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Literatura como fonte da História – Euclides da Cunha e a Amazônia.1
Eli Napoleão de Lima
É possível se observar que até meados deste século XX a literatura no Brasil (bem como na América Latina
em geral), dada a pequenez de estudos de caráter disciplinar ou acadêmico em Ciências Sociais
desempenhou, por longo tempo, papel determinante na representação da realidade. Antes de 1930, quando
se inaugurou a criação das universidades modernas era frágil a divisão do trabalho intelectual. Os
chamados homens de letras tinham múltiplos talentos, na maioria das vezes eram, ao mesmo tempo,
educadores, políticos, poetas, militares, homens de ciência, jornalistas, literatos, advogados, etc. Não era
nítida a divisão entre pensamento social e literatura, sendo esta instrumento de veiculação daquele, "apesar
das polissemias e ambivalências do texto literário, do seu caráter aberto".2 A interpretação cultural que
Euclides da Cunha faz do país se inclui neste contexto. Este estudo procura resgatar a importância da
Amazônia em sua visão do Brasil.
Inicialmente procuraremos ressaltar dois níveis de motivações ou de ―caldos culturais‖ que se colocavam
para o autor: a missão de construir uma nação civilizada e a pretendida desconstrução da idéia de Inferno
Verde relativa à Amazônia.
No ítem ―Identidade Coletiva‖ e Os Sertões, estaremos localizando o desafio que se colocava à geração
intelectual da República Velha como parte integrante das motivações de Os Sertões. Apesar desta
localização cultural não é este o objetivo deste trabalho.
No ítem ―A Amazônia de Fins do XIX e Início do XX‖ estaremos colocando a problemática da inserção da
Amazônia da borracha no contexto nacional e internacional, e a necessidade de elaborações culturais sobre
a região, dentre as quais está o imaginário ocidental sobre o Inferno Verde, objeto deste estudo.
A seguir em ―Euclides da Cunha na Amazônia‖ estaremos visualizando o debate sobre as obras do autor
procurando identificar a especificidade do Euclides Amazônico em contraposição ao Euclides de Os
Sertões. Estaremos defendendo a hipótese de que a ida de Euclides da Cunha para o Acre representa a
busca, após a experiência sertaneja no Nordeste, de uma segunda descoberta do Brasil dos sertões, que
deveria ser consolidada em um outro sucesso literário do tipo Os Sertões3.
E, finalmente, em ―O Estado Novo e a Obra de Euclides da Cunha‖ estaremos enfatizando a apropriação
desta obra pelo projeto literário do Estado Novo.
Identidade Coletiva e Os Sertões
Torna-se mister esclarecer que a frágil divisão do trabalho intelectual anterior a '30 não esvazia de
importância fatos reais tais como, já desde a vinda da Família Real para o Brasil, a instalação de
1 Este artigo foi publicado em COSTA, Luiz Flávio de Carvalho et al (orgs). Mundo Rural Brasileiro, ensaios interdisciplinares.
Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica, RJ: EDUR, 2008.p.p.11/42.
2 ZILLY, Berthold. "Os Sertões de Euclides da Cunha e outros Sertões: campo e nação em representações literárias" in Plano de Trabalho e Projeto de Pesquisa apresentado ao CPDA-SA/DDAS/ICHS/UFRRJ, quando de sua inserção (1998) como Professor
Visitante. p.1.
3 LIMA, Eli Napoleão de. “O exótico nas narrativas sobre a Amazônia”. In: DA SILVA, Francisco Carlos T. et alli.
(orgs). Mundo Rural e Política – Ensaios Interdisciplinares. Rio de Janeiro: Campus, 1998. p. 73.
estabelecimentos de caráter cultural (a Imprensa Oficial, a Biblioteca Nacional, o Real Horto e Museu
Real), ainda que com acentuado caráter de produção e reprodução da cultura e memória metropolitanas;
após a Independência, com o apoio de D. Pedro, a fundação de novas instituições de saber, como, por
exemplo, as escolas de Direito cujas metas incluía formar uma elite intelectual nacional autônoma; a
fundação de institutos (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, Instituto Arqueológico e
Geográfico de Pernambuco em 1862, Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em 1894) cuja
responsabilidade era a da criação de uma história para a nação, produzir memória para um país que
desatrelava o seu destino do da metrópole portuguesa; outras criadas ou revigoradas na 2ª metade do século
XIX atestam o delineamento de especializações profissionais, ratificando a tendência à diversificação nas
áreas de atuação das elites intelectuais: o Museu Paraense Emílio Göeldi (1885), o Museu Paulista (1893),
reorganização do Jardim Botânico e do Museu Nacional; os anos 70 do século XIX estiveram marcados por
uma questão sempre renovada e raramente respondida sobre que país é este. Em 1870 era já irrevogável a
crucial questão da desmontagem do sistema escravocrata; em 1871 a Lei do Ventre Livre é promulgada
pondo fim a um sistema de trabalho condenado por outras nações (cujos interesses apontavam, já há algum
tempo, em outras direções). Por isso mesmo, o problema da mão-de-obra regurgitava do centro das
discussões.
"Na verdade, os diferentes impasses encobriam, em seu conjunto, tentativas de esboços de
uma nova nação que buscava se libertar de algumas amarras do Império sem ter claro um
novo projeto político. Os anos 70 constituíram, neste sentido, um marco consagrado pelos
diferentes comentadores. Dos historiadores mais tradicionais, como Capistrano de Abreu,
aos críticos contemporâneos mais radicais, como Sílvio Romero, todos viram nela uma
década de inovações, o começo de uma nova era".4
Trabalhando com o período que medeia entre 1870 e 1930, Lília Schwarcz enfatiza ser a década de 70 vista
como um divisor de águas na história das idéias no Brasil, dada a "entrada de todo um novo ideário
positivo — evolucionista em que os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental".5
A geração aliciada para o abolicionismo e o republicano viverá intensamente o impacto daquele "bando de
idéias novas" descrito por Sílvio Romero. "Religião católica, instituições monárquicas, escravidão, grande
propriedade rural, ecletismo filosófico e espiritualismo, romantismo artístico-literário, tudo isso será
levado de roldão por 'um bando de idéias novas' que penetra as elites brasileiras concomitantemente ao
fim da Guerra do Paraguai".6
A aglutinação de tais idéias7 resultará, quando da consolidação do novo regime (o republicano), na disputa
pela definição de sua natureza, entre 3 correntes: "o liberalismo à americana, o jacobinismo à francesa, e o
positivismo. As três correntes combateram-se intensamente nos anos iniciais da República, até a vitória da
primeira delas, por volta da virada do século".8
4 SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.27.
5 Idem. p. 14.
6 GALVÃO, Walnice (org.). Euclides da Cunha. São Paulo: Ática, 1984. p. 22.
7 Temos plena consciência de estarmos realizando uma enorme simplificação da questão, mas ponderamos não ser o espaço deste
ensaio o lugar da minuciosa observação de tais idéias.
8 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 9. De enorme importância reveste-se este livro para qualquer leitor que tenha em mente desvendar a trama das ideologias.
Para o historiador da passagem do Império para a República é fundamental.
O fato da vitória da primeira das correntes não esvaziará, por longo tempo ainda (até aproximadamente os
20, quando o país se torna americano), a influência dos modelos franceses que aqui aportaram, ao
atravessarem o Atlântico, metamorfoseados ao ajustarem-se ao meio social escravista, pela fragilidade das
instituições políticas, pela dispersão demográfica e pelo atraso das formas de organização associativas.9
Observando sobre a total ausência de participação popular na Proclamação da República, bem como a
derrota de qualquer esforço de participação nos anos subsequentes, José Murilo de Carvalho pondera que a
impossibilidade de realização do extravasamento das visões de república por meio do discurso, dada a sua
inacessibilidade a um público com baixo nível de educação formal, levava à necessidade da recorrência a
"sinais mais universais" como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos. As batalhas ideológicas e
políticas forjavam a criação da imagem do novo regime para atingir o imaginário popular em termos
republicanos, ou seja, recriar o imaginário popular dentro dos valores republicanos.
"A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime
político. Símbolos e mitos podem, por seu caráter difuso, por sua leitura menos codificada,
tornar-se elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos coletivos. Na
medida em que tenham êxito em atingir o imaginário, podem também plasmar visões de
mundo e modelar condutas."10
Diversos autores
11 têm buscado compreender as variadas relações entre termos que, na verdade, possuem
mais semelhanças do que dessemelhanças: nação, nacionalismo, Estado Nacional, Estado, identidade
nacional, identidade cultural, identidade étnica por exemplo. Em tempo: não temos a presunção de qualquer
crítica, nem rápida que seja, uma vez que o assunto não é simples e pressuporia que nos dispuséssemos a
debruçarmo-nos, como os outros, na produção e organização de tantas idéias e métodos.
É fato inegável que a formação das nações no século XIX e início do século XX baseou-se na experiência
vitoriosa, portanto exemplar (em que pesem os mecanismos de avanço do imperialismo ocidental no
mesmo período) da Inglaterra, da França e da Espanha e, em medida menor, da Holanda e da Suécia.
"Isto é geralmente atribuído ao poder militar e econômico que estes países possuíam
durante o período de formação de nações na Europa Ocidental. Sendo as grandes
potências germinantes dos séculos XVI e XVII, estes Estados foram vistos como modelos a
imitar pelos menos afortunados, e o seu formato nacional foi progressivamente
considerado como chave para o seu sucesso".12
São muitas as digressões realizadas por Smith. Retenhamos aquela que identifica nacionalismo como
ideologia, linguagem e sentimento, realçando os símbolos, as cerimônias e os costumes da identidade
nacional. Como ideologia e linguagem o nacionalismo surge no final do século XVIII. De fato, termos
como uniformidade, caráter nacional, gênio nacional, identidade autêntica, unidade (nacionalista) coesão
social e fraternité, são conceitos que formam uma linguagem ou discurso interligados que se expressam
por cerimoniais e símbolos.
9 LINHARES, Mª Yedda e Da Silva, Francisco Carlos T. História da agricultura brasileira. Combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 18.
