259
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE LUZIANE BEYRUTH SCHWARTZ A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO RIO DE JANEIRO 2012

LUZIANE BEYRUTH SCHWARTZ - NUTES/UFRJ BEYRUTH SCHWARTZ.pdf · todas as coisas, ouço vozes” e a sua voz, Márcia, não se calou. Ressoará a todo o momento em nossos discursos na

  • Upload
    hadan

  • View
    224

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE

LUZIANE BEYRUTH SCHWARTZ

A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES

DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO

RIO DE JANEIRO

2012

Luziane Beyruth Schwartz

A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Saúde.

Orientador: Prof. Dra. Flavia Rezende

RIO DE JANEIRO

2013

S399 Schwartz, Luziane Beyruth. A qualidade do ensino de ciências na voz dos professores da educação profissional

técnica de nível médio / Luziane Beyruth Schwartz. – Rio de Janeiro: UFRJ / NUTES, 2013. 257 f. : il.

Orientadora: Flavia Rezende Tese (Doutorado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

Referências bibliográficas: f. 205-210.

1. Qualidade do ensino. 2. Educação profissional técnica de nível médio. 3. Análise do discurso. 4. Educação em Ciências e Saúde - Tese. I. Rezende, Flavia. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, NUTES, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde. III. Título.

CDD 370

Luziane Beyruth Schwartz

A QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA VOZ DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Saúde.

Aprovada em 18/12/2012

______________________________________ Flavia Rezende, Dra., NUTES/UFRJ

______________________________________ Luiz Augusto Rezende Filho, Dr., NUTES/UFRJ

______________________________________ Marco Braga, Dr., CEFET-RJ

______________________________________ Maylta Brandão dos Santos, Dra., IFRJ

______________________________________ Alcina Maria Testa Braz da Silva, Dra., IFRJ

2

Para meu marido Humberto, e nossos filhos Stephan, Ingrid e Igor,

razões da minha vida.

Para meus pais, presenças marcantes em minha vida.

AGRADECIMENTOS

Ao meu amor, Humberto – minha melhor escolha na vida – pelo incentivo, paciência e compreensão por todo tipo de ausência nestes quatro anos de pesquisa. Agradeço, muito, muito, muito!

Aos meus queridos filhos:

Stephan – Força mãe! – obrigada pela escuta, equilíbrio e carinho!

Ingrid, companheira e amiga: doação incondicional para que eu seguisse em frente – “Você é mais que linda!".

Igor – “Sabe qual é o único defeito das mães? Não serem eternas. Te amo mãe. Beijos, Bakitin” – eu também te amo de paixão, meu filho.

À minha orientadora, Flavia Rezende, coautora desse texto, pelo comprometimento e responsabilidade, que proporcionaram o meu amadurecimento acadêmico, sem abdicar das críticas que estimulam a ir além.

Aos professores participantes da pesquisa, que permitiram a realização das reflexões aqui empreendidas.

À minha mãe, por todo o trabalho, dedicação e incentivo com a minha formação.

Ao meu pai (in memoriam), que se pudesse estar presente, sentiria muito orgulho.

A toda minha família pelo respeito e compreensão durante todos os momentos desta caminhada.

Aos professores Marco Braga, Luiz Rezende e Alcina Maria Testa pelas relevantes contribuições por ocasião do exame de qualificação.

Aos professores membros da banca, Marco Braga, Maylta Brandão, Luiz Rezende, Alcina Maria Testa, Gloria Queiroz e Guaracira Gouvêa, por aceitarem participar desse diálogo, condição imprescindível para o “acabamento”, ainda que sempre provisório.

À professora Cecília M. A. Goulart, por ter me aceitado por dois semestres como aluna ouvinte em suas aulas na UFF, minha luz bakhtiniana.

Aos colegas do grupo de pesquisa do LTC/NUTES, Gleice Ferraz, Roberta Comissanha, Aroaldo Veneu, pelo diálogo, no qual o confronto de diferentes pontos de vista enriqueceu minhas reflexões teórico-metodológicas. À Sandra Machado pela escuta atenta e carinhosa.

Há, nesse grupo, quem já se foi... mas, como Bakhtin disse: “De minha parte, em todas as coisas, ouço vozes” e a sua voz, Márcia, não se calou. Ressoará a todo o momento em nossos discursos na grande temporalidade. Agradeço, também, por me apresentar a professora Cecília M. A. Goulart.

Aos colegas da turma do doutorado, Marcus Vinicius, Maria Cristina, Carol, Andréa, Ana Cristina, Juliana e Teo, pelas trocas, reflexões e convivências agradáveis.

Às amigas Patrícia e Dione, dois presentes no percurso do doutorado.

Aos amigos do IFRJ pelo apoio, escuta, participação e incentivo.

Ao amigo Marcus Vinicius pela escuta amiga, solidariedade e companheirismo nessa travessia nada simples.

SCHWARTZ, Luziane Beyruth. A qualidade do ensino de ciências na voz dos

professores da educação profissional técnica de nível médio. Rio de Janeiro, 2012.

Tese de doutorado (Doutorado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de

Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio

de Janeiro, 2012.

O presente estudo teve por objetivo investigar sentidos de qualidade do Ensino de

Ciências na perspectiva de docentes da Educação Profissional Técnica de Nível

Médio (EPTM) e suas relações com outros discursos como, por exemplo, os

discursos acadêmico e oficial. O corpus analisado resultou de entrevistas com seis

professores atuantes em duas escolas técnicas federais distintas no Rio de Janeiro.

Dentre eles, quatro são professores de química e atuam no curso técnico em

química da escola A e dois são professores de biologia, e atuam no curso técnico

em análises clínicas e saúde da escola B. A Teoria da Enunciação de Mikhail

Bakhtin se constituiu como arcabouço teórico-metodológico que fundamentou essa

pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico. A entrevista dialógica e individual com

os sujeitos da pesquisa foi o instrumento metodológico utilizado na investigação. A

partir do quadro teórico adotado e da problemática da educação profissional,

procuramos discutir as seguintes questões: 1) Que perspectivas de qualidade são

construídas discursivamente por docentes da EPTM em relação às finalidades do

ensino de ciências? 2) Que perspectivas de qualidade são construídas

discursivamente por docentes da EPTM em relação ao conhecimento científico

ensinado? 3) Que aproximações e afastamentos são identificados entre as

perspectivas dos docentes sobre formação integral e o discurso oficial? A partir de

uma análise “bakhtiniana”, foi possível chegar a uma diversidade de perspectivas de

qualidade da educação científica, incluindo finalidades educacionais e visões de

ciências distintas, dentro de um contexto educacional tão particular como o da

educação profissional. Identificamos dois polos nas perspectivas de qualidade

enunciadas pelos professores: de um lado, a educação científica como preparação

da força de trabalho e de outro, como formação integral, para todas as dimensões

da vida. Mas consideramos que foi possível avançar, justamente quando

conseguimos captar nuances dessas perspectivas. Por meio do escrutínio que

realizamos, chegamos a visões particulares de qualidade, que nos mostraram a

importância dos docentes enquanto protagonistas do processo educativo, capazes

de conformar a qualidade do ensino. A diversidade é maior na escola A, mesmo

quando consideramos um mesmo campus. Na escola B, encontramos mais

aproximações do que afastamentos entre as perspectivas de qualidade enunciadas

e também mais aproximações com os discursos acadêmico e oficial. Acreditamos

que a diferença nos contextos institucionais das escolas pode estar na origem desse

resultado. Enquanto a escola B promove a discussão do currículo, do projeto político

pedagógico e da legislação, permitindo o embate de perspectivas, mas também a

construção coletiva e adesão dos professores a um projeto comum, a escola A não

promove o compromisso com um projeto coletivo. As perspectivas de qualidade são,

assim, fruto da assimilação de um possível senso comum sobre o conceito de

formação profissional que circula nas instituições educacionais, ancorado em

legislações passadas, na formação acadêmica do professor ou na mídia.

Palavras-chave: qualidade do ensino de ciências, educação profissional técnica de

nível médio, análise bakhtiniana do discurso.

SCHWARTZ, Luziane Beyruth. A qualidade do ensino de ciências na voz dos

professores da educação profissional técnica de nível médio. Rio de Janeiro, 2012.

Tese de doutorado (Doutorado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de

Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio

de Janeiro, 2012.

The present study aimed to investigate meanings of science education in the

perspective of teachers of Professional Technical Education (PTE) and the

relationship of these meanings with the official and academic discourses. The corpus

analyzed resulted from interviews with six teachers who work in two federal technical

schools in Rio de Janeiro. Four are teachers of chemistry and teach at the chemical

technical course in School A and two are teachers of biology, and work in the

technical course in clinical analysis and health in School B. The theory of Enunciation

by Mikhail Bakhtin was appropriated as theoretical-methodological framework of this

qualitative socio-historical research. The dialogical and individual interview with the

subjects was the methodological instrument used. From the theoretical framework

adopted and the professional education discussion, we seek to investigate the

following questions: 1) What quality perspectives are discursively constructed by

teachers of PTE related to purposes of science teaching? 2) What quality

perspectives are discursively constructed by teachers of PTE related to scientific

knowledge? 3) What approaches and distances are identified between the teachers’

perspectives and academic and official discourses? From a "Bakhtinian" analysis, it

was possible to reach a diversity of perspectives of quality of science education

including educational purposes and different views of science within a particular

educational context as the professional education. We identified two poles in

perspectives of quality set out by teachers: on the one hand, science education as

workforce preparation and on the other, as integral formation for all dimensions of

life. However, we believe that it was possible to move forward exactly when we were

able to capture the nuances of these perspectives. Through the research we

conducted, we got particular views of quality that have shown us the importance of

teachers as protagonists of the educational process, able to conform the quality of

education. The diversity is greater in school A, even when we consider the same

campus. At school B, we found more approaches than distances between the

perspectives of quality and also more approaches with academic and official

speeches. We believe that the difference in institutional contexts of schools may be

at the origin of this result. While school B promotes the discussion of curriculum, the

pedagogical project and legislation allowing the confrontation of perspectives, but

also the collective construction and adhesion of teachers to a common project, the

school A does not promote the commitment to a collective project. Perspectives of

quality are thus the result of the assimilation of a possible common sense about the

concept of professional training which circulates in educational institutions, anchored

in passed legislation, in teacher education or in the media.

Keywords: quality of science education, professional technical education, bakhtinian

discourse analysis.

LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1 Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus I

71

Quadro 2 Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus II

72

Quadro 3 Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola B

73

Quadro 4 Procedimentos de análise dos enunciados dos professores 84

Quadro 5 Respostas do Prof. André à atividade escrita sobre Qualidade 101

Quadro 6 Respostas da Prof. Taís à atividade escrita sobre Qualidade 116

Quadro 7 Respostas da Prof. Cleo à atividade escrita sobre Qualidade 152

Quadro 8 Temas centrais mobilizados pelos professores e respectivos posicionamentos

181

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

BM Banco Mundial

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica

CNE Conselho Nacional de Educação

DCN Diretrizes Curriculares Nacionais

EC Ensino de Ciências

ENADE Exame Nacional de Desempenho de Estudantes

ENEM Exame Nacional do Ensino Médio

EP Educação Profissional

EPTM Educação Profissional Técnica de Nível Médio

ETF Escola Técnica Federal

IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

IF Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MEC Ministério da Educação

NUTES Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde

OCDE Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico

OIC Organização Interamericana do Comércio

PISA Programme for International Student Assessment

PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

RFPT Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica

TIC Tecnologia da Informação e Comunicação

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UFF Universidade Federal Fluminense

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNIVERSO Universidade Salgado de Oliveira

SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO 13

2 INTRODUZINDO A PROBLEMÁTICA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA 20

3 REVISÃO DE LITERATURA 32

3.1 A FORMAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

32

3.2 ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL

37

3.3 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO DEBATE DE SUAS FINALIDADES

43

4 QUADRO TEÓRICO 47

4.1 INTRODUÇÃO À OBRA DE BAKHTIN 47

4.2 A ARQUITETÔNICA BAKHTINIANA DA LINGUAGEM 49

5 METODOLOGIA 62

5.1 OBJETIVO E QUESTÕES DE ESTUDO 63

5.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 64

5.2.1 A origem da pesquisa 64

5.2.2 Elaboração do roteiro de entrevistas 66

5.2.3 Os sujeitos da pesquisa 68

5.2.4 O contexto da pesquisa 73

5.2.4.1 Escola A 73

5.2.4.2 Escola B 75

5.2.5 Transcrição das entrevistas 77

5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE 78

6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DOS PROFESSORES ENTREVISTADOS 85

6.1 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR ANDRÉ 87

6.1.1 O contexto extraverbal 87

6.1.2 Perspectivas do professor André 88

6.2 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA TAÍS 102

6.2.1 O contexto extraverbal 102

6.2.2 Perspectivas da professora Taís 103

6.3 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR TONI 117

6.3.1 O contexto extraverbal 117

6.3.2 Perspectivas do professor Toni 118

6.4 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR VÍTOR 131

6.4.1 O contexto extraverbal 131

6.4.2 Perspectivas do professor Vítor 132

6.5 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA CLEO 142

6.5.1 O contexto extraverbal 142

6.5.2 Perspectivas da professora Cleo 143

6.6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR MURILO 153

6.6.1 O contexto extraverbal 153

6.6.2 Perspectivas do professor Murilo 154

7 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA EPTM

165

7.1 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO ÀS FINALIDADES DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

165

7.1.1 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus I da escola A

165

7.1.2 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus II da escola A

168

7.1.3 As finalidades da educação em ciências para os professores da escola B

170

7.2 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

171

7.2.1 O conhecimento científico ensinado no campus I da escola A 171

7.2.2 O conhecimento científico ensinado no campus II da escola A 172

7.2.3 O conhecimento científico ensinado na escola B 173

7.3 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO À FORMAÇÃO INTEGRAL

174

7.3.1 A formação integral no campus I da escola A 174

7.3.2 A formação integral no campus II da escola A 177

7.3.3 A formação integral na escola B 179

7.4 PERSPECTIVAS DOS DOCENTES SOBRE A EDUCAÇÃO CIENTÍFICA DE QUALIDADE NO CONTEXTO DA EPTM

181

8 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 184

8.1 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 184

8.1.1 Perspectivas de qualidade frente aos discursos oficial e acadêmico 184

8.1.2 Interpretando as perspectivas de qualidade: relações do texto com o contexto

193

8.1.2.1 Afastamentos e aproximações discursivos na Escola A 193

8.1.2.2 Afastamentos e aproximações discursivos na Escola B 196

8.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS 197

REFERÊNCIAS 205

APÊNDICES 211

ANEXOS 252

13

1 APRESENTAÇÃO

Escrever é traduzir. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua.

Transportamos o que vemos e o que sentimos para um código convencional de signos, a escrita e deixamos às

circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor,

não tanto a integridade da experiência que nos propusemos transmitir, mas uma sombra, ao menos, do que no fundo do

nosso espírito sabemos bem ser intraduzível, por exemplo a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma

descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como rastro de um sonho

que o tempo não apagará por completo. (José Saramago – Escrever é traduzir)

Este estudo é constituído a partir do diálogo com diversas vozes que, de

acordo com a teoria da enunciação de Mikhail Bakhtin, integram todo e qualquer

enunciado que se compõe de forma polifônica. É fundamental, antes de tudo,

apresentar minha trajetória profissional e acadêmica para explicitar a partir de que

lugar realizo as articulações necessárias ao elaborar esse texto, pois, como sujeito

socio-histórico trago marcas relevantes do meu percurso para configurar

dialogicamente a compreensão do universo pesquisado.

No início da década de 80 iniciei a minha prática no magistério e, desde

então, tenho atuado em diferentes atividades relacionadas ao processo de ensino e

de aprendizagem, principalmente como professora de matemática no nível médio,

como também, de gestão no âmbito de uma das escolas pesquisadas. Esse

percurso de trinta e dois anos incluiu atividades em escolas privadas, escolas

públicas estaduais e escolas técnicas federais, porém, a maior parte desse tempo

(vinte e cinco anos) foi dedicada à educação profissional técnica de nível médio

(EPTM).

Minhas práticas e vivências em escolas profissionalizantes e não

profissionalizantes constituem um percurso amplo, a partir do qual, muitos

questionamentos sobre as finalidades educacionais, mais marcadamente as que se

14

referem aos aspectos do processo de ensino e de aprendizagem das ciências1, me

levaram a continuidade dos estudos. Apesar da minha prática refletir a realidade do

ensino nos contextos de atuação profissional, sempre me inquietei diante da

insatisfação em ter que norteá-la visando apenas os aspectos burocráticos e

cumprimento de programas. Assim, me questionava constantemente: De que forma

essa ação torna-se de fato significativa e se constitui como construção do

conhecimento pelos alunos? Até que ponto os alunos são os sujeitos que dão

sentido ao meu ensino? Que outros valores e intenções poderiam integrar os

sentidos do ensino, para além da simples transmissão de conteúdos? Como

implementar tais mudanças a partir de um sistema de ensino hermeticamente

estruturado, mediante as relações de poder que o engendra?

No decorrer dos anos, tive a oportunidade de participar de eventos da área de

educação geral e, em particular, da área de educação matemática. Nestes

encontros, percebi que vários estudos estavam sendo desenvolvidos no sentido de

repensar o ensino e refletir sobre as finalidades educacionais. Esse contato com a

área de pesquisa educacional, somado às minhas inquietações, me incentivou a

cursar no período de 2001 - 2003 o mestrado em educação matemática.

Passados alguns anos, cada vez mais envolvida com uma grande carga

horária de aulas, sem ter como participar de grupos de estudos, de reflexões mais

amplas sobre questões sociais, culturais, históricas e políticas envolvidas nas

definições de finalidades educacionais, fui tomada por novas inquietações.

Objetivando aprofundar essas reflexões, ingressei no curso de doutorado em

2009, no programa de pós-graduação do NUTES/UFRJ e passei a fazer parte do

grupo de pesquisa coordenado pela professora Dra. Flavia Rezende. Durante os

primeiros encontros com esse grupo, fui apresentada ao projeto do Observatório da

Educação, contemplado em edital específico da CAPES (2008).

O acesso ao conteúdo do projeto, objetivos, questões de pesquisa,

referenciais teóricos, bem como sua abrangência aguçou o meu interesse. Interesse

que se intensificou ao conhecer, nas primeiras reuniões, os professores,

pesquisadores, coordenadores do projeto que integravam o grupo de pesquisa,

representantes de diferentes universidades do Brasil (UFRJ, UERJ, UFF,

UNIVERSO, UFRGS, UFMG) e colegas professores da educação básica.

1 O termo “ciências” corresponde às ciências naturais e matemática.

15

Este estudo emerge, assim, de um projeto de pesquisa maior, projeto este

que buscou compreender a construção de sentidos de qualidade do ensino de

ciências (química, física, biologia e matemática) no nível médio de ensino

considerando-se a diversidade regional e cultural de contextos educacionais, na

perspectiva dos docentes, tomando como referência a avaliação oficial medida por

indicadores como o Exame Nacional do Ensino Médio e o IDEB. Pretendeu-se,

nesse projeto, compreender como professores de Ciências e Matemática de

diferentes escolas e regiões constroem discursos sobre ciência, currículo, políticas

curriculares, objetivos educacionais, metodologias de ensino, e uso de tecnologias,

educação e educação em ciências de qualidade, e de que forma os mesmos

conformam o processo educativo e têm impacto na qualidade do ensino de ciências.

O meu percurso profissional associado ao destaque que vem sendo dado, no

momento político atual à EPTM, entregue à sociedade como política de qualidade

para a educação básica, constituíram a motivação para a escolha desse contexto

como realidade empírica dessa investigação.

Entretanto, cabe ressaltar, que esse não é um estudo específico sobre

políticas públicas e educação profissional no Brasil. É um estudo em que buscamos

compreender sentidos de qualidade da educação científica que integram

perspectivas docentes. A construção de sentidos a qual nos referimos se estabelece

na “produção dos discursos, enunciados confrontados entre si, que entram em um

tipo especial de relações semânticas” chamadas por Bakhtin (2010) de dialógicas,

cuja natureza específica é a interação entre as produções do discurso, ou seja,

quando os discursos conversam entre si (p.325). Segundo este autor, o discurso só

pode entrar em relações dialógicas “sob a condição de um enfoque linguístico, isto

é, de serem transformados em visões de mundo, pontos de vista, vozes sociais”, que

serão chamados neste estudo de perspectiva.

Muito já se discutiu e se discute sobre qualidade da educação no Brasil,

portanto, não sou a primeira pesquisadora a falar sobre este tema, uma vez que o

objeto do discurso do falante, seja esse objeto qual for já foi falado por outros em

diferentes esferas sociais e tempos históricos, sob os mais diversos pontos de vista,

nunca reiteráveis (BAKHTIN, 2010).

As intensas transformações nas áreas relativas ao modo de produção, às

tecnologias de informação e comunicação contemporâneas, às relações sociais e

ético-políticas acabam por refletir na construção de sentidos para a qualidade

16

educacional, muitas vezes atrelada às solicitações de uma sociedade capitalista.

Nesse contexto, os discursos gerados por organismos internacionais, amplamente

divulgados entre dirigentes, pela mídia e difundido na opinião pública, a partir da

década de 80, influenciaram durante todos esses anos as políticas educacionais no

Brasil. A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o

Banco Mundial foram as principais agências a proferirem discurso político sobre a

qualidade da educação. Decorreu daí, que a educação brasileira passou a ser

relacionada às palavras-chave “qualidade”, “eficácia” e “avaliação” (CHARLOT,

2006) e a reboque, houve a criação de vários indicadores para avaliar a qualidade

da educação a partir de parâmetros relativos ao acesso à escolarização, à idéia de

fluxo, (quantitativo de alunos que progridem dentro de um determinado sistema de

ensino) e à aferição de desempenho das escolas no SAEB, ENADE, Vestibular,

ENEM e o PISA, cujos resultados compõem o IDEB das escolas (OLIVEIRA e

ARAÚJO, 2005).

Analisando o modo como a qualidade vem sendo tratada no campo

educacional, Gentili (2001) afirma que essa discussão vem assumindo os mesmos

aspectos abordados no mundo empresarial, onde é mensurada e avaliada segundo

critérios produtivistas e mercantilistas. A esse respeito, Enguita (2001) ressalta a

necessidade de construir um sentido novo para levar a qualidade da educação ao

patamar de direito inalienável inerente à cidadania, sem nenhuma relação com o

caráter mercantil ao qual em outra ocasião estivera vinculado. Goulart (apud

MOREIRA e KRAMER, 2007) ressalta outros aspectos relacionados à qualidade da

educação e considera que esta abarca fatores internos e externos à instituição

escolar. Enquanto os primeiros compreendem “as condições de trabalho

pedagógico, a gestão escolar, o currículo, a formação docente, assim como a

análise de sistemas e unidades escolares com base em resultados de avaliações

externas, as dimensões extraescolares estão voltadas “às determinações e às

possibilidades de superação das condições de vida de grupos sociais

desfavorecidos” (idem, p. 1045).

Ao eleger a EPTM como contexto de pesquisa sobre a qualidade da

educação científica, foi preciso ouvir também, além dos pesquisadores da área de

ensino de ciências, as vozes que emergem do campo que pesquisa sobre relações

entre trabalho e educação. Pesquisadores da área educacional que pensam esse

17

campo defendendo a integração das categorias trabalho, ciência, tecnologia e

cultura como indispensável à formação humana.

A perspectiva sociocultural (WERTSCH, 1993) pareceu-nos adequada para

problematizar a questão da “qualidade”, tendo em vista a natureza polissêmica

dessa palavra, ou seja, o quanto a mesma depende da atribuição de sentidos pelos

sujeitos. A Teoria da Enunciação de Mikhail Bakhtin é o caminho que Wertsch (1993)

aponta para compor um olhar sociocultural e que decidimos seguir. Como estratégia

metodológica, optamos por entrevistas com os sujeitos da pesquisa. De acordo com

este referencial, partimos do pressuposto de que os valores e as intenções que

constituem as finalidades educacionais tecidas, discursivamente, pelos professores

pesquisados estarão imbricados nos sentidos de qualidade mobilizados em suas

perspectivas de educação científica. E, ainda, incluiriam possíveis relações

dialógicas com os discursos circulantes nos documentos oficiais e acadêmicos,

específicos para a educação científica no contexto da EPTM.

Nesta perspectiva, o nosso objetivo de pesquisa foi: investigar os sentidos de

qualidade do Ensino de Ciências, na perspectiva de docentes da EPTM no Rio de

Janeiro e a relação desses sentidos com os discursos oficiais das políticas públicas

específicas para esta modalidade de ensino e com os discursos acadêmicos.

Para orientar o desenvolvimento de pesquisa, serão discutidas as seguintes

questões: Que perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por

docentes da EPTM em relação às finalidades do ensino de ciências? Que

perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por docentes da EPTM

em relação ao conhecimento científico ensinado? Que aproximações e afastamentos

são identificados entre as perspectivas dos docentes sobre formação integral e o

discurso oficial2?

A tese foi estruturada em sete capítulos, além desse primeiro de

apresentação. No segundo capítulo, introduzo a trajetória histórica da educação

profissional técnica no Brasil, tecida com comentários dos autores que pesquisam o

campo das relações entre trabalho e educação, que têm se dedicado ao exame

deste contexto educacional.

No terceiro capítulo, apresentamos a revisão de literatura que servirá como

referência para a análise das enunciações dos sujeitos da pesquisa e que está

2 O discurso oficial referenciado no texto refere-se ao Documento base EPTM (2007) e à Lei Nº

11.892/2008 que criou os institutos federais.

18

subdividida em três seções. Na primeira, nos voltamos para as reflexões que

pesquisadores educacionais empreendem sobre as relações entre trabalho e

educação, pensando a formação humana a partir do trabalho como princípio

educativo e sobre os sentidos de integração entre ensino médio e educação

profissional. Na segunda seção, dialogamos com os autores da área de ensino de

ciências e matemática no que se refere às concepções de alfabetização científica e

tecnológica por encontrarmos pontos de contato entre esse campo de pesquisa e o

conceito de formação integral, nas bases expostas na primeira seção. Na terceira

seção, analisamos a qualidade da educação científica procurando apreendê-la no

debate que os autores da área de ensino de ciências estabelecem a partir de suas

finalidades educacionais.

No quarto capítulo, apresento o enfoque teórico adotado, discorrendo,

brevemente, sobre os princípios da Teoria da Enunciação de Bakhtin. Na primeira

seção apresentamos a introdução à sua obra e, na segunda, as bases do edifício

teórico desse pensador para quem o diálogo cria e tenciona teórico-

metodologicamente visões de sociedade, linguagem e sujeito (GOULART, 2011).

No quinto capítulo, exponho os dados e observações relacionados à origem, à

escolha do campo e dos sujeitos de pesquisa. Além disso, descrevo o processo de

definição do instrumento metodológico, os cuidados metodológicos com as

transcrições e os procedimentos de análise.

No sexto capítulo, buscamos entender, a partir da leitura minuciosa das

enunciações de cada um dos professores, o modo como compreendem o conteúdo

referencial de cada enunciado-pergunta, a partir das respostas dadas durante a

interlocução na situação de entrevista individual. Segundo Bakhtin (1976), o

enunciado compreende uma parte percebida e realizada em palavras (o dito) e uma

outra presumida (o não dito) que estão imbricados na construção de suas

perspectivas. Tomando esse preceito como base, a análise da situação extraverbal

(o não dito) passou a integrar a análise do discurso verbal (o dito) em todas as

subseções desse capítulo. Ao analisarmos, buscamos expressar o ponto de vista

dos docentes em relação aos objetivos do ensino de ciências, à seleção de

conteúdos, metodologia e avaliação, ao papel dos laboratórios no EC, ao interesse e

desempenho dos alunos, à formação integral, aos documentos oficiais, à

apresentação do conhecimento científico, ao papel da pesquisa na formação

profissional.

19

Já o sétimo capítulo subdivide-se em quatro seções. Nas três primeiras

seções, buscamos confrontar as perspectivas de qualidade com as questões de

pesquisa, considerando o contexto de atuação (escola/campus) de cada professor.

Assim, na primeira seção focalizamos as finalidades da educação científica, na

segunda o modo como o conhecimento científico é apresentado na atuação docente

e, na terceira seção, além de serem confrontadas as perspectivas dos professores

entrevistados sobre formação integral, buscamos identificar aproximações e

afastamentos tanto entre estas perspectivas quanto entre as mesmas e o discurso

oficial. Na quarta seção, as perspectivas de qualidade da educação científica

construídas pelos sujeitos da pesquisa, foram compostas a partir da síntese dos

principais aspectos levantados nas seções anteriores.

No último capítulo, passamos a discutir o que foi possível compreender

durante o processo de análise das enunciações, buscando identificar na primeira

subseção, aproximações e afastamentos entre os sentidos construídos pelos

professores para a educação científica e os discursos acadêmico e oficial. Na

segunda, procuramos por meio da análise da relação entre o discurso verbal e o

contexto extraverbal, compreender por que os professores enunciaram tais

perspectivas. Finalmente, na última seção, elaboramos as considerações finais em

função dos principais achados e discussões anteriores.

20

2 INTRODUZINDO A PROBLEMÁTICA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

Ao nos propormos investigar a qualidade da educação científica no contexto

da educação profissional técnica de nível médio (EPTM) buscamos compreendê-la

como produto histórico, não cabendo pensá-la como dado a priori, mas como “uma

análise processual, uma dinâmica, assim como a recuperação do específico e o

respeito às condições conjunturais” (MOREIRA e KRAMER, 2007, p. 1044). Assim,

essa investigação considera o momento presente, mas indispensavelmente seu

diálogo com os antecedentes históricos integrantes dessa cadeia dialógica histórica-

socialmente construída.

Com este entendimento, iniciamos a problemática da educação profissional

pela abordagem histórica, no sentido de favorecer a compreensão dos processos de

mudança ocorridos que se traduziram e se traduzem em reformas educacionais,

cujas esferas e sujeitos socialmente envolvidos produzem discursos em um

processo dinâmico de dialogicidade, permanentemente aberto.

Recuperando a história do ensino técnico no país, voltamos ao início do

século XX, quando em 1909, o Presidente Nilo Peçanha criou a Escola de

Aprendizes Artífices para prover os “desfavorecidos da fortuna”, expressão contida

no Decreto Nº 7.566 que oficializava essa iniciativa. Foi dado, então, início à rede

federal de ensino. Tal iniciativa redirecionou os objetivos da educação profissional

brasileira ampliando o seu horizonte de atuação (antes com caráter assistencialista)

para formar operários visando atender as demandas dos empreendimentos no

campo da agricultura e da indústria (MANFREDI, 2002).

Nos anos seguintes, as mudanças políticas e socioeconômicas nas décadas

de 30 e 40 no país, impulsionaram tanto a indústria de base como a educação

profissionalizante, consideradas pilares do progresso nacional. Manfredi (2002)

afirma que as transformações econômicas e técnicas e nas formas de organização

do trabalho, neste período, advindas do desenvolvimento do capitalismo industrial,

acarretaram mudanças para o processo de trabalho. De acordo com a autora, os

grupos de pessoas e instituições que constituíram as corporações de ofício,

posteriormente, foram substituídos pelos grupos ocupacionais e profissionais. Essas

mudanças desencadearam a necessidade de “universalização da escola como

agência nacional de preparação para a inserção no mundo do trabalho” (p. 54).

21

Somado a isso, a aceleração no processo de inovação tecnológica, no período que

sucedeu à segunda guerra mundial, promoveu mudanças nas relações sociais. A

partir de então, um novo cenário econômico e produtivo – marcado pelo emprego

crescente de tecnologias cada vez mais sofisticadas no setor produtivo, na

prestação de serviços, possibilitando, inclusive, a internacionalização das relações

econômicas – passou a exigir para todos os trabalhadores uma formação geral mais

sólida.

Em resposta às demandas do processo histórico de industrialização e

modernização das relações de produção, vários Decretos-Lei foram sancionados

pela esfera governamental no país, visando regulamentar a educação brasileira,

conhecidos como Leis Orgânicas da Educação Nacional - a Reforma Capanema,

criada na gestão do então ministro da educação, Gustavo Capanema. Nesse

período, foi aprovada a construção de um sistema paralelo à rede federal – o

chamado “Sistema S” que teve como primeiras estruturas o SENAI – Serviço

Nacional de Aprendizagem Industrial e o SENAC – Serviço Nacional de

Aprendizagem Comercial. Nesse ponto, interessa-nos salientar a importância que

passou a ter a educação dentro do país e, em especial, a educação profissional,

passando a ser organizada por leis específicas para a formação profissional em

cada ramo da economia (MANFREDI, 2002).

Assim, após a Reforma Capanema, a educação regular fica estruturada em

dois níveis: a educação básica dividida em duas etapas (o curso primário e o curso

secundário, subdividido em ginasial e colegial) e o nível superior. A educação

profissional, parte final do ensino secundário, era constituída pelos cursos normal,

industrial técnico, comercial técnico e agrotécnico, todos com o mesmo nível e

duração do colegial, entretanto não habilitavam para o ingresso no ensino superior,

reafirmando a dualidade que marcava historicamente a relação entre educação

básica e educação profissional no Brasil, pois restringia o acesso ao ensino superior,

via processo seletivo, à classe dirigente, por receberem um ensino que contemplava

conhecimentos gerais, das letras, das ciências e das humanidades. Enquanto nos

cursos profissionalizantes, bastava o domínio dos conhecimentos básicos de leitura,

de escrita, de cálculo e da natureza (KUENZER, 2002).

Em 1942, as Escolas de Aprendizes Artífices são transformadas em Escolas

Industriais e Técnicas, passando a oferecer a formação profissional em nível

equivalente ao secundário, vinculando o ensino industrial à estrutura do ensino do

22

país. Anos depois, em 1948, tramitou no Congresso Nacional a primeira Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Nº 4024 – começando a vigorar

somente em 1961. Uma série de conflitos marcava os debates na sociedade

brasileira acerca dos distintos modelos de desenvolvimento que influenciavam as

políticas educacionais. Nesse contexto, a LDB passa a vigorar proporcionando ao

mesmo tempo liberdade de atuação da iniciativa privada no campo educacional e a

plena equivalência entre todos os cursos do mesmo nível.

Foi no ano de 1959 que se iniciou o processo de transformação das Escolas

Industriais e Técnicas em autarquias. Nessa fase, as escolas técnicas ganharam

autonomia didática e de gestão e passaram a ser denominadas de Escolas Técnicas

Federais, intensificando a formação de técnicos para atuar nas indústrias.

Até meados da década de setenta do século XX, a formação profissional foi

vista como uma opção para a classe social menos favorecida de recursos

econômicos, visando à formação de trabalhadores para o exercício de funções

simples, isto é, com ênfase em treinamentos que pouco exigia do desenvolvimento

da capacidade de intervenção intelectual, competência essa, tradicionalmente,

reservada à elite brasileira (FRIGOTTO e CIAVATTA, 2003). Até então, a baixa

escolaridade dos trabalhadores ainda não era reconhecida como entrave no

desenvolvimento econômico do país.

Na década de 70, a Lei Nº 5.692/1971 promove uma profunda reforma na

educação brasileira – Lei da reforma de ensino de 1º e 2º graus – a qual prevê, de

forma compulsória, a estruturação de todo o currículo do segundo grau em técnico-

profissionalizante. Entretanto, enquanto a profissionalização compulsória se

restringia ao âmbito público, estadual e federal, as escolas privadas permaneceram

com os currículos propedêuticos endereçados à elite (FRIGOTTO, CIAVATTA e

RAMOS, 2005). Os autores relatam que a implantação do ensino profissionalizante

nas escolas estaduais privilegiou os conteúdos da formação profissional em

detrimento dos da formação geral, levando ao empobrecimento do currículo. Isso fez

com que de certa forma os alunos que cursavam os cursos propedêuticos levassem

vantagem sobre os dos cursos técnicos em relação ao acesso ao ensino superior e à

cultura geral. Como consequência, teve início um movimento de transferência dos

filhos da classe média para as escolas privadas em busca de uma formação que

garantisse a continuidade dos estudos para o nível superior.

23

Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos. (2005), o propósito desta lei era formar

técnicos de nível médio, sob o argumento da escassez de técnicos no mercado e

pela necessidade de evitar a frustração de jovens que não ingressavam nas

universidades nem no mercado por não terem uma qualificação profissional. Vale

ressaltar que nessa época o Brasil estava sob o comando de um governo militar cujo

projeto de desenvolvimento encontrava-se pautado pela industrialização,

demandando por mão de obra qualificada em atendimento ao crescimento

econômico (p. 33).

As atribuições profissionais de caráter estritamente técnico direcionavam os

currículos para uma educação científica e tecnológica com bases tecnicistas e

mecanicistas, reforçando o caráter funcional da escola técnica e a reprodução das

relações de trabalho. Nesse contexto, o conhecimento científico era apresentado

ideologicamente ahistórico e, portanto, neutro.

Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) avaliam que, sob muitas críticas e

resistências sociais associadas às pressões da burocracia estatal, das instituições

de formação profissional e dos empresários do ensino, a profissionalização

obrigatória no 2º grau foi extinta pela Lei Nº 7.044/1982. As Escolas Técnicas

Federais (ETF) foram exceção nesse processo de extinção da Lei, pois, nelas, a

predominância nos currículos, das disciplinas específicas sobre as disciplinas da

formação geral, valorizava a formação que ofereciam. Os autores ressaltam que, até

o final da década de 80, as ETF desempenharam o papel de formar técnicos de

nível médio, sendo reconhecidas pela sociedade de um modo geral, como

instituições que ofereciam ensino de qualidade. Em 1978, as ETF foram

transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) pela Lei Nº

6.545/1978, inicialmente nos estados do Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro,

depois se estendendo a outros estados.

Finalizado o período ditatorial, o Brasil entra no processo de

redemocratização na década de 80, período marcado por intenso debate

educacional. Naquele contexto, havia aqueles que defendiam que a educação

brasileira deveria se pautar pela concepção de formação integral (desenvolvida no

capítulo 3) e aqueles que advogavam em defesa de uma educação que atendesse à

demanda do mercado, que acabou por prevalecer em consonância com as políticas

neoliberais.

24

Apenas para dar sentido ao debate, adiantamos que a ideia de integração

emerge da acepção da educação socialista na busca por uma educação omnilateral,

ou seja, uma formação humana que contemple as dimensões física, mental, cultural,

política e científico-tecnológica para se alcançar o desenvolvimento integral do

trabalhador.

A partir da década de 80, mudanças ocorridas na organização político-

econômica mundial, reconhecida como globalização, refletem na educação e no

mundo do trabalho. O cenário é de profundas transformações caracterizadas por

novas configurações no pensamento científico e tecnológico, na organização do

trabalho, na reestruturação da produção (KUENZER, 2002), influenciando os

processos formativos escolares, em particular, a formação profissional.

De um modo geral, os reflexos dessa nova ordem mundial são consonantes

com o impacto da concepção neoliberal “que privilegia políticas de avaliação,

financiamento, formação de professores, currículo, ensino e tecnologias

educacionais influenciadas pelos modelos empresariais contemporâneos”

(MOREIRA e KRAMER, 2007, p. 1040).

No Brasil, na década de 90, tais reflexos acarretaram mudanças envolvendo a

formulação de políticas educacionais a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/1996). Segundo Frigotto (2007), as

reformas educacionais visavam atender aos interesses do mercado ditados por

organizações internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento

(BID), a Organização Interamericana do Comércio (OIC) e o Banco Mundial (BM). O

projeto refletiu no papel do Conselho Nacional de Educação (CNE), no Plano

Nacional de Educação e na definição de Parâmetros Curriculares Nacionais

(BRASIL, 1998) visando à reforma do ensino médio e técnico.

Por ocasião da elaboração da LDB supracitada, retomaram-se as discussões

sobre o caráter dual da etapa final da educação básica e da educação profissional.

Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) relatam que, neste período, o deputado federal

Otávio Elísio apresentou uma proposta para o 2º. Grau, que vinculava a educação à

prática social e ao trabalho como princípio educativo, que é um conceito

fundamental da politecnia e da formação integral. Esta proposta colocava para o 2º

grau o objetivo de “propiciar aos adolescentes a formação politécnica necessária à

compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das múltiplas técnicas

25

utilizadas no processo produtivo” (BRASIL, 1991, Artigo 38 apud FRIGOTTO,

CIAVATTA e RAMOS, 2005, p. 25).

A concepção de trabalho como princípio educativo, que estava sendo

disputada, é baseada na teoria Marxista, segundo a qual o trabalho é considerado

como atividade ontológica, estruturante do ser social que se dá na relação com a

natureza e os demais. Nesta concepção, segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos

(2005), o trabalho “é a forma pela qual o ser humano se humaniza, se cria, se

expande em conhecimento, se aperfeiçoa. É base estruturante de um novo tipo de

ser, de uma nova concepção de história” (p. 2). Tal conceito não deve ter a sua

compreensão restrita a uma das suas formas históricas aparentes, quais sejam a

profissão, o produto do trabalho, as atividades laborais, sem considerar a

complexidade das ações sociais que estão em suas bases. Assim, trabalho e mundo

do trabalho só poderão ser apreendidos em sua historicidade, seja como atividade

criadora ou histórica, se forem focalizados na sua particularidade histórica, nas

mediações específicas que lhe dão forma e sentido no tempo e no espaço

(CIAVATTA, 2005). Segundo a autora, é a partir dessa acepção que o trabalho pode

ser entendido como princípio educativo.

No entanto, considerado pela academia uma “regressão histórica e política”,

em 1997, o Decreto Nº 2.208 regulamentou os artigos da nova LDB que tratam

especificamente da educação profissional, imprimindo ao ensino médio um caráter

puramente propedêutico, enquanto os cursos técnicos passam a ser oferecidos no

regime de concomitância (ensino médio e ensino técnico em cursos separados),

reforçando a dualidade que historicamente marcou essa etapa de ensino. Para Lima

Filho (2008), este decreto, caracterizado por forte orientação mercadológica, seria o

principal instrumento jurídico normativo das reformas realizadas no período de 1995

a 2002.

Nas esferas das regulamentações legais, a perspectiva de trabalho como

princípio educativo (e de formação integral) foi então derrotada e a nova LDB

acabou por estruturar a educação brasileira em dois níveis: a educação básica,

formada por educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, e a educação

superior (Art. 21). A segunda etapa da educação básica passa a chamar-se ensino

médio, e a educação profissional é tratada no texto como uma possibilidade de

formação em paralelo, na medida em que se torna opcional. No entanto, no texto da

lei, é possível depreender marcas de ambiguidade no que se refere à relação entre o

26

ensino médio e a educação profissional, quando assinala que “o ensino médio,

atendida à formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de

profissões, e técnicas” (Art. 36, § 2º) e, ao mesmo tempo, que “a educação

profissional será desenvolvida em articulação com o ensino regular ou por diferentes

estratégias de educação continuada, em instituições especializadas ou no ambiente

de trabalho” (Art. 40).

Com a separação, no que se refere às reformas curriculares, o ensino médio

e a educação profissional passaram a ter currículos próprios e independentes. Costa

(2011) salienta que se adotou a flexibilidade curricular associada à ideia de

formação por competências, no qual as disciplinas poderiam ser agrupadas por

módulos, como um dos princípios orientadores do currículo, em oposição à ideia de

currículo integrado proposto pela Lei Nº 5.692/1971, considerado, na época, uma

estrutura pouco flexível diante das rápidas mudanças do mundo do trabalho.

No texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação profissional

de nível médio, consta que as competências específicas de cada habilitação

deverão ser definidas pela escola na elaboração do currículo, sendo que a carga

horária mínima deverá ser de 1.200 horas (DCN, Parecer Nº 16/1999, p. 81). Vale

ressaltar que, no antigo Parecer do Conselho Federal Educação no. 45/72, que

regulamentava as Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional com base na

Lei Federal Nº 5.692/1971, a carga horária mínima do currículo, correspondente à

formação profissionalizante, era de 1.500 horas.

O currículo por competências ganha, assim, destaque nas propostas oficiais,

imputando à educação profissional o acompanhamento das rápidas transformações

do mundo produtivo, em decorrência da entrada de novos modelos tecnológicos de

produção. Costa (2011) nos chama a atenção para o sentido instrumental produzido

para o currículo, apreendido no texto do Parecer CNE/CEB Nº 16/1999:

Quando competências básicas passam a ser cada vez mais valorizadas no âmbito do trabalho, e quando a convivência e as práticas sociais na vida cotidiana são invadidas em escala crescente por informações e conteúdos tecnológicos, ocorre um movimento de aproximação entre as demandas do trabalho e as da vida pessoal, cultural e social. É esse movimento que dá sentido à articulação proposta na lei entre educação profissional e ensino médio. A articulação das duas modalidades educacionais tem dois significados importantes. De um lado afirma a comunhão de valores que, ao presidirem a organização de ambas, compreendem também o conteúdo valorativo das disposições e condutas a serem constituídas em seus alunos. De outro, a articulação reforça o conjunto de competências comuns a serem ensinadas e aprendidas, tanto na educação básica quanto na profissional. (BRASIL, 1999, p.25 apud COSTA, 2011, p. 42)

27

Com base nesse texto, depreendemos que o objetivo de formação no ensino

médio é equiparado ao da formação profissional, que seria a aquisição de

competências básicas em atendimento às demandas do mundo do trabalho. Franco

(1994) já afirmava que essa concepção significa

limitar o papel da escola concebendo-a apenas como uma agência de adestramento em que o domínio de técnicas ganharia primazia sobre as atividades voltadas para a formação integral do aluno. Isso, por outro lado, não implica fazer o raciocínio inverso e eximir a educação de qualquer responsabilidade pela formação profissional. Mais do que isso acreditamos ser a escola uma das oportunidades para capacitar o aluno a compreender o trabalho como categoria social - e histórica, desde que exista na escola a preocupação de levá-lo a entender as formas diferenciadas de vivenciar as relações de produção e as desigualdades delas decorrentes. (pp. 20-21)

No mandato do governo Luís Inácio Lula da Silva, iniciado em 2003, retoma-

se a discussão da década de 80 acerca da formação geral integrada à formação

profissional, técnica e tecnológica, em diferentes âmbitos institucionais,

governamentais e da sociedade. Nesse período, é possível identificar nos discursos

oficiais, no âmbito governamental, em defesa da integração entre ensino médio e

educação profissional, a prevalência da finalidade de "formação humana integral"

sobre aquelas voltadas apenas para as necessidades do mundo produtivo. O que se

buscava era a formação de um sujeito com autonomia intelectual, ética, política e

humana, em oposição à formação profissional que vise adaptar o trabalhador e

prepará-lo de forma passiva e subordinada ao processo de acumulação da

economia capitalista (MOURA, 2006; KUENZER, 2002).

Nesse contexto, revoga-se o Decreto N.º 2.208/97 que separava ensino

médio e educação profissional, buscando-se o resgate da integração a partir da

formulação das bases que deram origem ao Decreto Nº 5.154/2004. Esse Decreto

pretendia estabelecer um horizonte para o ensino médio consolidado pela formação

básica unitária e politécnica. (FRIGOTTO, 2005), no entanto, faz a crítica de que, ao

ser regulamentado, não incorporou novas concepções pedagógicas para a formação

profissional, apenas a oferecia simultaneamente e ao longo do Ensino Médio.

Todavia, mesmo tendendo para uma medida conciliatória entre as distintas

concepções e propostas da comunidade educacional, esse decreto, na perspectiva

de (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005), trouxe alternativas de implementação

de políticas públicas de integração contemplando trabalho, cultura, ciência e

tecnologia.

28

A partir desse novo cenário político, foi criado, ainda, o Documento base da

EPTM (2007), no mesmo período em que tramitava no Congresso Nacional o projeto

de emenda à LDB de 1996. Ambos os documentos são apresentados como

resultado de um processo de discussão nas esferas social, educacional e

governamental, sobre as finalidades do ensino médio com “centralidade nos seus

principais sentidos – sujeitos e conhecimentos – buscando superar a determinação

histórica do mercado de trabalho sobre essa etapa de ensino” (DOCUMENTO

BASE, 2007, p. 6). Esses debates apontavam uma crise no ensino médio marcada

pela falta de sentido e de significado para esse nível de ensino. O que estava sendo

defendido era a inserção social do aluno no mundo do trabalho, sem nele se fechar,

compreendendo também a continuidade dos estudos.

O Documento Base da EPTM (2007) é apresentado à sociedade como "ação

política concreta de explicitação dos princípios e diretrizes às instituições e sistemas

de ensino" (p. 9), visando à implementação da tão almejada formação integral,

buscando resgatar a oferta do ensino médio integrado à educação profissional. Os

fundamentos teóricos em que se baseiam as reflexões sobre formação integral,

apresentados no Capítulo 3 do Documento, tomaram por base trabalhos3 de

pesquisadores da formação profissional, sustentando o discurso de integração entre

ensino médio e educação profissional.

Em 2007, foi lançado o programa Brasil Profissionalizado objetivando a

modernização e a expansão do ensino médio integrado à educação profissional,

subsidiado com recursos do governo federal. Como parte dessa iniciativa, foram

criados, fundamentalmente a partir dos CEFETs, os Institutos Federais de

Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Recentemente, foi aprovado pelo Congresso

Nacional o Projeto de Lei Nº 1.209/2011, voltado para a ampliação do acesso ao

ensino médio, criando o PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino

Técnico e Emprego), que pretende ampliar a oferta de cursos técnicos visando, além

da formação de quadros técnicos para o setor produtivo, a formação em profissões

associadas ao bem estar das pessoas, em particular nas áreas de saúde, educação

e meio ambiente.

3 A coordenação editorial do texto foi realizada por Dante Henrique Moura e o texto assinado por

Dante Henrique Moura, Sandra Regina de Oliveira Garcia e Marise Nogueira Ramos. Os trabalhos referenciados no capítulo foram Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) e Ramos (2007).

29

Em 29 de dezembro de 2008, foi homologada a Lei N.º 11.892 pelo governo

federal, através do Ministério da Educação (MEC), instituindo a Rede Federal de

Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFPT) e os Institutos Federais de

Educação, Ciência e Tecnologia (IF). Inicialmente, foram criados 38 institutos, com

314 campi com abrangência em grande parte do território nacional, inclusive no

interior, atuando em cursos técnicos (50% das vagas), em sua maioria na forma

integrada com o ensino médio; licenciaturas (20% das vagas) e graduações

tecnológicas, podendo ainda disponibilizar especializações, mestrados profissionais

e doutorados, com ênfase na pesquisa aplicada com caráter de inovações

tecnológicas.

A concepção de integração do ensino médio à educação profissional pode ser

percebida no Art. 6º, inciso I da Lei Nº 11.892/2008 que apresenta como uma das

finalidades dos IF

ofertar educação profissional e tecnológica, em todos os seus níveis e modalidades, formando e qualificando cidadãos com vistas na atuação profissional nos diversos setores da economia, com ênfase no desenvolvimento socioeconômico local, regional e nacional. (BRASIL, 2008, grifo nosso)

No que concerne diretamente ao ensino de ciências e matemática,

identificamos nesta lei, intenções explícitas de ações propositivas que apontam para

os processos formativos de docentes e para a oferta de cursos de capacitação

docentes de outras escolas públicas, conforme descrito nos incisos V e VI do Art. 6º:

V - constituir-se em centro de excelência na oferta do ensino de ciências, em geral, e de ciências aplicadas, em particular, estimulando o desenvolvimento de espírito crítico, voltado à investigação empírica;

VI - qualificar-se como centro de referência no apoio à oferta do ensino de ciências nas instituições públicas de ensino, oferecendo capacitação técnica e atualização pedagógica aos docentes das redes públicas de ensino;

No Inciso VII – “desenvolver programas de extensão e de divulgação científica

e tecnológica” – o papel atribuído aos IF parece se aproximar da idéia de

alfabetização científica e tecnológica, quando propõe a realização da divulgação

científica e tecnológica associada aos programas de extensão que, em geral, são

programas que levam conhecimento para além dos muros da própria instituição, ou

seja, para a sociedade.

Observamos no Art. 7º, um dos sentidos de integração entre ensino médio e

educação profissional, ao apontar como objetivo dos IF

30

ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos. (BRASIL, 2008)

O uso da palavra prioritariamente deixa em aberto a possibilidade de oferta de

educação profissional não integrada ao ensino médio. É possível considerar, ainda,

outras alternativas de formação profissional possibilitadas pelo Decreto Nº

5.154/2004, que seriam as modalidades concomitante e subsequente.

No cenário atual, se evidencia a centralidade dada à articulação entre

educação profissional técnica de nível médio e o ensino médio nas políticas públicas

para a educação brasileira, com incentivos ao regime de cooperação entre União,

estados e municípios, buscando intensificar o aumento da oferta de educação

pública de qualidade associada ao desenvolvimento econômico e social.

Em um balanço da educação brasileira na primeira década do século XXI,

Frigotto (2011) critica a centralidade dada pelo governo a um “projeto

desenvolvimentista com foco no consumo” e em “políticas e programas para a

grande massa de desvalidos” em conciliação com os interesses da classe

dominante, no qual a educação universal e com igual qualidade é secundarizada e

concebida como desnecessária. Assevera que, em decorrência, as concepções e

práticas educacionais desta década foram definidas a partir das mesmas

concepções da década de 1990, (re)afirmando as parcerias público-privado

colocadas pela LDB de 1961, com exceção no que diz respeito à abrangência das

políticas aos grupos sociais assistidos e ao financiamento aplicado, dentre elas, a

expansão dos CEFET, hoje IF em sua maioria, promovendo cerca de 500 mil

matrículas. Em relação às formas de gestão e concepções que orientam as ações e

as políticas no campo educacional, o autor faz a crítica à ênfase dada aos

“processos de avaliação de resultados balizados pelo produtivismo e à sua filosofia

mercantil” que se refletem nos processos pedagógicos. Para ele, essas ações

valorizam a pedagogia das competências em detrimento da pedagogia histórica-

crítica, por conduzirem à aplicação dos métodos do mercado na escola e, assim,

afastando-se de uma educação unitária e omnilateral (FRIGOTTO, 2011, p. 244).

Um dos motivos desta preocupação emerge, segundo Frigotto (2011), das

atuais intenções do governo federal em eleger para a presidência da Câmara de

Educação Básica do CNE, o representante do Sistema S, gerido por empresários, e

assim, tornar as instituições de ensino prestadoras de serviços ligadas ao mercado,

31

nas quais o conhecimento é tomado como mercadoria. Nesse sentido, negligenciam-

se a função social e cultural da educação e valorizam-se indivíduos em competição

determinando uma sociedade dos que “passam pelo metro que mede o tempo fugaz

da mercadoria e de sua realização” (FRIGOTTO, 2011, p. 251).

A educação profissional vem se constituindo historicamente em um campo no

qual estão em disputa vários interesses governamentais, empresariais, de

instituições internacionais e, em particular, da esfera acadêmica que luta para

reverter a concepção adestradora e tecnicista profissional que, de um modo geral,

desde muito caracteriza os processos formativos profissionais no Brasil. A

preocupação da comunidade acadêmica em relação à EPT que nesta década

recebe atenção prioritária do governo, é a forma como vem se constituindo, tanto

pela manutenção de seu caráter privado (até 2008, cerca de 80% da educação

profissional estão nas mãos da iniciativa privada) como pelas DCN para a Educação

Profissional Técnica de nível Médio que parecem insistir em uma regressão ao

Decreto Nº 2.208/1997.

A ênfase crescente dada pelas políticas públicas para a educação profissional

integrada ao ensino médio e a discussão sobre suas determinações em relação à

ampliação das oportunidades de acesso à educação profissional técnica de nível

médio representam, ao mesmo tempo, a oferta em larga escala de educação

científica e tecnológica nesses moldes, com alcance para todo o território brasileiro.

Entretanto, poucos estudos têm sido desenvolvidos no sentido de se compreender

como vem sendo tecida essa integração e, a partir dessa noção, os sentidos que

são produzidos no contexto da educação profissional para a educação científica, o

que aumenta a relevância deste estudo.

32

3 REVISÃO DE LITERATURA

Embora a educação científica constitua a base curricular dos cursos de

formação profissional e tecnológica tal como proposto pela legislação nas últimas

décadas no Brasil, é incipiente o número de estudos na literatura especializada da

área de ensino de ciências e matemática que problematizem a educação científica

nesse contexto. Nas últimas décadas, a discussão sobre a educação profissional

vem se desenvolvendo prioritariamente no âmbito da pesquisa em educação,

precisamente nos grupos de pesquisa que investigam as relações entre trabalho e

educação. Por este motivo, a revisão da literatura apresenta, inicialmente, a

discussão que esses pesquisadores empreendem sobre a educação profissional e

sobre o conceito de formação integral.

Mesmo reconhecendo que a contribuição específica da área de ensino de

ciências para a discussão da educação profissional seja ainda incipiente, trazemos o

resultado de um levantamento realizado nas principais revistas da área, que resultou

em poucos artigos. Para além desses artigos, encontramos na discussão sobre

Alfabetização Científica e Tecnológica, objeto amplamente explorado pelo campo,

um ponto inequívoco de contato com a formação integral. Abrimos espaço para essa

discussão neste capítulo, entendendo que tanto a formação integral como a

alfabetização científica pode ser vista como perspectiva de qualidade da educação

científica no contexto da formação profissional de nível médio.

3.1 A FORMAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Na concepção de Ramos (2008)

uma educação de qualidade é uma educação que possibilite a apropriação dos conhecimentos construídos até então pela humanidade, o acesso à cultura, à ciência e às mediações necessárias para trabalhar e produzir a existência e a riqueza social. (p. 62)

Segundo a autora, estes seriam, também, os pressupostos para a formação

integral.

33

Mas o que é integrar? É tornar íntegro, tornar inteiro, o quê? Ao empreender

essas reflexões, Ciavatta (2005) remete o termo ao “seu sentido de completude, de

compreensão das partes no seu todo ou da unidade no diverso, o que significa tratar

a educação como uma totalidade social" (p. 84). Segundo a autora, a ideia de

formação integrada sugere superar a redução da preparação para o trabalho com

vistas à realização de tarefas simples, que não contempla os conhecimentos que

estão na sua gênese científico-tecnológica. Como formação humana, o que se

busca é assegurar ao adolescente, ao jovem, ao trabalhador o direito a uma

formação completa que o possibilite a fazer a leitura do mundo e a atuar como

cidadão integrado dignamente à sociedade política (CIAVATTA, 2005, p. 85).

O conceito de formação integrada tem origem na educação socialista que

pretendia ser omnilateral, no sentido de formar o ser humano na sua integralidade

física, mental, cultural, política e científico-tecnológica. No Brasil, é recente a ideia de

integração entre formação geral e a educação profissional, que pode ser

identificada, conforme já mencionado nesse texto, na busca da superação histórica

do “dualismo da sociedade e da educação brasileira e nas lutas pela democracia e

em defesa de uma educação pública nos anos 1980” (CIAVATTA, 2005, p. 87).

Em outro estudo, Ramos (2008) se propõe a discutir sobre três sentidos de

integração entre ensino médio e educação profissional, que se complementam entre

si. Ao introduzir a discussão sobre integração nesse contexto, pergunta-se: "É só

uma questão de forma? São disciplinas da formação geral com a formação

profissional? Quando falamos de currículo integrado, do que estamos falando?"

O primeiro sentido atribuído à integração é o filosófico que expressa uma

concepção de formação humana, com base na integração de todas as dimensões da

vida no processo formativo, independente da forma ou tipo de formação, se é geral

ou profissionalizante (RAMOS, 2008, p. 63).

Nessa perspectiva, a integração das dimensões trabalho, ciência, tecnologia e

cultura implica entendimento do trabalho como princípio educativo, ou seja, é

considerar que o homem é produtor de sua realidade e, por isso, pode dela se

apropriar e modificá-la. Além do sentido ontológico, a autora considera, também, o

sentido de trabalho construído historicamente em relação aos aspectos econômicos

para garantir a nossa sobrevivência, produzir riquezas e satisfazer necessidades.

Esta relação econômica é fundamento da profissionalização, porém, ao integrar

trabalho, ciência, tecnologia e cultura, a profissionalização vai além da concepção de

34

formar para o mercado e incorpora outros valores e conteúdos históricos e científicos

que caracterizam a práxis humana (RAMOS, 2004, p. 45).

Nesse sentido, a autora considera que formar profissionalmente é

proporcionar a compreensão das dinâmicas sócio-produtivas das sociedades modernas, com as suas conquistas e os seus revezes, e também habilitar as pessoas para o exercício autônomo e crítico de profissões, sem nunca se esgotar a elas. (RAMOS, 2004, p. 45)

Assim, o trabalho deve ser compreendido no seu duplo sentido, ontológico e

histórico:

a) ontológico, como práxis humana e, então, como a forma pela qual o homem produz sua própria existência na relação com a natureza e com os outros homens e, assim, produz conhecimentos; b) histórico, que no sistema capitalista transforma-se em trabalho assalariado ou fator econômico, forma específica da produção da existência humana sob o capitalismo; portanto, como categoria econômica e práxis produtiva que, baseadas em conhecimentos existentes, produzem novos conhecimentos. (RAMOS, 2004, p.46)

Nessa perspectiva, a ciência é parte do conhecimento sistematizado e

expresso na forma de conceitos e métodos que são transmitidos de uma geração a

outra, podendo ser reconstruídos historicamente (RAMOS, 2004, p. 43).

Ao contextualizar a história da tecnologia a partir da revolução industrial,

seguida do taylorismo, do fordismo e da automação, a autora argumenta que esta se

encontra nos marcos da transformação da ciência em força produtiva. Portanto, é a

“mediação entre ciência (apreensão e desvelamento do real) e produção

(intervenção no real)” (RAMOS, 2004, p. 44).

No que concerne à cultura, Ramos (2004), com base na perspectiva de

Gramsci (1991 apud RAMOS, 2004), a compreende no seu sentido mais amplo

possível, ou seja,

como a articulação entre o conjunto de representações e comportamentos e o processo dinâmico de socialização, constituindo o modo de vida de uma população determinada. Portanto, a cultura é o processo de produção de símbolos, de representações, de significados, e ao mesmo tempo prática constituinte e constituída do e pelo tecido social. (p. 44)

Assim, uma formação integrada vai além de possibilitar o acesso aos

conhecimentos científicos ao promover a reflexão crítica sobre os padrões culturais

de um grupo social, assim como

a apropriação de referências e tendências estéticas que se manifestam em tempos e espaços históricos, os quais expressam concepções, problemas, crises e potenciais de uma sociedade, que se vê traduzida e questionada nas manifestações de obras artísticas. (RAMOS, 2004, p. 44)

35

Tomando como ponto de partida a concepção filosófica que acabamos de

expor, apresentaremos o segundo sentido de integração, com caráter político e

estruturante, que é o de indissociabilidade entre educação profissional e ensino

médio.

Ciavatta (2005) entende a educação que visa à formação integral como uma

totalidade social, isto é, “as múltiplas mediações históricas que concretizam os

processos educativos”. Esse tipo de formação propõe a indissociabilidade entre a

educação geral e a profissional em todos os âmbitos em que se dão os processos

educativos, buscando superar a ênfase em uma preparação para o trabalho

conformada por aspectos operacionais que não contemple os “conhecimentos que

estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social”.

Nesse sentido, a escola unitária é tomada na concepção de não dualidade

educacional, ou seja, que propicie a todos “o acesso aos conhecimentos, à cultura e

às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência e a riqueza

social” (CIAVATTA, 2005, p. 86).

Para Ramos (2008, p. 62), uma educação nessas bases precisa ser

politécnica, isto é, uma educação que ao propiciar ao sujeito o acesso aos

conhecimentos e à cultura construídos pela humanidade, propicie também a

realização de escolhas e o acesso ao trabalho como produção humana e como

práxis econômica.

Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) definem formação politécnica com base na

acepção de Saviani (2003) como sendo “o domínio dos fundamentos científicos das

diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno”, destacando

que esse ideário busca, não separando educação básica e técnica, resgatar o

princípio da formação humana em sua totalidade. E ainda, do ponto de vista

epistemológico e pedagógico, propõem “integrar ciência e cultura, humanismo e

tecnologia, de modo a propiciar o desenvolvimento de todas as potencialidades

humanas” (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005, p. 35).

De acordo com Ramos (2008), na atualidade, existem dispositivos legais que

possibilitam a formação integrada. A partir do Decreto N.º 5.154/2004, tornou-se

possível desenvolver a educação integrada, objetivando garantir, aos sujeitos,

educação básica (ensino médio) e formação técnica profissional. A autora esclarece

que ao defender o significado formativo do trabalho para o ensino técnico, nas bases

conceituais discutidas nessa seção, não está querendo dizer que o ensino técnico,

36

por si só, é mais importante do que a formação geral, pelo contrário, em sua

concepção, caso não sejam integrados os conhecimentos da educação básica, este

ensino é reduzido a treinamento.

No cenário político atual, a formação integrada, entendida como sólida

formação básica em estreita ligação com a formação profissional, tornou-se possível

de ser realizada pelas escolas, uma vez que o Decreto N.º 5.154/2004 flexibilizou a

oferta de educação profissional nas modalidades: concomitante e subsequente. No

primeiro caso, a formação técnica é oferecida em currículos e em estabelecimentos

de ensino, diferentes. No segundo, com o caráter de formação continuada para o

jovem que já concluiu o ensino médio não profissionalizante e que deseja fazer a

formação profissional.

Porém, atingir a formação integral não se constitui em uma tarefa fácil. Ao

discutir a formação no sentido de integrar conhecimentos gerais e específicos

correspondentes à formação básica e profissional, Ramos (2005, p.52) introduz o

terceiro sentido de integração, questionando

como podemos proporcionar compreensões globais, totalizantes da realidade a partir da seleção de componentes e conteúdos curriculares? Como, então, poderíamos desenvolver uma formação que não separando formação geral e profissional, viabilizasse o ensino-aprendizagem de conhecimentos que possibilitam a compreensão da vida social como um todo?

Para a autora as respostas para tais perguntas estão na relação entre partes

e totalidade que pode ser entendida na perspectiva de uma visão histórica, ou seja,

aquela em que o conhecimento contemporâneo guarda em si a história de sua

construção ou na perspectiva que trata da relação entre o estudo de um fenômeno,

de um problema, ou de um processo de trabalho com a realidade em que se insere

(p. 52).

Ramos (2008) constrói o sentido de integração entre conhecimentos gerais e

específicos remetendo-o à concepção de totalidade curricular. A autora faz a crítica

à classificação das disciplinas como formação geral e específica, a qual considera

reflexo da formação dos professores de ensino médio baseada na hegemonia do

positivismo, argumentando que

não existe essa separação que o positivismo nos fez crer ao longo da história, com base na qual se naturaliza a ideia de que o professor da educação básica ministra as teorias gerais, enquanto o professor da formação técnica ministra as suas aplicações. (p.68)

37

Assim, segundo a autora, nenhum conhecimento específico é definido como

tal se são consideradas as finalidades e o contexto produtivo em que se aplicam. Da

mesma forma, um conhecimento de formação geral só adquire sentido quando

reconhecido em sua gênese a partir do real e em seu potencial produtivo. Para

superar a separação entre geral e específico, Ramos (2008) propõe vincular os

conhecimentos ao estudo e compreensão de fenômenos reais, visando estabelecer

relações entre o conhecimento e o que se pode compreender da realidade a partir

dele.

Com essa visão, Ramos (2008) sugere que na formação profissional

integrada ao ensino médio, qualquer processo de produção e/ou fenômeno social

seja estudado e compreendido em suas múltiplas dimensões, visto como totalidade,

ou seja, relacionando questões físico-ambientais, econômico-produtiva, sócio-

histórica e técnico organizacional.

No entanto, a autora nos adverte que não é tornar as disciplinas da formação

geral instrumentais à formação específica. A integração curricular proposta, exige

uma postura epistemológica baseada nos princípios de interdisciplinaridade e da

visão totalizante da realidade, em contraposição à ideia de somatório, superposição

ou subordinação de conhecimentos uns aos outros.

3.2 ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL

A revisão dos principais periódicos da área de ensino de ciências revelou

apenas quatro trabalhos que se inserem no contexto da formação profissional. Em

um deles, Rubega e Pacheco (2000) apresentaram uma breve retrospectiva da

evolução sócio-histórica do técnico em Química e de sua prática no mundo

produtivo. Na discussão, os autores enfatizam os aspectos social, político e

científico-tecnológico na formação técnica de nível médio buscando superar a

ideologia imediatista de formação profissional e eliminar a perspectiva reprodutivista

das relações sociais como engrenagem do sistema capitalista. Foi possível

identificar uma aproximação entre a discussão empreendida pelos autores com a

discussão da formação integral desenvolvida na seção anterior, na medida em que

38

os autores dão relevo aos aspectos sociais e políticos na formação do técnico em

Química.

Já o estudo de Borges e Carvalho (2005) buscou desvelar o significado do

termo “aprender” entre os alunos de uma escola agrotécnica. Os autores refletiram

sobre as convergências e divergências de significados a partir da visão dos alunos,

na tentativa de “evidenciar os invariantes e as categorias que expressam aspectos

relevantes do fenômeno estudado” (p. 1). Os resultados revelaram que os

significados do termo “aprender” abrangem “o sentido de aprender”, as “condições

para aprender” e “relações afetivo-relacionais no aprender” e a relação desses

significados com situações vividas em uma escola agrotécnica. Embora este estudo

tenha como contexto a educação profissional, seu objetivo se afasta da discussão

da EP apresentada anteriormente.

Outro trabalho discute a alfabetização científica e tecnológica (ACT) na

perspectiva da ênfase curricular que privilegia as relações entre Ciência, Tecnologia

e Sociedade (CTS) no contexto da EPTM. Neste estudo, Silveira e Bazzo (2009)

investigaram a concepção que empreendedores e gestores, envolvidos com o

processo de desenvolvimento de inovações tecnológicas dentro de incubadoras de

empresas de base tecnológica do Paraná, possuem sobre ciência, tecnologia,

inovação e suas relações com o contexto social. Como resultados, os autores

afirmam que a grande maioria dos participantes da pesquisa possui uma visão ainda

incipiente sobre ciência, tecnologia e suas relações sociais, evidenciando-se, dessa

forma, a necessidade de se mudar o paradigma atual da educação tecnológica, a fim

de transformar a concepção do profissional da área tecnológica quanto a sua

responsabilidade social nesse processo. Os resultados deste trabalho apontam a

necessária relação da formação profissional com a crítica ao papel da ciência e da

tecnologia no contexto histórico e social, o que também se alinha com a discussão

da formação integral.

