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LINKLIVRE ebook_2 ________________ arte | educação | tecnologias | comunicação | multimeios Carolina Fialho Silva Cláudio Manoel Duarte de Souza (Organizadores)

LINKLIVRE ebook 2 · Arquitetura de um Learning Center, por Carolina Fialho 27 ... das GPU é o excelente renderizador2 Cycles, desenvolvido pela Fundação Blender, na . ((, ., ,

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LINKLIVRE ebook_2________________ arte | educao | tecnologias | comunicao | multimeios

Carolina Fialho SilvaCludio Manoel Duarte de Souza

(Organizadores)

LINKLIVRE ebook_2________________ arte | educao | tecnologias | comunicao | multimeios

Carolina Fialho Silva

Cludio Manoel Duarte de Souza

(Organizadores)

2016 - Santo Amaro - Bahia

FICHA CATALOGRFICA

Ficha elaborada pela Biblioteca Universitria de Cruz das Almas - UFRB.

L757 Link livre ebook_2arte: educao, tecnologias, comunicao e multimeios / Organizadores: Cludio Manoel Duarte de

Souza; Carolina Fialho... [et al.]._ Santo Amaro, BA: UFRB, 2016.

110p; il.

Esta uma publicao digital do Grupo de Pesquisa Linklivre CNPq/UFRB que traz temas bem diversos e sempre conectados com questes da cultura digital. ISBN: 978-85-5971-014-4

1.Softwares livres - Extenso universitria. 2.Softwares livres - Educao. 3.Tecnologia da informao - Incluso digital. I.Universidade Federal do Recncavo da Bahia. II.Oliveira, Adriano. III.Lins, Alene. IV.Lemos, Andr. V.Velame, Csar. VI.Rabelo, Fernando. VII.Menezes, Karina Moreira. VIII.Fiorelli, Marilei. IX.Mapurunga, Marina. X.Medeiros, Macello. XI.Pretto, Nelson. XII.Bruni, Paolo. XIII.Renn, Rachel. XIV.Vieira, Rmulo. XV.Lima, Tatiana. XVI.Farias, Vicente Reis. XVII.Ttulo.

CDD: 371.334

ApresentaoSomos o LinkLivre - Grupo de Estudos e Prticas Laboratoriais em Plataformas e Soft-wares Livres e Multimeios (CNPq-UFRB), que abriga atividades de pesquisa e exten-so que envolvem o papel da tecnologia na sociedade contempornea, sua relao com a comunicao, multimeios, produo artstica, educao, cidades, produo de subjetividades e cultura digital.

Nesta segunda edio de nosso LinkLivre_Ebook_2 contamos com as valiosas cola-boraes de 17 pesquisadores: Adriano Oliveira, Alene Lins, Andr Lemos, Carolina Fialho, Csar Velame, Cludio Manoel Duarte, Fernando Rabelo, Karina Moreira Me-nezes, Marilei Fiorelli, Marina Mapurunga, Macello Medeiros, Nelson Pretto, Paolo Bruni, Rachel Renn, Rmulo Vieira, Tatiana Lima e Vicente Reis Farias. So doutores, mestres, doutorandos, pesquisadores apaixonados por temas onde as tecnologias, as coisas, os espaos fsicos e ambientes digitais e os seres humanos so focos de aten-o.

A publicao traz temas bem diversos, sempre conectados com questes da cultura digital. So entrevistas, ensaios, artigos, resenhas e relatos de experincias, confor-mando um contedo de revista acadmica, entre aquele rigor de artigos flexibilida-de textual nos relatos de prticas.

Videogame, animao, software livre e suas conexes com potica e esttica. Coope-rao e tecnologias sociais. Educao, DiY, artemdia e educao. Internet das coisas, arquitetura e tecnologias, espetculos e hipermdia, ativismo hacker e educao, m-sica, plataformas on-line e teoria ator-rede, joomla, cms e webmastering, mapa sonoro no ciberespao, pure data e arte, videomapping, personbyte, economia e informao so os temas que dialogam com o leitor, nessa edio.

As publicaes LinkLivre, como este Ebook2, so de uso livre e no comercial, com aplicao de licena Creative Commons CC BY-NC-SA (Atribuio-No Comercial Compartilha Igual).

Ento, baixe, leia, compartilhe.

Os organizadores.

Bahia, Brasil. Setembro, 2016.

www.ufrb.edu.br/linklivre

Uso No Comercial Compartilhamento pela mesma Licena (by- -nc- -sa)

www.ufrb.edu.br/linklivre

SumrioEnsaios e Artigos 6

Filmes em jogo: o uso das tecnologias derivadas dos games em filmes de animao, por Adriano A. Oliveira 7Ao e Cooperao. Vida em rede e as alteraes de uma sociedade tecnolgica comprometida, por Alene Lins 14Coisas, por Andr Lemos 20Arquitetura de um Learning Center, por Carolina Fialho 27Hiperpalco? Anotaes sobre espetculos streaming em ambientes hipermiditicos, por Cludio Manoel Duarte de Souza 32Arte + Mdia + Educao, por Marilei Fiorelli 42Mais Aberto e mais Fazedores..., por Nelson De Luca Pretto e Karina Moreira Menezes 46Pinpinlab. Experimentaes em arte, cincia e tecnologia DIY, por Raquel Renn 54Mediaes da Msica no Soundcloud e no Mixcloud, por Tatiana Rodrigues Lima e Rmulo da Silva Vieira 61

Entrevista 75

Videogame, por Paolo Bruni 76

Relatos de Experincia 81

Joomla! na Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB), por Csar Velame 82Experimentaes Sonoras no Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Um relato de experincia das disciplinas de Oficinas Orientadas de Audiovisual I das edies dos anos 2015 e 2016, por Marina Mapurunga de Miranda Ferreira 86A multiplicidade das superfcies projetadas: observaes sobre videomapping e o Festival Reconvexo, por Fernando Rabelo 93Camaleon. O uso do Pure Data como ferramenta de criao artstica para performances ao vivo, por Vicente Reis de Souza Farias 97

Resenha 103

HIDALGO, Cesar. Why Information Grows: The Evolution of Order, from atoms to Economies. 1o ed. Westminster: Penguin Publications, 2015. (verso ebook), por Macello Medeiros 104

Ficha Tcnica 108

Ensaios e Artigos

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Filmes em jogo: o uso das tecnologias derivadas dos games em filmes de animao

Adriano A. Oliveira1

[email protected]

Palavras-chave: Videogame. Animao. Software Livre.

A acirrada competio na indstria do videogame hoje o principal sustentculo da oferta de mais poder de processamento e capacidade grfica em computadores do-msticos, num momento em que eles esto perdendo terreno para os dispositivos mveis. Este segmento de mercado altamente lucrativo e competitivo tem disponibi-lizando ao usurio comum mquinas e softwares capazes de gerar em tempo real ima-gens computacionais cada vez mais hiper-realistas. Com isso, um novo e promissor horizonte vem se abrindo para os realizadores independentes de animao de baixo oramento: o uso das plataformas de games para gerao de filmes.

No campo da computao grfica (CG), a vertente tradicional da gerao de imagens em movimento a partir da simulao de espaos e formas virtuais tridimensionais sempre demandou muita capacidade de processamento, o que se reflete ainda hoje em uma alta demanda de tempo e recursos para produo de imagens e filmes. Em uma obra como Procurando Dory (Pixar/Disney, 2016), cada segundo de animao composto por 24 imagens distintas. Gerar apenas um desses quadros em seu aspecto final demanda horas e por vezes dias em um computador de alto desempenho. Com vastos recursos sua disposio, estdios como a Pixar empregam grupos de cente-nas de computadores em rede conhecidos como render farms, processando reas de cada imagem do filme em paralelo para poderem finalizar os projetos dentro do prazo.A maioria dos realizadores e artistas independentes que trabalham com CG hoje exe-cutam seus trabalhos em computadores domsticos normais. No podendo investir em estaes de trabalho especficas ou render farms, eles dependem do aumento de poder de processamento que a indstria oferece aos consumidores comuns para pro-

1 Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1998), possui mestrado em Teorias e Crtica da Literatura e da Cultura pelo Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (2006), com enfoque em anlise flmica e doutorado na mesma instituio e linha, com uma tese sobre o cinema de Quentin Tarantino. Atualmente professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB). Coordenou o Colegiado do Curso de Cinema e Audiovisual da UFRB entre 2010 e 2013. Possui experi-ncia em produo audiovisual, anlise flmica e avaliao educacional. Produes audiovisuais on-line: https://vimeo.com/anodinidades

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https://vimeo.com/anodinidadeshttps://vimeo.com/anodinidades

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duo de trabalhos mais complexos em tempo hbil. Nos ltimos anos tem havido acomodao e declnio na procura por computadores desktop medida que os usu-rios passam a investir cada vez mais em dispositivos mveis. Em decorrncia disso, o segmento geral de computadores para usurios domsticos estaria ameaado por cer-ta estagnao de desempenho se no fosse o mercado relacionado aos videogames.

Os videogames baseados na interatividade com imagens derivadas de formas tridi-mensionais virtuais sempre estiveram passos atrs da qualidade visual oferecida pelo cinema de animao e efeitos visuais, o que tornava at pouco tempo inaceitvel o emprego de sua tecnologia para criao de trabalhos em vdeo (v. figura 1). O motivo simples, apesar de empregarem tcnicas de gerao de grficos computacionais si-milares, as imagens de um filme so processadas antes de sua exibio (off-line), en-quanto que as imagens dos games so geradas em tempo real (on-line) nos desktops, consoles ou celulares a partir das interaes dos usurios.

Figura 1: Tomb Raider, 1996

Para que seja possvel gerar animaes interativas em tempo real, uma srie de arti-fcios e simplificaes de processamento so empregados nas engines (sistemas nos quais os videogames so desenvolvidos). Por exemplo, nos games a simulao de som-bras e reflexo foto-realistas demandam pesados clculos matemticos que inviabi-lizam ainda hoje sua execuo em tempo real nos dispositivos largamente usados. Como essas caratersticas da imagem so importantes para a promoo da imerso, os desenvolvedores usam tcnicas chamadas cozimento (bake) durante a criao dos games, calculando sombras e reflexos com antecedncia e adicionando-os em se-guida aos materiais da cena como texturas.

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Truques como esses so eficientes at certo ponto. Os usurios toleram bem essas simplificaes, exercendo uma forma de suspenso da descrena generosa, mas a cada ciclo anual de produo de jogos a exigncia por avanos visuais aumenta, o que tensiona o desenvolvimento de novas tcnicas de produo e, principalmente, exige mais poder de processamento nos dispositivos. O fato que hoje, em funo das demandas de mercado, as game engines associadas a poderosas placas grficas acessveis aos usurios domsticos alcanaram um poder de gerao de experincias imersivas foto-realistas que rivalizam com as imagens geradas para filmes de anima-o computacional.

