivos para o respeito ao direito deguardar o dia de sbado.

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    Primeiro, a reclamada uma grande empresa, com milhares de

    funcionrios. A quantidade de sabatistas em seu quadro funcional certamente

    pequena. No haver grandes constrangimentos em se adequar a dinmica do

    empreendimento ao direito de natureza religiosa desses empregados. At porque a

    reclamada mantm atividades em todos os dias da semana, inclusive aos domingos.

    Pelo menos isso que se extrai do contrato de trabalho dos reclamantes, seno

    vejamos:

    O empregado admitido para prestar a jornada de oito horas dirias, no

    total de quarenta e quatro horas semanais, no horrio que o empregador mantm

    turnos diurno, noturno e misto de trabalho, sendo da obrigao do empregado prestar

    servios em qualquer deles, a critrio do empregador.

    () Est tambm ciente o empregado de que o empregador mantm

    atividades nos domingos e feriados, sendo da obrigao do empregado trabalhar em

    tais dias, estipulando-se que o repouso semanal constar de tabelas de revezamentodivulgado periodicamente (sic).

    Ora, se a empresa desenvolve atividades nos sete dias da semana e se o

    repouso semanal remunerado concedido em sistema de revezamento, no me parece

    ser muito custoso fazer coincidir a folga dos autores com os sbados, sobretudo

    porque a grande maioria dos funcionrios, com certeza, prefere folgar aos domingos.

    Por outro lado, se o problema a dificuldade de entrega domiciliar aos

    domingos, pelo fato de o comrcio estar fechado nesses dias, isso tambm pode ser

    contornado. Atualmente, parte do comrcio abre aos domingos, sobretudo osshoppings centers e supermercados. Mas se for muito inconveniente a entrega nesses

    dias, os autores poderiam ter tido a carga de entregas aumentada nos dias teis de

    modo a no precisar trabalhar nos sbados. Ou poderiam ter sido enviados para

    entregar correspondncias em reas residenciais. Uma outra alternativa seria convocar

    outros carteiros para entregar as correspondncias no sbado (coisa que a empresa

    confessou ter feito). Os autores no seriam convocados mas teriam um acrscimo

    proporcional de trabalho nos dias teis, de modo a manter a isonomia com os demais

    carteiros.

    Em suma, muitas alternativas a empresa teria para contornar o problema.

    Tanto que, em um dos pareceres exarados no processo que culminou com a punio

    dos autores, consta que eles j chegaram a trabalhar em domingos, para compensar a

    ausncia nos sbados. O motivo invocado para suspender essa concesso ter que

    mandar um encarregado para supervisionar os reclamantes no domingo no parece

    um sacrifcio muito grande para a empresa. Sacrifcio incomparavelmente maior

    obrigar os reclamantes a agir contra a sua conscincia e sua f.

    visvel a desproporo entre o sacrifcio exigido da empresa (que

    irrelevante) para manter ntegro o direito fundamental dos reclamantes e o sacrifcio

    exigido dos autores (que descomunal) para preservar o poder diretivo da empresa.

    Em casos como este, no h dvida de que o direito fundamental expresso religiosadeve prevalecer.

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    Com esses fundamentos, considero injusta e ilegal a punio aplicada aos

    autores, acolhendo o pedido de sua anulao, bem como a tutela inibitria pleiteada,

    de modo que a empresa fique impedida de exigir dos reclamantes o trabalho do pr-

    do-sol da sexta-feira ao pr-do-sol do sbado.

    No sentido do texto, encontramos a deciso a seguir transcrita, proferidapelo Juiz do Trabalho Carlos Rodrigues Zahlouth, no processo n 1217-2006-010-08-

    00-4, em situao anloga presente:

    certo que a empresa tem o poder diretivo de determinar trabalho a seus

    funcionrios, especialmente na categoria dos vigilantes, onde existem diversos postos

    de trabalho.

    Porm, esse poder no absoluto, pois patente que o reclamante era

    judeu, onde proibido por fora religiosa o trabalho aos sbados, a ausncia do autor,

    no foi deliberada e com o fito de abandono, mas sim por conjunturas sociais e

    religiosas.

    (...)

    direito fundamental de toda pessoa no ser obrigada a agir contra a

    prpria conscincia e contra princpios religiosos. Segue-se da, no ser lcito obrigar-

    se cidados a professar ou a rejeitar qualquer religio, ou impedir que algum entre ou

    permanea em comunidade religiosa ou mesmo a abandone. O direito de liberdade de

    conscincia e de crena deve ser exercido concomitantemente com o pleno exerccio

    da cidadania.