O estudo de Salandim e Garnica (2010), pautado em uma síntese histórico-

sociológica sobre o panorama rural brasileiro, na constituição do ensino técnico e no

desenvolvimento do ensino técnico agrícola, se propuseram a discutir a dupla

marginalização que as escolas técnicas agrícolas sofrem, proveniente de sua

natureza profissionalizante e de sua vinculação com o meio campesino. Este

processo, além de segmentar, cindir e hierarquizar práticas e saberes, nos coloca

frente a frente não somente com o preconceito entre os saberes produzidos no

39

campo e na cidade, mas, sobretudo, aos saberes que deverão ser dedicados ao

trabalho, força motriz dos explorados. Os autores concluem que tal marginalização

ocupa também o interior das escolas, onde os professores de Matemática

apresentam resistências e acomodações em relação aos professores das áreas

técnicas e, de modo geral, ao sistema regular de ensino. Também é possível ver

aproximação entre os objetivos perseguidos pelos autores e a discussão da

formação integral na medida em que apontam a necessidade de cruzar o ensino (no

caso, profissional) com seus aspectos sociais.

Este caminho de integração de diferentes objetivos para a educação científica

está presente na arena da conceituação de alfabetização científica (AC) e de

letramento científico (LC)4. Santos (2007) defende uma educação científica cujas

leituras de informações científicas e tecnológicas, possibilitem a compreensão das

relações entre ciência-tecnologia-sociedade, propiciando a interpretação de sua

função social. Segundo o autor, a discussão sobre o conceito de AC como meta do

ensino de ciências ganha ênfase nos anos de 50 e 60. Com o crescimento da

indústria americana no final da década de 40 e início da década de 50, surgiu a

necessidade de formar cientistas e engenheiros para atender ao crescimento

socioeconômico do país. Em seguida, nos anos de 50 e 60, frente ao desafio do

lançamento do Sputnik soviético, a política desenvolvida para o ensino de ciências

privilegiava objetivos políticos e econômicos em detrimento dos culturais e sociais. O

que se pretendia era a formação de uma elite científica e tecnológica capaz de

promover, com êxito, a investigação americana (FOUREZ, 1997). Dessa forma, a

ciência se tornou um componente importante do currículo geral pré-universitário nos

Estados Unidos como ocorreu em outros países industrializados.

Dentre as definições formais de AC, Shamos (1995) afirma que elas variam

de um extremo que vai desde a compreensão mínima de ciência, variando o nível de

conhecimento científico necessário para os profissionais iniciantes no campo de

conhecimento da ciência até o outro extremo, no qual pouco ou quase nenhum

conhecimento científico formal é necessário para ser alfabetizado cientificamente.

Nessa última visão, a prevalência é dada à compreensão dos problemas sociais

trazidos pela ciência e tecnologia sobre a busca de soluções para os mesmos.

4 Santos (2007) posiciona-se a favor de uma diferenciação não dicotômica entre estes termos, mas

tende a caracterizar AC como “domínio da linguagem científica” e LC no sentido do uso do conhecimento científico voltado para a “prática social”.

40

Shamos (1995) discute a busca pela AC a partir de dois aspectos, a saber, o

da auto-justificação e perpetuação da ciência e das profissões para a educação

científica e o da educação generalizada objetivando criar um público cientificamente

alfabetizado. Tomando o segundo aspecto como objetivo da educação científica, o

autor define AC com base nos benefícios que a sociedade e o indivíduo possam

obter, se os seus membros forem suficientemente letrados para participar

inteligentemente em assuntos sociais da ciência. Contudo, ao teorizar sobre estas

concepções polemiza sobre a inadequação destes objetivos no contexto do nível

médio de ensino, alegando que quando os alunos se tornam adultos, fase em que os

considera mais responsáveis e capazes de contribuir para o bem coletivo, não há

nenhuma garantia que tenham retido tais conhecimentos, ainda que tenham tido um

bom desempenho nas disciplinas científicas (p.76).

Ainda sob o ponto do ponto de vista das implicações sociais da ciência,

Shamos (1995) explicitando Benjamin Shen, refere-se ao objetivo da AC cívica como

aquela que oportuniza “ao cidadão tornar-se mais consciente da ciência e das

questões relacionadas com a ciência, para que ele e os seus representantes

possam ter bom senso para lidar com estas questões" (p. 87). Após uma extensa

revisão sobre visões de AC, o autor sugere superar a radicalização simplista de

considerar o sujeito alfabetizado ou analfabeto científico, e, ao invés disso, distinguir

níveis de alfabetização obtidos durante a exposição formal à ciência em uma

organização verticalizada, quais sejam Alfabetização Científica Cultural;

Alfabetização Científica Funcional e Alfabetização Científica “Verdadeira”.

Pautado na definição de Hirsch, Shamos (1995) define AC Cultural como o

entendimento de certas comunicações básicas que comunicadores devem realizar a

partir do conhecimento de suas audiências. No entanto, faz a crítica de que a AC

não pode se bastar à aquisição do léxico científico, colocando os sujeitos em uma

zona de conforto em relação a não se sentirem totalmente analfabetos em ciências

(p. 90). Então amplia este nível para AC Funcional exigindo que o sujeito seja capaz

de conversar, ler e escrever de forma coerente e usar termos científicos em

contextos não técnicos, mas em discurso significativo sobre artigos científicos e seja

capaz, também, de formular perguntas inteligentes sobre ciência. Em um nível

acima, está a AC “Verdadeira” exigindo que o sujeito conheça as teorias nas quais

se fundamenta a ciência, o papel da experiência na ciência, os elementos da

investigação científica, o raciocínio analítico e dedutivo, o pensamento lógico e

41

outros. Todavia, reconhece que é uma exigência difícil a de que as pessoas, além

de tornarem-se alfabetizadas, mantenham-se alfabetizadas em ciência. Segundo o

autor, deve-se levar em conta questões, por exemplo, que giram em torno da carga

emocional associada às questões sociais da ciência, financiamentos, compromisso

por parte dos alunos, a dificuldade inerente à compreensão dos conceitos científicos,

etc. (pp. 92-97).

Chassot (2000) afirma que AC deve ser considerada como “o conjunto de

conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo

onde vivem” (p. 19). Em outro trabalho (CHASSOT, 2003), o autor acrescenta que

“ser alfabetizado cientificamente é saber ler a linguagem em que está escrita a

natureza” (p. 91) e, ao falar de ciência como linguagem, associa este conceito à

capacidade do cidadão de prever e transformar a natureza para melhorar a

qualidade de vida das pessoas.

Para Delizoicov e Auler (2001), a ACT deve problematizar “mitos”, como por

exemplo, o da “superioridade do modelo de decisões tecnocráticas, a perspectiva

salvacionista da Ciência e Tecnologia e o determinismo tecnológico” (p. 2). Os

autores defendem a concepção ampliada de ACT que não só problematiza como

busca superar a visão de EC com base nos citados mitos, atenta aos temas

socialmente relevantes, como a democratização da ciência e tecnologia como

aspecto essencial ao exercício da cidadania. O pressuposto seria, então, a

democratização do acesso a esse conhecimento no sentido de formar cidadãos

capazes de pensar a ciência a partir de uma postura crítica, ativa que lhes permitam

compreender e participar dos processos decisórios visando o bem individual e

coletivo.

Fourez (1997) relaciona ACT à necessidade de "promoção da dignidade

humana nas sociedades chamadas desenvolvidas" (p. 19). Em sua análise, atribui à

intensa discussão sobre ACT e ao movimento de Ciência, Tecnologia e Sociedade, à

crise do ensino de ciências que se manifesta, em todo mundo, nos níveis

pedagógicos e socioeconômicos. No nível pedagógico, segundo o autor, os

obstáculos estão relacionados ao ensino de conteúdos incoerentes e irrelevantes

para as necessidades atuais dos alunos o que interfere diretamente na

aprendizagem pelo fato “de os alunos não reterem grande coisa depois de alguns

anos”. Acrescenta ainda, que, a alfabetização científica está intrinsecamente

relacionada com a alfabetização tecnológica e qualquer distinção entre esses

42

conceitos seria, no mínimo, “artificial”, pois ambos são produções humanas,

criadoras de modelos vinculados a situações, contextos e projetos particulares

(FOUREZ, 1997, p.21).

Em outro trabalho, Fourez (2003) analisa a crise do ensino de ciências a partir

da discussão sobre suas finalidades. Em sua análise, afirma que a finalidade da ACT

centra-se na formação cidadã, enquanto que, o ensino de “proezas científicas”

visaria à preparação de especialistas. Embora afirme que estas sejam orientações

distintas, chama a atenção para a complementaridade entre essas duas

abordagens, questionando se para formar especialistas não seria necessário

priorizar a ACT de todos, em outras palavras: “se é dado a muitos o sentido do que

se pode fazer com as ciências, as vocações científicas poderiam se desenvolver”

(p.114).

Na sequência de seus estudos, Fourez analisa o conceito de AC, associando-

o ao desenvolvimento do que ele chama de “unidades de racionalidade” constituídas

por um conjunto de conhecimentos de base em ciência e tecnologia. Para o autor,

esses conhecimentos possibilitariam às pessoas participar ativamente na sociedade,

na compreensão de fenômenos e na aquisição de novos conhecimentos. Nesse

sentido, as finalidades do ensino de ciências relacionam-se diretamente com o

desenvolvimento de tais racionalidades.

Entendemos que a educação profissional técnica de nível médio pautada pelo

princípio da integração, tanto possibilitará o contato com os conceitos e princípios

científicos básicos, na ótica dos aspectos apresentados, como poderá permitir o

desenvolvimento de habilidades necessárias à compreensão, à intervenção e à

tomada de decisões voltadas para questões científicas e tecnológicas, como já

discutidos pelos autores aqui apresentados. Essa concepção de formação

profissional em consonância com a formação de cidadãos capazes de analisar,

interpretar, inferir e decidir em um processo democrático de participação na

sociedade, aponta para o rompimento com a noção de formação técnica

instrumental e a aproxima dos pressupostos da alfabetização científica que

pressupõem uma formação mais ampla que vá além da preocupação em formar

bem, técnicos especialistas para o mercado de trabalho, mas cidadãos que se

compreendam e ao mundo em uma perspectiva sócio-histórica e cultural.

43

3.3 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO DEBATE DE SUAS FINALIDADES

A história da pesquisa em ensino de ciências pode nos ajudar a entender

como têm sido postas questões sobre a sua qualidade. Sua origem na América do

Norte, como consequência dos esforços empreendidos para aumentar a eficiência

do ensino de ciências frente à corrida espacial na década de 50 do século XX,

marca até hoje, com traços do eficienticismo pretendido naquele momento, tanto a

pesquisa quanto o ensino nessa área. Desde então, a pesquisa em Educação em

Ciências (EC) tem priorizado os aspectos metodológicos e epistemológicos e a

consideração à lógica do conhecimento científico de referência no sentido de

garantir a eficiência dos processos de ensino-aprendizagem.

Esta característica, ainda dominante, assume a qualidade do ensino de

ciências enquanto qualidade do processo educativo sem ver como necessária a

reflexão sobre seus objetivos, assumindo-os como evidentes ou como a formação de

quadros técnicos necessários ao desenvolvimento científico e tecnológico e ao

mercado. Esta falta de questionamento dos objetivos da EC parece desconsiderar a

educação como campo intrinsecamente político e social o que, por conseguinte,

deixa a discussão sobre qualidade passar ao largo desses aspectos.

É possível ver essa tendência na área de física, por ter sido esta área, entre

as ciências naturais, a precursora no desenvolvimento de pesquisas em ensino. De

acordo com o mapeamento realizado por Rezende, Ostermann e Ferraz (2009), o

estado da arte da produção nacional sobre o ensino de física concentra-se na

temática ensino-aprendizagem, apoiando-se sobre um tripé: propostas de

metodologias e estratégias de ensino, desenvolvimento de experimentos para o

laboratório didático e elaboração de recursos didáticos para a sala de aula. As

autoras interpretam essa configuração da área como “a expressão de uma visão

instrumentalista da pesquisa em ensino e muitas vezes tecnicista do processo

educativo, que visa basicamente ao fornecimento de subsídios ao professor para

melhorar o desempenho do aluno” (p. 5).

Considerando que, assim como a física, as áreas de biologia, química e

matemática tenham priorizado o desenvolvimento e a pesquisa das dimensões

metodológicas e epistemológicas do ensino, é possível vislumbrar que a produção já

alcançou um nível de conhecimento importante no sentido de indicar

44

direcionamentos para a qualidade da prática docente e da aprendizagem como,

entre outros, a necessidade de considerar o conhecimento prévio do aluno, a

necessidade de mudar a crença epistemológica empirista impressa no ensino de

ciências, a necessidade de fomentar interações dialógicas e caminhos para

incorporação das tecnologias da informação e comunicação no ensino.

Por outro lado, a área de EC tem dado pouca importância às políticas

educacionais como caminho para se atingir a qualidade. Talvez justamente a falta de

reflexão política tenha como consequência o fato de que a produção acadêmica da

área acaba se prestando ao atendimento e divulgação das propostas curriculares

oficiais (REZENDE e OSTERMANN, 2005). Sendo os PCN (BRASIL, 1998) do

ensino médio para a área de ciências naturais construídos a partir dos conceitos de

interdisciplinaridade, competências e contextualização, é possível inferir que a

pesquisa tem assumido estes conceitos como sinônimos de qualidade. Entretanto,

críticas aos PCN trazem à tona objetivos educacionais que são valorizados a partir

dos conceitos metodológicos dessa proposta. Por meio dos conceitos de

contextualização e competências seria difundida a ideia de que a educação deve

servir de ferramenta de inserção social, vinculando-se ao mundo produtivo, sem se

preocupar com os questionamentos de como se constituiu ou se constitui este

mundo. Como consequência, tem-se observado que muitos professores entendem o

princípio da contextualização como sinônimo de abordagem de situações do

cotidiano, no sentido de descrever os fenômenos da natureza com a linguagem

científica, deixando de explorar as dimensões sociais, políticas e culturais nas quais

esses fenômenos estão inseridos (SANTOS, 2007).

Entendemos que, embora toda a produção da área dedicada ao processo de

ensino-aprendizagem possa ser considerada um passo importante na direção da

qualidade, não há como desvincular a reflexão sobre a qualidade do ensino de

ciências da reflexão sobre seus objetivos. Gurgel (1999) aposta que uma educação

científica de qualidade deve não apenas responder aos anseios de uma sociedade

envolvida pela cultura tecnológica, mas, sobretudo, aos sujeitos que, em seus

cotidianos, precisarão entender seus próprios mundos, tanto no âmbito de seus

componentes naturais, quanto acerca dos aspectos histórico-culturais,

considerando-se a interação entre o homem e a natureza em suas diversas

dimensões.

45

Encontramos no discurso de Lemke (2006) a proposta de formular objetivos

para a educação científica dentro de nossos objetivos mais amplos para a educação

em geral e de nossa definição do que seja necessário para uma sociedade melhor e

uma vida melhor para as pessoas, portanto, não devem ser meramente técnicos ou

objetivar apenas a formação de “trabalhadores capacitados e consumidores

educados para uma economia global” (p. 6).

Lemke (2005) defende a reorientação do currículo de ciências para questões

e problemas sociais que terão que ser enfrentados por toda a humanidade no século

XXI, como a crise ambiental, a injustiça social e a opressão invisíveis para com os

mais jovens visando a uma sociedade melhor e uma vida mais satisfatória para as

pessoas. O autor acredita que legisladores e protagonistas da EC devem tomar

atitudes políticas e morais ou seremos julgados, seja pelos estudantes, seja pela

história, como socialmente irresponsáveis.

Esta orientação está longe de ser realizada, apesar de defendida, atualmente,

por alguns pesquisadores, como Banet (2007), para quem é evidente que a

formação recebida pelos estudantes no ensino secundário, centrada nos conceitos e

leis próprios das disciplinas não atende às necessidades da sociedade atual e deixa

de lado outros âmbitos formativos importantes como os processos que caracterizam

a atividade científica. Assim, nem se efetiva uma educação científica satisfatória,

nem se atendem às necessidades formativas dos cidadãos na atualidade.

Os estudos sobre as abordagens curriculares com ênfase na relação Ciência-

Tecnologia-Sociedade (CTS) são a linha de pesquisa da área que prioriza a

qualidade política da ciência e da educação. Estes estudos, que na essência se

aproximam dos fundamentos da ACT, defendem um currículo que explore a relação

entre Ciência, Tecnologia e Sociedade e apontam como sua principal proposta a

preparação dos estudantes para o exercício da cidadania (SANTOS e MORTIMER,

2002). Estes autores alertam, por outro lado, que uma reforma curricular com ênfase

CTS implica mudanças de concepções do papel da educação e da EC ou estaremos

incidindo no erro de simplesmente maquiar os currículos atuais com pequenas

aplicações de temas sociais do cotidiano.

É reconhecido que, ao longo das últimas décadas, a educação científica tem

sido impulsionada por interesses políticos voltados para a formação da força de

trabalho técnica e cientificamente preparada. Lemke (2005) considera que este

processo tem excluído grande parte da população, contribuindo para o isolamento

46

da educação científica das preocupações cotidianas de estudantes de todas as

idades. Esta crítica vai ao encontro do que especialistas em currículo defendem ao

alertarem que a dignidade humana, a identidade cultural e a diferença precisam ser

consideradas nas propostas curriculares, caso contrário nos arriscaremos a

promover um ensino para poucos, excluindo e marginalizando grande parte da

população (MOREIRA, 2001).

Além destas, outras questões podem ser levantadas quando propomos a

reflexão sobre a qualidade da EC: quais são as finalidades da educação científica de

qualidade? Uma EC que visa apenas à preparação de força de trabalho técnica e

cientificamente qualificada e à integração ao mercado? Finalidades que possam ir

ao encontro de expectativas de melhor qualidade de vida, desenvolvimento de

potenciais humanos e culturais (LOPES, 2004)? Que visão de ciência seria

compatível com um currículo de qualidade? Uma ciência inquestionável, com seus

objetivos próprios e rumo autônomo, que se coloca acima dos interesses dos

cidadãos comuns ou a ciência que se curva aos problemas socioculturais do nosso

tempo? Que políticas curriculares e de avaliação na área das Ciências da Natureza

significam qualidade da educação? Políticas que democratizem acesso e qualidade

da educação ou que priorizam a educação para todos e a qualidade para poucos?

47

4 QUADRO TEÓRICO

Esta pesquisa está fundamentada em constructos da teoria da enunciação do

filósofo russo Mikhail Bakhtin, que concebe a linguagem como constituidora do

sujeito, ao considerar seu caráter dialógico e ideológico. Nesta perspectiva, o autor

distancia-se da concepção de linguagem apenas como um sistema de signos

abstrato e estável e a percebe como um fenômeno social, histórico e ideológico,

elemento de comunicação, que, por consequência, “não poderá jamais ser

compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta” de produção

(BAKHTIN, 1994, p. 124).

Este estudo não pretende desenvolver uma tese sobre linguística, mas se

apropriar dos preceitos da teoria bakhtiniana para aprofundar as relações existentes

entre os usos da linguagem, a formação dos sujeitos e a produção de

conhecimentos.

Interessa-nos, assim, abordar alguns dos princípios que nos auxilie na

apreensão e análise dos sentidos do ensino de ciências que integram as

perspectivas dos professores investigados. O termo perspectiva será apropriado a

partir de uma equiparação com o conceito de voz de Bakhtin (2003), o qual designa

o ponto de vista, a visão de mundo, o posicionamento assumido pelos sujeitos a

partir dos elementos axiológicos e ideológicos mobilizados em suas enunciações

para integrar os sentidos que dão ao objeto de fala.

Assim, nessa seção, estabelecemos um diálogo com pressupostos teórico-

metodológicos bakhtinianos que fundamentam a análise do material empírico desta

investigação.

4.1 INTRODUÇÃO À OBRA DE BAKHTIN

Antes de iniciar a análise dos princípios que fundamentam a teoria

bakhtiniana da linguagem, apresentamos algumas informações relevantes sobre a

obra de Mikhail Bakhtin, que poderão proporcionar uma melhor compreensão de sua

obra e de suas ideias.

48

Os problemas com a tradução dos textos originais, escritos em russo, para

outros idiomas, imprimiram à leitura da obra de Bakhtin, um certo grau de

dificuldade, principalmente, pelas diferentes terminologias e proposições, ficando ela

sujeita a diversas e distintas interpretações. Somam-se a isso dois fatores

importantes. Um deles, a dúvida quanto à autoria de alguns textos, polêmica que se

criou quando o linguista Viatcheslav V. Ivanov afirmou que o livro intitulado Marxismo

e Filosofia da Linguagem havia sido escrito por Bakhtin e não por Volochinov, que

assinara a primeira edição (FARACO, 2003). Neste trabalho, será adotado o mesmo

critério das publicações brasileiras atuais, indicando-se ambos os autores nas

citações que se referem aos textos de autoria duvidosa.

Uma outra maneira de contornar essa polêmica é se referir ao “Círculo de

Bakhtin” que inclui os estudos realizados por Bakhtin e um grupo de profissionais, de

diferentes áreas e interesses, que durante os anos de 1919–1929, trabalhava em

clima de amizade e colaboração. Para Faraco (2003), porém, três desses

intelectuais merecem atenção, Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, não só devido à

confusão de autoria dos textos, mas também pela representatividade desses acerca

do pensamento do Círculo.

Esses aspectos controversos de sua obra podem ser explicados, em parte,

por sua história de vida. Bakhtin viveu na Rússia pós-revolução bolchevique, tendo

sido exilado no Cazaquistão pelo regime stalinista, em 1929, e proibido de retornar a

Moscou até 1969. Nesse período, não publicou e trabalhou como professor em uma

cidade nos arredores da capital. Finalmente, na década de 60, foram autorizadas

publicações de seus textos, e que estão, em sua maior parte, ainda inéditos.

É importante destacar que Bakhtin, inicialmente, voltou seus estudos para o

campo da literatura e da estética, tendo no ápice de sua elaboração teórica aspectos

relacionados ao gênero romance, contudo a teoria bakhtiniana passou a configurar

as bases para uma nova percepção do sujeito nas Ciências Humanas, por “examinar

também a sistematicidade do discurso cotidiano, contribuindo, portanto, para uma

nova perspectiva a respeito da linguagem humana e de seus estudos” (BRAIT, 2001,

p. 35).

A década de 70 foi um marco para a recepção dos trabalhos de Bakhtin no

Ocidente, cuja repercussão, até parte da década de 80, ainda se referia às críticas

literárias. As obras que mais influenciaram os estudos com abordagens enunciativas

e discursivas foram a tradução de Problemas da Poética de Dostoievski (1929) e

49

Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929). Esta última foi considerada como uma

mudança de paradigma para os linguistas. Enquanto a primeira apresenta os

conceitos de dialogismo e polifonia, fundamentais em sua teoria, a segunda é

marcada pela perspectiva histórica, social e cultural da linguagem, que define o

sujeito bakhtiniano formado na e pela interação verbal, e por anunciar,

subliminarmente, conceitos que foram redimensionados em obras escritas mais

tarde, como, por exemplo, o de gênero discursivo. Tais obras são: Questões de

literatura e de estética: a teoria do romance de 1978, e Estética da criação verbal de

1979 (BRAIT, 2003). Longe da pretensão de explorar por completo sua produção

literária, ao longo de sua complexa história de vida, essas breves informações

pretendem orientar o leitor quanto a possíveis caminhos para uma melhor

compreensão da abordagem discursiva e enunciativa dos estudos da linguagem na

concepção bakhtiniana.

Buscamos, na teoria da linguagem bakhtiniana, constructos que

contribuíssem para elucidar as questões que norteiam esta pesquisa, principalmente

em seus textos: Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006), The Dialogic Imagination

(1994) e Estética da Criação Verbal (2010). Dentre os principais conceitos

desenvolvidos por Bakhtin em sua obra, dialogismo e polifonia foram,

fundamentalmente, os que nos auxiliaram no conhecimento e compreensão do

objeto de pesquisa. A partir do desdobramento da pesquisa, envolvendo a análise

dos dados, fomos nos apropriando de outros conceitos, mencionados e

desenvolvidos ao longo da seção seguinte.

4.2 A ARQUITETÔNICA BAKHTINIANA DA LINGUAGEM

No início do século XX havia duas tendências nos domínios da linguística,

que se confrontavam para estabelecer os pilares conceituais a respeito da natureza

da linguagem. De um lado, o objetivismo abstrato, de Ferdinand de Saussure,

limitou-se ao estudo da língua como sistema imutável, estável e normativo de formas

linguísticas, transmitido de geração em geração, um mero instrumento para a

descrição linear de fatos e coisas. De outro lado, havia o subjetivismo idealista,

concepção segundo a qual, a língua é percebida como criação individual, fruto de

operações imanentes e intrapsíquicas. Para Bakhtin (2006), ao privilegiarem as

50

manifestações abstratas e estruturais da língua em detrimento da dinamicidade

constituidora da fala, estas correntes apoiavam-se na enunciação monológica como

ponto de partida, não valorizando sua natureza social.

A filosofia da linguagem de Bakhtin (2006) é a filosofia do signo ideológico.

Signo entendido como “arena de luta”, resultado de um confronto entre sujeitos

socialmente organizados em um processo de interação que lhe assegura a

existência para além de objeto ou de instrumento, estando intimamente relacionado

aos processos de significação nas interações verbais e sociais dos falantes, como

explicitado a seguir:

Em todo ato de fala, a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada, enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de decodificação que deve, cedo ou tarde, provocar uma codificação em forma de réplica. Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 67)

Na concepção de Bakhtin (2006), a compreensão do homem e das relações

que estabelece na vida com o trabalho, com o outro, com o conhecimento de um

modo geral, é construída por meio de signos criados e recriados na interação verbal.

Por esta razão, a enunciação passa a constituir um dos pontos centrais de sua teoria

da linguagem, na medida em que é considerada território conflituoso e dinâmico de

produção de sentidos a partir de relações dialógicas entre os signos e entre estes e

as condições da situação social concreta de interação verbal.

Assim, a enunciação é de natureza social, compreendida como “o produto da

interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um

interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social

ao qual pertence o locutor” (BAKHTIN, 2006, p. 114). Portanto, a enunciação é uma

resposta e não existe fora do contexto social.

Por realizar-se em um processo de relação social, todo signo é ideológico e

está intrinsecamente marcado por uma realidade social datada e determinada por

um grupo social. A interpretação de signo como “material semiótico-ideológico” nos

leva ao entendimento de que língua e ideologia estão imbricadas em todo ato de fala

e qualquer mudança de ideologia implica mudança na língua, uma vez que para

Bakhtin (2004),

51

a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não seja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN, 2004, p. 34)

Nesta perspectiva, o signo e a língua se transformam em uma relação de

reciprocidade ao se materializarem na interação verbal, em diálogo permanente

entre dois níveis: o da infraestrutura, que representa a realidade (por exemplo, o

aspecto econômico) e o da superestrutura, entendida como as manifestações

sociais, culturais e políticas, que circunscrevem uma determinada ideologia.

Faraco (2003, p. 46) confirma esse sentido de ideologia, assumido pelo

Círculo de Bakhtin:

A palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do “espírito” humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num vocábulo de sabor mais materialista). Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar uma certa terminologia marxista).

Assim sendo, os signos linguísticos são entes ideológicos, que não emergem

de atos isolados de fala individual e nem do sistema abstrato de regras gramaticais

da língua, mas surgem na interação verbal, constituídos por valores sociais, sempre

em tensão, em um processo dinâmico de (re)significação. Nessa visão, entendemos

que quando expressamos um ponto de vista em relação a um determinado assunto,

este reflete ideias e pensamentos em relação com a realidade concreta na qual nos

inserimos, porque segundo Bakhtin (2006)

através da palavra me defino em relação ao outro, isto é, em última análise, à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. (p. 116)

O sujeito bakhtiniano é então concebido como um ser social e dialógico

formado na e pela interação verbal e que só pode ser entendido pelos seus textos,

no sentido mais amplo do termo, ou seja, nos atos de fala, gestos, atitudes,

enunciados, discursos produzidos em uma situação social e histórica. Um sujeito

que só existe na relação com o outro e por isso se constitui em alteridade, como nos

explica Sobral (2005, p. 22):

52

A proposta é a de conceber um sujeito que sendo, um “eu para si”, condição de formação de identidade subjetiva, é também formação de identidade de um “eu para-o-outro”, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável, que lhe dá sentido.

E, ainda, um sujeito que existe a partir do diálogo com o outro, porque

No diálogo com o outro, eu não harmonizo as diferenças (que são essenciais à prática dialógica), não supero as frustrações que me são impostas pelos limites (efetivos) da comunicação, não elimino os riscos, porém aprendo a apreciar a polifonia, aprendo a ouvir a diversidade das vozes. Exercito-me numa linguagem que amplia meus horizontes para a compreensão do que está além do saber constituído. Educo-me no respeito à inesgotabilidade do real. Desenvolvo a capacidade de combinar a preservação da minha identidade com uma abertura menos tímida para a alteridade. (KONDER, 1996, p. 7)

Nesse sentido, o sujeito bakhtiniano é um ser inacabado, incompleto e

inconcluso a partir do valor atribuído à palavra e à interação com o outro. Segundo

Bakhtin (apud BRAIT, 2005), “a alteridade define o ser humano, pois o outro é

imprescindível para sua concepção: "é impossível pensar no homem fora das

relações que o ligam ao outro” (p. 28). A ideia de alteridade em Bakhtin é um dos

tópicos mais fundamentais e discutidos no campo da enunciação e tem como eixo

central a relação entre o eu e o outro, porque é o outro que constitui ideologicamente

o sujeito proporcionando-lhe o acabamento. Ou seja, enquanto vivo, somente o

outro pode dar a mim, como criação, este acabamento, a partir do que ele vê, sabe e

conhece a meu respeito e que eu mesma não posso por não ter esse domínio

(BAKHTIN apud FREITAS, 2007, p. 18).

Por considerar a formação e o desenvolvimento da bagagem sociocultural de

cada pessoa, numa perspectiva interdiscursiva, a noção de alteridade torna-se

fundamental na teoria bakhtiniana. Bakhtin (2010) relaciona o princípio da alteridade

à posição responsiva ativa do sujeito diante do texto, no empenho por compreendê-

lo: levando-o a concordar ou discordar, criticar, refutar, seja total ou parcialmente, na

busca por compreensão. Assim, ao reagir ao processo de audição (para além dos

sinais vocais) do texto, “o ouvinte torna-se falante” (BAKHTIN, 2010, p. 271). Por

isso, no plano da enunciação, o homem é um ser de resposta: “Todo falante é por si

um respondente em maior ou menor grau” (BAKHTIN, 2010, p. 272). Ele pressupõe

uma anterioridade aos enunciados, seus e alheios, em uma complexa relação

dialógica, fazendo de cada enunciado

53

um elo na cadeia da comunicação discursiva que não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 300)

No discurso literário, Bakhtin definiu duas modalidades para o gênero

romance: o monológico e o polifônico. À primeira, segundo Bezerra (2008, p. 191),

“estão associados os conceitos de monologismo, autoritarismo e acabamento; à

categoria de polifônico, os conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade,

dialogismo e polifonia”.

Influenciado pelo pensamento de Dostoievski, Bakhtin (1929) passa a

defender a noção de que, no discurso monológico, as ideias são assumidas como

verdadeiras ou falsas, submetendo-se como dogmas à perspectiva do autor. Neste

modelo não se escuta a voz do outro e não se considera o outro como outra

consciência viva e falante. Lembrando que o termo voz, para Bakhtin (2010), se

refere à consciência falante presente nos enunciados, entendida como visão de

mundo do falante e, portanto, carregada de juízo de valor e expressividade e não

deve ser confundida com os sinais audiovocais.

Amorim (2002) afirma que todo discurso dogmático é necessariamente

monológico, porque nesse discurso, apenas uma voz pode ser ouvida. Mas, ao

mesmo tempo adverte que o inverso não é verdadeiro, por não existir a possibilidade

de um discurso ser exclusivamente monológico, uma vez que em todo discurso há,

pelo menos, duas vozes: a voz do leitor e a voz do locutor.

Por outro lado, o aspecto composicional, ou seja, a forma como o texto é

escrito e composto, permite que mais vozes sejam ouvidas no texto, ou não. Nesse

caso, a autora considera tratar-se de um princípio tendencial: “um texto tende para o

monologismo mais do que um outro, mas ele nunca será inteiramente monológico,

em virtude da sua própria condição de possibilidade” (AMORIM, 2002, p. 11). Isso

significa que algumas vozes, na enunciação, falarão mais alto que outras, no sentido

de serem mais valorizadas ideologicamente, em detrimento do silêncio ou de uma

menor intensidade de outras.

Bezerra (2008) ressalta que as concepções bakhtinianas de monologismo,

dialogismo e polifonia foram construídas considerando-se os aspectos históricos,

sociais e ideológicos do discurso, pois Bakhtin (2006) aplicou ao romance

monológico o conceito marxista de reificação, que reduz o homem a objeto, ao

analisar a relação capitalista entre o produtor e a produção da mercadoria. O autor

54

observa que o mesmo sistema capitalista, que reduz as pessoas à condição de

coisas, também provoca a estratificação social e conflitos capazes de gerar vozes e

consciências, produzidas em um movimento de resistência à mencionada redução.

Ao discurso monológico está vinculada a noção de univocidade, que nos

remete ao conceito de discurso de autoridade, os quais não se modificam ao entrar

em contato com outras vozes, mas se pretendem absolutos, apenas veículo de

transmissão de um único sentido, não permitindo a interanimação com outras visões

de mundo. Segundo Bakhtin (1994), “o discurso autoritário não pode ser

representado, só é transmitido” (p. 344). Neste caso, a criação de significados dá

lugar à ideia de fidelidade ao significado a ser transmitido, não permitindo que a voz

do ouvinte se manifeste, seja desafiando, seja propondo uma discussão ou

criticando a voz que transmite e que pretende ser a única a ser ouvida. O discurso

científico, por exemplo, carrega, além das marcas da neutralidade, da objetividade e

do dogmatismo, as de autoridade, pois, segundo Bakhtin (2010), “as Ciências Exatas

constituem uma forma monológica do saber, já que ao pesquisador e seu intelecto

só se contrapõe a coisa muda” (p. 400).

A passagem da perspectiva monológica do discurso literário para a dialógica

se dá pela polifonia. Para Bezerra (2008), polifonia é a “multiplicidade de vozes e

consciências independentes e imiscíveis”, cujas vozes não são objeto do discurso do

autor, mas os próprios sujeitos desse discurso. Nesse sentido, o princípio fundante

em relação ao enunciador “é a posição do autor como grande regente do coro de

vozes que participam do processo dialógico” (p. 194). Contudo, esta não é uma

regência que aprisiona as vozes (re)criadas na enunciação dialógica, mas que

permite que elas se manifestem com autonomia e revelem no sujeito um outro, um

“eu para si, infinito e inacabável”, lugar de construção da sua subjetividade. Nesse

processo de alteridade, há de se considerar, também, o homem como um “eu para o

outro”, condição na qual tal subjetividade se dá responsavelmente em relação às

perspectivas sociais e individuais, em relação ao outro.

Assim, o absoluto dá lugar à multiplicidade de vozes no discurso literário que,

entendido como polifônico, não reconhece privilégios e hierarquia de pontos de vista

seja do autor ou das personagens. Estendendo a abordagem polifônica do discurso

literário ao discurso do cotidiano, como autoriza Bakhtin (2010), podemos perceber

este último como constituído de várias vozes e também marcado pela não

prevalência de uma sobre a outra.

55

No discurso polifônico, a manifestação das múltiplas vozes ecoa

simultaneamente e de um mesmo lugar, por meio de uma enunciação concreta. Isso

quer dizer que a fala humana é povoada pelas palavras de outras pessoas, que são

transmitidas em graus diversos de fidelidade e imparcialidade e determinando,

assim, um maior ou menor grau de dialogização. As características dialógicas da

linguagem revelam que, na verdade, as pessoas não são as únicas autoras das

palavras que proferem, porque ao falarem, o fazem sempre em relação ao que

outros já disseram, falam a respeito do que outros falam. Portanto, o sujeito modifica

o sentido a partir das vozes que intervêm em sua enunciação, o que afasta a

possibilidade de ser o sujeito o primeiro a produzir um dado sentido.

No pensamento bakhtiniano, os sentidos se constroem em um complexo

intercâmbio social que se materializa nas trocas linguísticas realizadas na

interlocução. Assim, para o autor, a natureza da linguagem está centrada na sua

condição dialógica. Ou seja, viver é essencialmente um ato dialógico que se põe

integralmente nos usos da palavra que, por sua vez, localiza-se no tecido social da

existência humana, na grande temporalidade. Esta ideia é fundamental para

compreender a linguagem em uma perspectiva centrada no inacabamento, uma vez

que Bakhtin (2010) considera o enunciado um elo de uma cadeia complexa e

ininterrupta, que, por isso mesmo, traz uma gama de sentidos já postos em

circulação no passado, ao mesmo tempo em que aponta para um auditório social

que ainda está por se constituir. Esse entendimento nos ajuda a compreender que

ao considerar a relação estreita com o contexto socio-histórico, a análise dos

enunciados não se fecha aos acontecimentos da época de sua produção, mas

também carrega as marcas de contextos históricos mais amplos.

Na perspectiva bakhtiniana, há uma diferenciação entre significação e

sentido. O autor refere-se à significação como "elementos da enunciação que são

reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos" (BAKHTIN apud FREITAS, 1995,

p. 13). São elementos abstratos, convencionados por um sistema e com tendências

universalizantes: é a palavra dicionarizada. Em seu pensamento, o sentido se

constrói no território da enunciação imbricado com as condições da situação

imediata e do contexto mais amplo de produção, portanto, está permanentemente

inacabado, uma vez que é algo que está sendo tecido entre a palavra do enunciador

e todas as vozes que passam a habitar o seu discurso. Nessa baliza teórica, a

entonação expressiva (o modo como se fala) e o acento apreciativo são

56

fundamentais para a percepção e compreensão dos sentidos construídos

interdiscursivamente.

A interação de múltiplos pontos de vista individuais e sociais que se

manifestam na voz do sujeito representa uma estratificação da linguagem. Quanto

mais intensa, mais diferenciada e altamente desenvolvida é a vida de uma

sociedade falante, maior é importância de se anexar à fala, as palavras de outra

pessoa. A tentativa de unificação da linguagem em um mesmo campo social é

marcada pela tensão de forças que estão em luta para unificá-la e, ao mesmo

tempo, estratificá-la. A primeira, Bakhtin (1994) nomeou de força centrípeta

enquanto a segunda, chamou de centrífuga. Essa luta é travada em todo enunciado

de um sujeito falante, locus onde tais forças se encontram. Nessa perspectiva, todo

discurso carrega a marca polifônica do espaço plural e do tempo em que vivem os

sujeitos. Assim, a profissão exercida pelo sujeito, seu nível social, formação

acadêmica, idade, valores e tudo mais a sua volta exercem influência sobre seu

discurso.

No centro da arquitetônica bakhtiniana está o enunciado, em sua forma oral

ou escrito, como “unidade real da comunicação discursiva”, que constitui as

enunciações concretas, o lugar imprescindível para a produção de discursos na voz

dos sujeitos envolvidos neste ato. É no enunciado que a língua entra em contato

com a realidade e nessa mediação a palavra carrega pontos de vista individuais,

acento avaliativo, uma intenção, uma significação, uma expressividade e

ideologia(s): “o falante é sempre, de uma forma ou de outra, o defensor de uma

determinada ideologia, e suas palavras são sempre difusores dessa ideologia”.

(BAKHTIN, 1994, p. 331)

Como já foi dito, há uma relação de reciprocidade na dinâmica que envolve a

situação social da enunciação e o próprio enunciado. Desta forma, cada campo

social pode ser delineado a partir do conteúdo temático e do estilo da linguagem de

onde provém o enunciado, e, sobretudo, da sua construção composicional. Ao

mesmo tempo, esses três elementos são igualmente determinados pelas

singularidades do campo da comunicação verbal, de onde emergem. Daí Bakhtin

(2010) ressaltar que, embora cada enunciado particular seja individual, cada campo

de utilização da língua elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os

quais ele designou de “gêneros discursivos” (p. 261). Quanto mais se desenvolve e

se complexifica o campo, maior é a variedade de tipos de enunciado.

57

Apesar de admitir a individualidade de um enunciado em particular, Bakhtin

não a atribui ao ineditismo do referido enunciado, mas sim, fundamentalmente, à

expressão valorativa que o falante lhe empresta. Para ele, “cada enunciado é pleno

de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela

identidade da esfera da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 297). É

impossível ao falante assumir uma posição sem relacioná-la com posições prévias

de outros falantes, pois é no diálogo e no confronto com o ponto de vista ou visão de

mundo do outro, que aquele define sua posição no discurso.

Por outro lado, a fala sempre é conformada por uma linguagem social no

processo de produção de um enunciado. Entendemos por linguagem social o que

Bakhtin (1988 apud GOULART, 2007, p.3), define como “pontos de vista específicos

sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas

objetais, semânticas e axiológicas.” Entretanto, é preciso distingui-la de gênero

discursivo:

Os gêneros do discurso, de riqueza e variedade infinitas, historicamente organizam os conhecimentos, estabilizando-se de determinadas maneiras. Estão relacionados às esferas sociais das atividades humanas, às intenções e aos propósitos dos locutores, constituindo-se como formas de ação social. Ao lado dessa estratificação da língua em gêneros se entrelaça, ora coincidindo, ora divergindo, com a estratificação profissional da língua (em amplo sentido) (grifo do autor), o que o autor define como linguagens sociais. (BAKHTIN apud GOULART, 2007, p. 3)

Bakhtin (2010) chama a atenção para as inúmeras e distintas possibilidades

de aparecimento de situações típicas da comunicação verbal que imprimem aos

gêneros de discurso extrema heterogeneidade, e, ao fazê-lo, classifica-os quanto à

sua natureza em gêneros discursivos primários, os discursos do dia-a-dia, e gêneros

discursivos secundários que, banhados de ideologias, emergem de um cenário

cultural mais complexo, mais desenvolvido e organizado, como por exemplo, o meio

artístico, o sociopolítico, o científico etc. Cabe observar que a heterogeneidade dos

gêneros não deve ser redundantemente funcional porque, se assim considerada,

estes seriam caracterizados como abstratos e vazios, contrapondo-se à ideia de

emergirem das condições específicas nas quais os discursos são produzidos. Os

gêneros primários são reelaborados durante o processo de formação dos

secundários e desvinculam-se da situação real imediata e dos enunciados alheios. A

natureza do enunciado e sua relação com os tipos de gêneros do discurso são de

importância fundamental para o campo da pesquisa linguística, por valorizarem o

58

caráter histórico, contextual, social, político e cultural, em uma abordagem relacional

da linguagem.

Os enunciados, desde a réplica do diálogo cotidiano até os diálogos mais

complexos, têm limites delineados com precisão, pela alternância dos sujeitos

discursivos, ou seja, começa quando termina o enunciado do outro e termina quando

o falante passa a palavra ao outro. As réplicas do diálogo designam um tipo de

alternância dos falantes interlocutores observada na simplicidade do diálogo real,

forma clássica de comunicação discursiva. Outra peculiaridade do enunciado é a sua

conclusibilidade específica, cujo critério mais importante é ocupar uma posição

responsiva em relação a ele. Aqui reside uma das diferenças fundamentais entre

oração e enunciado, pois a oração compreensível e acabada, a menos que se torne

um enunciado pleno, não demanda atitude responsiva e nem um autor.

Segundo Bakhtin (2010), três elementos determinam a inteireza do

enunciado: (1) exauribilidade do objeto e do sentido; (2) projeto ou vontade de

discurso do falante; (3) formas típicas composicionais e de gênero do acabamento.

O primeiro elemento refere-se à percepção do término de um enunciado pelo

sentido da enunciação, cuja plenitude se dá de forma diversa em diferentes campos

da vida, campos oficiais e até nos campos de criação. O segundo, a vontade

discursiva que nos permite imaginar o que o falante quer dizer, determinando tanto a

escolha do objeto quanto os seus limites e o sentido do enunciado como um todo.

A intenção do falante ao enunciar implica a opção por certo gênero do

discurso. Este, por sua vez, está intimamente relacionado à situacionalidade do

enunciado, ou seja, ao campo da comunicação discursiva do qual ele emerge e com

as suas especificidades; com o tema (semântico-objetal), com a composição

individual dos falantes etc. A intenção discursiva do falante é, assim, conformada por

certo gênero discursivo que molda e organiza todo discurso, permitindo que

antecipemos o todo e o gênero do discurso alheio, desde quando o outro profere

suas primeiras palavras ao enunciar.

Uma outra peculiaridade do enunciado é a relação do enunciado com o seu

autor e com os outros que participam da comunicação discursiva. Em um primeiro

momento, é o conteúdo semântico-objetal do enunciado que irá determinar as

peculiaridades de estilo e de composição do enunciado seguido da expressividade,

da emoção, do juízo de valor e da entrada da voz individual do outro em nossa

enunciação. Cabe ressaltar que o mesmo enunciado pode ser povoado por juízos de

59

valor antagônicos construídos pelos falantes. Tudo vai depender do quadro

axiológico conceitual e das escolhas individuais de cada sujeito do discurso. Para

além da materialidade do texto em seu aspecto formal, a forma de expressar o tom

usado para dizer algo, o valor atribuído ao conteúdo do objeto e do sentido e,

especialmente, a quem se dirige a fala, são fatores que implicam na análise dos

processos de produção discursiva, que por sua vez são atravessados por discursos

de poder, políticos, religiosos, econômicos de outros. Por isso, não há enunciado

neutro.

A relação com os outros é expressa pela relação com outros enunciados, ou

seja, trazer a voz de quem já falou sobre o objeto e a de quem se dirige o enunciado

é essencialmente importante no processo de construção do enunciado. Sua

estruturação está intrinsecamente relacionada com o seu endereçamento, o que

quer dizer que o destinatário participa como coautor do enunciado.

Amorim (2002), alinhada com a concepção bakhtiniana de direcionalidade do

enunciado, propõe que se ouçam as vozes do texto: a voz do destinatário real,

“aquele que efetivamente lê o texto” e “interlocutor direto do diálogo cotidiano”; a voz

do destinatário suposto, a qual “faz ouvir a voz do contexto de origem do texto”,

podendo ser um grupo de um determinado campo da atividade humana com o qual

se dialoga, para quem se supõe estar falando. Já o sobredestinatário, totalmente

indefinido e não concretizado, “libera o texto das limitações de seu contexto”, e desta

forma, não cria vínculos temporais e de espaço com o texto, assumindo uma

dimensão universalizante.

Segundo a autora, ainda há outras vozes a serem ouvidas no discurso: a voz

do locutor, que é aquela que diz “eu”, “nós” ou “se” (da terceira pessoa), no interior

de um enunciado e a voz do autor, que pode ser ouvida ali, no ponto crucial de

encontro entre a forma e o conteúdo do texto que concerne um lugar enunciativo e,

como tal, é portadora de um olhar, de um ponto de vista que trabalha o enunciado

do início ao fim. Essa abordagem polifônica nas Ciências Humanas contribui para

mostrar a densidade e a instabilidade do objeto (discurso), dissolvendo a impressão

de transparência dos discursos (AMORIM, 2002).

Entre essas vozes, torna-se fundamental, na pesquisa acadêmica, ouvir a voz

do objeto, porque tudo que irá se dizer sobre ele será confrontado dialogicamente

com o que já foi falado a seu respeito, para a construção de novos sentidos. Neste

60

caso, o “objeto é um sujeito produtor de discurso”, com o qual o pesquisador irá

dialogar, não podendo, portanto, ser calado (AMORIM, 2002, p. 10).

Ao abordar o papel do destinatário, em uma concepção polifônica, a autora

considera que, de acordo com a época e o meio social, existem enunciados de

autoridade carregados de entonação expressiva e valorativa, que ecoam no discurso

em diferentes graus de intensidade. Contudo, quando se faz a apropriação dos

discursos alheios, esse tom valorativo também é reelaborado e reacentuado. O

sentido atribuído à apropriação, de acordo com a arquitetônica bakhtiniana, é o de

“trazer algo para o interior de si mesmo e fazê-lo próprio”. Apropriar-se do discurso

é, em parte, tornar suas as palavras do outro, acrescentando-lhes intenção

semântica e expressividade própria, dando voz a sua manifestação discursiva e

promovendo sua reconstrução (WERTSCH, 1999).

As formas para a apropriação dos discursos assumem uma importância

profunda na formação ideológica do indivíduo, na qual o discurso do outro não se

limita apenas à informação, direções, regras, modelos etc. – mas ao invés disso,

“luta para determinar os conceitos mais básicos de nossas inter-relações ideológicas

com o mundo, a própria base de nosso comportamento; ele se estabelece aqui como

um discurso autoritário e como um discurso internamente persuasivo” (BAKHTIN

1994, p. 34).

Já o discurso internamente persuasivo se opõe à concepção de discurso de

autoridade na medida em que, no primeiro, o discurso é tecido a partir das palavras

do outro após terem sido reconhecidas e assimiladas, e os limites entre esses

discursos são praticamente imperceptíveis. Por isso Bakhtin (1994) diz que “a

palavra internamente persuasiva é metade nossa e metade de outro” (p. 341). A

estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta.

Em cada um dos novos contextos que dialogam com ele, o discurso consegue

revelar uma nova forma de significar, porque ela entra em inter-relação com outros

discursos, em outros contextos. Entende-se que as palavras internamente

persuasivas voam de um contexto a outro, recebendo novas e diferentes

significações na voz do falante e da situação imediata social, em um movimento

contínuo e infinito.

Bakhtin (1994) adverte que se deve sempre ter em mente “que a fala do

outro, uma vez que esteja dentro de um contexto, está – não importa o quão

precisamente for transmitida – sempre sujeita a certas mudanças semânticas” (p.

61

340). Apesar do conceito de recontextualização não ter sido um termo cunhado por

Bakhtin, o sentido dado pelo autor ao princípio de apropriação sugere uma

aproximação, se levarmos em conta que para ele o contexto que envolve as

palavras do outro é responsável por seus antecedentes dialógicos, cuja influência

pode ser muito grande. Pode-se, inclusive, modificar até uma citação, dependendo

do grau de polemização que o autor imprima a esta e, por este motivo, não se pode

tratar a fala do outro isolada do seu contexto dialógico. Nesse sentido, para avaliar e

entender o real significado das palavras do outro na vida diária, é fundamental saber

quem está falando e sob quais circunstâncias concretas.

A filosofia da linguagem de Bakhtin se apresenta como um poderoso aporte

teórico para a interpretação e para a análise do discurso docente proposto por este

trabalho devido à grande abrangência de seus conceitos, ao diálogo que estabelece

com a perspectiva sócio-histórica e a seu caráter dialógico e ideológico, oferecendo

assim a possibilidade de aprofundamento da compreensão dos sentidos que

buscamos apreender na voz dos sujeitos investigados.

62

5 METODOLOGIA

O destaque dado à linguagem nas interações sociais, que embasa o

pensamento de Bakhtin, mostra-se extremamente relevante para este estudo, na

medida em que ele será concebido enquanto uma pesquisa qualitativa de cunho

socio-histórico. Esta perspectiva recusa o pensamento positivista e racionalista para

debater e compreender as questões educacionais e, em particular, da educação

científica. A análise dessas questões, feita através das lentes das Ciências

Humanas, afasta-se do saber monológico e volta o seu olhar para o sujeito que se

constitui na relação com o outro. Consideramos essa a abordagem

fundamentalmente importante para a pesquisa em educação em ciências, uma vez

que a partir dela, o sujeito não é “percebido e conhecido como coisa porque, como

sujeito e permanecendo sujeito não pode tornar-se mudo; consequentemente o

conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico” (BAKHTIN, 2003, p. 400).

Com base nos pressupostos bakhtinianos, apresentamos o enquadre teórico-

metodológico que fundamenta a pesquisa. Partimos da análise de enunciações, para

apreender os sentidos de qualidade da educação científica que se produzem na

relação com o contexto histórico e sociocultural. Optamos assim, pela pesquisa

qualitativa, realizada por meio da realização de entrevistas com professores sujeitos

do estudo.

De acordo com Freitas (2007), a perspectiva socio-histórica representa um

caminho significativo para a produção de conhecimento no campo das ciências

humanas. Ao compreender que o psiquismo é constituído no social, num processo

interativo possibilitado pela linguagem, abre novas perspectivas para o

desenvolvimento de alternativas metodológicas que superem as dicotomias

externo/interno, social/individual (FREITAS, 2007, p. 26).

A pesquisa qualitativa de orientação socio-histórica é constituída por

características próprias. Bogdan e Biklen (apud FREITAS, 2007) apontam os

aspectos que a caracterizam:

a) A fonte de dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge. O que

se busca é compreender os sujeitos envolvidos na pesquisa para, através

deles, compreender também o seu contexto.

63

b) As questões formuladas se orientam para a compreensão dos fenômenos em

toda a sua complexidade e em seu acontecer histórico.

c) O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase na compreensão,

tomando por base a descrição que deve ser complementada à luz das

questões de estudo na estreita relação com o evento investigado numa

integração do individual com o social.

d) O pesquisador é parte integrante da investigação, pois, a sua compreensão

se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa (p. 27).

Assim, a teoria enunciativa de Bakhtin se apresenta como um enquadre

teórico-metodológico fértil para a realização de estudos que consideram a pesquisa

como uma relação entre sujeitos, em uma perspectiva dialógica. Essa concepção

ressalta "o valor da compreensão, construída a partir dos textos signos criados pelo

homem, assinalando o seu caráter interpretativo dos sentidos construídos" na

interlocução (FREITAS, 2007, p. 28).

Nesse sentido, é possível considerar a entrevista um instrumento

metodológico que, no âmbito da pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico, pode

ser compreendida como produtora linguagem, por ser um acontecimento entre duas

ou mais pessoas que buscam mútua compreensão em situação de interação verbal.

Em consequência, a partir da perspectiva dialógica, a entrevista estabelece relações

entre sentidos a partir do horizonte social que orienta a compreensão dos sujeitos

envolvidos.

5.1 OBJETIVO E QUESTÕES DE ESTUDO

Temos como objetivo investigar os sentidos de qualidade do Ensino de

Ciências, na perspectiva de docentes da Educação Profissional Técnica de Nível

Médio (EPTM) no Rio de Janeiro e suas relações com outros discursos como, por

exemplo, os discursos oficial e acadêmico. Para orientar o desenvolvimento de

pesquisa, serão discutidas as seguintes questões, que se originam na problemática

da EPTM exposta nos capítulos dois e três:

1) Que perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por docentes

da EPTM em relação às finalidades do ensino de ciências?

64

2) Que perspectivas de qualidade são construídas discursivamente por docentes

da EPTM em relação ao conhecimento científico ensinado?

3) Que aproximações e afastamentos são identificados entre as perspectivas

dos docentes sobre formação integral e os discursos oficiais5?

5.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta seção apresenta o contexto de origem da pesquisa, o contexto no qual

se realizou a pesquisa, a elaboração do instrumento metodológico, os sujeitos da

pesquisa e os procedimentos de análise utilizados.

5.2.1 A origem da pesquisa

Esta investigação emerge de um projeto de pesquisa em rede que investiga

os sentidos de qualidade da educação científica na voz dos docentes de nível

médio, desenvolvido por pesquisadores de quatro Universidades Federais (UFF,

UFRJ, UFMG e UFRGS). Trata-se de um projeto vinculado ao edital Observatório da

Educação da CAPES, que tem por objetivo avançar na compreensão da qualidade

da Educação em Ciências, na perspectiva dos docentes, considerando-se a

diversidade regional e cultural de contextos educacionais e tomando como

referência a avaliação oficial, medida pelo IDEB e ENEM6.

O subprojeto desenvolvido pelo Núcleo UFRJ, coordenado pela Professora

Flavia Rezende, iniciou-se pela realização de um grupo focal com nove professores

das Ciências da Natureza e Matemática do ensino médio de escolas públicas e

privadas, e propunha a discussão sobre a “qualidade da educação em ciências no

nível médio de ensino”. Essa etapa foi projetada com o objetivo de identificar, no

discurso dos professores, temas e tensões que evidenciassem os sentidos de

qualidade da educação científica, que iriam ser aprofundados na segunda etapa da

pesquisa, quando se previa a realização de entrevistas com outros professores.

5 Os discursos oficiais referenciados no texto referem-se ao Documento base EPTM (2007) e à Lei Nº

11.892/2008 que criou os institutos federais. 6 Esta tomada de referência foi uma exigência do edital da CAPES.

65

A dinâmica ocorreu em uma sala de uma universidade do Rio de Janeiro, com

a participação de um relator, uma pesquisadora responsável pela mediação do

grupo e de dois pesquisadores responsáveis pelo registro de toda a atividade do

grupo focal. Foram utilizados recursos para a gravação em áudio e vídeo, e foi

realizada em, aproximadamente, duas horas.

Realizadas as transcrições, procedemos a uma análise detalhada dos

enunciados dos professores (Rezende et al., 2011), identificando os sentidos de

qualidade que, embora não explicitada pelo uso da palavra qualidade puderam ser

lidos a partir do que os professores consideraram como “bom” (qualidade) ou “ruim”

(não qualidade) para o ensino das ciências. Entendemos que a não qualidade

trazida pelos professores pressupõe aquilo que é considerado qualidade por uma

relação de oposição.

A primeira etapa da análise foi identificar os temas que compunham o

conteúdo semântico referencial dos enunciados dos professores. Após essa etapa,

foi feita a análise da relação do falante com seu enunciado, a identificação das

vozes dos professores, considerando-as como perspectivas referenciais

(WERTSCH, 1993) sobre aquele(s) tema(s). Para identificá-las, inferimos qual era o

ponto de vista do falante, como e por que o tema foi relacionado à qualidade.

O recorte para o presente estudo pretende aprofundar os resultados do grupo

focal no âmbito da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTM),

estruturada curricularmente com conteúdos da formação geral ou propedêutica e da

formação técnica (ou específica).

A escolha por este contexto, além de estar atrelada ao meu percurso

profissional, também teve como motivação o fato de alguns professores participantes

do grupo focal terem construído suas perspectivas relacionando as finalidades do

ensino de ciências à formação para o trabalho. Em seus discursos, foi colocada em

tensão a aplicação dos conteúdos ensinados, durante a execução de funções em

situação de trabalho, a Lei Nº 5.692/1971 e a problemática de todos os alunos

estarem aprendendo os mesmos conteúdos, sem terem habilidades ou interesse

pelas ciências naturais e matemática.

A participação nas análises do grupo focal inaugurou a minha inserção na

teoria enunciativa de Bakhtin. No processo de análise das enunciações dos

professores, tentamos perceber o modo como eles veem os temas abordados nas

perguntas, a partir de seus sistemas axiológicos. Mas, como nos ensina Bakhtin

66

(2010), essa transferência de lugares, que possibilita olhar o mundo com olhos da

cultura do outro e que é indispensável para a sua compreensão, não deve se

encerrar apenas nesse momento, o que para ele seria uma “simples dublagem e não

traria consigo nada de novo e enriquecedor” (p. 365). Segundo o autor, depois, é

preciso “de volta ao meu lugar, contemplar seu horizonte com tudo o que se

descobre do lugar que ocupo fora dele” (BAKHTIN apud FREITAS, 2007, p. 35).

Desse lugar exotópico, buscaremos evidenciar os sentidos construídos nas

enunciações dos sujeitos do presente estudo. Especialmente em relação ao

contexto da escola A, esse deslocamento configura-se como uma tarefa nada fácil

de realizar. A inserção no campo, a familiaridade com os processos formativos

desse contexto e as relações com alguns dos professores exigiram um exercício

permanente de aproximação e afastamento, para uma compreensão mais profunda

das enunciações.

5.2.2 Elaboração do roteiro de entrevistas

Visando o aprofundamento dos resultados do grupo focal, tomamos os temas

mobilizados pelos professores para compor o roteiro de entrevistas a ser aplicado no

presente estudo. A análise minuciosa das enunciações dos participantes do grupo

focal nos mostrou que os sentidos de qualidade foram construídos, de um modo

geral, referenciando o currículo, o espaço físico escolar, o professor, o interesse e o

desempenho dos alunos, as legislações educacionais e questões políticas e sociais

mais amplas. Em relação às questões voltadas para o currículo, foram

problematizadas as finalidades do ensino de ciências, conteúdos, metodologias de

ensino e a avaliação educacional. No tocante ao espaço físico escolar, discutiram-se

basicamente sobre infraestrutura, laboratórios e os ambientes de aprendizagem. No

que diz respeito ao professor, o enfoque recaiu sobre o seu papel, visão de ensino,

comprometimento, motivação, formação e relatos da sua prática. Os aspectos

sociais e políticos mais amplos da educação incluíram as questões ligadas à família,

bolsa família, políticas públicas e violência. E, ao focalizarem os alunos, os

professores falaram da participação deles no processo de ensino e de

aprendizagem.

67

A construção do roteiro de entrevistas tomou por base os temas mais

diretamente relacionados ao contexto da educação profissional técnica de nível

médio (EPTM). Neste sentido, destacamos a formação para o trabalho enquanto

finalidade da educação cientifica na medida em que este tema foi problematizado

tanto pelo docente que atua na formação profissional como também pelos que

atuam no ensino médio não profissionalizante. Assim, as questões de 1 a 5 do

roteiro de entrevistas (APÊNDICE I) foram redigidas a partir da tensão existente

entre as finalidades do ensino de ciências voltadas para a preparação para o

vestibular, para a inserção no mercado de trabalho e para outros objetivos que

envolvem aspectos curriculares (conteúdos, metodologias, avaliação). A questão 6

emergiu da discussão sobre infraestrutura, quando os professores apontaram como

falta de qualidade a ausência de laboratórios em suas escolas. Tomamos o tema do

laboratório já que este espaço é muito importante no contexto da EPTM, mas a

pergunta não se limitou à infraestrutura. Questionamos sobre o seu papel no ensino

buscando apreender os sentidos construídos nos discursos docentes para o

conhecimento científico. A lógica do conhecimento científico também está na origem

das questões 8 e 11. A qualidade política apreendida na tensão entre a formação

geral e a formação técnica evidenciada nas enunciações dos participantes do grupo

focal deu origem à questão 7 e 9. Por fim, a questão 10 originou-se da discussão

voltada para os alunos, quando os professores apresentaram como justificativa para

a falta de qualidade do ensino, a defasagem de conteúdos gerais com que os alunos

chegam ao ensino médio e a falta de interesse nas aulas.

Além das perguntas que orientaram a entrevista, decidimos, também, realizar

uma atividade7 que incluiu o preenchimento de uma ficha na qual os professores

deveriam enumerar, sucintamente, no máximo cinco perspectivas de qualidade para

a educação científica, em ordem decrescente de importância. Essa atividade foi

aplicada aos três primeiros entrevistados (André, Taís e Cleo). Com o

amadurecimento da pesquisa, incorporamos à entrevista, a pergunta direta sobre a

qualidade, que acabou sendo feita apenas aos professores que ainda não haviam

sido entrevistados (Toni, Vítor e Murilo). A intenção em realizar a pergunta direta foi

7 Este procedimento não se estabeleceu a partir de uma técnica específica, apenas tivemos a

intenção de ampliar o leque de perspectivas e tentar conhecer a ordem de importância dos quesitos de qualidade enunciados pelos professores.

68

a de ampliar o leque de perspectivas e nuances que tinham sido abordadas na

atividade solicitada aos três primeiros.

5.2.3 Os sujeitos da pesquisa

A partir do roteiro de entrevista descrito anteriormente, foram entrevistados

seis professores que atuam em duas escolas de educação profissional do Rio de

Janeiro (escola A e B)8, sendo quatro de química e dois de biologia.

A realização de uma pesquisa é, fundamentalmente, delineada por escolhas e

critérios que viabilizem a sua realização. Neste processo, também estão envolvidos

nossos interesses, valores, ideologias, que conduzem o endereçamento do texto de

pesquisa. Entendemos que tais escolhas precisam ser realizadas de um modo que

favoreça alcançar o objetivo da pesquisa e elucidar as questões que pretendemos

discutir.

Nesse sentido, para a seleção dos professores a serem entrevistados,

partimos da relação entre disciplinas científicas e o seu peso nos cursos oferecidos

pelas escolas que serviriam de contexto para pesquisa, ou seja, aquelas cuja

inserção curricular se caracteriza por maior grau de aprofundamento, por se

constituírem como específicas para determinada formação técnica. Assim, entre os

cursos oferecidos pela Escola A, optamos por entrevistar professores de química

que atuam no Curso Técnico em Química e, na Escola B, professores de biologia

que atuam no Curso Técnico em Análises Clínicas e Saúde. Por serem as disciplinas

estruturantes de cada curso, deverão ocupar lugar privilegiado na discussão sobre a

qualidade do ensino de ciências e na sua relação com a formação profissional.

Com o mesmo intuito, procuramos diversificar a escolha por professores

quanto à série/ano ou período escolar em que lecionam, visando a incluir, na

pesquisa, professores que atuam com as disciplinas que compõem a parte básica do

currículo do curso técnico, comumente denominada formação geral, e os que atuam

8 As escolas serão descritas mais adiante. Inicialmente, à época do exame de qualificação, a

pesquisa iria ser realizada na escola A, campus I, no qual a pesquisadora atua como gestora. Em função de critérios descritos neste capítulo, decidiu-se por incluir o campus II da escola A. A inclusão da Escola B ocorreu em decorrência da sugestão dada por um dos membros da banca, por ocasião da leitura do projeto como leitor externo ao programa de pós-graduação do NUTES/UFRJ, com o intuito de enriquecer as discussões sobre os princípios teóricos que fundamentam os estudos acerca das relações entre trabalho e educação.

69

na formação específica, como é chamada a parte do currículo com ênfase na

formação profissional. O objetivo foi buscar diversidade entre as perspectivas de

qualidade da educação científica dos professores, supondo sua relação com o

contexto de atuação curricular (Anexos 1 e 2).

Outro critério considerado foi o tempo de atuação dos professores nos cursos

técnicos. Buscamos variar entre aqueles que atuam na formação técnica há cerca de

vinte anos ou mais, e aqueles com tempo inferior a quinze anos. A intenção foi a de

incluir professores que viveram grande parte das reformas da educação profissional

brasileira, inclusive o momento histórico da atual expansão da Rede Federal de

Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEP), assim como aqueles de

ingresso mais recente. A partir dessas considerações, incluímos, como contexto

empírico para a pesquisa, a escola A, Campus II.

O acesso aos professores e às escolas pesquisadas teve início com um

contato por e-mail com os diretores gerais solicitando a permissão para a realização

da pesquisa no respectivo campus. Posteriormente, entreguei-lhes pessoalmente, os

documentos impressos referentes à realização das entrevistas, quais sejam o

resumo do projeto do Observatório da Educação e o parecer do comitê de ética.

Tendo sido autorizada, um segundo e-mail foi encaminhado à direção solicitando a

relação de nomes de professores que reunissem os critérios definidos na seção

5.2.3.

Na escola A o diretor geral ofereceu total liberdade para consultar a Direção

de Ensino e a Coordenação de Turno dos campi selecionados sobre a grade

curricular e o quadro de horários das aulas para que eu fizesse a escolha dos

professores a serem entrevistados. Como trabalho na escola A, campus I, já

conhecia o atual diretor. Esse horizonte espacial comum pode ter interferido na

forma como fui acolhida por ele para a realização da pesquisa, oferecendo uma

maior autonomia para a escolha dos professores. De posse das informações

necessárias para a seleção de professores, procurei pelos professores que

estivessem na escola para facilitar o convite pessoal. No campus I foram convidados

cinco professores, dos quais, apenas dois aceitaram participar da pesquisa. No

campus II, seis professores foram convidados por e-mail. Destes, apenas dois

aceitaram o convite. As informações sobre o tempo de atuação dos professores na

escola A em ambos os campi foram obtidas consultando a direção e a coordenação

de ensino.

70

Na escola B, diferentemente da escola A, ao enviar o mesmo e-mail

solicitando ao diretor geral a autorização para a realização da pesquisa, recebi um e-

mail resposta indicando os nomes de alguns professores que se encaixavam nos

critérios pré-estabelecidos para a pesquisa, conforme já exposto neste texto. Dos

três professores indicados pela direção e pela coordenação de ensino, dois

aceitaram participar da entrevista. As informações que constituem o contexto

extraverbal foram obtidas através das informações disponibilizadas no mesmo e-mail

pelo diretor geral e pela coordenação de ensino, acompanhando a indicação dos

nomes dos docentes.

As entrevistas foram realizadas individualmente. Dos seis professores

entrevistados, quatro ministram aulas de química no Curso Técnico em Química e

atuam na Escola A, Campus I (André e Taís) e Campus II (Toni e Vítor) e dois

ensinam biologia no Curso em Análises Clínicas e Saúde na escola B (Cleo e

Murilo). Os critérios para a escolha dos professores a serem entrevistados na escola

B foram os mesmos da escola A. Passamos a apresentar os dados profissionais dos

seis professores, cujos nomes são fictícios, a saber:

a) Professor André

O professor André possui graduação em Engenharia Química, licenciou-se

em Química em 1989, cursou o Mestrado e concluiu o Doutorado em Educação

2009. Ensina Química Geral e Inorgânica, há sete anos nos períodos iniciais,

usualmente designado por formação geral, no Curso Técnico em Química

(integrado), no campus I, escola A.

b) Professora Taís

A professora Taís é Bacharel e licenciada em Química. Cursou

Especialização em Didática do Ensino Superior, obtendo o título em 2009. No que se

refere ao tempo de docência, conta com trinta e dois anos de magistério, dos quais

vinte e um foram dedicados à educação profissional, na escola A, campus I. Hoje,

ensina Química Orgânica no terceiro período, disciplina da formação específica do

Curso Técnico em Química (integrado). Durante onze anos exerceu suas atividades

no ensino médio propedêutico na rede privada de ensino, inclusive na modalidade

ensino à distância.