Um processador (CPU) tpico de desktop tem hoje comumente oito ncleos, o que equivale a oito processadores atuando em paralelo num mesmo chip. Uma placa de vdeo ou placa grfica (GPU) atual voltada para o universo gamer chega a ter impres-sionantes 2 mil processadores atuando em paralelo. Estes so processadores focados na realizao de tarefas bem mais especficas e simplificadas do que as realizadas pela CPU, mesmo assim a potncia de processamento de imagem nas GPU sem prece-dentes. Em outra comparao, um computador desktop tpico sai hoje de fbrica com oito gigabytes de memria (RAM) para suas operaes gerais. Por sua vez, mirando na demanda por gerao de imagens em telas 4K, uma placa grfica mdia atual apre-senta pelo menos quatro gigabytes de memria (VRAM) dedicada ao processamento de imagem, alm da memria convencional do desktop ou notebook. Muitas GPU topo de linha em 2016 j chegam a oferecer oito gigabytes de VRAM dedicados.

Em resumo: um usurio comum que dispe hoje de uma GPU atual em seu desktop, tem dentro de seu computador um outro computador ainda mais potente dedicado exclusivamente computao grfica. Com isso, chegamos a um momento em que os games so capazes de nos oferecer imagens impressionantes geradas em tempo real, como as da figura 2.

Figura 2: Imagem do game Hellblade, atualmente em desenvolvimento em Unreal 4

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Usando o poder ocioso das GPU para acelerar o render tradicional

Esse poder de processamento das GPU, quando no est sendo plenamente aprovei-tado nos games mais exigentes, gera um excedente ocioso e novas tecnologias tm surgido para aproveit-lo em tarefas outras que no a gerao direta de imagens em tempo real. Em termos de software, duas API (interfaces de programao para acesso ao hardware) competem hoje para permitir aos desenvolvedores acesso a este poten-cial: o OpenCL e o CUDA.

O OpenCL um padro aberto promovido por um consrcio que inclui gigantes como Apple e AMD. Apesar de pioneiro, s recentemente alcanou um nvel de desenvolvi-mento aceitvel. O CUDA, por sua vez, uma API mais consolidada desenvolvida ex-clusivamente pela nVidia a partir do OpenCL, mas funciona apenas em placas grficas desenhadas por essa empresa.

Os sistemas de edio de imagem atuais, por exemplo, empregam cada vez mais es-sas API para acelerar seus processamentos. Adobe Premiere CC, Apple Final Cut Pro X e Blackmagic Davinci Resolve so exemplos de plataformas comerciais srias que hoje dependem das tecnologias derivadas do mercado de videogames como estrat-gia de acelerao de desempenho.

No campo no software livre, o exemplo mais promissor a empregar o poder ocioso das GPU o excelente renderizador2 Cycles, desenvolvido pela Fundao Blender, na Holanda. Ele hoje integra o software livre Blender 3D e tambm existe em verses autnomas que comeam a ser adaptadas para programas comerciais, como o Cin-ema4D. O Cycles, um projeto original do programador Brecht Van Lommel, surgiu para renovar o render padro do Blender e desde sua origem mirava na possibilidade de processar clculos matemticos opcionalmente na CPU ou na GPU (via CUDA e, recentemente, OpenCL). O ganho significativo: uma mesma imagem gerada nor-malmente ao menos quatro vezes mais rapidamente na GPU que na tradicional CPU.

Filmes de animao produzidos pela Fundao Blender como Cosmos Laundromat3 (2015) e Caminandes 3: Lamigos4 (2016) demonstram cabalmente a qualidade do Blender Cycles e o emprego consolidado do processamento por GPU, que possibilitou a gerao de vrias sequncias nestes dois trabalhos.

2 Renderizador um software que produz atravs de inmeros clculos matemticos complexos uma imagem de CG.3 Disponvel em https://youtu.be/Y-rmzh0PI3c4 Disponvel em https://youtu.be/SkVqJ1SGeL0

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https://youtu.be/Y-rmzh0PI3chttps://youtu.be/SkVqJ1SGeL0

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Render em tempo real

Tecnologias como CUDA e OpenCL do acesso ao processamento das placas grfi-cas para a execuo de clculos matemticos e contribuem significativamente para aumentar o desempenho na gerao de imagens CG em modo tradicional off-line. Contudo, a verdadeira revoluo no horizonte das produes independentes de baixo oramento est na gerao de imagens em tempo real.

A etapa de render tradicional de um curta de animao 3D pode chegar a exigir se-manas de processamento dedicado, mesmo com o emprego das GPU de um par de desktops atuais. Em situao similar, com o emprego de tecnologias de videogames voltadas produo de imagens em tempo real, gerar as imagens finais de um curta de 10 minutos demandaria 10 minutos de render numa game engine. Efetivamente seria um pouco mais que isso, considerando-se os refinamentos desejveis, todavia o ganho comparado de produtividade e o barateamento de recursos implicado so astronmicos.

No estamos mais nos referindo s API OpenCL e CUDA, mas a API voltadas a gerao direta de imagens em tempo real, como OpenGL, DirectX e, mais recentemente, Me-tal e Vulkan. Em todos os casos, os artistas raramente lidam com essas plataformas de programao. Ou lidam com renderizadores como o Cycles do Blender ou com game engines e seus derivados.

No campo da arquitetura e da gerao de motion graphics, algumas solues j imple-mentam h alguns anos essas tecnologias como modo de produzir animaes com agilidade. O programa Lumion 3D , por exemplo, permite a visualizao de edificaes em animaes impactantes geradas em poucas horas atravs da plataforma Direc-tX. Por sua vez, o plugin Element 3D para Adobe After Effects permite a animao de vinhetas e efeitos especiais atravs da plataforma OpenGL. Estes e outros produtos tm oferecido incrementos de qualidade e funcionalidades cada verso, mas no so voltados para uma rea fundamental: a renderizao de animaes de personagens. Neste quesito, as game engines ainda oferecem a nica alternativa e nelas que os animadores comeam a buscar novas ferramentas para produo de seus trabalhos.

As grandes produtoras de videogames podem desenvolver seus aplicativos em engines proprietrias ou em variantes customizadas de engines comerciais, porm o univer-so dos realizadores independentes depende de sistemas genricos. Atualmente duas principais game engines competem pelo gigantesco e emergente mercado indepen-dente de produo de games: Unity e Unreal.

O Unreal, desenvolvido pela Epic, reconhecido de longa data pelo seu poder grfi-co. Sua verso comercial j chegou a custar mais de 1 milho de dlares, uma dcada

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atrs. Em paralelo, a Epic oferecia uma verso muito simplificada para uso no profis-sional, chamada UDK. O Unity, por sua vez, sempre teve custo mais acessvel e recur-sos mais modestos, alm de disponibilizar uma verso gratuita que at pouco tempo apresentava significativas limitaes.

Nos ltimos anos, ambas adotaram uma estratgia mais agressiva de penetrao no mercado. O Unreal migrou inicialmente para um modelo de assinatura mensal a US$ 19,00, mas em 2015 passou a ser disponibilizado gratuitamente, cobrando apenas um percentual para jogos comercializados a partir de certa margem de lucro. O Unity sen-tiu a presso dessa concorrncia e passou a minimizar as diferenas entre sua verso profissional e gratuita. Essas mudanas sinalizam duas percepes: (1) o dinheiro hoje est na produo em larga escala de games mais simples por pequenas produtoras e (2) ao serem fornecidas em verses gratuitas, as game engines passam a contar com um enorme nmero de usurios em rede que tensionam o desenvolvimento de ferra-mentas, revisando erros e contribuindo gratuitamente com cdigos de programao.

A possibilidade de gerao de animaes no interativas nessas engines surgiu da ne-cessidade de criar as famosas cut scenes dos games segmentos narrativos dos jogos que usualmente intercalam a passagem entre fases. Originalmente as cut scenes eram geradas em modo off-line em softwares externos como Maya e 3ds Max e exibidas como vdeos durante os jogos, evidenciando a diferena entre as imagens limitadas geradas em tempo real e aqueles momentos mais foto-realistas. Com o aumento da potencialidade grfica dos sistemas, as cut scenes passaram a ser geradas em tempo real na prpria game engine.

Nos ltimos anos, empregando tcnicas j consolidadas para gerao de cut scenes em games, essas game engines passaram a divulgar suas atualizaes de recursos e potencialidades atravs de vdeos curtas-metragem narrativos renderizados em tem-po real e exibidos em eventos e nas redes. Um exemplo o belo e impressionante A Boy and His Kite: An Animated Short5 (Unreal Engine, 2015), realizado para promover o lanamento do Unreal 4 em verso gratuita a partir da mensagem se voc ama algo, deixe-o seguir livre. Outro exemplo mais recente Adam6 (Unity, 2016), curta em que a Unity demonstra que em sua verso 5.4, recm lanada, comea a rivalizar com a Unreal em termos de capacidade foto-realista.

Em paralelo, alguns artistas comearam a empregar essas game engines para gerar visualizaes arquitetnicas foto-realistas, com uma qualidade visual antes s alcan-ada por renderizadores pesados e caros, como o VRay para 3ds Max. Nesse contexto, destaca-se internacionalmente a empresa brasileira sediada em Minhas Gerais UE4

5 Disponvel em https://youtu.be/0zjPiGVSnfI6 Disponvel em https://youtu.be/GXI0l3yqBrA

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https://youtu.be/0zjPiGVSnfIhttps://youtu.be/GXI0l3yqBrA

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Arch7, que ganhou reconhecimento internacional a partir do lanamento de estudos impactantes realizados em Unreal, como Brazilian Old Kitchen8, Church of So Fran-cisco de Assis9 e The Vineyard10.

Esse conjunto de eventos evidenciou o potencial inexplorado das engines e muitos usurios passaram a demandar nos fruns ferramentas e funcionalidades para faci-litar a gerao de filmes de animao nessas plataformas originalmente dedicadas criao de experincias interativas. A Epic saiu na frente e lanou em junho de 2016 a verso 4.12 no Unreal, contendo uma nova ferramenta chamada Sequencer. Ela per-mite o controle de cmeras animadas por planos filmados, alm de disponibilizar uma linha de tempo para edio de sequncias e posterior renderizao, similar ao que existe em sistemas de edio de vdeo, como o Adobe Premiere. A Unity, por sua vez, j anunciou o desenvolvimento de uma ferramenta similar, a ser disponibilizada em breve.