10 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. p.p. 10/11.
11 Dentre outros, destacam-se: Anthony D. Smith (Identidade Nacional: Gradiva, 1997), Ernest Gellner (Nação e Nacionalismos.
Lisboa: Gradiva, 1997), Benedict Anderson (Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1997) e Montserrat Guibernau (Nacionalismos. O estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997).
12 SMITH, Anthony. Identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997, p. 80.
Todas as definições de nacionalismo arrolados estão intimamente ligadas à Europa Ocidental, quais sejam:
nacionalismo = ideologia; nacionalismo = doutrina cultural ou ideologia política que tem como centro uma
doutrina cultural; nacionalismo = movimento ideológico para alcançar e manter a autonomia, a unidade e a
identidade de uma nação.13
Hyppolite Taine, Pascal, La Rochefoucauld, La Bruyère, Montaigne, Joseph-Marie de Gérando, Rosseau,
Fontenelle, Montesquieu, Denis Diderot, não são apenas nomes, dentre outros. Eles realizaram a reflexão
francesa sobre a diversidade humana.14
Se buscarmos estabelecer a relação entre política e cultura, tornar-se impossível negligenciar as mudanças
operadas pela Revolução Francesa, seja na estrutura, seja no funcionamento do Estado francês, o qual
arregimentará para si, diferentemente de qualquer outro, uma idéia de expansionismo "desinteressado", ou
seja, a mission civilisatrice escondia sua face do interesse pelo lucro, por grandes extensões de terras, numa
campanha constante não de retratar as conquistas coloniais, mas das justificações a elas dadas.15
É
sintomático que saibamos tão pouco acerca do expansionismo francês, que não seja aquele das missões
"científicas" e "culturais".
Acreditamos, desta feita, que já estavam no processo revolucionário francês todas as idéias que embasarão
a ação dominadora, cuja imaginação cultural tem sua matriz nas luzes francesas. Não é fortuito que a
Revolução Francesa se constitua como marco divisório da História, inaugurando a cena contemporânea.
Entre 1789 e 1848 opera-se o marco cronológico do desenvolvimento, na Europa, de suas conseqüências. A
imagem da França revolucionária e imperial é a de um povo que se formou como nação ao abolir o
feudalismo, tendo como base de seu poder a eficácia de suas novas instituições e o pleno uso de suas
energias individuais, que almejava a garantia de sua independência pela expansão dos princípios
revolucionários para além de suas fronteiras. Não há como negar que a França comoveu o mundo.
O nacionalismo moderno definiu-se pelos termos da Revolução Francesa: as guerras prolongadas, a
expansão territorial e política. A França se tornara o centro irradiador de uma ideologia emancipadora, de
1789 em diante.
Se havia uma intenção francesa de atingir e inocular no mundo suas idéias, havia quem desejasse
reproduzi-las. Observando estudo de Renato Ortiz sobre a "cópia" das idéias estrangeiras é possível
matizar-lhe as cores. Ortiz diz ser recorrente na história da cultura nacional esse problema.
"Particularmente durante o período estudado tem-se a impressão, através dos próprios
críticos, de que o Brasil seria um entreposto de produtos culturais provindos do exterior. A
última moda, em particular a parisiense, aportava no Rio de Janeiro para ser em princípio
consumida sem maiores problemas. Se aceitássemos esse quadro explicativo para
compreender a penetração das idéias estrangeiras junto aos intelectuais brasileiros, como
interpretar a diferença profunda entre os autores como Manoel Bonfim e Nina
Rodrigues?"16
Focalizando o conjunto das teorias raciais geradas na Europa e que, entre 1888 e 1914, eram incorporadas
pela elite brasileira, Ortiz observa:
13 Idem. p. 98.
14 TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros. A reflexão francesa sobre a diversidade humana. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
15 SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 222.
16 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 27.
"Existe porém uma defasagem entre o tempo de maturação das teorias raciais (e suas
vulgarizações) e o momento em que os intelectuais brasileiros escrevem".17
As teorias raciológicas de meados do século XIX (Retzius — '1842, Pierre Broca — 1859, Quatrefages —
1877, Gobineau — 1853/55, Agassiz — 1868) e cuja disseminação foi absolutamente notável, sofreu
revezes em fins do século com Boas (1899) e Paul Topinard (1892). Nos anos 90, para além dos trabalhos
de Boas, nos quais a noção de cultura substitui a de raça inaugura-se a escola sociológica durkheimniana
com enorme ressonância no período. "A concepção durkheimniana de sociedade como fato sui generis
orienta o estudo do social para uma perspectiva radicalmente diferente da problemática das raças ou do
meio (por exemplo, Le Play)".18
As teorias raciológicas já estavam em declínio na Europa quando se apresentam de forma hegemônica no
Brasil. Ou seja, a tese da "imitação" é, no mínimo, um exagero, ainda que seja verdade que entre o
momento da produção cultural e o de consumo haja um hiato.
A diferenciação do consumo é também sintomática. Manuel Bonfim está mais para Topinard, Sílvio
Romero para Agassiz ou Broca.
"O processo de 'importação' pressupõe portanto uma escolha da parte daqueles que
consomem os produtos culturais. A elite intelectual brasileira, ao se orientar para a
escolha de escritores como Gobineau, Agassiz, Broca, Quatrefages, na verdade não está
passivamente consumindo teorias estrangeiras. Essas teorias são demandadas a partir das
necessidades internas brasileiras, a escolha se faz assim 'naturalmente'. O dilema dos
intelectuais do final do século é o de construir uma identidade nacional. Para tanto é
necessário se reportar às condições reais de existência do país".19
Por outras palavras, evidencia-se não ser fortuita a escolha e torna-se indispensável compreender e analisar
esse fato. Falamos em metamorfoses e dificilmente poderia ser de outra forma dados os problemas em
pauta, expostos a olho nu: a Abolição, a proletarização do escravo, a colonização com imigrantes brancos
europeus, a consolidação da República.
Como tudo estava por ser resolvido, pois a Abolição libertara os escravos, indicando a falência da
economia que implantara o sistema da escravidão mas não os incorporava como força de trabalho livre e
nem mesmo o implantara, além de estar em processo a colonização branca, via pela qual, acreditava-se,
inseriria o país na economia capitalista, leva a que
"A questão da raça é a linguagem através da qual se aprende a realidade social, ela reflete
inclusive o impasse da construção de um Estado nacional que ainda não se consolidou.
Nesse sentido, as teorias 'importadas' têm uma função legitimadora e cognoscível da
realidade. Por um lado elas justificam as condições reais de uma República que se
implantava como nova forma de organização político-econômica, por outro possibilitam o
conhecimento nacional, projetando para o futuro a construção de um Estado brasileiro. É
interessante observar que a política imigratória, além de seu significado econômico,
possui uma dimensão ideológica que é o branqueamento da população brasileira. O fato
de este branqueamento se dar em um futuro, próximo ou remoto, está em perfeita
adequação com a concepção de um Estado brasileiro enquanto meta".20
17 Idem. p.p. 28-29.
18 Idem. p. 29.
19 Idem. p. 30.
20 Idem. p.p. 30/31.
É significativa a contribuição de Renato Ortiz na elucidação das escolhas realizadas, mas, infelizmente, não
é possível aqui tratar mais amiúde.
De qualquer forma, é fato dado que à geração intelectual da República Velha caberia a missão da busca de
uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação; na verdade, a
responsabilidade seria a de redefinir os rumos da República, uma vez que "foi geral o desencanto com a
obra de 1889".21
Quando publicou Os Sertões (1902), Euclides da Cunha ao misturar literatura, história e ciência alcançou
sucesso de público e de crítica. Nessa obra, Euclides produzia um quadro incisivo dos problemas que
agitavam o Brasil naquele início de século e que, mesmo considerando avanços e recuos perceptivos,
acabara por se constituir em severa crítica aos destinos anunciados pela República nascente, a qual
defendera com tanto fervor.
A glória lhe chegará, após a publicação de Os Sertões, fato que tem como conseqüência a eleição para a
Academia Brasileira de Letras (21/09/1903) e a posse no IHGB (20/11/1903), mas com reservas: "... jamais
conseguirá uma posição à qual corresponda algum poder além de prestígio, como tanto queria (...). A glória
lhe vem através desses sodalícios de confinamento, como a academia e o instituto".22
Ainda que fizesse parte, como intelectual profissional, de um círculo, a elite pensante do país, estimulados
por Rio Branco no Itamarati23
, Euclides da Cunha
"estava ciente de que o sistema o mantinha confinado e cozinhava-o em fogo lento,
mantendo-o dependente de favores quando ele tinha direitos. Era essa uma das muitas
maneiras de açaimar os intelectuais com vocação para dissentir, impedindo-os de
participarem diretamente da vida política e constrangendo-os a um destino exclusivo de
escritores. É ao longo dessas linhas, e acalcanhada a contragosto nesse apertado quadro,
que se desenvolverá a obra de Euclides da Cunha".24
Obra cujo lastro interpretativo do Brasil é, sem dúvida, impressionante.
Em algum momento anterior, afirmamos, apoiados em Berthold Zilly (1998), que a literatura desempenhou
por largo tempo papel de destaque na representação da realidade, no Brasil e na América Latina:
"a prosa de ficção, a poesia, o ensaio e, de algumas décadas para cá também o filme, são
importantes e às vezes as únicas fontes de informação sobre a estrutura social e a
mentalidade do homem do campo, inclusive sobre a visão que dele tiveram os letrados
citadinos".25
Grande parte da intelligentsia brasileira, desde a Independência preocupada com a construção da nação,
deparou-se com um dilema em relação ao interior: aquela parte "civilizada", a metrópole moderna, situada
no litoral do país, era por demais internacional e caracterizava-se por uma "civilização de empréstimo". O
Brasil diferente, e que afirmava sua peculiaridade, o interior semi-selvagem, quase nada tinha de
21 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. p. 33.
22 GALVÃO, Walnice. Op. cit. p. 33.
23 Desse grupo faziam parte: Machado de Assis, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Olavo Bilac, Rui Barbosa, José Veríssimo,
Clóvis Beviláqua e tantos outros. GALVÃO, Walnice. Idem.