71

As informações acadêmicas e profissionais referentes aos professores André

e Taís foram resumidas no Quadro 1 apresentado a seguir.

Quadro 1: Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus I

PROFESSOR(A) DISCIPLINAS

MINISTRADAS INSERÇÃO

CURRICULAR FORMAÇÃO ACADÊMICA

TEMPO DE ATUAÇÃO

ANDRÉ Química Geral e Inorgânica

Séries iniciais

Engenharia Química; Licenciatura em

Química; Mestrado e Doutorado em Educação

7 anos

TAÍS Química Orgânica

Séries finais

Bacharelado e Licenciatura em

Química; Especialização em Didática do Ensino

Superior.

21 anos

c) Professor Toni

O professor Toni cursou a graduação em Química, Mestrado em Química e

Doutorado em Educação, obtendo o último título em 2011. Ensina Química Geral,

Físico-Química e Química Inorgânica há seis anos, para o primeiro período, na parte

denominada formação geral do Curso Técnico em Química, integrado, no campus II.

O Prof. Toni já atuou no campus III da escola A, no mesmo período escolar,

ensinando as mesmas disciplinas. Além da escola A, já trabalhou durante quatro

anos com o nível médio em escola privada e na rede estadual no Rio de Janeiro.

d) Professor Vítor

O Prof. Vítor tem formação em Engenharia Química, é Mestre em Gestão

Ambiental e Doutorando em Engenharia Oceânica. É importante para esse estudo

ressaltar que o Prof. Vítor formou-se em Técnico em Química pela escola A, campus

I, na modalidade integrada, portanto é ex-aluno de um dos campi pesquisados.

Acumula sete anos de trabalho na escola A, porém atuando em diferentes campi. Foi

professor substituto por dois anos, no período de 1998 a 2000, no campus III. Após

intervalo de dois anos, retornou, na mesma condição, até o ano de 2004 ao campus

III e, finalmente, atua como professor efetivo, a partir de 2009, no campus II,

72

ministrando aulas de Química Aplicada e Análise de Risco. Trabalhou por um ano na

rede privada com o ensino médio, totalizando oito anos de magistério.

As informações acadêmicas e profissionais referentes aos professores Toni e

Vítor foram resumidas no Quadro 2 apresentado abaixo.

Quadro 2: Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola A – Campus II

PROFESSOR(A) DISCIPLINAS

MINISTRADAS INSERÇÃO

CURRICULAR FORMAÇÃO ACADÊMICA

TEMPO DE ATUAÇÃO

TONI

Química Geral; Físico- Química;

Química Inorgânica

Séries iniciais

Licenciatura em Química; Mestrado em Química; Doutorado em

Educação.

6 anos

VÍTOR Química Aplicada

Séries finais

Técnico em Química; Engenharia Química; Mestrado em Gestão

ambiental; Doutorando em Engenharia

Oceânica.

3 anos

e) Professora Cleo

A professora Cleo cursou Licenciatura em Ciências Biológicas, especializou-

se em Educação Profissional e Saúde e cursou o Mestrado em Educação

Profissional e Saúde na escola B, onde atua como docente. Trabalha como docente

há quinze anos, no ensino médio, dos quais doze foram dedicados à rede estadual

de ensino e apenas três à educação profissional técnica na escola B, onde ministra

aulas de Biologia na primeira série do Curso Técnico em Análises Clínicas. Portanto,

sua disciplina se situa na parte do currículo que corresponde à formação geral.

f) Professor Murilo

O professor Murilo cursou o Curso Técnico em Biotecnologia na escola A, na

modalidade integrada, e o Curso Técnico em Biologia Parasitária em outra

instituição, no nível médio de ensino. Licenciou-se em Biologia e é Mestre em

Biologia Parasitária. É docente na escola B há quatro anos, ministrando aulas de

biologia e Protozoologia na parte de formação geral e específica do currículo,

respectivamente. Atualmente é Coordenador da disciplina denominada Iniciação à

Formação Politécnica. Ainda na escola B, ministrou aulas de Metodologia de

73

Pesquisa para os alunos do Curso Técnico em Saúde. Atuou como docente no nível

médio de ensino durante sete anos, na rede privada, ministrando aulas de Biologia,

somando ao todo onze anos de magistério.

As informações acadêmicas e profissionais referentes aos professores Cleo e

Murilo foram resumidas no Quadro 3 apresentado abaixo.

Quadro 3: Informações acadêmicas e profissionais dos docentes da Escola B

PROFESSOR(A) DISCIPLINAS

MINISTRADAS INSERÇÃO

CURRICULAR FORMAÇÃO ACADÊMICA

TEMPO DE

ATUAÇÃO

CLEO Biologia Séries iniciais

Licenciatura em Ciências Biológicas; Especialização em Educação Profissional

e Saúde; Mestrado em Educação Profissional e

Saúde

3 anos

MURILO

Biologia, Protozoologia;,

Iniciação à Formação Politécnica

Séries finais

Técnico em Biotecnologia; Técnico em Biologia

Parasitária; Licenciatura em Biologia; Mestrado em

Biologia Parasitária

4 anos

5.2.4 O contexto da pesquisa

A pesquisa foi realizada entre maio de 2011 e junho de 2012, em duas

escolas de educação profissional técnica de nível médio do Rio de Janeiro.

A contextualização apresentada a seguir não tem a pretensão de explorar

totalmente o percurso histórico dessas escolas, mas apenas situar, com uma breve

exposição, as características de criação e concepções atuais dos contextos nos

quais foram realizadas as entrevistas.

5.2.4.1 Escola A

A escola A foi criada, segundo Fontan (2011), como a primeira e única da

Rede Federal de Ensino a oferecer apenas um curso de Química. O autor

estabelece, como uma das razões para a sua criação, as prioridades do governo

Vargas para a formação de mão de obra especializada para a Indústria Química,

74

dada a enorme relevância deste ramo industrial para a estratégia de

desenvolvimento econômico do Brasil.

O autor infere, ainda, que o Ministro da Educação da época tinha a percepção

de que essa escola seria o “berçário” de futuras novas “habilitações técnicas” que

tivessem por base a ciência Química. Suas especulações se confirmaram, pois, na

sequência histórica, passou a oferecer os cursos de Alimentos, Biotecnologia,

Farmácia, e Saneamento.

Por mais de uma vez teve suas características institucionais ampliadas e

diferentes denominações. Assim, já se chamou Escola Técnica Federal (ETF) e

Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET). Com a passagem para CEFET,

em 1978, passou a oferecer à sociedade, além de uma grande variedade de cursos

técnicos de nível médio, a graduação, a pós-graduação lato sensu e o mestrado

profissional, reafirmando o vínculo com o mundo da produção.

Por ocasião da transformação da ETF em CEFET, iniciou-se um movimento

de inclusão nos debates, entre as instituições federais de formação profissional,

sobre as necessidades e aspirações do território em que estavam inseridas e o

delineamento de princípios que pudessem nortear as iniciativas comuns às unidades

que constituíam a rede federal de educação profissional e tecnológica. Até então, se

acentuava, em relação à educação profissional e tecnológica, uma concepção de

caráter funcionalista, estreita e restrita apenas a atender aos objetivos da

acumulação capitalista, no que diz respeito ao seu interesse por mão de obra

qualificada.

Em 2008, a Lei Nº 11.892/2008 instituiu os Institutos Federais e a escola A

passou a compor a estrutura multicampi dos Institutos Federais de Educação

Ciência e Tecnologia (IF). Os campi I e II são dois, entre dez no Estado do Rio de

Janeiro pertencentes à escola A, vinculados à Secretaria de Educação Profissional e

Tecnológica (SETEC) do MEC. Atende a uma clientela constituída de estudantes

provenientes de diferentes classes sociais, como tem sido constatado pelas

informações coletadas pela Secretaria da escola, na fase de matrícula.

Como princípio, em sua proposta político-pedagógica, a escola A, na nova

institucionalidade, oferece educação básica, principalmente em cursos de ensino

médio integrados à EPTM, cursos superiores de tecnologia, licenciaturas e

programas de pós-graduação lato e stricto sensu. Propõe-se a agregar formação

acadêmica à preparação para o trabalho (sem deixar de firmar o seu sentido

75

ontológico e uma estrutura curricular de formação profissional e tecnológica

contextualizada, constituída de conhecimentos, princípios e valores que

potencializem a ação humana em busca de uma vida mais digna (PROJETO

POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2009).

A organização curricular da escola A (Anexo 1) acentua a verticalização do

ensino, ou seja, a oferta de diferentes níveis e modalidades da educação profissional

e tecnológica. Com essa proposta, busca superar o modelo disciplinar, apresentando

os conteúdos de forma integrada e verticalizada. O objetivo é estabelecer o diálogo

entre os conhecimentos científicos, tecnológicos, sociais e humanísticos e os

conhecimentos relacionados ao trabalho, rompendo com o conceito de escola dual e

fragmentada. Essa nova concepção curricular pretende quebrar da hierarquização

dos saberes e possibilitar a construção de uma nova identidade para essa etapa da

educação básica (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2009).

5.2.4.2 Escola B

A escola B originou-se da Secretaria Técnica da Rede de Escolas Técnicas

do Sistema Único de Saúde (RET-SUS). Foi criada em 1985, com o objetivo de

melhorar a educação profissional nessa área e promover a qualificação técnica de

trabalhadores já inseridos no sistema de saúde, a partir de um modelo de educação

profissional descentralizado e em relação estreita com os serviços de saúde

(RAMOS, 2010). Segundo a autora, paralelamente à proposta de implementação de

escolas técnicas no modelo “escola função” - aquela destinada à formação de

trabalhadores inseridos nos serviços de saúde, de acordo com suas necessidades,

com ação descentralizadora -, tomava corpo a ideia de instituir uma escola do tipo

politécnica, inspirada na experiência cubana dos politécnicos de saúde. Tal

iniciativa, para a autora, não se baseou em uma concepção teórica de politecnia,

que foi sendo apropriada já, ao longo do funcionamento da escola B.

A escola B, constitui-se como uma Unidade Técnico-Científica regulamentada

pelo Ministério da Saúde (MS), responsável pela coordenação e execução de

atividades de ensino, pesquisa, informação e comunicação, desenvolvimento

tecnológico e cooperação técnica nas áreas de Educação Profissional em Saúde e

em C&T e de Iniciação Científica no Ensino Médio.

76

Na década de 90, as políticas de educação profissional técnica em saúde se

alinharam às políticas educacionais do Ministério da Educação do governo Fernando

Henrique Cardoso, bem como às orientações do Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), financiador do programa. Adotou-se, assim, a pedagogia

das competências para esse sistema de ensino. O discurso das competências

passou a ser compreendido como uma tentativa de substituir uma representação

hierárquica estabelecida entre os saberes e as práticas. Outro fato importante que

influenciou na organização curricular da escola B, nesse período, foi a crítica ao

ensino transmissivo de conteúdos, reverberando a pedagogia das competências.

Entretanto, várias pedagogias marcaram a história da construção do modelo

curricular da escola B, entre elas a pedagogia da pergunta, típicas do pensamento

de John Dewey e a da problematização e relação dialógica, com elementos das

ideias de Paulo Freire.

Hoje o projeto político pedagógico da escola B tem como compromisso, a

Educação Profissional em Saúde, em nível técnico e de formação inicial e

continuada, voltada para uma formação ética, política e técnica. Com essa

finalidade, são realizados cursos e pesquisas e traçadas cooperações técnicas em

níveis nacional e internacional. A proposta de uma formação politécnica em saúde

qualificada e crítica é construída em dois eixos principais: a formação dos jovens e

maduros trabalhadores do sistema de saúde da C&T e a formação docente para a

área de Educação Profissional. Elabora propostas de política, regulamentação,

currículos, cursos, metodologias e tecnologias educacionais; produção e divulgação

de conhecimento nas áreas de trabalho, educação e saúde.

Suas pesquisas e atividades de ensino focam a Educação Profissional em

Saúde; o Processo de Trabalho em Saúde; as Tecnologias Educacionais em Saúde;

o Ensino Médio integrado à Educação Profissional em Saúde e a Iniciação Científica

no Ensino médio. O ensino se realiza nas modalidades de formação inicial e

continuada de trabalhadores, especialização técnica e formação técnica de nível

médio nas seguintes áreas específicas: Atenção à Saúde; Vigilância em Saúde;

Gestão em Saúde; Informações e Registros em Saúde; Técnicas Laboratoriais em

Saúde; e Manutenção de Equipamentos de Saúde (PROJETO POLÍTICO

PEDAGÓGICO, 2005).

A escola B vem se pautando pela concepção politécnica, que dialoga com as

circunstâncias societárias atuais, deixando explícita a sua concepção de mundo.

77

Nessa concepção, o trabalhador é visto se educando no conflito e na contradição, e

que a aquisição, pela classe trabalhadora, dos saberes elaborados pela humanidade

serve de instrumento para a luta contra a divisão social do trabalho e a dominação

(PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2005). Trata-se, assim, de defender que a

todo trabalhador deve ser garantida a Educação Básica, como essência para um

processo de formação dos profissionais de nível médio e fundamental que lhes

possibilite tornarem-se dirigentes.

Assim, a escola B vem se estruturando como politécnica, mediante a

construção de um novo projeto pedagógico que ampliou suas práticas, na

perspectiva da formação integral de trabalhadores. A criação de um espaço de

discussão sobre Educação, no interior da escola, foi fundamental para o

desenvolvimento desse projeto. O debate sobre a formação profissional integral,

síntese entre cultura e técnica, alicerçada numa sólida Educação Básica e dela

indissociável, culminou na realização, em 1987, do Seminário Choque Teórico, cujas

reflexões foram fundamentais para a consolidação dos princípios que estruturam o

projeto ético-político-pedagógico dessa escola. Esse projeto se afirmou como um

espaço de criação, questionamentos, crítica e produção intelectual e material,

comprometido com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde e com o

desenvolvimento científico e tecnológico em Saúde, tendo o trabalho como princípio

educativo (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2005).

5.2.5 Transcrição das entrevistas

As entrevistas foram gravadas e transcritas por esta pesquisadora. Embora

tenhamos consciência das limitações que envolvem a transcrição de entrevistas

tanto em relação à pretensa neutralidade quanto em relação à ilusão de termos

captado todos os detalhes, ainda assim, buscamos realizá-la com o máximo de

fidelidade com a fala dos professores. Por esta razão, optamos em transcrevê-la

guardando a forma (o estilo e o gênero) e o conteúdo que a constituem. Da mesma

forma, buscamos, sempre que possível, preservar ao máximo a expressividade e a

entonação percebidas no momento da entrevista, repetições de palavras, indicações

de hesitação por meio de pausas e outros sinais. Também consideramos a

entonação expressiva que não pode ser observada pelo leitor, captada nos gestos,

78

risos, tom de voz e outras expressões corporais, mas, que se não levadas em conta

no momento da análise, contradizem os pressupostos teórico-metodológicos que

embasam este estudo, uma vez que Bakhtin (2006) ao considerar que toda palavra

usada na fala real possui um acento de valor ou apreciativo relacionado com a face

objetiva da significação, questiona “em que consiste esse acento e qual é a sua

relação com a face objetiva da significação?”, e responde dizendo que

o nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra é transmitido através da entoação expressiva. Na maioria dos casos, a entoação é determinada pela situação imediata e frequentemente por circunstâncias mais efêmeras. (BAKHTIN, 2006, p. 124)

O autor aprofunda a análise desse conceito acrescentando que a entoação

não se integra ao conteúdo objetivo da construção, mas, está relacionada aos

nossos sentimentos, quando damos, por exemplo, a uma palavra, uma entoação

expressiva e profunda.

5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Neste estudo, buscamos investigar as perspectivas de qualidade da educação

científica, analisando as enunciações de seis professores da formação profissional

técnica de nível médio, de química e de biologia, em relação direta com a situação

social de entrevista na qual se inserem. Interessou-nos compreender o processo de

construção dos sentidos a partir da abordagem teórica que fundamenta este estudo

e à luz das questões que orientam esta pesquisa.

De acordo com a filosofia bakhtiniana, o enunciado é o locus de produção e

de circulação de sentidos, sempre aberto à multiplicidade de perspectivas do outro,

mobilizadas no discurso para compor a perspectiva do enunciador. Em consonância

com esse princípio teórico, o enunciado constitui a unidade de análise de nossa

investigação.

O gênero entrevista, que emerge de uma situação concreta de interação

verbal, possui particularidades que facilitam a delimitação do enunciado, importante

aspecto na teoria da linguagem de Bakhtin (2003, p. 296), pois, para ele, “os

próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do

discurso”, ou seja, o pesquisador pergunta sobre um conteúdo e, ao concluir a

pergunta, o entrevistado inicia a sua fala. Ao seu término, o entrevistador inicia a

79

sua, e assim por diante, tentando tornar inteligível o discurso e fazer emergir as

reentrâncias das situações e fatos apresentados nas falas dos sujeitos da pesquisa.

Não se trata de reduzir a entrevista a uma troca de perguntas e respostas

previamente preparadas como ações mecanizadas, mas concebê-la no âmbito da

pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico, como uma produção de linguagem.

Nesta dialogia, o endereçamento é essencialmente importante, pois, alinhada

à concepção bakhtiniana, Amorim (2002) afirma que o destinatário participa como

coautor do enunciado. A autora, em seu estudo das vozes, define: i) o destinatário

real, “aquele que efetivamente lê o texto”; ii) o destinatário suposto,“faz ouvir a voz

do contexto de origem do texto”, iii) o sobredestinatário, totalmente indefinido e não

concretizado, “libera o texto das limitações de seu contexto”. Entendemos que tais

endereçamentos podem produzir sentidos específicos no enunciado. Assim, o

entrevistado pode mudar o tom, a expressão e até o conteúdo, construindo novos

sentidos sobre o objeto, em função do seu ouvinte (o entrevistador), ou da imagem

que faz de sua audiência.

Na comunicação discursiva, sempre há um locutor e um ouvinte, porém, nem

sempre com lugares bem definidos. Há também um objeto do discurso sobre o qual

se fala. Amorim (2002) nos explica esse princípio, apoiada nas ideias de Benveniste

(apud AMORIM, 2002), quando afirma: “A linguagem põe e supõe o outro”. Tudo que

se enuncia supõe um “Eu”, que designa um “Tu”, a quem ele se dirige e fala de um

“Ele”. Explica, também, que embora a enunciação seja um lugar de constituição da

subjetividade, seu sentido só se produz numa relação de alteridade que, em Bakhtin,

se desdobra em muitos lugares enunciativos. Daí a polifonia, pois, em um mesmo

enunciado, ressoa uma multiplicidade de vozes.

O estudo das vozes está sempre imbricado com os tipos de discurso que se

inscrevem na enunciação. Em sintonia com a teoria bakhtiniana, lembramos que na

enunciação há, no mínimo, duas vozes, a do locutor e a voz do destinatário suposto,

daí Amorim (2002) afirmar não haver um discurso de uma só voz, mas somente a

tendência de alguns enunciados estabelecerem uma relação direta com o objeto, ao

contrário do enunciado dialógico, que permite o contato com outras vozes. Essa

tendência será observada em nossas análises, quando o enunciador defender as

“suas” ideias, assumindo-as como verdadeiras ou falsas, não escutando a voz do

outro, desconsiderando-o como outra consciência viva e falante. É a composição do

texto, a forma como o texto é escrito e composto que permite que outras

80

perspectivas falem em seu discurso. Pode-se dizer que, na enunciação, algumas

vozes falarão mais alto que outras, no sentido de serem mais valorizadas ideológica,

histórica e socioculturalmente, silenciando as demais.

Além dos princípios da alteridade, do endereçamento e da polifonia, que

constituem o dialogismo de Bakhtin, o enunciado pressupõe uma situacionalidade,

ou seja, ele é determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é,

pela situação social imediata. A enunciação não existe fora de um contexto social, já

que cada locutor tem um horizonte social e se dirige para um interlocutor (em

potencial), para um auditório social bem definido (BAKHTIN, 2004).

Do ponto de vista de Bakhtin (2004), cada novo contexto possui influência

sobre os sentidos atribuídos às enunciações. Apoiamos-nos nessa ideia para

esclarecer que, ao trazermos duas escolas de formação profissional (escola A e

escola B) para constituir o corpus desta pesquisa, o que nos interessa não é a

comparação entre os professores e as escolas com o intuito de classificá-los ou

desqualificá-los como melhores ou piores, bons ou ruins, certos ou errados, mas,

uma vez reconhecidas suas singularidades e especificidades, explorar as questões

de pesquisa, levando em conta a influência que cada contexto histórico e

sociocultural, imediato e mais amplo, exerce sobre a produção de sentidos na

comunicação dialógica dos professores.

O autor afirma que o discurso nasce de uma situação pragmática, extraverbal,

contextual, histórica, e que continua a ligação com essa situação para poder manter

sua significação. No texto "Discurso na vida e Discurso na Arte", Bakhtin/Volochínov

(1926) já se perguntava: "Como o discurso verbal se relaciona com a situação

extraverbal que o engendrou?”; “De que forma o analista deve proceder

metodologicamente para descobrir o sentido e a significação?".

Com estas indagações, introduzimos outra dimensão da análise bakhtiniana

da linguagem, além da orientação social do enunciado. Ao desprezar a abordagem

formal e o ideologismo estreito para analisar e estudar a linguagem, Bakhtin inclui a

análise do “contexto extraverbal” como parte constitutiva dos sentidos atribuídos às

enunciações. Esse contexto é composto basicamente pelo horizonte espacial

comum aos interlocutores, pelo conhecimento e compreensão comum da situação

existente entre os interlocutores e da avaliação comum dessa situação. Esse

caminho articularia o verbal e o não-verbal, o dito e o não-dito, o posto e o

pressuposto, o entendido e o subentendido. A consequência para as nossas

81

análises é a de que, durante a entrevista, o que o entrevistador e o entrevistado

veem, sabem e avaliam em comum se reflete na produção de sentidos da

enunciação dos envolvidos nessa situação social.

No texto Dialogic Imagination, Bakhtin (1994) acentua o valor que dá ao

aspecto da transmissão e a avaliação da fala do outro, como um dos temas mais

importantes e fundamentais da fala humana. Ele argumenta que, em todas as áreas

da vida e da atividade ideológica, nossa fala está completamente repleta de palavras

de outras pessoas, as quais são transmitidas com graus muito variados de rigor e

imparcialidade.

Em nossa análise, buscaremos observar, também, quando o enunciador tenta

fixar sentidos em seus enunciados, não permitindo a interanimação com outras

vozes. Esse tipo de transmissão é denominado pelo autor como discurso de

autoridade “o discurso autoritário não pode ser representado, só é transmitido”

(p.344). Nesse sentido, o enunciador parece demonstrar fidelidade incondicional ao

significado a ser transmitido, parece hermeticamente fechado, não permitindo que o

ouvinte o questione. Esse aspecto é especialmente importante em nossa pesquisa,

uma vez que iremos analisar enunciações dos professores de ciências, que trazem

as marcas desse horizonte social. Nelas se pressupõe, na maioria das vezes, uma

formação em contato com o gênero do discurso científico, dogmático e

essencialmente de autoridade.

Por outro lado, pode-se encontrar o discurso internamente persuasivo. Ele

ocorre quando há marcas de que o enunciador produz, em sua enunciação, sentidos

dialogando com outros enunciados e sobre eles discute, concorda, critica, questiona.

É tecido a partir das palavras dos outros e permeado com as próprias palavras do

enunciador e, por isso, pode ser considerado metade dele e metade do outro.

Analisaremos, ainda, a forma como o enunciador se posiciona em relação aos

outros enunciados. Esse posicionamento pode ocorrer por meio da apropriação, que

é “trazer algo para o interior de si mesmo e fazê-lo próprio” (WERTSCH, 1999, p.92).

Ao fazê-lo, o enunciador amplia o seu horizonte pela apropriação, compreensão e

produzindo sua própria perspectiva.

Apropriando-se do discurso alheio, os professores podem mudar o conteúdo e

o sentido sobre o objeto do discurso. Em relação a essa mudança, Bakhtin (1994)

explica que “o discurso do outro está dentro de um contexto e não pode ser

82

fielmente transmitido, está sempre sujeito a certas mudanças semânticas” (p. 338). É

nesse campo que o viés interpretativo é dado, originando as nuances do discurso.

Embora Bakhtin não tenha cunhado o conceito de recontextualização em sua

filosofia da linguagem, esse tipo de apropriação pode ser entendido como tal, pois “a

estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta;

em cada um dos novos contextos que dialogam com ele, este discurso pode revelar

sempre novas formas de significar” (BAKHTIN, 1994, p. 346).

Na orquestração de vozes na composição do enunciado, faremos referência

ao discurso citado (ou direto) e ao discurso indireto. No primeiro, a voz da pessoa é

incorporada ao discurso, preservando a sua originalidade. A identificação dessa

originalidade é explicitada pelo uso de marcadores linguísticos, observados na

superfície do texto. Já no discurso indireto, tais marcas nem sempre são percebidas

na superficialidade dos textos, mas pelo seu conteúdo semântico referencial, pela

entonação e expressividade empregadas.

Bakhtin (1994) pede que se pense sobre a importância da forma como se

incorpora a palavra do outro em nosso discurso, afirmando ser decisivamente

importante, além de conhecer as condições de produção do enunciado, identificar

quem está falando no texto. Esses conceitos podem nos orientar quanto ao efeito de

sentido de uma citação ou referência à fala de outrem na enunciação do enunciador.

São efeitos que podem surgir quando, na enunciação dos entrevistados, o

enunciador relata a fala do outro, preservando a integridade do texto e buscando

apresentar provas para legitimar os sentidos que está tentando fixar em seu

discurso. Porém, Bakhtin (1994) também adverte sobre as possíveis mudanças

semânticas a que estão sujeitas as citações, mesmo quando enunciadas com

precisão (limites demarcados linguisticamente e banhados de expressividade e

entonação).

Os professores poderão também relatar indiretamente a fala do outro,

fazendo uso de suas próprias palavras para falar sobre o que outro disse. Isso é o

que se faz na maioria das comunicações cotidianas. É importante, assim, estar

atento às interpretações e apropriações que os professores fazem dos discursos dos

outros, pois elas estão marcadas, também, pela intencionalidade do falante.

Para inferirmos os sentidos de qualidade construídos nas falas dos

professores, serão observados, também, os marcadores linguísticos, que podem ser

83

palavras, expressões, exclamações, pois estes sempre podem auxiliar na análise

para evidenciar os possíveis sentidos produzidos em cada discurso.

Tomando estes constructos como princípios metodológicos, utilizaremos os

procedimentos metodológicos propostos por Bakhtin (2004) para realizar a análise

dos enunciados construídos pelos professores investigados. Assim, percorreremos

as seguintes etapas:

i) análise das formas e os tipos de interação verbal em ligação com as

condições concretas em que se realizam. Nesta etapa, procuraremos

identificar a situação extraverbal composta pela extensão espacial, pelo

conhecimento, pela compreensão e pela avaliação comuns aos interlocutores

na situação de entrevista;

ii) análise das formas das distintas enunciações em ligação estreita com a

interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de

fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela

interação verbal: as perspectivas (vozes) que intervêm na enunciação; o

endereçamento do enunciado (destinatário real, o destinatário suposto e o

sobredestinatário); o posicionamento do professor em relação ao conteúdo

semântico referencial do enunciado-pergunta;

iii) análise das formas da língua na sua interpretação linguística habitual.

Nesta etapa analisaremos cada enunciado, observando: o conteúdo

semântico referencial (o conteúdo propriamente dito), a estrutura

composicional (a estrutura do enunciado), o gênero textual e o estilo adotados

(seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua); os

efeitos de sentido dos marcadores linguísticos sobre a enunciação dos

professores.

Resumidamente, percorreremos três etapas para a análise dos enunciados,

conforme apresentado no Quadro 4 a seguir.

84

Quadro 4: Procedimentos de análise dos enunciados dos professores

CONTEXTO EXTRAVERBAL

Horizonte espacial, conhecimento, compreensão e avaliação comuns aos interlocutores na situação de entrevista.

CONTEXTO INTRAVERBAL

Identificação do enunciado cujos limites foram estabelecidos a partir da alternância dos sujeitos. Leitura preliminar do enunciado. Análise do enunciado à luz dos pressupostos teórico-metodológicos bakhtinianos e das questões de pesquisa.

PERSPECTIVAS Apreensão das perspectivas dos docentes em relação à qualidade da educação científica no contexto da EPTM.

85

6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DOS PROFESSORES ENTREVISTADOS

Este capítulo aborda as análises das respostas dadas pelos professores na

situação de entrevista individual. Para realizar estas análises, buscamos captar o

coro de vozes que ressoam nos enunciados dos professores, nos sentidos

construídos na interlocução com a pesquisadora.

Operacionalmente, a primeira providência tomada diante do material de

pesquisa foi delimitar o enunciado, unidade real da comunicação discursiva, cujos

limites se estabelecem, no caso da entrevista, pela alternância dos sujeitos. Assim,

cada resposta foi tomada como um enunciado, a partir dos limites concretos entre o

término da fala do pesquisador e o início da fala do entrevistado até o seu fim, e

assim por diante.

A análise, que buscou compreender ativamente as enunciações, emerge da

leitura minuciosa de cada enunciado, para apreender os sentidos e as apreciações

que, de acordo com Bakhtin (2004), se constituem como elementos de toda

enunciação. Para ele, a todo instante da vida, o sujeito assume continuamente uma

posição avaliativa e responsiva em relação ao outro. Nesse sentido, buscamos

evidenciar não somente o que os professores falam, mas também como falam: a

entonação com que se expressam, as acentuações valorativas, as dialogias

estabelecidas, o seu posicionamento na enunciação e a forma como se apropriaram

dos temas aos quais foram apresentados. Tudo isso, sem perder de vista a

“interpretação linguística habitual”, ou seja, o exame do uso dos elementos

linguísticos (léxico, sintaxe, estilo, construção composicional, unidade temática e a

conclusibilidade) constituintes do enunciado.

Organizamos as análises, agrupando-as pelos temas centrais de cada

pergunta, com o intuito de compreender como cada professor tece suas perspectivas

de qualidade, com foco nos temas principais nelas referenciados: a) objetivos do

ensino de ciências (Química ou Biologia); b) seleção de conteúdos, metodologia e

avaliação; c) o papel dos laboratórios no ensino de ciências; d) interesse e

desempenho dos alunos; e) formação integral; f) documentos oficiais; g)

apresentação do conhecimento científico; h) o papel da pesquisa na formação

profissional.

86

Em consonância com a arquitetura bakhtiniana, nenhum enunciado pode ser

plenamente compreendido se não forem levadas em conta as situações concretas

em que se realizam, a relação entre os interlocutores e o endereçamento. Assim, a

compreensão do enunciado como um todo se configura pela integração de duas

partes: a verbal, realizada em palavras, e a presumida, ou seja, o dado, o

inquestionável.

Neste sentido, é necessário esclarecer que o roteiro que estruturou as

entrevistas foi apenas um ponto de partida. A imprevisibilidade e a singularidade de

cada encontro com os professores influenciaram o modo como as perguntas foram

elaboradas. Isso pode ser observado no conjunto das análises do professor André,

em que não aparece o item relativo à consulta aos documentos oficiais e, nas do

professor Murilo, em relação à pesquisa. No primeiro caso, porque o professor já

havia comentado a respeito, por mais de uma vez, nos enunciados precedentes ao

momento dessa pergunta. No segundo, porque o professor apresentou uma

limitação de tempo que me levou a rever as perguntas. Como também já havia se

posicionado em relação à pesquisa em outros momentos da entrevista, não

julgamos prejudicial essa omissão. Por motivos semelhantes, algumas perguntas

foram feitas englobando mais de um tema para uns professores e separadamente

para outros.

Iniciamos a análise descrevendo o contexto extraverbal de cada entrevista,

que inclui o horizonte espacial, o conhecimento e a avaliação comuns aos

professores e à pesquisadora em relação ao contexto social mais próximo, na qual a

pesquisa está imersa. Ainda como parte do contexto extraverbal, consideramos de

igual importância para a compreensão do enunciado, o acesso aos dados

profissionais, tanto dos entrevistados quanto da pesquisadora, registrados,

respectivamente, no capítulo cinco e na apresentação. A descrição das trajetórias

profissionais e acadêmicas dos professores estão inevitavelmente imbricadas em

seus enunciados. A descrição das atividades profissionais e acadêmicas da

pesquisadora estão virtualmente implicadas na imagem que o entrevistado faz de

seu ouvinte e, portanto, também moldam seu enunciado. Pois, como nos adverte

Freitas (2007), a inserção da pesquisadora no campo se dá de fato pela “penetração

em outra realidade, para dela fazer parte, levando para esta situação tudo aquilo

como um ser concreto em diálogo com o mundo em que vive” (p. 37).

87

6.1 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR ANDRÉ

6.1.1 O contexto extraverbal

O horizonte espacial comum entre o professor André e a pesquisadora, na

situação social de entrevista9, ou seja, o que viam em comum no contexto imediato

de pesquisa eram elementos básicos de uma sala de aula ociosa da escola A, no

horário vago do professor. Nessa sala estavam presentes apenas a pesquisadora e

o entrevistado, que percebiam juntos toda a movimentação de alunos e professores

do turno vespertino, na dinâmica da rotina escolar.

No que tange ao conhecimento presumido entre o professor André e a

pesquisadora é importante explicitar que trabalhamos como docentes, no Campus I

da escola A, por um período comum de sete anos, ministrando disciplinas que se

inscrevem nas séries iniciais da formação técnica. Embora mantivéssemos um bom

relacionamento, foram poucas as oportunidades para um diálogo sobre nossas

concepções de educação. Encontramo-nos pouquíssimas vezes a partir de 2009,

quando conversamos rapidamente acerca de nossas experiências no curso de

doutorado. De lá para cá, com a mudança de endereço da reitoria, que antes

funcionava nas dependências da escola A, nossos diálogos se tornaram mais

escassos ainda.

Em relação às mudanças políticas no contexto da educação profissional no

Brasil, vivenciamos as reformas educacionais, a partir das determinações do Decreto

Nº 5.154/2004, que revogou a obrigatoriedade da separação entre ensino médio e

formação técnica, estabelecida pelo decreto anterior, dando autonomia às escolas

para a integração. No ano de 2008, vivenciamos também a criação dos institutos

federais, a partir dos centros federais de educação, ciência e tecnologia. Embora

não tenhamos discutido a política de expansão da educação profissional do governo

federal a partir de 2003, sabíamos da importância dada a essa via de escolarização

pelas instâncias governamentais.

Por sermos professores atuantes no ensino técnico de nível médio, sabíamos

da existência dos PCNEM como política curricular oficial, das diretrizes curriculares

9 A transcrição completa da entrevista com o Prof. André encontra-se no Apêndice 2 (p.209).

88

nacionais para a formação técnica e do projeto político pedagógico da escola A;

sabíamos das relações de poder que permeavam as disputas por espaço, no

currículo, entre os conhecimentos gerais e os específicos; conhecíamos o reflexo

destas disputas, nas relações interpessoais, no âmbito da instituição; sabíamos da

importância da Coordenação de Integração Empresa-Escola (CoIEE) para a

instituição e da relevância dos laboratórios no curso técnico em Química. Vale

ressaltar, também, que o professor André estava a par de que a pesquisadora

ocupava, no momento da entrevista, um cargo de direção na escola A.

A avaliação comum, presumida por ambos, em relação à participação na

pesquisa, é o quanto valorizam essa atividade, por se tratar de um estudo na área

de ensino de ciências, desenvolvido na UFRJ, uma instituição acadêmica

reconhecida socialmente pela relevante produção científica e que, nesse contexto,

suas contribuições poderiam produzir eco na academia, por se tratar de uma

pesquisa para uma tese de doutorado. Outra avaliação comum relaciona-se ao

reconhecimento da importância de se discutir a educação científica, no momento em

que a formação profissional ganha centralidade nas políticas educacionais para o

nível técnico de ensino.

6.1.2 Perspectivas do professor André

a) Objetivos do ensino de química

Iniciei a entrevista com o Prof. André perguntando sobre a sua visão em

relação ao objetivo do ensino de ciências, na educação profissional técnica de

formação para o trabalho. O professor afirmou considerar esse objetivo como central

e importante, mas, ao enunciar: “Tem que ver realmente como essa formação se dá.

Mais crítica”, revelou uma preocupação com a qualidade dessa formação, trazendo

para seu discurso um acento de valor em relação à formação profissional, que se dá

a partir de uma perspectiva crítica.

Aparentemente pautado por esta perspectiva, analisa a concepção de

formação profissional oferecida pela escola A: “Aqui, na instituição, aqui, hoje, a

formação para o trabalho tem uma característica muito estranha”. O uso do

marcador “aqui” representa a escola A, no qual ele trabalha e pressupõe um “lá”,

que, possivelmente, representa os demais campi da escola A, onde a formação para

89

o trabalho pode não ser “estranha”, ou, no mínimo, é diferente dessa. Já o uso do

marcador “hoje” pressupõe um “ontem” e um “amanhã”. Ambos com possibilidades

de caracterizações diferentes de “estranha” para a formação profissional no Campus

I. Diferente do que acontece “hoje”, é possível que, no passado, a formação

profissional fosse considerada adequada aos seus fins, em sua visão. Já no uso do

“amanhã”, o sentido é de que, a partir do presente, ele esteja vislumbrando

mudanças do cenário atual.

Ao enunciar que hoje a escola A “tem algumas questões que são

anacrônicas” e “fora da perspectiva que nós temos hoje em relação à questão do

trabalho”, qualificou a formação profissional oferecida nesse campus como

descolada das demandas contemporâneas advindas do mundo do trabalho. Na

continuidade, o professor apontou um desalinhamento entre o perfil de formação

técnica oferecida hoje pela instituição e o perfil de formação técnica solicitada

atualmente pelo mercado. Ressaltou a importância de se estabelecer um contato

com as empresas ou indústrias que irão empregar estes profissionais, julgando que,

hoje, esse “laço” com o mercado é “completamente débil, muito frágil,

completamente inexistente”. O professor relembrou um determinado momento

histórico, em que havia carência de profissionais no mercado, subentendendo-se o

técnico em Química, no qual a escola A era “quase a única provedora desse tipo de

profissional”, para construir o sentido de que naquela época tal contato com as

empresas não se fazia tão necessário, porque demanda e oferta se casavam

perfeitamente. Embora reconhecendo que hoje ainda exista grande demanda pela

formação técnica tradicionalmente oferecida pelo Campus I, lamentou o fato de ele e

seus pares não terem recursos para avaliar a adequação ao mercado, a partir da

formação que oferecem (“mas a gente não tem parâmetros, indicadores, como

avaliar de que maneira esse profissional está sendo voltado para uma função de

trabalho, qual é o padrão da formação profissional desse cara”).

Mas, se não forma para as atuais demandas do mercado de trabalho, que tipo

de formação tem sido oferecido aos futuros técnicos? Na visão do Prof. André, a

escola A oferece uma “formação para o lado acadêmico”. Exemplificou, relatando o

interesse dos alunos pelo curso de Biotecnologia, atribuindo-o ao desejo destes em

aprofundar o conteúdo de Biologia, disciplina que constitui a base curricular do curso

de Medicina (“Eles estão num curso de biotecnologia para ter uma carga poderosa

com relação à área de biologia”). Deixou clara a sua visão de que na escola A não

90

há o desejo coletivo da formação para o trabalho, diferente do que ocorre nos

demais campi, configurando isso como uma “espécie de estorvo no padrão dos

institutos.” A escolha da palavra “estorvo” para adjetivar a escola parece indicar que

a formação profissional oferecida ali destoa e atrapalha o conjunto dos demais

institutos federais.

Embora tenha feito essa crítica, o professor André admite que a escola A

pode continuar oferecendo a formação técnica alheia às discussões que envolvem

as questões relativas à formação para o trabalho, “tanto do ponto de vista para a

formação específica para o trabalho quanto do ponto de vista para a formação

integral”, mas à custa de seu isolamento, em relação ao conjunto dos institutos.

Na continuidade de seu discurso, pareceu aprofundar o que ele acabara de

enunciar, a partir do “conjunto de pessoas” que atuam no ensino. O que ele disse é

que essas pessoas - e entendemos estar se referindo aos professores que

ingressaram na escola A por meio de concurso (“selecionadas”) - são pessoas muito

motivadas com a sua linha de estudos e que, ao depararem, na escola A, com um

“espaço de liberdade” para desenvolver o seu trabalho, buscam a realização pessoal

em torno dessa liberdade. Para ele, tal realização é propiciada, também, pela grande

carga horária de disciplinas, principalmente, em função das disciplinas exatas ou

biológicas. Porém, contrapôs a grande carga horária das disciplinas matemática,

física, química e biologia à das disciplinas de história e geografia, avaliando como

“pífio” o conhecimento humanístico oferecido aos alunos na formação técnica.

Retomou o tema central da pergunta e passou a apresentar a sua visão sobre

os objetivos para a formação para o trabalho, a partir da sua formação acadêmica,

que disse estar relacionada a essas discussões. Assim, marcou o lugar social de

onde estava falando e se diferenciou dos demais professores (“mas os professores

daqui, stricto sensu, não têm nenhuma noção de qual é a demanda ou as

orientações nacionais para a formação do trabalho”). Com este comentário, infere-se

que a sua visão se coaduna com a da legislação.

Justifica o desconhecimento dos demais professores em relação às

orientações oficiais para a formação para o trabalho, atribuindo-o, também, à total

ausência de espaços de discussão na escola A sobre essas orientações (“não há

encontros, seminários, motivações, orientações”). Ele próprio assumiu não conhecer

o que diz o projeto político pedagógico da instituição sobre a formação para o

91

trabalho, embora já tenha se empenhado em saber, sem êxito, por não obter

respostas (“já perguntei pelo projeto várias vezes e ninguém responde”).

Ao enunciar que “Gostaria de, antes de sair dessa instituição, ver esse

documento”, destacou, no mínimo, a possibilidade de não permanecer na instituição.

Na sequência enunciativa, pôs em dúvida a existência do projeto político pedagógico

e apontou o não reconhecimento da importância do mesmo pela instituição. A seu

ver, o que importa para “eles”, que interpretamos sendo o corpo docente e

administrativo da escola A, é “manter a sua própria história. Uma história que vai se

perdendo por essa mudança de nomes, por essa descaracterização.” Pelas palavras

finais desse enunciado, verificamos que, também para o professor André, as

mudanças provocadas pelas legislações recentes na formação técnica,

acompanhadas de novos nomes para designar a instituição, implicam perdas,

embora tenha trazido essa visão para o discurso tentando justificar a ausência de

discussão em torno do projeto político pedagógico da escola. É como se ele

dissesse que a discussão entre os seus pares centra-se nessa descaracterização e

na busca pela fixação dos sentidos para o ensino, que prevaleceram ao longo da

história, visando à reconstrução de uma identidade institucional. É possível

considerar também que a ênfase nesse processo de busca de identidade acaba por

secundarizar reflexões coletivas em torno dos documentos legisladores da/para a

instituição. Ainda podemos interpretar que essa busca emerge do quanto essas

mudanças ameaçam a suposta estabilidade do reconhecimento social, pela

qualidade oferecida, e que o coletivo institucional se preocupa em manter.

Do ponto de vista do professor, o entendimento do processo vivido

atualmente pela instituição se configura como um interessante processo psicológico

“digno de um estudo antropológico, psicológico, sociológico”, sugerindo a análise da

problemática discutida a partir do sujeito constituído sob a ótica sócio-histórica-

cultural. O professor relatou que as pessoas não têm mais o nome da instituição,

documentos oficiais, registros do passado, restando a eles “a própria história”. Se a

instituição, na qual essas pessoas trabalham há anos, vêm se modificando, e se

estas rejeitam ou resistem às mudanças, o sentimento de pertencimento se desfaz e

todos acabam, segundo o professor, só tendo “uns aos outros”. Entretanto, elas não

parecem compor um grupo harmônico, na medida em que “têm muitas diferenças”.

Por isso, o professor qualificou a atual situação da escola como “esquizofrênica”, o

que também indica a ausência de um projeto institucional.

92

Intencionando retomar o foco, refiz a pergunta sobre os objetivos do ensino

de Química, tendo o professor salientado a necessidade da criação de espaços de

discussão sobre as relações entre as solicitações do mercado e a formação técnica.

Ao apontar essa preocupação, deixou evidente sua perspectiva de que a formação

profissional oferecida deve atender ao mercado.

O professor se ressente de a escola A não ter desenvolvido um processo

sistemático para discutir estas questões, visando a reorientar os discursos docentes.

Por exemplo, lembrou que a Química ainda é ensinada na escola em uma

perspectiva analítica, restringindo a habilitação profissional do aluno ao trabalho em

laboratório, quando esse não é “o único universo de possibilidades”.

O Prof. André trouxe para o discurso a ideia de acomodação institucional,

diante da convicção que gestores e docentes têm da alta qualidade do ensino

oferecido, convicção esta construída e reconhecida socialmente ao longo da história,

e que balizou e baliza a formação técnica oferecida pela escola A. Então, qualquer

mudança ou questionamento representa uma ameaça ao status alcançado pela

instituição, mesmo que seja no imaginário coletivo que a conforma. Esse sentido foi

apreendido no tom irônico com que o professor se expressou ao comentar: “Nós

somos os melhores e porque somos os melhores, nós devemos continuar tudo do

jeito que está.”

Caracterizou a cultura institucional, ao enunciar que “a função pedagógica ou

didática nesta instituição se refere muito a uma espécie de burocracia pedagógica,

então pensar curricularmente essa instituição, sob o ponto de vista de novas

práticas, novas abordagens é praticamente um tema proibido”. Finalizou o

comentário, usando o mesmo tom irônico (“Porque somos muito bons”) para justificar

a resistência institucional em discutir e pensar o ensino a partir de novos parâmetros

pedagógicos ou curriculares. Em seguida, classificou a escola A, dizendo que acha

que isso não acontece nos demais campi, talvez pela nova institucionalidade, que

conforma a criação dos mesmos, demandando por consulta e discussão dos

documentos oficiais (“Alguém de outro campus já conhece a diretriz, já sabe como

formular isso, mas aqui é tudo mais difícil”). O uso do marcador “aqui”, no final do

seu enunciado, reforça a dificuldade de se discutirem ou implementarem mudanças

na escola A.

93

b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação

Em seu discurso sobre a seleção de conteúdos, metodologia e avaliação, o

Prof. André diz seguir o currículo estabelecido institucionalmente, tomando-o como

discurso de autoridade que conforma a sua prática. Diz ser um “arranjo curricular

consensual” para as disciplinas de Química Geral I e II e Inorgânica, uma vez que

estas disciplinas são direcionadas à formação básica, no sentido de serem pré-

requisitos para futuros aprofundamentos da química no processo de formação

profissional.

No entanto, após deixar refletir a voz de autoridade institucional em seu

discurso, demonstrou responsividade ativa quando relatou introduzir questões de

história e filosofia da ciência, nos novos conteúdos, para ensinar química geral I e

química inorgânica.

O Prof. André afirmou ainda que a inserção dos novos conteúdos que faz é

possível, porque ele tem formação acadêmica para tal, afirmando e reafirmando

várias vezes a sua competência. Ao reforçar a ideia de que isto é possível no seu

caso particular, deixa margem à percepção de que mudanças curriculares são

iniciativas individuais e isoladas na escola A.

c) O papel do laboratório no EC

O Prof. André constrói a sua visão sobre o uso do laboratório divergindo da

concepção de ensino experimental, das atividades práticas, questionadas, também,

pelo “ensino de ciências”, que interpretamos como sendo a literatura da área em

ensino de ciências. Na sequência enunciativa, ressoa em seu enunciado a voz

institucional em relação às práticas laboratoriais usuais (“A gente tem um percurso

na atividade experimental de consolidação e aprendizagem de técnicas”). Contrapôs

essa perspectiva à concepção de atividades experimentais defendida pela área de

ensino de ciências, “que tem que ser mais críticas, menos ingênuas, não ser uma

repetição de roteiros”.

Apesar de ter aproximado a sua visão acerca das finalidades do laboratório à

visão da área de ensino de ciências, considera a “atividade repetitiva”, realizada no

laboratório, como necessária à atividade profissional que o técnico irá exercer. (“faz

parte da atividade profissional que ele vai desenvolver”). Porém, avalia essa prática

como uma “aula bem careta”, tanto do ponto de vista da técnica, quanto do ponto de

vista de se confrontar com a teoria dada em sala de aula.

94

Considera que, excetuando-se o instrumentalismo inerente à atividade que o

técnico irá desenvolver em sua ocupação profissional (“que tem que ser”), a

atividade experimental na escola A, que ocorre com um caráter de “repetir roteiros,

com pouca reflexão, formulação de hipóteses, poucos testes, poucos diálogos, o

confronto é pouco”, poderia ser reformulada. Com esse comentário, se posicionou

de forma crítica em relação ao uso instrumental do laboratório e pareceu defender

uma reformulação na linha do que propõe o ensino de ciências, citado como

contraponto, no início do enunciado. O uso de “a gente10” em “a gente precisa

reformular isso” parece indicar que, nas atividades experimentais, há planejamentos

em grupo, já que incorpora, em seguida, em seu discurso, o posicionamento desse

grupo (“essa ansiedade que o grupo tem há algum tempo”) sobre as reformulações

em tais atividades. Relatou que algumas reformulações já foram feitas, porque

algum docente com voz de autoridade realizou (“alguém chegou e disse: eu vou

fazer assim mesmo”), de forma individual, no processo “on the job”. Reconheceu, no

entanto, que é preciso “sentar e reorganizar melhor”, o que também parece dizer

respeito a uma atividade a ser realizada pelo grupo.

d) Interesse e desempenho dos alunos

Em relação ao interesse e desempenho dos seus alunos, o Prof. André

considera que “os alunos têm muito interesse, porque vieram para cá”, produzindo o

sentido de que o interesse dos alunos está ligado diretamente à instituição e não à

carreira, como se poderia supor. Este sentido parece se confirmar quando o

professor declarou que circula, entre ele e seus pares, a pergunta (“Mas interesse

em quê?”) e passa, a partir deste questionamento, a apresentar a sua leitura, que é

a de que os alunos “têm muito interesse em ensino de qualidade e não em ensino

profissional”. Na sequência, retomou a perspectiva de motivação dos alunos, tecida

no início do seu enunciado, acrescentando o adjetivo “gratuito” ao que expressara

antes, (“Eles vêm aqui em busca de ensino de qualidade gratuito”) tentando assim,

mais uma vez, qualificar o interesse específico de seus alunos.

Com relação ao desempenho, considera que os alunos são bons “porque eles

são filtrados”. O marcador “filtrado” se refere ao processo seletivo acirrado por que

10

Consideramos que a interpretação da expressão “a gente”,como sujeito coletivo, não é inequívoca, já que a mesma também pode ser usada, caracterizando vício de linguagem, designando a primeira

95

passam os alunos que ingressam na escola A. É possível interpretarmos que o

professor atribui os bons resultados obtidos por seus alunos ao fato de já

ingressarem na escola com uma boa base de conteúdo, e não apenas por conta do

ensino aí ministrado.

e) Formação Integral

Questionado sobre a sua compreensão de formação integral, o Prof. André a

definiu trazendo-a para a realidade da escola A: “acho que essa formação integral

seria o sujeito ter, além da perspectiva da formação do sujeito em ensino médio, ele

ter acesso a conteúdos, atividades, questões que tivessem a ver com a formação

profissional”. Considera que, na escola A, a formação integral ocorre parcialmente

por privilegiar a formação profissional e secundarizar a formação mais ampla. Assim,

o Prof. André equiparou a formação mais ampla à formação geral oferecida no

ensino médio.

O professor André exemplificou a valorização maior dada à formação

profissional na escola A, citando a discussão da inclusão das disciplinas de Filosofia

e Sociologia, recentemente imposta pela legislação educacional, como obrigatória

no ensino médio e, portanto, também à educação profissional. Deixou claro o desejo

de aproveitar o momento da entrevista para registrar o seu posicionamento em

relação a tal discussão (“queria até deixar registrado”). Ao fazer esse comentário,

expressou sua convicção do quanto julga equivocada a reação de rejeição de seus

pares em relação a essa orientação se aplicar, também, à formação profissional. É

como se ele quisesse garantir o eco de sua voz, que parece tomar como verdade,

para uma audiência social mais ampla, ou seja, para a academia, gestores

institucionais, professores, entre outros, em relação a essa temática. Abordou a

resistência dos professores de algumas disciplinas, subentendendo-se, pelo todo do

enunciado. que sejam as disciplinas específicas, lançando mão das formas

linguísticas “temeridade” e “absurdo” para tecer a oposição destes em relação à

exigência da inclusão das disciplinas de humanas no currículo da formação técnica.

O Prof. André transmitiu o questionamento dos docentes que discordam de tal

inclusão, pressupondo que, ao enunciarem “pra quê?”, na realidade, estão

perguntando: “pra que filosofia e sociologia o tempo todo?”. Em sua concepção, os

pessoa. Só ousamos interpretá-la como sujeito coletivo diante de evidências no todo estético do enunciado.

96

professores questionam, resistem, por não entender o que é a formação integral.

Com essa crítica, o professor, apesar de limitar a formação mais ampla ao que é

oferecido no ensino médio, defende algo mais para a formação técnica profissional.

Para avaliar a formação integral no contexto da formação profissional, o Prof.

André compôs a estrutura do seu enunciado selecionando intencionalmente as

palavras, principalmente quando, após dizer que a formação integral “É uma espécie

de simulacro”, explicitou que é uma palavra de que ele gosta muito (“Vou deixar

claro que é uma palavra que eu gosto muito”). Demonstra, assim, uma valoração na

escolha do léxico para construir o sentido que deseja produzir em seu discurso. Na

sequência discursiva, reforçou o sentido anterior com o acréscimo de outros

adjetivos à estrutura composicional: (“essa formação integral na educação

profissional é um simulacro, uma mentirinha, um fingimento”). Reiterou, assim, a sua

concepção de que a formação integral não é realizada na escola A e, além de não

se realizar efetivamente, finge-se que é realidade na escola. Insistiu no exemplo da

resistência à inclusão das disciplinas de filosofia e sociologia no currículo da

instituição para provar a inexistência da formação integral.

Ao tentar esclarecer a problemática da formação integral na escola A, acabou

expondo sua visão de currículo como uma construção mediada por relações de

poder dentro da instituição: “as pessoas não estão dispostas a perder nada do que

têm hoje, porque o currículo, em qualquer lugar, atende à idiossincrasia do conjunto

de pessoas daquela instituição, né?” Complexificou essa noção quando

acrescentou, à construção do currículo, o atendimento a acordos internacionais. No

entanto, embora tenha mencionado essa importante influência no currículo, não

desenvolveu essa ideia.

Encaminhou a conclusão do seu enunciado apontando um problema

estrutural na proposta da legislação no que tange às disciplinas de humanas. Esse

problema seria a necessidade de um número maior de professores na área de

humanas, mas que, de acordo com a lei, esse número acabaria sendo, ao final do

curso, maior que o número de professores das disciplinas específicas, consideradas

mais importantes no âmbito da escola A, como, por exemplo, a própria química.

Na continuidade da entrevista, perguntei sobre outro sentido que poderia ser

dado à formação integral, ou seja, à integração entre as disciplinas curriculares do

ensino médio e do ensino profissional. O Prof. André foi categórico ao enunciar:

“Não tem integração. Essa relação de diálogo, não tem diálogo. As funções básicas,

97

as disciplinas básicas são espécie de serviço sujo que as disciplinas da ponta não

querem fazer." Além de deixar claro não haver integração, ele classificou, isto é,

separou a formação geral das disciplinas da formação profissional e colocou a

formação geral em posição inferior, naquele contexto institucional.

Nesse ponto da entrevista, o Prof. André passou a discorrer sobre os

obstáculos que tem enfrentado, a partir das dificuldades demonstradas por seus

alunos, diante do rigor conceitual e do regime semestral que caracterizam a

instituição. Ao enunciar que “a gente vem experimentando nas disciplinas iniciais um

processo de reprovação muito grande. Isso é ruim, mas é bom para as disciplinas

que estão na frente”, descreveu um mecanismo seletivo interno, que é perverso para

os alunos e “bom” para alguns professores. Justificou o porquê desse “bom”, uma

vez que, reprovados nas séries iniciais, o número de alunos diminui para as séries

finais. Pelo tom irônico com que expressou “Isso tudo acontece em prol da defesa da

qualidade institucional, porque sempre fomos bons assim, exigindo muito”, é

possível considerar que o Prof. André pôs em xeque a hegemonia desse

pensamento e problematizou essa qualidade, ao dialogar com os “novos perfis” dos

alunos que estão chegando com novas dificuldades e diante das transformações

que o mundo vem sofrendo.

Ao afirmar, em seguida, que o diálogo entre as disciplinas é “só pró-forma”,

produziu o sentido de que a integração de conteúdos não acontece como deveria, se

configurando como um discurso retórico.

O Prof. André afirmou que os professores das disciplinas das séries finais

(formação específica) veem as disciplinas das séries iniciais (formação geral ou

básica), “apenas”, como pré-requisito necessário para o desenvolvimento das

primeiras, mas comparou essa relação com a necessidade que temos do “lixeiro” (“a

gente precisa do lixeiro, mas quer que ele fique cada vez mais longe da gente”). Um

dos sentidos apreendidos é o de que, embora reconheçam a necessidade das

disciplinas básicas, não valorizam os professores que as ministram e, arriscamos

dizer, que mantêm até certa distância, demonstrando superioridade hierárquica,

quando ele afirmou que “é necessário que eu vá lá, deixe o lixo e ele pega. Se eu

não encontrar com ele, ótimo. É um serviço que eu preciso que seja feito, e bem

feito”. Com isso, pareceu apontar, também, a inexistência de diálogo entre eles

como obstáculo para construir algum tipo de integração, enfatizando as relações de

poder na instituição como limites para a construção da integração.

98

A metáfora do lixeiro expressa sua visão de que os professores das séries

finais julgam o trabalho dos professores das séries iniciais como bem feito ou não, a

partir da “limpeza bem feita”, ou seja, da reprovação no início do curso, para que

recebam um número menor de alunos ao final do curso.

O Prof. André recorreu a uma situação hipotética de aprovação em massa

nas séries iniciais, que denominou de “manifesto”, como uma forma de mudar a

perspectiva dos professores das séries finais. Diante dessa nova situação, que

implicaria o aumento do quantitativo de alunos em sala de aula, eles poderiam,

segundo o professor, “entender as questões”.

Já tendo perguntado sobre dois sentidos de formação integral, um oficial e

outro de integração de conhecimentos, parti para um terceiro, que seria o sentido de

uma formação mais ampla. Perguntei, fundamentalmente, se ele percebia alguma

preocupação no meio institucional com essa formação. O Prof. André, nas palavras

iniciais de seu enunciado, disse haver essa preocupação, mas, ressaltou que é uma

posição pessoal e não institucional ou curricular. Mais adiante, assumiu não saber se

realiza ou não essa formação, basicamente por não ter contato com os documentos

oficiais que contêm as diretrizes para a EPTM. Convicto, afirmou que os demais

professores da instituição também desconhecem essas diretrizes e, assim, apontou

uma implicação, percebida na superfície de seu enunciado pela estrutura

composicional: “Logo, o que a gente tem é um festival de boa vontade, é a legião da

boa vontade da Química”, ecoando em seu discurso a falta de diretriz para o grupo.

É como se dissesse que cada um faz o que acha melhor e cada um define formação

integral individualmente.

Ao enunciar “a gente vai trazendo questões para a cena da questão ambiental

sim”, parece indicar que se mobiliza para introduzir a mencionada questão

ambiental, na tentativa de implementar a formação integral. Apreendemos, também,

que, ao evocar essa questão, aproxima a introdução de temas ambientais à

implementação da formação integral, ainda que com restrições, por não se organizar

a partir das diretrizes e não ser cobrada dos alunos em um processo de avaliação.

A apreciação valorativa evidenciada no discurso do Prof. André em relação ao

processo de avaliação se acentua, na medida em que a considera meio de legitimar

a formação integral (“Vou chamar aqui só uma coisa que é muito importante: essas

questões todas que podem estar pontuadas como itens de uma formação integral,

elas têm que, em algum momento, estar incluídas no processo de avaliação daquele

99

sujeito”). O professor defendeu que tem que deixar claro para o aluno que “isso está

sendo contado para que ele progrida no curso, sendo observado”. Com esse

comentário, o professor parece validar e garantir a realização da formação integral a

partir da submissão dos alunos a algum tipo de controle (de observação,

mensuração) e que, sabendo que será avaliado, passe a valorizar os “itens” (ou as

novidades no ensino que, por ventura, venham com a implementação) da formação

integral. Nessa visão, ecoa em seu discurso a autoridade da avaliação, concebida

como instrumento de poder (controle), capaz de revestir de valor toda e qualquer

atividade relacionada ao processo de ensino e aprendizagem.

As palavras finais desse enunciado refletem e refratam a realidade

institucional, no que diz respeito à falta de um projeto comum que vise à formação

integral e ao desconhecimento das diretrizes oficiais, admitindo, o professor, não

serem esses “os documentos orientadores da atividade docente” na instituição. O

uso dos marcadores linguísticos “incrível” e “impressionante”, em “não se conhecem

esses documentos oficiais. Incrível, né, impressionante”, e a entonação com se

expressou no momento da entrevista para a sua audiência social, revelam o quanto

incomum, extraordinário julga esse desconhecimento. Uma interpretação possível

seria a de que ele considera que os documentos oficiais deveriam ser reconhecidos

e apropriados no âmbito da instituição como diretrizes da prática pedagógica que

visasse à formação integral.

f) Apresentação do conhecimento científico

A resposta do Prof. André sobre a sua visão do modo como o conhecimento

científico é apresentado na formação profissional estabelece uma apreciação

valorativa do professor em relação ao objeto: “É a mais careta possível.

Impressionante, impressionante...”. A seleção dos recursos lexicais e a repetição dos

adjetivos produz discursivamente o sentido de objeção do professor em relação à

visão de Ciência construída na formação técnica.

Traz, para o enunciado, a relevância da discussão sobre o conhecimento

científico para ele e para a sua formação. Essa valoração se estende à formulação,

à escrita e à escolha do léxico nos relatórios de avaliação produzidos pelos alunos.

Mais uma vez, qualificou o modo de ensinar o conhecimento científico como

“careta”, acrescentando a essa qualificação a palavra “ingênua”, e o considerou

como “quase positivismo lógico”. O uso do recurso linguístico “quase”, no que

100

acabou de enunciar, pode ser interpretado como uma tentativa de atenuar o sentido

produzido, em função da sua audiência social (destinatário real, suposto e

sobredestinatário), evitando, talvez, uma generalização indevida dessa adjetivação.

g) O papel da pesquisa

Para falar da pesquisa, o professor incorporou ao seu discurso a voz

institucional, colocando em evidência as atividades que são realizadas no Campus I,

durante a Semana da Química. Ao focalizar tal atividade em seu discurso, expressou

um acento de valor a este evento, também apreendido na escolha do recurso

linguístico “interessante” para qualificá-lo. Declarou que, por reconhecerem a

tradição desse acontecimento, os alunos, buscam junto aos professores, orientações

para desenvolver seus projetos de pesquisa.

A posição que o Prof. André assumiu em relação ao tipo de pesquisa que

realiza com os alunos, é marcada na superfície do seu enunciado, quando diz que

oferece “projetos de pesquisa básica: pesquisa, reflexão, intervenção, debate...

Básicas. Raramente aplicada”, relacionando tal escolha ao seu interesse pessoal

pela pesquisa básica.

Demonstrando pressa, talvez porque fosse dar aulas, ou para passar à

pergunta seguinte, com a intenção de imprimir velocidade à interação para finalizá-la

o quanto antes, ou ainda por considerar que atingiu a exauribilidade máxima do

conteúdo do objeto, o professor perguntou: “Qual é a outra questão?”

Tendo respondido ao professor que era sobre a importância da pesquisa, o

professor disse que é no âmbito dessa atividade que se revela “a qualidade do

material humano que a gente tem e do interesse”. Atribui, às atividades de pesquisa,

a capacidade de aproximar professor e aluno e o incentivo pela crescente vontade

de aprender.

Após relatar que é desse grupo de alunos interessados em pesquisar que

escolhe o seu bolsista de iniciação científica, o professor marcou seu lugar social

como pesquisador e o interesse em trabalhar com alunos motivados.

O Prof. André, na sequência enunciativa, aproximou o trabalho com a

pesquisa à sua visão de formação integral, explicando como a segunda se realiza a

partir da primeira, na medida em que os alunos são incentivados a “trabalhar em

grupo, lidar com a diferença, [...] tomar decisões, aprender como colocar a sua

decisão, respeitar a decisão do outro, no sentido da ajuda e da compreensão.” Ele

101

considera que tais atividades conduzem os alunos a um amadurecimento, capaz de

ajudá-los a compreender e a aceitar os aspectos limitantes que se impõem ao longo

da pesquisa.

h) Qualidade

Ao final da entrevista, solicitei ao professor Prof. André que relacionasse, no

máximo, cinco perspectivas de qualidade para a educação científica. No Quadro 5,

está reproduzido na íntegra o quê e em que ordem o professor respondeu.

Quadro 5: Respostas do Prof. André à atividade escrita sobre Qualidade

1. Menos alunos em sala.

2. Organização escolar adequada.

3. Adequação de espaço físico.

4. Mais Filosofia.

5. Menos conteúdos específicos.

Observamos que, nas perspectivas de qualidade registradas pelo professor

André, ressoam valores e intenções indicados na análise dos enunciados

precedentes. A perspectiva “Menos alunos em sala” pode ser apreendida,

subliminarmente, quando enunciou a respeito das dificuldades que os professores

dos primeiros períodos estão atravessando, por conta do alto número de

reprovações. A partir da realização dessa atividade, foi possível considerar que o

acento de sua reclamação não recai, apenas, na problemática da reprovação em si,

mas, nos reflexos sobre o aumento do quantitativo de turmas e alunos nas séries

iniciais, nas quais trabalha.

As perspectivas indicadas nos itens 4 e 5, já enunciadas ao longo da

entrevista, confirmam o peso que o professor dá à abordagem filosófica do

conhecimento científico, na equação da qualidade do ensino de química, no âmbito

da formação técnica.

Já as perspectivas enunciadas nos itens 2 e 3 não foram captadas em sua

fala até a análise da realização desta atividade, dificultando interpretações sobre

outros acentos e intenções, para além do que essas expressões minimamente

sugerem, que seriam o valor depositado na infraestrutura e no aspecto

102

organizacional para o bom funcionamento da escola. Juntamente com o aspecto

operacional, classificado pelo professor como primeiro lugar, os aspectos

classificados como 2o e 3o lugares não se destacaram na análise da entrevista, sob

o ângulo das perspectivas de qualidade.

6.2 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA TAÍS

6.2.1 O contexto extraverbal

Nas condições imediatas de entrevista11 com a Profa. Taís, não ocorreu nada

de extraordinário (no plano do visível) que pudesse interferir na interlocução, além

do movimento corriqueiro dos alunos nos corredores da escola. Estávamos em uma

sala de aula desocupada, apenas ela e eu, após o término da jornada diária de aulas

da professora. Dispúnhamos de sessenta minutos livres para a entrevista, que durou

quarenta e cinco minutos.

Em relação ao nosso conhecimento comum da situação social, vale destacar

que trabalhamos juntas na escola A, Campus I, por cerca de vinte anos como

professoras dos cursos técnicos. Portanto, vivenciamos juntas as reformas da

educação profissional desde a década de 90, quando, até então, a formação técnica

era oferecida de forma integrada ao ensino médio, passando pela separação

compulsória em 97 e pela liberdade para a integração a partir do Decreto Nº

5.154/2004. Nessa época, compartilhamos as discussões que polemizavam as

consequências dessas determinações legais para o ensino técnico.

Vivenciamos juntas momentos de tensão política em relação à possibilidade

de privatização da escola A, arrochos salariais, escassez de recursos materiais e

humanos, pressão política para transferência da escola do centro da cidade para a

baixada fluminense, com grande repercussão na mídia nacional, tudo isso na era

FHC. Mais recentemente, em 2008, vivenciamos, juntas, a criação dos institutos

federais, a partir dos centros federais de educação ciência e tecnologia e, embora

não tenhamos discutido sobre a intensificação da política de expansão da educação

11

A transcrição completa da entrevista com o Profa. Taís encontra-se no Apêndice 3 (p.214).

103

profissional técnica do governo federal a partir de 2003, sabíamos da importância

dada a essa via de escolarização pelas instâncias governamentais.

No momento da entrevista, era conhecimento comum entre nós, por sermos

professoras atuantes no ensino técnico de nível médio, a existência dos PCNEM

como política curricular oficial para o ensino médio e as diretrizes curriculares

nacionais para a formação técnica. Também sabíamos que atuávamos em partes

diferentes do currículo, a professora/pesquisadora, na formação reconhecida como

geral e Taís, na específica; sabíamos das relações de poder que hierarquizavam

curricularmente os conhecimentos específicos sobre os gerais e o impacto dessa

hierarquização nas relações interpessoais no âmbito da instituição; sabíamos da

importância da Coordenação de Integração Empresa-Escola (CoIEE) para a

instituição.

Sempre mantivemos um bom nível de relacionamento, diálogo e respeito e,

frequentemente, compartilhávamos nossas ideias sobre o ensino de ciências e

matemática nos ambientes escolares, preocupadas em oferecer, o que parecia, em

nossas perspectivas à época, ser o melhor para os nossos alunos, comuns em

alguns dos períodos semestrais. A Profa. Taís também sabia que a pesquisadora

recentemente havia passado a ocupar um cargo de direção na escola A.

A avaliação presumida entre a professora Taís e a pesquisadora, frente à

situação social de pesquisa, também pode estar relacionada ao reconhecimento da

importância em se discutirem temas referentes ao ensino de Química no contexto do

curso técnico, em um momento no qual a formação profissional técnica ganha

centralidade nas políticas educacionais do país. Pode existir, também, um valor

presumido em relação ao momento da entrevista, relacionado aos seus destinatários

supostos, como oportunidade de falar sobre a sua prática para uma professora e

doutoranda de um programa de pesquisa conceituado, constituindo escuta

privilegiada no sentido de provocar eco na academia.