Dando continuidade a essa vertente, a Epic anunciou para na verso 4.13 do Unreal a importantssima compatibilidade com o formato Alembic, um tipo de arquivo que permite a exportao de cenas e animaes complexas entre programas, minimizan-do problemas de compatibilidade e o tempo de ajustes decorrente das diferenas en-tre padres. Com isso, um animador pode agora modelar e animar suas cenas no 3ds Max, Maya ou mesmo no Blender11, exportar tudo em Alembic para o Unreal e l gerar o vdeo de sua animao finalizada em tempo real.

um momento promissor. Estamos diante da emergncia de novos fluxos de trabalho e modos de finalizao de imagem que tornaro factvel a realizadores independen-tes a criao mais gil de filmes de animao cada vez mais complexos e baratos, em especial pela convergncia de computadores desktop voltados para games, ferramen-tas livres confiveis, como o Blender, e softwares gratuitos extremamente poderosos, como o Unreal.

7 Site: https://ue4arch.com/8 Disponvel em https://youtu.be/OubW2F7U3mg9 Disponvel em https://youtu.be/3qf-pNfS4Ao10 Disponvel em https://youtu.be/RO7VloAphl411 O Blender passa a incorporar o Alembic como formato de importao e exportao na sua verso 2.78.

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https://ue4arch.com/https://youtu.be/OubW2F7U3mghttps://youtu.be/3qf-pNfS4Aohttps://youtu.be/RO7VloAphl4

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Ao e CooperaoVida em rede e as alteraes de uma sociedade tecnolgica comprometida

Alene Lins1

[email protected]

Palavras-chave: Inteligncia Coletiva. Tecnologias Sociais. Era da Cooperao.

A tecnologia dita as regras j faz um tempo: nosso mundo est fundamentado em velocidade, em ubiquidade (estar ao mesmo tempo em diversos lugares), no temos mais fronteiras, o local e o global esto imbricados, trocamos e checamos informa-es e opinies de todo tipo, vindos de todos os lugares e, em muitas situaes, tudo isso nos leva a aes transformadoras efetivas.

Autores como o finlands Pekka Himanen ou o brasileiro Tiago Mattos, que escrevem sobre a era informacional, so enfticos: a soma de pequenas informaes e aes, est alterando a lgica capitalista. Este um ensaio que toma como ponto de partida obras desses dois autores, para falar do surgimento da Era da Cooperao.

H um nmero enorme de pessoas doando um pouco de si, em redes, sejam elas so-ciais, como Facebook, Instagram, Twitter, etc. (em que intelectuais, artistas, profissio-nais liberais (como mdicos, terapeutas, professores, etc), potencialmente formado-res de opinio, esto sendo amplamente seguidos e conseguem influenciar a muitos;

1 Alene Lins formada em Comunicao Social UFMS, Mestre em Desenvolvimento Regional UESC e Doutoranda Cincias da Comunicao UMinho (Portugal).

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e redes tcnicas e de tecnologias sociais, com ampla informao, acervos para um bem comum, a partir da inteligncia coletiva, que colocam em curso a maior das re-volues.

Antes, com apenas a mdia tradicional, parecia que havia uma parcela muito pequena da sociedade disposta a mudar o mundo. Hoje, pessoas bem intencionadas, doando tempo e experincia nas mais diversas reas, produzindo pequenos vdeos, escreven-do em blogs e ensinando o que sabem, esto fazendo a diferena. No importa se falam lnguas diversas, se tem culturas diferentes, tem sempre algum que traduz, que explica, que simplifica, amplificando o que j era bom. E dessa forma, atuando de maneira coletiva, essas pessoas alimentam um movimento mundial que visa melhorar a qualidade de vida no planeta.

Muitos destes doadores tem seus trabalhos formais e usam seus horrios alternativos para ensinarem coisas, mostrarem suas descobertas, mtodos mais eficientes, mais acessveis em vdeo-aulas, em receitas de como fazer algo de forma mais rpida, gas-tando menos, poupando mais recursos ambientais, ensinando novas pessoas a serem empreendedoras, a estudar em casa, a aprender uma nova lngua, a ter mais facilida-de em uma matria, como qumica ou fsica, por exemplo, ou ainda a perceberem que vivem em problemas que outros j encontraram a soluo. E tudo com acesso gratui-to. Com isso, estamos assistindo alteraes de comportamentos, fortalecimento de minorias, como as mulheres, os homossexuais, os negros, os gordos, etc. E mudanas esto se espalhando de forma mais rpida, e para melhor.

A maior parte dessas pessoas, que ensinam, explicam, opinam, fazem seus vdeos, que falam abertamente de problemas e provocam mudanas de comportamento de forma coletiva, no visa ganhar dinheiro com isso, mas muitas vezes, essas aes de ajudar o prximo do to certo, que esse pessoal passa a ter seguidores, e seus blogs, vlogs e pginas de redes virtuais comeam a gerar renda extra. Consequncia da boa informao e/ou do trabalho criativo, mas com certeza h uma nova lgica se afirman-do para o que chamamos de trabalho.

H mais de cem anos Max Weber (1864-1920) descreveu a noo de trabalho no es-prito capitalista. A obrigao de ter uma profisso, com horrios e regras determi-nadas e retorno financeiro que permita a sobrevivncia. O trabalho como vocao, fim absoluto em si mesmo. Na nova Era, esses trabalhos prazerosos tem uma outra lgica, ainda em anlise, mas sempre com outros interesses que no s o lucro ou a sobrevivncia.

Retomo aqui o autor Pekka Himanen, para enfatizar que esses novos comportamen-tos de cooperao, esto inseridos no que ele denominou de tica Hacker. Os tec-nlogos entusiastas (como os programadores, por exemplo), denominados Hackers,

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doam tempo e conhecimento, esto em todos os lugares do planeta onde h redes de computadores, falam lnguas diversas, tem culturas diferentes e j atuam h dcadas, sempre de maneira coletiva. Esses programadores criaram o movimento do software livre e um sistema operacional, o Linux, que disputa usurios com as mega-gigantes Microsoft e Apple. A ao conjunta de pessoas por uma causa, que trabalham em ho-rrios alternativos para que sistemas operacionais e programas sejam cada vez me-lhores e distribudos para mais pessoas, virou um exemplo muito concreto da Era da Cooperao.

Em VLEF, Vai L e Faz, Tiago Mattos fala desse universo como um anseio de quem nasceu no capitalismo selvagem e j no v lgica em um mundo to desigual.

A tica do trabalho, a tica do dinheiro e a tica da rede so diferentes e Himanen e Mattos acabam nos revelando que as alteraes comearam e h uma gerao inteira disposta a levar isso adiante.

A tica protestante e o esprito do capitalismo (com base na obra de Max Weber, es-crita em 1904) e a tica dos programadores com este esprito cooperativo de rede, na Era da Informao, esto sendo confrontadas. Viver para acumular no tem dado ao mundo as respostas existenciais mais importantes. Ao contrrio, tem levado guerra e s disputas.

Linus Torvalds, criador do Linux, d uma explicao muito lcida sobre as foras que contriburam para o xito do hackerismo. Com a Lei de Linus, Torvalds estabelece as trs categorias de motivaes que nos levam a um processo evolutivo na vida. Pela ordem, o autor nos apresenta a motivao da sobrevivncia, bsica a qualquer ser humano. Em seguida, a nossa vida social, que nos leva a querer ser aceitos, viver em

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sociedade e at, em um extremo dessa motivao, a morrer pela ptria. Por fim, a terceira motivao seria o entretenimento, definido como exerccio mental extrema-mente interessante e capaz de plantar desafios. Para ilustrar seus argumentos, ele exemplifica o extremo da terceira motivao: algum que pula de paraqueda e pe em risco a prpria vida (em contraposio motivao da sobrevivncia), est buscan-do um desafio para no morrer de tdio. Dinheiro, sexo, comida, guerra... para Torval-ds, tudo isso interfere na sobrevivncia, mas s se for s para manuteno do homem, mas na atualidade, no. Os processos sugestivos que desafiam o ser humano, e por isso esto classificado como entretenimento, tambm incluem esses assuntos: Ga-nhar mais dinheiro do que se possa gastar, fazer sexo sem necessidade de procriar, a gastronomia enquanto hobby ou a guerra enquanto conquista televisionada em nvel internacional, se transformaram em jogos. H uma boa parcela da humanidade ainda vivendo sob a ao desse tipo de divertimento. Pois a tecnologia tambm potencia-lizou essas questes. Mas h ainda o jogo do prazer de ensinar, de cooperar. Muitas vezes, sem esperar reconhecimento, apenas pelo prazer em ensinar algo.

Na Era da Cooperao, estamos vendo uma das motivaes mais antigas na transmis-so do conhecimento: a paixo. Himanen fala da paixo no processo de aprendizagem que envolvia Plato e seus discpulos, ou ainda com os artistas, artesos, que para no deixar morrer um ofcio, passavam a ensinar algum jovem, um aprendiz, para que este conhecimento no se perdesse. Ou ainda com os pesquisadores, nas Universida-des, que trabalham em redes de conhecimento desde sempre, passando o que sabem adiante, em seus artigos. No campo da aprendizagem, para o capitalismo, as boas ideias so propriedades de quem as teve, principalmente se geram dinheiro. Ento compartilhar informao, como bem poderoso e positivo no se explica. O modelo aberto de gerar conhecimento da comunidade cientfica j amplamente divulgado: historicamente um pesquisador sempre trabalhou partindo de um problema ou ob-jetivo no qual o indivduo tem interesse pessoal e um entusiasta, acha sua soluo particular e qualquer um poder utilizar, criticar e desenvolver esta soluo. Mais im-portante que qualquer resultado final a informao ou cadeia de argumentos subja-cente que produziu a soluo. As fontes sempre so citadas e a nova soluo no pode ser mantida em segredo e sim publicada novamente. E esse modelo sem ausncia de estruturas rgidas, que congrega paixo e trabalho em grupo, est na prtica hacker, que parte em busca da soluo de problemas e submete seus resultados a diversos testes. Assim tambm com quem coloca na rede suas solues e est sujeito a comen-trios ou que outro veja, copie e faa at melhor.

Aprender cada vez mais o objetivo desse universo. E saber que sua pequena contri-buio pode gerar transformaes, tambm.

Himanen cita autores que escreveram sobre o trabalho (principalmente autores liga-dos religio) e faz um contraponto entre o trabalho em rede colaborativa. O Hacker

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trabalha sem horrio fixo, sem a presso do patro exigindo resultados, sem visar o lucro ao final da tarefa. E mesmo sem essas presses, h disciplina, motivada pela paixo em obter resultados que o tornem reconhecido por seus pares. Para o autor, a lgica dessa tica est justamente em burlar o j conhecido comportamento vigente no capitalismo.

