Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    1/28

    DA FALTA DE EFETIVIDADE JUDICIALIZAO EXCESSIVA:

    DIREITO SADE, FORNECIMENTO GRATUITO DE

    MEDICAMENTOS E PARMETROS PARA A ATUAO JUDICIAL

    Lus Roberto Barroso1

    Apresentao do tema

    I. O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicializao excessiva

    1. Nos ltimos anos, no Brasil, a Constituio conquistou, verdadeiramente,

    fora normativa e efetividade. A jurisprudncia acerca do direito sade e ao

    fornecimento de medicamentos um exemplo emblemtico do que se vem de afirmar.

    As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um

    documento estritamente poltico, mera convocao atuao do Legislativo e do

    Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juzes e

    tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em

    particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela

    judicial especfica. A interveno do Poder Judicirio, mediante determinaes

    Administrao Pblica para que fornea gratuitamente medicamentos em uma variedade

    de hipteses, procura realizar a promessa constitucional de prestao universalizada do

    servio de sade.

    2. O sistema, no entanto, comea a apresentar sintomas graves de que pode

    morrer da cura, vtima do excesso de ambio, da falta de critriose de voluntarismos

    diversos. Por um lado, proliferam decises extravagantes ou emocionais, que condenam

    a Administrao ao custeio de tratamentos irrazoveis seja porque inacessveis, sejaporque destitudos de essencialidade , bem como de medicamentos experimentais ou

    de eficcia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, no h um

    critrio firme para a aferio de qual entidade estatal Unio, Estados e Municpios

    deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os

    processos terminam por acarretar superposio de esforos e de defesas, envolvendo

    diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes pblicos,

    a includos procuradores e servidores administrativos. Desnecessrio enfatizar que tudoisso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestao jurisdicional.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    2/28

    2

    3. Tais excessos e inconsistncias no so apenas problemticos em si. Eles

    pem em risco a prpria continuidade das polticas de sade pblica, desorganizando a

    atividade administrativa e impedindo a alocao racional dos escassos recursos

    pblicos. No limite, o casusmo da jurisprudncia brasileira pode impedir que polticas

    coletivas, dirigidas promoo da sade pblica, sejam devidamente implementadas.

    Trata-se de hiptese tpica em que o excesso de judicializao das decises polticas

    pode levar no realizao prtica da Constituio Federal. Em muitos casos, o que se

    revela a concesso de privilgios a alguns jurisdicionados em detrimento da

    generalidade da cidadania, que continua dependente das polticas universalistas

    implementadas pelo Poder Executivo.

    4. O estudo que se segue procura desenvolver uma reflexo terica e prtica

    acerca de um tema repleto de complexidades e sutilezas. Seu maior propsito

    contribuir para a racionalizao do problema, com a elaborao de critrios e

    parmetros que justifiquem e legitimem a atuao judicial no campo particular das

    polticas de distribuio de medicamentos. O Judicirio no pode ser menos do que deve

    ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua

    atuao. De outra parte, no deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais

    de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave

    leso a direitos da mesma natureza de outros tantos. Na frase inspirada de Gilberto

    Amado, querer ser mais do que se , ser menos.

    5. Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Algum poderia supor, a um

    primeiro lance de vista, que se est diante de uma coliso de valores ou de interesses

    que contrape, de um lado, o direito vida e sade e, de outro, a separao de

    Poderes, os princpios oramentrios e a reserva do possvel. A realidade, contudo,

    mais dramtica. O que est em jogo, na complexa ponderao aqui analisada, o direito

    vida e sade de uns versus o direito vida e sade de outros. No h soluojuridicamente fcil nem moralmente simples nessa questo.

    Parte I - Algumas premissas doutrinrias

    I. A doutrina da efetividade

    6. O reconhecimento de fora normativa s normas constitucionais foi uma

    importante conquista do constitucionalismo contemporneo. No Brasil, ela sedesenvolveu no mbito de um movimento jurdico-acadmico conhecido como doutrina

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    3/28

    3

    brasileira da efetividade2. Tal movimento procurou no apenas elaborar as categorias

    dogmticas da normatividade constitucional, como tambm superar algumas crnicas

    disfunes da formao nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no

    uso da Constituio como uma mistificao ideolgica e na falta de determinao

    poltica em dar-lhe cumprimento. A essncia da doutrina da efetividade tornar as

    normas constitucionais aplicveis direta e imediatamente, na extenso mxima de sua

    densidade normativa.

    7. Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurdicas em geral,

    so dotadas do atributo da imperatividade. No prprio de uma norma jurdica sugerir,

    recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contm comandos. Descumpre-

    se a imperatividade de uma norma tanto por ao quanto por omisso. Ocorrida a

    violao, o sistema constitucional e infraconstitucional devem prover meios para a

    tutela do direito ou bem jurdico afetados e restaurao da ordem jurdica. Estes meios

    so a ao e a jurisdio: ocorrendo uma leso, o titular do direito ou algum com

    legitimao ativa para proteg-lo pode ir a juzo postular reparao. Existem

    mecanismos de tutela individual e de tutela coletiva de direitos.

    8. Na prtica, em todas as hipteses em que a Constituio tenha criado direitos

    subjetivos polticos, individuais, sociais3 ou difusos so eles, como regra, direta e

    imediatamente exigveis, do Poder Pblico ou do particular, por via das aes

    constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurdico. O Poder

    Judicirio, como conseqncia, passa a ter papel ativo e decisivo na concretizao da

    Constituio. A doutrina da efetividade serviu-se, como se deduz explicitamente da

    exposio at aqui desenvolvida, de uma metodologia positivista: direito constitucional

    norma; e de um critrio formal para estabelecer a exigibilidade de determinados

    direitos: se est na Constituio para ser cumprido.4 Nos dias que correm, tornou-se

    necessria a sua convivncia com novas formulaes doutrinrias, de base ps-positivista, que levam em conta fenmenos apreendidos mais recentemente, como a

    coliso entre normas especialmente as que abrigam princpios e direitos fundamentais

    , a necessidade da ponderao para resolver tais situaes, bem como conceitos como

    mnimo existencial e fundamentalidade material dos direitos.

    II. A teoria dos princpios

    9. A teoria dos princpios, qual se acha associada uma teoria dos direitosfundamentais, desenvolveu-se a partir dos estudos seminais de Ronald Dworkin,

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    4/28

    4

    difundidos no Brasil ao final da dcada de 80 e ao longo dos anos 90 do sculo

    passado.5 Na seqncia histrica, Robert Alexy ordenou a teoria dos princpios em

    categorias mais prximas da perspectiva romano-germnica do Direito6. As duas obras

    precursoras desses autores Levando os direitos a srio e Teoria dos direitos

    fundamentais deflagraram uma verdadeira exploso de estudos sobre o tema, no Brasil

    e alhures7. So elementos essenciais do pensamento jurdico contemporneo a

    atribuio de normatividade aos princpios e o reconhecimento da distino qualitativa

    entre regras e princpios A doutrina costuma compilar uma enorme variedade de

    critrios para estabelecer a diferena entre ambos8.

    10. quanto ao modo de aplicao que reside a principal

    distino entre regra e princpio. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada:

    ocorrendo o fato descrito em seu relato ela dever incidir, produzindo o efeito previsto9.

    Se no for aplicada sua hiptese de incidncia, a norma estar sendo violada. No h

    maior margem para elaborao terica ou valorao por parte do intrprete, ao qual

    caber aplicar a regra mediante subsuno: enquadra-se o fato na norma e deduz-se uma

    concluso objetiva. Por isso se diz que as regras so mandados ou comandos

    definitivos10: uma regra somente deixar de ser aplicada se outra regra a excepcionar ou

    se for invlida. Como conseqncia, os direitos nela fundados tambm sero

    definitivos11.

    11. J os princpios abrigam um direito fundamental, um valor, um fim. Ocorre

    que, em uma ordem jurdica pluralista, a Constituio abriga princpios que apontam em

    direes diversas, gerando tenses e eventuais colises entre eles. Estes entrechoques

    podem ser de trs tipos: a) coliso entre princpios constitucionais, como, e.g., a livre

    iniciativa versus a proteo do consumidor, na hiptese de se pretender tabelar o preo

    de determinado medicamento; b) coliso entre direitos fundamentais, como, e.g., odireito vida e sade de uma pessoa versus o direito vida e sade de outra pessoa,

    na hiptese de ambos necessitarem com urgncia de transplante de determinado rgo,

    quando s exista um disponvel; c) coliso entre direitos fundamentais e outros

    princpios constitucionais, como, e.g., o direito sade versus a separao de Poderes,

    no caso de determinadas opes legais ou administrativas acerca de tratamentos a serem

    oferecidos.

    12. Como todas essas normas em rota de coliso tm a mesma hierarquia, nopodem elas ser aplicadas na modalidade tudo ou nada, mas sim de acordo com a

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    5/28

    5

    dimenso de peso que assumem na situao especfica. Cabe autoridade competente

    que poder ser o legislador ou o intrprete judicial proceder ponderao dos

    princpios e fatos relevantes, e no a subsuno do fato a uma regra determinada. Por

    isso se diz que princpios so mandados de otimizao: devem ser realizados na maior

    intensidade possvel, vista dos demais elementos jurdicos e fticos presentes na

    hiptese12. Da decorre que os direitos neles fundados so direitos prima facie isto ,

    podero ser exercidos em princpio e na medida do possvel13.

    13. Uma ltima observao: em muitas situaes, o legislador realiza

    ponderaes em abstrato, definindo parmetros que devem ser seguidos nos casos de

    coliso. Quando isso ocorrer, no deve o intrprete judicial sobrepor a sua prpria

    valorao que foi feita pelo rgo de representao popular, a menos que esteja

    convencido e seja capaz de racionalmente demonstrar que a norma em que se

    consubstanciou a ponderao no compatvel com a Constituio14.

    III. Constitucionalismo, democracia e papel do Poder Judicirio

    14. A idia de Estado democrtico de direito, consagrada no art. 1 da

    Constituio brasileira15, a sntese histrica de dois conceitos que so prximos, mas

    no se confundem: os de constitucionalismo e de democracia. Constitucionalismo

    significa, em essncia, limitao do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of

    law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximao sumria, traduz-se em

    soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem

    surgir, eventualmente, pontos de tenso: a vontade da maioria pode ter de estancar

    diante de determinados contedos materiais, orgnicos ou processuais da Constituio.