    () Bem aponta Kant, em sua obra "Fundamentos para uma Metafsica dos

    Costumes", que o homem o nico ser capaz de orientar suas aes a partir de

    objetivos racionalmente concebidos e livremente desejados. A dignidade do ser

    humano consistiria em sua autonomia, que a aptido para formular as prprias

    regras de vida, ou seja, sua liberdade individual ou livre arbtrio.

    Foi somente no sculo III d.C que a expresso liberdade religiosa - libertas

    religionis - foi, provavelmente, utilizada pela primeira vez, por Tertuliano, advogado

    convertido ao cristianismo e que passou a defender a liberdade religiosa em face dos

    abusos do Imprio Romano. A liberdade religiosa , como se sabe, um direito humano

    fundamental, assegurado pelas Constituies dos diversos Estados democrticos e,

    tambm, por importantes declaraes e tratados internacionais de direitos humanos.A liberdade religiosa comporta pelo menos trs acepes: jurdica,

    teolgica ou eclesistica e bblica.

    No que se refere liberdade religiosa na acepo jurdica, a mesma

    compreende, essencialmente, a liberdade religiosa como um direito fundamental da

    pessoa humana. Nesse sentido, Segundo Jorge Miranda, a liberdade religiosa ocupa o

    cerne da problemtica dos direitos humanos. Ora, no curso da histria da humanidade,

    o direito liberdade religiosa representa uma conquista extremamente recente. Pode

    ser identificada nas trs fases da era dos direitos, mencionadas por Norberto Bobbio.

    Segundo o autor italiano, os direitos humanos 'nascem como direitos naturais

    universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente

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    encontrarem sua plena realizao como direitos positivos universais'. Como direito

    natural, a liberdade religiosa surgiu no sculo XVIII, com as primeiras declaraes de

    direitos de 1776 (americana) e 1789 (francesa). Como direito efetivamente tutelado, a

    liberdade religiosa surgiu com a Constituio Americana. Como direito internacional, a

    liberdade religiosa surgiu no Segundo Ps-Guerra, com o desenvolvimento do sistema

    global de proteo aos direitos humanos ligado Organizao das Naes Unidas -

    ONU.

    () Para a esmagadora maioria dos cidados do Pas, que so cristos e

    que guardam o domingo, no haver trabalho, provas ou concursos no dia que

    consagram. O que se defende o tratamento igual queles que guardam o sbado.

    No se fere, portanto, o princpio da isonomia.

    Ademais, a prpria Constituio, protetora do princpio da igualdade,

    tambm autoriza certas limitaes mesma liberdade como na previso da chamada

    'escusa de conscincia', nos termos do artigo 5, inciso VIII, visando garantia das

    liberdades de pensamento e opinio.

    Assim, evidente que a obrigao de praticar atividade no sbado, ao ser

    descumprida porque deciso da empresa assim imps, ao no fixar uma alternativa,

    no fere a norma constitucional; ao contrrio respeitar tal posio, propicia a liberdade

    de convico sem feri-la.

    () Neste sentido, cita-se o constitucionalista portugus Jorge Miranda que

    ressalta a importncia da liberdade religiosa, e afirma que ela est 'no cerne da

    problemtica dos direitos humanos fundamentais, e no existe plena liberdade cultural

    nem plena liberdade poltica sem essa liberdade pblica, ou direito fundamental'.

    Rui Barbosa tambm preconizava, 'de todas as liberdades sociais, nenhuma to congenial ao homem, e to nobre, e to frutificativa, e to civilizadora, e to

    pacfica, e to filha do Evangelho, como a liberdade religiosa.'

    Portanto, somente nos casos de obrigaes legais, no se pode opor

    restries religiosas, mas no no caso de trabalho, quando a empresa, de grande porte

    em sua rea de atuao em Belm, deveria por fora constitucional adequar o horrio

    de trabalho do autor para no coincidir aos sbados, ainda mais que a questo est

    consolidada por mais de seis anos.

    A conduta da empresa impingiu aos autores uma tortura psicolgica quepoderia ter sido evitada, pois eles se viram diante de uma escolha de Sofia. Ou

    obedeciam ao seu Deus e desobedeciam ordem injusta da empresa, colocando o seu

    emprego e sua subsistncia em risco, ou se sujeitavam ira de Deus (na tica deles)

    para manter a fonte de sua sobrevivncia.