Se tempo dinheiro, perda de tempo se dedicar a um trabalho sem remunerao? A relao com o tempo dedicado ao trabalho, se limita obrigao de trabalhar em horrio pr-determinado em horas e dias, pois trabalho sacrifcio. Se na Era da Infor-mao, o tempo ganhou uma racionalizao ainda maior, pois a velocidade das ino-vaes tecnolgicas prope o imperativo da corrida contra o relgio, como explicar a dedicao de tempo de quem se prope a criar uma rede de Cooperao? Apenas o prazer e o trabalho em horrios alternativos explicam. A flexibilidade prope o traba-lho ldico, onde e quando quisermos, por isso possvel ser feliz em horrio comercial, e usarmos a madrugada para trabalhar, pois a rede no pra. Assim o agente da nova Era trabalha quando a criatividade o motiva.

Himanen analisa ainda a tica do dinheiro, como motivo e interferindo no processo de vida e aprendizagem do ser humano. Se dinheiro um fim em si mesmo e a lgica ca-pitalista dita o tempo (ritmo de trabalho), ento domingo atualmente dia de labuta, pois o consumo motivao. Diferente do ritmo de trabalho hacker, que concebe um domingo de trabalho, se na quinta ou sexta o tempo foi dedicado famlia. No capita-lismo o domingo de trabalho puramente para aumento dos lucros.

Por fim, nessa nova Era, h tambm uma netiqueta (boas maneiras observadas na comunicao na Rede) e sobre o esprito do informacionalismo. Segundo Himanen, quanto mais eletrnica se torna nossa era, mais deixamos vestgios ao navegar pela rede, fazer compras nas lojas, preencher cadastros em reparties ou ao responder questionrios em sites de pesquisa. Nossos dados esto a todo momento sendo anali-sados, construindo um perfil de usurio, que deixamos ao usarmos cartes de crdito, fazermos transaes bancrias, utilizarmos a internet e at mesmo o celular. Por isso os Hackers esto preocupados com a privacidade e com a proteo dos dados dos usurios da rede e prezam pela segurana no mundo virtual. A autoprogramao, o aumento do tempo dedicado Rede, a necessidade de manter-se atualizado com as inovaes crescentes, que teimam em nos deixar obsoletos com relao aos conheci-mentos gerados na nova tecnologia, nos faz dedicar cada vez mais horas ao trabalho. E esse o esprito do informacionalismo.

No informacionalismo, h o resgate de virtudes do desenvolvimento pessoal, no sen-tido de racionalizar o tempo e o esforo gastos nas atividades, j que h informaes demais, preciso filtrar, selecionar e tomar as melhores decises. Por isso preciso ter determinao, tranquilidade, otimizar os processos _ ser efetivo no agora; ser flexvel

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_disposto a mudar conforme as necessidades; ter estabilidade, manter a constncia na busca do objetivo; ter dedicao; ter conscincia do valor do dinheiro necessrio para realizar desejos; contabilizar resultados. E so essas virtudes que transformam a rotina nesses novos tempos: a rotina dos processos nos negcios est em alterao, as linhas de produo desnecessrias so eliminadas, as lentas so remodeladas de tal forma a serem efetivamente produtivas, afinal a automao elimina tempo perdido. E todo esse sistema passa a ser metfora para explicar a tica que rege o informacio-nalismo. Com esta tica virtual em voga, o autor percebe dificuldades na aplicao da tica real. A lgica da velocidade, que tanto impera no informacionalismo, talvez a pior barreira para que a tica real acontea. Como se, em busca pela otimizao, auto-mao, e tudo o mais que rege esta era que vivenciamos, a tica fosse algo parte. E exatamente isso que preocupa o autor, que v na tica Hacker um caminho diferente de comportamento na Rede.

Por isso Himanen prope sete valores nessa nova Era: paixo (entusiasmo que move a aprendizagem); liberdade (com compartilhamento de conhecimento; com o tempo, que nos livre da rotina e da jornada de trabalho e nos deixe livres para trabalhar como e quando quisermos); valor social e abertura (que possibilite receber reconhecimento ao compartilhar conhecimento, tornando-o comum a todos); atividade (que envolve a liberdade de expresso em ao e privacidade para proteger seu estilo individual de levar a vida e desprezo frente passividade): e o cuidar social, (se preocupar com o fu-turo da sociedade virtual de tal forma que oportunize a todos uma garantia de acesso). Esses valores juntos, levam ao ltimo estgio, para que utilizemos nossas habilidades, dando ao mundo contribuies valiosas, fortalecendo a ideia de que a informao um bem comum, servio de uma sociedade conectada, em ao e cooperao.

Referncias

HIMANEN, Pekka. A tica dos Hackers e o esprito da Era da Informao. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2001.MATTOS, Tiago. VLEF _ Vai l e Faz. Disponvel em http://www.vlef.me/ Acessado em 05 de julho de 2016.

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http://www.vlef.me

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Coisas1

Andr Lemos 2

[email protected]

And things, what is the correct attitude to adopt toward things? Samuel Beckett

Palavras-chave: Coisas. Internet das Coisas. Internet.

Introduo

O campo de maior desenvolvimento e tenso hoje na cultura digital o que se vem chamando de Internet das Coisas (IoT para Internet of Things) e o correlato poder de ao preditiva dos algoritmos com o Big Data. A internet est se expandindo agora para objetos que no so objetos essencialmente digitais, ou como prefere Greengard (2015), digital first, como os computadores ou um e-reader. O que estamos assistindo

1 Esse artigo foi adaptado de um publicado no Caderno de Sbado, do jornal Correio do Povo. Por-to Alegre, 26 de maro de 2016.2 Andr Lemos (http://andrelemos.info) Professor Titular da Faculdade de Comunicao da UFBA e Pesquisador 1 A do CNPq. engenheiro (1984), Mestre em Poltica de Cincia e Tecnologia pela CO-PPE/UFRJ (1991) e Doutor em Sociologia pela Universit Ren Descartes, Paris V, Sorbonne (1995). Foi Visiting Scholar nas Universidades McGill e Aberta (Canad, 2007-2008) e na National Universi-ty of Ireland (Irlanda, 2015-2016). diretor do Lab404 - Laboratrio de Pesquisa em Mdia Digital, Redes e Espao (http://lab4040.ufba.br). Seu ltimo livro A Comunicao das Coisas. Cibercultura e Teoria Ator-Rede (Annablume, 2013).

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a expanso da conectividade para objetos physical first, como carros, pulseiras, gela-deiras, cadeiras, garrafas, escovas de dentes, relgios Com a IoT, os objetos ganham agora uma nova sensibilidade, que venho chamando de sensibilidade performativa (LEMOS, 2016; BITENCOURT e LEMOS, 2016b), a partir de sensores a atuadores que produzem ao pela agncia de algoritmos em outros objetos, incluindo a os huma-nos. Nesse ensaio, busco discutir o que so as coisas nessa internet das coisas e na internet como conhecemos. O objetivo entender mais sobre os objetos, politiz-los, reconhecendo suas agncias e apontando para as principais questes hoje da ciber-cultura: vigilncia, invaso de privacidade e o controle algortmico da vida social

As Coisas e Ns

Vivemos cercados por coisas, mas as compreendemos muito mal. A cultura digital nos colocou em meio a uma desmaterializao na qual livros viram Kindle; vinis, mp3; lo-jas, Amazon; bibliotecas, Google. Ao mesmo tempo, livros, vinis, lojas e bibliotecas persistem. Tudo est ancorado em suportes materiais. Nesse jogo de virtualizao e desvelamento, as coisas podem perder sentido e, o que mais grave, agir sobre outras coisas e sobre ns mesmos sem que tenhamos conscincia. Qual a atitude correta a adotar perante as coisas, pergunta Beckett?

Uma primeira atitude entend-las como constitutivas do sujeito. Elas do sentido ao homem no mundo. Em Ser e Tempo, Heidegger destaca que a nossa relao com elas pode ser entendida de duas formas: Zuhanden, coisas mo, que usamos e sen-timos; e Vorhanden, coisas presentes mo, que lidamos de forma abstrata. Como afirma Christ (2015), por Zuhandenheit e Vorhandenheit que Dasein est no mundo. Portanto, no d para separar sujeito e objeto3. Michel Serres (1980) prefere cham--los de quase-sujeitos e quase-objetos.

Uma segunda atitude compreender que uma coisa sempre uma srie de outras coisas. Elas so mnadas, ao mesmo tempo unidade e rede, estabilizadas em agencia-mentos temporariamente estveis. Se desmontarmos os objetos nossa volta, vamos identificar invenes, leis fsicas ou qumicas realizadas ou descobertas h sculos; design, processos ou materiais de diferentes pases; leis de regulamentao e diretri-zes de uso especficas (e isso em uma caneta Bic, na roupa que estamos usando, ou no mais recente computador ou smartphone). Coisas existem em relao, so dispositi-vos conectando aspectos materiais, discursivos, jurdicos, institucionais, organizacio-nais, arquitetnicos (FOUCAULT, 1994).

Uma terceira atitude reconhecer a sua agncia. Longe de serem passivas, as coisas nos colocam em meio a dilemas ticos e/ou morais. Na atual cultura de hiperprodu-

3 No diferencio, como Harman (2011), coisa e objeto.

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o de objetos reais e virtuais, eles explodem em mltiplos formatos e performan-ces, transformando-se, mais do que nunca, em potentes mediadores (KNOR-CETINA, 2001). As coisas, fora, da ou na internet, bem como a internet enquanto coisa, agem, fazem fazer, nos interpelam. Portanto, devemos enfrentar duas questes (BENNETT, 2010): Como levar a srio os objetos, longe da ideia de que eles so passivos, reagindo s ordens de um sujeito autnomo? Como as solues polticas mudam, quando leva-mos a srio a vitalidade e a agncia dos objetos?

Adotando essas trs atitudes, podemos nos perguntar agora sobre as coisas da inter-net, na internet e a prpria internet enquanto coisa.

Coisas da Internet

As coisas da internet so no-coisas, informao em forma de dados, processados por algoritmos, materializados em servios e interfaces miditicas. Elas comeam a apa-recer nos anos 1970, mas s ganham visibilidade mundial a partir dos anos 1990 com a web. Desde ento, alteraram as formas de comunicao da cultura de massa, criando produtos e/ou servios, como os chats (troca de mensagens escritas a distncia como um dilogo em tempo real), ou reconfigurando os existentes, como o email e as anti-gas formas de correspondncia escritas. Criamos, consumimos e distribumos coisas digitais o tempo todo, pois nossa vida est a elas integrada nas mais simples tarefa diria, como usar o carto de crdito ou o celular.

praticamente impossvel viver sem criar mais coisas digitais. Elas transformam a cul-tura, ampliam as formas de comunicao humana, liberando a emisso, a conexo e o consumo planetrio de informao. Elas perturbam a estabilidade das mdias e da cultura de massa, alteram hbitos, comportamentos, regras de convvio e negcios dentro e fora da rede. A atual expanso das coisas da internet planetria. o que chamamos de cibercultura. Mesmo os que resistem, sofrem com a exigncia da co-nexo. Todas as aes das coisas da internet afetam as coisas fora dela, produzindo

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uma rede hbrida global, com grandes consequncias sociais, culturais, educacionais e econmicas.