    A compreenso desse ponto decisiva para o equacionamento adequado da questo

    aqui tratada.

    15. O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoahumana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana o

    centro de irradiao dos direitos fundamentais, sendo freqentemente identificada como

    o ncleo essencial de tais direitos16. Os direitos fundamentais incluem: a) a liberdade,

    isto , a autonomia da vontade, o direito de cada um eleger seus projetos existenciais; b)

    a igualdade, que o direito de ser tratado com a mesma dignidade que todas as pessoas,

    sem discriminaes arbitrrias e excluses evitveis; c) o mnimo existencial, que

    corresponde s condies elementares de educao, sade e renda que permitam, emuma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatrios e a participao

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    6/28

    6

    esclarecida no processo poltico e no debate pblico. Os trs Poderes Legislativo,

    Executivo e Judicirio tm o dever de realizar os direitos fundamentais, na maior

    extenso possvel, tendo como limite mnimo o ncleo essencial desses direitos.

    16. O princpio democrtico, por sua vez, se expressa na idia de soberania

    popular: todo poder emana do povo, na dico expressa do pargrafo nico do art. 1 da

    Constituio brasileira17. Como decorrncia, o poder poltico deve caber s maiorias que

    se articulam a cada poca. O sistema representativo permite que, periodicamente, o

    povo se manifeste elegendo seus representantes. O Chefe do Executivo e os membros

    do Legislativo so escolhidos pelo voto popular e so o componente majoritrio do

    sistema. Os membros do Poder Judicirio so recrutados, como regra geral, por critrios

    tcnicos e no eletivos. A idia de governo da maioria se realiza, sobretudo, na atuao

    do Executivo e do Legislativo, aos quais compete a elaborao de leis, a alocao de

    recursos e a formulao e execuo de polticas pblicas, inclusive as de educao,

    sade, segurana etc.

    17. Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos

    fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo da maioria. Mas pode

    acontecer de a maioria poltica vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre, cabe

    ao Judicirio agir. nesse ambiente, nessa dualidade presente no Estado

    constitucional democrtico que se coloca a questo essencial: podem juzes e tribunais

    interferir com as deliberaes dos rgos que representam as maiorias polticas isto ,

    o Legislativo e o Executivo , impondo ou invalidando aes administrativas e polticas

    pblicas? A resposta ser afirmativa sempre que o Judicirio estiver atuando,

    inequivocamente, para preservar um direito fundamental previsto na Constituio ou

    para dar cumprimento a alguma lei existente. Vale dizer: para que seja legtima, a

    atuao judicial no pode expressar um ato de vontade prpria do rgo julgador,

    precisando sempre reconduzir-se a uma prvia deliberao majoritria, seja doconstituinte, seja do legislador18.

    IV. Concluso das premissas doutrinrias

    18. Sempre que a Constituio define um direito fundamental ele se torna

    exigvel, inclusive mediante ao judicial. Pode ocorrer de um direito fundamental

    precisar ser ponderado com outros direitos fundamentais ou princpios constitucionais,

    situao em que dever ser aplicado na maior extenso possvel, levando-se em conta oslimites fticos e jurdicos, preservado o seu ncleo essencial. O Judicirio dever

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    7/28

    7

    intervir sempre que um direito fundamental ou infraconstitucional estiver sendo

    descumprido, especialmente se vulnerado o mnimo existencial de qualquer pessoa. Se o

    legislador tiver feito ponderaes e escolhas vlidas, luz das colises de direitos e de

    princpios, o Judicirio dever ser deferente para com elas, em respeito ao princpio

    democrtico.

    Parte II - O direito sade no Brasil. Constituio, legislao

    infraconstitucional e a poltica de distribuio de medicamentos

    I. Breve notcia histrica

    19. A trajetria da sade pblica no Brasil inicia-se ainda no sculo XIX19, com

    a vinda da Corte portuguesa. Nesse perodo, eram realizadas apenas algumas aes de

    combate lepra e peste, e algum controle sanitrio, especialmente sobre os portos e

    ruas. somente entre 1870 e 1930 que o Estado passa a praticar algumas aes mais

    efetivas no campo da sade, com a adoo do modelo campanhista, caracterizado pelo

    uso corrente da autoridade e da fora policial. Apesar dos abusos cometidos20, o modelo

    campanhista obteve importantes sucessos no controle de doenas epidmicas,

    conseguindo, inclusive, erradicar a febre amarela da cidade do Rio de Janeiro21.

    20. Durante o perodo de predominncia desse modelo, no havia, contudo,

    aes pblicas curativas, que ficavam reservadas aos servios privados e caridade.

    Somente a partir da dcada de 30, h a estruturao bsica do sistema pblico de sade,

    que passa a realizar tambm aes curativas. criado o Ministrio da Educao e Sade

    Pblica22. Criam-se os Institutos de Previdncia, os conhecidos IAPs, que ofereciam

    servios de sade de carter curativo. Alguns destes IAPs possuam, inclusive, hospitais

    prprios. Tais servios, contudo, estavam limitados categoria profissional ligada ao

    respectivo Instituto23. A sade pblica no era universalizada em sua dimenso curativa,restringindo-se a beneficiar os trabalhadores que contribuam para os institutos de

    previdncia.

    21. Ao longo do regime militar, os antigos Institutos de Aposentadoria e Penso

    (IAPs) foram unificados, com a criao do INPS Instituto Nacional de Previdncia

    Social. Vinculados ao INPS, foram criados o Servio de Assistncia Mdica e

    Domiciliar de Urgncia e a Superintendncia dos Servios de Reabilitao da

    Previdncia Social. Todo trabalhador urbano com carteira assinada era contribuinte ebeneficirio do novo sistema, tendo direito a atendimento na rede pblica de sade24.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    8/28

    8

    No entanto, grande contingente da populao brasileira, que no integrava o mercado de

    trabalho formal, continuava excludo do direito sade, ainda dependendo, como

    ocorria no sculo XIX, da caridade pblica.

    II. O sistema normativo a partir da Constituio de 1988

    22. Com a redemocratizao, intensificou-se o debate nacional sobre a

    universalizao dos servios pblicos de sade. O momento culminante do movimento

    sanitarista foi a Assemblia Constituinte, em que se deu a criao do Sistema nico de

    Sade. A Constituio Federal estabelece, no art. 196, que a sade direito de todos e

    dever do Estado, alm de instituir o acesso universal e igualitrio s aes e servios

    para sua promoo, proteo e recuperao. A partir da Constituio Federal de 1988,

    a prestao do servio pblico de sade no mais estaria restrita aos trabalhadores

    inseridos no mercado formal. Todos os brasileiros, independentemente de vnculo

    empregatcio, passaram a ser titulares do direito sade25.

    II.1. A repartio de competncias e a Lei do SUS

    23. Do ponto de vista federativo, a Constituio atribuiu competncia para

    legislar sobre proteo e defesa da sade concorrentemente Unio, aos Estados e aos

    Municpios (CF/88, art. 24, XII, e 30, II). Unio cabe o estabelecimento de normas

    gerais (art. 24, 1); aos Estados, suplementar a legislao federal (art. 24, 2); e aos

    Municpios, legislar sobre os assuntos de interesse local, podendo igualmente

    suplementar a legislao federal e a estadual, no que couber (art. 30, I e II) 26. No que

    tange ao aspecto administrativo (i.e., possibilidade de formular e executar polticas

    pblicas de sade), a Constituio atribuiu competncia comum Unio, aos Estados e

    aos Municpios (art. 23, II). Os trs entes que compem a federao brasileira podem

    formular e executar polticas de sade27.24. Como todas as esferas de governo so competentes, impe-se que haja

    cooperao entre elas, tendo em vista o equilbrio do desenvolvimento e do bem-estar

    em mbito nacional (CF/88, art. 23, pargrafo nico). A atribuio de competncia

    comum no significa, porm, que o propsito da Constituio seja a superposio entre

    a atuao dos entes federados, como se todos detivessem competncia irrestrita em

    relao a todas as questes. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficincia na prestao

    dos servios de sade, com a mobilizao de recursos federais, estaduais e municipaispara realizar as mesmas tarefas.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    9/28

    9

    25. Logo aps a entrada em vigor da Constituio Federal, em setembro de 1990,

    foi aprovada a Lei Orgnica da Sade (Lei n 8.080/90). A lei estabelece a estrutura e o

    modelo operacional do SUS, propondo a sua forma de organizao e de funcionamento.

    O SUS concebido como o conjunto de aes e servios de sade, prestados por rgos

    e instituies pblicas federais, estaduais e municipais, da Administrao direta e

    indireta. A iniciativa privada poder participar do SUS em carter complementar. Entre

    as principais atribuies do SUS, est a formulao da poltica de medicamentos,

    equipamentos, imunobiolgicos e outros insumos de interesse para a sade e a

    participao na sua produo (art. 6, VI).

    26. A Lei n 8.080/90, alm de estruturar o SUS e de fixar suas atribuies,

    estabelece os princpios pelos quais sua atuao deve se orientar, dentre os quais vale

    destacar o da universalidade por fora do qual se garante a todas as pessoas o acesso

    s aes e servios de sade disponveis e o da subsidiariedade e da

    municipalizao28, que procura atribuir prioritariamente a responsabilidade aos

    Municpios na execuo das polticas de sade em geral, e de distribuio de

    medicamentos em particular (art. 7, I e IX).

    27. A Lei n 8.080/90 procurou ainda definir o que cabe a cada um dos entes

    federativos na matria. direo nacional do SUS, atribuiu a competncia de prestar

    cooperao tcnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios para o

    aperfeioamento da sua atuao institucional (art. 16, XIII), devendo promover a

    descentralizao para as Unidades Federadas e para os Municpios, dos servios e aes

    de sade, respectivamente, de abrangncia estadual e municipal (art. 16, XV).

    direo estadual do SUS, a Lei n 8.080/90, em seu art. 17, atribuiu as competncias de

    promover a descentralizao para os Municpios dos servios e das aes de sade, de

    lhes prestar apoio tcnico e financeiro, e de executar supletivamente aes e servios de

    sade. Por fim, direo municipal do SUS, incumbiu de planejar, organizar, controlar,gerir e executar os servios pblicos de sade (art. 18, I e III).

    28. Como se observa, Estados e Unio Federal somente devem executar

    diretamente polticas sanitrias de modo supletivo, suprindo eventuais ausncias dos

    Municpios. Trata-se de decorrncia do princpio da descentralizao administrativa.