24 Idem. p. 34.
25 ZILLY, Berthold. Op. cit. p. 1.
civilização, condição necessária para o progresso da nação. Das paisagens literárias do Brasil o sertão
sempre ocupou um lugar de destaque, sendo metonímia do hinterland
"semi-bárbaro, violento, atrasado, primitivo. O sertão, que na verdade consiste em vários
sertões, é um lugar mítico, antítese da cidade, fonte de inspiração para a reflexão sobre
região, raça, brasilidade, cultura popular, modernização; objeto de vergonha, denúncia,
orgulho, saudade, conforme o ângulo de vista do escritor, da ideologia e da época. (...) A
tensão entre sertão e litoral, campo e cidade, atraso e progresso caracteriza boa parte da
ficção e do ensaismo brasileiro."26
A Amazônia de Fins do Século XIX e Início do XX
A partir da década de 1850 se inicia a corrida para a produção e fabrico da borracha para exportação. Como
escoadouro da produção do interior amazônico, o porto de Belém passara a receber inúmeras embarcações
fluviais; aquelas de maior calado, próprias ao tráfego marítimo, permaneciam ao largo da Baía de Guajará,
vindas de Portugal, da Grã-Bretanha, Índias Ocidentais, França, Holanda e América do Norte. Os "gêneros
de importação" trazidos, eram enviados para Cametá, Vigia, Macapá, Monte Alegre, Santarém, Óbidos e
Barra do Rio Negro, de onde vinham os produtos naturais da selva. Um registro indicava que já por volta
de 1839, as atividades urbanas ultrapassavam as necessidades dos 12.500 habitantes da cidade.27
Será a partir dessa metade do século XIX que a Amazônia parece inserir-se na vida do país. "Motins
políticos", progresso material e estético e missões de interesse científico viriam tirar a Amazônia do seu
sono solitário. A visita de Humboldt (1799/1804), Spix e Martius (1820), Castelnau (1834/1847), H. W.
Bates (1848/1849), Alfred Wallace (1848/1852), Luiz Agassiz (1865/1866), entre outros, revelaria ao
mundo as riquezas amazônicas. Esse progresso material e estético seria interrompido durante a Cabanagem,
um movimento, como se sabe, de luta contra o regime mercantilista, cujos primeiros ecos remontam ao ano
de 1821 e se estende até 1840.
Extirpada a rebelião, a década de 1840/1850 foi um período de restauração da ordem e de retorno às
atividades abandonadas durante o conflito. Dos produtos oriundos da selva, um iria marcar, profundamente,
os próximos 70 anos: a borracha. O "leite de seringa" utilizado pelos indígenas para confeccionar bolas
para jogos, sapatos, capas, chapéus, couraças, já era gênero de comércio amazônico desde o século XVIII.
No entanto, não era mais do que um entre tantos produtos da floresta. A borracha comercializada nesta fase
vinha das matas que circundavam Belém, e da Ilha de Marajó. Extraída mediante um processo rudimentar
que danificava as árvores, a coleta do produto adentrou a selva, com o decorrer do tempo, atingindo o
Xingu, o Jari, o Guamá, o Acará, o Moju, chegando ao rio Tapajós e ao Madeira, alcançando o Solimões.
Se até os anos 20 do século XIX esse produto, mesmo crescendo na pauta de exportação de gêneros
amazônicos, não tinha importância fundamental para a economia regional, a partir dos anos 30 começou
uma escalada ascendente até a segunda metade daquele século, mantendo-se bem entrados nos anos 20
deste século, tornando-se o produto-rei da região.
Podemos dizer que os seguintes eventos favoreceram essa expansão econômica: 1) a industrialização do
mundo no século XIX, possibilitando às nações européias expandirem-se em busca de novos mercados e
matérias-primas; 2) a descoberta do processo de vulcanização, em 1839, com Charles Goodyear e que se
26 Idem. p. 2
27 Antônio Ladislau Monteiro Baena, citado por LIMA, Eli F. N. de. "Extrativismo e produção de alimentos: Belém e o 'núcleo
subsidiário ' de Marajó (1850/1920)," Revista Estudos Sociedade e Agricultura, nº 7, UFRRJ/ICHS, dezembro de 1996, p. 63.
desenvolve com Hancock em 1842. Até esta descoberta, tinha-se conhecimento da propriedade
impermeabilizadora da borracha, mas não se sabia como torná-la resistente às altas e baixas temperaturas;
3) o descobrimento do pneumático por Dunlop, 1890, criaria uma demanda a exigir em expansão, sem
precedentes, da produção de borracha.
Uma outra circunstância, que viria a ser fundamental para a expansão da economia do látex, foram as
grandes levas de retirantes nordestinos que chegaram à Amazônia acossados pela miséria e pela seca que
assolou o Nordeste em 1877. Sem essa mão-de-obra, o denominado "ciclo da borracha" não atingiria o seu
apogeu nesse período.
A extração de produtos florestais, como fonte de renda e emprego, daria o tom e forma das especificidades
amazônicas, tornando-a "diferente" das demais regiões. O extrativismo montado na Amazônia não permitiu
assentamentos demográficos permanentes à medida que consistia numa mobilidade contínua em busca dos
produtos que escasseavam numa e noutra áreas. Mesmo que alguns núcleos mantivessem um relativo
equilíbrio demográfico, a economia dependente do exterior prejudicava aquela tendência e ao mesmo
tempo impedia qualquer alteração das técnicas extrativistas.
O início e o fim desse "ciclo" não é consensual entre os vários estudiosos. Alguns tomam como referência a
ascensão e a queda do produto na pauta de exportação; outros, definem o período a partir do crescimento
das capitais (melhoramentos, construções de edifícios públicos, casas de crédito, companhias seguradoras,
etc.). Diríamos que, entre 1840 e 1911, a Amazônia vivera o furor da exploração da borracha, convergindo
para ela as energias produtivas e improdutivas da região.
O "ciclo da borracha" seria o espetáculo amazônico. O surgimento de bancos e novas representações
consulares; a criação da Capitania do Porto; a fundação de um cemitério particular para a colônia inglesa
(registro da presença marcante do comércio britânico na área); a inauguração da colônia portuguesa em
torno da Sociedade Beneficente; substituição do azeite de andiroba pelo de gás líquido (1854/1864),
seguida da substituição do sistema de iluminação antigo pelo gás carbônico (1864/1896), etc.
demonstravam a posição de Belém como centro econômico e financeiro da Amazônia. A demanda
internacional pela goma elástica despertou o espírito cosmopolita da cidade, cujo estilo de vida cada vez
mais demandava construções imponentes, importação cultural, vida boêmia, um espírito frenético,
consumidor de novidades passageiras, numa palavra: luxo.
Em contrapartida, ao esplendor do cais do porto e às reuniões sociais, encontros lítero-musicais, cafés,
bailes, clubes e eventos similares, no interior o silêncio envolvia os seringais. Para aí seguiam mercadorias,
as mais diversas:
"Os aviamentos de mercadorias para os seringais eram pródigos, excessivos, absurdos. As
'notas de pedidos' eram exorbitantes, envolvendo às vezes artigos impróprios e supérfluos
como, por exemplo, tecidos de seda. Os aviadores de Manaus e de Belém forneciam tudo
quanto se lhes pedia, mercadorias inúteis ou dispensáveis, aumentando-lhes ainda as
medidas".28
Aos seringueiros, isolados e solitários em suas estradas de seringueiras, cortando, colhendo e defumando o
látex para propiciar aquele fulgor, sem dele compartilhar, o sistema extrativista oferecia os regatões —
28 LIMA, Araújo. Amazônia, a terra e homem. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945, p. 148.
"espécie híbrida que surgiu entre o comércio e a pirataria, ou entre o decoro e a impudência"29
— através
dos quais eles obtinham uma parcela, a mais alienante, dos resultados do seu trabalho. Em troca de
quinquilharias, os regatões recebiam grandes quantidades de derivados da borracha, desviados pelos
seringueiros do que era "devido" aos seus patrões. Já que nada podiam produzir para sua subsistência —
seguindo a lógica do sistema —, restava-lhes adquirir produtos de longa durabilidade, como conservas
importadas, extremamente caras.
Não seria possível determo-nos aqui na descrição dos mecanismos do sistema extrativista (cf. Lima, 1987).
Importa-nos ressaltar que, como os demais produtos da floresta, a borracha comercializada em Belém
provinha não apenas dos seringais do Pará. A economia paraense do período esteve estreitamente vinculada
às demais áreas amazônicas, muito embora os registros das exportações de borracha nunca discriminem a
sua procedência, constando toda ela como produto paraense. É mister lembrar que a Praça do Pará, através
de sua Associação Comercial, controlava a produção dos seringais amazonenses e acreanos. O raio de ação
do comércio de Belém ultrapassava o limite político-territorial brasileiro, atingindo o Peru, a Bolívia, a
Colômbia e a Venezuela.
A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a "Ferrovia do Diabo" — assim chamada pelas
grandes perdas em vidas provocadas pela febre tropical das companhias estrangeiras —, iniciada em 1870 e
concluída por volta de 1912, visava escoar a borracha da área que, a partir de 1943, constituiria o território
do Guaporé (hoje Rondônia), para Belém e Manaus.
"Não podemos deixar de chamar a atenção para a grande dependência paraense em
relação às áreas produtoras do Amazonas e do Acre em função da grande produção das
duas localidades que beneficiavam em grande parte a economia do Pará."30
Tal era a dependência da economia paraense da goma elástica de fora de seu território que a desanexação e
independência da Província do Amazonas — e, consequentemente, a formação do porto de Manaus,
realizando uma comunicação direta com a Europa e os Estados Unidos — constituir-se-iam num grande
perigo para os aviadores paraenses. A Associação Comercial do Pará tomaria diversas medidas para
impedir a perda das vantagens que usufruía no mundo amazônico. O conflito Pará-Amazonas se estenderia
por longos anos. A situação recrudesce quando da anexação do Acre pelo Brasil, ao iniciar-se o século XX.