Elas produzem (e so) valor, em uma economia cada vez mais dependente de dados e informaes. O Big Data (extraindo das coisas da internet informao para vender servios, monitorar comportamentos, vislumbrar negcios ou criar outras coisas na internet), e a Internet das Coisas (IoT) (mercado de trilhes de dlares voltado para co-nexo de coisas fora da internet s coisas da internet) so duas das mais importantes reas de crescimento da economia digital. As empresas de maior valor (agora e nos prximos anos) sero as que produzirem coisas na internet, extrarem e processarem dados das coisas da e na internet, e oferecerem coisas para acessar ou produzir mais coisas da e na internet. Hoje, junto s coisas da internet temos mais e mais coisas na internet.

Coisas na Internet

As coisas na internet, ou a internet das coisas (IoT), a expresso da moda para de-finir protocolos de comunicao que fazem com que objetos reais e virtuais se conec-tem globalmente atravs de redes digitais, traduzindo, mediando e delegando ao para outras coisas (incluindo os humanos). A entidade europeia CERP (2009, p.6) a define como protocolos padro e interoperveis de comunicao onde coisas fsicas e virtuais tm identidades, atributos fsicos e personalidades virtuais. Sabemos que no h uma internet das coisas ou das pessoas, j que ela uma rede sociotcnica (h-brida). A expresso apenas a forma de identificar uma nova ecologia de objetos com capacidades infocomunicacionais autnomas. Estamos em meio a uma revoluo que vai produzir objetos mais performticos, com grande capacidade de agncia infoco-municacional. Alguns estudos projetam mais de 75 bilhes de objetos conectados internet at 2020.

De forma integrada, as coisas na internet vo envolver-se no que Karimova e Shi-rkhanbeik (2015) chamam de comunidade de coisas, reunio de objetos inteligen-tes tomando decises relacionadas ao contexto, sentindo e comunicando eventos de grande complexidade a outros objetos. Com um self, pois sabero diferenciar-se de outros, elas, em comunidade, vo gerar, estocar e distribuir informaes com grande poder de agncia em todas as reas da vida social. Imaginem a comunidade de coisas inteligentes em sua casa, no seu trabalho, ou no seu carro, agindo em um fundo, sem que voc tenha realmente a percepo clara dos processos. Isso, pelo menos, at que aes especficas atinjam voc: a seguradora cria formas de bloqueio da casa automa-ticamente, multas chegam a partir da comunicao independente entre seu carro e o sistema de monitoramento de trnsito, ou voc demitido por perda de produtivida-de a partir de dados de conexo durante seu dia de trabalho. Torna-se, portanto, ur-gente adotar atitudes corretas (Beckett) e pensar politicamente (Bennett) sobre esses

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novos seres dentro das redes de comunicao (KARIMOVA, SHIRKHANBEIK, 2015, p. 2).

Nessa nova comunicao das coisas (LEMOS, 2013), objetos sabem o que so, sen-tem, falam e agem sobre outros em uma rede de alcance planetrio. Uma xcara in-teligente, por exemplo, no mais apenas um recipiente para lquidos, embora suas qualidades sensveis sejam as mesmas (parece uma xcara comum). Com novas capa-cidades infocomunicacionais, ela passa a ter uma outra qualidade real (HARMAN, 2011), tornando-se uma mdia, uma entidade que comunica e tem conscincia do seu estado e ambiente. Ela pode colher dados sobre os seus hbitos de consumo, falar com a sua chaleira (colocando-a para esquentar mais gua), e enviar informaes ao seu mdico (ou sua seguradora), informando o seu consumo de cafena. Associada ao seu relgio, tnis ou chave inteligentes, essa comunidade de coisas pode passar um quadro informacional completo dos seus hbitos de consumo, deslocamento ou sono. Esse o promissor, e j em expanso, mercado dos wearables e dos smart objetos4 (casa, carro, geladeira, fechadura, pulseira, relgio, tnis, cinto, balana, termostato, lmpada...).

Reconhecendo essa agncia informacional das coisas na internet, podemos pensar e agir politicamente em relao a questes urgentes como: coleta pessoal de dados, invaso de privacidade, sistemas de segurana e criptografia nas transaes eletr-nicas, garantia de liberdades e autonomia do sujeito, vigilncia, monitoramento e controle O perigo no reconhecermos ou valorizarmos essa agncia, como no reconhecemos ou valorizamos a agncia dos objetos no informacionais no nosso dia--a-dia. Ainda mais agora, com essas coisas fofoqueiras falando sobre ns, colhendo informaes sem que saibamos, ameaando nossa privacidade e dirigindo nossa ao sobre o mundo. Com a IoT, a internet cresce enquanto coisa.

A Coisa Internet

A internet uma rede de redes. Uma definio simples seria dizer que ela uma rede digital que coloca mquinas em conexo a partir de protocolos especficos. Essas m-quinas podem ser coisas digitais como um website, objetos, como telefones celulares, ou coisas comuns, agora, como uma xcara ou um relgio. Vimos que no h mais domnios sem sua influncia. As coisas fora da rede, da rede e na rede esto cada vez mais interligadas. Ela uma megamquina de conexo, multidimensional, sem fim, sem limite. H objetos conectados internet no espao sideral.

Como coisa, a internet nos interpela. Ela redefine constantemente a cultura e talvez seja hoje a mais importante rede sociotcnica do planeta. E como rede, ela apenas

4 Para exemplos, ver http://seniorgadgetsandgizmos.com/the-internet-of-things-for-2016.

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http://seniorgadgetsandgizmos.com/the-internet-of-things-for-2016

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potncia, j que virtualmente coloca tudo em relao a tudo. Consequentemente, te-mos que interrog-la a partir do olhar sobre as associaes produzidas, por uma viso mope, nos detalhes. por isso que crticas ou elogios panpticos no funcionam. A internet como coisa no faz sentido enquanto totalidade, j que se define por affor-dances ampliadas e abertas. Como coisa, a internet uma entidade real, material e ao mesmo tempo, abstrata e utpica. Ela assim como um Deus que tudo pode interligar e reunir.

A coisa internet requisita do mundo que ele se realize por suas performances, suas for-mas de comunicao, suas maneiras de criar e de mediar as relaes entre entes que se definem pelas suas conexes. Ela se constri a cada instante, em processo, pelo jogo das associaes. Por exemplo, manter a sua neutralidade (isonomia no trfe-go de dados pelas suas coisas) uma forma especfica de pensar suas associaes. Garanti-la um jogo poltico. assim importante valorizar as conexes e coloc-las como parte integrante dos nossos dilemas, inclusive sobre a sustentabilidade do pla-neta. Essa valorizao no passa por vnculos de substncias, ou essncias, mas por associaes concretas e temporrias que devem ser feitas e refeitas a todo momento.

Ns e as Coisas

A partir das trs atitudes propostas aqui para lidar com as coisas (reconhecimento de sua agncia e no passividade; sua qualidade enquanto dispositivo, ao mesmo tempo unidade e rede; e de sua constituio hbrida com o sujeito), podemos nos colocar em causa e pens-las como problema. Adotar essas atitudes importante, pois estamos em meio a um rpido e extenso movimento de ao das coisas fora, da e na internet.

Aceitando a primeira, entendemos que as coisas nos fazem fazer coisas e nos jogam em questes ticas e morais. Adotando a segunda, compreendemos que as coisas no se definem por substncias imutveis, mais por associaes. Cada coisa um conjunto de outras coisas estabilizado. E com a terceira atitude, aceitamos que coisas, objetos, mdias e tecnologias no so extenso do homem. Elas nos constituem. Kittler (1999) estava correto e McLuhan (1964) errado. Somos Homo Fabricatus e no Homo Faber (LATOUR, 2012).

Com essas trs atitudes em relao s coisas fora, da e na internet podemos agir po-liticamente, no de forma crtica a apontar essncias, mas com olhos presos s asso-ciaes. As solues no se do a priori, mas no reconhecimento de que nas associa-es que elas se apresentaro. A definio de que seriam boas associaes sempre controversa e a nica garantia de xito politiz-las. Dado que tudo est interligado, resta ainda achar a ao poltica que garanta formas de associao (a sociedade, por-tanto) sustentveis. E se questo de poltica, questo de circulao da palavra, de abertura para o dissenso na busca por consensos e estabilizaes. No podemos en-

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to, no falar sobre as coisas. A questo maior hoje como achar, politicamente, boas associaes entre todas as coisas que garantam a nossa existncia e a das coisas que no so nossas e que, por isso, no temos o direito de extermin-las.

Referncias

BECKETT, S (1994). Three Novels Molloy, Malone Dies, The Unnamable. New York: Grove Press.BENNETT, J (2010). The Vibrant Matter. A Political ecology of Things. Durham, London: Duke University PressBITENCOURT, E,, LEMOS, A. (2016). I feel my wrist buzz. SmartBody and Performative Sensibility in FitBit Devices, no prelo.CERP (2009). IoT - Internet of Things European Research Cluster. Internet of Things: Strategic Research Roadmap. http://www.internet-of-things-research.eu/pdf/IoT_Cluster_Strategic_Research_Agenda_2009.pdfCHRIST, O (2015). Martin Heideggers Notions of World and Technology in the Internet of Things age. Asian Journal of Computer and Information Systems (ISSN: 2321 5658). Volume 03, Issue 02, April.FOUCAULT. M (1994). Dits et crits, Paris: Gallimard.HARMAN, G (2011). The Quadruple Object. Winchester, UK, Washington, USA: Zero Books.GREENGARD, Samuel. The Internet of Things. Cambridge: MIT Press, 2015 KARIMOVA & SHIRKHANBEIK (2015). Society of things: An alternative vision of Internet of things. Cogent Social Sciences, 1: 1115654. http://dx.doi.org/10.1080/23311886.2015.1115654KITTLER, F (1999). Gramophone, Film, Typewriter. Stanford: Stanford University Press.KNORR-CETINA, K (2001). Postsocial Relations: Theorizing Sociality in a Postsocial Environment. In Ritzer, G., Smart, B., Handbook of Social Theory. London: Sage.LATOUR, B (2012). Enquete sur les Modes dexistence. Paris: La Dcouverte.LEMOS, A (2013). A Comunicao das Coisas. Teoria Ator-Rede e Cibercultura. So Paulo: Annablume.LEMOS, A. Sensibilits Performatives. Les nouvelles sensibilits des objets dans les mtropoles contemporaines. In Revue Socits, no prelo, 2016.McLUHAN, H. M (1964). Understanding Media: The Extensions of Man. New York: The New American Library.SERRES, M (1980). Le Parasite. Paris: Editions Grasset & Fasquelle.