    Como antes ressaltado, a distribuio de competncias promovida pela Constituio e

    pela Lei n 8.080/90 orienta-se pelas noes de subsidiariedade e de municipalizao29.

    A mesma lei disciplina ainda a participao dos trs entes no financiamento dosistema30. Os temas do financiamento e da articulao entre os entes para a

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    10/28

    10

    administrao econmica do sistema, porm, no sero objeto de exame neste estudo.

    Veja-se, portanto, que o fato de um ente da Federao ser o responsvel perante a

    populao pelo fornecimento de determinado bem no significa que lhe caiba custe-lo

    sozinho ou isoladamente. Esta, porm, ser uma discusso diversa, a ser travada entre os

    entes da Federao, e no entre eles e os cidados.

    II. 2. A questo especfica da distribuio de medicamentos

    29. No que toca particularmente distribuio de medicamentos, a competncia

    de Unio, Estados e Municpios no est explicitada nem na Constituio nem na Lei. A

    definio de critrios para a repartio de competncias apenas esboada em inmeros

    atos administrativos federais, estaduais e municipais, sendo o principal deles a Portaria

    n 3.916/98, do Ministrio da Sade, que estabelece a Poltica Nacional de

    Medicamentos31. De forma simplificada, os diferentes nveis federativos, em

    colaborao, elaboram listas de medicamentos que sero adquiridos e fornecidos

    populao.

    30. Com efeito, ao gestor federal caber a formulao da Poltica Nacional de

    Medicamentos, o que envolve, alm do auxlio aos gestores estaduais e municipais, a

    elaborao da Relao Nacional de Medicamento (RENAME). Ao Municpio, por seu

    turno, cabe definir a relao municipal de medicamentos essenciais, com base na

    RENAME32, e executar a assistncia farmacutica. O propsito prioritrio da atuao

    municipal assegurar o suprimento de medicamentos destinados ateno bsica

    sade, alm de outros medicamentos essenciais que estejam definidos no Plano

    Municipal de Sade. O Municpio do Rio de Janeiro, por exemplo, estabeleceu, atravs

    da Resoluo SMS n 1.048, de maro de 2004, a Relao Municipal de Medicamentos

    Essenciais (REMUME)33, instrumento tcnico-normativo que rene todo o elenco de

    medicamentos padronizados usados pela Secretaria Municipal de Sade34.31. A Unio em parceria com os Estados e o Distrito Federal ocupa-se sobretudo

    da aquisio e distribuio dos medicamentos de carter excepcional35, conforme

    disposto nas Portarias n 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006, e n 1.321, de 5 de junho

    de 200736. Assim, ao gestor estadual caber definir o elenco de medicamentos que sero

    adquiridos diretamente pelo Estado, particularmente os de distribuio em carter

    excepcional. No caso especfico do Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de

    Sade criou Comit Tcnico Operacional, com as funes de adquirir, armazenar edistribuir os medicamentos de competncia estadual (Resoluo SES n 2.471, de 20 de

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    11/28

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    12/28

    12

    natural ofcio do magistrado de aplicar a lei. Tambm ser legtima a utilizao de

    fundamentos morais ou tcnicos, quando seja possvel formular um juzo de

    certo/errado em face das decises dos poderes pblicos. No dessas hipteses que se

    est cuidando aqui.

    35. O tema versado no presente estudo envolve princpios e direitos

    fundamentais, como dignidade da pessoa humana, vida e sade. Disso resultam duas

    conseqncias relevantes. A primeira: como clusulas gerais que so, comportam uma

    multiplicidade de sentidos possveis e podem ser realizados por meio de diferentes atos

    de concretizao. Em segundo lugar, podem eles entrar em rota de coliso entre si. A

    extrao de deveres jurdicos a partir de normas dessa natureza e estrutura deve ter

    como cenrio principal as hipteses de omisso dos Poderes Pblicos ou de ao que

    contravenha a Constituio. Ou, ainda, de no atendimento do mnimo existencial.

    36. Ressalvadas as hipteses acima, a atividade judicial deve guardar parcimnia

    e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de opes legislativas e administrativas

    formuladas acerca da matria pelos rgos institucionais competentes. Em suma: onde

    no haja lei ou ao administrativa implementando a Constituio, deve o Judicirio

    agir. Havendo lei e atos administrativos, e no sendo devidamente cumpridos, devem os

    juzes e tribunais igualmente intervir. Porm, havendo lei e atos administrativos

    implementando a Constituio e sendo regularmente aplicados, eventual interferncia

    judicial deve ter a marca da autoconteno.

    II. Crticas judicializao excessiva

    37. A normatividade e a efetividade das disposies constitucionais

    estabeleceram novos patamares para o constitucionalismo no Brasil e propiciaram uma

    virada jurisprudencial41 que celebrada como uma importante conquista. Em muitas

    situaes envolvendo direitos sociais, direito sade e mesmo fornecimento demedicamentos, o Judicirio poder e dever intervir. Tal constatao, todavia, no torna

    tal interveno imune a objees diversas, sobretudo quando excessivamente invasiva

    da deliberao dos outros Poderes. De fato, existe um conjunto variado de crticas ao

    ativismo judicial nessa matria, algumas delas dotadas de seriedade e consistncia. Faz-

    se no presente tpico um breve levantamento de algumas dessas crticas, sem a

    preocupao de endoss-las ou infirm-las. O propsito aqui oferecer uma viso plural

    do tema, antes da apresentao dos parmetros propostos no captulo seguinte.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    13/28

    13

    38. A primeira e mais freqente crtica oposta jurisprudncia brasileira se apia

    na circunstncia de a norma constitucional aplicvel estar positivada na forma de norma

    programtica42. O artigo 196 da Constituio Federal deixa claro que a garantia do

    direito sade se dar por meio de polticas sociais e econmicas, no atravs de

    decises judiciais43. A possibilidade de o Poder Judicirio concretizar,

    independentemente de mediao legislativa, o direito sade encontra forte obstculo

    no modo de positivao do artigo 196, que claramente defere a tarefa aos rgos

    executores de polticas pblicas.

    39. Uma outra vertente crtica enfatiza a impropriedade de se conceber o

    problema como de mera interpretao de preceitos da Constituio. Atribuir-se ou no

    ao Judicirio a prerrogativa de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que

    positiva o direito sade seria, antes, um problema de desenho institucional44. H

    diversas possibilidades de desenho institucional nesse domnio. Pode-se entender que a

    melhor forma de otimizar a eficincia dos gastos pblicos com sade conferir a

    competncia para tomar decises nesse campo ao Poder Executivo, que possui viso

    global tanto dos recursos disponveis quanto das necessidades a serem supridas. Esta

    teria sido a opo do constituinte originrio, ao determinar que o direito sade fosse

    garantido atravs de polticas sociais e econmicas. As decises judiciais que

    determinam a entrega gratuita de medicamentos pelo Poder Pblico levariam, portanto,

    alterao do arranjo institucional concebido pela Constituio de 1988.

    40. Uma terceira impugnao atuao judicial na matria, repetidamente

    formulada, diz respeito intricada questo da legitimidade democrtica. No so poucos

    os que sustentam a impropriedade de se retirar dos poderes legitimados pelo voto

    popular a prerrogativa de decidir de que modo os recursos pblicos devem ser gastos.

    Tais recursos so obtidos atravs da cobrana de impostos. o prprio povo que paga

    os impostos quem deve decidir de que modo os recursos pblicos devem ser gastos45.E o povo pode, por exemplo, preferir priorizar medidas preventivas de proteo da

    sade, ou concentrar a maior parte dos recursos pblicos na educao das novas

    geraes. Essas decises so razoveis, e caberia ao povo tom-las, diretamente ou por

    meio de seus representantes eleitos46.

    41. Talvez a crtica mais freqente seja a financeira, formulada sob a

    denominao de reserva do possvel47. Os recursos pblicos seriam insuficientes para

    atender s necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisesdifceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    14/28

    14

    outros. De fato, o oramento apresenta-se, em regra, aqum da demanda social por

    efetivao de direitos, sejam individuais, sejam sociais48. Em diversos julgados mais

    antigos, essa linha de argumentao predominava. Em 1994, por exemplo, o Tribunal de

    Justia do Rio de Janeiro, ao negar a concesso de medida cautelar a paciente portador

    de insuficincia renal, alegou o alto custo do medicamento, a impossibilidade de

    privilegiar um doente em detrimento de outros, bem como a impropriedade de o

    Judicirio imiscuir-se na poltica de administrao pblica49.

    42. Mais recentemente, vem se tornando recorrente a objeo de que as decises

    judiciais em matria de medicamentos provocam a desorganizao da Administrao

    Pblica. So comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no mbito dos

    quais, alm de medicamentos, os pacientes recebem atendimento mdico, social e

    psicolgico. Quando h alguma deciso judicial determinando a entrega imediata de

    medicamentos, freqentemente o Governo retira o frmaco do programa, desatendendo

    a um paciente que o recebia regularmente, para entreg-lo ao litigante individual que

    obteve a deciso favorvel50. Tais decises privariam a Administrao da capacidade de

    se planejar, comprometendo a eficincia administrativa no atendimento ao cidado.

    Cada uma das decises pode atender s necessidades imediatas do jurisdicionado, mas,

    globalmente, impediria a otimizao das possibilidades estatais no que toca promoo

    da sade pblica.

    43. No contexto da anlise econmica do direito, costuma-se objetar que o

    benefcio auferido pela populao com a distribuio de medicamentos

    significativamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem

    investidos em outras polticas de sade pblica51, como o caso, por exemplo, das

    polticas de saneamento bsico e de construo de redes de gua potvel52. Em 2007,

    por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, j foram gastos com os programas de

    Assistncia Farmacutica R$ 240.621.568,00 cifra bastante superior aos R$102.960.276,00 que foram investidos em saneamento bsico53. Tal opo no se

    justificaria, pois se sabe que esta poltica significativamente mais efetiva que aquela

    no que toca promoo da sade54. Na verdade, a jurisprudncia brasileira sobre

    concesso de medicamentos se apoiaria numa abordagem individualista dos problemas

    sociais, quando uma gesto eficiente dos escassos recursos pblicos deve ser concebida

    como poltica social, sempre orientada pela avaliao de custos e benefcios55.