6.2.2 Perspectivas da professora Taís

a) Objetivos do ensino de química

Ao tecer considerações a respeito do objetivo do ensino de ciências (EC) na

formação profissional, explicitado nos documentos oficiais para a EPTM, como

104

sendo o de formar para o trabalho, a Profa. Taís estruturou a sua fala fazendo uso

do indeterminador do sujeito “se” na oração “sempre tem que se levar em

consideração o que você quer da escola [...]”; (quem?). Uma hipótese para analisar

o efeito dessa indeterminação sobre o sentido produzido no enunciado aponta para

a naturalização desse objetivo, a partir do momento em que é feita a opção por esta

via de escolarização, seja pela família dos alunos ou pelos próprios alunos.

Demonstrou, inclusive, que compartilha dessa visão ao reconhecer que, uma vez

escolhida a formação técnica, está posto que o ensino de química deva ter como

objetivo central a formação para o trabalho, em atendimento às solicitações desse

mercado. Em seguida rompeu com esta indeterminação para se posicionar, (“Eu

acho”, “Eu vejo”, na 1ª pessoa do singular) em relação à avaliação do curso técnico

em Química, o qual julga como “de excelência” pelo direcionamento dos conteúdos

de química ao mercado de trabalho. Os verbos usados no presente do indicativo

indicam que os processos a que se refere (“Eu vejo isso nas visitas que eu faço de

supervisão de estágio”) são simultâneos ao momento da fala do enunciador, ou seja,

a professora, hoje, ocupa dois posicionamentos: além de professora de Química,

atua como supervisora de estágios.

Ao interrogar “Você sabe o que isso significa?” acentua o valor que dá à

avaliação feita pelos representantes do setor produtivo sobre os estagiários

estudantes do curso técnico em química, por ocasião de suas visitas de supervisão

de estágio. É como se ela dissesse: significa muito! Ao mesmo tempo, parece

reiterar a importância que dá ao objetivo do ensino de química ser aquele que

oferece ao aluno o acesso à maioria do conteúdo demandado pelo setor, e à

habilidade de aplicá-lo nesse contexto.

Mesmo sem fazer referência direta, é possível dizer que a Profa. Taís

incorporou, em sua fala, a perspectiva dos discursos institucionais que pregam o

objetivo do EC de formar para o trabalho, emitidos pelas instâncias internas à

Instituição, como a Pró-Reitoria de Ensino Técnico (PROET), a Coordenação de

Integração Empresa-Escola (CoIEE), o Planejamento Político-Pedagógico

Institucional (PPI), também preocupadas com a performance do egresso no mundo

produtivo. Tal desempenho é avaliado, internamente, pela supervisão de estágio e

atestada pelos representantes das empresas, por ocasião de suas visitas de

supervisão de estágio. Essa convergência de propósitos para o ensino de ciências

na formação profissional pode ser evidenciada quando ressoa, no enunciado da

105

professora, a voz dos representantes do setor produtivo, ao avaliarem os alunos:

“eles são ótimos, eles têm excelente conteúdo”. A professora optou pela

representação do discurso citado (ou direto), em que se preserva a integridade e a

autenticidade do discurso de outrem. Interpretamos que, ao incorporar à sua fala,

esses marcadores, tentou comprovar e reforçar o acento que dá a essa avaliação.

Observamos, também, que, ao supervisionar o estagiário, a professora demonstra

preocupação com a satisfação do aluno no momento em que executa a sua função

de técnico, no sentido de saber se ele está conseguindo aplicar os conteúdos que

aprendeu e saber, também, se há consonância entre os conteúdos ensinados na

escola A e as demandas atuais do setor produtivo (“se os conteúdos que ele

aprendeu, ele está conseguindo aplicar lá com facilidade, se tem alguma coisa que

ele não sabia fazer e a escola é responsável por ele não saber aquele conteúdo”).

Embora afirme que o currículo proposto pelo curso certamente atenda ao

mercado de trabalho, reconheceu também a impossibilidade de atender totalmente à

demanda empresarial, diante da diversidade e especificidade de cada empresa na

contemporaneidade. Com esse comentário, interpretamos que a professora parte do

pressuposto de que este objetivo é legítimo e que ela se atém na avaliação de seu

cumprimento pela escola.

Diante da indagação acerca do estabelecimento de outros objetivos para o

ensino de Química, no contexto da EPTM, a professora Taís expressou um acento

de valor em relação à educação cidadã, ao estímulo ao sentimento de solidariedade

diante de problemas sociais, a alunos politizados, no sentido de serem estimulados à

autonomia e agirem em defesa de seus direitos. Com isso, acabou por expressar a

importância que dá ao estabelecimento de outros objetivos para o processo

formativo profissional técnico, ainda que restritos ao interior da escola.

Observamos, também, que ao enunciar os objetivo mais amplos para o EC,

as formas linguísticas que estruturam o seu enunciado dão margem a pensarmos

que este objetivo cabe a outros espaços escolares (“eu acredito que ela (a escola)

trabalha bem isso, ela trabalha bem cidadania”). Essa interpretação é confirmada

quando percebemos o valor que Taís imprimiu a essa dimensão de formação, ao

declarar ter ficado emocionada com as apresentações de teatro e do coral dos

alunos (iniciativas da escola), evidenciado pela sua entonação expressiva (“ e foi a

coisa mais linda”). Com isso, trouxe para a sua fala outra perspectiva de formação

do técnico em Química, além da restrita aos aspectos cognitivos e utilitaristas. No

106

entanto, ao afirmar “Então eu acho que a escola trabalha todo o conjunto. E prepara

o indivíduo para a vida profissional, para seu desenvolvimento como cidadão

também ela trabalha”, parece construir para a formação integral um sentido de

soma, de superposição e não de integração das dimensões trabalho, ciência, cultura

e tecnologia.

A preparação para a pesquisa é outra faceta de formação que compõe o

“conjunto” da formação profissional, na visão da professora. Mais uma vez, a

professora parece se distanciar do papel de protagonista em trabalhar dimensões

mais amplas, atribuindo à escola este papel:“ela (a escola) procura desenvolver o

aluno para a pesquisa”, “eles ficam pesquisando meses e meses”, “ela (a escola)

tem esse lado bom também”. Inferimos que a professora concorda, admira e

considera importante trabalhar todas essas dimensões, mas, não assume,

discursivamente, autoria sobre esses processos.

b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação

Para falar da seleção de conteúdos, a Profa. Taís estruturou o seu enunciado

com formas linguísticas que apontam para um sentido de submissão da ação do

enunciador às determinações institucionais, indicando que segue os conteúdos que

constam de uma ementa elaborada no âmbito institucional. Tal sentido é marcado no

enunciado pelas expressões: “os conteúdos já estão selecionados desde que eu

entrei aqui ”; “a gente tem uma ementa e, dentro daquela ementa, a gente

desenvolve aqueles conteúdos”; “o que todos os livros abordam e a gente tem que

abordar” . Por outro lado, o marcador “a gente” produz um efeito de sentido de que

essa perspectiva pode corresponder, também, à do grupo social a que pertence, isto

é, a seus colegas de trabalho. Os marcadores “desde que” e “tradicional”, nas

expressões “desde que eu entrei aqui”; “eu ensino o tradicional”, produzem um efeito

de sentido que sugere uma posição tradicional da enunciadora em relação à seleção

de conteúdos.

Concorda com o caráter utilitarista e pragmático daqueles conteúdos, efeito

de sentido observado na pergunta retórica – “porque são os conteúdos que eles vão

precisar para desenvolver o trabalho deles, tá?”. A forma como se refere ao

conteúdo do seu enunciado (expressividade e entonação) imprime um efeito de

estabilização e naturalização sobre o seu posicionamento.

107

Chamou-nos atenção a frequência com que a professora faz uso do recurso

linguístico “a gente” (“a gente tem uma ementa e, dentro daquela ementa, a gente

desenvolve aqueles conteúdos que a gente... [...] o que todos os livros abordam e a

gente tem que abordar)”. Ousamos interpretar que a repetição dessa construção do

sujeito parece uma forma de a Profa. Taís descentralizar a sua atuação individual,

compartilhando, na maioria das vezes, a responsabilidade da escolha dos conteúdos

com a equipe de trabalho e com as determinações dos documentos oficiais.

Diferentemente, o uso do pronome de primeira pessoa, destacado na

expressão “em cima deles (dos conteúdos) eu desenvolvo as minhas provas”, são

marcas que colocam em evidência a voz da entrevistada. Interpretamos que a

professora assume para si o papel de protagonista da avaliação de seus alunos. É

um posicionamento diferente do assumido em relação à seleção de conteúdos,

sobre a qual indicou não ter nenhuma ingerência. No entanto, sobre as provas, dá a

entender que o poder de decisão é seu.

No enunciado da Profa. Taís é possível perceber o sentido que atribui ao

termo metodologia, ao associá-lo exclusiva e enfaticamente ao uso dos recursos

didáticos que utiliza para ensinar: o quadro (negro ou branco), o giz e as listas de

exercícios (“a metodologia eu uso quadro e giz”).

Na composição do enunciado, os pronomes de primeira pessoa são marcas

da enunciação que colocam em evidência a voz da Profa. Taís (“eu uso quadro e

giz, porque eu preciso que o aluno tenha uma visão da minha molécula”).

Na sequência enunciativa, ao explicar a sua intenção de utilizar o quadro e o

giz para ensinar, foi possível perceber explicitamente o endereçamento do seu

enunciado à entrevistadora, que é professora de matemática, quando busca sua

concordância e equipara a necessidade do uso desses recursos tanto à química

quanto à matemática (“não é verdade?É a mesma coisa que ensinar matemática.

Você precisa de quadro e giz [...] você sabe como é integral, tem que mostrar todas

aquelas etapas”). Assim, projetou suas concepções de ensino como sendo também

as da entrevistadora.

Ao contrário da seleção de conteúdos, a professora Taís assumiu total

controle sobre a escolha dos recursos que usa para ensinar, apesar de justificada

pelas características intrínsecas do conteúdo de Química, certa de que eles

atenderão a sua necessidade de ilustrar o desenvolvimento de sua aula.

108

É possível dizer que a Profa. Taís assumiu a perspectiva do discurso do

ensino expositivo (“Você precisa de quadro e giz [...] Você está num quadro. [...] A

gente precisa de um quadro [...] Temos que usar o quadro, entendeu?”. Além disso,

conferiu, ao uso do quadro, a propriedade de facilitar a visualização da molécula por

meio do que ela registra no quadro. Foi possível perceber, pela entonação de seu

enunciado, uma resistência da professora Taís em relação à apropriação dos

recursos multimidiáticos para o ensino da química em suas aulas (“Mas essas aulas

assim, tipo multimídia são muito pouco usadas, pelo menos na minha matéria”),

indicando que tal apropriação esteja restrita a outras disciplinas como “História e

Geografia”, talvez por achar que essas disciplinas tenham características intrínsecas

para justificar tal uso.

Na enunciação da Profa. Taís, percebe-se que a apropriação que faz do

conceito de avaliação no processo de ensino e de aprendizagem de química

aproxima-se da visão determinística de que é capaz de “observar se ele (o aluno)

aprendeu” a matéria que ensina. Disse considerar o “crescimento” do aluno ao longo

do período, no caso, um semestre e o seu desempenho quanto à frequência,

participação e realização das tarefas escolares como critérios de avaliação,

afirmando realizar, assim, uma avaliação qualitativa do aluno (“não é

numericamente, não é por uma nota. Tem toda uma análise qualitativa também do

aluno”). Ao mesmo tempo em que traz para o discurso a voz que busca superar a

concepção de avaliação relacionada apenas à nota alcançada na avaliação de

conteúdos ensinados, percebe-se que restringe essa tentativa de superação a um

determinado grupo de alunos (“agora, tem aquele aluno que não consegue tirar a

nota”), o que sugere a apropriação do conceito de avaliação qualitativa apenas como

mais um recurso para compor a “nota” e os critérios de aprovação ou reprovação

desses alunos (“tudo isso serve de avaliação na hora da...para dizer se ele (o aluno

que não conseguiu a nota) vai ser aprovado ou reprovado”).

c) O papel do laboratório no EC

A Profa. Taís relaciona o papel do laboratório ao “conhecimento das técnicas”,

emitindo um julgamento de valor (“é importante para ele desenvolver lá o trabalho

dele”) dirigido à formação para o trabalho e, por isso, a importância em observar a

“desenvoltura dele”, “autonomia do trabalho dele”. Observamos um distanciamento

de seu protagonismo, ao discorrer sobre os benefícios da participação em atividades

109

desenvolvidas no laboratório para os alunos, produzindo um sentido, para o seu

discurso, de não envolvimento nesse processo ou na construção de uma concepção

própria do uso do laboratório no ensino de química. A ausência de conjugação

verbal na 1ª pessoa do singular ou do plural, quando descreveu as atividades de

laboratório (“Mas à medida que eles vão começando, vão pegando, tendo intimidade

com o laboratório [...] vão começando a desenvolver com mais tranquilidade as

tarefas que lhes são dadas”) corrobora esta interpretação, assim como a presença,

ao longo do enunciado, diversas vezes, do marcador “é importante que”,

caracterizando, também, um discurso despersonalizado.

A professora parece romper com esse distanciamento ao se fazer representar

no discurso pelo indeterminador “a gente”, para expressar o valor que também dá ao

uso do laboratório, como um espaço onde “a gente junta o conhecimento da teoria,

aplicado na prática”, como importante para o ensino de Química.

É provável que, ao argumentar acerca do comportamento do aluno no

laboratório - “é importante [...] educá-lo também como se comportar num laboratório

é importante. Tem que ter seriedade dentro do laboratório” - esteja dialogando com

as perspectivas das instâncias que discutem sobre segurança no trabalho e

insalubridade, embora a Profa. Taís não esclareça quais seriam as suas reais

preocupações.

d) Interesse e desempenho dos alunos

Para a Profa. Taís, o desempenho e o interesse do aluno passam pela

excelência da escola A, em relação às escolas privadas e estaduais, ou seja, os

alunos da escola A são os melhores, porque são selecionados por meio de um rígido

e competitivo processo seletivo. Os professores que reprovam na escola A não

conhecem as escolas de outras redes de ensino como ela. Interpretamos que

classifica o desempenho dos alunos que frequentam essas outras redes como muito

ruim (“Eu acho que eles nunca trabalharam em escola particular, ou do Estado,

entendeu?”). Se conhecessem, não reprovariam os da escola A. Outro sentido dado

ao objeto do seu discurso relaciona-se à adolescência, etapa responsável, segundo

a professora, pelo mau desempenho desses alunos. Disse haver um grande índice

de reprovação nos dois primeiros períodos, mas ao mesmo tempo se exime de

qualquer preocupação com isso, deixando-a para a escola, ao não se fazer

representar como sujeito da frase “A escola também está preocupada com isso”. Por

110

fim, tece seu ponto de vista sobre o desempenho e o interesse do aluno, a partir da

visão de que os alunos chegam com um desempenho melhor ao terceiro período, no

qual trabalha, porque “já estão um pouco calejados” e “já levou umas pancadinhas

no primeiro e no segundo períodos” e, por isso, “são tranquilos para trabalhar com

eles [...] em termos de interesse, participam [...]”. Inferimos que a enunciadora atribui

o interesse demonstrado pelos alunos do terceiro período ao caráter rígido e seletivo

dos períodos iniciais do curso. O uso dos recursos linguísticos “calejados” e

“pancadinhas” indica o alto nível de exigência e o provável sofrimento dos alunos

nesse processo formativo.

Depreendemos daí que, ao associar exclusivamente desempenho e interesse

do aluno no/pelo ensino de Química à seletividade e às características da

adolescência, a professora silenciou outras concepções de ensino, relacionadas, por

exemplo, às suas aulas, às suas metodologias de ensino, à abordagem dos

conteúdos, avaliação e forma como procura motivar seus alunos.

e) Formação Integral

Nas palavras iniciais do seu enunciado, a Profa. Taís anunciou o ponto de

vista expresso ao falar sobre o conceito de formação integral: “É... planos,

conteúdos, ensino médio e profissional? Acho que sim.”. Ela acha que a formação

integral é atingida pela escola A, avaliando o desempenho dos alunos egressos na

interface com as diferentes escolhas e apropriações que fazem do conhecimento

adquirido por esta via de escolarização. Assim, acentuou o valor na excelência do

ensino ministrado na instituição, usando como balizadores desse status a aprovação

no vestibular e a avaliação dos alunos em estágio, realizada pelos representantes do

setor produtivo. Desse modo, a professora construiu a sua apreciação avaliativa

dialogando com o atendimento às exigências da universidade e do mercado de

trabalho, como comprovações que garantem a realização da formação integral na

escola A. (“Eu vejo que nós temos um alto índice de aprovação no vestibular ou a

gente tem sempre uma parte de aceitação e de elogios quanto à escola, na parte

profissional. Acho que a gente consegue atender sim essa formação integrada”).

Ao ser interpelada pela pesquisadora sobre outro sentido possível para a

formação integral, em relação à integração de conteúdos da formação geral e

formação profissional, a professora reagiu à pergunta, chamando a atenção para o

fato de, na escola A, não haver esse tipo de separação. Composicionalmente,

111

emprega o recurso linguístico “aqui”, (“Aqui na escola não tem essa parte: essa aqui

é da educação profissional, essa aqui é do núcleo comum. Aqui não tem isso. A

gente trabalha tudo ao mesmo tempo.”) produzindo o sentido de demarcação

espacial da escola onde trabalha como sendo distinto dos espaços das demais

escolas, sejam elas da mesma rede de ensino ou não. Ela disse que essa

classificação pertenceu a um passado marcado pela separação compulsória entre

ensino médio e formação técnica, sugerindo o sentido de que hoje essa separação

não mais acontece.

No entanto, ao enunciar logo a seguir que “Na verdade ficou até mais ou

menos parecido, porque, o que acontece no curso técnico? São os mesmos

conteúdos, aprofundadamente, e algumas outras matérias, né?”, evidenciou a

complexidade dialógica da enunciação, neste caso, apreendida no conflito entre os

sentidos de integração curricular, o que deixou ainda mais nebuloso o que de fato

mudou, em relação à organização curricular do passado. Se ficou mais ou menos

parecido, então continuam separados, ou não? Há aqui, também, o sentido de

autonomia para gerenciar os princípios que regem a escola e seu currículo. Tal

sentido é produzido a partir do lugar social e ideológico de onde a Profa. Taís falou:“

e aí a gente separou um pouco [...]”.

Observamos também que, para explicar como funciona hoje, separou os

conteúdos em dois blocos: “os mesmos conteúdos” e “algumas outras matérias”.

Nessa separação, percebemos um sentido de depreciação do segundo bloco de

matérias. Efeito de sentido marcado linguisticamente pelo advérbio de modo

“aprofundadamente”: o primeiro bloco é ensinado “aprofundadamente”, mas o

segundo bloco não o é. Seguindo esse raciocínio, uma pergunta aqui se impõe:

quais seriam essas “outras matérias” que parecem não merecer serem ensinadas

aprofundadamente? Estariam elas incluídas no grupo das disciplinas de ciências

naturais e matemática? Ciências humanas? Ciências sociais?

Na sequência da interação verbal, no momento em que ainda falávamos da

integração de conteúdos, a Profa. Taís perguntou: “Agora, você está falando da

interdisciplinaridade das matérias?” Tendo eu respondido que sim, a professora

avaliou: “Isso aí é difícil. Isso é muito bonito, mas é muito difícil” e julgou que ela é

quase impraticável em qualquer instituição de ensino, privada ou pública.

Mais uma vez, a recorrência no emprego do recurso linguístico “aqui” produz

um sentido de marcar a escola A como espaço enunciativo de produção de sentidos

112

para o ensino. (“Não. Aqui não. Aqui a gente não tem essa preocupação não. O

ensino interdisciplinar, não”) Em seguida, ao enunciar quais são as reais

preocupações da escola, empregou o pronome possessivo de 1ª pessoa: “de que o

meu conteúdo atenda aos cursos, aos períodos que vêm [...]”, cujo efeito apreendido

é o de que, provavelmente, tentou harmonizar o seu ponto de vista com o currículo

da escola A. É possível interpretar, ainda, que, ao apontar essa sintonia com o

currículo, a professora tenha buscado legitimar a sua perspectiva.

Ao ser questionada sobre as dificuldades para realizar a interdisciplinaridade,

a Profa. Taís construiu o seu discurso pautando-se nas consequências desse

princípio sobre o ensino, acentuando um valor negativo. Isto porque desorganizaria

o programa, interferindo na ordem da apresentação dos conteúdos, com a qual os

professores das diferentes disciplinas já estão acostumados a trabalhar. Outra

dificuldade indicada pela professora como empecilho para o desenvolvimento da

interdisciplinaridade diz respeito ao uso de livros didáticos no formato de volume

único que, apesar de não serem “bons” na apreciação da professora, (“são livros

muito vazios”) têm que ser usados, considerando que os pais dos alunos investiram

nesse material escolar (“vai dificultar porque o pai, comprar um livro que...”).

Em sua visão, a realização da interdisciplinaridade dependeria de todos os

professores ensinando sobre o mesmo assunto ao mesmo tempo (“eu acho que é

muito complicado você juntar todo mundo pra poder... todo mundo estar falando

daquele mesmo assunto, cada um com a sua visão, naquele dado momento”).

Explicou, então, por que essa abordagem seria complicada: “Porque a gente tem

que montar um programa que é sempre cobrado no vestibular. Não pode mudar a

ordem, senão você não consegue estabelecer a sua ordem.” Neste caso, supondo-

se que o programa curricular de uma escola é elaborado em grupo, o uso do

marcador “a gente” dá margem à interpretação de que a preocupação com a ordem

dos conteúdos ,visando à preparação para o vestibular, é um objetivo compartilhado

pela escola, no sentido de buscar a formação integral.

Nas palavras finais do seu enunciado, foi possível apreender, ainda, que a

professora Taís considera impraticável a interdisciplinaridade na atual estrutura

curricular, admitindo ser possível apenas se houver uma mudança em “toda a nossa

abordagem. Mude todo o programa”. Este final de sua enunciação indica que, hoje,

ela e seus pares conseguem realizar no máximo alguns trabalhos interdisciplinares,

113

mas, “o conteúdo todo de uma escola, acho que não dá não, naquele mesmo

semestre, naquela mesma semana. Eu acho muito complicado.”

f) Apresentação do conhecimento científico

Nesse enunciado, a professora modalizou seu discurso, enfatizando a

importância que dá à organização curricular sequencial e ordenada dos cursos

técnicos, evidenciada pela escolha dos marcadores léxicos: “a coisa é toda muito

gradativa”, “à medida que vou passando os períodos”, “aumentando de período”. Daí

se depreende que a apropriação que fez do conteúdo temático referenciado na

pergunta foi apenas no sentido dessa organização curricular, o que pode indicar um

afastamento da autora de outras apropriações possíveis, como a preocupação com

a história da química, a produção do conhecimento químico ou a relação desse

conhecimento com a sociedade e o ambiente. Emprestou um tom apreciativo ao

enunciado, quando se refere às disciplinas técnicas, valorizadas em seu discurso ao

argumentar: “Onde acabam as disciplinas do núcleo comum, e é aí que existe mais

um aprofundamento e existem mais as matérias técnicas.” Interpretamos que é esse

momento que ela considerou para valer, no qual é importante aprofundar os

conteúdos das disciplinas (apenas as técnicas). Assim, ela restringiu o conteúdo

científico a essas disciplinas, para justificar sua defesa em relação à organização

curricular adotada.

g) Documentos oficiais

No início desse enunciado, identificamos o advérbio “já”, recurso linguístico

que assinala um tempo, acompanhado do verbo “ler” usado no passado (“Já. Eu já li

alguns capítulos”), o que parece indicar uma ação concluída no passado e sem

continuidade no presente. Tal uso nos dá pistas de que a consulta a tais

documentos não é atualizada, mas, foi realizada em algum momento, mesmo que de

forma restrita (“alguns capítulos”). A seguir, queixou-se da introdução obrigatória das

disciplinas de sociologia e filosofia em todas as séries e também da língua

estrangeira, o espanhol, atribuindo a essa inserção o estrangulamento da grade

curricular (“a escola já tem uma grade curricular apertada [...] você há de convir que

ela vai ficar muito mais apertada ainda”). É possível considerar que não atribuiu

acento de valor às disciplinas de humanas, mas o fez em relação às disciplinas

técnicas, ao defender o redirecionamento dos tempos de aulas, destinados pela lei

114

às ciências sociais e ao “espanhol”, para as disciplinas específicas para a formação

profissional (“A gente já não tem esses tempos, mas se a gente tivesse e pudesse

usar na formação do aluno, na formação profissional”). Identificamos uma tentativa

da professora de retificar o que foi dito, (“Não estou dizendo que não seja importante

não”) em contradição com o posicionamento assumido no início do enunciado.

Destacamos, na sequência discursiva, a frase “Haja vista que eles estão sendo

incluídos”, marcada, na enunciação, pelo recurso linguístico da voz passiva para

indeterminar o sujeito verbal da oração, o qual se supõe ser a perspectiva do

discurso oficial (MEC), isto é, um dos determinadores legais das disciplinas

obrigatórias que compõem a grade curricular do ensino médio. O sentido apreendido

é o de que a inclusão das disciplinas filosofia e sociologia, na grade curricular, é

considerada importante por ser uma determinação da legislação educacional.

h) O papel da pesquisa

Questionada a respeito do envolvimento dos alunos, em suas aulas, com

projetos de pesquisa, a professora Taís declarou que, no (terceiro) período em que

leciona, não realiza pesquisa com os seus alunos, desdizendo o que afirmara

anteriormente. Entretanto, em seguida, situou a realização desse objetivo em outros

períodos (“Mas nos outros períodos, sim”). Levando em consideração o nosso

horizonte comum em relação à instituição, seu comentário deixa dúvidas se ela

orienta os alunos oriundos de outro período ou se seus alunos se envolvem com

professores de outros períodos do curso para a realização da pesquisa. Ao

desenvolver como ocorre o processo, ressaltou, em seguida, a ideia que sustenta,

ao longo de todo seu enunciado, de que esta iniciativa parte muito mais dos alunos

do que dos professores (“o que a gente sente na escola é que eles procuram o

professor”), uma vez que essa é uma possibilidade na escola A. Ao desenvolver

como ocorre o processo no qual, segundo ela, a pesquisa nasce de uma ideia e da

iniciativa dos estudantes, a professora Taís lançou mão do discurso direto para

transmitir a voz dos alunos, (“Professora, o que é que eu faço com esse [assunto] o

que é que a senhora poderia me orientar nesse trabalho?”) buscando fundamentar

sua explicação e para dizer que, a partir desse contato, toma conhecimento do tema

de pesquisa de interesse do aluno e o direciona para um professor que tenha o perfil

correspondente à pesquisa em questão.

115

Na sequência da interlocução, perguntei à professora o quanto avaliava

importante envolver os alunos em pesquisa, tendo a professora afirmado que essa

atividade seria boa para o desenvolvimento do aluno. A forma como estruturou seu

enunciado, com a repetição “acho, acho, acho sim”, pode ter tido a intenção de não

deixar dúvidas de que ela a julga importante, considerando o endereçamento à

entrevistadora/professora e pesquisadora na área de educação como o seu

destinatário suposto, para quem, nessas condições de produção, ela talvez jamais

dissesse que não.

Buscando fazer com que ela justificasse a importância afirmada, insisti,

perguntando sobre os princípios e objetivos que julgava importantes nesse

processo. Para responder, a professora silenciou os objetivos e os princípios e

repetiu a dinâmica que ela segue para implementar o processo de pesquisa dos

alunos (“Bom, eu tenho acesso ao orientador. Aí o professor orienta: esse é o teu

assunto. Então você vai procurar tais e tais e tais artigos referentes a esse assunto”).

Em seguida, embora tenha declarado não se envolver diretamente com esse

processo a partir da indicação do aluno para um orientador, a professora trouxe para

o discurso a sua apreciação valorativa em relação a dois aspectos. Um deles seria o

fato de que acha interessante os alunos darem continuidade à pesquisa no ano

seguinte, porque possibilita um aprofundamento do estudo. O outro é que valoriza

tanto a iniciativa como a autonomia do aluno em escolher os temas a serem

pesquisados (“ eles já vão se aprofundando mais naquele determinado assunto que

eles que escolheram. Isso que é importante: Eles escolheram”).

i) Qualidade

Ao solicitar à Profa. Taís que relacionasse, no máximo, cinco perspectivas de

qualidade para o ensino de química, a professora registrou exatamente o que

aparece na ordem apresentada no Quadro 6.

116

Quadro 6: Respostas da Prof. Taís à atividade escrita sobre Qualidade

1. Informação.

2. Fundamentação.

3. Atualização.

4. Necessidade.

5. Prioridade.

Em uma abordagem bakhtiniana, os sentidos apreendidos em qualquer

enunciado estão sempre em relação direta com o contexto de produção e

estabelecidos na interação verbal, seja ela oral ou escrita. Assim, os enunciados que

compõem o quadro de perspectivas da professora Taís, se tomados isoladamente,

são vazios e ininteligíveis. No entanto, no contexto da interlocução entre a

pesquisadora e a entrevistada, seus enunciados simplificados passam a ser plenos

de significação, apontando sentidos de ensino que integram as suas perspectivas de

qualidade. Retornando ao contexto de análise, foi possível tecer algumas relações

entre sentidos dos enunciados registrados durante esta atividade e os analisados

anteriormente.

Os enunciados indicados nos itens 1 e 2, “informação” e “fundamentação”,

evidenciam o acento de valor dado ao conhecimento entendido como informação e

teoria, que fundamentam a ação dos futuros técnicos, ao aplicá-los na função de

trabalho. Essa conexão foi feita a partir do sentido apreendido em “se os conteúdos

que ele aprendeu ele está conseguindo aplicar lá”, na resposta à pergunta sobre os

objetivos do ensino de química. Do mesmo modo, os enunciados “atualização” e

“necessidade” parecem se referir à necessidade de atualizar os conteúdos de acordo

com as solicitações (necessárias) do campo de atuação profissional, apreendido em

“se tem alguma coisa que ele não sabia fazer e a escola é responsável por ele não

saber aquele conteúdo” e “porque são os conteúdos que eles vão precisar para

desenvolver o trabalho deles”, também em resposta à mesma pergunta. A escolha

da palavra “prioridade”, apesar de colocada em último lugar, parece indicar a ideia

de que o sentido de qualidade, construído pelos demais aspectos registrados por

ela, é prioritário para o ensino de química, no contexto da educação profissional.

117

6.3 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR TONI

6.3.1 O contexto extraverbal

No tocante ao horizonte espacial comum, restrito ao momento da entrevista12,

é importante relatar que esta ocorreu em uma sala de aula do Instituto de Educação

(onde o professor também ministra aulas de química para o ensino médio), na qual

se encontravam apenas o professor Toni e a pesquisadora. O local foi sugerido pelo

professor Toni, com a minha concordância, porque os institutos federais estavam em

greve e, também, por ser logisticamente viável para ambos. Nenhum acontecimento

extraordinário pôde ser identificado como capaz de ter influenciado ou atrapalhado a

interlocução durante a entrevista, que ocorreu em clima de tranquilidade e durou em

torno de oitenta minutos.

Apesar de trabalharmos na escola A em diferentes campi, durante seis anos,

nunca havíamos nos encontrado, portanto, também nunca tivemos chance de

conversarmos sobre nossas concepções de educação.

O conhecimento comum entre nós era que eu sabia que o professor Toni

ministrava aulas de química no Campus II e que ele, provavelmente, sabia (pela

assinatura no texto do e-mail), que eu ocupava, naquele momento, um cargo de

direção na reitoria da instituição; sabíamos, também, que atuávamos na parte da

denominada formação geral do currículo do curso técnico em Química; sabíamos

das discussões que estavam acontecendo, na escola A, sobre a carga horária

docente, como um dos pontos a serem tratados no grupo de trabalho que cuida das

demandas internas à instituição e sabíamos da importância dada aos laboratórios

pela instituição e ao setor responsável pelos estágios para os alunos do curso

técnico em Química.

Como professores atuantes no ensino técnico de nível médio, sabíamos da

existência dos PCNEM, das diretrizes curriculares para a educação profissional e do

projeto político pedagógico da escola A; sabíamos que o Decreto 5.154/2004

instituiu a autonomia para a integração entre o ensino médio e técnico, como

também para os regimes subsequente e concomitante; sabíamos do momento atual

e histórico da grande expansão da rede federal de educação técnica no Brasil,

12

A transcrição completa da entrevista com o Prof. Toni encontra-se no Apêndice 4 (p.218).

118

inclusive da criação dos institutos federais a partir do ano de 2008; sabíamos que o

campus onde o professor atua foi criado recentemente, a partir da política de

expansão, e que, por isso, ainda está se estruturando para um funcionamento pleno;

sabíamos das dificuldades enfrentadas para a implantação de um novo campus, em

parceria com a prefeitura local, bem como da importância de estarmos

constantemente discutindo as diretrizes curriculares para o ensino técnico, no atual

contexto político e social.

Pode ser considerado como presumido o quanto o Prof. Toni valorizava a

participação na pesquisa pelo fato de, recentemente, ter realizado uma pesquisa de

doutorado em Educação, que também contou com a colaboração de outros

docentes para as suas entrevistas. Além disso, porque julgasse importante, também,

estar falando para audiências sociais avaliadas por ele como relevantes: a

pesquisadora, diretora da escola A e a academia. Tanto em um caso como em outro,

presumimos que julgava importante o fato de que suas contribuições poderiam

produzir eco.

6.3.2 Perspectivas do professor Toni

a) Objetivos do ensino de química

Ao ser questionado acerca dos objetivos do ensino de química, no contexto

da educação profissional, o Prof. Toni enfatiza questões relacionadas a esse

conteúdo. Diferenciou o início e o final do Curso Técnico em Química, classificando

as abordagens dos conteúdos nas séries iniciais como “muito teóricas” e “mais

sofisticadas”, ensinadas com uma profundidade que vai além do estabelecido para o

nível médio de ensino, e até mesmo além do objetivo da formação técnica, para,

somente no final do curso, voltarem-se para a atuação no mercado de trabalho.

Objetivando situar o nível de aprofundamento, usou, reiteradamente, o termo

“intermediário”, para indicar que as disciplinas iniciais, em termos de conteúdo, estão

acima do nível médio e um pouco abaixo do nível universitário. Demonstrou

preocupação com a inadequação do aprofundamento do conteúdo ao nível de

maturidade dos alunos, nas séries iniciais do curso técnico.

O Prof. Toni defendeu o objetivo de preparar para o mercado de trabalho,

desde que associado à formação para a prática da cidadania, como se este termo

119

tivesse um único sentido e, portanto, não precisasse explicá-lo: “... a gente pode

fazer isso sem perder de vista as próprias discussões que envolvem o ensino médio,

a formação pra cidadania mesmo, né?”. Inferimos que, com o uso do sujeito coletivo

“a gente”, intencionou o envolvimento dos seus pares profissionais na discussão que

ele identificava, até então, como pertencente ao contexto do ensino médio

propedêutico, buscando trazê-la, também, para o contexto da formação profissional.

Interpretamos a presença do subjuntivo em “... pra mim o ideal seria se as disciplinas

dos períodos iniciais tentassem primeiro procurar uma formação mais voltada pra

questões de cidadania, e no decorrer do período, a partir do meio do período pro

final, que elas tivessem um olhar mais voltado pra essa questão prática, pra essa

questão do aluno, do mercado que ele atua, do que ele vai desempenhar” como um

indicativo do quanto ele idealiza um currículo que reservasse as séries iniciais para

uma formação cidadã e, para os períodos finais, uma formação mais pragmática.

Todavia, esse ideal não está na realidade presente.

Embora, pela própria natureza do curso, tenha reconhecido como legítimo o

objetivo de formar para o trabalho, (“Afinal de contas é um curso técnico, né, então

eu acho que as duas formações devem ser contempladas...”), o professor contrapôs

o excesso de formação “conteudista” à formação técnica e à formação do cidadão,

dando margem à interpretação de que o nível de aprofundamento do conteúdo não

serve nem a uma nem a outra.

Na sequência da enunciação, é possível localizar a voz acadêmica, quando

mencionou o conceito de “alfabetização científica”, o qual o professor aproxima do

relativo à formação para a cidadania. A menção a esse conceito nos permite inferir

acerca de seu vínculo acadêmico e de um endereçamento à academia e à

pesquisadora, que ele sabe pertencer à área de ensino de ciências, como

destinatários supostos. Ele considerou que ambas (formação profissional e cidadã)

devem fazer parte da formação do técnico, apesar de considerar que a cidadania

seja mais importante. Ao valorizar positivamente a formação profissional com ênfase

na cidadania, o professor atribuiu o apagamento das discussões acerca da formação

cidadã ao excesso de conteúdo ministrado (“... se perdem discussões mais

importantes...”), demonstrando a opção pelos objetivos mais valorizados por ele.

Ao ser perguntado por esta pesquisadora acerca de outras finalidades além

do objetivo de formar para o trabalho para o ensino de química no contexto da EP, o

Prof. Toni respondeu: “Na verdade, até esse objetivo de só formação pro mercado

120

de trabalho não acontece, né?” É possível inferir que. ao lançar mão da palavra “só,

nesse enunciado, e considerando a entonação expressiva no momento da entrevista

(fez uma pausa para pronunciar este vocábulo com um tom mais alto e forte do que

o restante do enunciado), o Prof. Toni intencionou realçar que a formação técnica

oferecida pela escola A se afasta de uma formação que se limite a atender,

exclusivamente, às demandas do mundo produtivo. Esse entendimento emerge,

como já apontado nesta análise, da crítica ao aprofundamento exagerado da

química ensinada no curso técnico, (“Conteúdos que às vezes são até temas de

pesquisas”) em contraposição ao “conhecimento amplo” dessa disciplina, que ele

julga como mais importante. O sentido apreendido por conhecimento amplo com

relação à química, no discurso do professor, é aquele que não se reduz à formação

técnica no sentido estrito da expressão, ou seja, um ensino

mecanicista/instrumentalista, mas que também não deve dar conta de todas as

“nuances da química”, a ponto de se nivelar ao ensino superior.

O foco do seu discurso sobre os objetivos do ensino de química recaiu sobre

o currículo, cuja profundidade de conteúdo ele criticou fundamentalmente. Deixou

clara a necessidade de a escola A, juntamente com seus professores, “repensar o

currículo”, no sentido de atenuar o exagero de aprofundamento do conteúdo que o

hoje o constitui (“Pra se enxugar...”). Entendemos que a qualidade do ensino de

química da escola A não está, para o Prof. Toni, no currículo presente e dependeria

de uma mudança curricular.

Em sua compreensão ativa destacou o investimento institucional para se

repensar o currículo (“Houve há pouco tempo a imersão...”) como ação convergente

com a sua perspectiva de busca da qualidade. Inferimos, a respeito, uma intenção

de corrigir o desvio do foco da formação técnica e da formação cidadã, para dar

lugar a uma formação “de fato intermediária”, que, no seu ponto de vista, parece

assumir, agora, um sentido conciliatório entre as formações mencionadas, diferente

do sentido produzido anteriormente.

No enunciado como um todo, observamos o uso recorrente da expressão “a

gente” (“... a gente tem que de fato começar a repensar o currículo...”; “... a gente

perde um pouco a mão nisso aí”; “a gente deveria tentar...”; “a gente nesse sentido

peca ...”) como uma atitude de responsabilizar a si e a seus pares profissionais pelas

mudanças curriculares necessárias para atingir os objetivos do ensino da química

idealizados, discursivamente, por ele. Neste caso, interpretamos o uso de “a gente”

121

como sujeito coletivo, pelo fato de o professor Toni ter deixado claro, ao longo de

sua enunciação, que as mudanças almejadas deveriam partir de discussões

institucionais e não de ações individuais.

b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação

Para falar acerca da seleção de conteúdos, o professor se remeteu à ementa

da disciplina estabelecida pela instituição que, segundo ele, é tomada

institucionalmente como referencial de qualidade, associado ao tradicionalismo das

práticas curriculares institucionais. Na sequência, retomou a crítica ao currículo de

química, demonstrando, mais uma vez, o quanto o “exagero” do conteúdo se afasta

de suas perspectivas de qualidade do ensino para a formação profissional.

Interpretamos esse retorno ao tema como uma mostra de quanto o professor está

incomodado e preocupado com esse aspecto.

Reconhecendo a ementa como um discurso de autoridade, que emerge do

contexto social onde trabalha, O Prof. Toni disse ter encontrado um caminho para

cumpri-la coerentemente com sua perspectiva de qualidade do ensino, “usando

outras estratégias”. No discurso sobre a sua prática, declarou que instituiu o debate

em sala de aula como espaço estratégico de ação, no sentido de dar voz aos alunos

e, assim, discutir a relação entre conhecimento científico, neste caso o da química, e

a atuação profissional. Para tanto, estimula os alunos a fazerem perguntas e, a partir

daí, cria espaços para compartilhar com eles os questionamentos relativos à

composição e à organização curriculares, representando indiretamente a voz do

aluno em seu discurso: “pra que serve, né? Pra quê? Por que ele tem que aprender

aquilo, por que ele (o aluno) tem que saber daquele detalhe, né?” Deixou claro seu

posicionamento em relação a tais indagações, explicitando que, “às vezes”,

consegue justificar a importância do que está sendo ensinado para a formação

profissional e outras vezes, não. Considerou válida a atitude de mostrar aos alunos

que muitas vezes não consegue justificar o conteúdo, no sentido de ajudá-los a

compreender o quanto é difícil “inovar” em relação aos conteúdos curriculares e o

quanto ele (o professor) também está submetido a esse currículo. Nesse sentido,

propôs estimular a atitude responsiva ativa do aluno, visando, a partir da reflexão e

da crítica, instituir o direito a espaços enunciativos de concordância ou discordância,

no todo ou em parte, inclusive com professores de outras disciplinas.

122

Questionado acerca da tentativa de introduzir outros conteúdos em suas

aulas, além dos estabelecidos pela ementa, o Prof. Toni iniciou sua enunciação

expressando busca, ao afirmar “tento... tento...”. Entretanto, seguidamente, ele

declarou: “Mas confesso que não sou tão ousado assim não”, revelando, em parte,

um sentido de submissão à lógica de autoridade da ementa. No discurso sobre a

sua prática, exemplificou como se esforça para estabelecer relações entre os

conteúdos da química geral, em particular os relacionados às funções inorgânicas,

presentes no cotidiano do aluno, para discutir questões ligadas ao ambiente, como,

por exemplo, a chuva ácida e o efeito estufa. Além desses, dentro de estequiometria,

procura relacionar as reações químicas com a energia aí envolvida, no contexto dos

processos (químicos) industriais e, assim, “inovar em cima daquele conteúdo”.

Inferimos que o professor apropria-se da palavra “inovar” com o sentido de

estabelecer relações entre o conteúdo pré-determinado pela ementa e questões da

realidade presente (problemas ambientais) e futura (atuação profissional).

Para implementar o debate com os seus alunos, embora tenha um “roteiro” a

ser seguido, apropria-se das redes sociais e de vídeos do Youtube para a realização

de trabalhos, explicitando, também, como e com que intenção realiza a apropriação

dos meios contemporâneos de informação e comunicação no ensino: “Mas, eu

queria uma visão e eu deixei isso claro pra eles, que ultrapassasse a mera

explicação, né, eu gostaria de exemplos práticos, exemplos do cotidiano, exemplos

até que vão permear a vida profissional deles mesmo sabendo que essa minha

disciplina é de formação básica, mas já pra tentar desenvolver no aluno esse olhar

mais crítico, né?”

Teceu a sua perspectiva de qualidade, (“... estimular o meu aluno a sempre

refletir acerca daquilo que tá sendo ensinado pra ele”) a partir da dialogia com

princípios filosóficos, estabelecida explicitamente na referência a Edgar Morin (“Eu

acho que a mudança acontece quando existe reforma de pensamento”). E, assim,

evidenciou o caráter polifônico da enunciação e o lugar social de onde o professor

fala, como doutor em Educação.

Ao recuperar as conversas travadas com alguns dos professores com quem

trabalha nos espaços escolares comuns, e comparando com os comentários tecidos

pelos alunos sobre suas aulas, o professor julga o ensino técnico ainda muito

tradicional (“ainda pinta um cenário muito tradicional de ensino, né?”), endereçando

aos outros professores (uma minoria, segundo ele) a ideia de ensino transmissivo na

123

escola. O tom de crítica e desaprovação existente em sua enunciação, nesse

momento, nos permite inferir o quanto discorda desse tipo de ensino.

Mais uma vez acentuou o potencial das TIC em relação à velocidade e

quantidade de informações disponíveis aos alunos na contemporaneidade, que pode

ser aliada à atitude questionadora que deve ser estimulada para “formar pessoas

mais interessadas, pessoas mais politizadas...”. Entendemos que, em sua visão,

essa mobilização prescinde das TIC, no sentido de valorizar o comportamento crítico

dos alunos para pensar, relacionar, questionar, comparar, ainda que não seja no

contexto do uso das ferramentas e aplicativos tecnológicos.

Na réplica ao enunciado que o interroga acerca da sua concepção de

avaliação educacional, repetiu as palavras nas linhas iniciais do seu enunciado (“É.

É. Eu aplico prova, eu aplico prova, né? Aplico prova, mas não é minha única

avaliação, né?”), o que parece indicar um desconforto em assumir a avaliação

tradicional, diante das perspectivas educacionais tecidas em seus enunciados

precedentes. A ênfase no uso de outros modos de avaliar (“Além da prova eu passo

alguns trabalhos ... tentando avaliar essa questão mais reflexiva”) revelou uma

tensão entre o que pratica e o que busca praticar, não restringindo a avaliação à

mera aplicação de provas. Mais adiante, ao enunciar “Confesso que eu ainda aplico

prova”, nos permite inferir que está corroborando a tensão existente em relação a

essa questão, cujo tom nos conduz à interpretação de que ele se cobra métodos

alternativos de avaliação.

Há conflito entre as perspectivas de avaliação presentes em seu enunciado,

marcadas, também, em “Mas, confesso que existe uma força, né, que nos enlaça

nesse tradicionalismo que é a prova” e “E também não acho que de repente aplicar

prova seja algo negativo, também não penso dessa maneira, não sou extremista a

ponto...”. Fica evidente, nesse contexto de disputas por sentidos de qualidade em

relação à avaliação, a instabilidade entre as concepções do que seria melhor para o

ensino, na visão do Prof. Toni. Sintetizou seu ponto de vista, deixando aflorar a

coexistência da “prova” tradicional e outra atividade avaliativa “que a gente consiga

dar espaço pro aluno se pronunciar...”.

Interpretamos que sua perspectiva de qualidade do ensino está diretamente

relacionada à interação verbal com o aluno, seja abrindo espaço da aula para

perguntas, seja para ouvir o aluno na avaliação.

124

c) O papel do laboratório no EC

Em relação ao papel do laboratório, no ensino profissional de química, o Prof.

Toni recuperou a lembrança das práticas de laboratório desenvolvidas em sua

graduação e as aproximou das realizadas por ele e seus colegas de profissão, no

curso técnico em que atua, explicitando, assim, a finalidade do laboratório no curso

de química na escola A: “são práticas de laboratório que visam ratificar a teoria”.

Desenvolveu essa perspectiva, assumindo uma atitude responsiva ativa, trazendo

exemplos da prática docente nos laboratórios, externando discordância em relação à

perspectiva mencionada, pelo fato de que “a reflexão fica do lado de fora do

laboratório”. Trouxe, para o território da enunciação, sua perspectiva de qualidade

do uso do laboratório no ensino de química: “eu acho que a gente deveria ir pro

laboratório pra ter mais perguntas, ir pro laboratório pra encher a galera de

interrogação.”

Posicionou-se em relação à visão de ciência, afastando-se da tendência, no

contexto acadêmico de acentuar a autoridade do discurso científico, para considerá-

lo em sua instabilidade e incerteza, evidenciado em “Eu acho que é importante o

aluno refletir pra que ele não comece a pensar de repente, que a química é uma

ciência feita de verdades, verdades dogmáticas, né? Na verdade não é, né?”. As

palavras finais dessa frase apontam busca por concordância da entrevistadora. Ao

enunciar “Eu acho que a gente nesse sentido peca, né?”, o uso do marcador “a

gente” expressa um sujeito coletivo, considerando que a visão de ciência, como se

pôde depreender do todo de seu enunciado, não seria característica da prática de

um professor apenas, mas abrangeria um grupo de docentes, no qual ele também se

inclui.

É interessante notar a maneira como o Prof. Toni teceu sua perspectiva sobre

o uso do laboratório, entrecruzando tempos (passado e presente) e espaços

distintos de ação (graduação e docência nos Campi I e III), com um tom de

reclamação, ao reconhecer que as atividades de laboratório, realizadas hoje na

escola A, são semelhantes às do passado, ou seja, com ênfase na positividade da

Ciência.

Classificou o ensino de ciências, baseado em comprovações da teoria por

meio de experimentos, como uma prática que tende a robotizar o aluno (“... um cara

que só foi programado durante sua formação a comprovar aquilo que foi dito em sala

de aula através de experimentos”), no sentido de torná-lo um mero reprodutor,

125

deixando o estímulo à sua capacidade crítica e questionadora à margem de sua

educação científica, dando lugar apenas à reprodução unívoca de sentidos. Embora

tenha argumentado que a experimentação “tem que ser a mola motriz de uma série

de outras questões”, apontou a dificuldade de promover mudança (“Mas é difícil

fazer isso”) diante da “autoridade da tradição, de verdades geralmente reconhecidas

no passado” (Bakhtin, 1994, p. 4) no âmbito da epistemologia escolar (“a gente

esbarra com todo um tradicionalismo, com apostilas experimentais que já estão

prontas, e assim, até às vezes você pode começar a se indispor com outros colegas,

se você começa a fazer o diferente do script, né?”). Observamos também a

preocupação do professor em relação a possíveis conflitos com os seus colegas de

trabalho, ao buscar fazer diferente.

No movimento para explicar a origem da dificuldade de transformar o papel do

laboratório em um estímulo à crítica, fez questão de marcar o seu lugar social (“eu

falo agora como professor que integro uma equipe”) e, ao mesmo tempo, acabou

descrevendo o caráter do ensino experimental e a postura tradicional dos

professores no cenário da escola: “a gente esbarra com todo um tradicionalismo,

com apostilas experimentais que já estão prontas”. O modo presente em “eu falo

agora”; “a gente esbarra”; “que (eu) integro” se refere a esse cenário que é o atual,

ao passo que a presença no decorrer da explicação do “se” em “só começa a

melhorar se a gente começar a se encontrar, professores começarem a se reunir pra

refletir...” indica que esta reflexão, hoje, ainda não acontece e que ele gostaria que

fosse a realidade presente na escola, uma qualidade a ser alcançada.

d) Interesse e desempenho dos alunos

O Prof. Toni iniciou seu enunciado justificando o interesse do aluno pelas

aulas de química, por conta da aproximação entre a disciplina que leciona e o

objetivo do curso. Entretanto, observou que o interesse dos alunos vai diminuindo ao

longo do curso e atribuiu isso, em parte, ao professor que não consegue “manter

esse estímulo”. Dando continuidade à sua fala, trouxe para o discurso a perspectiva

de necessidade de mudança no currículo, que passou a ser apontado como causa

do desinteresse que os alunos apresentam, à medida que o curso avança.

Mais uma vez, idealizou uma realidade futura condicionada à transformação

da realidade presente, marcada no texto pelo uso do subjuntivo: “Eu acho que o

ideal seria que nós conseguíssemos um currículo onde o aluno desde o primeiro

período fosse aos poucos sendo preparado pro mercado de trabalho, sem perder de

126

vista essas questões mais reflexivas de atuação dele como cidadão, né?”. Assim,

reiterou sua perspectiva, apontando o currículo que defende como uma forma de

melhorar o ensino atual, produzindo o sentido de qualidade vinculado à formação

para o mercado de trabalho, articulada com a formação para a cidadania.

e) Formação Integral

Para o Prof. Toni, a formação profissional, oferecida pelo curso técnico da

escola A aos seus alunos, está longe de ser mecanicista ou instrumentalista “(Eu

não acredito que ele esteja sendo, digamos assim, formado pra apertar botões, né?),

pelo menos nos últimos seis anos, tempo em que está na escola. É como se ele

dissesse: anteriormente ao meu ingresso, eu não posso afirmar.

Sua perspectiva de formação integral é construída a partir do diálogo com os

discursos institucionais (programas de iniciação científica e o estímulo à pesquisa),

nos quais ele valoriza a “reflexão em cima dos conteúdos” promovida por estas

iniciativas. Teceu a sua perspectiva de formação integral entrelaçando sentidos

produzidos na dimensão política da produção de conhecimento, em confronto com

uma dimensão mais pragmática do mundo produtivo (“ formação integral, que na

minha concepção é um tipo de formação que cumpre o que tem que ser cumprido

com relação ao mercado de trabalho, né, sem deixar de lado todas as nuances

políticas, todos os debates que aquela produção de conhecimento possui, né?”).

Endereçou seu discurso explicitamente (“aqui, né, nessa entrevista”) à

imagem que constrói da pesquisadora, buscando adesão à sua crítica (“...a gente

tem algumas disciplinas da Química que precisam de enxugamentos curriculares [...]

a gente precisa se encontrar mais, enquanto professores pra tentar buscar outras

abordagens...”). Ainda assim, o professor acha que a escola A oferece uma boa

formação. O mesmo endereçamento pode tê-lo levado a essa consideração.

Dando continuidade à sua concepção de formação integral, mencionou que “a

gente tem sempre que tentar colocar o aluno como sujeito reflexivo”, valorizando

essa atitude. Também aproximou as atividades de pesquisa e as de monitoria à

formação integral, por considerá-las capazes de dar “uma abertura maior em termos

de conhecimento”. É possível localizar a voz acadêmica no seu discurso para

construir a sua perspectiva de um bom ensino, ao se apropriar da expressão “sujeito

reflexivo”, comum na literatura educacional.

127

Reagiu à pergunta acerca da integração de conhecimentos, mobilizando o

conceito teórico de interdisciplinaridade. Admitiu que consegue visualizar conexões

entre os conteúdos das diversas disciplinas e atribuiu a dificuldade em realizá-las à

ausência de comunicação entre os professores, “pra que eles tentem ter uma atitude

mais interdisciplinar.” Interpretamos que acentuou, com tom de positividade, o

esforço que os professores devem fazer para realizar a interdisciplinaridade,

intencionando “educar” os alunos “pra que mais adiante eles consigam visualizar

essas conexões, né?” O valor presumido possível se traduz na importância que dá a

esta prática para a formação profissional dos alunos, no sentido de que, no futuro,

quando da atuação no mundo produtivo, tais conexões sejam importantes e

necessárias de serem feitas.

O professor criticou a fragmentação e o isolamento das disciplinas escolares,

que apreende no discurso dos professores mais próximos a ele, (“eles não

conseguem rasgar esses envelopes”) com um tom de reprovação (“como é que

pode, né?”) que parece indicar o quão indesejável esse modo de ver/pensar ainda

persista no ambiente de trabalho. Reforçou a resistência dos colegas professores

em romper tal isolamento. Presumimos que os professores demonstram não

quererem ou não saberem trabalhar com essa possibilidade, o que o Prof. Toni

considera “quase um pecado”. Trouxe um exemplo de interdisciplinaridade,

relacionada à integração da matemática com a química, mas reclamou da não

adesão dos professores à sua visão e presumiu que isto se deva ao fato de não

quererem, não acreditarem, terem medo, sentindo-se desconfortáveis.

Dialogou com os discursos circulantes no meio acadêmico, que apontam

como gênese dessa problemática o processo de formação de professores,

submetido à lógica disciplinar, que julga ser apenas didática. No seu ponto de vista,

a ênfase no ensino, em que as disciplinas são entregues como “envelopes

intocáveis”, implica um tipo de formação que dificulta os alunos integrarem os

conhecimentos.

Manteve a atitude responsiva ativa, exemplificando como pratica a

interdisciplinaridade entre a química e a geografia. Se, por um lado, trouxe

evidências da riqueza do trabalho interdisciplinar, por outro falou da dificuldade em

realizá-lo, o que está marcado em “As matérias se ajudam, é um mutualismo que só

rende frutos, porque uma vai dando sentido pra outra, uma vai complementando a

outra e tal. Mas, né, requer também certa disposição pra isso, né?” Ele considera

128

que a integração pode ser feita entre quaisquer disciplinas, mas percebe que as

ciências humanas (“geografia, história e sociologia”) podem sempre ser integradas a

quaisquer disciplinas, uma vez que, em seu modo de pensar, “nenhum

conhecimento científico é desvinculado de razões políticas e de contextos

históricos”.

f) Apresentação do conhecimento científico

Para o Prof. Toni, o conhecimento científico é apresentado no curso técnico

“de uma forma tradicional”, ressoando aí um tom de negatividade, de algo que já

deveria ter sido superado, na medida em que não considera o conhecimento “com

todas as fragilidades”, mas como verdade absoluta.

Conjecturou, com um tom de hesitação, (“talvez”) que, se a visão de ciência

dos alunos entendida como de “verdades absolutas”, é decorrente da forma como

os professores transmitem esse conhecimento. Inferimos um confronto entre o seu

posicionamento e a visão de ciência passada aos alunos por outros professores. O

Prof. Toni declarou que os alunos se apropriam da sua perspectiva alternativa de

ensino com resistência, mas que, ainda assim, não se intimida e tenta fazer valer a

sua perspectiva, mesmo que isso gere “incômodo no aluno”. Trouxe a voz dos

alunos (“ele fica satisfeito com o “é sempre assim”, né? É sempre assim que vai ser?

É dessa maneira? Ah, então toda vez que for assim é assim, né?”) para indicar a

preferência deles em relação aos modos tradicionais de aprender/discutir ciência,

com os quais foram acostumados em suas experiências escolares e em “outros

lugares”, por exemplo, na mídia, como canais de divulgação da visão positivista de

ciência.

g) Documentos oficiais

Questionado acerca do seu acesso aos documentos curriculares oficiais, o

Prof. Toni relatou que já os consultou, com a intenção de orientar trabalhos de

alunos, mas não para guiar a sua prática. Reconheceu a importância do

estabelecimento de espaços para discuti-los institucionalmente e deixou claro que,

hoje, isso não acontece (“Mas não existe, em termos institucionais, um trabalho de

divulgação, ou de debate em cima dessas diretrizes, né?”). Lançou mão do discurso

direto (citado) de um possível coordenador da sua área de ensino para transmitir

com legitimidade a voz institucional: “Olha, tá aqui a ementa, as aulas são tal

129

horário, você tem que cumprir até aqui...”. Nessa sentença ressoa a superioridade

hierárquica do possível enunciador, que busca impedir a incorporação de outros

sentidos para a orientação da prática pedagógica.

Perguntado sobre possível consulta ao projeto político pedagógico da escola,

o prof. Toni respondeu que sim, mas com outras intenções, de onde se presume que

não seja para orientar a sua prática. Reconheceu que esse documento deveria ser

mais amplamente debatido na escola. O uso do futuro do pretérito deixa claro que

não é essa a realidade. Entretanto, sinaliza iniciativas recentes para a discussão de

debates. Apontou movimentos, em fase inicial, que buscam instituir espaços para

debates acerca de “demandas internas” da instituição, que esclarece mais adiante,

poderiam incluir o debate do projeto pedagógico.

h) O papel da pesquisa

Em relação à importância que dá à pesquisa, mais uma vez o professor

repetiu as palavras iniciais do enunciado (“Acho importante, acho importante. Acho

importante”). Essa repetição produz o sentido de frisar que ele acha importante,

mesmo que não esteja realizando esta prática, como afirmou antes.

No que tange aos valores e princípios que orientam o seu projeto de

pesquisa, relacionou-os às perspectivas de diálogo entre diferentes áreas de

conhecimento. Intuímos como um trabalho interdisciplinar, intencionando “alargar,

né, aquele tema de pesquisa pra outras áreas”. Assim, exemplificou que, ao tratar da

“energética”, tentou relacioná-la com o tema da “sustentabilidade”. Outro princípio

abordado pelo professor diz respeito ao modo como trabalha (“é um exercício que eu

faria com o meu aluno, mas sem trazer nada pronto pra ele, seria uma construção

mesmo, né?”), valorizando, assim, a construção coletiva e ampla de conhecimentos.

Ao final dessa resposta, estendeu essa perspectiva com um tom de prescrição,

marcado por “precisa”, a outros níveis de ensino além do técnico, como o superior e

a pós-graduação.

i) Qualidade

A avaliação da qualidade da educação científica, no contexto do Curso

Técnico em Química, foi abordada pelo Prof. Toni em duas dimensões. Ele iniciou

pela dimensão física, da infraestrutura, em particular dos campi II e III, julgando-os

espaços que oferecem ambiente propício à educação de qualidade (“biblioteca com

130

bom acervo”). Em seguida, abordou a dimensão curricular, na qual apontou

empecilhos à qualidade e necessidade de mudança. Seu acento recaiu sobre os

objetivos a serem definidos/alcançados e, para isso, a necessidade de “ampliar os

debates entre os docentes sobre que tipo de cidadão queremos formar.” Endereçou

explicitamente a responsabilidade dessa ação à instituição em “promover reuniões

pra que os professores comecem de repente a refletir, e alguns até quem sabe,

serem convencidos de que algumas reformas são necessárias. De que a gente pode

formar um bom profissional sem perder um bom cidadão.” Com essas últimas

palavras, parece direcionar o seu discurso aos professores da escola A, cujos

sentidos de qualidade educacional se restringem à formação profissional voltada

para atender às solicitações do mercado de trabalho. Explicitou, finalmente, sua

perspectiva de qualidade do ensino profissional de química. Reconheceu a

necessidade de uma reforma curricular para torná-la realidade na escola A, para se

alcançar “um tipo de ensino de fato integral. Um ensino que prepara um profissional

pro mercado de trabalho, mas um profissional politizado, um profissional

participativo, um profissional que tenha a consciência ambiental, um profissional que

reflita acerca de questões políticas.”

131

6.4 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR VÍTOR

6.4.1 O contexto extraverbal

O horizonte espacial comum entre o professor Vítor e a pesquisadora, na

situação imediata de entrevista13, abrangia uma sala de estudos ociosa da

COPPE/UFRJ, onde a interlocução ocorreu apenas em nossas presenças. Esse

local foi definido pelo professor como sendo o mais viável para o nosso encontro, por

ser nesse contexto que desenvolve a sua pesquisa de doutorado na área de

petróleo e onde estaria presente no dia agendado. Este foi o nosso primeiro

encontro, um vez que não nos conhecíamos até o momento da entrevista. A

interlocução ocorreu em um ambiente tranquilo e silencioso, sem a ocorrência de

eventos que pudessem interferir na entrevista, que durou aproximadamente

quarenta e cinco minutos.

Nosso conhecimento comum da situação social de entrevista, por sermos

professores atuantes do ensino técnico, era o de que sabíamos da existência dos

PCNEM, das diretrizes curriculares nacionais para a educação profissional e do

projeto político pedagógico da instituição; vivenciamos o período de reformas

educacionais da educação profissional na década de 90, quando a pesquisadora

pertencia ao quadro efetivo e o professor Vítor, ao de professor substituto, na escola

A. Nessa década, o curso técnico passou a ser oferecido obrigatoriamente separado

do ensino médio; vivenciamos, também, o período pós-reforma educacional, quando,

a partir do Decreto Nº 5.5154/2004, a formação profissional no Brasil passou a ser

oferecida, dando liberdade às escolas para optarem entre os regimes integrado,

concomitante ou subsequente; sabíamos que o professor ministra aulas de química

no Campus II e que a pesquisadora ocupava, no momento, um cargo de direção no

âmbito da reitoria da escola A; sabíamos que o professor Vítor atuava na parte

específica do curso técnico em Química; sabíamos da importância em discutirmos a

educação científica no contexto político atual, marcado pelo complexo processo

nacional de expansão da rede federal de ensino técnico; sabíamos das limitações e

das dificuldades de seu campus, pela recente criação em parceria com a prefeitura

13

A transcrição completa da entrevista com o Prof. Vitor encontra-se no Apêndice 5 (p.228).

132

local; sabíamos da importância dos laboratórios e do setor responsável na instituição

pelos estágios para os alunos do curso técnico em Química na instituição.

As avaliações apreciativas comuns ao professor e à pesquisadora, no

momento da entrevista, podem estar relacionadas ao fato do Prof. Vítor também

estar cursando um doutorado, ainda que seja em área distinta, e reconheça a

importância de suas contribuições para viabilizar uma pesquisa acadêmica oriunda

da UFRJ, realizada por uma pesquisadora que também é diretora da escola A e a

quem ele se dirige. E, por este endereçamento, presumirem que suas contribuições

podem causar eco na academia ou na escola A, para a qual trabalham

desempenhando diferentes funções.

6.4.2 Perspectivas do professor Vítor

a) Objetivos do ensino de química

Interrogado acerca dos objetivos do ensino da Química no curso técnico, o

Prof. Vítor constituiu sua visão de formação profissional, ao longo de todo o

enunciado, contrapondo um processo formativo que visa à reflexão da

aprendizagem mecânica, objetivando somente o treinamento (“...Não é apenas

apertar parafuso, abrir e fechar de uma forma mecânica, tem que pensar”). Retomou

sua própria experiência escolar pregressa, de formação técnica na escola A,

Campus I, a qual avalia como uma formação não mecanicista, porque, desde então,

já estimulava o pensar sobre a atividade a ser desenvolvida no âmbito profissional.

Acentuou a “visão mais analítica e crítica” das funções a executar no trabalho

técnico como capaz de conduzir os alunos ao “sucesso” profissional. Apontou

convergência entre a perspectiva de ensino da escola A no passado e a do

presente, e destacou as “estruturas curriculares” como instâncias capazes de

promover tal perspectiva. Respondeu ativamente, trazendo o exemplo de uma

escola que preparou os alunos “pra fazer soldagens no navio” de uma forma

mecânica, sem, no entanto, ensiná-los a “... planejar, pensar e avaliar ...” o que,

segundo ele imprimiria qualidade ao trabalho.

Ao responder sobre a definição de outras finalidades para ensino de química,

para além da formação para o trabalho, o Prof. Vítor assumiu sua visão estreita de

ensino em um passado remoto, ancorada à supremacia da tecnologia, como sendo

133

“... estritamente técnica, aquele engenheiro, né, do século passado aí onde tem uma

visão de execução mesmo da parte técnica, ou seja, a tecnologia pode tudo. Eu

sempre pensei assim.” O uso do passado em “eu sempre pensei assim” parece

indicar que ele mudou de visão, o que é reiterado logo adiante (“nesses últimos

tempos eu começo a refinar, refutar esse conceito um pouco antigo”). Na frase

seguinte, enunciou essa nova visão: “tem que inserir o profissional no mercado de

trabalho, mas com uma visão social, mais humanista.” Ao longo do enunciado,

conceituou sua visão de formação humanista, que visaria à construção “de um

mundo melhor, mais sustentado, do ponto de vista social.”

Vinculou a construção de sua nova perspectiva de ensino à participação em

espaços de discussões criados no Campus II, envolvendo “antropólogos, sociólogos,

até pedagogos”. Assim, acentuou o valor da interação com os colegas de trabalho

de outras áreas, como espaço privilegiado para a reflexão, capaz de ampliar seu

horizonte de conhecimentos e de produzir novos sentidos para os objetivos de

ensino. Se por um lado, valorizou a interação com os colegas da área das ciências

humanas e a inserção dessas disciplinas no curso técnico, por outro, problematizou

tal inserção em todos os períodos: “...agora, todos em todos os períodos estão

colocando filosofia e sociologia. Não vou dizer que é o correto em todos os períodos,

mas há necessidade de ter essa disciplina na visão social pra o mundo do trabalho”.

Observamos, assim, uma tensão entre a inserção curricular dessas disciplinas e a

sua importância no curso técnico, demonstrando a complexidade dialógica de seu

enunciado como território de confrontos entre diferentes perspectivas.

Na sequência, as marcas do tempo presente em “E é uma opinião de um

engenheiro, né, que acredita sempre na ciência acima de tudo, assim, na parte da

engenharia hardware, né, do cálculo, cálculo, né?” deixa dúvida em relação à

mudança de visão relatada anteriormente, na medida em que “um engenheiro” se

confunde com o autor do enunciado.

b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação

Em relação à seleção de conteúdos, o Prof. Vítor relatou que atua na parte do

currículo correspondente à formação técnica, mas que não se limita à sua

especificidade, buscando o “estudo de casos associados à solução de problemas do

mundo, de um mundo real.”. Trouxe, como exemplo, os resultados sociais de um

acidente do trabalho, que pode levar ao estresse psicológico. Sua ideia é sempre a

134

de extrapolar a parte técnica da ementa. Interpretamos que essa é a apropriação

que faz da visão humanística de ensino que tenta implementar.

Em seguida a essa fala, fez uma pequena pausa e enunciou, com tom de

hesitação: “E isso eu sinto um pouco que não é...”. Mesmo não concluindo a sua

frase, foi possível antecipar a sua resposta pelo conteúdo temático e pela entonação

usada, inferindo que iria dizer que não é praticado dessa forma na escola A e que,

possivelmente, não completou a ideia, em função do seu destinatário suposto.

Substituindo alguma crítica que provavelmente iria fazer à escola, apontou a

iniciativa institucional, (“Nós fizemos uma revisão agora do curso integrado de

Química, onde eu acho que tem pouca especificidade na estrutura do conteúdo,

acho que tinha que ter algo um pouco mais direcionado) que visa a discutir

mudanças curriculares, no sentido de incorporar um conteúdo mais específico e

contextualizado. Estas mudanças parecem ir ao encontro de sua própria perspectiva

de ensino.

Na tentativa de explicar para o seu ouvinte suposto e para organizar o próprio

pensamento em relação ao que pretende alcançar com os “estudos de caso”, incluiu

perguntas retóricas sobre sua perspectiva de ensino (“Quais são os estudos de caso

que teria a apresentar? Qual é uma visão holística e aplicada de algumas

disciplinas?”). Ao fazê-lo, se apropriou da palavra “holística”, para acentuar a sua

visão de ensino totalizante, que integre conhecimentos diferentes e, principalmente,

capaz de apresentar sua aplicabilidade.