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http://www.internet-of-things-research.eu/pdf/IoT_Cluster_Strategic_Research_Agenda_2009.pdfhttp://www.internet-of-things-research.eu/pdf/IoT_Cluster_Strategic_Research_Agenda_2009.pdfhttp://dx.doi.org/10.1080/23311886.2015.1115654http://dx.doi.org/10.1080/23311886.2015.1115654

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Arquitetura de um Learning Center

Carolina Fialho1

[email protected]

Palavras-chave: Arquitetura Contempornea. Tecnologia Digital. Inovao.

Rolex Learning Center. Fonte: arquivo da autora.

O presente relato fruto de minha pesquisa de doutorado, atualmente em curso, cen-trada nas emergncias da cultura digital sobre a produo da arquitetura a partir dos anos 1990. O objetivo consiste em destacar a experincia como usuria do edifcio Rolex Learning Center, situado no campus da cole Polytechnique Fdrale de Lau-sanne (EPFL), na Sua, ao longo de minha estadia, de julho de 2015 a junho de 2016, como bolsista de estgio doutoral na modalidade sanduche, financiado pela CAPES2. As idas ao Rolex Learning Center aconteceram com frequncia, no intuito de fazer pesquisa bibliogrfica, o que diferencia a minha vivncia de uma simples visita a um exemplar importante da arquitetura contempornea. O edifcio, aberto ao pblico em 2010, atualmente o ponto de encontro do campus, o seu lugar de identidade, aces-svel a todos os cidados. O programa arquitetnico constitui-se de biblioteca, salas de reunio, restaurante, caf-bar, agncia bancria, livraria, auditrio e outros espa-os polivalentes que podem ser adaptados para diversas funes, como, por exemplo, montagem de exposies. A minha compreenso inicial era de estar frequentando a

1 Carolina Fialho Silva professora do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Recnca-vo da Bahia UFRB. Currculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/86421604255694002 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - CAPES Brasil.

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http://lattes.cnpq.br/8642160425569400

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biblioteca principal da EPFL, mas rapidamente percebi que ali se apresentava um ou-tro tipo de espao - um edifcio que rene as pessoas que habitam a regio para as mais variadas atividades: tomar um caf, participar de uma reunio de negcios, con-sultar livros e revistas especializadas, estudar, assistir a uma conferncia.

A EPFL adotou como estratgia o que outras universidades vm praticando nos lti-mos anos: a contratao de escritrios de arquitetura mundialmente reconhecidos, aqueles que fazem parte do chamado star system da arquitetura, para desenvolver projetos de edifcios para os seus campi. No caso do Rolex Learning Center, foi rea-lizado um concurso, do qual saiu vencedor o escritrio SANAA, sediado em Tquio, liderado pelos arquitetos Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa. importante ressaltar que para participar do concurso foram convidados doze escritrios de arquitetura, entre eles cinco j laureados com o Prmio Pritzker, principal reconhecimento internacional no mbito da arquitetura. Fez parte tambm da estratgia estabelecer um programa flexvel e aberto, que incorpora diversos usos em um mesmo espao, nos moldes do que vem sendo desenvolvido, de forma geral, em museus, salas de concerto e outros equipamentos comunitrios. Alm do edifcio projetado pelo SANAA, a EPFL tem em seu campus um edifcio que abriga laboratrios de pesquisa da rea de mecnica, con-cludo em 2015, projetado pelo arquiteto francs Dominique Perrault e inaugurar em breve um centro dedicado a cincia, arte e sociedade concebido pelo arquiteto japo-ns Kengo Kuma.

A histria da EPFL comea em 1853 com a fundao da cole Spciale de Lausanne, mas apenas em 1978, j como instituto federal denominado cole Polytechnique F-drale de Lausanne, se instala no terreno em cublens, nos arredores de Lausanne, onde est implantado o seu campus atualmente. Os edifcios foram construdos de forma descentralizada, sem que se estabelecesse um equipamento principal ou um esquema de orientao claro. O Rolex Learning Center cumpre o papel de atuar como um ponto de referncia no espao do campus, o ponto inicial de um novo plano, dimi-nuindo o estado fragmentrio da sua organizao fsica. E escolhe-se faz-lo atravs da implantao de um cone arquitetnico que claramente simboliza uma nova era. O edifcio no foi implantado sobre um stio industrial em desuso, o que se costuma chamar de vazio industrial, como tem sido muito comum, mas estabelece uma clara relao de contraste com os outros edifcios do campus construdos at ento. Sente--se, ao caminhar pelos edifcios mais antigos, um certo ar de fbrica, absolutamente funcional e eficiente, mas de uma aridez que nos faz lembrar que a EPFL nos seus pri-mrdios fruto da era da indstria.

Sejima, em palestra realizada no dia 1 de outubro de 2015, no auditrio do prprio edifcio, exps o processo de concepo do projeto, ou o que no jargo da arquitetura se costuma denominar a busca do partido. Ela e sua equipe utilizaram, de forma li-vre, materiais simples para realizar as maquetes de estudo, como esponja, plstico ou

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isopor e propuseram variadas formas at chegar ao partido ideal: duas cascas com-postas de piso e cobertura, em um formato extensamente horizontalizado, um imen-so retngulo em projeo, perfurado por elipses que formam ptios espalhados pela estrutura. Interessante observar que a arquiteta afirmou, na sua apresentao, que o processo de concepo adotado pelo escritrio no deveria ser considerado high-tech, ou seja, um partido concebido sem o auxlio de tecnologias avanadas, menos ainda de computadores. Entretanto no haveria como construir o partido selecionado sem a utilizao da informtica, posto que a forma escolhida demandava clculos avan-ados, definidos com segurana por testes e modelos digitais, alm de uma soluo construtiva inovadora.

Uma vez definido o partido e vencido o concurso, a equipe de arquitetura comeou a trabalhar com diversos especialistas, notadamente os engenheiros que criaram a soluo tcnica para que o edifcio pudesse vir a ser construdo. Nesse aspecto, a ar-quitetura do Rolex Learning Center se distancia do que propugnavam os arquitetos racionalistas e funcionalistas: a verdade estrutural, um dogma modernista. A soluo adotada para o Rolex Learning Center no transparece na forma da edificao, uma vez que a sustentao da laje inferior foi resolvida atravs da insero de arcos seg-mentares escondidos na prpria laje. Esse carter aproxima a estrutura do edifcio das solues encontradas para tornar passvel de ser construda boa parte dos edifcios contemporneos de formas geomtricas complexas. Ao contrrio da clareza estrutu-ral, foi necessrio adotar uma soluo adaptada. Pode-se mesmo afirmar que se trata de uma proeza da engenharia com o fim de garantir o design proposto para o edifcio e as escolhas espaciais dos arquitetos, a exemplo da manuteno das vistas para o lago Lman e para os alpes franceses. Trata-se de uma das caractersticas marcantes da arquitetura assinada por parte de escritrios de arquitetura que disputam os gran-des projetos: se os engenheiros conseguem criar solues para a construo e se h recurso financeiro suficiente, torna-se possvel construir formas que se apresentam para muito alm de uma geometria regular. Parte dessa produo vem sendo denomi-nada pela expresso arquitetura digital, uma vez que necessita de clculos avanados realizados por computadores, ou seja, no possvel desenh-la e calcul-la apenas na mo.

Sem entrar no mrito moral de tais empreitadas construtivas, venho relatar a minha experincia como usuria da biblioteca situada nesse edifcio de forma complexa, que j nasceu icnico, o que faz dele um ponto de visitao e de estudos para aqueles que se interessam pela produo de arquitetura contempornea. Aqui tratarei em termos arquitetnicos e espaciais sobre a vivncia de um espao que supera em qualidade a mdia do que se vive normalmente no cotidiano. De incio convm observar a relao entre forma, qualidade espacial e experincia de uso: clara a satisfao das pessoas que circulam e utilizam o edifcio. Ao longo de um ano, nunca encontrei o edifcio va-zio, pelo contrrio, as mesas disponveis para estudo estavam regularmente no limite

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da ocupao, o caf bastante frequentado, ou seja, h vida naquele espao. Isso sig-nifica que a busca pela criao de um espao orgnico, multifuncional, de uso flexvel deu certo. E certamente a arquitetura tem o mrito desse sucesso.

Rolex Learning Center. Fonte: arquivo da autora.

O edifcio se mescla paisagem externa em razo da sua extenso horizontal e re-cria internamente a paisagem ao incorporar rampas, nem to suaves, no seu interior. Nesse ponto impossvel no lembrar do que se sente ao caminhar pelo pavimento trreo do Edifcio Copan, na cidade de So Paulo, projeto de Oscar Niemeyer, onde foi mantida a topografia do terreno em suaves inclinaes. Praticamente no h escadas no Rolex Learning Center, o que contribui para a citada sensao de continuidade, de fluidez. Em vez do uso de paredes, a maior parte dos espaos internos est delimitada pelas diferentes alturas definidas pelas rampas. O que permite, por exemplo, estar na biblioteca e ter a sensao de que o restaurante ou o caf fazem parte do mesmo espao, ainda que um no prejudique a utilizao do outro. Aliados s rampas, os pai-nis de vidros que formam as esquadrias por todo o edifcio permitem que se veja o exterior de vrios ngulos e alturas. H detalhes negativos: no auditrio, colunas de ao, mesmo sendo esbeltas, se situam na frente da plateia; o carpete cinza, elemento presente em todo o piso, mas alheio proposta arquitetnica, tambm no favorece a esttica do prprio edifcio, o que foi ressaltado por Sejima no final da sua apresen-tao.

Entretanto o que h de especial nessa experincia, alm do fato de se estar em um edi-fcio de excepcional qualidade arquitetnica? H outros tantos tambm de altssima qualidade no quesito arquitetnico, construdos nas mais diversas pocas. Como re-flexo, pude considerar que a experincia recaiu justamente sobre aquilo que novo, prprio de uma arquitetura que tem sido possibilitada por tecnologias disponveis atu-almente, sobretudo as digitais. Formas e espaos que constituem o Rolex Learning

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Center respondem s demandas contemporneas, no h precedentes histricos, es-to na fronteira da inovao. Em termos espaciais, o edifcio proporciona uma expe-rincia nica por responder a um programa flexvel e integrao dos variados usos, ou seja, corresponde aos tempos atuais em soluo arquitetnica, considerando-se os quesitos funcionais, estticos e tecnolgicos. Ali no se repete um sistema estrutural j testado e reconhecido, no se reproduz uma organizao espacial qual j estamos habituados. Ali se oferece uma nova experincia arquitetnica. O interessante no que se relaciona arquitetura quando se arrisca a criar um equipamento inovador reside no fato de ter como resultado a modificao de concepes arraigadas que se tem sobre determinados espaos. O Rolex Learning Center, mais do que uma biblioteca, acima de tudo um lugar do encontro e do saber, que oferece a possibilidade de adap-tar e transformar parte de suas funes ao sabor das necessidades dos seus usurios.