    44. As polticas pblicas de sade devem seguir a diretriz de reduzir asdesigualdades econmicas e sociais. Contudo, quando o Judicirio assume o papel de

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    15/28

    15

    protagonista na implementao dessas polticas, privilegia aqueles que possuem acesso

    qualificado Justia, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os

    custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judicirio determinar a

    entrega gratuita de medicamentos mais serviria classe mdia que aos pobres.

    Inclusive, a excluso destes se aprofundaria pela circunstncia de o Governo transferir

    os recursos que lhes dispensaria, em programas institucionalizados, para o cumprimento

    de decises judiciais, proferidas, em sua grande maioria, em benefcio da classe

    mdia56.

    45. Por fim, h ainda a crtica tcnica, a qual se apia na percepo de que o

    Judicirio no domina o conhecimento especfico necessrio para instituir polticas de

    sade. O Poder Judicirio no tem como avaliar se determinado medicamento

    efetivamente necessrio para se promover a sade e a vida. Mesmo que instrudo por

    laudos tcnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o da

    Administrao Pblica57. O juiz um ator social que observa apenas os casos concretos,

    a micro-justia, ao invs da macro-justia, cujo gerenciamento mais afeto

    Administrao Pblica58.

    Parte IV - Alguns parmetros para racionalizar e uniformizar a atuao

    judicial no fornecimento de medicamentos

    I. Em relao s aes individuais

    Parmetro: no mbito de aes individuais, a atuao jurisdicional deve ater-se a

    efetivar a dispensao dos medicamentos constantes das listas elaboradas pelos entes

    federativos

    46. O primeiro parmetro que parece consistente elaborar o que circunscreve a

    atuao do Judicirio no mbito de aes individuais a efetivar a realizao dasopes j formuladas pelos entes federativos e veiculadas nas listas de medicamentos

    referidas acima59. Veja-se que o artigo 196 da Constituio Federal associa a garantia do

    direito sade a polticas sociais e econmicas, at para que seja possvel assegurar a

    universalidade das prestaes e preservar a isonomia no atendimento aos cidados,

    independentemente de seu acesso maior ou menor ao Poder Judicirio. Presume-se que

    Legislativo e Executivo, ao elaborarem as listas referidas, avaliaram, em primeiro lugar,

    as necessidades prioritrias a serem supridas e os recursos disponveis, a partir da viso

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    16/28

    16

    global que detm de tais fenmenos. E, alm disso, avaliaram tambm os aspectos

    tcnico-mdicos envolvidos na eficcia e emprego dos medicamentos.

    47. Esse primeiro parmetro decorre tambm de um argumento democrtico. Os

    recursos necessrios ao custeio dos medicamentos (e de tudo o mais) so obtidos atravs

    da cobrana de tributos. E o prprio povo que paga os tributos quem deve decidir

    preferencialmente, por meio de seus representantes eleitos, de que modo os recursos

    pblicos devem ser gastos e que prioridades sero atendidas em cada momento. A

    verdade que os recursos pblicos so insuficientes para atender a todas as

    necessidades sociais, impondo ao Estado a necessidade permanente de tomar decises

    difceis: investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em

    outros. A deciso judicial que determina a dispensao de medicamento que no consta

    das listas em questo enfrenta todo esse conjunto de argumentos jurdicos e prticos.

    48. Foi nessa linha que entendeu a Ministra Ellen Gracie na SS 3073/RN,

    considerando inadequado fornecer medicamento que no constava da lista do Programa

    de Dispensao em Carter Excepcional do Ministrio da Sade. A Ministra enfatizou

    que o Governo Estadual (Rio Grande do Norte) no estava se negando prestao dos

    servios de sade e que decises casusticas, ao desconsiderarem as polticas pblicas

    definidas pelo Poder Executivo, tendem a desorganizar a atuao administrativa,

    comprometendo ainda mais as j combalidas polticas de sade60.

    49. Essa mesma orientao predominou no Superior Tribunal de Justia, em

    ao na qual se requeria a distribuio de medicamentos fora da lista. Segundo o

    Ministro Nilson Naves, havendo uma poltica nacional de distribuio gratuita, a

    deciso que obriga a fornecer qualquer espcie de substncia fere a independncia entre

    os Poderes e no atende a critrios tcnico-cientficos61. A princpio, no poderia haver

    interferncia casustica do Judicirio na distribuio de medicamentos que estejam fora

    da lista. Se os rgos governamentais especficos j estabeleceram determinadaspolticas pblicas e delimitaram, com base em estudos tcnicos, as substncias prprias

    para fornecimento gratuito, no seria razovel a ingerncia recorrente do Judicirio.

    II. Em relao s aes coletivas

    Parmetro: a alterao das listas pode ser objeto de discusso no mbito de aes

    coletivas

    50. Um dos fundamentos para o primeiro parmetro proposto acima, comoreferido, a presuno legtima, considerando a separao de Poderes de que os

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    17/28

    17

    Poderes Pblicos, ao elaborarem as listas de medicamentos a serem dispensados,

    fizeram uma avaliao adequada das necessidades prioritrias, dos recursos disponveis

    e da eficcia dos medicamentos. Essa presuno, por natural, no absoluta ou

    inteiramente infensa a reviso judicial. Embora no caiba ao Judicirio refazer as

    escolhas dos demais Poderes, cabe-lhe por certo coibir abusos.

    51. Assim, a impossibilidade de decises judiciais que defiram a litigantes

    individuais a concesso de medicamentos no constantes das listas no impede que as

    prprias listas sejam discutidas judicialmente. O Judicirio poder vir a rever a lista

    elaborada por determinado ente federativo para, verificando grave desvio na avaliao

    dos Poderes Pblicos, determinar a incluso de determinado medicamento. O que se

    prope, entretanto, que essa reviso seja feita apenas no mbito de aes coletivas

    (para defesa de direitos difusos ou coletivos e cuja deciso produz efeitos erga omnes no

    limite territorial da jurisdio de seu prolator) ou mesmo por meio de aes abstratas de

    controle de constitucionalidade, nas quais se venha a discutir a validade de alocaes

    oramentrias62. As razes para esse parmetro so as seguintes.

    52. Em primeiro lugar, a discusso coletiva ou abstrata exigir naturalmente um

    exame do contexto geral das polticas pblicas discutidas (o que em regra no ocorre,

    at por sua inviabilidade, no contexto de aes individuais) e tornar mais provvel esse

    exame, j que os legitimados ativos (Ministrio Pblico, associaes etc.) tero

    melhores condies de trazer tais elementos aos autos e discuti-los. Ser possvel ter

    uma idia mais realista de quais as dimenses da necessidade (e.g., qual o custo mdio,

    por ms, do atendimento de todas as pessoas que se qualificam como usurias daquele

    medicamento) e qual a quantidade de recursos disponvel como um todo.

    53. Em segundo lugar, comum a afirmao de que, preocupado com a soluo

    dos casos concretos o que se poderia denominar de micro-justia , o juiz fatalmente

    ignora outras necessidades relevantes e a imposio inexorvel de gerenciar recursoslimitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justia63. Ora, na esfera

    coletiva ou abstrata examina-se a alocao de recursos ou a definio de prioridades em

    carter geral, de modo que a discusso ser prvia ao eventual embate pontual entre

    micro e macro-justias. Lembre-se ainda, como j se referiu, que a prpria Constituio

    estabelece percentuais mnimos de recursos que devem ser investidos em determinadas

    reas: o que se passa com educao, sade (CF/88, arts. 198, 2, e 212) e com a

    vinculao das receitas das contribuies sociais ao custeio da seguridade social. Nesse

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    18/28

    18

    caso, o controle em abstrato da alocao oramentria de tais recursos s finalidades

    impostas pela Constituio torna-se substancialmente mais simples.

    54. Em terceiro lugar, e como parece evidente, a deciso eventualmente tomada

    no mbito de uma ao coletiva ou de controle abstrato de constitucionalidade produzir

    efeitos erga omnes, nos termos definidos pela legislao, preservando a igualdade e

    universalidade no atendimento da populao. Ademais, nessa hiptese, a atuao do

    Judicirio no tende a provocar o desperdcio de recursos pblicos, nem a desorganizar

    a atuao administrativa, mas a permitir o planejamento da atuao estatal. Com efeito,

    uma deciso judicial nica de carter geral permite que o Poder Pblico estruture seus

    servios de forma mais organizada e eficiente. Do ponto de vista da defesa do Estado

    em aes judiciais, essa soluo igualmente barateia e racionaliza o uso dos recursos

    humanos e fsicos da Procuradoria-Geral do Estado.

    55. No contexto dessas demandas, em que se venha a discutir a alterao das

    listas, possvel cogitar ainda de outros parmetros complementares, capazes de

    orientar as decises na matria. Confiram-se.

    a) O Judicirio s pode determinar a incluso, em lista, de medicamentos de

    eficcia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos.

    56. Um dos aspectos elementares a serem considerados pelo Judicirio ao

    discutir a alterao das listas elaboradas pelo Poder Pblico envolve, por evidente, a

    comprovada eficcia das substncias. Nesse sentido, por exemplo, o Superior Tribunal

    de Justia suspendeu liminar em ao civil pblica que obrigava o Estado a distribuir

    Interferon Perguilado ao invs do Interferon Comum, este j fornecido gratuitamente. O

    Tribunal entendeu que o novo medicamento, alm de possuir custo

    desproporcionalmente mais elevado que o comum, no possua eficcia comprovada.

    Entendeu ainda que o Judicirio no poderia se basear em opinies mdicas minoritrias

    ou em casos isolados de eficcia do tratamento64. No mesmo sentido, no se justificadeciso que determina a entrega de substncias como o composto vitamnico cogumelo

    do sol, que se insiram em terapias alternativas de discutvel eficcia65.

    b) O Judicirio dever optar por substncias disponveis no Brasil.

    57. A incluso de um novo medicamento ou mesmo tratamento mdico nas listas

    a que se vinculam os Poderes Pblicos deve privilegiar, sempre que possvel,

    medicamentos disponveis no mercado nacional e estabelecimentos situados no Brasil,

    dando preferncia queles conveniados ao SUS66

    . Trata-se de decorrncia danecessidade de se harmonizar a garantia do direito sade com o princpio

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    19/28

    19

    constitucional do acesso universal e igualitrio. Nesse sentido, embora em demanda

    individual, o Ministro Cezar Peluso, no RE 411.557/DF, admitiu a possibilidade do

    exame dos fatos e provas, de modo a verificar se seria possvel a substituio do

    tratamento no exterior por um similar no pas, o que apenas no ocorreu por se tratar de

    recurso extraordinrio67.

    c) O Judicirio dever optar pelo medicamento genrico, de menor custo.