O professor respondeu parcialmente às perguntas que levantou, inicialmente

apontando que a integração entre conhecimentos diferentes não é possível ao longo

de todo o currículo. Reconheceu dificuldades para mostrar a aplicabilidade das

disciplinas de matemática e física, por exemplo, nas séries iniciais do curso técnico,

mas considerou que isto seja factível nas séries finais.

Em relação aos estudos de caso, ele os generalizou, quando admitiu que, “de

uma forma geral, é isso o que o país tá precisando de forma imediata, ou seja,

buscar identificar potenciais problemas específicos associados ao conteúdo de cada

disciplina, seja disciplina técnica ou não técnica”. Observamos, nesse enunciado, o

sentido de ensinar com ênfase no atendimento às demandas do país, em busca de

soluções técnicas para qualquer tipo de problema.

No que se refere ao tema metodologia de ensino, o Prof. Vítor dialogou com o

uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) nas aulas, mostrando que o

135

simples uso do “show de PowerPoint” não é sinônimo de mudança em relação a

aulas expositivas, e nem garante a motivação para o aluno. Essa crítica é elaborada

a partir do deslocamento do enunciador entre diferentes lugares sociais: ele fala

como professor do curso técnico e como aluno, que, presumimos, seja no curso de

pós-graduação. Localizou, fundamentalmente no curso noturno, a necessidade de o

professor ser “um showman”, para manter o aluno “antenado”.

Sua metodologia de ensino visa a manter o interesse do aluno, usando uma

variedade de métodos e o estudo de casos reais, como aplicação da teoria (“os

alunos têm uma resposta positiva, que é mostrar estudo de casos práticos de coisas

que são tangíveis ao mundo dele”). Interpretamos que a aplicação ao mundo real

poderia representar a visão humanística e social que ele enunciou anteriormente,

mas, pelo todo do enunciado, percebemos que a intenção seria a de “inserir o aluno

num mercado de trabalho, num contexto mais realista, em algo que ele tá

visualizando”.

Assim, acabou construindo um sentido de qualidade de ensino (“um bom

ensino”) que, do ponto de vista da metodologia, seria o de “dar os conceitos físicos e

matemáticos, depois aplicação no estudo de caso e depois uma análise que ele faça

essa interpretação.” Exemplificou seu método de ensino, com a intenção de motivar

seus alunos, utilizando, por exemplo, casos práticos anunciados nos jornais. Além

dos casos práticos, defendeu também a alternância de métodos do professor em

sala, para motivar, em particular, os alunos do noturno (“Então, você tem que tá

sempre motivando, alterar o tom de voz, né, colocar Power Point, fechar o

PowerPoint e ir pro quadro, depois fechar, não copiar mais no quadro, né, na lousa,

e ir pro PowerPoint, fazer gestos com as mãos, trazer modelos de lego”). Trouxe

para o discurso a perspectiva de ensino da universidade, onde usa “modelos de lego

pra explicar projetos de petróleo”, acentuando o valor desse uso porque, por esse

meio, o aluno “mete a mão, consegue observar”.

Ao responder sobre a sua visão de avaliação, trouxe a perspectiva da

avaliação tradicional (“uma parte prática e uma parte teórica”). Ao descrever mais

especificamente os instrumentos de avaliação, contrapôs-se à memorização (“eu

detesto questões de decoreba.”), defendendo a reflexão do aluno e a aplicação de

conceitos em situações práticas da realidade (“escolher bem as questões onde tem

uma ponte entre o que você ministrou na aula aplicada ao mundo”).

136

c) O papel do laboratório no EC

No que diz respeito ao uso do laboratório, embora tenha declarado que não

há demanda pelo uso na disciplina que ministra atualmente, reconheceu sua

importância para o ensino de química (“Se pudesse eu sempre usaria”). Especificou

o papel do laboratório para o técnico em química: “é onde você faz as práticas, as

experiências, onde você tem diferentes alternativas de testes que são os

laboratórios”. Entretanto, ampliou o conceito de laboratório (“O uso de um lego é

como se fosse um laboratório em sala de aula”) para além dos ambientes

tradicionais, com vidrarias, bancadas e equipamentos para experimentos, incluindo

atividades como construções de protótipos, arranjos e simulações, “onde você vai

maximizar o conhecimento do aluno”, acentuando também o caráter lúdico dessa

atividade.

d) Interesse e desempenho dos alunos

O Prof. Vítor associou o interesse dos alunos ao caráter dinâmico de suas

aulas, uma vez que trabalha com “exemplos” ligados à aplicabilidade,

contextualização dos conteúdos em estudos de casos, já enunciados anteriormente.

Todavia, afirmou que os alunos “não gostam das provas”, pela dificuldade em

compreender o que está sendo perguntado.

Sua compreensão ativa gerou uma autocrítica, na qual o Prof. Vítor declarou

concordar com os alunos, reconhecendo que algumas questões exigem que os

alunos se transportem “para o ambiente de trabalho, para um mundo real de um

projeto de engenharia de petróleo, uma petroquímica” o que não conseguem,

embora façam visitas técnicas a indústrias e empresas.

Observamos, também, que o Prof. Vítor conseguiu identificar o motivo pelo qual os

alunos julgam as perguntas “muito complexas”, a partir do reconhecimento de que,

para um profissional que acumula experiência nos ambientes de trabalho, as

questões são “fáceis”.

Ao finalizar esse enunciado, o professor admitiu que “a parte da aula eles

gostam, mas na avaliação das provas, eles questionam muito”. Nessa conclusão, o

professor colocou em xeque a qualidade de seu ensino.

137

e) Formação Integral

Para o Prof. Vítor, a formação integral para o curso técnico é “dividida em

duas partes muito claras: [ ...] a parte técnica do mundo do trabalho [...] e a formação

onde ele vai ter aulas de português, geografia, matemática, sociologia, pra poder

integrar sua formação técnica”. Portanto, há em seu dizer um sentido de

desintegração, apreendido na superfície do seu discurso, seja por enunciá-la como

dividida em duas partes, seja pelo uso do conectivo “e” (sublinhado acima) que

sinaliza o somatório e não a integração de duas partes.

Sua perspectiva de “ensino integrado” seria a união das duas partes já

enunciadas e visaria à formação do cidadão. Para o professor, a formação do

cidadão para o mundo do trabalho “tem que ter essas duas áreas muito bem

associadas”, no sentido de integrar a base dada pelas disciplinas português e

matemática com a formação técnica. Ressaltou a importância da disciplina

português, para desenvolver um bom relatório e ajudar na interpretação das

questões de matemática. Interpretamos que, ao perceber a formação geral apenas

como uma base para a formação técnica, acabou por enunciar uma visão utilitarista

da formação geral e uma concepção reduzida de formação integral.

Ele criticou o curso técnico quando era oferecido separadamente da formação

propedêutica, antes de 2004, (“no passado”) e o considerou como perda para os

alunos. Relacionou essa “ruptura” à falta de qualidade do ensino (“ isso não foi um

bom resultado”).

Ao ser perguntado se consegue, na prática, realizar a formação integral e o

quanto a instituição demonstra estar preocupada em desenvolvê-la, confirmou a sua

concepção de formação integral, ao dizer que esses alunos (do curso técnico

subsequente) não atingem esse tipo de formação (“ nós estamos formando alguns

alunos onde a parte técnica fica um pouco deficiente na fase final do curso, que é na

elaboração de um relatório”).

Ele comparou e classificou a formação nos cursos integrado e subsequente,

avaliando que, no primeiro, “os resultados são muito melhores, agora no curso

subsequente, os resultados são muito ruins, muito ruins mesmo.” Para explicar a sua

avaliação, hierarquizou os espaços escolares (“Ele às vezes fez o curso numa outra

instituição que não foi a escola A, e fez somente a parte técnica, aí quando vai

somar esses resultados é muito ruim no curso subsequente”). Para ele, a qualidade

do curso integrado está relacionada ao fato das disciplinas português e matemática

138

se integrarem às técnicas, embora reconheça que tenham “que integrar um pouco

mais”.

Apontou, como ponto crítico do curso subsequente, a forma como se dão as

aprovações (“sendo um pouco, assim, automáticas”), porque “alguns alunos passam

de uma série pra outra, no curso subsequente, apenas pra cumprir tabela, pra

cumprir número”.

Deixou claro, ao longo de todo o enunciado, sua apreciação valorativa em

relação à capacidade dos alunos de elaborar o relatório final do curso, o que dá

margem à interpretação de que esses relatórios atestam a qualidade da formação

integral no curso técnico.

f) Apresentação do conhecimento científico

Após uma pausa, o Prof. Vítor iniciou sua resposta declarando: “essa

pergunta é difícil”. É possível interpretar essa pausa como necessidade de tempo

para tecer uma resposta, buscando palavras, concepções para enunciar a sua visão

de uma forma elaborada e próxima ao que sua interlocutora gostaria de ouvir, ou ao

que seria mais “correto” dizer. Também como falta da apropriação de uma

concepção de ciência, a respeito da qual já pudesse enunciar como palavra própria.

A visão que ele elaborou, inicialmente, foi a de que “a ciência ela sendo bem

utilizada, sendo bem conduzida, ela resulta em... Ela gera resultados bastante

positivos, mas tem que pesquisar continuamente”. A partir desse trecho,

interpretamos que, para o Prof. Vítor, a ciência bem usada é a ciência persistente e

que pode chegar a resultados “bastante positivos”, o que leva à ideia de que o

atributo de ser “bem utilizada” seja, para ele, um problema do fazer a ciência e não

dos fins da ciência.

Ao relatar o espanto dos alunos diante do tempo que ele investe buscando um

resultado científico, o Prof. Vítor foi interpelado por sua interlocutora acerca da visão

de ciência que a maioria dos alunos constrói, como coisa pra gênio ou

superdotados. Em sua réplica, representou a voz dos alunos diretamente “Ah,

professor, você é muito inteligente” para confirmar que os alunos, de fato, exibem

esta visão de ciência. Entretanto, pelo todo do enunciado, é possível interpretar que

ele tenta desconstruir esta visão, mostrando que a ciência é uma questão de

insistência. Além disso, apontou a crítica como outro elemento da ciência e por isso,

estimula o aluno a não aceitar passivamente os ensinamentos científicos

139

apresentados pelos professores (“A ciência só chegou ao desenvolvimento a partir

das críticas, a partir de não concordar. Não aceitem o que eu falo passivamente”).

O Prof. Vítor disse recomendar aos alunos que questionem o professor no

campo profissional ou no campo científico. Entretanto, a crítica recomendada se

submete aos objetivos da aplicabilidade da ciência: “Pra poder chegar à aplicação

da ciência de uma forma mais estrita, né, de uma forma mais fundamentada, né?”.

g) Documentos oficiais

Em relação ao Projeto Político Pedagógico da escola A, o professor declarou

que esse documento praticamente não é utilizado. Apenas algumas normas, como,

por exemplo, o número de avaliações mínimas por bimestre e orientações para

formulação de questões de prova são consultadas. Em sua avaliação, o uso desse

documento pelos docentes ainda é mínima: “por conta dos docentes, da experiência

que eu tenho com os outros docentes, nos meus pares de trabalho, acho que ele

ainda é utilizado de uma forma mínima, né?”.

Foi possível tecer duas interpretações para seu silêncio em relação às leis

para a educação profissional de nível médio: a partir do texto da pergunta, o

professor pode ter entendido a legislação oficial como o projeto político pedagógico

da escola A. Sua resposta também pode indicar o desconhecimento da legislação

educacional.

h) O papel da pesquisa

Para falar do seu envolvimento com os alunos do curso técnico em projetos

de pesquisa, o Prof. Vítor justificou a realização das pesquisas, tanto do ponto de

vista pessoal (“eu gosto de pesquisa, sempre trabalhei em pesquisa, e eu sempre

tenho projetos de pesquisa”) como do ponto de vista do ensino (“um suporte pra

melhorar a sua disciplina, a sua aula, né, e você tem um aprendizado melhor”).

O Prof. Vítor ratificou o caráter elitista da ciência, ao relatar que seleciona “os

alunos que têm potencial” e que faz “um processo seletivo” para compor o seu grupo

de pesquisa. Em relação ao seu projeto de pesquisa, enfatizou a publicação de

papers e valorizou essa atividade: “é bom pra mim e bom para o aluno fazer essa

iniciação”. Supomos, assim, que a publicação de trabalhos acadêmicos seja

importante para o professor. Em relação aos alunos, não esclareceu por que seria

bom fazer a “iniciação” (científica).

140

O professor descreveu seus critérios de seleção que, de acordo com sua

explicação, seriam mais importantes que o “CR”: “Se ele consegue escrever bem, se

ele consegue ler bem, se ele é um aluno participativo da aula, se ele pergunta, se

ele é um aluno questionador da aula.”

Na sequência da enunciação trouxe para o seu discurso a questão de gênero

na ciência, com um tom de preocupação em relação ao impacto que poderia

produzir na sua interlocutora (“vou falar um negócio aqui que é até complicado”). O

professor declarou sua preferência pelas “meninas”, por serem “mais comprometidas

com as atividades”, fato que já havia observado em sua atividade profissional,

quando gerenciou “projetos com engenheiras” e observou que as “meninas têm um

comprometimento maior, são mais detalhistas, observam, são mais sinceras”, no

sentido de admitirem quando sabem ou não determinado assunto, conduzindo a

resultados “melhores” e “maiores”, comparados aos dos meninos.

i) Qualidade

Iniciou a resposta estabelecendo uma ordem para construir sua apreciação

valorativa de ensino: “Um dos primeiros pontos é a infraestrutura da instituição”. A

prioridade dada às condições físicas indica que o professor parece valorizar mais a

parte técnica que as questões humanísticas.

O segundo acento recaiu sobre a “carga horária”. Inferimos, aí, um

endereçamento explícito à interlocutora, pelo conhecimento comum da situação que

envolve esse fio trazido para o discurso, para tecer sua perspectiva de qualidade.

Ressoa, em seu enunciado, a discussão sobre carga horária docente, em pauta

atualmente na instituição, de conhecimento da pesquisadora. Arriscamos inferir um

tom reivindicatório, gerado pelo endereçamento, nos dizeres seguintes: “Não adianta

você ministrar várias aulas e ainda querer que aquele professor tenha um resultado

de pesquisa com os alunos.” Mesmo que o verbo querer tenha sido usado no

infinitivo, está claramente trazendo o outro, que representaria a instituição, para

dentro do seu discurso.

O terceiro “ponto” enunciado disse respeito a “ampliar a relação

empresa/escola, empresa/instituição”. Ao longo da descrição desse ponto, o

professor acabou confirmando sua concepção de formação profissional, já exposta

em enunciados precedentes: “é uma integração entre o que é desenvolvido na

escola como ciência, e o que é aplicado na empresa como trabalho, como resultado,

141

como processos produtivos [...] uma integração verdadeira que é unir o que a

empresa desenvolve, os problemas que ela apresenta e fazer essa ponte para que a

escola, para que a escola técnica, né, uma universidade, acaba desenvolvendo.”

Ecoam, nesta parte de seu enunciado, a voz institucional e a voz das esferas

governamentais, que apontam, como um dos principais objetivos da educação

científica da Escola A, o desenvolvimento e a prospecção de pesquisas aplicadas,

na interação entre a escola A e as empresas, objetivando atender às demandas

nacionais por inovação tecnológica.

Mais adiante, voltou a valorizar o papel da integração com a empresa para “o

desenvolvimento da ciência”, e por permitir que a escola tenha acesso aos

problemas reais que ocorrem na empresa, o que não seria possível sem esta

aproximação: “a escola, por mais que ela tenha acesso às informações, ela não tá

vivenciando o problema, quem vivencia o problema, né, as propostas de soluções é

justamente a empresa, mas ela tem que passar isso. Então, essa integração é muito

importante”. Observamos que, nesse terceiro ponto, o professor reduziu a integração

(que não tem nada a ver com a formação integral) à integração da escola com a

empresa, visando a formar profissionais capazes de atender perfeitamente às suas

necessidades e solucionar seus problemas. Assim, sua preocupação com a

formação se limitou às necessidades da empresa, desconsiderando outros aspectos

do sujeito a ser formado, como por exemplo, a cidadania, que seria objeto da

formação integral ou da formação humanística, com a qual dialogava, no início da

entrevista.

Finalmente, o quarto ponto que trouxe, para compor dialogicamente a sua

perspectiva de qualidade, está relacionada a “um maior investimento do governo, ou

da própria empresa, como acontece isso na Europa, nos Estados Unidos, nas

escolas.” Com essa concepção, constrói o sentido de qualidade atrelado à atuação

da iniciativa privada nos processos formativos da educação profissional brasileira, a

partir de modelos internacionais. Ele considerou que, assim, será possível

“desenvolver cada vez mais a ciência no Brasil” e tirar o país do “nível de

subdesenvolvimento” no qual se encontra.

142

6.5 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DA PROFESSORA CLEO

6.5.1 O contexto extraverbal

O horizonte espacial comum entre a Profa. Cleo e a pesquisadora, na

situação social de entrevista14, foi compartilhado em uma sala da biblioteca da

escola B, na qual se encontravam presentes apenas as interlocutoras. O local foi

escolhido pela professora por ser protegida contra ruídos, uma vez que a escola se

encontrava em obras e o ruído poderia interferir na qualidade do áudio. A entrevista,

que durou cerca de quarenta e cinco minutos, ocorreu em um ambiente de

tranquilidade, no qual não identificamos nenhum acontecimento que pudesse

influenciar seu andamento. Vale ressaltar que o nosso encontro para a entrevista foi

inaugural, o que constitui um horizonte comum mais estreito em relação a outros

professores entrevistados da escola A.

O conhecimento comum entre a Profa. Cleo e a pesquisadora, por serem

professoras do ensino técnico de nível médio, é que sabíamos que ela era

professora de Biologia das séries iniciais do Curso Técnico de Análises Clínicas da

escola B; sabíamos da existência dos PCNEM, das diretrizes curriculares nacionais

para a educação profissional e do projeto político pedagógico da instituição, ao qual

tive acesso no contexto da pesquisa; sabíamos das bases filosóficas marxistas que

norteiam as discussões de ensino profissional na escola B; vivenciamos, nos últimos

três anos, o momento pós-reforma da educação profissional durante o qual a

promulgação do Decreto Nº 5.154/2004 conferiu autonomia para a implementação

da modalidade de formação profissional integrada ao ensino médio; sabíamos que a

escola B permaneceu, até o ano de 2011, oferecendo o ensino médio e formação

profissional em diferentes turnos; sabíamos também das políticas educacionais

centradas na expansão da rede federal de ensino médio técnico no Brasil.

A avaliação comum da situação social da entrevista pode estar relacionada ao

fato de a professora considerar importante a oportunidade de falar do ensino de

biologia, a partir de sua experiência na escola onde trabalha e reconhecer esse

momento como uma oportunidade de fazer ecoar a sua voz na academia, ao

contribuir para uma tese de doutorado.

14

A transcrição completa da entrevista com o Profa. Cleo encontra-se no Apêndice 6 (p.236).

143

6.5.2 Perspectivas da professora Cleo

a) Objetivos do ensino de biologia

Ao se manifestar sobre a formação para o trabalho como o principal objetivo

da EPTM, a Profa. Cleo iniciou o seu enunciado explicitando o horizonte espacial do

qual iria falar (de uma escola politécnica) e pareceu fazê-lo intencionalmente, para

vincular os sentidos que irá construir relativamente a esse horizonte espacial.

Interpretamos essa vinculação como uma tentativa não só de localizar os sentidos

que compõem o seu discurso sobre o objetivo em questão, como também de

legitimar o sentido dado por ela aos objetivos do ensino de biologia na formação

profissional de nível médio. Aproximou, desse modo, suas concepções do princípio

marxista de formação integral, constituinte da proposta pedagógica da escola.

Dialogou, portanto, com o discurso institucional. Pelas marcas na superfície do seu

enunciado, percebida no conteúdo semântico referencial, (“entende o trabalho como

inerente ao ser humano”; “[...] as disciplinas sejam componentes do todo”) inferimos

que há, na fala da professora, leitura, estudos e filiação teórica ao princípio marxista

de formação integral. Ao estender às demais disciplinas o sentido dado ao ensino de

biologia de “formar para a vida”, parece indicar o quanto esse princípio também

baliza a prática dos outros professores.

Os sentidos produzidos na enunciação da Profa. Cleo sobre o objetivo de

formação para o trabalho ampliam essas finalidades para além daquelas exclusivas

de preparação para o mercado de trabalho, que, no seu ponto de vista,

representariam o objetivo de um ensino de má qualidade, uma vez que é “utilitarista”

e “instrumentalista”.

A Profa. Cleo referiu-se a outros objetivos para o ensino de biologia,

construindo, como sentido dessa disciplina, o de algo que sirva para a vida do aluno,

em oposição ao ensino baseado em memorização (“decoreba”), utilitarista ou

visando apenas à preparação para o vestibular.

O uso do recurso linguístico “decoreba,” na expressão “Fugindo dessa coisa

de decoreba”, produz um sentido de desqualificação do ensino tradicional, do qual

ela disse se afastar (“fugindo”). Observamos também a forma depreciativa como se

referiu ao termo em questão, evidenciada em sua fala pela expressão “dessa coisa”,

o que reforça a sua busca para superar o ensino pragmático de biologia e de

submissão ao vestibular.

144

Quando a Profa. Cleo respondeu sobre a seleção de conteúdos de biologia, é

possível considerar, pelo uso do recurso “a gente”, em “A gente segue o programa

oficial, o programa do MEC [...], mas, o programa não muda”, que o sentido de

submissão (“segue”), marca, discursivamente, a sua prática e a dos seus pares

profissionais, uma vez que o programa oficial é orientador das práticas em toda a

escola. Entretanto, parece não se submeter ao livro didático, flexibilizando-o (“a

gente tem um livro didático que eu posso ou não seguir a risca”). Ao introduzir a

sentença com a conjunção adversativa “mas” em “mas... é... o programa não muda”,

expressou seu pesar em relação ao engessamento conferido pelo programa que

está posto. Do ponto de vista de Bakhtin, o programa oficial parece se inscrever na

fala da Profa. Cleo como um discurso de autoridade, isto é, sendo oficial não se tem

a liberdade de concordar ou discordar com parte dele e, sim, de aceitá-lo na íntegra.

A Profa. Cleo, ao dizer que mesmo que o objetivo do ensino na escola B não

vise, de imediato, ao ingresso na universidade, ainda assim, os alunos obtêm bons

resultados em vestibulares e ENEM pelo acesso à formação integral. Subentende-se

que essa formação abrangeria tanto os conteúdos da formação geral quanto os da

formação profissional. É como se assumir declaradamente a preparação dos alunos

visando aos exames para a entrada imediata no ensino superior representasse o

não cumprimento da missão tradicionalmente estabelecida pelos legisladores da

educação para as escolas técnicas, a imediata inserção social no mundo trabalho.

Talvez, por esse motivo, a professora Cleo tenha salientado que o bom desempenho

dos alunos da escola B nos testes de larga escala seja uma “consequência” da boa

preparação que recebem e “não porque seja o nosso objetivo”. Pelo conhecimento

comum entre a professora Cleo e a pesquisadora, é possível considerar que esses

valores ideológicos disputam território nos discursos circulantes no âmbito das

escola A e B, tocando, também, os discursos dos pesquisadores sobre as relações

entre trabalho educação.

A Profa. Cleo justificou a necessidade de realizar constantes atualizações nos

conteúdos pela própria natureza da disciplina que ensina (“é que biologia está

sempre mudando, né?”). Assumiu para si a responsabilidade de fazer novas

inserções, sempre que a ciência se atualiza. Comprometeu-se, também, em mostrar

para os alunos as relações da biologia com a realidade, fato esse evidenciado pelo

uso frequente da forma verbal na 1ª pessoa do singular e do advérbio “sempre” -

“Então eu tento sempre ficar ligada nas atualizações”; “Então eu tento fazer sempre

145

essa ligação, como eu te falei: ligação com a realidade, com a biologia”. Ao enunciar

:“a gente escolheu, a equipe escolheu esses autores”, o marcador léxico “a equipe”

não deixa dúvidas de que o sentido de “a gente”, aqui, inclui, além da professora,

seus pares da área de química no âmbito institucional, como responsáveis pela

escolha do livro didático.

Relatou a apropriação que fez das tecnologias de comunicação e informação

(TIC), internet, facebook e e-mail institucional, como recursos facilitadores da

inserção de novos conteúdos, por meio da postagem de vídeos, buscando

complementar o que foi abordado em aula.

Na sequência enunciativa, emprestou um tom depreciativo à biologia, tal qual

ela em geral é ensinada no nível médio (“a biologia, que é aquela coisa, aquela

entidade cheia de nomes, então, daí eles entenderem pra que aquilo serve pra vida

deles, entendeu?”), para divergir, criticamente, de um ensino e de uma

aprendizagem baseados apenas na memorização de nomenclaturas e acentuar

valorativamente a importância do aprendizado dessa disciplina para a vida dos

alunos.

A Profa. Cleo demonstrou insatisfação com a sua metodologia, por não

conseguir realizar mais aulas práticas: “É... assim... eu sinto falta, ainda, de, não por

uma deficiência da escola, mas acho que de planejamento meu de mais aulas

práticas”. Queixou-se, discretamente, de o uso dos laboratórios ser destinado,

exclusivamente, para a formação técnica e demonstrou uma vontade de superar

todos esses obstáculos para intensificar a inserção de aulas práticas no seu

planejamento. Na sequência da interação discursiva, focou as excelentes

ferramentas das TIC e equipamentos audiovisuais que a escola possui e valorizou

seu uso: “a gente não vai falar da mitocôndria, a gente vai mostrar pra eles”.

Enfatizou, desse modo, a importância da visualização de imagens para o ensino da

biologia, tornando-a, portanto, mais atraente. Demonstrou satisfação com o ensino

que é realizado e atribuiu qualidade ao ensino de biologia desenvolvido na escola,

principalmente, pelo uso dos recursos audiovisuais e de informática, marcada pelo

adjetivo “excelente” (“uma gama de recursos audiovisuais, aqui, excelentes. Todas

as salas têm computador, todas as salas têm televisão, entendeu?”).

Retomou o assunto das aulas práticas, trazendo a voz do professor

preocupado em motivar e agradar os seus alunos – “eu acho que eles (os alunos)

iam gostar também... iam achar legal”. Reforçou a importância que dá às aulas

146

práticas, demonstrando o seu empenho em colher material para essas aulas “To

subindo, lá da Brasil pra cá... já peguei bicho pra trazer... já trago planta, de vez em

quando”.

Deixou claro o grande valor que atribui à aula prática como metodologia de

ensino, a ponto de considerá-la necessária e suficiente para melhorar o ensino de

biologia, marcado em sua enunciação por “É a única coisa que eu faria”. Este trecho

de seu enunciado indica satisfação com o ensino de biologia como ele é realizado,

na medida em que a única coisa que acrescentaria seriam as aulas práticas.

Em resposta à pergunta sobre avaliação, a Profa. Cleo teceu sua perspectiva

a partir da aferição de resultados nas provas que aplica aos seus alunos.

Reconheceu, como natural, as notas abaixo da média (seis) na primeira avaliação

que os alunos realizam, justificando: “É um choque que eles têm”. Com esse

comentário, mesmo sem referência direta, trouxe para o discurso a voz, quase que

consensual e circulante no meio escolar, que aponta o estranhamento dos alunos

diante do grande volume de matérias do ensino médio. Acredita-se que isso dificulte

a transição entre as séries finais do nível fundamental e o início do nível médio, e,

em geral, é associado ao baixo rendimento dos alunos na fase de transição entre um

segmento e outro. Além desse hiato entre os níveis fundamental e médio, referiu-se

à forma como esses conteúdos são apresentados no primeiro (“São ciências, -

biologia, química e física - que eles viam tudo junto, e na maioria das vezes, fora de

um contexto”). Acentuou a importância que dá ao sentido do conteúdo de biologia

construído pelo aluno (“ dizer alguma coisa pra eles”). Interpretamos que não se

trataria apenas de mostrar que a biologia está presente na realidade, é muito mais

do que isso, é relacioná-la com a vida. A sua voz se funde com a perspectiva da

formação integral, que ela demonstra buscar para superar um ensino de biologia

baseado em “decoreba”, e que julga como “maçante”. A recorrência desse sentido

na enunciação indica o quanto a Profa. Cleo se sente incomodada com o ensino de

biologia moldado em bases tradicionais. Atribuiu a melhoria do desempenho dos

alunos, nos trimestres seguintes, ao seu empenho em ensiná-los a “aprender a ler e

tirar as informações essenciais” para a prova.

b) O papel do laboratório no EC

Para a Profa. Cleo, o laboratório é um espaço onde se rompe com o status de

abstração do ensino de biologia e se aproxima do real (“é a prática”). Rejeita o

147

ensino baseado apenas em memorizações e desvinculado da realidade e da vida do

aluno – “Só não ficar naquela coisa: ah, sistema digestório... não sei o quê...”,

posicionamento que é reforçado ao emitir, logo a seguir, a frase exclamativa “Não!”,

apontando para o desejo determinado de mudança, de tornar esse ensino mais

significativo para o aluno. Percebe-se, também, uma tensão entre atender às

expectativas citadas e não abandonar o texto (o livro?) “abre o texto, mostra pra eles

lá, sabe?”. Ressoa, em sua fala, a voz do discurso oficial (do MEC) como uma

palavra de autoridade, determinadora dos conteúdos a serem ministrados em sala

de aula pelos professores, dentro de um determinado prazo. Encontra-se aqui outra

tensão: submeter-se às exigências do MEC ou romper com as amarras dessas

determinações, construindo outras perspectivas para o ensino de biologia? Ela se

cobra essa mudança “mas eu não desisti dessa ideia não”. O uso da primeira

pessoa e a entonação com a qual se expressou indicam que essa busca é sua,

independente de ser ou não compartilhada pelos seus pares.

c) Interesse e desempenho dos alunos

A Profa. Cleo constrói a sua perspectiva sobre o objeto do discurso de um

lugar específico, “turmas de primeiro ano”, e afirmou buscar “desconstruir” a biologia

ensinada no segmento do Ensino Fundamental (“Eles até chegam...”). Pelo todo do

enunciado, é possível considerar que a expressão “com pré-conceitos” completaria o

sentido da frase anterior. A ênfase dada ao verbo “desconstruir” mostra que ela

considera muito ruim o ensino de biologia do segmento do Ensino Fundamental, a

ponto de descartá-lo totalmente (“vamos começar do zero aqui”). É como se

dissesse aos alunos que nada do que aprenderam até aquele momento está correto

(“esqueçam tudo que vocês ouviram sobre esse assunto.”). Ao assumir esse

posicionamento, inferimos que se representa, no texto, pelo discurso de autoridade.

Isso porque parece acreditar ter o poder de eliminar os “pré--conceitos” com que os

alunos chegam ao Ensino Médio. Entendemos que a professora acredita poder

destruir as concepções espontâneas ou alternativas, que caracterizam o conjunto de

conhecimentos científicos que os alunos vão adquirindo ao longo da vida. E, assim,

a partir do que ela ensina, transformá-los para melhor, melhoria essa atestada por

ela, no segundo ano.

Os sentidos produzidos na enunciação para o desempenho e interesse dos

alunos, em relação ao ensino de biologia, relacionam-se, quase que exclusivamente,

148

com a forma como ensina, baseada na “desconstrução” do ensino de Biologia

realizado anteriormente, e na sua posterior transformação.

d) Formação Integral

Na concepção da enunciadora, a formação integral tem um sentido totalizante

do ser humano, uma vez que “não exclui nenhuma possibilidade de realização para

o ser humano”. O marcador linguístico “aqui”. em “ah, você tem todas as disciplinas

que uma escola tradicional tem, mas eu acho que é muito segmentado. A nossa luta

aqui [...] é tentar fazer isso de um modo integrado, sabe?”, pressupõe um “lá”. O

primeiro representa a escola onde trabalha e o segundo marcador, a escola

tradicional. Com isso, hierarquiza os dois espaços, colocando o seu espaço de

trabalho em posição superior ao da escola tradicional, porque “não engessa o ser

humano”.

Na sua concepção, o que caracteriza a educação profissional vigente no

Brasil são as atuais determinações de um país capitalista e relacionou essa

concepção econômica com as atuais políticas públicas do governo federal para essa

modalidade de formação. Ao fazê-lo, se contrapôs claramente à visão de educação

profissional do atual governo: “o governo, agora, só fala em educação profissional,

mas é outra perspectiva que ele tem, entendeu? É outra visão”.

A recorrência da palavra “luta” aponta para um sentido de mobilização

constante “diária” para alcançar a plenitude da formação humana proposta no

discurso institucional (“Tem uma luta, tem um ... o jogo está posto, está na mesa”), o

que indica o seu compromisso com o projeto da escola. Faz dele a sua perspectiva,

quando acentuou: “é um projeto lindíssimo, [...] sou fã dessa escola”. Em seguida,

trouxe outro fio para o seu discurso, para tecer mais um sentido para a integração,

que é o da interdisciplinaridade (“mas a interdisciplinaridade, ela é buscada e a

integração é buscada todo dia, toda hora, com os colegas e com a formação geral e

formação técnica e trazer o que tem na escola, articular com a realidade dos

meninos”). Nesse ponto da enunciação evidenciou sua preocupação em preparar o

aluno para vida, valorizando a formação profissional sem negligenciar a formação

humana, porque, ao mesmo tempo em que “o objetivo da escola é formar técnicos

para o SUS”, ela questionou: “Mas que trabalhador que a gente tá formando? Quem

é essa pessoa?”.

149

Buscando compreender melhor como estava se apropriando do conceito de

interdisciplinaridade, perguntei-lhe se conseguia realizá-la com facilidade, tendo ela

respondido que não. Ao discorrer sobre a interdisciplinaridade, enunciou duas

abordagens (“tanto a interdisciplinaridade dentro da formação geral, que já é uma

luta, entendeu, quanto à interdisciplinaridade de formação geral e formação técnica,

pra perder aquela coisa que eu te falei de disciplina instrumental”), reforçando o

quanto são difíceis de concretizarem, pelo uso do marcador léxico “luta”. A

professora Cleo acrescentou que sua intenção, com a busca que acabara de

enunciar, seria a de superar a visão de disciplina instrumental. O grau das reflexões

que se apreende em seu comentário, e que amplia a interdisciplinaridade para além

da integração entre as disciplinas curriculares, indica estudos sobre o tema.

A Profa. Cleo informou que, recentemente, ocorreu, na escola B, uma

mobilização para a elaboração de um projeto, uma disciplina integradora,

denominada Iniciação à Educação Politécnica (IEP) (“que se pretende como uma

disciplina integradora”). Tal sentido de mobilização é identificado no texto com o uso

reiterado das palavras “luta” e “busca”. Segundo a professora, a escola está criando

essa disciplina buscando concretizar a proposta de formação integral e legitimar os

princípios fundantes, mas esse processo se dá mediante luta diária contra as

amarras do sistema educacional.

Os sentidos de formação integral aqui identificados emergem da esfera social

de onde fala a Profa. Cleo: uma escola politécnica comprometida com a capacitação

permanente dos professores: “a escola bota a gente para trabalhar e pensar mesmo

[...] a gente tem várias instâncias de discussão o tempo inteiro”. O contexto imediato

no qual se insere influencia diretamente os sentidos que ela traz para a enunciação

sobre o ensino de biologia na formação profissional de nível médio.

e) Apresentação do conhecimento científico

Ao abordar o conteúdo referencial da pergunta, a Profa. Cleo remeteu seu

sentido à formação completa, relacionando-a à base filosófica “muito forte” ,

oferecida pela escola B e não em outro lugar, o que é marcado pelo uso do “aqui”.

Distancia-se do papel de protagonista dessa perspectiva de formação em sua prática

pedagógica quando a atribuiu à IEP (“A IEP faz bem essa função nos eixos que ela

trabalha”). Tal afastamento confirma-se na sequência dialógica, quando assume não

realizar tal prática, ao explicitar “Não trabalho com essa área diretamente não” e

150

“essa discussão é bem trabalhada com eles”, preferindo o “dito” ao “presumido”. A

Profa. Cleo acrescentou que “que o primeiro ano é um trabalho de desconstrução,

muita coisa, né, porque eles vêm meio que adestrados”. O “adestramento” no ensino

de ciências no nível fundamental entrou em seu discurso como um valor negativo e,

como tal, pressupõe sentidos para o ensino de biologia da escola B que,

conjecturamos, esteja ligado ao desenvolvimento da capacidade questionadora e de

autonomia do sujeito. Valoriza assim, em seu discurso, o trabalho pedagógico da

escola onde atua como um espaço de formação privilegiado em relação aos demais.

f) Documentos oficiais

A enunciadora optou por dizer que é “por um acaso” que teve acesso aos

documentos oficiais e relacionou esse acaso, em seu discurso, ao mestrado que

cursa na escola em que trabalha em educação profissional em saúde. Interpretamos

que a Profa. Cleo não precisa desses documentos para ser professora, mas, tendo

contato com eles, critica a concepção de educação profissional vigente no Brasil e

posiciona-se contra essa visão, ao expressar-se de forma depreciativa, evidenciado

por “Aquela coisa utilitarista, economicista” e traz para o seu discurso a voz

institucional para argumentar a favor de uma perspectiva diferenciada de trabalho “a

escola entende trabalho como... assim... característica do ser humano mesmo”. É

possível identificar em seu discurso o papel que ela atribui à escola B, na luta contra

a perspectiva do governo sobre educação profissional.

Entretanto, reconheceu os desafios a serem enfrentados para a

implementação dessa perspectiva de formação para o trabalho, evidenciados por

“mas essa luta está posta, né? Não terminou]”. É possível dizer que a professora

abordou a perspectiva do discurso institucional, preocupada em implementar a

formação integral, tal como concebida em seu projeto pedagógico. Dialogou com as

proposições contidas nos Decretos 5154 e 2208, cuja voz oficial ela trouxe para o

seu discurso para ratificar que, embora o Decreto 5154 tenha representado uma

vitória sobre o Decreto 2208, por aproximar-se das perspectivas de formação

integral constituintes da filosofia da instituição, a luta é diária, nada está posto. (“ A

gente tá matando um dragão por dia”) Nesse ponto, interpretamos que a perspectiva

que compõe a sua fala é a de que há uma total contraposição entre a visão de

formação integral que a escola B tenta implementar e o sentido apropriado pela

legislação oficial.

151

g) O papel da pesquisa

A professora Cleo respondeu à pergunta sobre o envolvimento dos alunos em

projetos de pesquisa declarando que não o pratica em relação a sua disciplina

(Biologia). Relatou que essa atividade se dá no terceiro ano, quando os alunos têm

uma monografia para apresentar e a disciplina de IEP. Disse que, desde o segundo

ano, eles procuram um professor para orientá-los “nos moldes de qualquer TCC”,

dando a entender que esse processo ocorre no formato dos trabalhos de conclusão

de graduação vigentes nas universidades. Ao desenvolver como este processo é

realizado, parece valorizá-lo, levando em conta o fato de os alunos escolherem os

temas de pesquisa e se familiarizarem com a “busca bibliográfica” e com a “escrita”.

Apontou um acento de valor dado ao gênero escrita científica, que, segundo a

professora, não visa apenas à monografia, mas à formação de um pesquisador (“É

muito legal. É o que eu falo: o objetivo não é nem a monografia em si. Eles saem

daqui pesquisadores”).

No enunciado seguinte, a professora acrescentou que está envolvida com

projetos de pesquisa com vários alunos de séries mais adiantadas e, pela

expressividade, demonstrou que é bastante procurada para orientação e parece se

orgulhar disso.

Em seguida, questionada a respeito dos princípios e valores que orientam a

pesquisa que realiza com os alunos, a professora voltou a valorizar o incentivo à

“disciplina” e ao “hábito” de pesquisa nas mais variadas fontes bibliográficas, com

base no rigor de uma pesquisa científica. Ao rememorar que, em geral, as pessoas

só aprendem a “recortar” o objeto de pesquisa quando se tornam pesquisadoras nos

cursos de pós-graduação, aprecia valorativamente o fato dos alunos já o realizarem

no nível médio, durante a formação profissional, já sendo, assim, iniciados “no

mundo mesmo da pesquisa”. A professora classificou essa inserção como mais

importante do que o tema a ser escolhido para a pesquisa, equiparando a autonomia

para a escolha do tema ao estímulo à investigação, por pesquisarem aquilo de que

gostam (“Acho que o tema acaba sendo consequência. Acaba sendo, assim, é como

se fosse um incentivo: eles escolhem um tema que eles gostam e aprendem a

pesquisar”), produzindo o sentido de que, para ela, o maior valor está em o

estudante aprender as práticas de pesquisa usuais no mundo acadêmico.

152

h) Qualidade

No Quadro 7, reproduzimos as perspectivas de qualidade, tais quais foram

registradas pela Profa. Cleo em uma ficha.

Quadro 7: Respostas da Prof. Cleo à atividade escrita sobre Qualidade

1. Ciência vida.

2. Ciência diferente de decoreba.

3. Proximidade Ciência realidade.

4. Aplicação prática do conhecimento.

5. Êxito em concurso = consequência e não objetivo.

Revisitando a análise dos enunciados precedentes, percebemos que o

conjunto de perspectivas elencadas pela Profa. Cleo reflete os elementos

acentuados, discursivamente, na situação de interlocução com a pesquisadora,

indicando que esse conjunto parece representar o seu posicionamento ideológico

diante da questão da qualidade do ensino da biologia.

O enunciado “Ciência vida”, assim representado, reflete o sentido tecido

pela professora para o ensino de biologia, ao longo da entrevista, marcado nas

expressões “a minha ideia de biologia é a de formação pra vida”; “a biologia é,

assim, a essência da vida”. Ao delinear esses objetivos, produz, discursivamente,

sentidos sobre a sua prática que negam a abordagem que visa à memorização dos

conteúdos e, prioritariamente, à preparação para o vestibular. Ao mesmo tempo,

ressalta outros valores que seriam a “Proximidade Ciência realidade”, cuja conexão

pode ser estabelecida com os sentidos apreendidos no comentário (“Eu ensino

biologia porque eu acho que é pra vida deles (dos alunos)”.

O sentido produzido pela última expressão registrada na ficha (“Aplicação

prática do conhecimento”) poderia ser interpretado como antagônico aos sentidos

apreendidos na expressão “a biologia é isso aí: é mais um componente da vida do

aluno e não uma coisa instrumental para o trabalho”; “não é assim pragmático”, o

que, na perspectiva bakhtiniana, não representaria nenhum problema, pelo caráter

dialético e dialógico que empresta às enunciações em sua filosofia da linguagem. No

entanto, revisitando os textos da sua entrevista, não foi possível correlacionar o

sentido de “aplicação prática” a “instrumentalismo”, mas sim ao sentido de relacionar

153

o conhecimento científico com o mundo real, da natureza. Por exemplo, isso ocorre

quando a professora se refere às aulas práticas: “eu poderia dar mais aulas práticas,

eu acho que eles iam gostar também, iam achar legal”; “Tô subindo lá da Brasil pra

cá, já peguei bicho pra trazer, já trago planta, de vez em quando mostro pra eles,

mas nunca planejei uma aula assim, entendeu?”.

6.6 ANÁLISE DAS ENUNCIAÇÕES DO PROFESSOR MURILO

6.6.1 O contexto extraverbal

No tocante ao horizonte espacial comum aos interlocutores, a situação social

de entrevista15 ocorreu na escola B, em um espaço reservado por ele na sala de

coordenação da área de biologia. Havia uma secretária em uma sala vizinha,

separada apenas por uma divisória. Em alguns momentos, pessoas passaram pela

sala, porque a porta de entrada era comum às duas salas, o que, aparentemente,

não trouxe problemas à interlocução. Entretanto, considero que o pedido do

professor para que não nos alongássemos muito, porque tinha compromissos

pessoais inadiáveis influenciou a entrevista, fazendo com que eu tenha administrado

a forma de conduzir algumas perguntas de maneira diferente. Por exemplo,

perguntei sobre alguns tópicos em uma mesma pergunta, conforme já exposto no

início deste capítulo.

O momento da entrevista foi o nosso primeiro encontro, portanto, o presumido

entre o entrevistado e a pesquisadora integrava um horizonte comum mais estreito

em relação a outros professores entrevistados da escola A. Por sermos professores

atuantes na educação técnica de nível médio, sabíamos da existência dos PCNEM,

das diretrizes curriculares para a educação profissional e do projeto político

pedagógico da escola, ao qual tive acesso no contexto da pesquisa; sabíamos das

bases filosóficas marxistas que norteiam as discussões de ensino profissional na

escola B. Também eram comuns os conhecimentos de que o professor Murilo

ministrava aulas no Curso Técnico em Análises Clínicas; atuava na parte específica

do currículo correspondente à formação técnica e na formação geral; sabíamos das

15

A transcrição completa da entrevista com o Prof. Murilo encontra-se no Apêndice 7 (p.240).

154

bases filosóficas marxistas que norteiam as discussões de ensino profissional na

escola B; vivenciamos o momento de reforma da educação profissional, no qual a

promulgação do Decreto Nº 5.154/2004 conferiu autonomia para a implementação

da modalidade de formação profissional integrada ao ensino médio; sabíamos que a

Escola B permaneceu, até o ano de 2011, oferecendo o ensino médio e formação

profissional em diferentes turnos e vivenciamos juntos o momento histórico de

intensificação da expansão da rede federal de ensino técnico.

A avaliação comum que ambos fazíamos da situação de entrevista estava

relacionada à importância dada à participação em uma pesquisa para uma tese de

doutorado em ensino, oriunda da UFRJ, instituição reconhecida pela relevante

produção científica. Outra avaliação comum era a de que suas contribuições seriam

endereçadas à academia e, portanto, poderiam produzir eco nesse meio e que

falava, também, para uma professora da escola A.

6.6.2 Perspectivas do professor Murilo

a) Objetivos do ensino de biologia

Questionado sobre os objetivos do ensino de biologia no contexto da

formação técnica, o Prof. Murilo disse que a resposta a ser dada poderia ser

examinada de duas maneiras: uma mais “tranquila” e outra mais “complexa”,

considerando a diversidade de habilitações profissionais oferecidas pela escola B.

Para ele, o aluno do curso técnico em análises clínicas tem “uma relação inequívoca

com a biologia, porque são conceitos fundamentais para ele desempenhar um bom

papel no campo profissional.” Em seguida, trouxe para o discurso a sua visão crítica

do currículo de biologia, por este estar “sofrendo com esse processo de

“vestibularização” do ensino médio.” Ao fazer uso da expressão “sofrendo”, criticou o

ensino médio, devido à finalidade única de preparar para o vestibular.

O sentido apreendido na classificação das maneiras de responder (tranquila

e complexa) é o de que, a depender do curso, esses objetivos estão postos ou não.

No curso técnico em análises clínicas, os objetivos do ensino estão dados, porque

os conceitos de biologia constituem a parte específica da formação técnica, estando,

assim, relacionados às solicitações do campo de atuação profissional. Em relação

aos demais cursos não profissionalizantes, nos quais a disciplina de Biologia não

155

compõe a parte específica do currículo, a resposta torna-se mais complexa, na

medida em que, apesar de o professor manifestar o desejo de permanecer com os

mesmos objetivos, alunos de escolas particulares e alguns de terceiro ano da escola

B tentam “entender um pouco mais a biologia a partir do que é pedido no vestibular”.

Este fato foi criticado pelo professor, quando ele trouxe para o território da

enunciação a sua visão crítica, confirmando o comentário anterior em relação ao

vestibular. Segundo ele, isso é “algo extremamente nocivo pro ensino médio”, o qual

não deveria se restringir a esse objetivo. Ao prosseguir, explicou por que considera o

vestibular nocivo: “um processo meritocrático, um processo de seleção bastante

excludente...”, seja pela falta de maturidade dos alunos ou pela ausência de

conexão entre o que é cobrado nesse exame e o que estão estudando na escola.

Além de considerar os conteúdos de biologia como centrais para o técnico em

análises clínicas, sua visão acerca da formação para o trabalho valoriza a seleção

de “saberes” que desenvolvam o senso crítico do aluno. A partir desse ponto de

vista, o professor criticou uma concepção utilitarista de educação profissional,

diferenciando essa visão da visão da escola B, em cujo grupo se inclui. Esses

sentidos foram apreendidos no comentário que fez logo a seguir, a partir de suas

experiências em outras escolas, que, segundo ele, entendem a formação do técnico

“como um mero reprodutor de determinados procedimentos, o que vai totalmente

contra o que a gente acredita.”

Contrapôs a essa noção, a filosofia de formação profissional da escola B, com

a qual concorda: “a gente acredita no trabalho como um principio educativo”. Ao

incorporar esse conceito ao seu discurso, dialogou diretamente com os princípios

marxistas de formação integral e o definiu como um dos “eixos desse componente

inter, transdisciplinar, multidisciplinar”, denominado de iniciação à educação

politécnica. Acrescentou à sua posição um sentido de busca, de esforço

empreendido por ele e seus pares, marcado na expressão (“a gente tenta

trabalhar”), o que também marca a dificuldade de se conseguir esse objetivo.

Ao ser questionado a respeito do estabelecimento de outros objetivos para o

ensino de biologia, além da formação técnica, o Prof. Murilo descreveu uma forma

“privilegiada” de ensinar a biologia, relacionando-a à realidade do estudante.

Aproximou essa forma ao pensamento de Paulo Freire. Em seguida, contrapôs o

ensino de biologia, que acabou de descrever, a outra forma de ensiná-la, a

156

conteudista, com base na associação (memorização) que depois será esquecida.

Classificou-a como “uma ferramenta pra alienação do estudante”.

b) Seleção de conteúdos, metodologia e avaliação

Ao ser perguntado em que medida o estabelecimento de outros objetivos para

o ensino da biologia interferem na seleção de conteúdos, metodologia e avaliação, o

Prof. Murilo se remeteu à “ementa disciplinar”, afirmando que esta deve ser

continuamente discutida. Antes de prosseguir, confessou que esqueceu a pergunta

e, com um tom de brincadeira, entre risos, acrescentou que tem Alzheimer.

Após ouvir novamente a pergunta, o Prof. Murilo nos explicou que divide a

disciplina com outro professor e demonstrou valorizar essa prática, ao chamá-la de

“privilégio”. Ao descrever a metodologia que prioriza em suas aulas, fez ressoar em

seu discurso a perspectiva enunciada anteriormente: “a gente sempre tenta puxar

uma discussão, vou ser repetitivo aqui, pra junto da realidade do estudante”. O

professor, com atitude responsiva ativa, exemplificou com a metodologia usada para

ensinar “herança quantitativa dentro da genética e utilizar o exemplo da cor da pele”.

Nesse tópico, faz a relação com dois outros temas: “racismo” e “eugenia”. Seu

exemplo confirmou sua visão de formação integral, que aponta para uma inter-

relação ampliada entre o conteúdo da biologia e os fatos sociais, não se limitando

apenas ao contexto próximo ao estudante. Concluiu o exemplo com uma expressão

de valor sobre seu ensino: “tão importante quanto saber esses conceitos, são as

possíveis aplicações desses conceitos”. Na esteira dessa conclusão, questionou se

a ciência é imparcial e enunciou a visão institucional ou, pelo menos, a sua visão

(“Nós aqui entendemos que não, ou pelo menos eu entendo que não”). A partir

desse entendimento, justificou os objetivos do seu ensino: “a gente também vai

trabalhar de maneira mais enviesada”, ou seja, também não imparcial. Desta

discussão, depreendemos que, para o professor, diante de uma ciência considerada

não neutra, o ensino precisa ser não neutro.

No discurso sobre a sua prática, o professor acentuou o valor que dá à

abordagem crítica dos conteúdos de biologia, interpretada como a sua forma de

implementar a formação integral. A partir dessa apropriação, o Prof. Murilo, mais

uma vez, deixou clara a diferença entre a forma crítica de ensinar (“ fornecer

subsídios ali pra uma troca de ideias riquíssimas) e a forma alienante (“esquema

alienador pro estudante”).

157

c) O papel do laboratório no EC

Ao ser questionado sobre o uso do laboratório no ensino de biologia, o Prof.

Murilo, logo nas palavras iniciais de seu enunciado, expôs sua visão: “o laboratório é

maravilhoso”. Em seguida, nos explicou o ponto de vista enunciado: “o aluno ali tá

vendo conceitos muito práticos”. Na sequência, ao enunciar: “Mas, algumas vezes

talvez a gente abstraia demais, ou fazemos encadeamentos que fazem com que o

estudante se perca talvez um pouco no caminho”, manifestou sua preocupação em

equilibrar, no laboratório, o caráter abstrato do conhecimento nesse nível de ensino.

Nesse ponto, explicitou a disciplina com que trabalha (“Protozoologia”) e

descreveu discursivamente a sua prática no laboratório. Em sua descrição,

observamos que também no laboratório, o professor tem a preocupação, já

enunciada, de problematizar os conteúdos, relacionando-os à realidade social do

aluno, (“Não há saneamento básico ali, ou talvez essa água que é utilizada pra

irrigação, talvez não seja tratada ”) para além das técnicas que ele vai aprender.

Ao reconhecer que a carga horária total da disciplina que ministra não é

suficiente para formar “um expert em microscopia”, o professor contrapôs o conteúdo

que o aluno “vai aprender” às problematizações críticas relacionadas ao conteúdo. O

uso da expressão “vai aprender” remete a uma classificação da aprendizagem do

conteúdo em relação à visão crítica: o conteúdo poderá ser aprendido depois, na

vida profissional, já que não há tempo hábil para aprendê-lo totalmente na disciplina,

enquanto a visão crítica não é tão certa que será e, portanto, deve ser privilegiada

agora.

O professor acredita que os alunos irão ampliar o conhecimento técnico na

prática, ao exercerem a profissão, visão que construiu a partir da sua trajetória

profissional (“ tenho aí um rastro de trabalho técnico”), por ter adquirido grande parte

do conhecimento que detém “na bancada”. Porém, a visão crítica que, para ele, seria

necessária para uma “formação diferenciada”, seria o que valoriza o profissional

(“que um profissional, um chefe, um coordenador, entenda esse profissional como

algo muito maior que um simples reprodutor ali de coisas”).

d) Interesse e desempenho dos alunos

Em relação ao interesse e o desempenho dos alunos em suas aulas, o Prof.

Murilo considerou que os alunos gostam mais de biologia do que de física ou de

química. Atribuiu a origem do desinteresse nessas disciplinas aos “ preconceitos,

158

né, que esse estudante tem contato, seja dos pais, seja dos próprios professores

que acabam usando várias vezes a química e a física como exemplos de matérias

demoníacas”, mas reconheceu que há conteúdos de biologia pelos quais os

estudantes também não se interessam.

Na continuidade, relatou como desenvolve o seu trabalho nas turmas de

terceiro ano, considerando a maturidade dos alunos nessa etapa. Sua descrição

apontou para um aprofundamento das discussões na disciplina de “Protozoologia”, a

partir das análises dos altos índices de mortalidade, no Brasil e na África, causada

por doenças que existem há bastante tempo, índices esses, porém, pouco

divulgados. Expôs, também, sua intenção ao utilizar essa metodologia, que seria a

de “despertar os alunos para outros aspectos”. Indicou, pelo conteúdo temático do

enunciado, que se preocupa com os aspectos políticos e sociais no ensino da

biologia.

A seguir, comparou as consequências do mau desempenho na profissão

docente às consequências de um mau desempenho no trabalho técnico (“Olha, o

meu exercer a profissão de maneira ruim, é ele ter uma aula ruim. Mas, uma coisa

que ele pode na sua caminhada compensar. Um mau técnico, ele pode muitas das

vezes tá causando a morte de um paciente”), construindo a ideia de que as primeiras

têm como ser compensadas ao longo da trajetória do aluno, enquanto as últimas,

não.

O Prof. Murilo comparou ainda os objetivos da educação profissional da

escola B, na qual atua como docente, com os da escola A, onde recebeu a sua

formação técnica. Relatou que, na escola A, recebeu formação para a pesquisa, (“eu

fui formado, preciso dizer isso, pra pesquisa, tá?) e na escola B, “o aluno é “formado

para o SUS...”. A seu ver, a diferença entre esses objetivos pode implicar diferentes

direcionamentos para vida dos alunos. Trouxe para o discurso o exemplo da sua

trajetória profissional, para dizer que a formação técnica recebida na escola A o

direcionou para o trabalho com um pesquisador reconhecido na área, (“eu saí de lá,

fui trabalhar com Radovan Borogevick, que é um cara relativamente famoso”)

enquanto que, na escola B, o estudante sai direcionado para “estagiar num posto de

saúde, ele vai estagiar no INCA, né? É diferente, é diferente”). O tom usado, ao

verbalizar as palavras finais desse comentário, e o seu conteúdo temático sugerem

que o Prof. Murilo hierarquiza os objetivos de formação técnica das duas escolas. O

159

primeiro, da forma como foi enunciado, indica prestígio no meio acadêmico e o

segundo é como se fosse um objetivo cujo valor social não é reconhecido.

Ao discorrer sobre o objetivo da formação técnica oferecida pela escola B, o

Prof. Murilo pôs em tensão a formação técnica para o SUS e as expectativas dos

alunos em relação ao curso, inferindo que estes preferem a formação voltada para a

pesquisa à formação técnica, pois “um estudante de cada trinta dentro de uma sala

levanta a mão quando a gente pergunta quem quer trabalhar como técnico.”

Ele lamentou que o aluno formado pela escola B acabe não indo trabalhar no

SUS, ressaltando o quanto seria importante que fosse, talvez pela carência de

técnicos de boa formação nesse sistema, que acaba “recrutando o cara que tem

uma formação técnica totalmente mecanizada”. Concluiu seu enunciado pondo em

dúvida a hipótese que acabara de enunciar: “É isso. Eu tenho muito mais dúvidas do

que respostas”.

e) Formação Integral

O Prof. Murilo respondeu à pergunta sobre formação integral com uma

exclamação: “Que pergunta difícil!”, julgando-se incapaz de respondê-la, por

considerar que não tinha repertório suficiente para tal. Pelo uso do recurso

linguístico “viajar”, na expressão “tentando viajar sobre isso”, pareceu anunciar que

ia tentar elaborar, ou teorizar sobre esse tema à medida que respondia.

Passou a falar da formação integral a partir da realidade da escola B, e de

diferentes lugares sociais ocupados por ele nesse contexto, por atuar como

“coordenador da disciplina que visa integrar os conteúdos”, como professor da

disciplina técnica, como professor de biologia no ensino médio, já tendo sido,

também, professor de metodologia da pesquisa. Com a descrição dos diferentes

lugares que ocupa e que já ocupou, trouxe, para o discurso, o sentido de que a

convivência com os diferentes profissionais responsáveis pelas disciplinas já

enriquecem a percepção do estudante. Interpretamos que, ao fazer esse

comentário, o professor aproximou esse enriquecimento da formação integral.

Para explicar o que acabara de enunciar, o Prof. Murilo se referiu aos

profissionais que ingressam na escola B com a intenção de substituir o trabalho que

realizavam “na bancada há anos”, mas, que acabam chegando ao entendimento de

que o trabalho na escola B “é muitas vezes muito mais penoso do que você lidar

com camundongos, ou com célula”. A partir desse comentário, relacionou a

160

experiência vivida por esses profissionais como capaz de proporcionar-lhes “uma

formação inclusive humana”. Assim, esses profissionais da área técnica transformam

seu conhecimento, na escola B, em “algo mais pormenorizado”, que será

contextualizado, por outro profissional, “dentro do todo”. Interpretamos que o Prof.

Murilo compôs, a partir das trajetórias dos professores que atuam na escola B, uma

perspectiva de formação integral, resultante do inter-relacionamento entre o

conhecimento pormenorizado e o todo. Esta forma de compor sua concepção

também parece indicar a centralidade dada por ele à influência dos docentes no

processo formativo de seus alunos.

Tentando conceituar a formação integral por outras vias, mais uma vez ele

trouxe a sua experiência como estudante da escola A para classificar a formação

integral oferecida lá, em relação à formação integral oferecida pela escola B.

Concluiu que ela não existe nem em uma e nem em outra, mas que na escola B há

uma “tentativa” de implementá-la via “reorganização curricular”. Ele mostrou, por

meio de um “exemplo bocó”, a falta de integração na escola B, na medida em que as

disciplinas “de ensino médio” eram dadas em um turno e “o ensino técnico” em

outro. Ressaltou que essa organização está sendo modificada agora e será avaliada

em quatro anos.

Trouxe novamente o caso da escola A para enunciar a total falta de

integração, já em que as disciplinas são “muito mais entendidas como caixinhas” do

que como “parte maior de um todo.”. Para o Prof. Murilo, a visão integrada de ensino

que defende não hierarquiza as disciplinas, pelo contrário, tenta igualar a

importância das mesmas para a formação (integral) do estudante. Em seguida,

passou a discorrer sobre a visão “estigmatizada” do aluno em relação à disciplina de

Iniciação à Educação Politécnica (IEP), por não contemplar “um processo de

avaliação individual”. Em sua avaliação, o desinteresse demonstrado pelos alunos

deve-se à falta de maturidade dos mesmos, que acaba por impedir que estudem

com mais espontaneidade (“de peito mais aberto”). Interpelado pela pesquisadora

com o comentário de que os alunos gostam mesmo da disciplina que se dá em um

processo mais tradicional, com avaliação, ele complementou: “quase uma Síndrome

de Estocolmo” e, assim, associou a perspectiva de um “processo avaliativo

traumatizante” à perspectiva do estudante, mas, também, não discorda de sua

importância”.

161

Nas palavras finais do enunciado, o Prof. Murilo problematizou a formação

dos professores que atuam na escola B sem terem cursado a licenciatura. Para ele,

a licenciatura não deve ser considerada como “um penduricalho”, mas a reconhece

como espaço de amadurecimento das discussões acerca do que acontece e do que

é a sala de aula. Ao trazer essa perspectiva para o discurso, demonstrou, mais uma

vez, o quanto o professor valoriza o processo de formação de professores.

f) Apresentação do conhecimento científico

Para falar da apresentação do conhecimento científico na formação técnica, o

Prof. Murilo iniciou sua enunciação relatando que é necessário legitimar o

conhecimento que discute com os seus alunos, vinculando-o aos resultados de

pesquisas acadêmicas publicadas em periódicos. É possível considerar que o

professor lamenta o fato de ter de usar a autoridade do conhecimento científico para

legitimá-lo diante de seus alunos. Por outro lado, o professor pareceu valorizar a

experiência acadêmica dos estudantes da escola B, habituados a lidar com

periódicos, a frequentar congressos e incentivados a pesquisar em bases de

pesquisa, indicando o quanto o ensino na escola tenta aproximar os estudantes do

mundo acadêmico.

Tendo retomado o tema central da pergunta com a intenção de apreender o

modo como a visão de ciência é passada para os seus alunos, o Prof. Murilo, logo

nas palavras iniciais do seu enunciado, com o uso do verbo “desconstruir” em “a

gente tenta desconstruir isso”, pareceu se referir à autoridade atribuída à ciência,

mencionada anteriormente. (“Porque se eu falar pra ele pura e simplesmente, ele

não vai acreditar muito. Então, o estudante daqui ele tá acostumado com esse lidar,

com periódicos”) Em seguida, ele mencionou a disciplina IEP, que tenta fazer um

“resgate histórico” do que “a gente chama de ciência”.

O Prof. Murilo expôs uma contradição, na medida em que o esforço recém

descrito convive com uma visão “dentro de uma instituição de saúde”, na qual as

ciências biomédicas “muitas das vezes é colocada como algo soberano.”

O comentário acerca da “brincadeira” que faz com os alunos (“Pô, por que

você vai ao shopping, vai comprar um colchão com um cara que tá de jaleco?”), nos

permite interpretar que esta é uma forma de fazê-los refletir sobre a autoridade da

ciência na sociedade.

162

Ele mostrou o esforço de todos (“a gente tenta mostrar pra ele, eu tento

mostrar pra ele, vários outros profissionais, a escola oficialmente ”) ao discutir a

visão da ciência como algo soberano, mencionada anteriormente, e que agora

relacionou ao positivismo. Essa discussão mostraria que o conceito de eficiência

“talvez seja muito mais amplo que isso” e que “não é demérito um conjunto de

saberes não ser classificados como ciência”.

Ele deixou claro que não são todos os professores que compartilham essa

desconstrução, pelo contrário: “Eu acho que é tanto o professor que entra colocando

a minha ciência como algo acima do bem e do mal ”. O Prof. Murilo atribuiu a esses

professores o fato de essa desconstrução poder não seduzir os estudantes (“talvez

não os pegue muito não”).

Ele estendeu essa visão de Ciência (como instituição acima do bem e do

mal) ao curso superior e considerou que só quando o estudante estiver lidando com

quem faz ciência, vai entender “que existem várias outras coisas que envolvem aí

esse ambiente, do ego a, enfim, uma série de outros pontos que podem ser

analisados aí”.

g) Qualidade

Perguntado diretamente sobre o que é um ensino de biologia de qualidade na

formação técnica, o Prof. Murilo deixou ressoar, em seu enunciado, a perspectiva já

construída por ele ao longo da entrevista que é a do ensino que leva o aluno a

questionar, estimulando o senso crítico, independente de ser “utópico ou não”.

Na continuidade do seu discurso, comparou os estudantes de escolas

privadas de classe média alta com os alunos da escola B, para dizer que o segundo

grupo tem discussões “muito mais amadurecidas”, hierarquizando, assim, o ensino

oferecido pela Escola B como superior ao de escolas privadas.

Ele descreveu a escola/corpo docente como um “mosaico louco”, dando a

ideia da pluralidade de visões, fundamentalmente porque os profissionais têm as

“mais diferentes origens, com suas diferentes formas de trabalho, seus diferentes

entendimentos.”

Trouxe para o discurso o “regime integral” de ensino da escola B, para

compor a sua perspectiva de qualidade, uma vez que este propicia aos alunos

maiores oportunidades de orientação para a pesquisa e, ao mesmo tempo, uma

maior aproximação entre professores e alunos. Com essa perspectiva, o professor

163

apontou a importância dos encontros com os alunos fora de sala de aula, para

promover a formação do cidadão. Concluiu seu enunciado com um tom hesitante

(“não sei se é isso”).

Ao ser interpelado mais uma vez pela pesquisadora sobre o que ele considera

como fatores de qualidade na formação técnica, o Prof. Murilo construiu sua

perspectiva a partir do confronto entre a formação dos alunos da escola B, os quais

considera que saem da escola sabendo “fazer as técnicas básicas de uma maneira

eficiente”, com a má formação técnica oferecida em outros lugares. Nesse ponto, fez

uma ressalva para os técnicos da escola A, onde estudou, igualando o bom

desempenho destes ao da escola B. É possível perceber que o professor está se

referindo ao conhecimento técnico, quando enunciou: “o técnico da escola A e um

técnico da escola B dentro de um mesmo laboratório, eles vão ter ali o mesmo

desempenho”. A comparação com a escola A e a avaliação de que ambas oferecem

formação de mesma qualidade técnica podem estar relacionadas à posição social da

interlocutora, que representa a escola A.

O professor admitiu também a possibilidade de existirem alunos que saem

com uma má formação técnica, tanto da escola A como da escola B, chamando para

si e para os seus pares a responsabilidade por esta má formação (“tem uma relação

com a gente fazer tudo muito mais atropelado, fazer tudo muito mais a toque de

caixa.”). Argumentou que isso não acontece por “incompetência” ou

“irresponsabilidade” sua e dos demais professores, mas, “de acordo com a música

que toca no background que a gente também é obrigado a dançar muitas das

vezes.” Esse comentário produz um sentido de submissão à lógica de autoridade

que conforma as determinações superiores e a estrutura do ensino no âmbito

institucional.

Ao retomar explicitamente o tema da qualidade na formação profissional,

trouxe para o território da enunciação a visão de ensino de biologia que vai além da

formação técnica: “um técnico com qualidade eu acho que é um técnico que

entenda, não só o que acontece na bancada, mas o que acontece no entorno

daquele laboratório que faz com que a saúde caminhe numa direção boa, ou por que

demora tanto para algumas coisas, né?”. Nas palavras finais desse enunciado, o

Prof. Murilo questionou o ritmo lento das decisões e realizações no âmbito da saúde,

incorporando, ao seu discurso sobre qualidade da educação profissional, acentos

políticos e sociais da ciência. Interpretamos, assim, que, para ele, um técnico de

164

qualidade se aproxima do ideal da formação integral enunciado ao longo da

entrevista.

Concluiu, questionando e pondo em dúvida os encaminhamentos tomados

nas esferas acadêmicas que desenvolvem pesquisas para a área da saúde,

contrapondo o tempo de existência das doenças aos avanços significativos desses

estudos (“Como é que até agora a gente não teve nenhum avanço tão

significativo?”). Com essa atitude, o Prof. Murilo questionou a ciência, diante de

suas finalidades sociais, coerentemente com a visão de ciência já enunciada.

Ao término, o Prof. Murilo agradeceu e comparou a entrevista a uma sessão

de análise profissional, talvez por ter-lhe permitido que entrasse numa reflexão a

respeito de sua prática e outros aspectos para os quais, normalmente ele não tem

tempo ou espaço para fazer.

165

7 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA NO CONTEXTO DA EPTM

Neste capítulo, as enunciações dos professores entrevistados serão

discutidas à luz das questões de estudo, que passam a estruturar o texto. Para

organizar esta estrutura, realizamos um processo de seleção de partes da análise

referentes à cada questão de pesquisa entendendo porém que poderão ser

trazidos, de outras partes, discursos dos professores, sempre que julguemos que

estes complementam as ideias do conjunto.

Para identificar as perspectivas de qualidade da educação científica dos

docentes, buscamos dar um passo à frente em relação à análise pormenorizada

apresentada no capítulo anterior, sintetizando, nas três primeiras seções, os pontos

de vista que julgamos centrais nas respostas ao tema de cada questão. Tais

sínteses foram colocadas em confronto no mesmo contexto escolar, buscando-se

localizar aproximações, afastamentos tensões e conflitos entre os sentidos de

qualidade da educação científica por eles tecidos. Acreditamos que este

procedimento, acrescido de trechos dos enunciados que julgamos representativos

citados ao final de cada análise ressalte as características que conformam cada

perspectiva. Esperamos assim, fornecer, ao final do processo, um leque no qual

contrastam as nuances que tonalizam as perspectivas individuais.