    O direito da empresa a exercer o poder diretivo e disciplinar foi exercido

    de forma abusiva, pois violou sua funo social. Com efeito, como ensina Edilton

    Meireles, pelo critrio da funo social se tem que o ato abusivo quando este se

    desvirtua do instituto jurdico que foi criado, o qual integra. Isso porque, todo e

    qualquer instituto jurdico tem uma destinao social. Todo instituto jurdico criado,

    no s 'para o movimento das riquezas do mercado', ou para fins meramente

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    egosticos, mas, principalmente, para servir coletividade (Abuso do direito na

    relao de emprego. So Paulo: LTr, 2005, p. 77).

    certo que a empresa tem o direito de exigir o trabalho e dirigir a

    prestao de servio. No entanto, esse direito no pode ser exercido de forma absoluta

    e ilimitada, mas observada a sua destinao social. Nesse sentido, Maria Celina Bodinde Moraes diz que a regulamentao da atividade privada (porque regulamentao da

    atividade quotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expresso da indubitvel

    opo constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana (apudEdilton

    Meireles, ob. cit, p. 78).

    Assim, a empresa, ao exercer o seu poder diretivo, no pode desprezar a

    dignidade dos seus subordinados. No pode esquecer que eles, alm de empregados,

    so pessoas humanas, cidados com direitos fundamentais. Nesta trilha, farta

    doutrina cita como violadores da funo social todos os atos que ofendem os direitos

    fundamentais, em especial os direitos da personalidade, incluindo-se entre estes

    ltimos tudo o que est relacionado ao homem em funo de sua prpria natureza, aexemplo da vida, integridade fsica e psquica, corpo, honra, identidade, sigilo,

    liberdade, imagem, voz, recato, pensamento, intimidade, sentimento religioso,

    crenas, manifestaes do intelecto (direitos autorais), etc. Em suma, os direitos

    fsicos, os direitos psquicos e os direitos morais do ser humano. Assim, o contrato, de

    mero instrumento de circulao de riquezas, transformou-se em instrumento de

    proteo dos direitos fundamentais, pois no se concebe o 'homem como sujeito

    isolado (indivduo-livre) seno como membro ativo de uma sociedade plural na qual

    todos so igualmente livres. () Em suma, 'a valorizao da pessoa passa a ser a

    preocupao principal, e no o patrimnio'. Pode-se afirmar, ainda, que a 'funo

    social do contrato, enfim, garante a humanizao dos pactos, submetendo o direito

    privado a novas transformaes' (Edilton Meireles, ob. cit., p. 79-81).

    Com isso, o abuso de direito da empresa (subespcie do ato ilcito em

    sentido amplo) traz como consequncia o dever de indenizar os autores pelos danos

    morais decorrentes do sofrimento psicolgico a que foram submetidos. Note-se que

    no necessria a prova do dano moral, que presumvel na hiptese dos autos.

    Assim, considerando-se a natureza e a gravidade da ofensa, o nvel

    econmico dos envolvidos, o grau de culpa do ofensor e, sobretudo, o intuito

    pedaggico da condenao, arbitro a indenizao por danos morais em R$ 5.000,00

    para cada autor.

    Em virtude da verossimilhana da alegao e do risco de dano aos

    reclamantes, defiro o pedido de antecipao da tutela, para suspender a eficcia da

    advertncia escrita e determinar empresa que se abstenha de exigir dos autores o

    trabalho aos sbados.

    So devidos honorrios advocatcios de sucumbncia, arbitrados em 20%

    sobre o valor da condenao.

    Com efeito, a legislao processual trabalhista no tem norma especfica

    que trate dos honorrios advocatcios em todas as situaes, mas apenas nos casos de

    assistncia sindical (Lei 5.584/70), e to-somente para estabelecer o destinatrio doshonorrios. Esta omisso leva aplicao subsidiria do princpio da sucumbncia do

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    processo civil, plenamente compatvel com o processo do trabalho, inclusive com o

    jus postulandi das partes.

    O entendimento contido na Smula 219 do C. TST no se coaduna com a

    atual ordem constitucional, que no recepcionou a assistncia sindical estabelecida

    pela Lei 5.584/70, incompatvel com a liberdade sindical e a obrigao do Estado, nodo sindicato, de prestar assistncia jurdica aos necessitados.