    58. Pelas mesmas razes referidas acima, os medicamentos devem ser

    preferencialmente genricos ou de menor custo. O medicamento genrico, nos termos

    da legislao em vigor (Lei n 6.36076, com a redao da Lei n 9.78799), aquele

    similar ao produto de referncia ou inovador, com ele intercambivel, geralmente

    produzido aps a expirao da proteo patentria, com comprovada eficcia, segurana

    e qualidade.

    d) O Judicirio dever considerar se o medicamento indispensvel para a

    manuteno da vida.

    59. A discusso sobre a incluso de novos medicamentos na listagem que o

    Poder Pblico dever oferecer populao deve considerar, como um parmetro

    importante, alm dos j referidos, a relao mais ou menos direta do remdio com a

    manuteno da vida. Parece evidente que, em um contexto de recursos escassos, um

    medicamento vital sobrevivncia de determinados pacientes ter preferncia sobre

    outro que apenas capaz de proporcionar melhor qualidade de vida, sem, entretanto, ser

    essencial para a sobrevida.

    III. Em relao legitimao passiva

    Parmetro: o ente federativo que deve figurar no plo passivo de ao judicial

    aquele responsvel pela lista da qual consta o medicamento requerido

    60. Como mencionado, apesar das listas formuladas por cada ente da federao,o Judicirio vem entendendo possvel responsabiliz-los solidariamente, considerando

    que se trata de competncia comum. Esse entendimento em nada contribui para

    organizar o j complicado sistema de repartio de atribuies entre os entes

    federativos. Assim, tendo havido a deciso poltica de determinado ente de incluir um

    medicamento em sua lista, parece certo que o plo passivo de uma eventual demanda

    deve ser ocupado por esse ente. A lgica do parmetro bastante simples: atravs da

    elaborao de listas, os entes da federao se autovinculam.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    20/28

    20

    61. Nesse contexto, a demanda judicial em que se exige o fornecimento do

    medicamento no precisa adentrar o terreno rido das decises polticas sobre quais

    medicamentos devem ser fornecidos, em funo das circunstncias oramentrias de

    cada ente poltico. Tambm no haver necessidade de examinar o tema do

    financiamento integrado pelos diferentes nveis federativos, discusso a ser travada

    entre Unio, Estados e Municpios e no no mbito de cada demanda entre cidado e

    Poder Pblico. Basta, para a definio do plo passivo em tais casos, a deciso poltica

    j tomada por cada ente, no sentido de incluir o medicamento em lista.

    Concluso

    62. Diante do exposto, possvel compendiar nas proposies seguintes as

    principais idias no que diz respeito ao dever estatal de fornecer medicamentos

    populao:

    A) As pessoas necessitadas podem postular judicialmente, em aes individuais,

    os medicamentos constantes das listas elaboradas pelo Poder Pblico e, nesse caso, o

    ru na demanda haver de ser o ente federativo Unio, Estado ou Municpio que

    haja includo em sua lista o medicamento solicitado. Trata-se aqui de efetivar uma

    deciso poltica especfica do Estado, a rigor j tornada jurdica.

    B) No mbito de aes coletivas e/ou de aes abstratas de controle de

    constitucionalidade, ser possvel discutir a incluso de novos medicamentos nas listas

    referidas. Tal incluso, contudo, deve ser excepcional, uma vez que as complexas

    avaliaes tcnicas de ordem mdica, administrativa e oramentria competem

    primariamente aos Poderes Legislativo e Executivo.

    C) Nas discusses travadas em aes coletivas ou abstratas para a modificao

    das listas o Judicirio s deve determinar que a Administrao fornea medicamentos

    de eficcia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos. Ademais, oJudicirio deve, como regra, optar por substncias disponveis no Brasil e por

    fornecedores situados no territrio nacional. Por fim, dentre os medicamentos de

    eficcia comprovada, deve privilegiar aqueles de menor custo, como os genricos.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    21/28

    21

    Referncia bibliogrfica para este artigo:

    BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade judicializao excessiva: direito sade,fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial. DireitoAdministrativo em Debate. Rio de Janeiro, fevereiro, 2008. Disponvel na internet: Acesso em : xx de xxxxxxxxxx dexxxx.

    1 Professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ. Doutorlivre-docente pela UERJ e mestre em Direito pela Yale Law School. Procurador do Estado do Rio deJaneiro.2 Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2006 (aprimeira verso do texto de 1987). A expresso doutrina brasileira da efetividade foi empregada porCludio Pereira de Souza Neto, Fundamentao e normatividade dos direitos fundamentais: umareconstruo terica luz do princpio democrtico. In: Lus Roberto Barroso (org.), A novainterpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas, 2003.3 Direitos sociais so comumente identificados como aqueles que envolvem prestaes positivas por partedo Estado, razo pela qual demandariam investimento de recursos, nem sempre disponveis. Essesdireitos, tambm referidos como prestacionais, se materializam com a entrega de determinadas utilidadesconcretas, como educao e sade. certo, todavia, que j no prevalece hoje a idia de que os direitosliberais como os polticos e os individuais realizam-se por mera absteno do Estado, com um simplesnon facere. Pelo contrrio, produziu-se j razovel consenso de que tambm eles consomem recursospblicos. Por exemplo: a realizao de eleies e a organizao da Justia Eleitoral consomem gastosvultosos, a exemplo da manuteno da polcia, do corpo de bombeiros e do prprio Judicirio, instituiesimportantes na proteo da propriedade. Sobre o tema, vejam-se: Stephen Holmes e Cass Sunstein, Thecost of rights, 1999; Flvio Galdino,Introduo teoria dos custos dos direitos: direitos no nascem emrvores, 2005; e Ana Paula de Barcellos,A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio dadignidade da pessoa humana, 2002.4 V. Lus Roberto Barroso, A doutrina brasileira da efetividade. In: Temas de direito constitucional, v. 3,p. 76: Para realizar seus propsitos, o movimento pela efetividade promoveu, com sucesso, trsmudanas de paradigma na teoria e na prtica do direito constitucional no pas. No plano jurdico,atribuiu normatividade plena Constituio, que passou a ter aplicabilidade direta e imediata, tornando-sefonte de direitos e obrigaes. Do ponto de vista cientfico ou dogmtico, reconheceu ao direitoconstitucional um objeto prprio e autnomo, estremando-o do discurso puramente poltico ousociolgico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a ascenso do Poder Judicirio noBrasil, dando-lhe um papel mais destacado na concretizao dos valores e dos direitos constitucionais. Odiscurso normativo, cientfico e judicialista foi fruto de uma necessidade histrica. O positivismoconstitucional, que deu impulso ao movimento, no importava em reduziro direito norma, mas sim emelev-lo a esta condio, pois at ento ele havia sido menos do que norma. A efetividade foi o rito depassagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituio deixasse de seruma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que no se traduzia em proveito para acidadania.5 V. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997 (1 edio: 1977), p. 22 e ss..6 V. Robert Alexy, Teora de los derechos fundamentales, 1997, p. 81 e ss..7 Vejam-se, exemplificativamente, J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria daConstituioCanotilho, Direito constitucional e teoria da Constituio, 2003, p. 1253 e ss.; PauloBonavides, Curso de direito constitucional, 2004, p. 243 e ss.; Eros Roberto Grau,A ordem econmica naConstituio de 1988 Interpretao e crtica, 1996, p. 92 e ss.; Lus Roberto Barroso, Interpretao eaplicao da Constituio, 2006; Ana Paula de Barcellos, A eficcia jurdica dos princpiosconstitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 40 e ss. e Ponderao,racionalidade e atividade jurisdicional, 2005, p. 166 e ss.; Rodolfo L. Vigo, Los princpios jurdicos Perspectiva jurisprudencial, 2000, p. 9-20; Luis Prieto Sanchis, Sobre princpios y normas. Problemasdel razonamiento jurdico, 1992; Inocncio Mrtires Coelho,Interpretao constitucional, 1997, p. 79 ess.; Humberto vila, Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos, 2003; RuySamuel Espndola, Conceito de princpios constitucionais, 1999; Fbio Corra de Souza Oliveira, Poruma teoria dos princpios: o princpio constitucional da razoabilidade, 2003, p. 17 e ss.; Walter Claudius

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    22/28

    22

    Rothenburg, Princpios constitucionais, 1999; David Diniz Dantas, Interpretao constitucional no ps-positivismo, 2005, p. 41 e ss..8 Por simplificao, possvel reduzir estes critrios a apenas trs, que levam, em conta: a) o contedo danorma; b) a estrutura normativa; c) o modo de aplicao. No ser possvel avanar em relao aos dois

    primeiros, salvo para registrar que princpios expressam valores, direitos fundamentais ou fins pblicos,ao passo que regras so normalmente comandos objetivos, descritivos de condutas. Sobre a aproximaoentre direitos fundamentais e princpios, v. Roberto Alexy, Teora de los derechos fundamentales, 1997,p. 82.9 Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 24: Regras so aplicadas de modo tudo-ou-nada. Seos fatos que a regra estipular ocorrerem, ento ou a regra vlida, caso em que a resposta que ela fornecedeve ser aceita, ou no , caso em que no contribuir em nada para a deciso (traduo livre).10 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 87 e 88: [A]s regras so normas que spodem ser cumpridas ou no. Se uma regra vlida, ento deve-se fazer exatamente o que ela exige, nemmais nem menos. Portanto, as regras contm determinaes no mbito do que ftica e juridicamentepossvel. Isso significa que a diferena entre regras e princpios qualitativa e no de grau. Toda norma ou bem uma regra ou um princpio. (...) Um conflito entre regras s pode ser solucionado introduzindouma clusula de exceo que elimine o conflito ou declarando invlida, ao menos, uma das regras