Na seção 7.4, as perspectivas de educação científica de qualidade no

contexto da EPTM do sujeitos investigados foram compostas a partir das sínteses

apresentadas nas seções anteriores.

7.1 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO ÀS FINALIDADES DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

7.1.1 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus I da escola A

O Prof. André e a Profa. Taís consideram legítimo o objetivo de formar para o

trabalho no contexto de uma escola de formação técnica profissional. Entretanto,

esse reconhecimento se dá com nuances diferentes. O Prof. André demonstra

166

preocupação com o processo formativo, se é crítico ou não. A Profa. Taís não

problematiza tal formação, atém-se ao cumprimento deste objetivo pela escola.

A Profa. Taís considera que o setor produtivo e a consulta ao aluno na fase

de estágio atestam a qualidade do seu ensino. Em sua visão, a formação em

química oferecida está, em grande medida, de acordo com o que o mercado exige e

com o que o aluno necessita saber para executar suas funções profissionais. Já o

Prof. André problematiza esta formação e se ressente da falta de parâmetros

institucionais para avaliar a sintonia entre os componentes curriculares e as

demandas do mercado. De forma crítica, o professor aponta a vulnerabilidade dessa

sintonia, acentuando a necessidade de fortalecimento dos vínculos com o setor

produtivo, que seriam, para ele, parâmetros da organização e reformulação

curriculares. Mas o desejo de aproximar instituição e mercado manifestado

discursivamente pelo professor produz o sentido de ampliar o universo de

possibilidades de inserção do aluno no mundo produtivo.

Enquanto a Profa. Taís diz que a escola A cumpre com excelência o objetivo

de preparar para o trabalho, o Prof. André questiona o atendimento a esse objetivo

pela escola, avaliando que este parece ser indevidamente, a preparação para a

universidade.

A apreciação de Taís em relação ao currículo do curso técnico parece

prescindir de qualquer questionamento, por considerar que os conteúdos postos na

ementa são necessários e suficientes para a atuação técnica dos futuros alunos. Os

professores divergem no que diz respeito à obrigatoriedade legal das disciplinas

humanísticas na composição do currículo do ensino médio, seja ele propedêutico ou

integrado ou concomitante à formação profissional. Ainda que a Profa. Taís

reconheça a importância da inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia no

curso técnico, por ser uma determinação da lei, ela lamenta que o tempo gasto com

essas disciplinas não seja dedicado à formação técnica.

O Prof. André constrói criticamente sua perspectiva em relação a essa

problemática, defendendo a inserção dessas disciplinas no currículo. Sua posição

avaliativa em relação à inserção curricular das disciplinas de Filosofia e Sociologia

se opõe a de seus pares quando parece acusar a formação técnica oferecida na

escola A de não humanística pela pouca importância dada no âmbito institucional às

disciplinas de História e Geografia.

167

Os sentidos de qualidade para a educação científica produzidos no discurso

da Profa. Taís foram aproximados às finalidades sociais mais amplas e culturais a

partir do valor positivo que atribui aos trabalhos interdisciplinares e artístico-culturais

que vêm acontecendo hoje na escola, à atuação política e solidária dos alunos no

interior da escola e às semanas acadêmicas desenvolvidas. No entanto, tais

atividades não foram relacionadas, por ela, ao ensino de Química pelo qual é

responsável.

O Prof. André aproxima suas perspectivas de qualidade às finalidades mais

amplas do ensino, ainda que projetadas em um futuro que transforme o cenário

atual, propondo que se instituam espaços de discussão sobre as orientações oficiais

e sobre o projeto político pedagógico da escola A. Manifesta o desejo de que a

educação científica seja discutida à luz da História e da Filosofia da Ciência,

disciplina que, segundo ele, deveria integrar o currículo na mesma medida das

disciplinas específicas para a formação técnica.

Ao construir a sua apreciação valorativa em relação à abordagem histórica e

filosófica da Ciência que realiza, o Prof. André acentua também a importância de ele

ter estudado sobre o assunto, produzindo o sentido de que a qualidade estaria,

neste caso, vinculado também à necessidade de formação para realizá-la.

A Profa. Taís ancora a sua concepção de qualidade metodológica de ensino

no tradicionalismo das aulas expositivas, nos desenhos das estruturas moleculares

na lousa e demonstra prescindir dos recursos multimidiáticos que seriam mais

apropriados, em sua opinião, para ensinar História e Geografia.

Ambos os professores atribuem o interesse e o desempenho de seus alunos

à seletividade dos alunos ao ingressarem na escola. Todavia, o Prof. André destaca

que esta motivação está ligada muito mais ao fato de a instituição poder oferecer um

ensino de qualidade e gratuito do que à formação profissional em si.

Acho que todas as matérias estão bem voltadas para a química, falo da química para o mercado de trabalho. (Profa. Taís)

O conhecimento de história e geografia que o aluno sai daqui, por exemplo, é pífio. (Prof. André)

168

7.1.2 As finalidades da educação em ciências para os professores do campus II da escola A

Os professores Toni e Vítor reconhecem que formar para o trabalho é uma

finalidade legítima no contexto da escola técnica. Porém, ambos refutam,

explicitamente, a formação técnica com bases mecanicistas e defendem uma

formação na qual o técnico precisa refletir e tomar decisões embasadas

intelectualmente.

Entretanto, apesar de Toni e Vítor reconhecerem um papel importante para a

reflexão, o posicionamento deles é diferente. O Prof. Vítor acrescenta uma

apreciação à sua concepção dizendo que esta é capaz de conduzir o estudante ao

sucesso profissional. Interpretamos que o sentido que o professor dá ao sucesso ao

qual se refere, seja o de que uma formação técnica mais intelectual permitiria que o

técnico viesse a conquistar uma ocupação profissional, ao passo que atuando

mecanicamente, não.

O Prof. Toni defende para a formação técnica, o objetivo de formar também

para a cidadania, aproximando esse objetivo do conceito de alfabetização científica.

Ele valoriza a formação crítica, que viabiliza por meio da interação verbal e social

com os seus alunos, seja para discutir o currículo ou a relação entre o conhecimento

científico e a formação profissional. Essa postura crítica que ele chama de “formação

intermediária” indica coerência com o discurso sobre alfabetização científica que ele

propõe, uma vez que este conceito também se relaciona com a formação de

cidadãos capazes de analisar, interpretar, inferir e decidir em um processo

democrático de participação na sociedade.

Ao desenvolver a sua visão da formação profissional, Prof. Vítor compromete-

se com a construção de um mundo sustentável socialmente e valoriza a interação

interdisciplinar com profissionais das áreas de humanas, no sentido de fazê-lo

superar a autoridade do conhecimento científico que caracteriza a sua formação de

engenheiro e ampliar seus horizontes educacionais. Com essa intenção, promove a

formação profissional por meio de estudo de casos associado à busca de soluções

para problemas do mundo real, defendendo a aplicabilidade dos conhecimentos

científicos tratados no interior de cada disciplina, seja ela técnica ou não.

Interpretamos que assim, ele atribui um sentido eficientista ao papel da reflexão e ao

conhecimento científico na formação profissional.

169

A diferença entre as perspectivas de qualidade relacionadas às finalidades da

educação profissional se reflete nas apropriações que o Prof. Vítor e o Prof. Toni

realizam da organização e ênfases curriculares. Se por um lado, o Prof. Toni negocia

espaço na parte inicial do currículo para desenvolver nos alunos valores de

cidadania em que acredita e critica o ensino ainda tradicional da escola A, o nível

altíssimo do conteúdo curricular, o conteudismo e acusa o excesso de conteúdos

pelo apagamento de discussões realmente importantes, o Prof. Vítor questiona a

obrigatoriedade da inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia em todas as

séries e defende a incorporação ao currículo de conteúdos mais específicos e

contextualizados visando formar para as demandas do mercado. Ao trazer o

conceito de contextualização com dado sentido para o enunciado parece relacioná-

lo a princípios eficientistas (LOPES, 2002) em oposição à formação mais ampla.

Um ponto de contato entre as perspectivas dos professores está nas

finalidades da educação científica observadas no uso das TIC. Ambos os

professores partem do pressuposto de que o uso das TIC não garante qualidade ao

ensino. O modo como se apropriam das ferramentas e aplicativos tecnológicos

aponta para a superação estreita de seu uso, na medida em que propõem atividades

mais complexas do que simplesmente explicar uma projeção, como por exemplo,

discutir criticamente exemplos práticos do cotidiano, da futura atuação profissional,

buscando superar o ensino transmissivo.

O Prof. Vítor aprofunda discursivamente a proposta metodológica que

defende para a educação científica, quando a estrutura em etapas, de forma

prescritiva: ensino de conceitos, aplicação no estudo de casos e análise

interpretativa, que pode se dar a partir do que é divulgado na mídia. O Prof. Toni não

prescreve como fazer, mas ressalta a sua intenção ao ensinar ciências como sendo

a de desenvolver no aluno uma atitude questionadora, reflexiva e politizada diante

do currículo, da ciência e da vida em geral.

Um bom ensino é poder você colocar, primeira parte, dar os conceitos físicos e matemáticos, depois aplicação no estudo de caso e depois uma análise que ele faça essa interpretação. (Prof. Vítor)

As disciplinas elas às vezes, se perdem discussões mais importantes que são até pra própria formação do cidadão. (Prof. Toni)

170

7.1.3 As finalidades da educação em ciências para os professores da escola B

Os discursos dos professores Murilo e Cleo refletem e refratam o discurso

político e pedagógico da instituição em que atuam, contrário ao modelo “taylorista”

da educação profissional. Ambos partem do diálogo com os princípios marxistas de

trabalho, captados na superfície de seus textos, ou seja, nas palavras que

escolheram para expressar suas acepções de formação técnica. Assim, apropriam-

se do conceito de trabalho como princípio educativo em oposição ao

instrumentalismo e utilitarismo pragmático do ensino. A Profa. Cleo vincula este

conceito ao objetivo de ensinar Biologia para formar para a vida, estabelecendo

conexões entre os conteúdos e a vida do aluno. O Prof. Murilo evoca o pensamento

freiriano para legitimar o acento de valor dado aos vínculos que devem ser

construídos entre os conteúdos da Biologia e a realidade do aluno. Para tanto, os

dois professores se ancoram, criticamente, na oposição ao ensino maçante baseado

em memorização que visa ao vestibular. O Prof. Murilo qualifica esse objetivo como

um esquema alienante, excludente e meritocrático, portanto, nocivo ao estudante. A

Profa. Cleo destaca o bom desempenho dos alunos no vestibular como

consequência da formação que integra parte geral e específica no currículo, embora

saliente não ser este o objetivo do seu ensino.

Ambos fazem referência à ementa oficial, porém, com diferentes nuances. A

Profa. Cleo diz segui-la, atualizando-a em relação às mudanças ocorridas na

Ciência. Já o Prof. Murilo orienta-se pela ementa, mas ressalta que esta deve ser

constantemente discutida, valorando a importância na relação crítica entre Biologia e

questões sociais presentes ou não na realidade próxima ao aluno. Este professor

aprofunda as finalidades do ensino de Biologia no campo epistemológico, quando ao

criticar a sua neutralidade, evidencia a sua visão de conhecimento científico como

uma construção sócio-histórica e política.

Enquanto o Prof. Murilo fala dos seus caminhos metodológicos para ensinar

com base no confronto de pontos de vista diferentes e da abordagem crítica dos

conteúdos nas interações verbais e sociais que realiza com os alunos e seus pares,

a Profa. Cleo fala das aulas práticas como elemento de valoração na sua concepção

de ensino. Ela julga esse espaço como potencializador da aprendizagem, na medida

em que é capaz de motivar os alunos. Além das aulas práticas, diz se apropriar dos

171

recursos audiovisuais como meio de dar maior visibilidade aos elementos da

Biologia.

As dialogias estabelecidas pelos professores no que diz respeito às

finalidades do currículo são tecidas a partir de posições diferentes na atuação

docente. A Profa. Cleo aciona a dicotomia entre o ensino fundamental e médio em

relação à organização disciplinar do currículo como responsáveis pela má qualidade

na formação científica dos alunos. Ela propõe uma desconstrução de tudo que

aprenderam para ensinar de forma correta a partir do zero. O Prof. Murilo estabelece

outros diálogos confirmando a sua preocupação com questões políticas e sociais

que envolvem o conhecimento científico no contexto da formação técnica e seus

reflexos na sociedade. Critica a formação com ênfase na pesquisa acadêmica nos

moldes universitários e projeta uma ambição de que o sistema público de saúde seja

atendido por técnicos formados pela escola B por julgá-los capazes de agir no

mundo de forma crítica e reflexiva e dar um encaminhamento mais apropriado aos

problemas da realidade relacionados à saúde.

Biologia, ela é privilegiada porque vários dos saberes que a gente aborda em sala de aula pode ter a ver com a realidade do estudante. (Prof. Murilo)

As disciplinas sejam componentes do todo, que é a vida do aluno. (Profa. Cleo)

7.2 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

7.2.1 O conhecimento científico ensinado no campus I da escola A

A Profa. Taís concorda com a ideia de que as atividades de laboratório devem

visar ao conhecimento das técnicas na relação com o trabalho que o aluno

desenvolverá como técnico, ou seja, enquanto aplicação da teoria na prática. Outro

elemento de valoração que atribui ao laboratório é de natureza comportamental,

quando o avalia como espaço apropriado para observar a desenvoltura e autonomia

que os estudantes deverão ter no ambiente de trabalho.

Ainda que reconheça o instrumentalismo das atividades científicas inerentes à

formação técnica, o Prof. André julga que elas devem ser reformuladas. De forma

crítica, sugere que de um modo geral as atividades práticas com base na repetição

172

de roteiros sejam reprojetadas buscando superar a consolidação e aprendizagem de

técnicas. Demonstra ter acesso à literatura da área de ensino de ciências com a qual

diz concordar no que tange a uma visão mais crítica e menos ingênua das atividades

experimentais. Ele ambiciona planejar coletivamente, na instituição, atividades

científicas com ênfase na reflexão, na formulação e testes de hipóteses, no

confronto e diálogo possíveis.

O Prof. André critica a forma de apresentação do conhecimento científico na

formação técnica e a qualifica de “a mais careta possível” e mais adiante de “quase

positivismo lógico”. Nesse sentido, o seu discurso reflete descontentamento com a

forma atual do ensino de ciências no contexto da EPTM e o desejo de mudança que

avalia como possível a partir de um planejamento coletivo. A Profa. Taís acentua o

seu comprometimento com a boa atuação profissional técnica avaliada sob as lentes

do mundo produtivo. Pelo horizonte social comum, é possível presumir que privilegia

a responsabilidade em dar ao aluno condições de lutar por sua subsistência na

conquista imediata por uma ocupação profissional, implicando uma visão de Ciência

na formação técnica com ênfase na especificidade do conhecimento a ser aplicado.

Não é positivismo lógico mesmo por pouco, mas é tão ingênuo, tão careta quanto o positivista lógico. (Prof. André)

É juntar a teoria na prática. (Profa. Taís)

7.2.2 O conhecimento científico ensinado no campus II da escola A

O Prof. Vítor valoriza a realização de experiências, de atividades práticas e de

diferentes testes científicos com a intenção de ampliar o conhecimento científico do

aluno por meio da construção de modelos aplicáveis aos problemas da realidade

(estudo de casos). O Prof. Toni parte da crítica à acepção institucional de ciência

que dá ênfase à ratificação da teoria e ao dogmatismo científico que, segundo ele,

torna o aluno um mero reprodutor de ideias. Defende mudanças que teriam bases

reflexivas, questionadoras e críticas em oposição a uma postura científica passiva do

aluno. O professor não só qualifica os métodos usados na escola A de tradicionais

como, também, os aproxima do sentido estreito de ensinar a ciência, que a concebe

como verdade absoluta.

173

Assim, enquanto o Prof. Vítor idealiza uma Ciência crítica objetivando o

aplicável, o Prof. Toni coloca a necessidade de reflexão coletiva sobre a prática

científica realizada hoje, projetando um futuro diferente, em que a Ciência se

construa com base em perguntas em contraposição à repetição de respostas.

As visões de Ciência dos professores divergem claramente também, quando

o Prof. Vítor tenta desmitificar a ideia de seus alunos de que ciência é para gênio,

construindo o sentido de que é uma questão de persistência, dando mais

importância à dimensão metodológica da ciência do que às suas finalidades sociais.

O Prof. Toni critica a imagem de “verdade absoluta” que os alunos constroem da

ciência, atribuindo-a ao processo de ensino ao qual foram submetidos e muitas

vezes à forma positivista com que a mídia divulga a ciência.

A reflexão fica do lado de fora do laboratório. (Prof. Toni)

Uma visão um pouco mais aplicada com estudo de casos pela parte social, solução de problemas. (Prof. Vítor)

7.2.3 O conhecimento científico ensinado na escola B

Os professores Cleo e Murilo fazem referência ao aspecto da abstração que

marca o conhecimento científico no nível médio de ensino, avaliando como

necessário romper com este status, aproximando-o da realidade do aluno. A Profa.

Cleo enuncia essa perspectiva a partir da crítica ao ensino baseado em

memorização e o Prof. Murilo defende que prevaleçam as relações da ciência com

problemas sociais com enfoque crítico, evidenciando a visão de que o papel mais

importante e quase exclusivo da escola deve ser o de propiciar o desenvolvimento

da capacidade de crítica no aluno para que este possa ser um agente de

transformações sociais.

Ambos se remetem à disciplina de IEP como espaço institucional valorado

positivamente por emergir das bases filosóficas que estruturam a proposta de ensino

da escola B, segundo a qual é possível ensinar Ciência considerando a historicidade

dos conhecimentos e, assim, propiciar uma formação integral aos alunos. A Profa.

Cleo dá uma entonação a sua perspectiva de busca permanente pela atualização do

conhecimento científico e por romper com a submissão às determinações

curriculares oficiais para ensinar conteúdos mais significativos para os seus alunos.

174

A sua intenção é a de formar sujeitos pensantes, superando a perspectiva

adestradora de ensino na qual os alunos, segundo ela, são instruídos no nível

fundamental.

O tom que o Prof. Murilo empresta à perspectiva de ciência na formação do

técnico em saúde se diferencia do da Profa. Cleo na medida em que, primeiramente,

dialoga com o mundo produtivo, afirmando que essa formação crítica implicará

valorização profissional no ambiente de trabalho. Depois porque foi possível captar

em seu discurso, entre tensões e conflitos, os sentidos de Ciência em disputa que

tenta passar para os alunos, desconstruindo a valorização dada à comprovação

científica para legitimá-los e, assim, desacentuando a autoridade do discurso

científico e reconhecendo a apropriação de conhecimentos não científicos como

saberes igualmente importantes. Ele tenta mostrar para os alunos que no “fazer

ciência” entram aspectos para além do conhecimento em si, envolvendo desde

questões de realização pessoal até questões políticas mais amplas.

Biologia é isso aí é mais um componente da vida do aluno, e não uma coisa instrumental para o trabalho. (Profa. Cleo)

Devemos valorizar, mas não devemos dar ao método científico o poder de estar definindo sobre tudo. (Prof. Murilo)

7.3 PERSPECTIVAS DE QUALIDADE EM RELAÇÃO À FORMAÇÃO INTEGRAL

E AO DISCURSO OFICIAL

7.3.1 A formação integral no campus I da escola A

Há divergências no modo como os professores André e Taís veem a

realização da formação integral no âmbito da escola A. O Prof. André chama

atenção para o cumprimento parcial da formação integral por considerar que há uma

hierarquização entre os saberes da formação geral e específica, na qual a segunda

ocupa um lugar superior. Ao apontar essa dificuldade, o Prof. André dá indícios em

seu discurso de que se sente desprivilegiado por atuar na formação geral

expressando os seus sentimentos por meio de metáforas que o colocam nessa

posição inferior.

175

A Profa. Taís tece o sentido de integração de conteúdos afirmando que hoje

não há separação entre a formação geral e específica, sendo todos os conteúdos

trabalhados de forma integrada. Diferentemente da Profa. Taís, o Prof. André afirma

que não há espaço para o diálogo entre as disciplinas da formação geral e

específica, indicando que não há integração curricular de fato.

Foi possível observar os valores sociais em disputa no discurso desses

professores, cada um sendo produzido de seu lugar social e ideológico. A Profa.

Taís está convencida de que a integração é realizada, na medida em que avalia

positivamente o desempenho dos alunos no vestibular ou no estágio supervisionado.

O Prof. André, além de complexificar a realização da formação integral relacionando-

a às relações de poder que envolvem disputas no âmbito do currículo, também

dialoga com a influência dos organismos internacionais na organização curricular.

Mesmo não tendo desenvolvido essa perspectiva, pela sua entonação expressiva,

deixou transparecer discordância em relação a esta orientação, tornando possível

aproximá-la do que defende Ramos (2008) a respeito de uma formação para o

trabalho em seu sentido mais amplo, no qual o trabalho é concebido como princípio

educativo, ou seja, não reduzido à atividade econômica específica, servindo apenas

às solicitações de um mercado capitalista.

Outra divergência observada entre as perspectivas que compõem os

discursos dos professores André e Taís sobre a formação integral está ligada à

obrigatoriedade legal das disciplinas humanísticas na composição do currículo da

formação profissional. Apesar de a Profa. Taís aceitar a inserção das disciplinas de

Filosofia e Sociologia no curso técnico por determinação da lei fica clara a sua

posição quando admite que tal inserção inflacionaria ainda mais o currículo da

escola, impedindo, inclusive, a ampliação dos componentes curriculares que

correspondem à formação profissional.

O Prof. André retoma essa problemática sobre a qual já havia enunciado em

outro momento da entrevista, apresentando-a como uma possibilidade de

implementar a formação integral, talvez por considerar que as reflexões advindas do

campo da Filosofia e da Sociologia possam ampliar as dimensões de análise dos

fenômenos sociais, das relações entre trabalho e educação na perspectiva da

integração. O professor associa a resistência de seus pares profissionais em relação

a essa inserção à falta de conhecimento sobre o que venha a ser formação integral,

176

seja pela ausência de discussões internas, seja por não terem contato com as

legislações.

Retomando o discurso da Profa. Taís sobre formação integral na interface

com a integração curricular, observamos que ela aciona o princípio da

interdisciplinaridade, apontando as dificuldades em realizá-la. Nesse processo, as

dificuldades são relacionadas à concepção tradicional de ensino de diferentes

pontos de vista, tais como a desorganização do programa, o uso do livro didático e a

sequência dos conteúdos disciplinares no fluxo do currículo. Observamos, de um

modo geral, que a professora expressa uma visão estreita de interdisciplinaridade

que mais se aproxima do valor negativo de uma subordinação a outros

conhecimentos no lugar de representar uma nova postura epistemológica para

estudar os fenômenos com base nos pressupostos desse princípio. Também

percebemos que ao indicar que a instituição não considera a interdisciplinaridade

enquanto elemento integrador parece procurar respaldo para a sua própria

concepção e, assim, escapar dessa prática, não entendendo que “a integração de

conhecimentos no currículo depende de uma postura nossa (dos professores) cada

qual de seu lugar” (RAMOS, 2008, p. 70) e não de uma ordem verticalizada seja da

escola ou das diretrizes curriculares nacionais.

Identificamos nos discursos dos professores André e Taís perspectivas de

formação integral que dialogam explicita e implicitamente com os discursos oficiais.

A concepção de formação integral oficial, com o sentido de indissociabilidade entre

formação geral e formação específica, foi apreendida em ambos os discursos

docentes, apesar de apresentarem nuances diferentes. No discurso do professor

André, além do sentido de integração supracitado, ao defender a inclusão das

disciplinas de humanas para a realização da formação integral, apreendemos o

sentido tanto de uma integração curricular mais ampla entre disciplinas gerais e

específicas, como a que se aproxima da formação para o trabalho com o sentido de

princípio educativo, também previsto no Documento Base para a EPTM (2007).

A interdisciplinaridade, isso aí é difícil. Isso é muito bonito, mas, é muito difícil. (Profa. Taís)

Essa formação integral na educação profissional é um simulacro, uma mentirinha, um fingimento. (Prof. André)

177

7.3.2 A formação integral no campus II da escola A

Apesar dos professores Toni e Vítor construírem sentidos para a formação

integral a partir do objetivo de preparar para o mercado do trabalho, esse propósito

acaba constituindo metas diferentes em função das relações dialógicas evidenciadas

em seus discursos.

Partindo de uma análise composicional, observamos que o professor Vítor, ao

construir o seu enunciado, produz um sentido de somatório para este princípio, nos

conduzindo à interpretação de que a integração é a formação específica (disciplinas

técnicas) “mais” as disciplinas de humanas em uma relação de subserviência às

primeiras, ou seja, as disciplinas da formação geral a serviço da formação de um

cidadão para o mundo do trabalho.

O professor Toni estrutura o seu enunciado de modo a deixar ressoar um

sentido de equiparar o objetivo pragmático de formação que visa ao mercado de

trabalho à dimensão reflexiva e política do sujeito. O professor se remete às

atividades de iniciação científica realizadas na escola A, construindo um sentido de

formação integral vinculado ao estímulo à pesquisa e à reflexão sobre os conteúdos

estudados, aproximados por ele à concepção de educação com ênfase na

autonomia do “sujeito reflexivo”.

Os elementos valorativos que representam impedimentos para a realização

da formação integral também são tecidos de diferentes pontos de vista pelos

professores. Para o professor Toni, é preciso superar o excesso de conteúdos que

caracteriza a formação técnica visando à conquista de espaços no currículo para

abordagens mais amplas dos conteúdos a serem ensinados.

Para o Prof. Toni, é preciso que os professores superem a atitude passiva

diante do modo fragmentado e isolado de ensinar as disciplinas escolares a partir de

uma maior interação verbal entre eles, com o intuito de desenvolverem uma atitude

interdisciplinar diante dos conteúdos comuns à química que ensina nas séries

iniciais e a parte específica e, entre estes e os demais conteúdos disciplinares. O

professor avalia essa alternativa de ensino como capaz de dar ao técnico em

formação uma visão integrada dos conhecimentos que irá favorecer as conexões

que ele necessitará fazer no futuro.

178

Para tecer outro sentido para a integração, age responsivamente apontando

alternativas que possibilitariam a integração dos conteúdos da química com

disciplinas da área de humanas. Nessa mobilização, dialoga com o discurso de

interdisciplinaridade circulante no meio educacional e com o discurso sobre

finalidades mais amplas da área de ensino de ciências. Entretanto, acrescenta uma

dimensão afetiva e emocional ao seu discurso: a disposição dos docentes para

alcançar esse ideal. É como se ele dissesse: tem que querer, tem que ter vontade de

realizar, porque a interdisciplinaridade não é algo trivial. Com esse posicionamento,

o Prof. Toni confirma a perspectiva que permeia o todo de sua entrevista de que os

projetos educacionais e as reformas curriculares visando a mudanças no ensino

devem emergir de discussões internas à instituição que mobilize a comunidade

docente.

Na visão do Prof. Vítor, a dificuldade para implementar a formação integral

está relacionada à concepção desarticulada de formação profissional e ensino médio

que, segundo ele, representa uma ruptura prejudicial à formação técnica integral,

particularmente, no caso dos alunos do regime subsequente. O professor fala desse

problema a partir da própria experiência com os alunos oriundos dessa modalidade

de formação técnica. Ele diz que quando o aluno está terminando o curso técnico

apresenta muitas dificuldades para elaborar o relatório final. É possível interpretar

que o Prof. Vítor acentua valorativamente que o aluno tenha uma boa base de

conteúdos oferecida no ensino médio propedêutico para sobre ela desenvolver as

disciplinas técnicas e conseguir alcançar um bom desempenho.

Assim, o Prof. Vítor defende que as disciplinas não específicas devam ser

integradas às específicas para proporcionar base às técnicas, produzindo um

sentido de “eficientismo” para formação integrada, que se refletiria na qualidade do

relatório final. Por outro lado, o Prof. Toni idealiza a integração entre os conteúdos

via o princípio de interdisciplinaridade realizando-a a partir da interação verbal e

social entre docentes, que em sua visão iria descompartimentar as disciplinas e,

assim, possibilitar que o estudante no futuro consiga estabelecer “conexões” entre

os conhecimentos.

Ao evidenciarem o sentido de indissociabilidade entre formação geral e

específica e o sentido de integração curricular dos conteúdos gerais e específicos,

os discursos dos professores Toni e Vítor passam a dialogar com o discurso oficial,

embora com apropriações semânticas diferentes como já analisado nesta seção. O

179

professor Vítor, ao criticar o regime subsequente, se refere explicitamente a uma das

formas de integração previstas no dispositivo legal do decreto 5154/2004. O

professor Toni, ao defender o estímulo à pesquisa, dialoga tanto com a Lei

11.892/2008 como com o Documento Base para a EPTM (2007) quando defendem

como objetivo o incentivo à pesquisa.

Nenhum conhecimento científico é desvinculado de razões políticas e de contextos históricos. (Prof. Toni)

A disciplina de propedêutica dá suporte para ele poder compreender melhor a parte técnica de química. (Prof. Vítor)

7.3.3 A formação integral na escola B

Os professores Murilo e Cleo apropriam-se do conceito de formação integral

estabelecendo diferentes diálogos com este objeto. A Profa. Cleo, pela entonação

expressiva e pelo aspecto composicional, se apropria deste princípio a partir de

relações que estabelece com os antecedentes dialógicos que marcam a sua

formação acadêmica e com os discursos institucionais de formação integral,

valorando-o positivamente.

Para explicar como as possibilidades de formação humana englobam todos

os aspectos da vida, a Profa. Cleo faz referência às diferentes áreas trabalhadas na

escola B, quais sejam as ciências, as linguagens, os desportos e a arte. A

apropriação que faz de formação integral é de ação libertadora e totalizante do ser

humano, por abrir-lhe outras possibilidades de escolha para a sua vida, que,

segundo ela, difere da que é proposta pelo atual governo federal pela submissão às

determinações de um país capitalista.

O Prof. Murilo apropria-se do conceito de formação integral aproximando-o de

seus percursos profissionais na instituição e ao que considera importante na vivência

dos alunos no interior da escola, sem estabelecer explicitamente vínculos teóricos

demarcados. Assim, relaciona a formação integral à convivência dos alunos com a

diversidade de formação e de trajetórias profissionais dos docentes que atuam na

escola por julgar esse contato enriquecedor para os alunos. O Prof. Murilo deixa

180

ressoar em seu discurso uma visão de formação humana que, em nossa

interpretação, seria o sujeito aprender com as diferentes experiências da vida.

No entanto, os discursos dos professores Cleo e Murilo se encontram quando

ambos trazem para seu interior o sentido de formação integral ligado à integração

dos conteúdos disciplinares. O Prof. Murilo rememora a sua experiência como aluno

do curso técnico da escola A para dizer que à época não havia essa integração

como também não há na escola B, porém, marca uma diferença entre elas dizendo

que na escola B há pelo menos tentativas para realizá-la. O Prof. Murilo tonaliza o

seu discurso sobre integração dando um acento de valor à organização curricular

que não hierarquiza os conteúdos, mas, que tenta igualar a sua importância.

A Profa. Cleo faz a análise do sentido de integração vinculado à

implementação da interdisciplinaridade, tanto entre os conhecimentos da formação

geral quanto entre estes e os específicos, mas, admite que não seja uma tarefa fácil

de ser realizada e tem que ser construída diariamente. Entretanto, deixa claro que

não prescinde da busca por alcançar esses objetivos, estando diariamente

mobilizada por essa luta, para imprimir qualidade ao seu ensino. A luta a qual se

refere indica algo que não está posto, mas que ela demonstra um grande desejo de

construir.

Foi possível apreender nas enunciações dos professores Cleo e Murilo,

relações dialógicas explícitas com os sentidos de formação integral propostos no

Documento Base para a EPTM (2007), tanto em relação ao sentido de formação

humana, que segue o conceito filosófico de omnilateralidade, como o sentido da

integração curricular, que busca a implementação da interdisciplinaridade.

Eu entendo formação integral como a formação que não engessa o ser humano que não exclui nenhuma possibilidade (de sua) realização. (Profa. Cleo)

A simples convivência desses diferentes profissionais para o estudante, faz com que ele enriqueça, tá, e muito a sua percepção não só enquanto cidadão. (Prof. Murilo)

181

7.4 PERSPECTIVAS DOS DOCENTES SOBRE A EDUCAÇÃO CIENTÍFICA DE QUALIDADE NO CONTEXTO DA EPTM

Nesta seção, partiremos de um quadro dos temas centrais mobilizados pelos

professores (Quadro 8), apresentado abaixo, ao enunciarem suas perspectivas para

compor uma síntese da perspectiva de qualidade da educação científica de cada

professor.

Quadro 8: Temas centrais mobilizados pelos professores e respectivos posicionamentos

TEMAS CENTRAIS

MOBILIZADOS

PROFA. TAÍS

PROF. VÍTOR

PROF. ANDRÉ

PROF. TONI

PROFA. CLEO

PROF. MURILO

Mercado de trabalho (MC)

Formação restrita às demandas

do MC

Formação analítica

restrita às demandas

do MC

Formação crítica

associada às demandas

do MC

Formação para além

do MC

Formação para além do

MC

Formação para além

do MC

Cidadania

Atividades extraclasse promovidas pela escola

Soluções técnicas ou humanas

para casos específicos

Conhecimen-tos técnicos

e das ciências humanas

Formação propedêutica

(ACT)

Formação para a vida

Formação crítica

Currículo Somatório Somatório Somatório Integração Integração Integração

Interdiscipli-naridade

Impraticável Necessária Não

menciona Necessária Necessária Necessária

Documento oficial / projeto

institucional

Concorda com o projeto

institucional da escola A

Concorda com o projeto

institucional da escola A

Critica o projeto da

escola A e a ausência de discussão

institucional

Critica a ausência de discussão

institucional

Concorda com o projeto institucional da escola B

Concorda com o projeto

institucional da escola B

Vestibular Parte da formação integral

Não menciona

Consequên-cia mas não objetivo da formação

profissional

Não menciona

Consequência mas não

objetivo da formação

profissional

Ferramenta de

exclusão e alienação

do estudante

Conhecimento científico

Aplicação da teoria na

prática

Ciência como

solução para

problemas reais

Critica a autoridade e

a visão positivista da

ciência

Critica a autoridade e

a visão positivista da

ciência

Considera a natureza

dinâmica do conhecimento

científico

Critica a autoridade e a visão positivista da ciência;

Formação integral

Aprovação no

vestibular somada à formação técnica

Formação geral

enquanto base para

a formação técnica

Formação geral do

ensino médio acrescida da

formação profissional

Formação profissional que inclui as

nuances políticas

Cidadania integrada à formação técnica

Cidadania integrada à formação técnica

182

Observando-se o posicionamento da Profa. Taís frente aos temas que

mobilizou, é possível depreender que sua perspectiva de qualidade defende a

formação para o mercado de trabalho como principal finalidade da educação

profissional, justificada pela necessidade de garantir a inserção dos alunos no

mundo produtivo, nos moldes de uma adaptação do sujeito às demandas da

empresa. Entende cidadania como participação dos estudantes em atividades

extraclasse apartadas do seu ensino de química e formação integral como a soma

da preparação para o vestibular à preparação profissional. Sua visão de ciência

aparece no papel do laboratório em proporcionar atividades de aplicação da teoria. A

interdisciplinaridade é considerada quase impraticável em qualquer situação de

ensino.

A perspectiva de qualidade da educação científica defendida pelo prof. André

concebe que a formação técnica tem que atender ao mercado, mas considera a

formação oferecida pela escola A como anacrônica em relação às demandas atuais.

Critica a “academização” e consequente “vestibularização” do ensino técnico

oferecido na escola A. Ao valorizar a inserção da história e filosofia da ciência no seu

ensino de Química, ao defender a inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia

no currículo e ao lamentar que o conhecimento de história e geografia dos alunos

seja muito baixo, depreendemos que o professor considera objetivos mais amplos

para a formação profissional. É crítico também ao classificar de positivismo lógico a

apresentação do conhecimento científico na formação profissional da escola A. A

formação integral seria o conjunto da formação geral do ensino médio com a

formação profissional.

A perspectiva do prof. Toni considera que o objetivo da educação profissional

seja a formação para o mercado de trabalho desde que associada à formação para

a cidadania, que ele relaciona à formação propedêutica oferecida pelo ensino médio

e ao conceito de alfabetização científica. Critica as atividades experimentais que

buscam a comprovação da teoria e a apresentação do conhecimento científico

enquanto verdade absoluta. Conceitua formação integral como formação profissional

que inclui as nuances políticas envolvidas na produção do conhecimento e mobiliza

o conceito de interdisciplinaridade para pensar a integração de conhecimentos,

processo no qual uma disciplina vai dando sentido e complementando a outra.

183

A qualidade do ensino de Química no curso técnico na perspectiva do prof.

Vítor é a de um ensino analítico e crítico, que ensine a planejar, pensar e avaliar,

distanciando-se de uma formação mecanicista. Buscando essa qualidade, se utiliza

de estudos de caso nos quais os estudantes podem relacionar diretamente a teoria e

a prática. Considera que a ciência pode gerar resultados bastante positivos desde

que haja insistência. Ao definir a formação integral, o professor a divide em duas

partes, o que sinaliza somatório e não integração: a formação geral, dada pelas

disciplinas de português e matemática, daria a base para a formação técnica se

desenvolver.

A perspectiva da Profa. Cleo amplia o objetivo da formação profissional para

além da formação para o mercado de trabalho, a qual classifica de utilitarista e

instrumentalista. Critica igualmente a submissão ao vestibular. O objetivo do ensino

de Biologia no contexto da EPTM seria o de formar para a vida. Sua visão de ciência

fica clara quando declara a necessidade de atualização constante de sua disciplina

pela própria natureza dinâmica do conhecimento científico. Dá à formação integral

um sentido totalizante na medida em que esta compreenderia todas as

possibilidades de realização do ser humano. Constrói este sentido em oposição à

visão de educação profissional do atual governo. Considera difícil a implementação

da interdisciplinaridade a partir dos programas como estão instituídos.

Na perspectiva do Prof. Murilo, os objetivos do ensino de Biologia de

qualidade no contexto da formação técnica são o domínio de conceitos científicos

para desempenhar um bom papel no campo profissional e o desenvolvimento do

senso crítico do aluno, rejeitando o técnico como mero reprodutor de procedimentos.

Considera nociva a “vestibularização” do ensino médio e critica o vestibular por ser

um processo meritocrático e excludente. Problematiza o conteúdo científico

relacionando-o à realidade social e busca desconstruir a visão soberana do

conhecimento científico que relaciona ao positivismo e considera prevalente na

instituição. Lança mão do conceito de trabalho como um princípio educativo para

formular sua visão de formação profissional (integral), que define como um dos eixos

do componente interdisciplinar da iniciação à educação politécnica.

184

8 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, buscamos identificar inicialmente, aproximações e

afastamentos entre os sentidos construídos pelos professores para a educação

científica e os discursos acadêmico e oficial. Em seguida, procuramos, por meio da

análise da relação entre o discurso e contexto extraverbal, compreender por que os

professores enunciam tais perspectivas. Finalmente, na última seção, elaboramos as

considerações finais em função dos achados e discussões anteriores.

8.1 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Nesta seção, discutiremos os resultados sintetizados nas seções anteriores,

em duas subseções: na primeira, procuraremos captar aproximações e

afastamentos que podem ser estabelecidos entre as perspectivas de qualidade

enunciadas pelos professores, os discursos oficiais para a EPTM e os discursos

acadêmicos das áreas de educação e de ensino de ciências. Essa discussão será

desenvolvida a partir dos temas centrais mobilizados discursivamente pelos

professores (Quadro 8).

Na segunda subseção, procuraremos, por meio da análise da relação entre o

discurso e contexto extraverbal, compreender por que os professores enunciam tais

perspectivas. Para tal, será feito um esforço no sentido de buscar nos dados

individuais e institucionais a compreensão dos resultados da pesquisa.

8.1.1 Perspectivas de qualidade frente aos discursos oficial e acadêmico

As finalidades do ensino da química e da biologia de um modo geral foram

relacionadas à formação para o mercado do trabalho, legitimando o objetivo das

escolas de formação técnica profissional no contexto sócio-histórico de origem e no

seu desenvolvimento. Entretanto, estabelecido este vínculo, os discursos dos

professores produziram múltiplos sentidos para as distintas finalidades sociais da

educação científica e para a concepção de formação integral, vinculando-os às

185

demandas e oportunidades no mundo produtivo, à organização curricular da escola,

ao desempenho no vestibular e a objetivos mais amplos para o ensino de ciências.

Dentre as referências à formação técnica profissional visando à atuação no

mercado de trabalho, destacamos, primeiramente, as perspectivas em defesa de

uma educação científica que se contrapõe à concepção de ensino instrumentalista e

mecanicista. Nesse caso, a ênfase foi dada à necessidade de uma abordagem

crítica e reflexiva dos conteúdos, como também, ao incentivo à atitude responsiva

ativa do aluno diante do conhecimento científico, apontando para o sentido de

busca por superação dos limites de uma formação reduzida a treinamento e

reprodução acrítica dos conteúdos da química/biologia apropriados pelos estudantes

durante o curso técnico. Este discurso encontra-se presente tanto nos documentos

oficiais orientadores da EPTM quanto nos discursos acadêmicos sobre formação

profissional e sobre alfabetização científica. No âmbito da formação profissional,

Kuenzer (2002) argumenta, frente às mudanças ocorridas no mundo do trabalho, a

favor de que sejam criadas situações significativas de aprendizagem na escola

através das quais os alunos desenvolvam competências cognitivas superiores de

modo a se constituírem como sujeitos críticos e criativos. Segundo a autora, além

do domínio dos conteúdos os alunos deverão desenvolver relações de produção e

divulgação com os conhecimentos, ações que ela considera necessárias, mas não

suficientes à superação da exclusão.

Como parte dessa concepção reflexiva e analítica do conhecimento científico,

foi defendida a relação linear com a capacidade de solucionar problemas científicos

e tecnológicos no contexto das demandas nacionais na contemporaneidade.

Considerando-se a contingência do momento histórico e político da criação dos

institutos federais, é possível considerar que esse sentido possa ter sua origem nas

concepções e diretrizes oficiais para a educação profissional, nas quais são

definidas as bases dos processos de formação vinculadas aos "arranjos produtivos,

sociais e culturais locais, identificados com base no mapeamento das

potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural no âmbito de

atuação do Instituto Federal” (Art. 7º, inciso III e IV, Lei Nº 11.892/2008).

Também foi captado o sentido de uma educação científica de “excelência”,

restrita à aplicação dos conteúdos científicos pelo técnico ao mundo produtivo,

apontando para a compreensão de que, tendo a escola cumprido com esse objetivo,

a qualidade do ensino teria sido alcançada.

186

É possível considerar, também, a relação deste posicionamento com a crença

de que atingido esse objetivo, os alunos conquistariam a sua subsistência

econômica, uma vez que, desempenhando a função de técnico de forma satisfatória,

as chances de empregabilidade aumentem. Notamos que essa concepção deixa de

fora reflexões acerca da complexidade que marca as concepções e relações sociais

de trabalho, na dimensão da formação humana. Nesse sentido, Frigotto (2005), nos

alerta para que a relação entre a educação técnica e o mundo do trabalho não seja

confundida com o imediatismo do mercado de trabalho e nem com o vínculo

imediato com o trabalho produtivo. Sua tese é a de que essa relação deve articular

conhecimento, cultura, tecnologia e trabalho para que a cidadania e a democracia

sejam efetivadas, e assim, possam ser cumpridos tanto o imperativo da justiça

social, como também, o acompanhamento das transformações técnico-científicas do

mundo do trabalho.

Para além da preocupação com a inserção dos estudantes no mercado de

trabalho, um dos valores projetados foi associado à educação técnica orientada para

a prática da cidadania, deixando, em alguns casos, ecoar no discurso dos

professores a voz da academia ao estabelecerem vínculos teóricos com uma

determinada concepção de alfabetização científica e tecnológica (ACT) e com a

noção de sujeito reflexivo. No que diz respeito à ACT, a formação cidadã proposta

pode ser aproximada à concepção de Fourez (2003), que a partir da confrontação da

formação do cidadão com a preparação de especialistas e do reconhecimento de

que configuram orientações educacionais distintas para o ensino de ciências,

defende a complementaridade entre essas duas abordagens.

Essa perspectiva também pode ser alinhada com a de Lemke (2006), para

quem a educação científica não deve se restringir ao ensino de princípios

conceituais abstratos de duvidosa utilidade prática ou de habilidades necessárias às

ocupações técnicas. Segundo o autor, o ensino de ciências deve objetivar a

formação de bons cidadãos em relação estreita com problemas sociais e valores

morais mais humanos.

Já Shamos (1995), tem uma visão diferente de ACT e de sua relação com a

cidadania. O autor faz a crítica à generalização desta relação que a torna, muitas

vezes, vazia de sentido. O autor alega que a promoção da cidadania responsável,

permitindo que o indivíduo a partir de uma base científica aja em questões sociais

com autonomia para fazer julgamentos, nem sempre é possível, sendo necessária a

187

expertise pessoal em tais assuntos. O que o autor quer dizer é que há problemas

sociocientíficos, e não são poucos, que requerem o conhecimento científico de

especialistas, o que não seria viável para todos os indivíduos.

A perspectiva de qualidade construída a partir da necessidade de estabelecer

relações com a realidade do aluno, evocou a ideia de "reformar o pensamento",

tendo citado o filósofo Edgar Morin. Morin (2003) diz que "a reforma do pensamento

é uma reforma não programática, mas paradigmática, concernente a nossa aptidão

para organizar o conhecimento" (p. 20). Em seu discurso, o autor relaciona essa

elaboração ao ensino, enunciando que "a reforma do ensino deve levar à reforma do

pensamento, e a reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino" (p. 21).

Além de se apropriar dessa perspectiva, o professor constrói o discurso sobre a

prática mobilizando outro sentido, que seria o de estimular o aluno a refletir acerca

daquilo que está sendo ensinado no sentido de formar um "sujeito reflexivo". Essa

expressão pode remeter a autores como Donald Schon, que pesquisou a

reflexividade na ação profissional e docente ou ao próprio Morin, citado por ele

anteriormente.

A preocupação com a cidadania foi intensa entre os professores da escola B,

que compartilham a concepção de trabalho em consonância com os princípios

marxistas de formação integral, na base dos objetivos delineados para a escola em

seu projeto político pedagógico. Nas perspectivas enunciadas, os acentos dados à

formação técnica foram vinculados na superfície dos enunciados ao sentido trabalho

enquanto princípio educativo, em oposição à formação técnica com ênfase na

reprodução de procedimentos. Esses princípios são defendidos por pesquisadores

da formação profissional, já referenciados no capítulo 2. Também registramos que

em um dado momento histórico, foram incorporados ao discurso oficial vigente para

a EPTM, como se pode depreender do trecho extraído do documento base para a

EPTM: "buscamos enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de

superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual” e a concepção de trabalho

“como realização humana, inerente ao ser”, segundo a qual a formação profissional

se opõe à simples formação voltada para as solicitações do mercado do trabalho

(BRASIL, 2007, p. 46).

Um outro sentido de cidadania pôde ser apreendido na ideia de que o ensino

de biologia deve servir para a vida dos alunos, apontando para uma ambição que vai

além da relação com o contexto imediato. Este sentido também está presente nas

188

discussões sobre as finalidades da educação científica e sobre alfabetização

científica, nas vozes de Lemke (2005, 2006), Chassot (2000) e Fourez (1997, 2003),

que defendem finalidades sociais mais amplas para a educação científica, visando

melhorar a vida das pessoas, individual e coletivamente.

A escolha dos alunos pelo ensino superior foi problematizada e confrontada

com a carência de bons técnicos para o mercado de trabalho, em particular, o

sistema público de saúde. Lamentou-se por esse sistema não ser abastecido por

técnicos de qualidade no sentido de atenuar os problemas sociais e políticos que

assolam a saúde no Brasil. Com essa dialogia, constrói-se para a educação

científica um sentido vinculado a expectativas sociopolíticas mais amplas, ainda que

se tenha tensionado a liberdade de escolha dos alunos ao se apropriarem dos

conhecimentos técnico-científicos durante a formação profissional.

Paralelamente, a preparação para o vestibular, considerado um processo

meritocrático, excludente e ferramenta de alienação do estudante, foi criticada em

diferentes perspectivas docentes. Embora tenham assim se posicionado, foi possível

perceber na análise das enunciações que não houve aqui o sentido de tirar dos

técnicos a possibilidade de ingressar em uma universidade, mas o sentido de que

este não deveria ser o objetivo fim da educação profissional.

Essas perspectivas se alinham com o pensamento de Ramos (2005), por

exemplo, quando nos lembra que uma educação profissional que propicie ao sujeito

o acesso aos conhecimentos e à cultura construída pela humanidade possibilita ao

jovem “a realização de escolhas e a construção de caminhos para a produção da

vida” (p. 62), de onde se depreende que tanto a inserção profissional quanto a

formação universitária são caminhos considerados legítimos.

Obviamente que as discussões sobre as finalidades da EC tocaram as

questões ligadas ao currículo. Essa interseção contempla sentidos que vão desde a

concepção restrita às solicitações do mercado de trabalho até objetivos mais amplos

da educação científica. No primeiro caso, o currículo foi apropriado como

condicionante para a inserção social no mundo produtivo, na medida em que deve

ser constituído prioritária e majoritariamente, por conteúdos específicos à formação

técnica. Essa visão produz sentidos de negação de qualquer possibilidade de

flexibilização curricular, como, por exemplo, a inserção de disciplinas da área de

humanas e das disciplinas da formação geral. Reflete, também, uma concepção de

“desintegração” entre os conhecimentos específicos e gerais.

189

Em relação aos conhecimentos científicos, esta perspectiva dialoga com a

concepção que os hierarquizam e os classificam, colocando o conhecimento técnico

como inquestionavelmente superior aos demais. Essa hierarquia tem sido

questionada por autores da área de ensino de ciências como Chassot (2003), por

exemplo, que considera que as ciências naturais e a matemática são ciências

humanas uma vez que são construções humanas e que portanto devem ser

igualmente consideradas.

Em relação à inserção de outras disciplinas no currículo, a análise de

Goodson (1997 apud LOPES, 2008) nos ajuda a compreender que a resistência pela

inserção das disciplinas de filosofia e sociologia no currículo da educação

profissional técnica envolve questões que não são somente as relacionadas com a

vontade de ensinar esse ou aquele conteúdo, mas aquelas relacionadas às

diferentes forças que estão em sua base, como por exemplo, os interesses dos

coordenadores, perspectivas defendidas por professores, gestores, além de

questões sociais e políticas mais amplas.

Ramos (2008) vincula a classificação entre formação geral e formação

específica, que encontramos nos discursos dos professores, ao reflexo do modelo

de formação recebido por professores, que sob a hegemonia do positivismo e do

mecanicismo das ciências, as fragmenta e hierarquiza.

Por outro lado, também encontramos a crítica ao excesso e aprofundamento

dos conteúdos científicos que, assim abordados, secundarizam ou negligenciam

discussões acerca de sua relação com a sociedade e com a política, no contexto da

formação técnica de nível médio. Essa crítica, apesar de ir ao encontro das atuais

discussões de autores sobre um ensino de ciências concebido para além de

objetivos economicistas (LEMKE, 2006) setorizou a realização da educação cidadã

nas séries iniciais da educação profissional, ao invés de propor integrá-la ao longo

do processo de formação técnica. Essa concepção curricular apontou para o

entendimento do senso comum de que a formação para a cidadania, neste caso

associada à ACT, não combina, não tem espaço, não pode ou não deve permear o

ensino do conhecimento científico mais especializado, e sim, o ensino médio

propedêutico.

A crítica à abordagem dos conteúdos de química aprofundada em demasia

também foi realizada com o viés que retrata finalidades para o ensino vinculadas a

interesses particulares de grupos de pesquisa da escola e equiparada ao nível

190

superior de ensino. Na área de ensino de ciências, Lemke (2006) critica a ênfase

excessiva em princípios puramente abstratos dos conteúdos científicos que,

segundo o autor, deveriam ser aprofundados pelos estudantes em estudos mais

avançados.

O "conteudismo" que engessa o currículo apontado nos discursos dos

professores também é criticado por Kuenzer (2002), para quem a seleção de

conteúdos e organização curricular na concepção "enciclopedista" com a finalidade

de reproduzir conteúdos legitimados pela cultura dominante deveriam considerar as

características socioculturais, os interesses e as necessidades dos alunos, da

comunidade e da região na qual a escola está inserida. A autora também defende

que seja promovida a capacidade de usar os conhecimentos científicos, tecnológicos

e sócio-históricos “para compreender e intervir na vida social e produtiva de maneira

crítica, produtiva, autônoma e ética” (p. 153).

Nas perspectivas dos entrevistados a aplicabilidade do conhecimento

científico permeou os objetivos da educação científica sob diferentes pontos de

vista. Um dos acentos de valor foi dado ao desenvolvimento da capacidade do aluno

de solucionar problemas técnicos e sociais do mundo real. Neste caso, foi

apreendido o sentido de um currículo mais “direcionado”, voltado para este objetivo.

Um segundo acento dado à relação entre o que é ensinado e a realidade do

aluno trouxe para o discurso uma dimensão política de ensino, aproximada

discursivamente ao pensamento de Paulo Freire, que se colocou contra o ensino de

conteúdos descontextualizados ("educação bancária") e defendeu perspectivas

críticas e reflexivas de ensino.

O cumprimento do programa na íntegra foi outro valor negociado,

discursivamente, frente ao investimento na dimensão crítica do processo de

formação técnica. O sentido apreendido aqui foi o de que, em relação ao papel da

escola na formação técnica, a perspectiva crítica deve prevalecer sobre o conteúdo,

uma vez que este pode ser aprendido na própria função de trabalho, enquanto o

posicionamento crítico-reflexivo, não. Esse posicionamento é consistente com a

perspectiva da formação integral defendida pelos pesquisadores da formação

profissional referenciados no capítulo três, fundamento do projeto político

pedagógico da escola B.

Em relação ao conhecimento científico, muitas vezes foi assumido um

posicionamento crítico e idealizadas novas concepções de ensino que superem a

191

visão ingênua ainda prevalente nas duas instituições, que tende ao positivismo

lógico. A visão de ciência foi confrontada com questões políticas e históricas e com

todos os debates que determinada produção de conhecimento envolve. Por outro

lado, também foi identificada uma visão acrítica e desconectada de questões mais

amplas do mundo social, que poderia ser aproximada à visão restrita da ciência

enquanto “insumo produtivo” para o setor empresarial.

Sem abandono da ideia de que há um certo instrumentalismo inerente à

função técnica nas atividades experimentais, pretende-se que sejam incluídas

atividades a partir do levantamento de hipóteses e confronto de ideias. Esse sentido

aponta para a superação da visão de um fazer que engessa a ciência, colocando-a

como algo acabado e inquestionável, afastando a compreensão de que ela está

constantemente se renovando.

A crítica ao positivismo tem sido feita tanto na literatura em educação quanto

na literatura em educação em ciências e especificamente também por autores que

discutem a formação profissional. Kuenzer (2002), por exemplo, chama a atenção

para a necessidade de superação da visão dogmática de ciência ou da ciência como

sistema formal de natureza cumulativa. Do ponto de vista do ensino, Ramos (2008)

também defende a abordagem histórica dos fenômenos e do conhecimento como

capaz de dar vida aos conteúdos, uma vez que, conhecendo o contexto socio-

histórico dos cientistas e grupos sociais do passado que desenvolveram

determinadas teorias, poderíamos nos compreender, também, como sujeitos com

capacidade intelectual para dirigir os rumos de nossas vidas e os que a sociedade

pode vir a tomar.

Independentemente do contexto institucional, as perspectivas de formação

integral foram estruturadas no discurso docente a partir do sentido da

indissociabilidade entre formação geral e específica tal como defende Ramos (2008).

A partir daí identificamos os sentidos que mobilizaram tanto a aprovação no

vestibular somada à formação técnica, como também a formação geral somada à

formação específica, integrando a perspectiva crítica e cidadã. Embora não tenha

havido um aprofundamento acerca da visão de integração como totalidade

defendida no documento oficial e no discurso acadêmico, ainda assim identificamos

como aproximações entre eles o acento de valor dado à crítica, ao questionamento,

à reflexão e à base de conhecimentos a qual os alunos devem ter direito

192

(FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005), seja para atuar no mundo do trabalho

como cidadão consciente seja para tomar decisões em relação à própria vida.

O sentido da formação integral estruturado a partir da integração entre

conhecimentos gerais e específicos indica mais afastamentos do que aproximações

no que diz respeito à perspectiva teórica de totalidade curricular. Encontramos o

sentido de interdisciplinaridade no qual tornam as disciplinas da formação geral

apenas como instrumentais às disciplinas da formação profissional. Se por um lado a

interdisciplinaridade foi considerada necessária e relevante, por outro foi

problematizada em relação à dificuldade de ser implementada chegando a ser vista

como impraticável pela forma como o currículo está estruturado.

Apesar de o sentido de integração que expressa a concepção de formação

humana omnilateral com base na integração das dimensões fundamentais da vida

(trabalho, ciência e cultura) não ter sido evidenciado na superfície dos discursos dos

professores da escola A, é possível considerar a aproximação parcial de uma das

perspectivas a essa concepção quando apontada a preocupação com uma formação

técnica na perspectiva crítica, que proporciona “a compreensão das dinâmicas sócio-

produtivas das sociedades modernas e [...] o exercício autônomo e crítico de

profissões, sem se esgotar a elas" (RAMOS, 2008, p. 64).

Uma dada perspectiva apontou fragilidades quanto à realização da forma

subsequente da educação profissional. O sentido apreendido foi o de que, apesar

dos alunos terem cursado o ensino médio regular, a escola de origem e o tempo de

formação, interferem no seu desempenho escolar. Ramos (2008) nos explica que

essa forma de educação profissional deve se constituir como formação continuada e

não como compensatória do ensino superior, ou seja, uma espécie de prêmio de

consolação para aqueles que não tiveram oportunidade. O que compreendemos é

que a educação subsequente não pode ser concebida como um "reparo" para quem

não teve a oportunidade de cursar uma faculdade, mas, deve ser praticada com o

sentido de que todos têm direito ao conhecimento. Esse é o desafio que se impõe

para a educação profissional na forma continuada.

193

8.1.2 Interpretando as perspectivas de qualidade: relações do texto com o contexto

Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum

o fato de atuarem na educação científica no contexto da EPTM. No entanto, os

professores pertencem a contextos individuais e institucionais diferentes, atuando

em campi diferentes da mesma escola ou em escolas diferentes. Se por um lado, o

referencial bakhtiniano não estabelece uma relação de identidade entre os autores-

criadores e autores-pessoa, ele afirma a influência do autor-pessoa no ato da

criação do enunciado. A partir desse entendimento, a intenção nessa subseção foi

buscar estas influências.

Neste sentido, a primeira análise que parece pertinente é avaliar

afastamentos e aproximações entre as perspectivas de qualidade da educação

científica encontradas em cada contexto institucional. Esta seção buscará especular

sobre alguns desses fatores, como por exemplo, a formação do professor, o tempo

de atuação na escola, a parte do currículo em que atua e o posicionamento do

docente em relação ao projeto institucional.

8.1.2.1 Afastamentos e aproximações discursivos na escola A

Partindo das análises realizadas, foi possível perceber que o fato de os

professores da escola A atuarem em partes diferentes no currículo do curso técnico

em química (formação geral e específica), pode ter implicado diferença de valores

em disputa, evidenciada em suas perspectivas de qualidade para a educação

científica. Observamos no confronto de suas enunciações, disputa por ênfase

curricular, valorização social e avaliações apreciativas diferentes das relações entre

formação técnica e mercado de trabalho e da formação técnica em si, indicando

diferentes sentidos para a educação científica.

Percebemos que as críticas direcionadas ao currículo, à instituição e aos

colegas vieram dos professores da formação geral enquanto que as respostas

ganharam um tom mais descritivo e menos crítico nos discursos oriundos da

formação específica. Essa diferença pode estar relacionada às diferenças

hierárquicas que moldam essas duas etapas do currículo na escola A. Sendo a parte

194

específica mais valorizada, os professores se sentem mais satisfeitos com seu

trabalho, enquanto o oposto pode ocorrer com os professores da formação geral.

As perspectivas que integram finalidades educacionais mais amplas

(perspectiva crítica, reflexiva e cidadania) para a formação técnica receberam uma

maior ênfase nos discursos dos professores que atuam na formação geral, tanto no

campus I como no campus II. Esses professores, além de atuarem na mesma parte

do currículo, são contemporâneos e, recentemente, cursaram doutorado na área de

educação. Consideramos que a inserção nesse campo de especialização amplia as

reflexões em relação aos valores e às intenções que integram os sentidos

produzidos por eles para a educação científica no contexto da formação técnica

profissional. Embora os professores não tenham feito referência explícita ao curso

realizado, os vínculos teóricos estabelecidos em suas enunciações constituíram

indícios que nos levaram a considerar essa hipótese. Obviamente que essa não é

uma relação linear que possa explicar todas as convergências ou divergências entre

as perspectivas enunciadas, ela apenas complementa a nossa apreciação avaliativa

ao considerarmos o lugar social de onde os professores falam.

A apropriação discursiva do conceito de formação integral associada à

organização curricular com o sentido de somar formação geral e profissional marcou

o discurso sobre integração na escola A. As principais divergências encontradas

dizem respeito às finalidades de uma e de outra. Encontramos a perspectiva de

formação integral enquanto somatório da finalidade de preparar para o vestibular

(atribuída à formação geral) ao da formação para o trabalho de acordo com as

demandas do mercado (atribuída à formação específica). Esta perspectiva que

produz o sentido de currículo instrumental (vestibular e mercado), emergiu do

contexto de atuação na formação específica associado ao maior tempo de atuação

no campus mais antigo, nos remetendo, assim, a um vínculo ideológico com a

tradição de qualidade presente nos discursos que circulam no contexto da escola A.

Em outra perspectiva de formação integral, enunciada por professor do

campus I, captamos o sentido que articula formação geral e formação profissional,

mas não incorpora no discurso, outros valores a essa concepção. Esse fato pode

estar relacionado ao acento à formação integral comum no campus I, no qual

prevalece o aspecto estruturante do currículo dos cursos técnicos sobre reflexões de

outra natureza.

195

No campus II, as perspectivas também são diferentes entre si, embora

originadas de contextos extraverbais semelhantes (atuação em campus recém

criados, equivalência no tempo de atuação, formação no nível de pós-graduação).

Se por um lado nessa realidade tenham sido acrescidas nuances políticas e críticas

ao sentido de formação integral, também foi destacado o sentido de integração de

conteúdos gerais e específicos segundo a concepção de que os primeiros

instrumentalizam os segundos visando à solução de problemas da realidade social.

Nesse caso, é possível considerar que o discurso tenha refletido as marcas da

natureza da formação acadêmica e da especificidade dos percursos profissionais.

O conceito de interdisciplinaridade foi mobilizado para compor a perspectiva

de formação integral no plano do currículo. Embora tenha sido reconhecida como

relevante e necessária, também foi levantada a dificuldade de implementá-la. Nesse

caso, os contextos individuais, temporais e espaciais deixaram marcas nas

enunciações no que diz respeito às construções argumentativas em relação ao

direcionamento da responsabilidade por não conseguir realizar. O currículo

estruturado e o vestibular como obstáculos para a implementação da

interdisciplinaridade constituíram uma das perspectivas na voz oriunda da formação

específica. Em outra perspectiva, foi defendida a necessidade e a importância de

romper com o isolamento das disciplinas. Nesse caso, a dificuldade apontada foi

atribuída ao processo positivista de formação dos professores e à ausência de

discussão e ações propositivas mais amplas no âmbito institucional que

possibilitassem reflexões a respeito.

Outra perspectiva de educação científica oriunda da formação específica

reduziu o sentido de interdisciplinaridade ao caráter instrumental dos conhecimentos

gerais como base para os específicos, associada ao sucesso profissional e à

solução de problemas do mundo real. Essa visão traz as marcas da formação

acadêmica em engenharia, legitimadas nos discursos da atuação profissional. No

entanto, ela se afasta da perspectiva de interdisciplinaridade enunciada por Ramos

(2005), na medida em que não considera na base da sua formulação a capacidade

dos conhecimentos específicos evidenciarem "o caráter produtivo concreto" dos

conhecimentos gerais. O que a autora defende como interdisciplinaridade vai além

de instrumentalizar as disciplinas específicas, visão esta que caracterizou a

organização curricular dos cursos implementados sob a Lei 5692/71 e as DCN

atuais para a EPTM. Sua perspectiva de interdisciplinaridade parte de uma postura

196

epistemológica, recorrendo aos princípios e pressupostos da interdisciplinaridade

que não se coadunam com “somatório, superposição ou subordinação de

conhecimentos uns aos outros, e sim da integração na perspectiva da totalidade”

(p.108).

Houve também perspectivas nas quais os professores construíram sentidos

de educação científica estabelecendo relações entre o ensino e as questões

históricas, políticas e sociais mais amplas presentes no campo científico,

problematizando a soberania e a visão de neutralidade da ciência. Estas foram

apreendidas com diferentes nuances e focalizações nos discursos dos professores

pós-graduados, não necessariamente em educação, advindas de escolas que

guardam diferenças entre o tempo de criação, projeto político pedagógico e inserção

curricular. Nesse conjunto, o elemento comum que os aproxima, além da formação

em nível de pós-graduação, foi o tempo de atuação na formação profissional que

gira, no máximo, em torno de dez anos.

A perspectiva do professor que atua na formação geral, doutor em educação,

reclama a ausência de um debate coletivo necessário sobre as legislações para a

EPTM e sobre o projeto político pedagógico da escola A para a definição de políticas

institucionais. Na voz desse professor, embora não tenha havido aprofundamento,

identificamos, também, referência à influência dos organismos internacionais na

organização curricular dos cursos técnicos e o seu reflexo sobre as finalidades

educacionais da escola.

8.1.2.2 Afastamentos e aproximações discursivos na escola B

Os professores da escola B são contemporâneos e atuam há poucos anos na

escola B como professores de Biologia, um na formação geral e outro na formação

geral e específica além de coordenar o projeto de uma disciplina integradora que

pretende efetivar a realização da formação integral na escola.

O fato de atuarem em diferentes partes do currículo do curso técnico em

análises clínicas não produziu afastamentos importantes entre suas perspectivas. A

atuação de ambos no ensino médio regular parece ter sido mais determinante em

imprimir mais aproximações do que afastamentos entre suas perspectivas de

educação científica na formação técnica.

197

Ao enunciarem sobre o objetivo de formar para o trabalho, ambos (os

professores) o remeteram às finalidades educacionais mais amplas, colocando a

preocupação com o aluno no centro de suas intenções educativas. Com diferentes

nuances os professores explicitaram, discursivamente, as suas perspectivas de

formação humana. No contexto da formação geral seria ensinar biologia para a vida

do aluno e no da formação específica seria proporcionar uma formação técnica não

excludente e não alienante. A perspectiva teórica marxista apreendida na superfície

de suas enunciações se relaciona tanto com seus percursos acadêmicos como com

o projeto político pedagógico da escola B.

O forte vínculo discursivo com a perspectiva teórica institucional de formação

integral e politécnica reflete e refrata a realidade institucional, produzindo sentidos

para a educação científica que rechaçam o vestibular como objetivo fim da formação

técnica de nível médio e enfatizam no território da enunciação, perspectivas políticas

e sociais mais amplas. Nesse sentido, a formação cidadã não é idealizada por

justaposição, ela é constituinte da formação técnica na perspectiva da formação

integral.

Ao falar do conhecimento científico, o professor que atua na formação geral e

na específica questiona a soberania e a visão positivista e neutra de ciência,

confrontando-a com problemas políticos e interesses individuais que passam ao

largo do bem coletivo. Neste caso, ao contrário do que supúnhamos no contexto da

escola A, a relação entre os sentidos de qualidade apreendidos na enunciação

colocam em xeque a pressuposição de que a pós-graduação em educação teria

influenciado os elementos ideológicos defendidos em seu discurso, pois, essa voz é

detentora de um percurso acadêmico e profissional em bases tecno-científicas

(técnico em química e mestre em biologia parasitária). Tal influência parece-nos

estar relacionada muito mais ao projeto político pedagógico da escola B do que à

trajetória acadêmica deste professor.

8.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo pretendeu contribuir para a área de pesquisa em educação em

ciências, apreendendo sentidos de qualidade da educação científica na voz de

docentes da educação profissional técnica de nível médio. A perspectiva teórica

198

utilizada permitiu considerar as perspectivas de qualidade do ensino como produtos

históricos e culturais e compreender como, em diferentes contextos educacionais,

professores da educação profissional constroem discursos e visões de ciência,

currículo, objetivos educacionais, que conformam o processo educativo e têm

impacto na qualidade da educação em ciências.

De um modo geral, as tensões e perspectivas levantadas no discurso dos

docentes das Ciências Naturais por Rezende et al. (2011) em relação à educação

profissional foram contempladas também no discurso dos sujeitos do presente

estudo. Se olharmos para nossos resultados como um todo, foi possível identificar,

igualmente, dois polos: de um lado, a educação científica como preparação da força

de trabalho e de outro, como formação integral, para todas as dimensões da vida.

Mas consideramos que foi possível avançar, justamente quando conseguimos captar

nuances dessas perspectivas. Por meio do escrutínio que realizamos, chegamos a

visões de qualidade particulares, que nos mostraram a importância dos docentes

enquanto protagonistas do processo educativo, capazes de conformar a qualidade.

Por meio dessa consideração, que defendemos desde o projeto maior que originou o

presente trabalho, ficou claro que a qualidade da educação não pode ser vista

apenas pelos índices oficiais como ENEM e IDEB.