A despeito do custo, propor uma arquitetura inovadora, formalmente e espacialmen-te rebuscada pode melhorar a experincia de uso, o que beneficia as relaes inter-sociais e o simples prazer de estar em um espao que a todo tempo sinaliza sobre a sua altssima qualidade. Aliado contemporaneidade do edifcio, h uma potica, um fazer prprio dos arquitetos do SANAA que os coloca em um outro patamar de produo arquitetnica quando a arquitetura tambm se traduz em arte. Em algum momento o Rolex Learning Center deixar de ser contemporneo, mas muito prov-vel que, enquanto existir, continue a proporcionar uma excepcional vivncia espacial e esttica.

Referncias

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http://information.epfl.ch/historiquehttp://information.epfl.ch/historique

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Hiperpalco?Anotaes sobre espetculos streaming em ambientes hipermiditicos

Cludio Manoel Duarte de Souza1

[email protected]

Palavras-chave: Espetculo Contemporneo. Palco. Hipermidialidade.

FSOL em performance remota.

Ao pensarmos sobre o que seria um espetculo em ambientes telemticos, motiva--nos buscar conceitos/categorias que remeteriam ao espetculo como estrutura fixa, j postulada, para, a partir da, alinhar, se possvel, verossimilhanas e/ou tenses na experincia do espetculo no ciberespao2. Ou, por outro lado, questionar se essa ex-

1 Cludio Manoel Duarte de Souza bacharel em Jornalismo pela UFAL e Mestre em Comunicao e Cultura Contempornea pela UFBA, na Linha de Pesquisa em Cibercultura. professor na Universi-dade Federal do Recncavo da Bahia (UFRB) e lder do Grupo de Estudos e Prticas Laboratoriais em Plataformas e Softwares Livres e Multimeios - LinkLivre (CNPQ/UFRB). Fundador (1998) e produ-tor cultural do Pragatecno (coletivo de djs). Foi professor convidado na Universidade de Bayreuth (Alemanha), no Instituto de Estudos Africanos. doutorando no Poscult/UFBA (Linha de Pesquisa Cultura e Arte).2 Eu defino o ciberespao como o espao de comunicao aberto pela interconexo mundial dos computadores e das memrias dos computadores. LVY, P. em Cibercultura, So Paulo: Ed.34, 1999. Embora o ciberespao esteja associado a essa ideia de espao de comunicao, hoje uma no-

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perincia em ambientes de redes digitais poderia ser mesmo categorizada como es-petculo.

1 Das implicaes

Temos duas: 1 - Refletir sobre a ideia de que essa atividade (ou produto) - o espetculo - uma estrutura, uma invariante, portanto aplicvel a novas espacialidades, reve-lando-se como modelo; ou pens-la como variante, que sofre impacto ou impacta, frente a uma nova espacialidade. Nesse encontro da experincia/estrutura geolocali-zada com o ciberespao, aponta-se uma nova borda, que iria tensionar, rasurar, expor os limites das caractersticas do local quando pensamos num espetculo hiperlocal? 2 - O palco - o local onde se d a cena - pode ser previamente conformado para tal (palco italiano, por exemplo) - ou poder ser um local instalado circunstacialmente, e at improvisadamente, por imposio/situao do factual (carnaval/folguedo/cena religiosa, crime). Esses exemplos seriam estruturas? Como funcionam? Poderamos mapear suas diferentes caractersticas? O local do espetculo no ciberespao seria um hiperpalco, uma (nova) estrutura surgida das rasuras e das bordas dos palcos locais? Se espetculo e palco so terminologias a serem pensadas, como estruturas, nesse deslocamento geolocalizado para os ambientes de redes digitais, quais ento suas similitudes, suas diferenas, num contexto de (re)configurao? A ideia no seria re-jeitar essas noes (?) (palco, espetculo) no deslocamento para o ciberespao, mas buscar refletir sobre esse deslocamento, entendendo a provocao trazida por um pensamento como descontruo que no nega o que se construiu, mas se junta ao construdo (e (a)creditado) como estrutura fixa, para exibir a diferena, e apresentar outra perspectiva.

2 O sentido-rei

O termo espetacular uma atribuio corriqueira para vrios eventos. Diz respeito a algo extra, que nos chama a ateno no cotidiano. Est alm da arte. Ao vasculharmos a origem semntica do termo espetculo (spetaculum), podemos recuper-lo como aquilo que atrai e prende o olhar e a ateno, parecendo reforar a ideia de sua apli-cabilidade aberta e vasta; e no s artstica. Essa terminologia elege o olhar e a aten-o como pilares primrios que eleva a imagem (visualidade) como o elemento espe-tacular para algum que presencia a experincia. o sentido-rei de Requena sobre o qual o sujeito se instala como o espectador. O olhar parece ser o principal vetor que nos leva a experienciar a cena (entendida como imagem do espetculo, do todo). O olhar, como esclarece Requena (1989, pg. 57), apresenta-se como esse sentido-rei, como aquele atravs do qual o sujeito se constitui como espectador. Podemos dizer

o mais ampla o coloca como ambincia, onde comporta a comunicao, banco de dados, servios em geral (financeiros, filme streaming, msica streaming).

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que o espetculo s se instala quando pblico, porque de pblico precisa para ser espectado. Quanto mais sensacional, quanto mais extraordinrio, mais seduz, mais domina por ateno.

O espetculo, ento, em sendo aquilo que atrai e prende o olhar e a ateno, visvel porque, enquanto evento, se instala em algum local, entendido aqui como palco. Mas de qual palco estamos falando? A rua? - se pensarmos no Teatro Invisvel de Augusto Boal? O tablado de um circo? O palco italiano para uma orquestra filarmnica? Que palco e espetculo so esses que, mesmo geolocal, buscam confundir e borram os limite da plateia e artistas, como as performances do La Fura dels Baus3. possvel pensarmos o espetculo como espetculo expandido imbricando linguagens em redes telemticas/digitais?

La Fura Dels Baus, rompendo os limites definidores do espao-palco.

3 - Que corpo (se corpo)?

Corpo, corporalidade, como elemento fundamental no espetculo e performance mas, alm da carne, podemos pensar em presena, um corpo projetado, expandi-do, videogrfico, por exemplo, em fruio hiperlocalizada? Que corpo esse em am-bientes hiperlocais? So tempos de imagens lquidas, binrias e, como afirma Willis (2008), o corpo eletrnico aquele que se torna objeto dos textos audiovisuais, assu-mindo as mais diversas formas na televiso, no cinema e em produtos da internet. A ideia de presena parece responder melhor noo do que seja corpo nos espetculos em redes digitais, embora que Fabio (2015) j afirme que um corpo pode ser visvel

3 La Fura dels Baus um coletivo fundado em 1979 (Espanha) que experimenta fuses de pera, drama, circo, msica, teatro de rua etc, quebrando barreiras entre linguagens artsticas e buscando o envolvimento do pblico em suas performances.

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ou invisvel, animado ou inanimado, cadeira ou gente, luz, ideia, texto ou voz. Falando sobre o espetculo na televiso, ou, para ns, de forma adptativa, em um formato de telepresena4, Requena (1985) adverte que:

() esta inusitada potencia espectacular, esta asombrosa capacidad para colmar la mirada del espectador, tiene por contrapartida la descorporei-zacin del espect- culo y, por tanto, descansa en una estructural sobre-significacin de esa carencia esencial que anida en la relacin especta-cular. El cuerpo, pues, se evapora, la mirada slo encuentra unas huellas luminosas del cuerpo que desea y que sin embargo ha sido escamoteado. El instante del suceso irrepetible en que la hazaa de un cuerpo se encon-trara con una mirada carece ya de sentido. He aqu, pues, un fenmeno de an poco valoradas dimensiones atropolgicas: el espectculo como apoteosis del cuerpo en el instante singular cede su lugar a un nuevo es-pectculo descorporeizado, slo habitado por ungenes atemporales y sustitutas de cuerpos denegados.

F. Y. Obana, R. Tori (2015), citando Lombard e Ditton, remetem o termo presena como a percepo ilusria de no mediado, ou seja, o usurio no percebe ou reco-nhece um meio durante sua comunicao e se comporta como se o meio no existis-se. Talvez, mais do que corpo, ou presena, possamos pensar em uma hiperpresena.

4 Hiperpresena?

essa hiperpresena que vai instalar o espetculo e estabelecer o lugar (hiperpalco, ps-palco?) para que haja a fruio, a experincia esttica no consumo? A fruio hiperlocalizada, baseada em fluxos telemticos em canais streamings e on demand, igualmente tem provocado outros pensamentos sobre a relao pblico e espetculo. Entendendo aqui pensamentos como aquilo que resiste e trabalha contra verda-des e oposies estabelecidas (WILLIAMS) na medida em que reconhecemos as ranhuras, os limites de uma estrutura e optamos por no transportar essa estrutura ( possivel?) como verdade adaptvel a outros acontecimentos. Atentar as ranhuras, os limites do que seria corpo, espetculo, platia, consumo, a temporalidade, quando esses se encontram com o ciberespao, nos parece um caminho para o pensamento.

5 Os tempos

Sobre a temporalidade, os espetculos contemporneos em redes telemticas com-portam esse algo especial: so streaming (tempo real, a distncia), num primeiro

4 O termo telepresena foi utilizado pela primeira vez por Minsky, em 1980, [1] para se referir tecnologia de teleoperao que proporcionava aos usurios uma presena remota em um local diferente por meio de sistemas de realimentao que permitem ao usurio ver e sentir o que est acontecendo l.. Em Conceitos de Presena, de F. Y. Obana, R. Tori, disponvel em http://www.lbd.dcc.ufmg.br/colecoes/wrva/2010/0019.pdf. Acesso em 10/10/2015.