Esta área , desde aproximadamente 1870, produzia uma borracha de boa qualidade, o que agravaria ainda
mais a disputa entre Pará e Amazonas.
O território que constituiria o Acre, até o início do século XX, encontrava-se encravado entre três países:
Bolívia, Peru e Brasil. Terras do tamanho de Portugal, riquíssimas em seringais e castanheiras. Em 1867,
após anos de desconfianças mútuas, Brasil e Bolívia haviam assinado o Tratado de Ayacucho, do qual os
brasileiros divergiram logo, uma vez que consideravam inaceitável o prejuízo que seria a entrega de um
território rico e produtivo, fonte da maior e melhor porção de borracha exportada e extraída por brasileiros.
Evidentemente, os bolivianos ficaram perturbados: em 1898, o governo boliviano, com a anuência reticente
do Brasil, criou um posto alfandegário no rio Acre, base da cidade de Puerto Alonso (mais tarde Porto
Acre). A presença da alfândega boliviana cobrando tributos sobre a borracha explorada pelos brasileiros,
29 PENNA, Domingos Soares Ferreira. Obras Completas. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1973,p. 81.
30 SILVA, Moacir Fecury da. O desenvolvimento comercial do Pará no período da borracha (1870-1914). Niterói: UFF, 1978.
p.p. 27-29.
acirrou os ânimos e, daí em diante, com episódios ora dramáticos ora patéticos, e a confirmar a pateticidade
da situação, os bolivianos preocupados com a crescente ousadia dos brasileiros, tratavam de garantir a
posse do território mas não possuíam meios para tanto, pois não podiam assegurar o total domínio do Acre
na medida em que a maioria da população era composta por brasileiros, não falava espanhol e a moeda em
circulação era o mil-réis. A solução encontrada pelo governo boliviano foi a entrega das terras acreanas a
um consórcio internacional, o Bolivian Syndicate, com maioria de capitalistas norte-americanos.31
"O governo boliviano rechaçava o imperialismo em seu sentido de invasão ou ocupação
armada (brasileiro), mas admitia-o em seus domínios em suas formas financeiras e
contratuais (norte-americano)".32
Reunindo capitais ingleses, alemães e norte-americanos, o Bolivian Syndicate objetivava a exploração da
borracha, a colonização da região e a expulsão dos brasileiros. Para tanto, receberia como recompensa a
metade do dinheiro arrecadado pela produção da borracha e o exercício de total domínio sobre a área por
10 anos. Em contrapartida, o Syndicate tinha por compromisso o reconhecimento dos direitos da Bolívia
sobre as terras do Acre e o fornecimento de armas e munições em caso de um eventual conflito bélico com
os brasileiros.
Após diversas escaramuças que têm em Plácido de Castro33
seu vulto principal e assim que os políticos e a
diplomacia esvaziaram do âmbito das armas a questão acreana, o exército brasileiro assenhora-se da
questão, invadindo o território, cercando as tropas de Plácido de Castro. Em 1903 foi assinado o Tratado de
Petrópolis que aprovava e ratificava definitivamente os limites entre o Brasil e a Bolívia,
"um vasto território, de 191.000 quilômetros quadrados, isto é, mais do dobro de Portugal,
maior que o Uruguai, e que muitos dos Estados médios, como Pernambuco e o Rio de
Janeiro, ficou adquirido ao Brasil entre o Peru, ao O., a Bolívia, ao S., e nosso Estado do
Amazonas, ao N."34
Era muito significativo o valor econômico do Acre. É mesmo possível afirmar que o território do Acre era
o mais rico em borracha de toda a Amazônia e, portanto, do mundo.
"Não temos dados, e não cremos que os haja, para calcular, ainda que aproximativamente
somente, a renda provável do Alto Juruá e seus afluentes ou do Yaco e outros afluentes do
Purus. Mas sendo esses rios dos grandes produtores de borracha, pode-se admitir que a
produção do Território do Acre em sua totalidade não será nunca inferior a 6 mil contos
do valor oficial. Cobrados os direitos de 23% que se hoje cobra, deixará aquela soma a
renda de 4.620 contos a mais. Calculando, com os dados que temos, que os direitos de
importação montem a mil contos, não é demasiado esperar do Território do Acre a receita
de 5 mil contos anuais. Ora, há cinqüenta anos, em 1854, a renda geral do Pará e
Amazonas, então ainda unidos, não atingia a 1.400 contos por ano".35
31 SOUZA, Márcio. O empate contra Chico Mendes. São Paulo: Marco Zero, 1990. p. 38.
32 CÉSPEDE, Augusto. El Ditador suicida (40 anos de história boliviana). 2ª ed. La Paz: Libreria y Editorial Juventud, 1968. apud
SOUZA, Márcio. Op. cit. p.38.
33 Plácido de Castro, gaúcho, chegara há pouco à região. Era veterano da revolução federalista do Rio Grande do Sul que
decepcionado com a política nacional foi para a Amazônia em busca de fortuna e acabou engajando-se na luta acreana.
34 VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970. p. 124.
35 - Idem. p. 132.
O Acre, assim, passaria a fazer parte do Brasil sob o signo dos conflitos de terra. É neste Acre recém
conquistado, nessa terra de lutas e de exploração de homens, que Euclides da Cunha escreverá suas
narrativas sobre o Inferno Verde.36
Euclides da Cunha na Amazônia
Segundo Rolando Morel Pinto, o caráter secundário das demais obras de Euclides da Cunha deve-se "à
importância literária e científica de Os Sertões". 37
A divulgação restrita dessa "obras menores" teria sido prejudicada pela publicação, em Portugal, de edições
comprometidas por revisão deficiente, com muitos erros que, com o tempo, se procurou corrigir. A crítica
atraída e ofuscada pelo brilho de Os Sertões restringiu-se ao grande livro. Dos estudiosos, apenas aqueles
"mais fiéis ao culto euclidiano" têm se preocupado em fazer ver aos não iniciados a importância das
coletâneas de artigos e ensaios que compõem os livros Peru Versus Bolívia, Contrastes e Contrapontos, e À
Margem da História.
Nélson Werneck Sodré na Revisão de Euclides da Cunha traz à luz alguns aspectos originais da "ideologia
euclidiana", mas, com rigor extremado, concluía que a tais obras faltavam as características próprias de
livros, uma vez que não guardavam unidade, não indicavam intenção, não traziam "a marca original do
trabalho antecipadamente destinado".38
, ainda que reconheça que a mesma foi produzida num prazo de sete
anos.
"Sete anos de vida nômade, na fiscalização de engenheiro, na expedição de Canudos, na
expedição ao Purus, passando a família de lar em lar, e deixando-a por largo tempo,
vivendo ao léu, em navio, em montaria, em cavalo, em trem."39
Discordamos dessa afirmação de Werneck Sodré. Uma de nossas hipóteses é justamente a de que a ida de
Euclides da Cunha para o Acre representa a busca, após a experiência sertaneja no Nordeste, de uma
segunda descoberta do Brasil dos sertões, que deveria ser consolidada em um outro sucesso literário do tipo
Os Sertões.
Considerando tais condições negativas — a estada em 1898/1901 em São José do Rio Pardo teria sido uma
exceção — informa Morel Pinto que se estas se constituíram em impedimentos para o fito de atingir o
segundo "livro vingador" (Paraíso Perdido), não esvaziaram sua capacidade de trabalho. Veja-se os artigos
e ensaios produzidos no período e selecionados pelo próprio autor para compor os volumes mencionados.
Por outro lado, a indicada ausência de unidade (aparente em Contrastes e Confrontos) teria sido anulada
pelo estudioso euclidiano Olímpio de Souza Andrade, ao mostrar que uma simples repaginação confere
unidade ao que, na aparência, não tem.
Quanto ao mérito, para Hildon Rocha, Morel Pinto, Leandro Tocantins (para citar apenas três), não é
permitido contestações. Se um ou outro tema caducou pela mudança das condições histórico-sociais que o
contextualizou, não deixa de assumir importância como parte de um conjunto, "como documento de um
36 LIMA, Eli Napoleão. "O exótico nas narrativas sobre a Amazônia" in Da SILVA, SANTOS e CARVALHO COSTA (orgs.).
Mundo Rural e Política. Ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Campus, 1998. p. 69.
37 CUNHA, Euclides da. À margem da História. Introdução, nota editorial e cotejo e estabelecimento do texto pelo Prof. Rolando
Morel Pinto. São Paulo: Cultrix; Brasília: INL, 1975. p. 9.
38 CUNHA, Euclides da. Obra Completa. 1º V. Rio de janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1966. p. 23
39 Idem.
estado de coisas, como testemunho da atitude participante do escritor (...), como páginas literárias em que
ficaram impressas as marcas inconfundíveis do seu estilo".40
(grifos nossos)
Em À Margem da História seria possível tudo se comprovar, em que pesem os óbvios prejuízos de um livro
póstumo.41
Este livro teria todas as qualidades para atingir a condição de seu título mais importante, depois
de sua obra-prima. Encontra-se dividido em 4 partes 42
: I. Parte — Na Amazônia Terra Sem História
(Impressões gerais; Rios em abandono; Um clima caluniado; Os caucheiros: Judas-Ahsverus; "Brasileiros";
Transacreana), II. Parte — Vários Estudos (Viação Sul-Americana; Martín García; O primado do Pacífico),
III. Parte — Esboço de História Política (Da Independência à República), e IV. Parte — Estrelas
indecifráveis (Estrelas indecifráveis).
À exceção da última parte, "composição ligeira, de sabor de crônica" e mesmo levando-se em conta a
diversidade de assuntos, há coerência entre título e conteúdo.
A primeira parte Na Amazônia, segundo indícios conhecidos, constituiu-se em estudos preliminares para a
composição planejada de um grande livro.
Observando a estrutura geral da obra, encontramos os estudos amazônicos compondo a 1ª parte, a 2ª trata
de ferrovias sul-americanas, com ênfase na situação brasileira, a 3ª é um ensaio sobre nossa história
política, das origens à República. Sobre a última, já comentamos.