Nossos resultados deixam patente o quanto esta visão reduz a complexidade

da qualidade, quando os confrontamos com o ranking do ENEM 201116 no estado do

Rio de Janeiro, segundo o qual as escolas A e B ocupam praticamente a mesma

posição17! O sentido dessa classificação para a sociedade em geral é o de que

essas escolas supostamente apresentam a mesma qualidade. A divulgação recente

deste dado nos proporcionou, assim, um contraponto ao que defendemos nesta

tese. Afinal, conseguimos mostrar que a qualidade está longe de ter o mesmo

sentido para os docentes dessas duas escolas.

Assim, a partir de uma análise “bakhtiniana”, foi possível chegar a uma

diversidade de perspectivas de qualidade, dentro de um contexto educacional tão

particular como o da educação profissional. Essa diversidade é maior na escola A,

mesmo quando consideramos um mesmo campus. Na escola B, encontramos mais

aproximações do que afastamentos entre as perspectivas de qualidade enunciadas

pelos sujeitos entrevistados. Essa síntese é capaz de mostrar que a atuação do

16

Disponível em: <www.inep.gov.br> 17

28º e 27º lugares, respectivamente (O GLOBO, 23 de novembro de 2012).

199

professor na educação profissional não produziu necessariamente uma visão

hegemônica de qualidade para a educação científica, assim como o contexto

institucional não produziu uma única visão de qualidade em cada instituição.

É possível depreender, portanto, que outros fatores estão em jogo. Há de se

considerar, inicialmente, o endereçamento dos enunciados, principalmente no

contexto da escola A, na qual a pesquisadora atua como gestora.

Surpreendentemente, a o duplo papel do destinatário não provocou reações

idênticas nos docentes. O posicionamento com tendência acrítica que dá um tom de

concordância com o ensino de ciências conforme instituído na escola parece ter

colocado em jogo uma determinada imagem do destinatário suposto, como a de

alguém que poderia julgar ou avaliar a prática do entrevistado. Em contrapartida, o

posicionamento discursivo crítico, que apontou fragilidades do ensino realizado na

escola, provavelmente dialogou com uma outra imagem da audiência, a de um

mensageiro de suas reivindicações. No âmbito do presente estudo, não há como

obter maior compreensão dessa diferença.

De qualquer forma, nos cabe interpretar a diversidade de perspectivas

encontradas para além da influência subliminar do destinatário suposto. Um dos

caminhos é relacioná-la ao processo de recontextualização (no sentido de

apropriação, como colocado no quadro teórico) do projeto político da escola pelo

corpo docente.

Embora não tenha sido nosso objeto de estudo, a pesquisa permitiu

vislumbrar diferenças no processo de apropriação das orientações político-

pedagógicas pelas instituições educacionais investigadas, sinalizadas pela maior

dispersão entre as perspectivas de qualidade encontradas na escola A em relação à

escola B, ainda quando levamos em conta um mesmo campus.

Os professores da escola A reconheceram que não conheciam o projeto, não

utilizavam e não havia discussões pedagógicas coletivas. As perspectivas de

qualidade encontradas são, assim, fruto da assimilação de um possível senso

comum sobre o conceito de formação profissional que circula nas instituições

educacionais, ancorado em legislações passadas, na formação acadêmica do

professor ou até na mídia. Além disso, alguns criticaram o direcionamento

pedagógico da escola e vários outros aspectos curriculares e ideológicos.

A relação discursiva dos professores da escola B com o projeto político

pedagógico é completamente diferente. Ambos mencionaram aspectos do projeto,

200

sempre se manifestando positivamente. Um deles teceu elogios e se disse fã da

escola.

Essa diferença nos contextos institucionais das escolas pode estar na origem

da maior diversidade de perspectivas entre os professores da escola A. Enquanto a

escola B promove a discussão do currículo, do projeto pedagógico e da legislação,

permitindo o embate de perspectivas, mas também a construção coletiva e a adesão

dos professores a um projeto comum, a escola A não promove atividades que levem

ao compromisso com um projeto coletivo. Consideramos um caminho importante

tomar esse resultado como uma hipótese a ser perseguida em estudos futuros.

Diante dos nossos achados, também é possível considerar que a formação

acadêmica tenha influenciado ideologicamente a visão de Ciência enunciada pelos

professores entrevistados. Na escola A, os professores com formação pós-graduada

em Educação apresentaram uma visão crítica à ciência positivista, enquanto aqueles

que não tinham tal formação, não se posicionaram criticamente. Entretanto, essa

relação não se confirma na escola B, já que o professor crítico não tem este nível de

formação. Interpretamos que o papel que a formação acadêmica desse professor

tem em moldar sua perspectiva de qualidade foi sobrepujado pelo compromisso do

professor com o projeto pedagógico da escola. A discussão coletiva, o

compartilhamento de ideais e de valores (neste caso, críticos) moldaram as

perspectivas de qualidade da educação científica (neste caso específico, a visão de

ciência) igualmente ou mais fortemente do que sua formação acadêmica.

Retomando a primeira questão de pesquisa (Que perspectivas de qualidade

são construídas discursivamente pelos professores da EPTM em relação às

finalidades do ensino de ciências?), foi possível perceber a complexidade dialógica

que pautou a construção dos sentidos apreendidos, envolvendo confrontos de

atribuições valorativas com as demandas efetivas do contexto de trabalho e com as

expectativas de um ensino de qualidade alinhadas com outros discursos. Foi

possível identificar dialogias tecidas a partir de pontos de contato com os discursos

circulantes na escola, com os discursos oficiais, institucionais e acadêmicos.

Na pesquisa sobre a qualidade do ensino de ciências (REZENDE et al., 2011)

realizada com docentes de nível médio, passo que deu origem ao presente estudo,

foi percebida a recorrência do sentido da falta de qualidade atribuído no discurso dos

professores à educação científica de nível médio. Diferentemente, no presente

estudo, os professores construíram sentidos para a qualidade a partir dos valores

201

que defendiam para o seu ensino, produzindo sentidos para as suas práticas, em

meio a embates e buscas pela qualidade que idealizavam. Talvez aí tenha se

identificado uma pista que afasta a qualidade desses dois contextos da educação

pública, na voz docente: a educação de nível médio regular e a educação

profissional. Uma hipótese para justificar esta diferença pode estar relacionada ao

maior investimento público na educação profissional nos últimos anos.

Observamos, também, diferentes pontos de partida que os professores

elegeram para tecer a sua perspectiva de qualidade. Alguns tomaram por referência

as ações da própria instituição para legitimar ou não as finalidades do ensino,

respondendo ativamente com críticas, comparações, acordos e desacordos.

Notamos pouca referência às políticas públicas para a EPTM na atual conjuntura

social, seja para indicar divergências entre os sentidos de educação profissional

oficial, docente e institucional ou indicar o conhecimento sobre sua influência na

definição de finalidades educacionais. Outros rememoraram suas trajetórias

acadêmicas e profissionais para dar sentido ao discurso sobre a sua prática e a

partir daí projetarem suas ambições para a formação técnica.

Foi possível apreender que o direito ao conhecimento e à reflexão sobre o

conhecimento, defendido para a formação técnica de nível médio por discursos dos

pesquisadores da educação profissional, foi apontado tanto na perspectiva que

defendeu a inserção no mercado de trabalho como finalidade educacional primeira

quanto na perspectiva que incluiu, além dessa, finalidades sociais mais amplas. Isto

pode ter sido derivado, nos contextos investigados, de dois pontos de vista: daquele

que é fruto de mudanças na concepção de educação, seja pela escolarização

ampliada, seja por questões ideológicas e culturais ou daquele ponto de vista que já

assimilou o fato de que a sociedade capitalista contemporânea aguarda por técnicos

que saibam pensar diante das novas configurações científicas e tecnológicas do

mundo produtivo.

No entanto, Ramos (2008) nos alerta para que não sejamos iludidos por um

discurso "ideológico e dispersivo intrínseco à dinâmica do capitalismo no qual os

sujeitos serão empregáveis dependendo de sua carteira de competências e de suas

qualificações", uma vez que há contraposições em relação à lógica que lineariza a

relação entre formação e emprego (p. 71).

202

Em relação à segunda questão de pesquisa (Que perspectivas de qualidade

são construídas discursivamente por docentes da EPTM em relação ao

conhecimento científico?) conseguimos captar uma tendência no sentido da defesa

de um ensino de ciências crítico-reflexivo que instigue o questionamento diante do

conhecimento científico. O ensino de ciências também foi problematizado mais

radicalmente pelos professores a partir de questões políticas, sociais e históricas

que tocam a soberania e a não neutralidade da ciência engendradas pelas relações

de poder presentes nos contextos de sua produção.

Divergências entre as perspectivas de qualidade do ensino de ciências foram

observadas tanto em campos disciplinares diferentes como dentro de uma mesma

comunidade disciplinar. Ainda que este estudo não tenha tomado às especificidades

e singularidades dos campos epistêmicos, neste caso, química e biologia, como

ponto de partida para as análises, entendemos que não conseguimos captar sinais

de que esses aspectos tenham interferido diretamente em nossos resultados,

embora seja possível admitir que estão imbricados nos sentidos apreendidos.

O exame das aproximações e afastamentos entre as perspectivas de

qualidade dos professores e o conceito de formação integral e o discurso oficial,

nossa terceira questão de pesquisa, apontou mais aproximações no contexto da

escola B, principalmente se levarmos em conta que o discurso oficial pode ser visto

como o discurso oficial institucional. Uma vez que o conceito teórico de formação

integral, defendido pelos docentes enquanto qualidade, fundamenta o projeto político

pedagógico da escola B, é fácil ver a aproximação. Se levarmos em conta que essas

mesmas bases teóricas foram apropriadas pelo Documento base (2007) para a

EPTM, ainda que saibamos da existência de sentidos contraditórios que possam

habitar uma mesma palavra, é possível ver também aí, aproximações com o

discurso oficial do governo. Além disso, encontramos nessa escola, indícios de um

esforço coletivo que aproximou as perspectivas de um sentido próprio para a

qualidade, mesmo que as apropriações incorporem ressignificações dos valores,

intenções e interesses dos sujeitos envolvidos.

Consideramos como promissora uma inserção maior na escola B para

aprofundar as relações entre as apropriações do princípio de formação integral pelo

discurso institucional e os sentidos que os docentes dão às suas práticas nesse

contexto, assim como suas lutas e os embates para implementá-la. Essa

consideração constitui outra escolha possível a ser focalizada em um novo estudo.

203

Os professores da escola A não construíram os sentidos para a formação

integral pelo discurso diretamente relacionado à legislação ou a princípios

pedagógicos, tendo declarado também não haver discussões institucionais e nem

consulta aos documentos. Isso não nos autoriza afirmar que não existam pontos de

contatos entre os sentidos que dão às suas finalidades educacionais e os princípios

de integração presente no documento oficial, mas que não foi possível captá-los nos

limites deste estudo.

Embora os professores da escola A tenham declarado não consultarem ou

discutirem os documentos oficiais, sejam eles leis, decretos ou projeto político

institucional, identificamos pontos de contato entre suas perspectivas e as

finalidades educacionais expressas nos discursos oficiais para a EPTM,

considerando, por exemplo, a lei que institui os institutos federais de educação.

Afinal, os discursos circulam entre diferentes épocas e contextos sociais na situação

de interação verbal, trazendo as ressonâncias de discursos precedentes, por

exemplo, sobre as finalidades educacionais da formação técnica engendradas na

esfera social na qual esses professores atuam. Por exemplo, uma das perspectivas

encontradas se aproximou ao de “realizar pesquisas aplicadas, estimulando o

desenvolvimento de soluções técnicas e tecnológicas, estendendo seus benefícios à

comunidade” (Art. 7º, incisos III e IV, Lei N.º 11.892/2008).

Ainda na voz que representa a formação geral, tanto no campus I como no II,

captamos questionamentos críticos em relação a ausência de espaços para

discussões coletivas sobre a legislação ou sobre o projeto pedagógico que

incluíssem, por exemplo o currículo, no sentido de implementar a formação integral,

operar “enxugamentos”, acentuar valorativamente outros conhecimentos além do

científico.

Apenas uma das perspectivas apreendidas na escola A relacionou as

finalidades educacionais da formação técnica aos interesses que constituem o

contexto de definição e de produção de políticas para a EPTM no âmbito

governamental. Nos demais discursos, houve a tendência de cobrar da escola

(corpo docente, coordenadores, gestores) por ações e posicionamentos mais

efetivos que visem implementar mudanças consideradas necessárias ao ensino

técnico.

Com exceção dessa relação, e de uma perspectiva crítica originada na escola

B, percebemos um silenciamento das tensões envolvidas na política atual de

204

expansão da educação profissional no Brasil e da problematização das propostas

oficiais de governo na produção de sentidos para a qualidade. Consideramos esse

quadro preocupante porque mesmo quando críticas, as perspectivas enunciadas –

sobretudo no contexto da escola A, que participa efetivamente desse movimento de

expansão – se circunscrevem à realidade institucional imediata e deixa de

questionar a o contexto político mais amplo. Esse embate é dificultado também por

representar a luta contra visões hegemônicas vivenciadas no sistema capitalista e

acentuadas nas políticas neoliberais que vêm se estabelecendo no Brasil desde a

década de 90.

205

REFERÊNCIAS

AMORIM, M. A. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em Ciências Humanas. Cadernos de pesquisa, n.116, p.7-19, junho, 2002.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.

______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. The Dialogic Imagination. Austin: Universidade do Texas Press, 1994.

______. Que es el lenguage? In: SILVESTRI, A.; BLANCK, G. (Org.) Bajtín y Vigotski: la organization semiótica de la consciencia. Barcelona: Antropos,1993.

BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. Ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

______. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco & Cristóvão Tezza. Circulação restrita, 1926. [s.d.]. p.1-16.

BANET, E. Finalidades de la educación científica en secundaria: opinión del profesorado sobre la situación actual. Enseñanza de las Ciencias, Barcelona, v. 25, n. 1, p. 5-20, 2007.

BEZERRA, P. Polifonia. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.

BORGES, R. C. P.; CARVALHO, W. L. P.; O significado de aprender para alunos de uma escola agrotécnica. Ciência e Educação, v.11, n.3, 2005, p.427-444.

BRAIT, B. Construções de Bakhtin as teorias do discurso. São Paulo: UNICAMP, 2005.

______. O discurso sob o olhar de Bakhtin. In: GREGOLIN, M. R.; BARONAS, R. (Org.). Análise do Discurso: as materialidades do sentido. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2003.

______. A natureza dialógica da linguagem: forma e graus de representação dessa dimensão constitutiva. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de. (Org.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 2001.

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Concepções e Diretrizes dos Institutos Federais de Ciência e Tecnologia. Junho, 2008.

______. Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L11892.htm>. Acesso em: 25 out. 2010.

206

______. Ministério da Educação. Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio. Documento Base. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec.> Acesso em 07 Abr. 2010.

______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico (DCN), Parecer CNE/CEB Nº 16, 1999, p.81.

CHARLOT. B. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, v.11, n.31, p.7-18, 2006.

CHASSOT, A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação, ANPEd, n.26, p.89-100, 2003.

______. Alfabetização científica: questões e desafios para a educação. Ijuí: UNIJUÍ, 2000.

CIAVATTA, M. A formação integrada: a escola e o trabalho como lugares de memória e de identidade. In: RAMOS, M.; FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (Org.). Ensino Médio Integrado: Concepção e Contradições. São Paulo: Cortez, 2005; p.83-105.

COSTA, R. C. A. A política do Proeja e a integração curricular: movimentos instituintes na escola. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011.

DELIZOICOV, D.; AULER, D. Alfabetização científico-tecnológica para quê? Ensaio: pesquisa em educação em ciências, v.3, n.1, p.105-115, 2001.

ENGUITA, M. F. O discurso da qualidade e a qualidade do discurso. In: GENTILI, P. A. A. TADEU DA SILVA, T. (Org.) Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação: Visões críticas. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p.95-110.

FARACO, C. A. Linguagem e diálogo – as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003.

FONTAN, I. A. Do CTQI ao IFRJ: seis décadas construindo uma identidade. Clube dos autores, 2011.

FOUREZ, G. Crise no ensino de ciências. Investigações em Ensino de Ciências, v.8, n.2, p.109-123, 2003.

______. Alfabetización Científica y Tecnológica: acerca de las finalidades de la enseñanza de las ciencias. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 1997.

FRANCO, M.L.P.B. Ensino médio: Desafios e reflexões. Campinas: Papirus, 1994.

FREITAS, M. T. de A. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In: FREITAS, M. T.; JOBIM e SOUZA, S.; KRAMER, S. (Org.). Ciências humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007.

207

______. Vygotsky & Bakhtin. Psicologia e Educação: Um intertexto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2003.

______. Nos textos de bakhtin e vygotsky: um encontro possível. São Paulo: USP/MIMEO, 1995. Durante o Colóquio Internacional “Dialogismo: 100 anos de Bakhtin”.

FRIGOTTO, G. Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI. Revista Brasileira de Educação, v.16, p.235-254, 2011.

______. A Polissemia da Categoria Trabalho na batalha das ideias na sociedades de classe. Revista Brasileira de Educação, v.14, n.40, p.168-194, 2009.

______. A relação da educação profissional e tecnológica com a universalização da educação básica. Educação & Sociedade, v.28, n.100, p.1129-1152, 2007.

______. Concepções e mudanças no mundo do trabalho e o ensino médio. In: RAMOS, M.; FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (Org.). Ensino Médio Integrado: Concepção e Contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. A gênese do Decreto Nº 5.154/2004: um debate no contexto controverso da democracia restrita. In: RAMOS, M.; FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (Org.). Ensino Médio Integrado: Concepção e Contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. Educação básica no Brasil na década de 1990: subordinação ativa e consentida à lógica do mercado. Educação & Sociedade, v.24, n.82, p.93-130, 2003.

GENTILI, P. A. A. O discurso da “qualidade” como nova retórica conservadora no campo educacional. In: GENTILI, P. A. A. TADEU DA SILVA, T. (Org.) Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação: Visões críticas. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p.113-177.

GOULART, C. M. A. Política como ação responsiva - breve ensaio acerca de educação e arte. Conferência proferida na mesa intitulada “Política como ação responsiva”. In: 1º Encontro de Estudos Bakhtinianos, Faculdade de Educação da UFJF, 2011.

GOULART, C. Enunciar é argumentar: analisando um episódio de uma aula de História com base em Bakhtin. Pro-Posições, v.18, n.3 (54), set./dez., 2007.

GURGEL, C. M. A. O Que é um Ensino de Qualidade? Reflexões Decorrentes do Subprograma Educação Para a Ciência (SPEC) no Brasil(1983-1997). In: II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação Em Ciências, 1999.

KONDER, L. O outro, esse alienígena. O Globo, 25 de agosto de 1996, p.7.

KUENZER. A. Z. Educação, linguagem e tecnologias: as mudanças no mundo do trabalho e as relações entre conhecimento e método. In: KUENZER. A. Z. et al.

208

(Org.). Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. São Paulo: DP&A, 2002.

LEMKE, J. L. Investigar para el futuro de la educación científica: nuevas formas de aprender, nuevas formas de vivir. Enseñanza de las Ciencias, v.24, n.1, 5–12, 2006.

______. Research for the Future of Science Education: new ways of Learning, new ways of Living. In: VII International Congress in Research in Science Teaching. Granada, Espanha, 2005.

LIMA FILHO, D. L. Educação, processos produtivos e projetos de uma sociedade: desafios para a construção de uma política pública para os eu vivem do trabalho. In: GREGORIO, A.C.; GARCIA, S.O. (Org.) O ensino médio integrado à educação profissional: concepções e construções a partir da implantação na rede pública estadual do Paraná. Curitiba, SEED/PR, 2008.

LOPES. A. C. Políticas de integração curricular. Rio de Janeiro: EdUerj / Faperj, 2008.

______. Políticas curriculares: continuidade ou mudança de rumos? Revista Brasileira de Educação, n.26, p.109-118, 2004.

______. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino médio e a submissão ao mundo produtivo: o caso da contextualização. Educação e Sociedade, v.23, n.80, p.386-400, 2002.

MANFREDI, S. M. Educação Profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

MOREIRA, A. F. B.; KRAMER, S. Contemporaneidade, educação e tecnologia. Educação & Sociedade, v.28, n.100, p.1037-1057, 2007.

MOREIRA, A. F. B. Currículo, cultura e formação de professores. Educar em Revista, Curitiba, v. 17, p. 39-52, 2001.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

MOURA, D. H. O PROEJA e a necessidade de formação de professores. In: BRASIL. PROEJA: Formação Técnica Integrada ao Ensino Médio. Brasília: MEC, 2006. Boletim 16, Set. 2006. p.76-93.

OLIVEIRA. R. P.; ARAÚJO, G. C. Qualidade do ensino: uma nova dimensão da luta pelo direito à educação. Revista Brasileira de Educação, n.28, p.5-23, 2005.

PROJETO PEDAGÓGICO INSTITUCIONAL. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ, julho 2009. Disponível em: <http://www.ifrj.edu.br/webfm_send/491.

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/PesqProjetoDoc/projeto_politico_pedagogico.pdf.

209

RAMOS, M. Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010.

______. Concepção do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. O ensino médio integrado à educação profissional: concepções e construções a partir da implantação da rede pública estadual do Paraná. Curitiba: SEED –Pr., 2008.

______. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio. In: DOCUMENTO BASE, Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, 2007.

______. Possibilidades e desafios na organização do currículo integrado. In: RAMOS, M.; FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (Org.). Ensino Médio Integrado: Concepção e Contradições. São Paulo: Cortez, 2005; pp.83-105.

______. O projeto unitário do ensino médio sob os princípios do trabalho, Ciência e da Cultura. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (Org.). Ensino Médio Integrado: Ciência, Cultura e Trabalho. Brasília, 2004.

REZENDE, F.; OSTERMANN, F. A prática do professor e a pesquisa em ensino de física: novos elementos para repensar essa relação. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v.22, n.3, p.316-337, 2005.

REZENDE, F.; OSTERMANN, F.; FERRAZ, G. Ensino-aprendizagem de Física no Ensino Médio: o estado da arte da produção acadêmica no século XXI. Revista Brasileira de Ensino de Física, v.31, n.1, 2009.

REZENDE, F.; DUARTE, M.; SCHWARTZ, L. B.; CARVALHO, R. C. Qualidade da Educação na voz dos professores. Ciência & Educação, v.17, n.2, p.269-288, 2011.

RUBEGA, C.C.; PACHECO, D. A formação da mão-de-obra para a indústria química: uma retrospectiva histórica. Ciência & Educação, v.6, n.2, p.151-166, 2000.

SALANDIM, M. E. M.; GARNICA, A. V. M., Escolas técnicas agrícolas: um estudo sobre ensino de matemática e formação de professores. Ciência & Educação, v.16, n.1, p. 235-258, 2010.

SANTOS, W. L. P. Educação científica na perspectiva de letramento como prática social: funções, princípios e desafios. Revista Brasileira de Educação, v.12, n.36, p.474-549, 2007.

SANTOS, W. L. P.; MORTIMER, E. F. Uma análise de pressupostos teóricos da abordagem C-T-S (Ciência-Tecnologia-Sociedade) no contexto da educação brasileira. Ensaio-Pesquisa em Educação em Ciências, v.2, n.2, pp. 1-23, 2002.

SHAMOS, M. H. The myth of scientific literacy. New Brunswick: Rutgers University Press, 1995.

210

SILVEIRA, R. M. C. F.; BAZZO, W. Ciência, tecnologia e suas relações sociais: a percepção de geradores de tecnologia e suas implicações na educação tecnológica. Ciência & Educação, v.15, n.3, p.681-694, 2009.

WERTSCH, J. V. La mente en acción. Argentina: Aique Grupo Editor, 1999.

______. Voces de la mente: un enfoque sociocultural para el estudio de la acción mediada. Madrid: Visor Distribuciones, 1993.

211

APÊNDICE 1 - ROTEIRO DA ENTREVISTA

Pergunta 1 O ensino de ciências, segundo as DCN para a EPTM, tem como um de seus principais objetivos, a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso? Pergunta 2 Você estabeleceria outros objetivos além deste para o Ensino de Biologia/Química neste tipo de formação? Pergunta 3 O que orienta a seleção de conteúdos para ensinar Biologia/Química? Pergunta 4 O que orienta suas metodologias para o ensino de Biologia/Química? Pergunta 5 Qual a sua visão sobre avaliação da aprendizagem? Pergunta 6 Como você vê o papel dos laboratórios para o Ensino de Biologia/Química? Pergunta 7 A EPTM voltou a ser oferecida à sociedade na modalidade integrada à partir do Decreto Nº 5.154/2004. O que você compreende por formação integral? Pergunta 8 Qual é a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado nos cursos de formação técnica? Pergunta 9 Você já teve acesso aos documentos oficiais que definem as diretrizes curriculares para EPTM? Em que medida essas diretrizes influenciam o seu trabalho pedagógico? Pergunta 10 Como você avalia o desempenho e o interesse de seus alunos em suas aulas? Pergunta 11 Você costuma envolver os seus alunos em projetos de pesquisa? Pergunta 12 Na sua visão, o que seria um ensino de química/biologia de qualidade no contexto da educação técnica profissional?

212

APÊNDICE 2 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR ANDRÉ (ESCOLA A – CAMPUS I)

ENUNCIADOR ENUNCIADO

Pesquisadora O ensino de ciências, segundo as DCN para a EPTM, tem como um de seus principais objetivos, a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso?

Prof. André

Sobre a formação para o trabalho das Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino profissional, para mim é um objetivo central. Com certeza importante. Tem que ver realmente como essa formação se dá. Mais crítica. Aqui, na instituição, aqui hoje a formação para o trabalho tem uma característica muito estranha. Não tem uma tradição de formação. Tenho certeza que não fez nenhuma reavaliação com relação à sua própria história e é necessário. Acho que esse campus especificamente, dentro da instituição, estou falando mais da função do Campus A, ela tem algumas questões que são anacrônicas, estão fora da perspectiva que nós temos hoje em relação à questão do trabalho. Acho que existe uma carga voltada para um segmento que não mais é necessário. Acho que não há um acompanhamento em relação à questão da demanda do profissional realmente. Essa relação nos institutos ou nas instituições que estão dedicadas à formação para o trabalho, o contato com o mercado e com as instituições que vão absorver esses profissionais, é extremamente importante. Eu acho que esse laço com o mercado que hoje é completamente débil, muito frágil, completamente inexistente. As instituições, elas aproveitam os profissionais ancorados em um momento histórico de alta deficiência e num momento em que essa instituição era quase a única provedora desse tipo de profissional. Ainda há uma grande demanda. Ou seja, eu vejo os profissionais, eles se formam, mas a gente não tem parâmetros, indicadores como avaliar de que maneira esse profissional está sendo voltado para uma função de trabalho, qual é o padrão da formação profissional desse cara. Eu vejo que se dá mais uma formação para o lado acadêmico. Os profissionais ligados ao curso técnico de biotecnologia, na verdade, querem ser médicos. Eles estão num curso de biotecnologia para ter uma carga poderosa com relação à área de biologia, por algum motivo para conseguirem ser médicos mais rapidamente, têm muita atração por isso. Eu não vejo aqui nesse Campus o desejo coletivo ou até a necessidade coletiva da formação desse sujeito para o trabalho. É diferente em até outros campus, eu acho. Esse campus é uma espécie de estorvo no padrão dos IFs ou no projeto dos institutos federais, no sentido da formação para o trabalho. Ele pode continuar caminhando assim, de uma forma comum, com um processo isolado dessa discussão para o trabalho, tanto do ponto de vista para a formação específica para o trabalho. quanto do ponto de vista para a formação integral. Porque eu também acho que existe aqui um conjunto de pessoas selecionadas e com muita motivação e que encontram aqui um de espaço de liberdade. Então elas vão se realizando um pouco pessoalmente em torno da liberdade, e vão recebendo uma carga de conhecimento muito grande, porque a jornada horária de disciplinas é muito grande. Mas isso, principalmente, em função das disciplinas exatas ou biológicas. O conhecimento de história e geografia que o aluno sai daqui, por exemplo, é pífio. A não ser que ele procure uma complementação maior, mas em relação à matemática, física, química, biologia é extremamente grande. Então a minha visão sobre os objetivos para a formação para o trabalho, eu tenho alguma visão, porque a minha formação está relacionada a esta discussão também. Eu tive cadeiras no mestrado e no doutorado que trataram dessa situação da formação para o trabalho, mas os professores daqui, stricto sensu, não têm nenhuma noção de qual é a demanda ou as orientações nacionais para a formação do trabalho. Eu tenho certeza disso. Até porque não há encontros, seminários, motivações, orientações. Eu mesmo desconheço qual é o projeto político pedagógico desta instituição, no sentido da formação para o trabalho. Eu já perguntei pelo projeto várias vezes e ninguém responde. Gostaria de, antes de sair dessa instituição,

213

ver esse documento. Então, na verdade, eu acho que esse documento não existe, mas eles não reconhecem isso como um problema, porque o que reconhecem de importante é manter a sua própria história. Uma história que vai se perdendo por essa mudança de nomes, por essa descaracterização. Na verdade, tem um processo psicológico muito legal, digno de um estudo antropológico, psicológico, sociológico, uma coisa muito interessante. As pessoas estão aqui, e elas só têm a própria história, porque elas não têm mais o nome da instituição, os documentos oficiais não valem mais, não sabem onde estão os registros do passado intensamente. O que acontece aqui é que as pessoas só têm uns aos outros, mas, ao mesmo tempo, elas têm muitas diferenças. Então, estão em um processo, assim, esquizofrênico, uma coisa muito louca, um negócio interessante, que merecia uma intervenção psicológica. Não que fosse colocar o dedo em nada não, mas alguém que ficasse observando esse perfil, que trabalhasse isso.

Pesquisadora Agora, em relação à química, você estabeleceria outros objetivos para o ensino da química na formação para o trabalho? Que objetivos você considera mais importantes para o ensino da química?

Prof. André

Volto a dizer que seria importante que nós tivéssemos seminários, encontros, resultados, um projeto, um trabalho sobre o que o mercado aponta de necessidade na formação. É isso. Eu estaria aberto a escutar isso. Pessoas que fizessem esse estudo e dissessem que o mercado hoje... A gente ouve falar que precisa de gente para trabalhar na área de petróleo, mas é uma audição coletiva. Não teve nenhum processo sistemático, uma coisa organizada, um trabalho sobre isso, para que a gente possa até reorientar os discursos. As questões aqui até reorganizar o curso, mas a questão da química, ela se fundamenta numa tradição, numa perspectiva analítica. Eu acho. O profissional que sai daqui hoje é um profissional formado estritamente, acho que ainda é numa perspectiva analítica. É um sujeito que está muito habilitado para trabalhar em laboratório. A gente sabe que essa não é o único universo de possibilidades para o nosso aluno do ensino profissionalizante, há outras questões interessantes, mas não se tem esse retorno. Devia ter um estudo no mercado para ver se está configurado dessa forma hoje, para focalizar esse tipo de questão, de conceito, de perfil. Seria interessante que a gente focalizasse esse tipo de questão. Não se muda, porque sempre foi muito bom. Porque nós somos muito bons. Nós somos os melhores e porque somos os melhores, nós devemos continuar tudo do jeito que está. Como quase que completamente alheios a alguma orientação. Eu não conheço o texto, então não me coloco nesse conjunto também. Mas acho que deveria ser uma orientação institucional, mas também não é feita. A função pedagógica ou didática nesta instituição se refere muito a uma espécie de burocracia pedagógica, então pensar curricularmente essa instituição, sob o ponto de vista de novas práticas, novas abordagens é praticamente um tema proibido. Porque somos muito bons. Isso é muito pessoal daqui. Acho que nos outros campi isso não acontece muito não, até porque eles têm que olhar por essas diretrizes. Alguém de outro campus já conhece a diretriz, já sabe como formular isso, mas aqui é tudo mais difícil.

Pesquisadora Em relação ao ensino da química, o que orienta a sua seleção de conteúdos, suas metodologias, suas avaliações? Um conteúdo novo, além dos propostos pelo currículo oficial? Como você faz isso?

Prof. André

O currículo que eu uso é o que já estava instituído para o instituto. Eu até hoje não fiz nenhuma modificação nele, pois, ele é consensual para a disciplina que eu dou: química geral I e II e inorgânica. É um arranjo consensual, tendo em vista que atendem a um processo de formação básica para servirem de elementos a questões posteriores. E como é um ensino profissional, a gente tem algumas questões mais a fundo, porque as disciplinas mais a frente vão usar esses conceitos da química mais a fundo também. Então esse arranjo curricular, sobre seleção dos conteúdos, já estava aqui quando eu cheguei e eu continuo fazendo do jeito que sempre foi feito. Agora, eu introduzo sim questões, principalmente na química geral I e agora, recentemente, na inorgânica, que eu passei a dar. Na química geral I, as questões de história e

214

filosofia da ciência. Eu coloco essas questões na química geral I, porque há conteúdos que permitem isso e têm uma aproximação muito grande com esse tipo de abordagem, a partir da história e da filosofia da ciência. Eu coloco sim. E, na verdade, na química inorgânica houve uma reformulação, reorganização dos conteúdos há pouco tempo. Quando o professor Rui veio para cá fez essa reorganização e ela é muito interessante, principalmente para química inorgânica, pois permite que a gente discuta várias questões que me interessam muito, que são história e filosofia da ciência. Essa seleção que eu faço, de colocar novos conteúdos para os alunos, se dá a partir da minha formação. Eu creio que tenho formação e competência na área de história e filosofia da ciência para discutir essas questões com os alunos na sala de aula, colocar provocações, confrontar questões que estão na apostila, nos livros didáticos. Mas isso se dá a partir da minha formação. Eu acho que tenho competência para fazer isso, mas essas inserções e discussões sobre história e filosofia da ciência, eu faço por causa da minha formação.

Pesquisadora E em relação aos laboratórios? Como você vê papel dos laboratórios para o ensino da Química nesse contexto do ensino profissionalizante?

Prof. André

Eu vejo o laboratório com função diferente do ensino experimental, das atividades práticas, como o ensino de ciências geralmente discute. A gente tem um percurso na atividade experimental de consolidação e aprendizagem de técnicas. Por exemplo, devemos situar o aluno em relação à segurança, como ele vai pipetar, medir os volumes, usar a balança. Nesse sentido a gente escapa completamente daquelas discussões sobre as atividades experimentais no ensino de ciências, que têm que ser mais críticas, menos ingênuas, não ser uma repetição de roteiros. Temos uma parte que é exatamente isso. O sujeito vai repetir maciçamente, vai pipetar várias vezes, vai medir aquela massa, usar a balança várias vezes. Como é uma formação profissional, essa atividade repetitiva faz parte da atividade profissional que ele vai desenvolver. Uma aula bem careta, eu diria. O cara vai aprender a lidar com a técnica, manipular aquela vidraria, instrumental. E têm alguns trabalhos em laboratório que têm esse suporte, essa questão de confrontar questões da teoria que a gente vê em sala de aula. Eu confesso que aqui, hoje, nesta instituição, a atividade experimental, tirando de lado essa atividade instrumental que tem que ser, ela ainda tem o cunho de repetir roteiros, com pouca reflexão, formulação de hipóteses, poucos testes, poucos diálogos, o confronto é pouco. A gente precisa reformular isso. Essa ansiedade que o grupo tem há algum tempo e a gente não consegue arrumar tempo para reformular essas atividades experimentais. Algumas reformulações já foram feitas no processo on the job, ou seja, alguém chegou e disse: eu vou fazer assim mesmo. Alguém para e faz essa pergunta e depois continua. A gente reorganizou um pouco essa atividade experimental porque alguém trouxe uma sugestão, a gente gostou e passou a usar, entendendo que essa era melhor que a anterior. Mas está faltando ainda sentar e reorganizar melhor.

Pesquisadora

Você trabalha na parte do curso que é de formação geral da educação básica, que está sempre atrelado a embasar as disciplinas do técnico. E em relação aos alunos, como você avalia o interesse, o desempenho dos alunos em relação à sua disciplina?

Prof. André

Os alunos têm muito interesse, porque vieram para cá... Mas interesse em quê? É uma pergunta que a gente até estava fazendo outro dia. A minha leitura é que eles têm muito interesse em ensino de qualidade, não em ensino profissional. A minha opinião é que eles não veem aqui um espaço de ensino profissional. Eles vêm para cá para se tornarem profissionais e entendem que essa é a possibilidade para a vida deles. Ser um profissional do ensino técnico e atuar no mercado. Sei lá por que razões. Eles vêm aqui em busca de ensino de qualidade gratuito. É isso. Eles são bons alunos porque eles são filtrados. Grande parte deles é de bons alunos. Uns com mais dificuldades, outros com menos, mas a motivação deles é o ensino de qualidade gratuito.

Pesquisadora A educação profissional voltou a ser oferecida à sociedade nessa modalidade integrada, a partir do Decreto 5154/04. Em sua opinião, o que é formação

215

integral? Você acha que consegue realizá-la? Como é que isso se dá ou poderia se dá na sua prática?

Prof. André

Acho que essa formação integral seria o sujeito ter, além da expectativa da formação do sujeito em ensino médio, ele ter acesso a conteúdos, atividades, questões que tivessem a ver com a formação profissional, porque vão chancelar ele em uma habilitação específica. Aqui, eu acho que a formação não é completamente integral, no sentido de você ter a formação de um sujeito na perspectiva do ensino médio e complementar com a formação profissional. Acho que ele tem uma carga de formação profissional muito grande e a formação mais ampla fica colocada de lado. Um exemplo importante disso, queria até deixar registrado, é a discussão a respeito da inclusão de disciplinas filosofia e sociologia, que é uma orientação para o ensino médio, né? E que, no sentido dessa instituição oferecer ensino integral, é uma orientação para essa instituição também, que foi uma temeridade, porque algumas disciplinas entenderam que isso não poderia acontecer, é um absurdo, pra quê, na verdade a pergunta é “pra que filosofia e sociologia o tempo todo?” É justamente por não entender essa formação integral. É uma espécie de simulacro. Vou deixar claro que é uma palavra que eu gosto muito. Essa formação integral na educação profissional é um simulacro, uma mentirinha, um fingimento. E esse processo da necessidade de incluir as disciplinas de disciplinas filosofia e sociologia, aqui na instituição, deixou bem claro isso. As pessoas não estão dispostas a perder nada do que têm hoje, porque o currículo, em qualquer lugar, atende a idiossincrasia, do conjunto de pessoas daquela instituição, né? Se você tem fulano, que é hábil naquela disciplina, então tem uma porção daquela disciplina. Se você tem fulano, que dá aquilo, tem uma porção daquilo. Então o currículo acaba indo para o lado das pessoas e não para o lado da instituição. Depois disso é que vêm os acordos internacionais. Eu vejo assim. Eu acho que esse exemplo da filosofia e da sociologia foi temeroso, ou seja, esta situação está parada hoje. Aconteceu discussão em determinado momento, mas está parada. Isso exigiria mais professores de sociologia e filosofia e, do jeito que está colocado na lei, existiria mais professores de filosofia do que outras disciplinas que são consideradas importantíssimas aqui. O aluno teria, de repente, mais aula de filosofia do que até da própria química ao final do curso. Enfim.

Pesquisadora E em relação à integração das disciplinas que estão no conteúdo curricular do ensino médio e do ensino profissional. Como isso se dá em termos de integração?

Prof. André

Não tem integração. Essa relação de diálogo, não tem diálogo. As funções básicas, as disciplinas básicas são espécie de serviço sujo que as disciplinas da ponta não querem fazer. Eu já coloquei em várias reuniões que a gente tem várias dificuldades, porque recebe o aluno cheio de dificuldades, ou seja, tem uma marca da instituição, de rigor conceitual e o regime da instituição é semestral, diferente do regime que o aluno já conhece, que é o regime anual. Isso exige uma nova adaptação. Então a gente vem experimentando nas disciplinas iniciais um processo de reprovação muito grande. Isso é ruim, mas é bom para as disciplinas que estão na frente. É um processo de dificuldades que a gente vem atravessando que é bom para os outros, porque, na verdade, isso reduz a quantidade de alunos na sala de aula do quinto período, e gera para a gente uma demanda de não sei quantas turmas, porque ficou muita gente reprovada. Isso tudo acontece em prol da defesa da qualidade institucional, porque sempre fomos bons assim, exigindo muito. Temos recebido alunos com novos perfis, novas dificuldades, porque esse mundo lá fora vem mudando também, é um aluno que vem com mais dificuldades, que passa pelo processo, pelo mesmo processo seletivo, mas como no processo não existe uma eliminação mínima, é um processo classificatório, na verdade, então esses primeiros classificados estão chegando, em boa medida, com mais novas dificuldades para abraçar esses temas dos primeiros períodos do que aqueles que chegavam há dez anos. E o diálogo é um diálogo só pró-forma. É claro que as disciplinas que estão na frente entendem a necessidade das disciplinas iniciais da mesma forma como entendemos a necessidade do lixeiro... a gente precisa do lixeiro, mas quer que ele fique cada vez mais longe da gente. É

216

necessário que eu vá lá, deixe o lixo e ele pega. Se eu não encontrar com ele, ótimo. É um serviço que eu preciso que seja feito, e bem feito. Assim como é bom que o lixeiro pegue o lixo na hora certa, né, senão eu vou começar a ter problemas aqui. Se a gente aprova todo mundo, é um manifesto que eu já coloquei aqui, já propus aos meus colegas que aprovássemos todos os alunos durante um ano e que todas as disciplinas do final do curso recebessem trinta e seis alunos. Hoje eles têm dez, quinze alunos em sala de aula. Gostaria que eles recebessem trinta e seis alunos, até para entender as questões.

Pesquisadora

Mas, em temos de uma formação integral, uma formação mais ampla, você acha que realiza isso, acha que a instituição se preocupa com isso? Que os professores de química, especificamente, estão preocupados com esse tipo de formação?

Prof. André

Eu acho que sim. Mas acho que por uma posição pessoal. Isso não é uma posição institucional, nem curricular. Eu acho que é o sentido dado à formação integral. Então são tentativas, ou seja, não há um acordo de júri, um acordo de verdade em prol disso e, nesse sentido, não se tem diretrizes para isso acontecer - a formação integral. Então eu não sei exatamente se toco na formação integral desse sujeito. A resposta concisa seria que eu não sei. Não sei por que não há diretrizes, se há, há, deve, há diretrizes nos decretos, nos documentos oficiais, nas diretrizes curriculares nacionais para a educação profissional de nível técnico e médio. Com certeza há, mas agora eu também tenho certeza que os professores não sabem dela. Logo, o que a gente tem é um festival de boa vontade, é a legião da boa vontade da química. Mas é só isso que tem, ou seja, a gente vai trazendo questões para a cena da questão ambiental sim. Colocar, mas não de uma forma organizada, conhecendo as diretrizes e depois fazendo avaliação em cima disso, né? Ou isso tomando parte do processo de avaliação. Vou chamar aqui só uma coisa, que é muito importante: essas questões todas que podem estar pontuadas como itens de uma formação integral, elas têm que, em algum momento, estar incluídas no processo de avaliação daquele sujeito. Senão não faz parte... Não faz parte desse sujeito, porque não fica claro para esse sujeito que isso está sendo contado para que ele progrida no curso, sendo observado. Isto tem que estar claro. E a gente, eu acho, eu tenho certeza que a gente não sabe o que quer... Quais são os itens a contar numa avaliação, numa formação integral, porque não se tem noção, não se conhecem esses documentos oficiais. Eles não são os documentos orientadores da atividade docente. Incrível, né, impressionante, mas não são... Mas isso não é só aqui não. É em qualquer lugar. Eu acho.

Pesquisadora E a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado nos cursos de formação técnica?

Prof. André

É a mais careta possível. Impressionante, impressionante... A questão do conhecimento científico é uma questão cara para mim, para a minha formação. É uma questão que eu discuto até formulação de relatórios de avaliação, a forma como escrever os relatórios, os termos que eles usam nos relatórios. A gente conversa sobre isso. Eu percebo na relação por conta de centenas que essa forma de conhecimento científico é uma das formas mais caretas, ingênuas. Para deixar registrado aí, que eu atribuiria assim, quase positivismo lógico, quase, quase... Não é positivismo lógico mesmo por pouco, mas é tão ingênuo, tão careta quanto o positivista lógico. Enfim...

217

APÊNDICE 3 - ENTREVISTA COM A PROFESSORA TAÍS (ESCOLA A – CAMPUS I)

ENUNCIADOR ENUNCIADO

Pesquisadora O ensino de ciências, segundo as DCN para a EPTM, tem como um de seus principais objetivos, a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso?

Profa. Taís

Olha, sempre tem que levar em consideração o que você quer da escola, se é o que está mais próximo ao mercado de trabalho que você está querendo. Eu acho que o nosso curso é de excelência, tá? Acho que todas as matérias estão bem voltadas para a química, falo da química, para o mercado de trabalho. Eu vejo isso nas visitas que eu faço de supervisão de estágio. Você sabe o que isso significa? O aluno está estagiando e a escola vai a essa empresa e ela mantém uma entrevista com o aluno para saber se ele está satisfeito, se está à vontade, se os conteúdos que ele aprendeu, ele está conseguindo aplicar lá com facilidade, se tem alguma coisa que ele não sabia fazer e a escola é responsável por ele não saber aquele conteúdo... As mesmas perguntas que a gente faz basicamente ao aluno, a gente faz ao coordenador dele ou à aquela pessoa a quem ele está subordinado, e eu sempre observo que os dois lados sempre estão sempre bem. Que os alunos são elogiados por essas pessoas: “não, eles são ótimos, eles têm excelente conteúdo”, mas, agora, tem um ou outro teste específico daquela empresa que aí a gente não pode ficar ensinando, porque são diversas empresas diversificadas e aí é complicado, mas, no geral, nós atendemos o mercado de trabalho no currículo, é certo, pelo que eu observo quando eu vou fazer todas essas visitas.

Pesquisadora Você estabeleceria outros objetivos além deste(s) para o ensino de química nesta modalidade de formação?

Profa. Taís

Outros objetivos?... A escola trabalha bem cidadania, a gente nota que são alunos que são bem politizados, em sua grande maioria. Eles estão sempre envolvidos em defender os direitos deles. Nós temos o CART, o grêmio... Então a gente sempre vê que os alunos têm esse lado bem politizado. E cidadania, toda vez que tem uma campanha de alimentos, arrecadação de roupas para fazer doação... Há pouco tempo, eles fizeram arrecadação de livros que eles iam levar para a cidade de Teresópolis, Friburgo, onde perderam tudo. Então eles levaram lápis, caderno, borrachas. Então eu acredito que esse lado da cidadania deles também, aqui na escola, é trabalhado. Outra coisa que eu participei há pouco tempo e me deixou, assim, emocionada foi uma apresentação, que foi da Revolta da Chibata e aí teve uma reapresentação da escola como teatro e foi a coisa mais linda. Quer dizer, a escola, também, tem seu teatro, que é bem procurado pelos alunos. Haja vista, na semana de química, a quantidade de peças apresentadas pela escola. Temos o coral. O coral está imenso. Ele dava volta no auditório e os alunos cantando... Alunos de primeiro, segundo período... Até alunos que você olhava assim, que, na sala de aula são supertímidos e estavam no coral, cantando, tocando piano, tocando pandeiro. Então eu acho que a escola trabalha todo o conjunto. E prepara o indivíduo para a vida profissional, para seu desenvolvimento como cidadão também ela trabalha. Acho que ela trabalha, assim, todas as áreas, ela procura desenvolver o aluno para a pesquisa, né? Nós temos a semana de química, que a gente vê todos os alunos sempre envolvidos com os trabalhos. Eles ficaram pesquisando meses e meses. Eu acho que ela tem esse lado bom também.

Pesquisadora O que orienta a seleção de conteúdos para ensinar química?

Profa. Taís

De certa forma, como eu me oriento para desenvolver, para selecionar os conteúdos... Bom, os conteúdos já estão selecionados desde que eu entrei na escola. A gente tem uma ementa e, dentro daquela ementa, a gente desenvolve aqueles conteúdos que a gente... e eu ensino o tradicional... o que todos os livros abordam e a gente tem que abordar também, porque são os conteúdos que eles vão precisar para desenvolver o trabalho deles, tá? E em cima deles eu desenvolvo as minhas provas.

218

Pesquisadora O que orienta suas metodologias para o ensino de química?

Profa. Taís

A metodologia eu uso quadro e giz, porque eu preciso que o aluno tenha uma visão da minha molécula... é a mesma coisa que ensinar matemática. Você precisa de quadro e giz. Se vai ser quadro negro, quadro branco isso aí é outra coisa. Você está num quadro. Para você escrever, não é verdade? Para você desenvolver toda uma ação. A mesma coisa é química orgânica, principalmente. A gente precisa de um quadro... é diferente de uma história, de uma geografia, que o professor pode vir trazer uma aula em Power Point , em multimídia. Você pode até mostrar umas coisas, mas 60 ou 70% da sua aula é no quadro, não é verdade? A mesma coisa acontece com química: a gente trabalha assim, na base do exercício, da correção dos exercícios, trabalhos em grupos, listas de exercícios, entendeu? Mas essas aulas assim, tipo multimídia são muito pouco usadas, pelo menos na minha matéria. Tem uma reação química, tem que mostrar todo o mecanismo daquela reação. Você sabe como é integral, tem que mostrar todas aquelas etapas. A mesma coisa somos nós. Temos que usar o quadro, entendeu?

Pesquisadora Qual a sua visão sobre avaliação da aprendizagem?

Profa. Taís

Procuro observar se ele aprendeu a minha matéria, né? Se ele não aprendeu no primeiro momento, mas agora vem se desenvolvendo ao longo do período... Não foi lá na primeira, mas, ao longo do período, veio o crescimento, ele conseguiu aprender e também, às vezes, a gente tem aquele aluno que não consegue tirar a nota, mas você observa esse aluno em sala de aula, vê que ele não falta, participa, faz os exercícios, quer dizer, tudo isso serve de avaliação na hora da... para dizer se ele vai ser aprovado ou reprovado. Não é numericamente. Não é por uma nota, né? Tem toda uma análise qualitativa também do aluno.

Pesquisadora Como você vê o papel dos laboratórios para o ensino de química?

Profa. Taís

Bom, conhecimento das técnicas é importante para ele desenvolver lá o trabalho dele. E importante a desenvoltura dele, né? Que ele tenha, comece a ter autonomia do trabalho dele. A princípio ele chega meio encabulado, com medo de pegar um tubo de ensaio... Sabe aquela pessoa que nunca pegou num computador, que vai dar os primeiros toques, tem aquele medo... vai escangalhar, vai quebrar. Mas à medida que eles vão começando, vão pegando, tendo intimidade com o laboratório, eles vão tendo intimidade, vão começando a desenvolver com mais tranquilidade as tarefas que lhes são dadas, fora o conhecimento, né, onde a gente junta, é... o conhecimento da teoria, aplicando na prática, que é importante você ter, juntar os dois, porque fica bem mais fácil o ensino, o entendimento pelo aluno e... educá-lo também como se comportar num laboratório é importante. Tem que ter seriedade dentro do laboratório.

Pesquisadora

Taís, nós vivemos um período aqui na escola em que a formação profissional foi obrigatoriamente separada da formação geral e voltou a ser oferecida a sociedade na modalidade integrada a partir do Decreto 5.154/2004. O que você entende por formação integral? Você acha que consegue realizar essa formação?

Profa. Taís

É ... planos, conteúdos, ensino médio e profissional? Acho que sim. Pelo menos é o que eu vejo nos meus alunos. Eu vejo que nós temos um alto índice de aprovação no vestibular ou a gente tem sempre uma parte de aceitação e de elogios quanto à escola, na parte profissional. Acho que a gente consegue atender, sim, essa formação integrada.

Pesquisadora Como você acha que essa integração pode se dar, em termos de conteúdos de química, entre a formação geral e profissional?

Profa. Taís

Aqui na escola não tem essa parte: essa aqui é da educação profissional, essa aqui é do núcleo comum. Aqui não tem isso. A gente trabalha tudo ao mesmo tempo. A gente não tem essa separação. Nós tínhamos naquela época, né, que os cursos foram separados. Ai a gente separou um pouco. Na verdade ficou até mais ou menos parecido, por que o que acontece no curso técnico? São os mesmos conteúdos, aprofundadamente, e algumas outras matérias, né? Eu acho que a escola contempla os dois. Agora, você está falando da interdisciplinaridade das matérias?

219

Pesquisadora É.

Profa. Taís

Isso aí é difícil. Isso é muito bonito, mas é muito difícil disso acontecer tanto na escola particular, como aqui., Aqui não. Aqui a gente não tem essa preocupação, não. O ensino interdisciplinar, não. Tem a preocupação de que o meu conteúdo atenda aos cursos, aos períodos que vêm, mas, em termos de interdisciplinar, a escola não tem essa preocupação, não.

Pesquisadora O que dificulta isso?

Profa. Taís

Primeiro, eu acho que o programa já é especificado pra você pelo livro didático, pela escola, que já te dá o programa. Esse é o programa do vestibular que você deve cumprir. E, além de você não ter tempo, às vezes, o teu colega vai ter que mexer em alguns conteúdos que, se tirar fora de ordem, fica um capítulo só no outro livro, que aí vai dificultar, que o pai vai comprar um livro que... você está entendendo? Os volumes únicos, que são muito utilizados na escola particular, são livros muito vazios. É mais uma pincelada dos conteúdos e exercícios. Quer dizer, eu acho que é muito complicado você juntar todo mundo e todo mundo estar falando daquele mesmo assunto, cada um com a sua visão, naquele dado momento.

Pesquisadora Por quê?

Prof. Taís

Porque a gente tem que montar um programa que é sempre cobrado no vestibular. Não pode mudar a ordem, senão você não consegue estabelecer a sua ordem, porque você ainda não deu o conteúdo antes, que precisa ser dado, para atender esse, pra poder juntar com os outros, entendeu? Eu acho que é complicado, a não ser que mude toda a nossa abordagem. Mude todo o programa.

Pesquisadora Qual é a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado nos cursos de formação técnica?

Profa. Taís

Olha, a coisa é toda muito gradativa, né? À medida que vou passando os períodos, eu vou apresentando isso, aquilo e, à medida que ele vai aumentando de período, a parte técnica, todos esses conteúdos técnicos é que são passados pra eles. Em maior quantidade, nos três últimos períodos, como se diz assim...né? Onde acabam as disciplinas do núcleo comum e aí é que existe mais um aprofundamento e existe mais as matérias técnicas. Mas é assim também. Aquilo que eu falei: o mercado elogia o nosso profissional.

Pesquisadora Você já teve acesso aos documentos oficiais que definem as diretrizes curriculares para EPTM? Em que medida essas diretrizes influenciam o seu trabalho pedagógico?

Profa. Taís

Já. Eu já li alguns capítulos. Por exemplo, agora mesmo, a escola está em um impasse, porque é obrigada a ter sociologia e filosofia em todas as séries. Quer dizer, a escola já tem uma grade curricular apertada e você incluir em todas as séries dois tempos de filosofia e sociologia, você há de convir que ela vai ficar muito mais apertada ainda. Fora isso ainda tem o espanhol, que é uma língua agora que, desde 2010, 2011 está tendo que ser obrigatória no ensino de... não sei se de quinta a oitava, mas ensino médio também. Então isso engessa um pouco a escola, né, porque se a gente pudesse estar usando esses tempos... A gente já não tem esses tempos, mas se a gente tivesse e pudesse usar na formação do aluno, na formação profissional... Não estou dizendo que não seja importante, não. Todos os três são de grande importância na formação do cidadão. Haja vista que eles estão sendo incluídos. Agora, na formação profissional, se a gente pudesse usar esses tempos na formação profissional, poderia estar formando profissionais melhores ainda, mas o negócio é que a nossa grade é muito grande, muito extensa, né, devido a parte prática dos laboratórios.

Pesquisadora Como você avalia o desempenho e o interesse de seus alunos em suas aulas?

Profa. Taís

Aqui a gente tem um lado muito bom. Na verdade, existem até alguns professores que reprovam alguns alunos. Eu acho que eles nunca trabalharam em escola particular, ou do Estado, entendeu? Estariam, tipo, criticando os alunos... Que os nossos alunos já são alunos concursados. São alunos onde tem quatro mil candidatos para duzentas e quarenta vagas. Então você há de convir que já é um aluno que tem o hábito de estudo. Só uma coisa não ajuda muito, que é a idade. É a idade que eles estão se descobrindo como

220

adolescentes. Então, quer dizer, tem aquele que dá um pouquinho mais de trabalho. Têm alunos que dá menos. Estamos com índice de reprovação grande nos dois primeiros períodos. A escola também está preocupada com isso. Quando eu pego o aluno no terceiro período, ele já está um pouco calejado. Ele já levou umas pancadinhas no primeiro e no segundo período. Então eles estão mais calmos. Eu vejo que o aluno já está criando um hábito de estudo... Eles são tranquilos para trabalhar com eles... Eu acho ótimo, em termos de interesse... participam...”

Pesquisadora Professora, você envolve os alunos em trabalhos de pesquisa?

Profa. Taís

No meu período, não. Mas nos outros períodos, sim. O que a gente sente na escola é que eles procuram o professor. Eles têm uma ideia para a semana de química, digamos, e eles procuram um professor que venha ajudá-los a desenvolver aquilo. É muito mais deles do que nosso. Do que a gente arrumar o aluno para desenvolver o trabalho que a gente tem. Às vezes o aluno vem e fala: “Professora, o que é que eu faço com esse [assunto] o que é que a senhora poderia me orientar nesse trabalho?”. Pergunto: qual é o seu trabalho? Aí a gente vai ver qual o trabalho dele e ver qual é o professor que se encaixa melhor naquele perfil. Mas eu acho que é uma coisa que parte muito mais do aluno do que do professor.

Pesquisadora Você acha esse envolvimento dele com o projeto é importante?

Profa. Taís Acho, acho, acho sim. A parte de pesquisa é muito importante para o desenvolvimento dele.

Pesquisadora E, assim, em sua opinião, quais os princípios e objetivos devem nortear essa pesquisa?

Profa. Taís

Bom, eu tenho acesso ao orientador. Aí o professor orienta: esse é o teu assunto. Então você vai procurar tais e tais e tais artigos referentes a esse assunto. Aí eles vão, pesquisam os artigos que o professor falou, pesquisam na internet outras variantes do trabalho deles e, a partir daí, traçam uma linha de pesquisa. E é muito interessante que existem trabalhos apresentados na semana da química e eles continuam desenvolvendo e, no outro ano, eles já estão com a pesquisa mais desenvolvida e eles apresentam de novo aquele trabalho, muito mais aprofundado do que foi antes, entendeu? Mas existe um professor orientador que dá as diretrizes porque são muito novos, né? O tipo de pesquisa que eles fazem é colar, corte e cola, né? E aí não. Eles começam a ter que ler artigos sobre aquele assunto, então eles já vão se aprofundando mais naquele determinado assunto que eles que escolheram. Isso que é importante. Eles escolheram. Às vezes você fala algo na sala de aula e, a partir daí, eles: “Ah, vou fazer um trabalho sobre isso”.

221

APÊNDICE 4 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR TONI (ESCOLA A - CAMPUS II)

ENUNCIADOR ENUNCIADO

Pesquisadora

Toni, segundo as legislações que regulam a EPTM, um dos principais objetivos do ensino de ciências é a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso? Assim, pensando do ponto de vista do ensino de química, você concorda ou discorda das propostas?

Prof. Toni

É, o ensino de química na Escola A tem essas diretrizes que apontam pra essa formação voltada pro mercado de trabalho, mas eu percebo que na formação do aluno, ainda existe uma formação muito teórica nos períodos iniciais, né? As disciplinas que mais tentam se aproximar do mercado de trabalho, da formação profissional, de atuação do técnico em Química mesmo, são as disciplinas mais do final do período, né? As disciplinas que eu percebo dos períodos iniciais são disciplinas que têm a química num nível que tenta ser um nível intermediário, né, um pouco maior que a química dada no ensino médio, mas que, ao mesmo tempo, é um intermediário que se aproxima mais do nível universitário. Os alunos, eu acredito que, nessa parte inicial, nessa formação nos períodos iniciais, eles não têm ainda maturidade, né, pra alguns conteúdos, pra algumas formas de abordagem, né? A química, nessas matérias iniciais, ela acaba tendo uma dimensão muito mais próxima da universidade do que do ensino médio. Eu acho que, assim, se a gente pretende formar um cidadão que vai atuar no mercado de trabalho, a gente pode fazer isso sem perder de vista as próprias discussões que envolvem o ensino médio, a formação pra cidadania mesmo, né? Então, assim, quando se fala de química com relação ao técnico em Química, eu percebo que as disciplinas ainda têm um conteudismo muito presente, né? As disciplinas, elas, às vezes, se perdem em discussões mais importantes que são até pra própria formação do cidadão, né? O técnico em Química, ele vai atuar no mercado de trabalho, mas ele vai ser um cidadão. Então, eu acho que, pra mim, o ideal seria se as disciplinas dos períodos iniciais tentassem primeiro procurar uma formação mais voltada pra questões de cidadania, e, no decorrer do período, a partir do meio do período pro final, que elas tivessem um olhar mais voltado pra essa questão prática, pra essa questão do aluno, do mercado que ele atua, do que ele vai desempenhar. Afinal de contas é um curso técnico, né, então eu acho que as duas formações devem ser contempladas, né, a formação, essa que tenta dar uma alfabetização científica pro indivíduo, e na sequência a formação, digamos, mais específica, essa formação que vai formar o técnico em Química, né, não sei se...

Pesquisadora Então, pelo que você me disse, eu entendi que você estabelece outros objetivos, além de só formação para o mercado de trabalho, na formação técnica?

Prof. Toni

Na verdade, até esse objetivo de só formação pro mercado de trabalho, ela não acontece, né? O que eu percebo, como eu disse, nas disciplinas iniciais, eu falo aí, de repente até o quarto período, ou o quinto período, as disciplinas, elas são muito mais próximas a abordagens teóricas, digamos, mais sofisticadas, assim, o ensino técnico, ele tenta fazer um intermediário entre o médio e a universidade, mas, em muitas disciplinas ainda presentes no currículo, você percebe que esse campo intermediário, ele tá mais próximo do universitário do que do ensino médio. Então, assim, os conteúdos são abordados numa profundidade que eu acho que às vezes não precisa pra formação do técnico, né, eu acho que não precisa. Então, com relação a isso que eu estava querendo dizer, eu acho que a gente precisa ainda avançar, e eu acho que até o Instituto tá investindo em alguns, em algumas atitudes pra isso, né, houve há pouco tempo a imersão, que foi o encontro pra se debater o currículo, pra se enxugar, pra se repensar, eu acho que esse é o caminho, né, se deve de fato repensar o currículo pra ver se a gente consegue nos períodos iniciais oferecer uma boa bagagem de

222

alfabetização científica de formação do cidadão, e, nos períodos finais, que ele consiga ter esse olhar mais voltado pra dimensão prática mesmo, a formação pra atuar no mercado de trabalho, né? O que a gente tem hoje, o que eu percebo hoje, né, e aí eu falo, mas eu tenho que também pontuar que no ensino técnico eu atuo basicamente até o quarto período, eu não chego às disciplinas finais. Mas, pela estrutura curricular que eu percebo, eu noto que o aluno, ele de fato é formado, digamos assim, com o olhar mais pro trabalho, com essa dimensão, digamos assim, mais pragmática mesmo, né? Até o quarto, o quinto, de repente até o sexto período, ele tem muitas disciplinas que abordam conteúdos que exageram, digamos assim, na profundidade, né? Conteúdos que, às vezes, são até temas de pesquisas, né, conteúdos teóricos que, às vezes, não permeiam o cotidiano profissional daquele futuro técnico, né? Então, assim, a gente tem que de fato começar a repensar o currículo, na minha opinião, e tentar colocar esse currículo mais adequado pro cidadão que a gente pretende preparar, né? Um cidadão que tenha a formação técnica em Química, né, mas que tenha um conhecimento amplo com relação à química, não um conhecimento, né, estilo, metaforicamente falando, escavando. Conhecer profundamente cada tipo de cada nuance da química, a ponto de chegar bem próximo ao conteúdo dado ao ensino superior. Eu acho que a gente perde um pouco a mão nisso aí. Eu acho que a gente deveria tentar de fato ficar numa posição intermediária, sem esquecer os objetivos que o próprio ensino médio deve cumprir, de formação de cidadão e tudo mais, entendeu?

Pesquisadora

Entendi. E como tudo isso influencia a seleção de conteúdos, a sua avaliação, sua metodologia de ensino, o que você acredita ser interessante pra esse tipo de formação que você propõe em termos de conteúdos, em termos de metodologia, em termos de avaliação?

Prof. Toni

É. A gente recebe, quando a gente vai lecionar uma disciplina, a gente recebe obviamente a ementa da disciplina, e existe todo, digamos, um peso, até a própria instituição coloca isso, do ensino de qualidade e tal, então tem todo um tradicionalismo por trás disso. E aí, eu recebo aquela ementa, eu vejo os conteúdos que eu tenho que lecionar, obviamente em alguns casos até acho um pouco de exagero, alguns tópicos, né, na minha opinião.

Pesquisadora Quando você fala que tá um pouco exagerado, você tá falando sobre a química, ou você tá falando da grade de um modo geral?

Prof. Toni

Eu tô falando sobre a química. Que é o que eu tenho de fato conhecimento. Então, assim, apesar de perceber que existem alguns tópicos que perdem um pouco, né, que se aprofundam demais e tal, eu tento cumprir, né, mas tento cumprir usando outras estratégias, né? Eu costumo, nas minhas aulas, debater com os alunos, né, tentar mostrar como aquele tipo de conhecimento pode ajudá-lo na sua atuação profissional, né? E tento ouvi-los também com relação a isso, que eles também... Quando a gente começa a ter um tipo de aula onde o que move a aula é a pergunta, a gente obviamente tem que tá preparado pra ter um tipo de aula que o aluno vai interromper o tempo todo, que o aluno vai perguntar. E às vezes eles perguntam: “pra que serve, né, pra que, por quê?” ele tem que aprender aquilo, por que ele tem que saber daquele detalhe. Às vezes eu consigo defender, né, digamos assim, alguns conteúdos, mostrando que, de fato, aquilo ali tem uma dimensão que vai afetar a vida profissional dele, que ele tem que saber. Em outros casos a gente acaba discutindo e até debatendo as fragilidades do currículo, né? Eu falo pra ele: “Olha, de fato isso aqui tem uma aplicação que não se enxerga com muita facilidade na sua vida profissional”. E eu acho que isso também acaba sendo válido pro aluno, porque ele começa a se conscientizar que é difícil também, né, inovar e tal. É difícil fazer uma reforma curricular, né, a gente tá tentando. Eu tento expor isso pra eles, tento conversar com eles quando eles questionam sobre algum determinado conteúdo que eu começo a falar: “Olha, isso de fato...”, eles começam a refletir junto, começam a pensar e começam a ser mais críticos com outros professores também, né?

223

Então, eu acho que de inovação, digamos assim, o que eu procuro fazer é estimular a reflexão do meu aluno, é tentar fazer com que ele saia dessa posição pacífica de só assistir aquele conteúdo como se ele já tivesse sido convencido desde que pisou na instituição que tudo o que vai ser dito ali é importante pra ele, como na verdade a nossa instituição tem algumas fragilidades, né? A grade de química tem algumas fragilidades em termos de conteúdo que precisam ser enxugadas. Então, eu acho que é importante trazer isso, colocar isso pro aluno mesmo, pra ele refletir, pra ele pensar junto, eu acho que é isso o que eu tento fazer.

Pesquisadora Você tenta trazer algum conteúdo novo para as aulas, você tenta introduzir algum conteúdo que está fora da ementa, para além da ementa?

Prof. Toni

Tento, tento. Mas, confesso que não sou tão ousado assim não. Assim, por exemplo, na parte de química geral mesmo, né, na parte de química geral tem um conteúdo chamado funções inorgânicas que, no caso dos alunos do técnico em Química, é vista numa profundidade muito grande comparada ao ensino médio. Mas ali, dentro de funções inorgânicas, existem algumas funções que estão muito presentes no cotidiano deles, né? Inclusive algumas que fazem parte de debates sobre meio ambiente e tal. Eu busco fazer esses debates com eles, né? Busco falar sobre a questão da chuva ácida, sobre a questão do efeito estufa. Por exemplo, em questões que envolvem outra parte da matéria, que é estequiometria, que envolve reações químicas,eu tento conversar sobre processos industriais, né, sobre a questão de energia, a energia envolvida naquelas reações. Eu tento, dessa maneira, inovar em cima daquele conteúdo, né? Então, tem um roteiro a seguir, mas eu procuro inserir alguns debates, e aí eu uso as redes sociais também, eu posto alguns vídeos sobre determinados assuntos que a gente encontra no youtube, peço pra que eles façam trabalhos. Há pouco tempo eu pedi pra uma turma de físico-química, fazer um vídeo, uma edição, editar um vídeo a partir de vídeos que eles têm no youtube sobre um tópico específico da matéria: deslocamento de equilíbrio. Mas eu queria uma visão e eu deixei isso claro pra eles, que ultrapassasse a mera explicação, né, eu gostaria de exemplos práticos, exemplos do cotidiano, exemplos até que vão permear a vida profissional deles, mesmo sabendo que essa minha disciplina é de formação básica, mas já pra tentar desenvolver no aluno esse olhar mais crítico, né? Eu acho que a gente começa a mudar quando a gente começa a reformar o pensamento, né? Morin, fala muito sobre isso, né? Eu acho que a mudança acontece quando existe reforma de pensamento, então eu tenho que tentar priorizar, eu tenho que tentar estimular o meu aluno a sempre refletir acerca daquilo que tá sendo ensinado pra ele, né? Claro que, volto a dizer, tem que ter certa disposição pra fazer isso, né? Confesso que não é, digamos assim, nem todo mundo tem a paciência pra se dispor a ser bombardeado por perguntas, o tempo todo questionar e tal, mas eu acho que os professores precisam começar a mudar a sua prática, né? Eu percebo, às vezes, no ensino técnico, conversando com alguns colegas e tal e, quando você começa a ter um tipo de aula assim, os alunos começam também a falar sobre outros assuntos e outras disciplinas também. Então, assim, o retorno que alguns alunos me trazem, até alguns colegas que eu converso na sala dos professores, ainda pinta um cenário muito tradicional de ensino, né? Eu tenho alguns alunos que reclamam que alguns professores não estão preocupados em responder perguntas, coloca o que tá, a matéria no quadro e é aquilo ali e ponto. E se algum aluno tem alguma curiosidade, traz alguma coisa que ele leu em algum lugar e tal, o professor ignora. Então, assim, claro, eu acredito e tenho certeza que não são a maioria na instituição, mas existem professores que de fato não aproveitam esse potencial. São alunos de uma geração que tem um acesso absurdo à informação. Se falar um tópico em sala de aula, eles podem vir na aula que vem com cinco mil temas em cima daquele tópico que você falou. Eles vão colocar no Google, eles vão pesquisar, eles vão no youtube, eles vão

224

fazer uma série de questionamentos, vão levantar reportagens. Eu acho que esse tipo de estímulo é muito válido, né, eu acho que a gente forma pessoas mais interessadas, pessoas mais politizadas, quando a gente começa a formar pessoas que estão o tempo todo refletindo, buscando saber, né, o que é que tá por trás daquilo, pensando das conexões que podem ser feitas com aquele conteúdo, acho que é por aí.