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http://www.lbd.dcc.ufmg.br/colecoes/wrva/2010/0019.pdfhttp://www.lbd.dcc.ufmg.br/colecoes/wrva/2010/0019.pdf

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momento, e on demand (via recurso de recuperao de dados/memria/gravao/download) para consumo posterior. O que um tempo real, o que distncia (no ci-berespao)? Gostaramos de pontuar que, nessa relao entre pblico e espetculo, o tempo do consumo foi alterado, quando em redes telemticas, criam-se novos es-paos (e interfaces) e tempos de fruio diversos. Com isso aumentamos nossa pro-blematizao os espetculos em redes telemticas, mesmo em situao de fruio temporria, pode ser retomado em tempos diversos (com arquivo disponvel, on line, se gravado). Junto com ele, com o espetculo, o palco (o local) se reconstitui (novo tempo?) sob cada novo acesso do usurio5? Temos um locus prprio? Segundo To-nezzi e Schulze (2015), o uso das novas tecnologias vai impondo, aos poucos, inditos parmetros de conceituao e significncia daquilo que se convencionou chamar es-pao e presena cnica, no se tratando mais de uma simples busca de efeitos mim-ticos ou da pura simulao/representao de ambientes, figuras ou seres do cotidia-no, mas sim da criao de sentidos e de locus prprios, permitidos pela comunicao em rede, em que tais instncias ganham autonomia e interferem na percepo, na relao, no entendimento e, consequentemente, no papel do espectador. Para os autores, uma nova realidade se constitui capaz de incidir e dialogar efetivamente com as formas convencionais do teatro, permitindo uma renovada concepo e alcance das manifestaes cnicas. Eles reforam:

Trata-se, assim, no apenas de um redimensionamento, mas tambm de uma reconstituio do espao cnico por meio de seu deslocamento e desmaterializao, j que, valendo-se de meios como a simultaneidade e a velocidade vertiginosa, o lugar cnico passa a instituir- se no como um locus fsico, em si, mas como instncia de manifestao e entrecruzar de mltiplas formas e linguagens, circuito e fluxo constante de ondas e sinais sonoros, visuais e digitais. (TONEZZI e SCHULZE, 2015)

6 Os tipos de espetculos

Em seu clssico El espetaculo televisivo (1988) Requena quem traz categorizaes de espetculos e palcos, os anteriores s performances audiovisuais em redes telem-ticas. O autor estabelece, ao que ele chama de topologa del espectculo, alguns modelos: o Modelo Carnavalesco consiste em eventos onde os limites do palco no so to visveis e demarcatrios do que seriam os actantes (atores) e seu pblico. Por exemplo, as festas populares (em especial o carnaval o espetculo o prprio pbli-co). Aquele que olhado (que prende a ateno) aquele que tambm pode olhar (ter sua ateno presa). Alm disso no h um ponto privilegiado, o espectador-espectado v parte do espetculo, por estar dentro dele. O Modelo Circense onde se estabe-

5 Usurio um termo recorrente para falar de internauta, na Cultura Digital (entendida aqui de forma simplista como conjunto de produtos e servios, envolvento coisas e seres humanos em redes digitais), na medida em que o acesso rede se d pelo uso de softwares, aplicativos e plataformas.

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lece uma diviso entre espectador e cena (espetculo): aquella en la que el evento-espectculo ocupaba un determinado centro en torno al cual, en disposicin circular o elptica, se disponan los espectadores; as sucedaen el circo romano, el hipdromo, las pruebas deportiva () (REQUENA, 1988). O Modelo de Cena Italiana com o fim do espao circular e da elipse no palco (circense) o palco italiano estabelece um afas-tamento do expectador da cena (inibindo sua participao como actante) e ao mesmo tempo, contraditoriamente, previlegiando-o como figura para quem a cena deve ser preparada e realizada. Essa posio nobre (de ver integralmente e a distncia) per-tencia antes Nobreza, em seus camarotes ou janelas. una nueva configuracin del espacio espectacularen funcin del lugar ocupado por el espectador, al que se recono-ce, por primera vez, el derecho a un pleno dominio visual del espectculo (...) (idem). O Modelo de Cena Fantasma recupera a ideia do palco italiano, porm pensado do ponto de vista das novas espacialidades criadas pelas tecnologias, como o cinema (na sala de cinema), por exemplo. Fantasma porque o principal dispositivo do cinema a cmera filmadora vai imaginar um espao virtual para o espectador ver a cena gra-vada. A cmera vai decupar o real pensando em um espao de projeo e consumo (virtual) para um expectador que v num raio de tela de 180 graus. (...) As, la posicin de la cmara en el momento de la filmacin o de la grabacin de la imagen prefigura el lugar virtual, essencialmente concntrico, que luego habr de adoptar el espectador.(...) (ibidem).

Dentre as categorias elencadas por Requena, a que mais se aproxima dos novos espe-tculos e lugares de exibio e fruio/consumo on line o modelo de Cena Fantasma, na medida em que os produtos so apresentados num formato de exibio virtual (no sentido de sua atualizao e representao, simulacro), em carter streaming (tempo real, ao vivo). Estados vividos para estados fantasmas.

7 - O entre palco?

Esse seria um local (ou entre-lugar) de uma nova cena, intermediando, atravs de re-presentaes/simulacros/extenses um nova interface de exibio e consumo espeta-cular, onde artistas (presena?), palco (?) e plateia (?) se reconfiguram em torno de um ps-espetculo. Fabio (2015) defende que essa cena () no se d em, mas entre - ela funda um entre-lugar. Ao cnica co-labor-ao. Neste sentido, a presena do ator, longe de ser uma forma de apario impactante e condensada, corresponde capacidade do atuante de criar sistemas relacionais fluidos, corresponde a sua habili-dade de gerar e habitar os entrelugares da presena. Ao tempo em que ampliamos a ideia de espetculos para o universo on line, conectado - espetculos hipermiditicos ou hiperlocais, pois em algum pronto do processo de produao eles sofrem gerao geolocalizada para posterior atualizao on line - podemos igualmente pensar esse palco (o local do espetculo) como um hiperpalco, caracterizado por sua potenciali-dade hipermiditica (multimdia no ciberespao), ampliado com dois novos elemen-

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tos: interatividade da plateia em certa medida podendo romper os limites propostos pelo palco italiano na separao platia e cena/atores -, e memria, no sentido de que esses espetculos hipermiditicos podem ser (re)visualizados infinitamente (j que so arquivos digitais disponveis) e atualizados com novos elementos.

8 Um exemplo

Essas questes aqui tomadas podem ser pensadas a partir de alguma experincia especfica, como as performances do grupo de msica eletrnica experimental FSOL (Future Sound Of London), composto por dois artistas britnicos - Garry Cobain (co-nhecido por Gaz Cobain) e Brian Dougans. Os shows do grupo FSOL, em formatos Live PA6 , executando a msica direto de seu estdio ou estaes de rdios via tecnologia Integrated Services for Digital Network (ISDN)7 e em apresentaes multimdias/au-diovisuais, podem ser consumidas a distncia, porm com presena geolocalizada de seus fs. Nessas performances, os artistas se utilizam de redes de computadores em banda larga para apresentaes streaming ao vivo. Como interface, utilizam projeo em telo de alta resoluo, para os locais fsicos, e exibio em tela na web. Como corpo, o espetculo composto de imagens remixadas e editadas em tempo real (live cinema), reforando a ideia de presena, como mnimas aparies dos artistas, que preferem a bricolagens em lugar de seus corpos simulacros. Esse caso FSOL tal-vez recupere as questes aqui colocadas, sob uma tica de revisitao de algumas no-es/conceitos e que tm a inteno de mapear alguns deslocamentos quando pen-samos no binmio espetculo/palco: em ambientes geolocalizados, podemos pensar nas estruturas de Espetculo, Palco, Corpo e Plateia. Por outro lado, como numa (re)verso do mesmo, podemos contrapor a ideia de Performance Streaming no lugar de Espetculo; de Interface, no lugar de palco; de Presena, em resposta ao corpo; de Fruio em resposta noo plateia. Eis, como afirma Williams (2012), uma tentativa de buscar o local de uma ruptura do senso seguro do significado e referncia na lin-guagem, na arte, na identidade, na histria, contra as verdades e oposies estabele-cidas, contra discriminaes, excluses, dentro delas e pelo melhor, desconstruindo as estruturas () e pensar nos limites do que sejam Espetculo, Palco, Corpo e Platia.

Em depoimento sobre o projeto Lifeforms, Cobain (integrante do FSOL) afirma que ...we wanted to release a very immersive, mind-blowing piece of music that was long and would deeply drench you in it...Lifeforms was redefining classical ambient electronic experimental that was the phrase we used.8 A performance do FSOL

6 Live PA live power amplification (som ao vivo, numa referncia a fazer msica eletrnica tocan-do instrumentos digitais em tempo real ligados diretamente a amplificadores e caixas de som).7 Conjunto de padres de comunicao para a transmisso simultnea digital de voz, vdeo, dados e outros servios de rede ao longo dos circuitos tradicionais da rede telefnica pblica comutada, ainda usado em formatos de videoconferncia.8 Remixmag.com, em fevereiro, 2007.

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Remixmag.com

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est alm dos palcos e das categorizaes carnavalescas tradicionais. Seu projeto de ambient music se completa quando o ouvido quer ver as imagens e quando os olhos querem ouvir as imagens, numa experincia onde se busca a imerso em redes tele-mticas a partir das imagens em 2 e 3d. O conceito est presente em vdeos como o Lifeforms9. um espetculo audiovisual contemporneo expandido, com pblico em redes telemticas e geolocais. Um dos raros momentos gravados: show em telo, arte computacional/vjing, imagens dos msicos em estdio (a distncia), registrado no The Essencial Festival Brighton (Inglaterra), em 199710 - a plateia e artistas se jun-tam em uma mesma temporalidade e diferentes localidades. Show transmitido em ISDN, onde a projeo de imagens (telerealidade) o espetculo. Passados mais de 20 anos, essa experincia de espetculo coloca em discusso os tempos, os lugares, a cena e a forma de consumo de uma performance, essa atividade que no gera produto, mas existe-enquanto-sendo, criando um territrio temporrio formado pelos corpos (plateia e msicos).

Uma das implicaes que, quando conectados ao ciberespao, esses espetculos se desdobram em diferentes projetos/produtos, criando novas platias (ou refora ante-riores), porm gerando novas formas de consumo, j que estamos lidando com a ideia de que a difuso da lgica de redes modifica de maneira substancial a operao e os resultados dos processos produtivos e de experincia, poder e cultura (CASTELLS, 1999, p. 497). Eis os tablets, celulares, laptops, videoprojees, TVsjanelas diversas para o mesmo espetculo.

Embora a noo de espetculo como aquilo que atrai e prende o olhar e a ateno possa ser aplicado a essas experincias a pergunta persiste: os modelos binrios (baseados em plateia X palcos) do conta da diversidade dessas experincias hiper-conectadas? Eis um desafio para pensar em que sentido os limites dessas estuturas nos apontam um novo pensamento, ou um novo modelo/estrutura para o espetacu-lar. Pensar sobre similitudes/verossimilhanas, rupturas/radicalidades e expanses/reconfiguraes de experincias a partir de bordas, fronteiras, tenses em estruturas que podem apontar novas categorizaes de experincias estticas em redes telem-ticas e que envolvem diferentes narrativas/eventos/estruturas audiovisuais e suas for-mas de consumo pblico.

Referncias

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9 http://www.youtube.com/watch?v=9Pkz349EFl810 http://www.youtube.com/watch?v=2Xh1gpfd4ik

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