Para fazer despertar o interesse do leitor para À Margem da História, Morel Pinto, recorre a um dos traços
marcantes, reiterados por diversas vezes em outras ocasiões, da personalidade de Euclides da Cunha.
"A objetividade de suas conclusões, oriundas sempre da observação direta da realidade
enfocada e de análises percucientes e honestas, expostas com a coragem de quem só tinha
compromissos com a verdade; que essas análises, quando necessário, se apoiaram na
melhor ciência da época, que chegava até nós." 43
À par de sua objetividade, encontraríamos também o "cientista enciclopédico" realizando sua obra artística.
Em se considerando esses dados, estaríamos "espiritualmente preparados para reencontrar em À Margem
da História o grande escritor de Os Sertões, talvez um pouco dionisíaco, segundo a classificação de
Gilberto Freyre ou senhor de um estilo 'menos encachoeirado', na opinião de Afrânio Peixoto". 44
O livro ainda viria confirmar "o autêntico nacionalismo" que inspirou sua obra. A paixão de Euclides da
Cunha por nossa realidade, no entanto, não lhe teria vendado os olhos e a percepção para as injustiças que
prejudicavam, desde há muito, uma formação social civilizada e que se pretendia culturalmente brasileira.
Mais uma vez a afirmativa categórica sobre Os Sertões: em 1902 esta obra inaugurou "o ciclo de nossa
maternidade cultural, iniciando em nível superior, o processo de auto-análise de nossa formação". 45
Mas,
pela primeira vez encontramos a afirmação que entende À Margem da História como pertencendo à mesma
linha de intenções da obra-prima; em À Margem...é possível encontrar "a mesma energia de afirmação; o
40 PINTO, Rolando Morel. (Introdução). CUNHA, Euclides. À margem da História, op. cit. p. 10.
41 À Margem da História surgiu em setembro de 1909, após um mês da morte de Euclides da Cunha
42 Segundo Morel Pinto, a seleção de artigos e ensaios foi realizada por Euclides da Cunha e acredito ser também dele a divisão em
4 partes.
43 PINTO, Rolando Morel (Introdução). CUNHA, Euclides da. Op. cit. p. 11.
44 Idem.
45 Idem.
proverbial tirocínio na equação dos problemas, a coragem de chegar ao seu âmago, para denunciar as
causas e apresentar soluções nem sempre amenas".46
Euclides da Cunha afirmou que:
"esse seguir para Mato Grosso, ou para o Acre, ou para o Alto Juruá, ou para as ribas
extremas do Mahu, é um meio admirável de ampliar a vida, o de torná-la útil e talvez
brilhantíssima". 47
Voltamos aqui à questão da intenção de escrever outro sucesso literário. Em carta a Coelho Neto, Euclides
da Cunha escreve de Manaus:
"Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro, Um paraíso perdido, onde
vingarei a Hiléia maravilhosa de todas as brutalidades que a maculam desde o século
XVII. Que tarefa e que ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-
me apenas umas longas barbas, emaranhadas e trágicas". 48
O interesse manifesto de ir para a Amazônia está expresso em um lamento:
"Alimento, há dias, o sonho de um passeio ao Acre. Mas não vejo como realizá-lo. Nesta
terra, para tudo faz-se mister o pedido e o empenho, duas coisas que me repugnam.
Elimino por isto a aspiração — em que talvez pudesse prestar alguns serviços". 49
Por intermediação de José Veríssimo, Oliveira Lima e Domício da Gama, Euclides da Cunha conseguiu de
Rio Branco a nomeação para a expedição que partiu para a Amazônia em 13 de dezembro de 1904.
Euclides da Cunha permaneceu na região por, aproximadamente, 6 meses, na qualidade de enviado especial
do Ministério das Relações Exteriores para questões de fronteira.
Em relação à Amazônia, Euclides da Cunha teria realizado aquela ideal de vida, dando-lhe utilidade ao
defender os interesses territoriais brasileiros, cumprindo rigorosamente a tarefa para a qual fora designado,
bem como a transpôs ao perceber aquela realidade esquecida o que deu a sua observação "dimensões
humanísticas". O melhor exemplo do brilho de À Margem... seriam (e são mesmo) as páginas
incomparáveis de Judas-Ahsverus, poucas porém densas de excepcional inspiração, "em que a
personalidade típica de Euclides parece que se concentrou toda na elaboração dessa pequenina obra-
prima, com a estrutura e o ritmo de uma sinfonia patética, que tivesse a seguinte disposição de
movimentos: aleggro, presto e adágio". 50
Toda a primeira parte de À Margem..., composta de 7 capítulos aparentemente independentes, são de
paisagens que se arrumam em um quadro mais amplo, colorido e dramatizado da região "misteriosa". Suas
"Impressões Gerais" de abertura são de desapontamento e, por que não dizer?, de uma certa decepção, na
medida em que estava preocupado em não repetir os erros daqueles que a teriam visto parcialmente, "os
geniais escrevedores de monografias". Tentando evitar o delírio que acometia "os espíritos mais robustos
diante daquela enormidade", Euclides da Cunha, no entanto, não supera o "assombroso".
46 Idem.
47 Carta a José Veríssimo, In VENÂNCIO FILHO, Francisco. Euclides da Cunha a seus amigos. São Paulo: Editora Nacional,
1938. p. 126.
48 Carta a Coelho Neto, escrita de Manaus, em 10/03/1905, citada em CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido. Ensaios, estudos
e pronunciamentos sobre a Amazônia. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. v.
49 Carta a Luís Cruls, escrita em Lorena em 20/02/1903. Idem.p.iv.
50 Rolando Morel Pinto em CUNHA, Euclides da. À Margem da História. p. 15.
Diante do Amazonas (o rio) o que o surpreende (para Euclides da Cunha "sobressalteia") é um
desapontamento não admiração ou entusiasmo. Em que pesem as informações dos viajantes (como
Humboldt, por exemplo) que teriam legado, em face do espanto diante da imensidão da Hiléia, uma visão
lírica e, portanto, a visão de um Amazonas ideal, o que Euclides da Cunha encontra e se defronta ao vê-lo
real, é uma imagem.
"inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada. Além disto, sob o conceito
estritamente artístico, isto é, como um trecho de terra desabrochando em imagens capazes
de se fundirem harmonicamente na síntese de uma impressão empolgante, é de todo
inferior a um sem-número de outros lugares do nosso país. Toda a Amazônia, sob este
aspecto, não vale o segmento do litoral que vai de Cabo Frio à porta do Monduba". 51
Embora seja "sem dúvida, o maior quadro da Terra" a horizontalidade do quadro leva o observador "às
fadigas de monotonia inaturável e sente que seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins
daqueles horizontes vazios e indefinidos como os dos mares". 52
Dominava-lhe a impressão de que naquela
natureza o homem era "ainda um intruso impertinente", onde chegava sem ser esperado e mesmo desejado
e onde encontraria "uma opulenta desordem".
Observando os rios, à luz da ciência própria de sua época e baseando-se na concepção de Morris Daves
(Rivers and Valleys of Pensylvania, 1889) geógrafo norte-americano cuja teoria da evolução dos rios
preconizava uma seqüência evolutiva que indicava "uma infância irrequieta, uma adolescência revolta,
destinados ao triunfo, ou ao aniquilamento, consoante mais ou menos se adaptam às condições exteriores."
53 Euclides da Cunha a transpusera para a Amazônia : os rios não se haviam firmado nos leitos, procurando
uma situação de equilíbrio “derivando, divagantes, em meandros instáveis, contraídos em „sacados‟, cujos
istmos a revezes se rompem e se soldam numa desesperadora formação de ilhas e lagos de seis meses, e
até criando formas topográficas novas em que a anastomosam, reticulados, e de todo incaracterísticos,
sem que se saiba se tudo aquilo é bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos.
Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um hidrógrafo”.54
A mesma impressão de monotonia e a de terror diante da massa de águas descrito por Wallace, era a que
acometia Euclides da Cunha diante da flora que exibia ―a mesma imperfeita grandeza.‖
Esta visão pré-histórica era completada por uma forma ―singular e monstruosa‖, na qual reinavam “pela
corpulência, os anfíbios, o que é ainda uma impressão paleozóica. E quem segue pelos rios, não raro
encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como tipos abstratos ou simples elos da escala
evolutiva. A „cigarra‟ desprezível, por exemplo, que se empoleira nos galhos flexíveis das árvores,
trazendo ainda na asa de vôo curto a garra do réptil...” 55
A Amazônia teria nascido ―da última convulsão geogênica que sublevou os Andes‖. Diante de tamanha
―construção‖, Euclides da Cunha inferia sobre a dificuldade enfrentada pela literatura científica amazônica:
51 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. p. 25.
52 Idem.
53 Como não há indicação de nota na citação, inferimos ser do próprio Euclides da Cunha a informação contida na mesma, indicada
por Morel à p. 14 da obra em estudo.
54 Idem. p. 26.
55 Idem , p.p. 26-27
se a Amazônia, em toda a América, era a paragem mais percorrida e visitada pelos sábios, era igualmente a
mais desconhecida.
“De Humboldt a Emílio Göeldi — do alvorar do século passado aos nossos dias,
perquirem-na, ansiosos, todos os eleitos. Pois bem, lede-os. Vereis que nenhum deixou a
calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se acolheu, deslumbrado, no
recanto de uma especialidade. Wallace, Mawe, W. Edwards, d‟Orbigny, Martius, Bates,
Agassiz, para citar os que me acodem na primeira linha, reduziram-se a geniais
escrevedores de monografias.56
Crítica elegante, reconhecimento da dificuldade em compreender a Amazônia, desculpas pelas suas
limitações diante do ―novo‖, do ―desconhecido‖, do ―misterioso‖ ou intróito a uma versão própria,
diferente, única, viabilizada por sua genialidade de engenheiro-artista de realizar uma ciência literalizada
(ou literatura cientificizada?) ?