    (traduo livre). Para uma viso crtica sobre o ponto, v. Humberto vila, Teoria dos princpios: dadefinio aplicao dos princpios jurdicos, 2003.11 Expondo a teoria dos princpios de Alexy, averbou Lus Virglio Afonso da Silva, O contedo essencialdos direitos fundamentais e a eficcia das normas constitucionais, mimeografado, 2005, p. 51: Oprincipal trao distintivo entre regras e princpios, segundo a teoria dos princpios, a estrutura dosdireitos que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se direitos (ou impem-se deveres)definitivos, ao passo que, no caso dos princpios, so garantidos direitos (ou so impostos deveres)primafacie.12 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86: O ponto decisivo para a distinoentre regras e princpios que os princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maiormedida possvel, dentro das possibilidades jurdicas e reais existentes. Portanto, os princpios somandados de otimizao, que esto caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentesgraus e que a medida devida de seu cumprimento depende no apenas das possibilidades reais seno

    tambm das possibilidades jurdicas. O mbito de possibilidades jurdicas determinado pelos princpiose regras opostos (traduo livre).13 As categorias da teoria dos princpios, que envolvem direitos prima facie e ponderao com outrosdireitos, princpios e fatos relevantes, aplicam-se, tambm, aos direitos sociais, que incluem o direito sade bsica e, como decorrncia, o direito obteno de certas categorias de medicamentos. Tambmaqui avulta a idia de mnimo existencial para demarcar a fundamentalidade material do direito e suaconseqente exigibilidade. Para alm desse ncleo essencial, os direitos sociais, inclusive o direito sade, sujeitam-se ponderao com outros elementos fticos e jurdicos, inclusive a reserva do possvele as regras oramentrias. Sobre a aplicao da teoria dos princpios aos direitos sociais fundamentais, v.Robert Alexy, Teora de los derechos, 1997, p. 482 e ss.14 Sobre o ponto, v. Daniel Sarmento, A ponderao de interesses na Constituio, 2000, p. 114: evidente, porm, que em uma democracia, a escolha dos valores e interesses prevalecentes em cada casodeve, a princpio, ser da responsabilidade de autoridades cuja legitimidade repouse no voto popular. Por

    isso, o Judicirio tem, em linha geral, de acatar as ponderaes de interesses realizadas pelo legislador, sas desconsiderando ou invalidando quando elas se revelarem manifestamente desarrazoadas ou quandocontrariarem a pauta axiolgica subjacente ao texto constitucional.15 CF/88, art. 1o: A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados eMunicpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito (...).16 Dela se podem extrair idias importantes sobre as quais se assenta o pensamento filosficocontemporneo, como por exemplo: a) toda pessoa humana um fim em si mesma, no devendo jamaisser transformada em um meio para a realizao de metas coletivas (v. Immanuel Kant, Fundamentao metafsica dos costumes, 2005 (edio original de 1785)); b) toda vida desperdiada, todo fracassoexistencial uma perda para a humanidade como um todo. O Estado, o Direito e a sociedade devemcontribuir, na maior extenso possvel, para que cada indivduo desenvolva suas potencialidades e realizeo seu projeto de vida (v. Ronald Dworkin,Is democracy possible here?, 2006).17 CF/88, art. 1o, pargrafo nico: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes

    eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    23/28

    23

    18 A atuao judicial, em certos casos, poder fundar-se em um ato administrativo, como um regulamentoou portaria. Os atos administrativos, todavia, para serem vlidos precisam estar fundados em normaconstitucional ou legal. Assim, sua aplicao envolver, ao menos indiretamente, a aplicao daConstituio ou de uma lei.19

    No sculo XIX, foi criada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, principal responsvelpela luta no sentido da efetivao das polticas sanitrias. Nessa poca, foram desenvolvidas aes deregulao do exerccio da medicina, incluindo as atividades dos cirurgies, e a criao das primeirasescolas de medicina: na Bahia criada a Escola de Cirurgia, em 1808; e, no Rio de Janeiro, a ctedra deanatomia no Hospital Militar, seguida pela de medicina operatria, em 1809.20 Tanto assim que, em 1904, eclode, no governo de Rodrigues Alves, a Revolta da Vacina, caracterizadapela insatisfao do povo frente s medidas tomadas pelo poder pblico. No que concerne obrigatoriedade da vacinao antivarola, o Governo estabeleceu multas aos refratrios e a exigncia doatestado de vacinao para matrculas nas escolas, empregos pblicos, casamentos, viagens, entre outros.21 Nesse perodo, Oswaldo Cruz procurou organizar a diretoria geral de sade pblica. Foramincorporados como elementos das aes de sade: (i) o registro demogrfico, possibilitando conhecer acomposio e os fatos vitais da populao; (ii) a introduo do laboratrio como auxiliar do diagnsticoetiolgico; e (iii) a fabricao organizada de produtos profilticos para uso em massa.

    22 O Ministrio substituiu o antigo Departamento Nacional de Sade Pblica, que era vinculado aoMinistrio da Justia. Em 1953, foi criado o Ministrio da Sade. Na verdade, tratou-se de merodesmembramento do antigo Ministrio da Sade e Educao.23 No perodo, tambm se destaca, em 1941, a reforma de Barros Barreto, com a qual so institudosrgos normativos e supletivos destinados a orientar a assistncia sanitria e hospitalar; h a criao dergos executivos de ao direta contra as endemias mais importantes (malria, febre amarela, peste); oInstituto Oswaldo Cruz se constitui como referncia nacional; as atividades normativas e executivasdescentralizam-se no Pas por 8 regies sanitrias; so desenvolvidos programas de abastecimento degua e construo de redes de esgoto; so criados servios especializados nacionais para lidar comdoenas degenerativas e mentais (Instituto Nacional do Cncer).24 Assim concebido, o sistema possua diversos problemas. Por ter priorizado a medicina curativa, omodelo foi incapaz de solucionar os principais problemas de sade coletiva, como as endemias, asepidemias, alm de no ser capaz de melhorar significativamente os indicadores de sade (mortalidadeinfantil, expectativa de vida, por exemplo). Tais problemas foram sendo agravados em decorrncia deinmeros fatores, como o aumento constante dos custos da medicina curativa, centrada na atenomdico-hospitalar de complexidade crescente; a diminuio do crescimento econmico, com a respectivarepercusso na arrecadao do sistema previdencirio; a incapacidade do sistema em atender a umapopulao cada vez maior de marginalizados, que, sem carteira assinada e contribuio previdenciria, seviam excludos do sistema; os desvios de verba do sistema previdencirio para cobrir despesas de outrossetores e para a realizao de obras por parte do governo federal; o no repasse pela Unio de recursos doTesouro Nacional para o sistema previdencirio, cujo financiamento era tripartite (empregador,empregado e Unio).25 O Sistema nico de Sade institudo no artigo 198 da Constituio: as aes e servios pblicos desade integram uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema nico. Tal sistemadeve ser descentralizado e deve prover atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais. O texto constitucional demonstra clarocompromisso com o Estado de bem-estar social, individualizando-se no cenrio do constitucionalismointernacional por positivar o direito sade, bem como o sistema incumbido de sua garantia, em termosos mais abrangentes.26 V. Sueli Gandolfi Dallari, Competncia municipal em matria de sade, Revista de direito pblico92:173, 1989.27 No mbito da Unio, a direo do SUS ficar a cargo do Ministrio da Sade; nos Estados e no DistritoFederal, das Secretarias de Sade ou de rgos equivalentes; na esfera dos Municpios, da Secretaria deSade local ou de qualquer entidade correspondente (Lei n 8.080/90, art. 9).28 V. Marcos Maselli Gouva, O direito ao fornecimento estatal de medicamentos. In: Emerson Garcia(coord.),A efetividade dos direitos sociais, 2004, p. 213.29 A Lei n 8.080/90 se fez acompanhar de vasta regulamentao, feita atravs de portarias editadas peloMinistrio da Sade. A Portaria 2203/96 instituiu a Norma Operacional Bsica do SUS (NOB), que trata

    da edio de normas operacionais para o funcionamento do sistema. As NOBs so, acima de tudo,

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    24/28

    24

    produto da necessidade de cooperao entre entes gestores, de modo a viabilizar a descentralizao doSistema. At o momento foram publicadas quatro NOBs: 01/91, 01/92, 01/93 e 01/96.30 Os recursos da Seguridade sero transferidos, primeiramente, ao Fundo Nacional de Sade e, depois,aos fundos de sade dos entes locais (Lei n 8.080/90, arts. 34 e 35). Esses recursos devem ser

    depositados nos fundos de sade de cada esfera de governo, e sero movimentados sob a fiscalizao dosrespectivos conselhos de sade.31 V. Anexo da Portaria n 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998 (DOU10 nov. 1998), item n 5: Noque respeita s funes do Estado, os gestores, em cumprimento aos princpios do SUS, atuaro nosentido de viabilizar o propsito desta Poltica de Medicamentos, qual seja, o de garantir a necessriasegurana, eficcia e qualidade dos medicamentos, a promoo do uso racional e o acesso da populaoqueles considerados essenciais. A Portaria n 3.916/98 pode ser considerada a matriz de toda a estruturade fornecimento de medicamentos, j que as outras portarias so baseadas em suas disposies. Sendoassim, a formulao da Poltica Nacional de Medicamentos forjou o sistema hoje proposto para adistribuio dos medicamentos, cabendo s portarias seguintes apenas delimitar os traos caractersticos.32 Os medicamentos essenciais bsicos compem um elenco de 92 itens destinados ateno bsica. AOMS define medicamentos essenciais como aqueles que satisfazem s necessidades de sade prioritrias

    da populao, os quais devem estar acessveis em todos os momentos, na dose apropriada, a todos ossegmentos da sociedade, alm de serem selecionados segundo critrios de relevncia em sade pblica,evidncias de eficcia e segurana e estudos comparativos de custo-efetividade. So os medicamentosmais simples, de menor custo, organizados em uma relao nacional de medicamentos (RENAME).33 A seleo de medicamentos que comporiam a REMUNE seguiu os seguintes critrios: (I)Medicamentos de valor teraputico comprovado, com suficientes informaes clnicas na espcie humanae em condies controladas, sobre a atividade teraputica e farmacolgica; (II) Medicamentos que supramas necessidades da maioria da populao; (III) Medicamentos de composio perfeitamente conhecida,com somente um princpio ativo, excluindo-se, sempre que possvel, as associaes; (IV) Medicamentospelo nome do princpio ativo, conforme Denominao Comum Brasileira (DCB) e, na sua falta, conformeDenominao Comum Internacional (DCI); (V) Medicamentos que disponham de informaes suficientessobre a segurana, eficcia, biodisponibilidade e caractersticas farmacocinticas; (VI) Medicamentos demenor custo de aquisio, armazenamento, distribuio e controle, resguardada a qualidade; (VII) Formas