    Mesmo que esse entendimento fosse compatvel com a Constituio, ele

    no poderia ser mantido aps o advento da Lei 8.906/94, que destinou os honorrios

    advocatcios ao advogado, no ao sindicato. Por outro lado, a Lei 10.288/2001 passou

    a disciplinar a assistncia judiciria no processo do trabalho, revogando tacitamente a

    Lei 5.584/70, na parte que tratava desse tema. Posteriormente, a Lei 10.537/2002

    alterou a redao da CLT, que deixou de prever a assistncia judiciria no processo do

    trabalho, retirando, assim, por completo, o suposto respaldo legal para o

    entendimento da Smula 219 do C. TST.

    Como se isso no bastasse, os honorrios advocatcios foram trazidos para

    o direito material pelo novo Cdigo Civil, fincados no princpio da restituio integral,

    cuja aplicao ao Direito do Trabalho incontestvel.

    Com o advento da Emenda Constitucional n 45 e a ampliao da

    competncia da Justia do Trabalho, a jurisprudncia cristalizada na Smula 219

    tornou-se ainda mais insustentvel, pois a concesso de honorrios advocatcios

    apenas nas lides oriundas da relao de trabalho em sentido amplo e nas demais lides

    sujeitas competncia desse ramo do Judicirio, excluindo-se apenas as lides

    oriundas da relao de emprego, fere os princpios da isonomia e da razoabilidade.

    O pagamento dos honorrios de sucumbncia pelo vencido tem a nobrefuno de possibilitar um julgamento justo, com a reparao integral do dano,

    evitando que o trabalhador tenha que retirar uma parte de seu crdito alimentar para

    pagar os honorrios de seu advogado. Alm disso, a ausncia dos honorrios de

    sucumbncia faz com que o crdito trabalhista seja o mais barato de todos,

    desestimulando o seu adimplemento e fazendo com que o empregador d preferncia

    quitao de dvidas de outra natureza, que so acrescidas de honorrios advocatcios

    quando cobradas.

    Acrescente-se que, no caso dos autos, os reclamantes esto assistidos

    pelo sindicato de sua categoria. Assim, mesmo que no se aplicasse o entendimentoacima, os honorrios advocatcios seriam devidos.

    Isto posto, ACOLHO os pedidos formulados por R.P.S, D.B.S e M.P.Bemface de Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos (ECT), para:

    I em sede de tutela antecipada:

    a) suspender a punio disciplinar que lhes foi aplicada em virtude da

    ausncia ao trabalho no dia 6 de dezembro de 2008 (sbado), bem como qualquer

    punio que porventura tenha sido aplicada aps essa data, com o mesmofundamento;

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    b) determinar empresa que se abstenha de exigir o trabalho dos autores

    do pr-do-sol da sexta-feira ao pr-do-sol do sbado, sob pena de multa de R$

    50.000,00 por reclamante em caso de descumprimento.

    II em carter definitivo:

    a) anular a punio disciplinar que lhes foi aplicada em virtude da ausncia

    ao trabalho no dia 6 de dezembro de 2008 (sbado), bem como qualquer punio que

    porventura tenha sido aplicada aps essa data, com o mesmo fundamento;

    b) determinar empresa que se abstenha de exigir o trabalho dos autores

    do pr-do-sol da sexta-feira ao pr-do-sol do sbado, sob pena de multa de R$

    50.000,00 por reclamante em caso de descumprimento;

    c) condenar a reclamada a pagar aos reclamantes indenizao por danos

    morais no importe de R$ 5.000,00 para cada um.

    Honorrios advocatcios pela reclamada, no importe de 20% do valor da

    condenao, que podero ser compensados pelos reclamantes com eventuais

    honorrios contratuais que deva a seu advogado.

    Custas pela reclamada no importe de R$ 360,00, calculadas sobre o valor

    da condenao, de R$ 18.000,00, inexigveis, em virtude da sua equiparao legal

    Fazenda Pblica.

    No h incidncia de contribuies previdencirias e imposto de renda.

    Expea-se imediatamente ofcio ao Ministrio Pblico do Trabalho para que

    tome conhecimento dos fatos narrados nos autos e adote as providncias que

    entender cabveis.

    Joo Pessoa/PB.

    Alexandre Roque Pinto

    JUIZ DO TRABALHO