Ao considerarmos a produção euclidiana sobre a Amazônia estaremos considerando como outra das
hipóteses de trabalho justamente que as fontes da narrativa euclidiana sobre a Amazônia, estudadas como
parte dos preparativos da expedição são constituídas em grande parte por viajantes estrangeiros, mancados
pelo assombroso, pelo exótico e, principalmente, pela imagem de missão e fardo do homem civilizado na
conquista do Inferno Verde. 57
Se, por um lado, Euclides da Cunha afirmava que aquele que pretendesse decifrar a literatura científica
sobre a região, iria encontrar não muito mais do que um mundo maravilhoso; por outro lado, será através de
uma pretendida desconstrução dessa visão, mas baseando-se nessas informações, que Euclides da Cunha
produzirá sua visão do mundo amazônico.
Vejamos alguns exemplos: em H. W. Bates (1848/1849), Euclides da Cunha encontrou a resposta para o
caráter ―incoercível da fatalidade física‖ (a natureza é inimiga do homem) no ―perpétuo banho de vapor‖
que justificaria ―a vida vegetativa sem riscos e folgada, mas não a tensão superior da vontade dos atos que
se alheiam dos impulsos meramente egoístas.‖58
Através da visão de um médico italiano, Dr. Luigi Buscalione (Una scurzione botanica nell‟Amazonia),
1901)59
, caracterizava: ―as duas primeiras fases da influência climática — sobre o forasteiro — a princípio
são a forma de uma superexcitação das funções psíquicas e sensuais, acompanhada depois, de um lento
enfraquecer-se de todas as faculdades, a começar pelas mais nobres.60
Ancorado em Alfred Wallace e Frederico Hartt, percebe que ―a natureza é portentosa, mas incompleta‖ por
ser a Amazônia, talvez, a mais nova terra do mundo, segundo as induções desses dois cientistas que
apontavam para o fato de a Amazônia ter nascido ―da última convulsão geogênica que sublevou os
Andes‖.
56 CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido ... p. 108.
57 LIMA, Eli. O exótico nas narrativas sobre a Amazônia. Op. cit. p. 74.
58 Idem, p. 90.
59 Idem, p. 108.
60 CUNHA, Euclides da. À margem... p. 26
“Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse encadeamento de fenômenos desdobrados
num ritmo vigoroso, de onde ressaltam, nítidas, as verdades da arte e da ciência — e que é
como que a grande lógica inconsciente das cousas...”61
Ainda que fosse verdadeira ―a monotonia soberana‖ do rio Amazonas, esse evocava de tantas formas o
maravilhoso, que empolgava por igual o cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido.
Como movimentar-se num campo de experiências em que estavam em jogo a grandiosidade do cenário a
aguçar a ―hipertrofia da imaginação‖, o drama humano insuportável e os aspectos técnicos a exigir o
cálculo preciso das potencialidades daqueles territórios?
A obra de Euclides da Cunha consagra o elemento geográfico, ou ainda, o critério espacial como um dos
seus princípios ordenadores. 62
O sertão baiano e a selva amazônica, regiões consideradas hostis, quase
vedadas ao trato humano, constituíram-se nos espaços privilegiados para sua abordagem, recorrendo
“à imagem do deserto para caracterizar a selva e o sertão como territórios ainda não
explorados pela ciência.”63
Em relação a Os Sertões as considerações mais presentes dizem sempre respeito à ―contraposição‖ ficção
e história ou ciência e literatura ou arte e ciência ou ficcionalidade, literariedade e historicidade. O que
Euclides da Cunha fez em Os Sertões foi ciência ou literatura? Trata-se de ficção ou relato objetivo dos
fatos ocorridos? Esta questão parece permear a quase totalidade das análises sobre o livro.
Berthold Zilly observa que Os Sertões tornou-se uma das obras-mestras da literatura brasileira, como,
também, da literatura universal e que isso é devido muito pouco ao valor documental ou historiográfico que
possa conter. Vejamos uma passagem de sua abordagem:
A força das imagens euclidianas se deve ainda à alusões que faz a cenas antiqüíssimas do
imaginário ocidental, relembradas de forma mais ou menos consciente pelos leitores,
imagens quase arquetípicas. É curioso observar que este autor, que se considerava ateu,
que se desculpava com os leitores por ter assistido a uma missa, se tenha valido tão
amplamente de recursos estilísticos, imagens, motivos, mitos de origem religiosa, bíblica
ou pagã, de cenas primordiais da humanidade. A forte impregnação religiosa do livro não
se deve só à temática, uma guerra contra um movimento camponês sócio-religioso. Com
certeza se deve também ao efeito estético e retórico almejado pelo autor que escreve um
livro “vingador”, “de ataque” (Cunha, 1985, p. 583), com o objetivo de impressionar,
entristecer, indignar. Quando evoca o que acontece com a cortina sobre o teatro da
guerra, com essa “imprimadura, sem relevos, do fumo”, sentimos um calafrio que sobe
das profundezas de nossa cultura e emotividade: “Recortava-a, rubro e sem brilhos —
uma chapa circular em brasa — um sol bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de
súbito, uma lufada rija. Pelo rasgão enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma
nesga do arraial...” (idem, p. 525).64
61 Idem.
62 SEVCENKO, Nicolau.. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo:
Brasiliense, 1983. p.p. 130-160.
63 VENTURA, R. ―Visões do deserto: selva e sertão de Euclides da Cunha‖. In: História, Ciências, Saúde — Manguinhos. Vol. v (suplemento), julho de 1998. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 1998. P.133.
64 ZILLY, Berthold. ―A guerra como painel e espetáculo histórico encenada em Os Sertões‖. Idem p. 29.
Luiz Costa Lima usará outra combinação, arte e ciência, para, após uma longa, severa e intrincada análise,
concluir que a ciência encobre a arte n‟Os Sertões.65
Luiz Fernando Valente propõe uma
“aliança entre a história e a ficção em Os Sertões a partir de novas teorias sobre a
textualidade da história e de novas metodologias de abordagem do texto literário, como o
„novo historicismo!‟ ”66
Evidentemente, ao mencionar esses três estudiosos, estamos tão-somente exemplificando nossa afirmação
anterior e, sem intenção alguma de negligenciar qualquer aspecto da riquíssima contribuição dos mesmos,
nos mantivemos circunscritos à idéia de fornecer exemplos de estudos recentes (aliás, recentíssimos).
Isto posto, em uma primeira aproximação, diríamos que dentre os elementos comuns no nível externo à
obra, qual seja o da apreciação da obra, entre Os Sertões e À margem..., permanece a mesma questão.
Em termos de apreensão dos fenômenos observados há quem considere haver de uma para outra obra, um
mudança significativa. No ensaio sobre a Amazônia sobressairia a denúncia sobre a espoliação humana, ao
narrar as agruras do cearense que se vende como seringueiro. Assim, para Alfredo Bosi, teria havido um:
“alargamento de compreensão histórica do roteiro euclidiano apesar das constantes de
estilo que tudo parece unificar, o ainda verde jornalista republicano, ansioso por assistir à
morte de Canudos, „a nossa Vendéia‟ e „foco monarquista‟, passou a testemunho de uma
comunidade cuja miséria e loucura a República punia ao invés de curar; enfim, o
denunciante de Os Sertões subiu, tateando embora, à consideração do nível social,
enfrentando problemas que transcendiam a simples interação Terra-Homem, fonte única
da sua temática inicial”.67
Considerado autêntico intérprete do mundo brasileiro, Euclides da Cunha mostrava-o, na pele da realidade,
através da criação de uma linguagem poderosa incorporando o que havia de telúrico sem ferir a ressonância
literária, como apreciaria Adonias Filho.
É, em qualquer hipótese, visível que Euclides da Cunha diante do cenário abrasado e ressequido do sertão e
da imensidão verde e aquosa da Amazônia manteve uma mesma atitude verbal: transformou-os em
elementos de sua grandiloqüência.
Torna-se necessário observar que quando Euclides da Cunha partiu em expedição para a Amazônia, já era o
autor consagrado de Os Sertões. A experiência nordestina já lhe dera régua e compasso. Por outras
palavras, Euclides da Cunha partira para a imensidão da hiléia para um trabalho de natureza estritamente
técnica: observar o comportamento dos rios nas diferentes estações climáticas, a possibilidade do
estabelecimento de uma rede de vias navegáveis, visando o transporte fácil e barato das riquezas ali
existentes. No seu idealismo consubstanciava-se a idéia de tudo fazer pelo progresso do país, reunir
esforços para que a Amazônia ―entrasse‖ para a história, uma história ―nossa‖. Em Os Sertões não desejara
fazer o mesmo?
As páginas de À margem... dão exemplos, teorias, dados estatísticos
65 LIMA, Luiz Costa. Terra ignota. A construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
66 VALENTE, Luiz Fernando. ―Entre Clio e Calíope, a construção da narrativa histórica.‖ In História, Ciências ... p. 39.
67 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 352.
“justificados e comprovados, numa seqüência de análises que os títulos deixara antever e
cuja leitura convence, principalmente nos momentos, e são muitos, em que o técnico cede
lugar ao humanista, e a pena do escritor, que é também pincel e buril, fixa para a
posteridade as imagens de uma intuição genial.” 68
Da mesma forma que em Os Sertões, as páginas que escreveu sobre a Amazônia estão prenhes de seu estilo
inconfundível, paradoxal, hiperbólico, pictórico, que atormenta a leitor e o deixa atônito entre a crítica, a
admiração e a perplexidade. Não é mesmo simples libertarmo-nos do fascínio de seu estilo, seja pela
iluminação, seja pelo enfado que sua eloqüência e erudição causa em uns e outros. Toda a sua obra é
perturbadora e desconfortável.