    farmacuticas, apresentaes e dosagem, considerando: a) Comodidade para a administrao aospacientes; b) Faixa etria; c) Facilidade para clculo da dose a ser administrada; d) Facilidade defracionamento ou multiplicao das doses.34 Ressalta-se ainda que a lista no fica estagnada. Para avaliar a necessidade de atualizao, com aincluso e excluso de medicamentos, foi nomeada comisso. A Resoluo SMS n 1.139, de 4 de abrilde 2005, constituiu o Grupo Tcnico de Estudos sobre Medicamentos, formado por profissionais daSecretaria Municipal, envolvidos na gerncia de diversas atividades relacionadas s aes e servios desade. V. Resoluo SMS n 1.139, de 4 de abril de 2005, art.3: o Grupo Tcnico de Estudos sobreMedicamentos ter as seguintes atribuies: a) Padronizar os medicamentos a serem utilizados na redeassistencial prpria da Secretaria Municipal de Sade, dentro dos critrios estabelecidos, que obedeamaos parmetros da economicidade, qualidade, segurana e eficcia; b) Avaliar os pedidos de incluso eexcluso de medicamentos na REMUME-Rio; c) Convidar, quando couber, consultores ad hoc, sendopreferencialmente, especialistas ligados aos Programas Nacionais ou Estaduais de Sade e as comissestcnicas da SMS-Rio, professores de Universidades ou profissionais de notrio saber; d) Definir critriosque subsidiem a priorizao dos medicamentos para elaborao de protocolos de uso de medicamentos.35 Os medicamentos de dispensao em carter excepcional so aqueles destinados ao tratamento depatologias especficas, que atingem nmero limitado de pacientes, e que apresentam alto custo, seja emrazo do seu valor unitrio, seja em virtude da utilizao por perodo prolongado. Entre os usurios dessesmedicamentos esto os transplantados, os portadores de insuficincia renal crnica, de esclerose mltipla,de hepatite viral crnica B e C, de epilepsia, de esquizofrenia refratria e de doenas genticas comofibrose cstica e a doena de Gaucher.36 A Portaria n 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006, aprova o Componente de Medicamentos deDispensao Excepcional e apresenta a lista de medicamentos sob a responsabilidade da Unio. A listacompleta contendo mais de 105 substncias ativas pode ser verificada no endereo: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-2577.htm. A Portaria n 1.321, de 5 de junho

    de 2007, define os recursos a serem repassados para os Estados e o Distrito Federal, a ttulo de co-financiamento, referentes competncia maio e junho de 2007, para a aquisio e distribuio deMedicamentos de Dispensao em Carter Excepcional da Tabela SAI/SUS. Nesse mesmo sentido

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    25/28

    25

    decidiu a Comisso Intergestores Tripartite, no dia 5 de outubro de 2005, em reunio em que foi pactuadaa repartio do financiamento dessa espcie de medicamento entre Unio e Estados: Na questo dosMedicamentos da Dispensao Excepcional, o secretrio de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos,Dr. Moiss Goldbaum, falou do processo de trabalho na Cmara Tcnica Tripartite e do acordo que

    fecharam para o momento. Aps vrias consideraes CONASS e CONASEMS, onde foram solicitadasao Ministrio as criaes de um mecanismo para compensar os Estados com saldos negativos no custeiode medicamentos excepcionais e mecanismos para enfrentar as questes judiciais, a proposta foipactuada (Resumo Executivo da Reunio Extraordinria de 05 de outubro de 2006 da ComissoIntergestores Tripartite. Disponvel em http://dtr2001.saude.gov.br/dad/. Acesso em 27 ago. 07).37 Considerando a necessidade de contnuo abastecimento de medicamentos dos programas de assistnciafarmacutica e a necessidade de padronizar os procedimentos administrativos adotados por todos ossetores da Secretaria de Sade, a citada resoluo constituiu Comit com as seguintes atribuies: (i)elaborar os procedimentos operacionais padronizados, para cada etapa do fluxo de aquisio,armazenamento e distribuio de medicamentos; (ii) analisar e avaliar os processos de aquisio demedicamentos em tramitao; (iii) elaborar cronograma de entrega de medicamentos; (iv) elaborarcronograma de pagamento para os fornecedores de medicamentos; (v) elaborar relatrio de situao sobreabastecimento de medicamentos no prazo de 07 (sete) dias; e (vi) apresentar relatrio com as medidas

    adotadas no prazo de 15 (quinze) dias.38 O Colegiado possui como objetivo formular polticas para o setor que envolvem um conjunto deiniciativas voltadas promoo, proteo e efetivao da sade. Segundo o art. 4 da Resoluo, ostrabalhos do Colegiado gestor dever englobar como eixo estratgico sas diretrizes estabelecidas no item5.3 da Portaria GM/MS n 3.916/98 e em outros que forem considerados importantes para a melhoria dosistema de gesto, propondo, inclusive, medidas que julgar necessrias, encaminhando-as ao Secretrio deEstado de Sade para deliberao.39 Dados obtidos atravs do endereo: http://www.ivb.rj.gov.br/principal.asp: Todas as farmciasvendem 48 medicamentos e mais as fraldas descartveis (tamanhos M e G). Os medicamentos soproduzidos pelo prprio IVB, Laboratrio Farmacutico da Marinha, IQUEGO (Indstria Qumica deGois), Lafepe (Laboratrio Farmacutico do Estado de Pernambuco) e FUNED (Fundao EzequielDias, de Minas Gerais). Tudo a R$ 1. As fraldas so tambm para deficientes (de qualquer idade). Osmedicamentos esto entre os mais consumidos pela terceira idade. So para hipertenso, cardiopatias,

    problemas de nervos, depresso, glaucoma e osteoporose entre outras. Para comprar na Farmcia Popular, preciso ter 60 anos ou mais, apresentar receita mdica da rede pblica e com o nome genrico domedicamento e, ainda, morar nas regies (Acesso em 28 ago. 07).40 Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O comeo da histria. A novainterpretao constitucional e o papel dos princpios no direito constitucional brasileiro, Interesse Pblico19:51, 2003.41 J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da ConstituioCanotilho, Direito constitucional eteoria da Constituio, 2003, p. 26, faz referncia viragemjurisprudencial, observando: As decisesdos tribunais constitucionais passaram a considerar-se como um novo modo de praticar o direitoconstitucional da o nome de moderno direito constitucional.42 Segundo Jos Afonso da Silva,Aplicabilidade das normas constitucionais, 1999, pp. 83-4. A sade (...) deverdo Estado...], a, no impe propriamente uma obrigao jurdica, mas traduz um princpio,segundo o qual a sade e o desporto para todos e cada um se incluem entre os fins estatais, e deve ser

    atendido. Sente-se, por isso, que as prescries tm eficcia reduzida... V. tambm: TJRJ, j. 17 dez.1998, MS 220/98, Rel. Des Antonio Lindberg Montenegro: Mandado de Segurana. Impetrantesportadores de insuficincia renal crnica. Fornecimento de remdio (CELLCEPT) pelo Estado. Asnormas programticas estabelecidas na Constituio Federal no conferem ao cidado o direito subjetivode exigir do Estado o fornecimento de remdios de alto-custo, em detrimento de outros doentes,igualmente carentes. Na consecuo de sua obrigao de sade pblica a administrao h que atenderaos interesses mais imediatos da populao. Impropriedade da via mandamental para atendimento dodireito reclamado.43 Segundo o artigo 196 da Constituio Federal, a sade direito de todos e dever do Estado, garantidomediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e aoacesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao.44 Sobre a noo de desenho institucional, v. F. Schauer, Playing by the Rules: a philosophical

    examination of rule-based decision-making in law and in life , 1998; Noel Struchiner, Para falar deregras. O positivismo conceitual como cenrio para uma investigao filosfica acerca dos casos difceisdo direito. Tese de doutorado apresentada PUC-Rio, 2005.

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    26/28

    26

    45 O argumento assim sintetizado por Ingo Wolfgang Sarlet, Algumas consideraes em torno docontedo, eficcia e efetividade do direito sade na Constituio de 1988, Interesse Pblico 12:102,2001: A expressiva maioria dos argumentos contrrios ao reconhecimento de um direito subjetivoindividual sade como prestao (assim como ocorre com os demais direitos sociais prestacionais, tais

    como educao, assistncia social, moradia, etc.) prende-se ao fato de que se cuida de direito que, por suadimenso econmica, implica alocao de recursos materiais e humanos, encontrando-se, por esta razo,na dependncia da efetiva disponibilidade destes recursos, estando, portanto, submetidos a uma reservado possvel. Com base nesta premissa e considerando que se cuida de recursos pblicos, argumenta-se,ainda, que apenas o legislador democraticamente legitimado quem possui competncia para decidirsobre a afetao destes recursos, falando-se, neste contexto, de um princpio da reserva parlamentar emmatria oramentria, diretamente deduzido do princpio democrtico e vinculado, por igual, ao princpioda separao de poderes.46 V. Jos Gomes Canotilho,Direito constitucional e teoria da Constiuio, 2001, p. 946: os juzes nose podem transformar em conformadores sociais, nem possvel, em termos democrticos processuais,obrigar juridicamente os rgos polticos a cumprir determinado programa de ao. No mesmo sentido,segundo Fabiano Holz Beserra, Comentrio sobre a deciso proferida no julgamento da argio dedescumprimento de preceito fundamental n 45/DF, Revista de direito social 18:110, 2005: De outra