Seriam muitos os exemplos que poderiam nos orientar no sentido de identificar o ―estilo inconfundível‖ de
Euclides da Cunha, na obra sobre o Nordeste e naquela sobre a Amazônia, para além do fato da intenção
que seria n‟Os Sertões aquela de desejar ser um ―narrador sincero‖ e em À margem... e Um paraíso..., a de
procurar ―defender a verdade contra o direito‖, mas o faremos em outra oportunidade. Por enquanto,
afirmamos também que para além das figuras de linguagem (antíteses, hipérboles, metonímias, oxímoros,
dentre outras), permanecem no Euclides da Cunha ―amazônico‖ o autor que quase negligencia suas fontes
ao ―copiar‖ idéias de outrem sem indicar-lhe nome e obra e mesmo as lança como se fossem próprias e
cujo exemplo mais típico é a frase atribuída a Humboldt ―The King is building his monument!‖, Euclides
da Cunha dirá ―... a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão.‖
Os aspectos telúricos, selvagens, escultóricos, líricos, acusadores são imanentes. É de notar-se que Euclides
da Cunha parece fazer algum esforço em não misturar a objetividade que requer a observação ―limpa‖ com
um lirismo impressionista, mas, em face de seu temperamento e sensibilidade à ―hipertrofia da
imaginação‖, fica vulnerável, contaminando-se, o que o leva a apelar para as liberdades da expressão
poética, onde é possível fazer brotar o sonho e a fantasia.
“parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso vagaroso das análises: às
induções avantajam-se demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham em
hipérboles. E figura-se alguma vez em idealizar aforrado o que ressai nos elementos
tangíveis da realidade supreendedora, por maneira que o sonhador mais desensofrido se
encontre bem na pareceria dos sábios deslumbrados.” 69
Ainda que seja temerário afirmar categoricamente, ousamos indicar que Euclides da Cunha repete ( e não
simplesmente dá continuidade como, digamos, num movimento mecânico) os ―acertos‖ e os ―equívocos‖
já presentes em OS Sertões. O que se diferencia basicamente, ao nosso ver, é que nesta obra
“As contínuas incursões na literatura não são apenas uma questão de gosto estético, mas
também uma postura intelectual. A estrita preponderância da função referencial obrigaria
o autor á objetividade, à sobriedade, à pesquisa sistemática e paciente das fontes
históricas e, sobretudo, à coerência intelectual, isto é, à adoção de um ponto de vista
relativamente fixo, o que excluiria visões contraditórias (...) Excluiria, enfim, a
multiplicidade de vozes e perspectivas. A coerência intelectual e ideológica, indispensável
em um livro didático ou acadêmico, é substituída pela coerência estética e estilística. A
68 Rolando Morel Pinto em CUNHA, Euclides da. À margem... p.15.
69 CUNHA, Euclides da. À margem... p. 27.
arte não apenas ajuda a captar melhor a complexa realidade do sertão, como também
sugere melhor ao leitor as visões contraditórias que dela tem o autor.” 70
Berthold Zilly pondera, em relação à obra-prima, ser complexa a questão do (s) gênero(s) e, propondo
examinar as seis funções existentes em qualquer ato comunicativo (Roman Jakobson), quais sejam as
funções: expressiva, referencial, metalingüística, fática, apelativa ou conativa e a poética, ser difícil
detectar qual aquela predominante, existindo na obra ―revezamento contínuo‖ das funções expressivas,
referencial, poética e apelativa, permanecendo as demais ―temporariamente como pano de fundo.71
Nos ensaios sobre a Amazônia, em que pese a presença, acreditamos, dessas funções alternadamente ou
superpostas, prevalece a função referencial, o que lhe confere um lugar menor no plano literário.
O Estado Novo e a Obra de Euclides da Cunha
Após o primeiro pós-guerra torna-se inevitável repensar o Brasil. Alterava-se o quadro internacional e,
portanto, a configuração do país.
“A idéia da grande comunidade que se auto-regulava com perfeição, distribuindo
eqüitativamente a ordem e o progresso, é desmascarada. O Brasil vê-se, então, frente a
frente com seus problemas. (...) Este quadro denota claramente a fragilidade da nossa
situação no panorama internacional, ampliando o fantasma da cobiça externa.” 72
A palavra de ordem era a criação da nação e assumiria lugar de relevo o problema da identidade nacional,
conclamando os intelectuais a romper com o passado de dependência cultural. Operar-se-á transformação
significativa na concepção do papel do intelectual e da literatura. “O marco valorativo da obra literária
passa a ser o maior ou menor grau com que expressa a terra e a sociedade brasileira”. 73 Desta feita,
intelectuais preocupados com o meio urbano, de espírito citadino, incompatibilizam-se com a crítica
literária do Estado Novo, que consagra o paradigma naturalista.
“Um exemplo de intelectual alienado é Rui Barbosa, criticado pelo seu saber livresco e
inteligência teórica, fatores que o teriam irremediavelmente afastado do Brasil. Já
Euclides da Cunha é apontado como modelo do intelectual brasileiro, porque sua obra
fala do país que é rural.” 74
O dever do escritor no projeto literário do Estado Novo é o da fidelidade ao seu tempo e ao seu núcleo
cultural de origem, ou seja: literatura = nação, através da região. Por outras palavras, a autenticidade de
uma obra literária passaria, necessariamente, pelo critério espacial (a região) e temporal (a história). Assim
70 ZILLY, Berthold. Op. cit p.p. 15-16.
71 Idem, Nota 7 p. 33.
72 VELLOSO, Mônica Pimenta. ―A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista‖ In: Estudos Históricos, Rio
de Janeiro: CPDOC/FGV, vol. 6, n.11, 1993, p. 89.
73 CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade; estudos de história literária. São Paulo: Nacional, 1965. Apud VELLOSO, Mônica Pimenta. Idem p, 60.
74 VELLOSO, Mônica Pimenta, Op. cit. . 103
é que, por exemplo, Machado de Assis é um escritor severamente criticado e estigmatizado pelo regime
estadonovista, uma vez que rechaçava esse modelo. Se Machado de Assis desobedecera o ―modelo
paterno‖, Euclides da Cunha representará a consagração do mesmo.
“Se o escritor é visto como herói, não deve medir esforços para ajudar a obra de
construção nacional. Euclides vai preencher esses requisitos: além de literato e sociólogo,
participa na edificação da nossa rede ferroviária e fluvial.
Autodefinindo-se como „homem prático‟, distante das abstrações dos poetas e sonhadores,
Euclides obtém o reconhecimento do regime, que o consagra como um dos grandes vultos
da nacionalidade.”75
Será o caráter documental da obra de Euclides da Cunha o primeiro dos aspectos que viabilizará a
capitalização desse escritor para o projeto literário estadonovista.
Em fins do século XIX acreditava-se que a realidade só poderia ser concebida/capturada pela poderosa rede
da ciência. A invenção da fotografia vinha atender ao anseio de objetividade. Fotografia era, assim,
sinônimo de realidade.
“O ideal fotográfico acabou fundamentando uma determinada concepção de mundo cujo
referencial era a visibilidade e a exatidão.”76
Da mesma forma surge a idéia da literatura-reflexo, da literatura revelação. Se bem observamos a trajetória
de nossa história político-intelectual encontraremos nas mais diversas linhas de pensamento a tendência a
conceituar a literatura como locus portador e refletor do mundo social, conforme já salientamos.
“Raros foram os nossos autores que se rebelaram contra esse paradigma de análise,
buscando formas alternativas para pensar a relação literatura-sociedade. Os que tentaram
esse caminho foram tachados de alienados, alienígenas, e definitivamente proscritos da
legião de escritores consagrados. Afinal, a grande acusação que sobre eles pesava era
séria: desconhecer a nação.”! 77
Vejamos alguns exemplos: Olavo Bilac, José Lins do Rego, Cassiano Ricardo, Raquel de Queiróz, Afonso
Celso, Jorge Amado referendam essa linha de análise, em que pese a diversidade de perspectivas. Olavo
Bilac e Afonso Celso consideravam a literatura enquanto ―escola de civismo‖; na primeira fase da obra de
Jorge Amado, a literatura aparece como instrumento de conscientização política.
Mônica Pimenta Velloso pondera ser essa concepção de literatura simplista, ainda que se constitua no
Brasil em forte tradição.
“Simplista porque apresenta a obra literária como mero testemunho da sociedade, como
uma espécie de documento destinado exclusivamente ao registro dos fatos. Perde-se, dessa
forma, uma dimensão essencial da questão: a de que a sociedade é ao mesmo tempo uma
realidade objetiva e subjetiva. Se o escritor exterioriza seu ser no mundo social, ele
também o interioriza como realidade objetiva. Não há, portanto, um mundo dos fatos
pairando acima do indivíduo. Essa relação unilateral e objetiva entre os termos não existe.
Existe, sim, uma profunda dinâmica entre indivíduo e sociedade, feita de interações,
deslocamentos e modificações.”78
75 VELLOSO, Mônica Pimenta, “A literatura como espelho da nação‖ In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, vol 1,
n.2, 1988, p. 260.
76 Idem, p.239.
77 Idem.
78 Idem, p. 240
Mas, por que e em que bases os intelectuais brasileiros formularam a proposição literatura = sociedade? Por
que a literatura no Brasil possui uma tradição documental? Por que literatura, por outros termos, se tornou
entre nós documento?
O fato da colonização explicaria, em alguma medida, tal situação. Octávio Paz diz-nos: “Somos um
capítulo da história das utopias européias.”79 Tivemos nossa existência marcada pela presença do outro.
Toda a América Latina foi campo de experiências do saber europeu.
“Dessa forma, nossa literatura já nasceu comprometida com uma escala de valores
adversa à sua natureza ficcional. Racionalidade ao invés de imaginação, sistematização
ao invés de invenção (...). Realmente, o veto ao imaginário é à subjetividade tem sido uma
constante em nossa história intelectual.”80
A concepção de literatura como apêndice da sociedade tem base positivista: se não estiver ancorada por
parâmetro cientificista não será respeitada e será considerada discurso secundário. Precisão, objetividade,
exatidão são os termos da equação.
É possível observar-se tal visão nos paradigmas clássicos da crítica literária brasileira, seja por meio de
Silvio Romero, seja por José Veríssimo.
Em ambos, em que pese em Romero ser o modelo de julgamento da obra literária a nacionalidade e em
Veríssimo a linguagem, reside o mesmo raciocínio: a literatura deve representar fielmente uma realidade
mais ampla que a regula.