    parte, discutvel a legitimidade daqueles que no possuem delegao popular para fazer opes degastos. Quando h investimentos dispensveis ou suntuosos, no h maiores problemas. O mesmo no sediga, porm, quando se est a optar por gastos sociais de igual status, como educao e sade. Almdisso, o que definiria a prioridade de atendimento: a distribuio do processo? O melhor advogado? Aceleridade do juzo? So indagaes que, sem dvida, tornam a questo complexa.47 Ricardo Lobo Torres, O mnimo existencial, os direitos sociais e a reserva do possvel. In: Antnio JosAvels Nunes e Jacinto Nelson Miranda Coutinho (Org.), 2004, p. 455-6: A doutrina modificou-seradicalmente, abandonando o positivismo sociolgico e adotando a viso principiolgica em que serealam: (...) d) o reconhecimento da prevalncia do princpio da reserva do possvel (expresso cunhadapelo Tribunal Constitucional da Alemanha BverGE 33: 303-333 largamente empregada em Portugal eno Brasil) ou da reserva oramentria: no so determinados previamente, mas sujeitos reserva dopossvel (Vorbehalt des Mglichen), no sentido de que a sociedade deve fixar a razoabilidade dapretenso. Em primeira linha compete ao legislador julgar, pela sua prpria responsabilidade, sobre aimportncia das diversas pretenses da comunidade, para inclu-las no Oramento, resguardando oequilbrio financeiro geral. E) possibilidade de superao do princpio da reserva do possvel no caso decontradio incontornvel com o princpio da dignidade humana, consubstanciado no direito a prestaoestatal jusfundamental.48 Gustavo Amaral, Direito, escassez & escolha: Em busca de critrios jurdicos para lidar com aescassez de recursos e as decises trgicas, p. 71-3: Todos os direitos tm custos porque todospressupem o custeio de uma estrutura de fiscalizao para implement-los.49 TJRJ, j. 20 set. 1994, Apelao Cvel 1994.001.01749, Rel Des. Carpena Amorim: Medida cautelarinominada destinada ao fornecimento de remdio de alto custo indispensvel para a sobrevivncia depessoa com deficincia renal. Dada a carncia de recursos no pode o Estado privilegiar um doente emdetrimento de centenas de outros, tambm carentes, que se conformam com as deficincias do aparelhoestatal. No pode o Poder Judicirio, a pretexto de amparar a autora, imiscuir-se na poltica deadministrao publica destinada ao atendimento da populao. Manuteno da sentena. (DP) Vencido oDes. Hudson Bastos Lourenco.50 Marcos Maselli Gouva, O direito ao fornecimento estatal de medicamentos, Revista forense 37: 113,2003, sintetiza a crtica da seguinte forma: Um vis da crtica que se traa ao intervencionismo judiciriona rea de fornecimento de remdios , precisamente, o de que ele pe por gua abaixo tais esforosorganizacionais. Autoridades e diretores de unidades mdicas afirmam que, constantemente, uma ordem

    judicial impondo a entrega de remdio a um determinado postulante acaba por deixar sem assistnciafarmacutica outro doente, que j se encontrava devidamente cadastrado junto ao centro de referncia.51 Como esclarece Marcos Maselli Gouva, O direito ao fornecimento estatal de medicamentos, Revistaforense 37: 108, 2003. Em tese, seria possvel aventar uma infinidade de medidas que contribuiriam paraa melhoria das condies de sade da populao, decorrendo da a necessidade de se precisar que meiosde valorizao da sade poderiam ser postulados judicialmente. Um grupo de cidados poderia advogarque a ao do Estado, na rea de sade, fosse mxima, fornecendo tudo o quanto, ainda remotamente,

    pudesse satisfazer tal interesse; outros poderiam enfatizar o cuidado com prticas preventivas,concordando com o fornecimento, pelo Estado, de vacinas de ltima gerao, de eficcia ainda no

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    27/28

    27

    comprovada; um terceiro grupo poderia pretender que o Estado desse impulso a uma poltica de sadecalcada na medicina alternativa, ou ao subsdio aos planos privados de sade. Existe, enfim, um lequeinfinito de estratgias possveis, o que aparentemente tornaria invivel sindicarem-se prestaespositivas, nesta seara, sem que o constituinte ou o legislador elegessem uma delas.

    52 Varun Gauri, Social Rights and Economics: Claims to Health Care and Education in DevelopingCountries, World Development 32 (3): 465, 2004.53 Dados disponveis em: http://www.planejamento.rj.gov.br/OrcamentoRJ/2007_LOA.pdf. Acesso em 22out. 2007.54 Segundo Arthur Bragana de Vasconcellos Weintraub, Direito sade no Brasil e princpios daseguridade social,Revista de direito social 20:58, 2005: O atendimento integral fruto da universalidadeobjetiva, sendo que a prioridade para as atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais, oriunda da razoabilidade. Como diria So Jernimo, sancta simplicitas: melhor prevenir que remediar.E remediar faz mais sentido quando se trata de sade. Previnam-se as doenas, mantendo-se oatendimento para os j enfermos. Tal preveno envolve um conceito amplo de sade, associado com oequilbrio fsico, o psicolgico e o social. (...) Estas diretrizes [as do art. 200 da CF/88] confirmam oalcance de um conceito amplo de sade, associado com o equilbrio fsico, o psicolgico e o social. omeio ambiente do trabalho e a sade do trabalhador, v. g., so interesses difusos, pois causam impactosocial. A vigilncia sanitria e epidemiolgica tambm prioridade. Temos visto recentemente o governoinvestir mais em referendos do que no controle da febre aftosa ou da gripe aviria. So questesintrnsecas sade, que deveriam ser essncia da atuao estatal. V. tambm: Marcos Maselli Gouva, Ocontrole judicial das omisses administrativas, 2003, p. 19: Certas prestaes, uma vez determinadaspelo Judicirio em favor do postulante que ajuizasse ao neste sentido, poderiam canalizar tal aporte derecursos que se tornaria impossvel estend-las a outras pessoas, com evidente prejuzo ao princpioigualitrio.55 Nesse sentido, v. TJRJ, j. 20 set. 1994, Apelao Cvel 1994.001.01749, Rel Des. Carpena Amorim.56 Como sustenta Lcia La Guimares Tavares, O fornecimento de medicamentos pelo Estado, Revistade direito da Procuradoria-Geral 55:109-10, 2002: Uma ltima questo restaria a ser discutida, tendoem vista que as decises judiciais no so seletivas no que se refere definio dos medicamentos quedevem ser fornecidos. comum que alguns magistrados determinem a entrega de remdios inexistentes

    no pas, que devem ser importados, s vezes muito dispendiosos. Em geral, no so sensveis aosargumentos de sua inexistncia ou de seu alto custo, firmes na posio de que recursos existem, mas somal aplicados pelo Poder Executivo. No posso, nem quero, entrar no mrito da questo do desperdciodos recursos pblicos, desperdcio este que, lamentavelmente, no privilgio do Poder Executivo. Masno h dvida de que os recursos so escassos e sua diviso e apropriao por alguns segmentos maispolitizados e articulados pode ser feita em detrimento de outras reas da sade pblica, politicamentemenos organizadas e, por isto, com acesso mais difcil ao Poder Judicirio.57 o que explica Marcos Maselli Gouva, O controle judicial das omisses administrativas, 2003, p.22-3: O princpio da separao de poderes compreende, portanto, uma vertente poltico-funcionalista queno se pode desprezar, sob pena de restringir-se a soberania popular. Afora esta componente, a separaode poderes traduz-se numa considerao tcnico-operacional. O Legislativo e principalmente o Executivoacham-se aparelhados de rgos tcnicos capazes de assessor-los na soluo de problemas maiscomplexos, em especial daqueles campos que geram implicaes macropolticas, afetando diversoscampos de atuao do poder pblico. O Poder judicirio, por sua vez, no dispe de iguais subsdios; aanlise que faz do caso concreto tende a perder de vista possveis implicaes fticas e polticas dasentena, razo pela qual os problemas de maior complexidade incluindo a implementao de direitosprestacionais devem ser reservados ao administrador pblico. Aos empecilhos normativo-estruturais,financeiros e polticos listados acima so somados os obstculos processuais. Ao passo em que os direitosliberais h sculos j se encontram consagrados nos ordenamentos e na jurisprudncia dos mais diversospases, apenas no sculo XX passou-se a reservar maior ateno aos direitos prestacionais. Existe umanotvel discrepncia entre a complexidade e a eficincia dos remdios jurdicos destinados salvaguardados direitos liberais (habeas corpus, mandado de segurana) e a completa ausncia de instrumentosespecficos de tutela dos direitos prestacionais. No existe ainda, com pertinncia a estas situaes

    jurdicas, a vasta produo doutrinria e os precedentes jurisprudenciais que amoldam, encorpam, osdireitos de primeira gerao.58

    Confira-se, a respeito, a explicao de Ana Paula de Barcellos, Constitucionalizao das polticaspblicas em matria de direitos fundamentais: o controle poltico-social e o controle jurdico no espaodemocrtico,Revista de direito do Estado 3:32, 2006: Ainda que superadas as crticas anteriores, o fato

  • 8/14/2019 Luis Roberto Barroso - Da Falta de Efetividade

    28/28

    que nem o jurista, e muito menos o juiz, dispem de elementos ou condies de avaliar, sobretudo emdemandas individuais, a realidade da ao estatal como um todo. Preocupado com a soluo dos casosconcretos o que se poderia denominar de micro-justia , o juiz fatalmente ignora outras necessidadesrelevantes e a imposio inexorvel de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas

    ilimitadas: a macro-justia. Ou seja: ainda que fosse legtimo o controle jurisdicional das polticaspblicas, o jurista no disporia do instrumental tcnico ou de informao para lev-lo a cabo semdesencadear amplas distores no sistema de polticas pblicas globalmente considerado.59 Parece impossvel, por evidente, considerando a garantia constitucional de acesso ao Judicirio, impedirdemandas individuais que visem ao fornecimento de medicamentos no includos em lista. Ao decidir taisdemandas, porm, o magistrado ter o nus argumentativo de enfrentar os bices expostos no texto. Oideal, a rigor, seria o magistrado oficiar ao Ministrio Pblico para que avalie a convenincia doajuizamento de uma ao coletiva, ainda que, naquele caso especfico, e em carter excepcional, decidadeferir a entrega do medicamento para evitar a morte iminente do autor. O tema ser retomado adiante aolongo do texto.60 STF, DJU 14 fev. 2007, SS 3.073/RN, Rel. Min. Ellen Gracie: Verifico estar devidamenteconfigurada a leso ordem pblica, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto aexecuo de decises como a ora impugnada afeta o j abalado sistema pblico de sade. Com efeito, a

    gesto da poltica nacional de sade, que feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalizaoentre o custo e o benefcio dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir omaior nmero possvel de beneficirios. Entendo que a norma do art. 196 da Constituio da Repblica,que assegura o direito sade, refere-se, em princpio, efetivao de polticas pblicas que alcancem apopulao como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitrio, e no a situaesindividualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessrios reabilitao dasade de seus cidados no pode vir a inviabilizar o sistema pblico de sade. No presente caso, ao sedeferir o custeio do medicamento em questo em prol do impetrante, est-se diminuindo a possibilidadede serem oferecidos servios de sade bsicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamentosolicitado pelo impetrante, alm de ser de custo elevado, no consta da lista do Programa de Dispensaode Medicamentos em Carter Excepcional do Ministrio da Sade, certo, ainda,