Mas, de que realidade se fala? O princípio da verdade tem sido caro aos nossos críticos literários e a
verdade não estaria na mente humana, posto que ilusória e, portanto, propensa ao erro. Ela está no mundo
do fatos, da ação.
“A literatura se transforma, então, num inventário da realidade, já que essa realidade é
algo que pode ser mapeado. Está feita a associação: literatura = representação do real =
documento ou inventário.”81
A competência do artista residiria, assim, em retratar uma realidade dada.
Não temos bagagem suficiente para dissertarmos acerca de quais sejam os objetivos da obra literária, de
qualquer forma, ponderamos que visibilidade, exatidão, reflexo, retrato do real não são termos de equação
de uma obra literária. Esta procura é a transfiguração do real. O que está em discussão aqui não é se
literatura e realidade histórica são compatíveis ou não. O que estamos tentando compreender é o vínculo
obrigatório entre criação literária e nação. Esse compromisso da vinculação literatura – nação, entre nós,
incidiu em enorme dificuldade na assimilação da literatura como forma discursiva autônoma, particular.
Seria de se perguntar porque a literatura no Brasil esteve mais afeita à tendências realistas do que ás
ficcionais. Velloso aposta em duas possibilidades: ou ficção fazia parte do que era considerado secundário
por não ser compatível com o real ou porque era uma ameaça à ordem estabelecida.
79 Idem, ibidem.
80 Idem, p. 241
81 Idem.
“Essa mentalidade positivista, calcada no culto à veracidade, daria origem a uma
produção intelectual sui generis. Buscando interpretar o Brasil, os nossos ensaios se
inspiraram nas mais diversas áreas de reflexão, como a história, a economia, a arte, a
política, a literatura (...). Dentro desse gênero é que se enquadram as grandes reflexões
sobre a nacionalidade, com as obras de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda.”82
O que, no nosso entendimento, existe de comum entre esses intelectuais seria, unicamente
83, a
preocupação sociológica que move sua produção ensaística, que é, por outro lado, característica de uma
geração que buscava as raízes de nossa formação social. Para tanto, evidenciava-se a premência do
domínio de um instrumental de análise que pudesse ser aprovado e provado cientificamente. Só através do
crivo da cientificidade seria dada ao intelectual responsável a acuidade para perceber a nacionalidade e
propor solução para os males existentes.
Criou-se, dessa feita, um mito em torno da sociologia cujo saber ganhou o estatuto da cientificidade. Como
diria Mário de Andrade, a sociologia era a ―arte de salvar rapidamente o Brasil.‖84
É fato conhecido que com o Golpe de 1930 inaugura-se uma fase decisiva do processo de constituição do
Estado brasileiro como um Estado nacional, capitalista, burguês. A crescente centralização do poder
desembocava no Estado como poder unificado e genérico, representativo do ―interesse geral‖.
“Apesar de iniciado no imediato pós-30, o marco na aceleração deste processo foi a
instauração do Estado Novo em 1937. Sob a égide da ditadura, abrir-se-iam novas
possibilidades de redefinição dos canais de representação, de participação política e de
construção da cidadania.”85
As idéias salvacionistas ganharam fôlego no período do Estado Novo (1937 – 1945). As elites intelectuais
precisavam marcar lugar na cena política. Dá-se aí uma tentativa clara de redefinição do papel da literatura
na nacionalidade. Nos anos 30 a literatura é vista como fraude, engodo, retórica; a sociologia é a revelação,
o locus da ―interpretação realista‖ por oposição à ―interpretação literária‖. A nacionalidade partida entre
litoral e sertão: qual o saber mais adequado para interpretá-la?
“O esquema da nacionalidade centrada na geografia assume uma importância inédita
entre nós. E é com base nele que vai ser construída uma espécie de tipologia intelectual
centrada nas categorias litoral e sertão. Extrapola-se, ou melhor, sofistica-se a tese dos
dois brasis, que passam a configurar saberes opostos.”86
Euclides da Cunha será para o projeto literário do Estado Novo o representante de uma literatura-modelo.
As condições sociais eram já bastante diversas daquelas dadas no advento da República, o desenvolvimento
estava a cargo de um projeto político mais claro e um novo Estado procurava orientar e disciplinar as
mudanças em curso. O mito das três raças vestia nova roupagem, tornando-se aceitável, podendo-se
atualizar enquanto ritual.
82 Idem, p. 242
83 O aposto serve para indicar nossa dificuldade em aceitar incluir Sérgio Buarque de Holanda nesse rol. A explicação seria longa
demais para ser descrita neste momento. Fica, no entanto, o registro.
84 Idem.
85 MENDONÇA, Sônia Regina de. ―Sociedade e política: construção e crise do populismo no Brasil‖. In LINHARES, Mª Yedda Leite (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 257.
86 VELLOSO, Mônica Pimenta. ―A literatura ...” p.245.
“A ambigüidade da identidade do Ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX
não podia resistir mais tempo. Ela havia se tornado incompatível com o processo de
desenvolvimento econômico e social do país. Basta lembrarmos que nos anos 30 procura-
se transformar radicalmente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como
„preguiça‟, indolência, considerados como inerentes à raça mestiça, são substituídas por
uma ideologia do trabalho”.87
Que outro autor possuía a ―vulgaridade mameluca‖ da brasileiríssima ―humilde e boa caipiragem?‖ Era
permitida e incentivada a confusão entre a estrutura física e a estrutura da obra. “Euclides é o intelectual
autêntico porque fala sobre o seu meio rural, o sertão, o mameluco, e o faz de forma simples, objetiva,
despretensiosa e nacional (...)”88 A identidade que une autor-nação viria a ser fundamental na consagração
da obra euclidiana pela ideologia estadonovista.
Torna-se necessário esclarecer que neste item estaremos considerando como foi apropriada a produção
euclidiana (em alguma medida d‘Os Sertões e em medida algo maior da Amazônia) pelo Estado Novo e a
ideologia que o embasava. Para essa, Euclides da Cunha emite, ao falar do sertão, o discurso verdadeiro,
sério e grandioso, ou seja, a epopéia. Sabemos que nem sempre o discurso é verdadeiro, e nem mesmo
sério, embora pareça, pelas figuras de linguagem, próprias de um estilo inspirado e ilustrado, sempre
grandioso. Por outro lado, sabemos, igualmente, à par da necessidade de o artista ter o dever de priorizar a
análise objetiva das verdades extraídas da observação científica, compromisso dos representantes da
geração cientificista de 1870 e defendido por Euclides da Cunha, nosso autor teve grande dificuldade em
controlar a ―hipertrofia da imaginação‖.
Para a ideologia estadonovista, que consagra o paradigma naturalista, Euclides da Cunha é perfeito. A
natureza devia ser descrita e observada por ser ―testemunhada verazmente‖. ―Na obra de Euclides da
Cunha, este aspecto é claro: o escritor se comporta como verdadeiro observador que, munido da
objetividade científica, descreve a natureza (Cunha, 1942b:70). Ele nos fala, então, de um „Amazonas real‟
diferindo-o da imagem subjetiva que temos deste rio‖.89
Hyppolite Taine foi um dos maiores inspiradores da geração que introduziu uma análise sociológica da
literatura, vinculada á corrente realista-materialista. Meio, raça e momento são os termos da trindade
tainiana e sua influência foi decisiva na constituição de uma das vertentes mais sólidas do pensamento
político brasileiro. No Estado Novo esse alicerce será rigorosamente reforçado.
Será precisamente a partir desse momento que se recrudescem os mecanismos que buscavam dar
identidade à Amazônia, após a quebra do monopólio da borracha silvestre, via investimento de capital
estrangeiro para o desenvolvimento de grandes plantações de seringueiras (veja-se, por exemplo, a
experiência da Ford Motor Company, iniciada em 1922). Mostrava-se premente a necessidade de domar a
―hostilidade‖ da natureza de uma região ―quase vedada ao trato humano‖90
para o progresso da nação. Para
87 ORTIZ, Renato. Op. cit p.42.
88 VELLOSO, Mônica Pimenta. ―A literatura...” p. 257
89 Idem, p. 258.
90 SODRÉ, Lauro. Mensagem apresentada ao Congresso Legislador do Estado do Pará em Sessão solene de abertura da 3ª reunião de sua 10ª Legislatura a 7 de setembro de 1920, pelo Governado do Estado, Dr. Lauro Sodré. Belém: Imprensa Oficial,
1920, p. 45.
a ideologia estadonovista, como dissemos, será o caráter documental da obra de Euclides da Cunha aquele
que a interessará.
Em que pese considerarmos que Euclides da Cunha tenha sempre (n‘Os Sertões como nos escritos sobre a
Amazônia) oscilado entre a denúncia social e a proposta de superação e supressão das condições de
exploração através do ideal do progresso, cuja gênese parece não perceber, devemos observar também que
Os Sertões, canonizado como epopéia, consagrado pelo estilo, transformou-se em obra de arte. A denúncia
social, seu caráter mais relevante, ficou esvaziado pelo reconhecimento literário da obra.
―Literatura e nacionalidade acabam sendo coisas incompatíveis, já que a primeira acaba justificando crimes
contra a própria nação.‖ 91
Citando Afrânio Peixoto, registra Velloso:
“Quase que o Brasil ou apenas sentia que seria justa aquela terrível e canibal trucidação
fria de cinco mil brasileiros inermes, e daí tinham vindo Os Sertões. Lembra a beleza de
Helena, justificando toda a penitência, por dez anos, dos guerreiros gregos e troianos.
Terminávamos a chacina com um saldo: Euclides da Cunha... Nunca a nossa admiração
nos custara tanto...”92
Outro aspecto que uniu a obra de Euclides da Cunha às idéias do projeto literário estadonovista foi o
regionalismo. Seu referencial circunscreve-se a 3 zonas geográficas, Norte, Sul e Amazônia e suas
reflexões sobre a nacionalidade as tem como pano de fundo. Ao conferir papel determinante à geografia
como modeladora das diversidades regionais, defendendo o expansionismo territorial e o sertanismo,
Euclides se transforma numa espécie de escritor-modelo do Estado Novo.
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