Pesquisadora Em relação as suas avaliações, sua visão de avaliação?

Prof. Toni Minha visão de avaliação, pois é.

Pesquisadora Como você pratica isso?

Prof. Toni

É, é. Eu aplico prova, eu aplico prova, né? Aplico prova, mas não é minha única avaliação, né? Além da prova, eu passo alguns trabalhos, como eu te falei, com relação a essa construção de vídeos, né, que eu coloquei, mas tem outros trabalhos que eu passo também tentando avaliar essa questão mais reflexiva. Mas, confesso que existe uma força, né, que nos enlaça nesse tradicionalismo que é a prova. Eu não sei nem se os alunos estão preparados a, de repente, ter uma disciplina que não tenha provas, né? Eu não sei se eles se sentiriam confortáveis, assim também, né? Então eu tento, eu tô tentando romper aos poucos com isso, né? Confesso que eu ainda aplico prova. E também não acho que, de repente, aplicar prova seja algo negativo, também não penso dessa maneira, não sou extremista a ponto: “Ah, olha, a disciplina vai ser sem provas”. Não, também não acho que seja. Mas eu acho que a gente tem que tentar ter um equilíbrio, né, tentar conciliar atividades como provas e outras atividades onde a gente dá outras avaliações, que a gente consiga dar espaço pro aluno se pronunciar, dar espaço pro aluno, enfim, colocar o que ele pensa, as impressões dele, isso eu acho importante também.

Pesquisadora Prof. Toni, e o papel dos laboratórios no ensino de química, como é que você vê isso?

Prof. Toni

Olha, eu acho isso... Essa é uma questão pra mim muito importante porque eu tenho um pensamento que eu costumo até dividir com alguns alunos com relação às práticas de laboratório. As práticas de laboratório que nós temos no curso técnico, assim como as práticas de laboratório que eu tive no ensino superior, são práticas de laboratório que visam ratificar a teoria. Então, assim, o professor explica um determinado fenômeno em sala, explica a lei proposta pra explicar aquele fenômeno, e os alunos depois vão pra sala, pro laboratório, melhor dizendo, reforçar, comprovar aquela lei. E aí, nessa comprovação, o que sai fora de controle, o experimento que deu “errado”, normalmente é descartado. Eu tenho uma visão que confesso que é distinta dessa. Pra mim, os laboratórios, as aulas práticas, não deveriam ser nesse formato, né? Eu tentei fazer isso quando eu lecionava em outro Campus, foi complicado pros alunos no início, mas depois eles começaram a se adaptar. Eu levava os alunos pro laboratório e trazia um problema pra eles, em laboratório. Um problema pra ser resolvido com o que tem no laboratório. Isso bota o cara pra pensar, é diferente do cara chegar com roteiro pronto e reproduzir um roteiro e, por exemplo, um experimento onde você vai perceber que o tubo de ensaio, a solução do tubo de ensaio, ela, após adicionar um determinado reagente, ela vai ficar azul. Então, todo mundo vai buscar a cor azul, ninguém vai refletir por que ficou azul. Ninguém vai refletir por que é que com aquele reagente fica assim, se iria ficar assim com outro reagente, né? A reflexão fica do lado de fora do laboratório, né, as pessoas estão ali no laboratório preocupadas em comprovar aquilo que foi dado em sala de aula, reforçar a teoria. Eu acho que deveria ser o contrário, eu acho que a gente deveria ir pro laboratório pra ter mais perguntas, ir pro laboratório pra encher a galera de interrogação. Até pra que eles percebam que as leis que os teóricos falam, as leis da física, as leis da química, todas elas têm a suas fragilidades, né? A gente vive hoje uma época do fim das certezas mesmo, né? Então, assim, qualquer equação que se propõe explicar qualquer fenômeno, essa equação tem sempre limites, ela não serve pra qualquer coisa, pra qualquer faixa de temperatura, pra qualquer faixa de pressão, tem sempre seus limites. Eu acho que é importante o

225

aluno refletir sobre isso, pra que ele não comece a pensar de repente, que a química é uma ciência feita de verdades, verdades dogmáticas, né? Na verdade não é, né? Eu acho que a gente nesse sentido peca, né? Não que não seja importante de repente ele ir pra um laboratório fazer um procedimento e tal, mas uma ou outra prática deveria botar o aluno pra pensar, uma ou outra prática deveria ser aquele tipo de prática que o cara, né, ele tem aquele material nas mãos e ele tem que cumprir o objetivo, e aí, sem roteiro, sem nada. Como é que você faria? Que tipo de estratégia você iria traçar? Que vidraria você ia selecionar? Eu acho que isso forma o cara que vai atuar muito melhor e vai resolver problemas no mercado de trabalho, do que um cara que só foi programado durante sua formação a comprovar aquilo que foi dito em sala de aula, através de experimentos. Acho que a experimentação tem que cumprir outro papel, a experimentação tem que levar interrogação pro cara, não tem que levar a exclamação. A experimentação tem que ser a mola motriz de uma série de outras questões, ela não tem que ser afirmativas, declarações, né, comprovações daquilo que você viu em sala de aula, né? Eu acho que, eu penso dessa maneira. Mas é difícil fazer isso. É difícil por quê? Volto a dizer, a gente esbarra, e eu falo agora como professor que integro uma equipe, a gente esbarra com todo um tradicionalismo, com apostilas experimentais que já estão prontas, e assim, até, às vezes, você pode começar a se indispor com outros colegas, se você começa a fazer o diferente do script, né? Então, a gente precisa, eu acho que, e aí nesse caso, esse tipo de coisa só começa a melhorar se a gente começar a se encontrar, professores começarem a se reunir pra refletir o que está sendo feito, pra pensar em outras maneiras, pra que a coisa comece de fato a mudar, né?

Pesquisadora Você costuma consultar os documentos oficiais das diretrizes curriculares nacionais para o ensino técnico, ensino de química? Você teve acesso a esses documentos alguma vez?

Prof. Toni Tive, tive sim.

Pesquisadora Por iniciativa própria?

Prof. Toni

Tive sim. Mas assim, confesso a você que os contatos que eu tive com esses documentos foram motivados por outras intenções. Eu tive contato com esses documentos pra de repente pautar, fazer em sala de aula ou não, não foi. Na verdade, assim, em alguns momentos durante... Enquanto eu lecionei, leciono ainda, né, na Escola A, em alguns momentos eu orientei trabalho de conclusão de curso, né, orientei trabalhos na área de educação. E por conta disso, eu tive um contato maior com essas diretrizes, né? Mas, não existe, em termos institucionais, um trabalho de divulgação, ou de debate em cima dessas diretrizes, né? O professor quando... O professor recém-concursado, ou o professor substituto, que entra pra dar aula na instituição, ele recebe mais ou menos o que ele tem que fazer, né? “Olha, tá aqui a ementa, as aulas são tal horário, você tem que cumprir até aqui”. E é isso, né? Não se tem uma preocupação com essa questão de diretrizes, de orientações pro trabalho dele. Não, não. Se dá a ementa e fim.

Pesquisadora Em relação ao projeto político pedagógico da instituição, você costuma consultar?

Prof. Toni

O projeto político pedagógico da instituição, tive acesso, mas também por outras questões, por outras intenções. Eu acho que também seria uma coisa que deveria ser mais amplamente debatida, né? A gente tá vivendo agora um momento institucional delicado, né, estamos aí em greve, alguns professores estão se reunindo, inclusive pra poder debater essas demandas que existem no instituto, né, a gente chama de demandas internas. Eu acho que nessas demandas, uma delas é a própria divulgação e debate da proposta, né? Então, acho que a gente ainda tá caminhando em passos lentos, mas pelo menos estamos caminhando, estamos começando a discutir.

Pesquisadora Prof. Toni, como é que você avalia o interesse, o desempenho dos seus alunos em suas aulas, nas aulas de química?

Prof. Toni Pois é, eu costumo falar com eles isso, dar aula pro curso técnico em Química é muito bom. É muito bom por quê? Porque os alunos eles são muito

226

interessados, né, eles gostam muito de química. Eu acho que talvez o complicado num curso técnico em Química, seja lecionar de repente outras disciplinas que não tenham a ver com química. Eles já entram no curso técnico em Química querendo ver cada vez mais química, e isso acaba me deixando um pouco preocupado, mas é uma preocupação que é boa, né? Como assim? Os alunos nos períodos iniciais, eles são ávidos por tudo o que você fala, tudo o que você debate, eles pesquisam e tal. E eu percebo que às vezes esses alunos no decorrer do curso vão se silenciando, né? E assim, não que o professor seja responsável por tudo, ou por esse silenciamento, mas eu acredito que às vezes a gente não consegue manter esse estímulo, né? Eu não sei se, de repente, no meio do caminho, isso vai ficando, né, cansativo pra eles, eu não sei. Eu percebo isso, às vezes os alunos de períodos mais avançados, alguns alunos, né, ficam mais quietos e menos interessados, né? Outros não, outros conseguem manter o gás até o final, mas outros ainda começam a ficar mais silenciosos e tal, não participam muito em sala de aula, né, e isso acaba me preocupando. Porque eu dou aula no primeiro período e dou aula também no terceiro e no quarto período, então eu consigo ter essa visão, né, de como era esse aluno no início, quando ele teve contato com a instituição, logo no início, como é que ele vai, né, com o passar do tempo alguns vão silenciando e outros vão até ficando cada vez, digamos, mais apagados, mais silenciosos. Isso é uma coisa que me preocupa, né, e que reforça pra mim a ideia de que a gente precisa de fato se reunir mais, discutir mais, né, reformar o currículo, né? O ensino técnico, volto a dizer, eu acho que o currículo do ensino técnico ele não consegue cumprir um papel intermediário, né, entre o médio e o superior, né? A formação do mercado de trabalho ainda tá muito setorizada nos períodos finais, né? Eu acho que o ideal seria que nós conseguíssemos um currículo onde o aluno, desde o primeiro período, fosse aos poucos sendo preparado pro mercado de trabalho, sem perder de vista essas questões mais reflexivas de atuação dele como cidadão, né? Então, acho que ainda faltam algumas reuniões pra gente começar a repensar e pôr em prática as mudanças nesse currículo.

Pesquisadora Você já falou pra mim, um pouquinho, a respeito da forma como o conhecimento científico é apresentado para os alunos. Qual é a sua visão sobre a forma como a química é apresentada?

Prof. Toni

É, eu acho que o conhecimento cientifico ainda é apresentado de uma forma tradicional, né? Eu acho que assim, o ideal seria que nós tentássemos apresentar o conhecimento científico, mas com todas as fragilidades que esses conhecimentos apresentam, né? Eu tenho pra mim que, na cabeça de alguns alunos, determinados conteúdos da área científica são, de fato, verdades absolutas, né? Talvez até pelo próprio empenho que o professor tem em passar essa verdade como algo incontestável, como algo que funciona sempre e tal. Então, assim, eu acho que esses conhecimentos científicos ainda estão sendo passados como se fossem, né, verdades incontestáveis. Eu, particularmente não acredito nisso, né, então acho que falta esse debate, falta essa tentativa de mostrar que: “Olha, não é bem por aí”, né? O que acaba também gerando, volto a dizer, um determinado incômodo no aluno, né, porque ele fica satisfeito com o “é sempre assim”, né? É sempre assim que vai ser? É dessa maneira? Ah, então toda vez que for assim é assim, né? Botar esse aluno sempre numa posição de reflexão, de perceber que aquilo ali é frágil e tal, isso abala também um pouco a segurança que ele tem com relação, porque ele também acredita que aquilo ali seja um conhecimento que tem uma verdade inabalada, né? Eu acho que isso acaba vindo de outras referências, de outros lugares, né? Eu acho que na própria trajetória de vida desse aluno, eu acho que aí a mídia contribui com isso também, os outros professores que ele teve no ensino

227

fundamental também contribuem pra isso e tal, a vida traz pra ele uma visão de ciência muito, né, inabalada, a ciência que... O cientista como uma pessoa que tem um conhecimento que é pouco acessível, e um conhecimento que, por ser apoiado em experimentos, é um conhecimento, digamos assim, que é estável, né? Então, assim, como ele traz todos esses referenciais, você desconstruir isso em sala de aula, começar a falar que: “Olha, não é bem por aí, isso aqui funciona, mas só em determinadas condições. Isso aqui é frágil. Olha, essa lei é uma lei que só funciona pra determinados casos”. Isso acaba mexendo com a própria bagagem que esse aluno traz de conhecimento científico, né? E eu acho que é desse incômodo, esse incômodo que a gente tem que utilizar pra tentar, né, de fato construir novos conceitos, né? Mas, é complicada essa questão do conhecimento científico, voltando pra pergunta, eu acho que ainda é passado de forma tradicional, né? Eu vejo poucos professores que eu tenho contato, dos que eu converso, que de fato se preocupam em revelar alguma fragilidade daquele conhecimento, né? Eu acho que a maioria coloca aquilo, né, mesmo não intencionalmente como se fosse algo inabalado, constante, né, uma verdade absoluta.

Pesquisadora

Assim, eu não sei se você acompanhou, mas nós tivemos reformas, na história da educação profissional no Brasil, que se caracterizaram por um “vai e vem” em relação a integrar o ensino médio com o ensino técnico. Atualmente, essa oferta pode ser integrada, concomitante ou subsequente. Toni, o que você entende por formação integral? Você acha que consegue realizar, você acha que a instituição está preocupada, como você vê isso?

Prof. Toni

Olha, eu acho que a instituição tenta, tenta, porque, assim, a gente percebe que o aluno no curso técnico hoje, né, e eu falo, a referência que eu tive, né, eu estou lá há seis anos, eu percebo isso. O aluno do curso técnico ele não... Eu não acredito que ele esteja sendo, digamos assim, formado pra apertar botões, né? Eu acho que a instituição tem uma série de programas, iniciativas, a própria iniciação científica pra esses alunos que estimula a pesquisa e tal, isso acaba promovendo também reflexão em cima de conteúdos, enfim. Então, eu acho que o aluno do técnico, hoje, ele tem uma formação mais próxima dessa, digamos, formação integral, que, na minha concepção, é um tipo de formação que cumpre o que tem que ser cumprido com relação ao mercado de trabalho, né, sem deixar de lado todas as nuances políticas, todos os debates que aquela produção de conhecimento possui, né? Mesmo admitindo aqui, né, nessa entrevista, que a gente tem algumas disciplinas da Química que precisam de enxugamentos curriculares, alguns tópicos que eu acredito que não são necessários, mesmo admitindo que a gente precisa se encontrar mais, enquanto professores, pra tentar buscar outras abordagens, eu ainda acho, eu ainda acredito que o que a gente tem atualmente, né, vem produzindo bons frutos. Claro que eu espero que melhore cada vez mais, tem fraquezas, tem fragilidades, eu sei. Mas, o aluno do curso técnico hoje da Escola A, ele tem contato com pesquisa, o aluno do ensino técnico, ele se envolve em projetos de monitoria, ele se envolve em uma série de projetos que alargam o conhecimento dele, né? E muitas vezes ele é remunerado por isso, né, eu acho que na maioria das vezes ele é remunerado por isso. Então, existe um incentivo da instituição pra que esse aluno consiga ter uma abertura maior em termos de conhecimento, que esse aluno consiga ser capaz de visualizar aquele conhecimento de maneira mais ampla, né? Então, às vezes, algumas, digamos, algumas falhas que acontecem em sala de aula podem ser compensadas com iniciações científicas, enfim. Então, eu acho que a gente hoje se aproxima dessa formação integral, apesar de reconhecer que tem ainda coisas a melhorar, mas a gente se aproxima.

Pesquisadora É uma busca, né?

Prof. Toni É, é uma busca, é uma busca. Eu acho que a gente tem sempre que tentar colocar o aluno como sujeito reflexivo, né? E aí, colocar o aluno como sujeito reflexivo requer, entre outras coisas, algumas mudanças também em sala de

228

aula, né? Essa talvez seja uma das críticas que eu faça, mas fora isso, tirando só esse condicionante de sala de aula, os outros, com relação a projetos de pesquisa e tudo mais, eu acho que a gente consegue alargar o conhecimento do aluno, a gente consegue fazer com que o aluno reflita, então acho que se aproxima dessa proposta de ensino integral.

Pesquisadora Essa formação integral, ela tem várias visões, vários sentidos. Tem o sentido político, estrutural como acabamos de falar. O curso do Campus B, ele é integrado, né?

Prof. Toni É.

Pesquisadora É um curso que se assemelha ao que era do Campus A, atualmente ?

Prof. Toni Isso, isso.

Pesquisadora Em uma mesma matrícula oferece formação de ensino médio e técnico.

Prof. Toni E ensino técnico, é.

Pesquisadora E também tem a visão da integração dos conteúdos das disciplinas, da química geral dos primeiros períodos com a química da parte técnica ou ainda com as outras disciplinas. Você acha que consegue realizar isso?

Prof. Toni

São duas perguntas essa. Eu visualizo muitas conexões, visualizo muitas. Assim, inclusive acontece na química, do aluno ver um determinado conteúdo em físico-química, e vê o mesmo conteúdo em química analítica. Só que o que falta? Agora é a segunda pergunta, a comunicação entre os professores, pra que eles tentem ter uma atitude mais interdisciplinar. Assim, se fala muito de interdisciplinaridade e tal, mas eu acho que a gente tem que tentar mostrar pro aluno que essas conexões são possíveis, pra gente começar a tentar educar esses alunos pra que, mais adiante, eles consigam visualizar essas conexões, né? Eu costumo falar isso pra alguns amigos meus. Eles recebem uma série de envelopes, né, envelopes disciplinares, mas, por vezes, eles não conseguem rasgar esses envelopes, ele acha que um determinado conteúdo de físico-química pertence a físico-química. Então, é quase um pecado esse conteúdo aparecer em química analítica, aquele conteúdo é de físico-química, como é que pode, né? É a mesma coisa, de repente, eu falando em físico-química de uma equação de reta e começar a falar da equação de reta, do coeficiente angular, do coeficiente linear. Eles chiam: “Espera aí, isso é matemática”. Como assim, isso é matemática, tem dono, tem etiqueta? Não tem, né? Isso é conhecimento, isso tá tudo junto. Eu tento fazer essas conexões, mas eu confesso que às vezes fico sozinho, fico sozinho, né? Porque não encontro eco, eu divido com alguém, aí ele fala: “É mesmo, isso eu também falo em química analítica. O que você acha da gente fazer uma coisa conjunta e tal? Não sei, será que vai dar certo e tal”. Existe, às vezes, esse medo do professor e isso também acaba remetendo a própria formação que esse professor teve, eu não sei qual foi a formação que ele teve, eu não sei, de repente, se ele se sente confortável em colocar a disciplina dele de outra maneira, né, em sair dessa zona de conforto, desse estrato do jeito que tá e mostrar: “Olha, isso aqui faz parte daquela disciplina, daquela outra também. Faz parte da outra também”. É tudo química, é tudo química, né, a separação foi só didática. Mas, eu percebo isso, a gente vai entregando os envelopes pros alunos e às vezes eles assumem esses envelopes como intocáveis e ninguém pode rasgar. Aquele pacote é da físico-química, aquele outro pacote é da química orgânica, aquele pacote é da química analítica. E aí, se você coloca o problema que mistura orgânica, analítica e “fisqui”, o cara fica, às vezes, parado, imóvel, estático, porque ele não tá habituado a rasgar os envelopes e ver o que... daquela mistura, quais são as partes comuns, quais são as interseções, né, o que é comum às disciplinas.

Pesquisadora E em relação a outras disciplinas, ciências, mais de Humanas; geografia, história, sociologia, filosofia.

Prof. Toni Se eu percebo que tem...

Pesquisadora Você acha possível fazer, você consegue fazer algum tipo de interdisciplinaridade como você falou, alguma integração?

229

Prof. Toni

Perfeitamente possível. Assim, nesse primeiro período, eu consegui fazer um debate com a professora de geografia, né, que eu estava começando a falar sobre leis ponderais, leis ponderais é um assunto que dá base pras relações de massa na química, só pra tentar resumir. E as leis ponderais, elas foram criadas por iluministas, né, e aí eu comecei a debater com os alunos essa questão do eurocentrismo presente no ensino, né? Do quanto o ensino ainda é eurocêntrico e tal. E aí, como eu falei pra você, né, o ambiente em sala de aula, na minha aula é aquele ambiente de muitas perguntas, de liberdade pro aluno conversar e falar o que pensa pra mim, a gente vai conversando e tal. E aí, o debate foi sendo conduzido, as perguntas foram sendo conduzidas até que a gente chegou num ponto que a gente começou a falar sobre mapa mundi. A discussão é por que o mapa é desse jeito que nos é apresentado, né, com a América do Sul, América do Norte, quem é que tá lá em cima, quem é que tá lá embaixo? Será que existe um referencial pra dizer se a Terra tá de cabeça pra baixo ou de cabeça pra cima? Quem é que fez isso, né? E aí, acabou a aula e eu não consegui, dividi com a professora de geografia, ela já estava falando sobre isso, mas ela estava falando sobre isso, na verdade, ela estava começando a falar sobre essa questão dos mapas. Aí ela... a gente acabou conversando, numa conversa informal em sala, na sala dos professores, a gente começou a fazer um trabalho em conjunto. Então assim, é perfeitamente possível fazer essas conexões, a geografia é riquíssima, a sociologia também, a história, enfim. A matéria, na área de Humanas, ela integra a cultura geral, integra o conhecimento, né? Nenhum conhecimento científico é desvinculado de razões políticas e de contextos históricos, todos têm, né? E quando a gente se aprofunda nesses contextos históricos, a gente consegue entender melhor o porquê foi daquele jeito, por que aconteceu daquela forma. Então, assim, eu acho que a gente precisa se educar também a tentar trazer, tornar isso mais presente pros alunos, né? Eu sei que isso vai gerar impacto, porque é estranho mesmo pra eles, né? É estranho, de repente, numa aula de física o professor falar um pouco sobre iluminismo, numa aula de química o professor falar sobre os déspotas esclarecidos, sobre o que foi o séc. XVII, o séc. XVIII e o séc. XIX, a Revolução Industrial, as bases da Revolução Industrial com relação à química, onde é que a química entrou pra contribuir nisso aí e tal. Mas é riquíssimo, eu acho que é o tipo de coisa que dá sentido pra outras matérias, né? Dá sentido pra... As matérias se ajudam, é um mutualismo que só rende frutos, porque uma vai dando sentido pra outra, uma vai complementando a outra e tal. Mas, né, requer também certa disposição pra isso, né?

Pesquisadora Prof. Toni, você costuma envolver seus alunos em projeto de pesquisa?

Prof. Toni Agora eu estou no Campus B há um ano, né? Como agora que tá tendo a primeira turma de terceiro período, eu ainda não envolvi nenhum aluno com projeto de pesquisa, não, mas costumo envolver sim, costumo envolver.

Pesquisadora Você acha importante?

Prof. Toni

Acho importante, acho importante. Acho importante porque é um momento que você consegue fazer com que aquele aluno não só reflita sobre o que ele está pesquisando, como ele também comece a buscar a ler mais, a pegar outros artigos, a inventar, né, em cima daquele que tá sendo pesquisado, acho super importante, super importante.

Pesquisadora Quando você se envolve com seus alunos em um projeto de pesquisa, que tipo de princípios, de valores, enfim, quais os principais aspectos que norteiam o projeto de pesquisa?

Prof. Toni

Eu acho que eu tentaria localizar aquela pesquisa em outras áreas, assim, tentar dar sentido àquela pesquisa com debates que vão pra outras áreas, né? Por exemplo, na pesquisa que aborde uma questão energética, tentar promover debates com relação à sustentabilidade, a coisas do tipo, tentar alargar, né, aquele tema de pesquisa pra outras áreas. Isso é um exercício que eu faria com o meu aluno, mas sem trazer nada pronto pra ele, seria uma construção mesmo, né? Tentar a gente pensar, os dois pensando juntos, em como aquele tema poderia ser alargado. As outras nuances que aquele tema tem em outras

230

áreas, por exemplo, né? Eu acho que isso seria um principio interessante pra qualquer pesquisa. E eu estendo isso, eu acho que não só nas pesquisas que a gente realiza no ensino técnico, como também qualquer pesquisa, né, nível universitário e tal, pós-graduação, ela precisa ter esses limites alargados, assim, né, essas reflexões, assim...

Pesquisadora Mais amplas.

Prof. Toni Mais amplas. Isso.

Pesquisadora Prof. Toni, o que pra você seria um ensino de qualidade, uma educação científica de qualidade no contexto da educação profissional? A que referenciais de qualidade você associaria a educação científica na formação profissional?

Prof. Toni Ai, ai, ai .

Pesquisadora Pode pensar.

Prof. Toni

Não, assim, eu acho que nessa entrevista eu fui pontuando de fato algumas opiniões sobre isso. Eu acho que a gente tem um formato de escola que é bem interessante, um ambiente que é propicio pra essa educação de qualidade, nós temos uma escola que oferece pesquisa pros seus alunos, que tem uma biblioteca com bom acervo, né? Que tem condições também, e aí eu falo dos campi que eu lecionei Campus B e C, em termos de infraestrutura, né, são campi que não deixam nada a desejar, né, a estrutura é muito boa, mesmo sabendo que a realidade de outros campi não seja talvez a mesma. Mas, voltando à questão. Diante desse ambiente, eu acho que pra gente ter um ensino técnico de qualidade, a gente precisa ampliar os debates entre os docentes sobre que tipo de cidadão queremos formar, né? Eu acho que, com uma infraestrutura boa, só falta talvez uma vontade, digamos assim, mais institucional, de promover reuniões pra que os professores comecem de repente a refletir, e alguns até, quem sabe, serem convencidos de que algumas reformas são necessárias, né? De que a gente pode formar um bom profissional sem perder um bom cidadão, né? Então, eu acho que nós temos um ambiente propício pra isso, eu acho que falta, de fato, começarmos a melhorar o que diz respeito à sala de aula, né, eu acho que a gente pode debater mais, reformar o currículo a ponto de ter um tipo de ensino de fato integral, né? Um ensino que prepara um profissional pro mercado de trabalho, mas um profissional politizado, um profissional participativo, um profissional que tenha a consciência ambiental, um profissional que reflita acerca de questões políticas, né? Eu acho que a gente tem o ambiente pra isso, o que falta mesmo é começarmos a amplificar os debates, alguns debates já acontecem, mas a gente tem que amplificar esses debates pra tentar formar um corpo docente mais coeso com relação às ideias, né, as ideias de formação. Então, eu acho que é isso o que eu penso.

Pesquisadora Professor, muito obrigada!

Prof. Toni Eu que agradeço.

231

APÊNDICE 5 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR VÍTOR (ESCOLA A - CAMPUS II)

ENUNCIADOR ENUNCIADO

Pesquisadora Tudo bem então?

Prof. Vítor Vamos lá!

Pesquisadora Professor, as legislações, as diretrizes curriculares nacionais que regulam a formação profissional de nível técnico, elas preveem como objetivo central da educação científica neste contexto, a formação para o trabalho.

Prof. Vítor Certo.

Pesquisadora Então, eu queria que você falasse um pouco sobre a sua visão em relação a esse objetivo de formação para o trabalho no nível técnico.

Prof. Vítor

Eu vejo que a visão da formação técnica ela tem que tá fundamentalmente estruturada pra capacitar o futuro profissional técnico para as atividades de busca de solução de problemas, não existe receita de bolo. Não é apenas apertar parafuso, abrir e fechar de uma forma mecânica, tem que pensar. E a minha experiência como técnico, né, no início, de uma formação como técnico, ela foi muito voltada dentro do antigo CEFETEQ, que você tinha que planejar e conseguir entender o que o chefe, o coordenador de um determinado projeto, atividade, fazia. Pedia, você tinha que parar pra pensar, não era atividade mecânica. Então, eu acho que hoje, né, antes e hoje, o que vai garantir um sucesso profissional de um aluno, né, na sua carreira como técnico, é uma visão mais analítica e crítica dessas funções que eu tenho que executar. Então, hoje, as estruturas curriculares têm que estar cada vez mais voltadas pra essa parte, que é fazer o aluno pensar, fazer o aluno ter uma visão crítica, planejar, pra poder chegar a um determinado resultado de uma forma mais específica. Não é meramente executar as operações de forma mecânica. Eu tenho uma experiência interessante que é um estaleiro. Ele contratou, estava precisando de uma mão de obra, aí fez um contrato com uma escola, não sei qual foi a escola, não era uma escola técnica, onde teve que capacitar alunos pra fazer soldagens do navio. Então foi algo mais mecânico. Após a conclusão do projeto, quando foram testar essas soldas, todas as soldas estavam erradas, tiveram que refazer o trabalho. E um dos diagnósticos desse relatório é que os alunos foram apenas ensinados a como fazer de uma forma direta, sem planejar, sem uma qualidade no trabalho. Então isso, eu li essa matéria num determinado tempo atrás, eu acho que isso tem muito a ver com o que eu tô explicando, que você tem que planejar, não é meramente chegar e treinar pra executar de uma forma dura, né? Tem que planejar, eu acho que é uma coisa mais de software, que é planejar, pensar, e avaliar como é que vai desenvolver determinadas atividades. Foi esse o exemplo.

Pesquisadora Então, além desse objetivo no curso técnico, você estabeleceria outros objetivos educacionais pra essa formação, além da formação para o trabalho?

Prof. Vítor

Sim, sim, eu colocaria sim. A minha experiência também lá na Escola A, onde nós temos antropólogos, sociólogos, filósofos, nós fizemos algumas discussões lá no Campus B da Escola A. E a minha visão é estritamente técnica, aquele engenheiro, né, do século passado, aí onde tem uma visão de execução mesmo da parte técnica, ou seja, a tecnologia pode tudo. Eu sempre pensei assim. Mas aí, nesses últimos tempos, eu começo a refinar, refutar esse conceito um pouco antigo. Acho que tem que inserir o profissional hoje no mercado de trabalho, mas com uma visão mais social, uma visão mais humanista. O que seria essa visão humanista do pouco que eu aprendi nessas discussões com antropólogos, sociólogos, até pedagogos? Que não basta apenas ter uma visão estritamente técnica, mas tem que ter uma visão um pouco mais social e humanista, que tá associado como construir um mundo melhor, um mundo mais sustentado do ponto de vista social. Então, eu acho que é fundamental agora, pro aluno, né, pro curso técnico, ter

232

essa disciplina da parte social. Agora, o currículo foi mudado, onde... o currículo que eu tô falando, cursos integrados de Química, foi mudado onde agora todos em todos os períodos estão colocando filosofia e sociologia. Não vou dizer que é o correto em todos os períodos, mas a necessidade de ter essa disciplina, na visão social pra o mundo do trabalho, ter uma visão um pouco mais humanista, até construir uma visão mais sustentável, eu acho até relevante, é extremamente relevante. E é uma opinião de um engenheiro, né, que acredita sempre na ciência acima de tudo, assim, na parte da engenharia hardware, né, do cálculo, cálculo, né? Então, eu começo a ver que existe uma mudança, então eu considero importante ter uma visão, além do que eu falei da parte técnica, de ter uma visão também um pouco mais social, um pouco mais filosófica, né? A ciência... O crescimento da sociedade como um todo, é isso que eu quis dizer.

Pesquisadora Isso influencia de alguma maneira a sua seleção de conteúdos? Você consegue acessar algum conteúdo, além dos determinados pela ementa que, em geral, a gente recebe para trabalhar?

Prof. Vítor

Certo. É, em relação... Eu sempre busco nas disciplinas que eu aplico, que é a parte da aplicação mais específica, eu sempre tento buscar estudo de casos associados à solução de problemas do mundo, de um mundo real. Então eu busco experiências, vamos dizer assim, às vezes prazerosas, não prazerosas, em relação aos resultados sociais que aquela atividade vai buscar em, por exemplo, um acidente do trabalho, né, quais são as expectativas, né, a parte do estresse psicológico. Então, sempre tem que fazer um link, uma analogia, uma visão que, às vezes, extrapola um pouco a parte técnica de uma ementa, de um programa que é apresentado. E isso eu sinto um pouco que não é... Nós fizemos uma revisão agora do curso integrado de Química, onde eu acho que tem pouca especificidade na estrutura do conteúdo, acho que tinha que ter algo um pouco mais direcionado. Quais são os estudos de caso que seria a apresentar? Qual é uma visão holística e aplicada de algumas disciplinas? É lógico que em algumas disciplinas isso não cabe. Exemplo: a matemática vamos dizer assim, a matemática ou a física nos cursos iniciais. Agora, a matemática e a física, na fase final do curso, onde são as aplicações específicas, eu acho que caberia uma visão um pouco mais aplicada com estudo de casos pela parte social, solução de problemas. Eu acho que é isso que o país precisa, de uma forma geral, é isso o que o país tá precisando de forma imediata, ou seja, busca identificar potenciais problemas específicos associados ao conteúdo de cada disciplina, seja disciplina técnica ou não técnica.

Pesquisadora E quanto às suas metodologias de ensino, a forma como você ensina?

Prof. Vítor

Eu procuro sempre dinamizar as aulas, uma crítica que eu faço aquele show de Power Point. Não apoio o show de Power Point, eu converso muito com os alunos, e também sou aluno, então passar o Power Point direto, ou ficar escrevendo no quadro de uma forma direta, eu tenho uma visão crítica que isso não motiva o aluno. E eu ainda ministro aulas, principalmente à noite, onde você tem que ser uma espécie de, um showman, do ponto positivo da palavra. O que seria esse showman? Você motivar o aluno a prestar atenção. Como? Mostrando casos práticos, tangíveis pra ele. Então, uma técnica que eu adoto, né, não sei se é correto, né, ou é errado, mas os alunos têm uma resposta positiva, que é mostrar estudo de casos práticos de coisas que são tangíveis ao mundo dele. Como eu ministro a aula? Pros alunos do curso técnico e também alunos de graduação, né, na universidade, eu vejo que isso é cada vez mais imperativo, que é você mostrar casos práticos, pra que o aluno da noite, né, o aluno às vezes de uma aula de... duas horas de aula, né, que ele fique motivado a apresentar. Aí, tem que pegar, porque tem que tá sempre estudando, pegando caso do jornal, pegando casos práticos. Por exemplo, hoje eu estava olhando o jornal de

233

manhã cedo, aí vi esse caso da explosão lá no Porto, no Cais do Porto, e vou aplicar uma prova hoje. Então, o que eu vou fazer? Vou pegar uma questão da prova, vou pegar o recorte do jornal, xerocar, colocar na prova e vou mandar ele fazer uma análise crítica do estudo de caso da disciplina de análise de risco. Então, eu acho que isso faz... isso tenta inserir o aluno num mercado de trabalho, num contexto mais realista e algo que ele tá visualizando. Eu acho que, no ano passado também, fiz outro estudo de caso que foi aquele acidente que aconteceu no Centro da cidade. Teve uma explosão onde morreu uma pessoa numa cozinha industrial. Aí, peguei esse caso e mandei ele analisar, aplicando os fenômenos físicos, os fenômenos químicos associados a isso. Então, na minha opinião, uma boa aula, um bom ensino é poder você colocar, primeira parte, dar os conceitos físicos e matemáticos, depois aplicação no estudo de caso e depois uma análise que ele faça essa interpretação. Então, acho que isso é uma metodologia. É lógico que na minha disciplina pode ser até um pouco mais fácil, porque eu ministro aulas com exemplos de projetos e processos, né, então um pouco mais fácil, mais tangível pro aluno visualizar. Talvez outras disciplinas, como a matemática, a física, já é um pouco mais difícil. Mas que isso aí tem que ser buscado, senão perde-se, né? É muito difícil, a aula se torna um pouco mais, vamos dizer assim, torna a velocidade da aula um pouco mais lenta, né, então acaba não motivando o aluno. Tem que motivar o aluno a pensar, né, porque tem uma teoria interessante que você tá explicando, né, então nos primeiros dez minutos ele tá antenado, nos próximos cinco minutos ele perde, depois desse tempo ele já não consegue mais absorver as informações. Então, você tem que tá sempre motivando, alterar o tom de voz, né, colocar Power Point, fechar o Power Point e ir pro quadro, depois fechar o... não copiar mais no quadro, né, na lousa, e ir pro Power Point, fazer gestos com as mãos, trazer modelos de lego. Tô com um projeto que agora que tentaram desenvolver modelos de lego pra explicar projetos de petróleo. Então é uma técnica que eu tô buscando, que eu vi, eu observei isso na pós-graduação lá na UFF, eu acho a técnica extremamente válida, onde os alunos ficaram... aula de sábado, né, oito horas de aula de sábado, então os alunos foram extremamente positivos. Então, usar a técnica do lego, onde ele mete a mão, consegue observar. Então, essa é a forma de você ministrar uma melhor aula, não é somente show de Power Point, eu ficar copiando e falando na mesma entonação, principalmente à noite. Essa é a minha visão.

Pesquisadora E sobre a avaliação, qual a sua visão sobre o papel da avaliação educacional?

Prof. Vítor

É, avaliação. Avaliação pra ter um... pra medir um grau, pra ter um grau, eu acho que é um dos instrumentos mais importantes. Tem que ter uma parte prática, uma parte prática e uma parte teórica. Nem sempre é possível. Essa parte teórica seria avaliação normal, né, uma prova, né, de um a dez, né, desenvolver, mas as questões têm que tá extremamente associadas para o conteúdo com estudos práticos. E outros são trabalhos em grupo, eu particularmente não gosto muito de fazer trabalho em grupo de quatro ou cinco, gosto de trabalhar em grupo de dois ou três. Por quê? A minha experiência mostra que quando você trabalha num grupo de quatro, cinco, né, tem aquela expressão, né? Vou colocar aqui, na aba, né, então sempre fica um aluno na aba. Eu sou aluno hoje, e às vezes tem trabalho de quatro, cinco, às vezes também fico na aba, ou seja, fico esperando resultado e a sua participação é uma participação mínima. Então, às vezes, quando você coloca um número menor de alunos, dois alunos, três alunos, eles são obrigados a participar de uma forma maior. Então, a tendência é que isso ocorra. Então, sempre fazer uma avaliação teórica, uma avaliação prática, acho que é a melhor forma de fazer. E escolher bem as questões, onde tem uma ponte entre o que você ministrou na aula aplicada ao mundo... Então, essas são as questões que fazem, não são questões teóricas, eu detesto questões de

234

decoreba. O que são questões de decoreba, né? Fala lá, quais são os ácidos? Aí fala o nome de cada ácido. Eu particularmente não gosto muito dessa abordagem, eu gosto mais de você, tudo o que for como decoreba, você dá esse instrumento como a ferramenta de trabalho, e fazer ele raciocinar, ele fazer refletir. Porque na verdade, eu aprendi isso na minha graduação, que o que a gente aprende mesmo é buscar onde estão essas informações e como usar as informações. O cérebro tem uma capacidade limitada de armazenar, então o conceito é que é o fundamental. Então, cobro muito a aplicação de conceito nas minhas avaliações. O conceito é que vai fazer o aluno, o futuro profissional a buscar o livro ou ir à internet, e analisar aquelas informações. Então usar a internet como ferramenta de trabalho, usar o livro como ferramenta de trabalho e aplicação de conceitos. Basicamente isso que eu cobro nas minhas avaliações específicas.

Pesquisadora Você usa o laboratório, professor?

Prof. Vítor Não, eu não uso. A disciplina que eu ensino normalmente não tem laboratório.

Pesquisadora Na sua opinião, qual o papel do laboratório para o ensino de química?

Prof. Vítor

Laboratório é importante. Como técnico em Química, né, fui técnico em Química, então laboratório é onde você faz as práticas, as experiências, onde você tem diferentes alternativas de testes, que são os laboratórios. Então, se pudesse eu sempre usaria. Por exemplo: o uso de um lego é como se fosse um laboratório em sala de aula, pra você demonstrar pro aluno quais são os equipamentos, qual é um arranjo submarino, qual é um equipamento que pode explodir ou pode pegar fogo, né? A montagem de determinados equipamentos com um determinado protótipo, desenvolvimento de protótipos, né? Então às vezes, por exemplo, nós temos as feiras de ciência, né, a SEMATEC, a Semana de Ciência e Tecnologia na Escola A, onde eu busco sempre construir um protótipo, que é um laboratório, onde você vai maximizar o conhecimento do aluno é construir um protótipo específico, onde ele vai poder pegar, ou seja, a parte, o top físico, isso aí é fundamental. Onde ele vai poder testar as diferentes observações, as alternativas de projeto, ou as experiências mais lúdicas, né, basicamente isso o que eu faço.

Pesquisadora Professor, você já chegou a acessar algum documento oficial das legislações, o projeto político pedagógico da instituição? Você concorda com eles ou não, acrescentaria alguma coisa?

Prof. Vítor

É, consultar pra usar não. Nós fizemos uma análise como atuo também, como Coordenador do curso técnico, nós fizemos uma análise do projeto político pedagógico. E a estrutura da Escola A, ela tá ainda em desenvolvimento e eu acho que poucos são os parágrafos dessa norma que são utilizados de uma forma estrita. Eu acho que é utilizado de uma forma mínima, né? Então, por conta dos docentes, da experiência que eu tenho com os outros docentes, nos meus pares de trabalho, acho que ele ainda é utilizado de uma forma mínima, né? O que é basicamente efetivado? O número de avaliações, a gente... Qual é o número de avaliações mínimas, né? Duas avaliações mínimas por cada bimestre. As orientações de questões, de elaboração das provas, isso a gente acaba avaliando, mas ainda é de uma forma muito incipiente a meu ver.

Pesquisadora Como é que você avalia o interesse e o desempenho dos seus alunos na sua aula?

Prof. Vítor

O interesse, como eu tento buscar sempre uma aula dinâmica, eles gostam da parte dinâmica, eu noto isso, né, nas entrevistas, nas avaliações, eu acho que eles gostam da parte dinâmica da aula, onde tem exemplos. Eles gostam mais quando são apresentados os exemplos práticos, o estudo de casos associados às atividades, mas eles não gostam das provas. Por quê? Eles acham que as provas são ... as perguntas são muito complexas, eles dizem que não sabem o que tá sendo perguntado. Fazendo uma autocrítica, eu até concordo com eles, porque às vezes tem uma questão que eles não sabem por que estão sendo perguntados em relação a isso, porque às vezes você tem que se transportar para o ambiente de trabalho, para um mundo real de um projeto de engenharia de petróleo, uma

235

petroquímica. Então, como eles não têm, mesmo com as visitas técnicas que são realizadas, eles ainda não têm a expectativa, não conseguem ver como o que tá querendo ser perguntado. E são às vezes, quer dizer, ao ver do profissional que já trabalha alguns anos nisso, acho as perguntas fáceis, mas quando passa pro aluno ele não sabe o que é um tanque de petróleo, o que é uma bomba, o que pode vazar, quais são as propriedades físico-químicas da substância A, B ou C, em termo de toxidade. Que são questões que ele tem que saber, e acaba ele não conseguindo responder, então às vezes são respostas esporádicas. Então, a parte da aula eles gostam, mas na avaliação das provas eles questionam muito. Isso é uma unanimidade nos quatro, cinco períodos que foram ministradas as aulas.

Pesquisadora

Entendi. E assim, qual a visão de ciência que você busca passar para os seus alunos? Você se preocupa com a visão de ciência que os alunos constroem nos cursos técnicos? Professor, se você quiser que eu dê um pause, em qualquer momento, é só falar, tá?

Prof. Vítor

Não, tô ouvindo, essa pergunta é difícil. Eu tento passar pra eles a visão de que a ciência, ela sendo bem utilizada, sendo bem conduzida, ela resulta em... ela gera resultados bastante positivos, mas tem que pesquisar continuamente. E tem que insistir, tem que insistir mesmo pra dar um determinado resultado. Então, busco que os grandes descobrimentos, as grandes descobertas, foram feitas basicamente por acaso. Ele não estava planejando encontrar aquele determinado resultado. Então, eu tento mostrar pros alunos, até mesmo pra mim, que às vezes você desenvolver um modelo matemático, você acaba passando um tempo muito maior e buscando outros resultados.

Pesquisadora Outras descobertas.

Prof. Vítor

Então eu acabo... Eu até expliquei pra eles, que, às vezes... eu recebi a incumbência de um aluno, né, de um amigo, pra fazer uma modelagem de matemática, de uma conversão de unidades. Eu fiquei... eu achei que era fácil, fiquei quatro, cinco meses pra achar o resultado, trabalhando uma hora por dia, duas horas por dia. Aí, quando eu conto isso pros alunos eles ficam, assim, espantados, porque é um nível de insistência pra chegar a um determinado resultado.

Pesquisadora E muitas vezes eles pensam que a ciência é coisa pra gênio, né? É coisa pra superdotados, não é?

Prof. Vítor

Não, eles falam isso. Aí, eu falo pra eles assim: eu sou, olha aqui, eu sou ... fui um aluno mediano e tô aqui ministrando aula aqui pra vocês, né, e vocês: “Ah, professor, você é muito inteligente”. Não, eu sou um aluno mediano, então me tenho como exemplo, vocês podem também ir além, né? Então, não precisa ser um gênio, né, um “cdf” pra poder chegar a alguns resultados práticos, resultados positivos na sua carreira profissional. Então, tem que insistir, não tem jeito. É uma constância, tem que ler muito, aplicar, refutar, sempre criticar. A ciência só chegou ao desenvolvimento a partir das críticas, a partir de não concordar. Não aceitem o que eu falo passivamente. Eu comento, não aceitem porque nós, professores, nós seres ... nós podemos errar, então não aceitem, refutem. Nós podemos pesquisar, chegar a um consenso, mas não aceitem o que eu falo. O que às vezes eu falo pode estar errado. Então, eu sempre passo isso pra eles, pra eles questionarem o professor no campo profissional, no campo bastante científico, isso é o que eu sempre falo pra eles. Pra poder chegar à aplicação da ciência de uma forma mais estrita, né, de uma forma mais fundamentada, né?

Pesquisadora Então, agora em relação a forma como ensino médio e a formação profissional se estruturaram ao longo da história. Eu não sei se você chegou a acompanhar, mas você foi aluno do técnico ... .

Prof. Vítor Eu fui aluno do técnico.

Pesquisadora Você deve lembrar que esse ensino era oferecido de forma integrada.

Prof. Vítor Certo.

Pesquisadora Você saía com o ensino médio e a formação profissional, na ocasião em que

236

você se formou certo?

Prof. Vítor Foi, foi.

Pesquisadora Depois veio a Lei em 97 que, obrigatoriamente, separou o ensino médio e a formação profissional. Isso foi compulsório, não é?

Prof. Vítor Obrigatório, pelo governo.

Pesquisadora

Essa compulsoriedade valeu até o ano 2004, quando veio o Decreto 5154 que permitiu que as escolas voltassem a oferecer o integrado, mas também, deu liberdade para outras possibilidades, como o concomitante e o subsequente. Então, professor, o que você entende por formação integral? Formação integral do técnico, né, no caso aí do Técnico em Química?

Prof. Vítor

A formação integral é dividida basicamente, pro curso técnico, eu vejo que é dividido em duas partes, muito claras. Uma é a formação da parte técnica do mundo do trabalho, das disciplinas específicas da parte técnica; e a outro é a formação onde ele vai ter aulas de português, geografia, matemática, sociologia, pra poder integrar sua formação técnica. Então, quando é um ensino integrado, tem que unir essas duas áreas, essas duas áreas temáticas pra formar o cidadão. Então, a formação do cidadão não é essencialmente, né, a parte técnica ou apenas a formação do antigo 2º grau.

Pesquisadora Só acadêmica ou propedêutica, como é chamada.

Prof. Vítor

Acadêmica, né? Propedêutica, né, falando o termo mais específico. Então, a formação do cidadão para o mundo do trabalho, de uma forma integrada, tem que ter essas duas áreas muito bem associadas. E uma dá suporte pra outra, então a disciplina de propedêutica, né, dá suporte para ele poder compreender melhor a parte técnica de química, física, né, porque você tem que interpretar justamente os textos, as leituras, e às vezes estão entre as linhas, então você tem que ter um bom ensino da parte de... da gramática, do português, desenvolver um bom relatório. Às vezes você tem uma questão de matemática onde não é a matemática que tá dificultando, é a interpretação do texto da pergunta, né, interpretação do questionamento. Então, é fundamental isso tá muito bem integrado. Quando foi feito, isso no passado, né, essa ruptura, botar o ensino num determinado turno, é isso, né? Eu acho que isso perdeu, eu acho que fez uma ruptura, onde teve uma dissociação, eu acho que quem saiu perdendo foi muito o aluno. Não, eu acho que tem que tá de uma forma justamente mais integrada, não pode tá separado. “Ah, você agora vai fazer o curso técnico, vai pegar só disciplinas técnicas. Você agora vai ter a formação acadêmica normal”. Eu acho que isso não foi um bom resultado.

Pesquisadora Então às vezes essa formação integral também ela é falada do ponto de vista do conhecimento, de integrar conhecimentos, da parte de formação geral com a específica ou profissional, ou dentro da própria parte profissional ou geral.

Prof. Vítor Certo.

Pesquisadora E, como é que você vê isso? Você consegue realizar isso, você acha que na instituição as pessoas estão preocupadas com isso? Se não conseguem, o que você acha impede isso?

Prof. Vítor

Olha, eu vejo que não conseguem, fazendo uma análise crítica. Uma experiência que nós temos lá, nós estamos formando alguns alunos onde a parte técnica fica um pouco deficiente na fase final do curso, que é na elaboração de um relatório. Então, eu vejo o seguinte, que você tem lá, o primeiro, o segundo, terceiro, quarto; quando chega na fase final, é uma fase mais importante, que é elaboração de um trabalho ao longo do que você aprendeu nos últimos períodos. E você às vezes observa a deficiência na elaboração de relatório, na gramática, o que você quer dizer com o texto, como vai pesquisar, como vai elaborar um determinado relatório. Então, isso acaba interferindo, no meu ponto de vista, só pra deixar um pouco mais específico, na minha opinião, eu vejo que, no final do curso, onde o aluno vai comprovar tudo aquilo que ele aprendeu nas últimas disciplinas e que devem estar integradas, há uma certa deficiência. No curso, eu observo isso de uma forma bem díspar. No curso integrado, os resultados são muito melhores, agora no curso subsequente, os resultados são muito ruins, muito ruins mesmo. Por quê? Ele às vezes fez o curso numa outra

237

instituição que não foi a Escola A, e fez somente a parte técnica, aí quando vai somar esses resultados, é muito ruim no curso subsequente. No curso concomitante é um pouquinho melhor. Agora, o melhor resultado é quando é o curso integrado. Então, eu vejo que os professores, às vezes, têm que integrar um pouco mais, principalmente das disciplinas de português, de matemática, né? Eu acho que às vezes as aprovações estão sendo um pouco, assim, automáticas pra não... pra ter um número, né, ter um determinado número que é a aprovação. Eu tô começando a observar isso, não tenho dados quantitativos, mas eu começo a observar que às vezes alguns alunos passam de uma série pra outra, o curso subsequente, apenas pra cumprir tabela, pra cumprir número. E isso, você vai ver esse resultado no final do curso, que é elaboração de relatório, interpretação, como vai fazer uma pesquisa, colocar... vai ser avaliado de uma forma mais específica, eu vejo que isso aí é um ponto crítico.

Pesquisadora Você chega a envolver seus alunos em projeto de pesquisa?

Prof. Vítor A minha linha é essa.

Pesquisadora Quais os princípios que você costuma valorizar pra realizar os projetos de pesquisa?

Prof. Vítor

Exatamente. Quer dizer, eu gosto de pesquisa, sempre trabalhei em pesquisa, e eu sempre tenho projetos de pesquisa, né? Então, eu busco que fazer pesquisa é bom para o aluno, que não ficar só... pro professor não ficar somente em sala de aula, então ele tem que também ministrar a parte da sala de aula e trabalhar com projeto de pesquisas que acaba dando um suporte pra melhorar a sua disciplina, a sua aula, né, e você tem um aprendizado melhor. Eu vejo que os alunos que tem potencial, faço um processo seletivo, quem tem potencial eu acabo chamando, então eu sempre tenho três ou quatro alunos em projeto de pesquisa. Onde a gente publica papers em congressos, lá desenvolve trabalhos, papers em congressos, né, é bom pra mim, é bom pro aluno fazer essa iniciação. Como eu faço essa seleção? A minha seleção primeiro é pelas provas, eu vou avaliando o aluno sem ele saber. Então eu vou começar a identificar quais são os alunos que tem maior potencial de desenvolvimento de pesquisa ao longo do curso. Então, eu só vou selecionar o aluno depois que ele fez um período comigo. Então, ele estudou um período comigo, ele passa pra outra fase, aí eu vou avaliando. Então, o que eu busco com esse aluno? Se ele consegue escrever bem, se ele consegue ler bem, se ele é um aluno participativo da aula, se ele pergunta, se ele é um aluno questionador da aula. Então, esses são alunos que eu acabo selecionando pro projeto de pesquisa, que ele questiona, que ele pergunta, participa de uma forma mais efetiva. Não somente a nota, essa coisa de CR pra mim fica em segundo plano, o mais importante é a atividade do aluno. Talvez o aluno tirou uma nota 6, que é uma nota mediana, mas ele é extremamente proativo, participativo. E também vou falar um negócio aqui que é até complicado, eu às vezes tenho uma certa preferência pelas meninas. Não por eu ser menino, mas porque eu observo que as meninas são mais comprometidas com as atividades que são colocadas, observo isso, eu já gerenciei projetos com engenheiras, né, com quatro ou cinco, posso até falar com um pouco de experiência, então eu vejo que as meninas têm um comprometimento maior, são mais detalhistas, observam, são mais sinceras. Quando sabem, não sabem, você vai, acaba explicando. Então, os resultados de projeto de pesquisa com as meninas, por incrível que pareça, são ligeiramente melhores, pra não falar maiores, né, do que com os meninos. Mas, os meninos têm certa vantagem, eles são mais... arriscam mais. Então, às vezes num determinado projeto pra desenvolver, motivar, às vezes você colocar um determinado menino, né, um jovem desse eu acho que ... ele arrisca mais, ele é mais impetuoso, né, pra determinadas atividades. Então acaba tendo que ... eu sempre tento mesclar um número maior de meninas, um número menor de meninos nos projetos de pesquisa que eu faço.

Pesquisadora Professor, assim, pra terminar, mas não querendo te cercear, a gente tem o tempo que você quiser, o que pra você significa uma educação científica de

238

qualidade no contexto da educação profissional? Na sua visão o que é uma educação de qualidade na formação profissional?

Prof. Vítor

Educação profissional. Um dos primeiros pontos é infraestrutura da instituição: laboratórios, salas de aulas com múltiplas opções de você trabalhar com projeto multimídia, com computadores, uma boa lousa, laboratórios. Então, isso é um dos pontos principais que é a infraestrutura. Outra parte é a carga horária. Eu vejo que pra fazer uma pesquisa, né, pra dar um determinado resultado a pesquisa associada ao curso, você não pode, por exemplo, um curso técnico em Química onde você vai fazer uma pesquisa de sociologia que não tem uma integração. Então, um curso integrado de Química que tenha áreas associadas, então você tem que ter uma disponibilidade para que o professor faça a sua pesquisa com uma carga horária extremamente compatível com as disciplinas. Não adianta você ministrar várias aulas e ainda... e querer que aquele professor tenha um resultado de pesquisa com os alunos. Eu vejo que isso aí é incompatível, né? O terceiro ponto que eu falo é ampliar a relação: empresa/escola, empresa/instituição. Isso aí tem que tá muito bem associado, que é uma integração entre o que é desenvolvido na escola como ciência, e o que é aplicado na empresa como trabalho, como resultado, como processos produtivos. Então, fazer essa integração não na essência da palavra, uma integração verdadeira que é unir o que a empresa desenvolve, os problemas que ela apresenta e fazer essa ponte para que a escola, para que a escola técnica, né, uma universidade, acaba desenvolvendo. Então, essa integração é muito boa, essa parceria ela é muito importante para o desenvolvimento da ciência, porque são os problemas reais que tem. Por exemplo, a escola, por mais que ela tenha acesso às informações, ela não tá vivenciando o problema, quem vivencia o problema, né, as propostas de soluções, é justamente a empresa, mas ela tem que passar isso. Então, essa integração é muito importante. E o quarto item é um maior investimento do governo, ou da própria empresa, como acontece isso na Europa, nos Estados Unidos, nas escolas. Quando as escolas, ou o governo, que é um investimento específico para as instituições que buscam, que tem esse perfil, né, eu acho que isso aí vai desenvolver cada vez mais a ciência no Brasil, principalmente nós que somos um país aí que a gente tá nesse nível de subdesenvolvimento, necessita cada vez mais disso. Acho que essas cinco linhas que eu acabei de apontar, elas sendo implementadas, acho que, de médio prazo, acho que vai ter um resultado. Perfeito?

Pesquisadora Tá ótimo, professor! Muito obrigada. Quer acrescentar algo mais?

Prof. Vítor Eu agradeço aí por essa entrevista, eu espero ter contribuído aí, né?

Pesquisadora Muito, contribuiu muito.

Prof. Vítor Com os resultados aí, né, e tenha sucesso aí na sua pesquisa aí, tá, que seja muito bem usado. Obrigado.

Pesquisadora Obrigada.

239

APÊNDICE 6 - ENTREVISTA COM A PROFESSORA CLEO (ESCOLA B)

ENUNCIADOR ENUNCIADO

Pesquisadora Cleo, de acordo com as DCN para a EPTM, o principal objetivo desta escola é a formação para o trabalho. Qual a sua visão sobre isso? Sobre o ensino de biologia na formação para o trabalho?

Profa. Cleo

Esta é uma escola politécnica, mas porque ela optou pela politecnia como princípio pedagógico, né? Então é um princípio marxista de formação integral e aí eu vejo assim a minha ideia de biologia, de formação pra vida, eu acho que se encaixa totalmente na diretriz da própria escola, porque forma para o trabalho sim, porque entende o trabalho como inerente ao ser humano, mas a biologia não tem um enfoque utilitarista aqui na escola. Não é, assim, instrumental, sabe? Não só a biologia, as disciplinas, pelo menos, o que se pretende aqui é que as disciplinas sejam componentes do todo, que é a vida do aluno, entendeu? Então a biologia é isso aí, é mais um componente da vida do aluno, e não uma coisa instrumental para o trabalho. Essa é a nossa filosofia aqui.

Pesquisadora Fale um pouco sobre outros objetivos que você estabeleceria para o ensino de biologia nessa modalidade de formação.

Profa. Cleo

Eu gosto muito de ensinar... desde que eu comecei a dar aulas, eu tento dar o enfoque... é... como é que eu vou te dizer? Fugindo dessa coisa de decoreba... sabe? Eu acho que os nomes vão vir como consequência, então eles têm que entender o sentido daquilo. Quando começar a fazer sentido aquilo que eles estão aprendendo em sala de aula, aí eles vão passar pras outras coisas, aprender nome, aprender não sei o quê. A minha preocupação toda é essa. Eu adoro dar aula e acho que biologia é assim... é a essência da vida. Então eu faço porque acredito mesmo que é importante pra eles, independente se é matéria de vestibular, independente se é matéria de... sabe? ... da utilização que eles vão fazer daquilo que eles estão aprendendo em sala de aula. Eu ensino biologia porque eu acho que é pra vida deles. É isso... eu acho...

Pesquisadora O que orienta a seleção de conteúdos para ensinar biologia?

Profa. Cleo

A gente segue o programa oficial, o programa do MEC, como eu te falei, a gente tem um livro didático, que eu posso não seguir à risca, mas, o programa não muda. Tanto assim, que o aluno sai daqui e. a escola costuma ter bons resultados em ENEM, nos vestibulares. Nossos alunos todos entram na faculdade, mas não porque seja nosso objetivo, é porque a preparação deles é integral e acaba que eles saem preparados mesmo, a ponto de fazerem a prova e entrar. O nosso programa é o mesmo do MEC, né? As orientações são as mesmas. Não tem nada de diferente, não. A biologia está sempre mudando, né? Então eu tento sempre ficar ligada nas atualizações. O livro, ele é atualizado sempre também. A gente escolheu, a equipe escolheu esses autores por conta disso: porque eles trazem sempre informação nova, às vezes os alunos ficam até confusos: “ah, mas eu li não sei onde”, então eu falei: mas isso aqui é muito recente. E aí tenho que mostrar as duas coisas para ela... até... era assim... mas pode ser que haja... é...é... vocês vejam em algum lugar alguma coisa perguntando nesse sentido, mas hoje em dia está mudando para isso, entendeu? E aí eu mostro pra eles. Aqui a gente tem... os alunos têm muito contato com a gente do... pela internet... a gente tem internet, a gente tem email institucional, né? Então eu costumo passar indicações... as turmas todas têm email, então eu costumo passar indicações pra eles de vídeos, de coisas que têm na internet... é... vários alunos têm facebook, aí, de vez em quando, eu posto um vídeo, uma coisa que eu achei interessante, que eu esteja comentando em aula, algum dia, entendeu? Então eu tento fazer sempre essa ligação, como eu te falei: ligação com a realidade, com a biologia... que é aquela coisa, aquela entidade cheia de nomes... então, daí eles entenderem pra que aquilo serve pra vida deles, entendeu? Então é...é... não que eu traga conteúdos diferentes, mas eu estou sempre buscando alguma coisa nova.

240

Pesquisadora O que orienta suas metodologias para o ensino de Biologia?

Profa. Cleo

É... assim... eu sinto falta, ainda, de, não por uma deficiência da escola, mas acho que de planejamento meu... de mais aulas práticas... É... assim... a gente tem laboratórios aqui na escola e eles são usados, muitos, na parte técnica, entendeu? A formação geral não costuma usar muito os laboratórios, não. Isso eu ainda sinto falta, mas, assim, é uma coisa que eu tô me programando pra botar mais... mais aulas práticas pra eles. Mas, de modo geral, a gente tem um... um... assim... uma gama de recursos audiovisuais, aqui, excelentes. Todas as salas têm computador, todas as salas têm televisão, entendeu? Dar aula... fica aquela coisa... a gente não vai falar da mitocôndria... a gente vai mostrar pra eles. Tem ligação com a internet, então se a gente quiser acessar, a gente pode passar, entendeu... pra eles... é... então dá pra fazer um trabalho bem dinâmico, mesmo em sala de aula. A única ressalva que eu falo é que, assim, na minha parte, eu poderia dar mais aulas práticas... eu acho que eles iam gostar também... iam achar legal. Já trouxe... já peguei bicho no caminho pra cá, que eu venho de ônibus... To subindo, lá da Brasil pra cá... já peguei bicho pra trazer... já trago planta, de vez em quando... mostro pra eles, mas nunca planejei uma aula assim, entendeu? É a única coisa que eu faria.

Pesquisadora Qual a sua visão sobre avaliação da aprendizagem?

Profa. Cleo

Acho muito natural que a primeira avaliação aqui, eu falo isso pra eles também, é muito natural que a primeira avaliação seja muito... que o resultado seja baixo. Mas eu vou te dizer: você pega um canhoto meu aqui, de primeiro trimestre, está muita nota vermelha, porque a média é seis, então abaixo de seis já é vermelha. Você pega um canhoto meu, está assim: quase metade da turma com nota vermelha. Chega no final do ano, eu tenho três turmas... às vezes, eu tenho um, no máximo dois alunos em recuperação comigo, entendeu? Porque eles desconstroem mesmo essa noção de decoreba... essa noção, sabe, de biologia... aquela coisa maçante... não... eles começam a aprender a estudar. Esse ano eu já sentei com aluno. Aluno ficou chateado com a nota e tal... vem cá, me diz o que você está fazendo pra estudar. Ah, estou fazendo resumo. Deixa eu ver o seu resumo. Ai a gente vê o resumo, aquela coisa, né, decorar número, tantos por cento disso. Eu digo: gente, eu não vou perguntar quantos por cento disso numa prova... Isso aqui não é uma informação essencial pra você, entendeu? Então vocês têm que aprender a ler e tirar as informações que são essenciais pra vocês e aí... é... espero que o resultado já melhore. E melhora. Naturalmente o resultado melhora. Tenho certeza disso. É um choque que eles têm. Mas é. Tanto na biologia, quanto na química, quanto na física, entendeu? São ciências que eles viam tudo junto e, acho que, na maioria das vezes, fora de um contexto... Então, o que a gente tenta fazer é... é tentar fazer a coisa... dizer alguma coisa pra eles, né? Fazer as matérias dizerem alguma coisa pra eles. Então o começo é chocante mesmo... natural... não se espanta não.”

Pesquisadora Como você vê o papel dos laboratórios para o ensino de biologia?

Profa. Cleo

Justamente... eu acho que nesse sentido da minha intenção de tentar trazer uma coisa mais real pra eles, acho que o laboratório seria, assim, fundamental, porque é a prática, né? É mostrar pra eles. Só não ficar naquela coisa: ah, sistema digestório... não sei o quê? Não! Abre o texto, mostra pra eles lá, sabe? É isso que eu estou com muita vontade de começar a fazer... porque é assim, como eu te falei: a gente segue o programa do MEC, a gente tem o calendário do MEC, né? Então, o programa acaba ficando imenso e num tempo muito curto. Então, é complicado, mas eu não desisti dessa ideia não.

Pesquisadora

A EPTM voltou a ser oferecida à sociedade na modalidade integrada a partir do Decreto 5.154/2004. O que você compreende por formação integral? Você acha que consegue realizar uma formação desse tipo? Como ela se dá aqui na Escola?

Profa. Cleo

É o que eu te falei: o projeto é muito bonito. Eu entendo formação integral como a formação que não engessa o ser humano, que não é, como é que eu vou te dizer? Que não exclui nenhuma possibilidade de realização pro ser humano. Então ele tem todos os aspectos da vida, ele tem noções de todos os aspectos da vida contemplados. A gente tem formação aqui na área das ciências, a

241

formação das linguagens, a gente tem os desportos aqui, a gente tem três opções... quatro opções, agora, esse ano, de educação artística. Então, acho que... assim... todas as áreas de formação humana aqui são contempladas e... e... acho que desse jeito você não... não segmenta. Acho que... ah, você tem todas as disciplinas que uma escola tradicional tem, mas eu acho que é muito segmentado. A nossa luta aqui, não digo que a gente consiga, mas acho que a luta, aqui na escola, é tentar fazer isso de um modo integrado, sabe? Que seja entendido, realmente, como várias facetas de uma mesma coisa: que é o ser humano. Agora, a gente vive numa sociedade que não é, não é comunista. É uma proposta marxista, a gente vive num país capitalista, a gente vive, né, com várias determinações, o governo, agora, só fala em educação profissional, mas é outra perspectiva que ele tem, entendeu? É outra visão. É o trabalho que a gente vende aqui. Então, a gente tenta não se colocar, também, sabe, afastado da realidade. Tem uma luta, tem um... o jogo está posto, está na mesa. A gente está lutando, mas a gente não tenta viver, sabe? Naquele castelo, aquela coisa literal, né, na [Instituição na qual leciona], mas é o que eu estou te dizendo: a luta é diária. É uma busca, é constante. Não estou dizendo que está pronto... não... parece uma coisa muito bonita quando a gente... o projeto é lindíssimo... vou te dizer: sou fã dessa escola, mas a interdisciplinaridade, ela é buscada e a integração é buscada todo dia, toda hora, com os colegas e com a formação geral e formação técnica e trazer o que tem na escola, articular com a realidade dos meninos. A gente está formando técnicos do SUS, entendeu? É o objetivo da escola formar técnicos pro SUS, sabe? Mas, que trabalhador que a gente está formando? Quem é essa pessoa? Ele vai viver num mundo que... não... sabe? Eles vão sair daqui um dia... Então, acho que a preocupação da gente é essa: tentar dar uma... uma... lutar por uma causa, mas dentro da realidade, sabe, com o pé no chão. É aquele negócio... A interdisciplinaridade de jeito nenhum é fácil. Tem duas maneiras de encarar: tanto a interdisciplinaridade dentro da formação geral, que já é uma luta, entendeu, quanto a interdisciplinaridade de formação geral e formação técnica, pra perder aquela coisa que eu te falei de disciplina instrumental. A escola, ela tem uma...,é um projeto, uma disciplina, hoje, para os alunos, que é a IEP. É a Iniciação à Educação Politécnica, que se pretende como uma disciplina integradora mesmo. Ela está dividida em eixos, né, ciências, saúde, trabalho... e tem outra que eu esqueci. E... aí vai... e... agrega professores de todos os laboratórios, entendeu? E a busca é totalmente essa, entendeu? É ser uma disciplina que faz a integração da teoria com a prática, integração entre as disciplinas, mas, como eu falei: Não é fácil não. A gente está construindo ainda.

Pesquisadora Qual é a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico é apresentado aqui nos cursos de formação técnica?

Profa. Cleo

Eu acho que é uma visão bem completa. Eles têm o embasamento filosófico aqui muito forte. A IEP faz bem essa função nos eixos que ela trabalha. Então, essa parte de... epistemológica, ela já é dada aos alunos desde o primeiro ano. Não trabalho com essa área diretamente, não, mas acompanho o trabalho dos colegas, e assim e na medida do possível, são selecionados textos, né, acessíveis, coisa e tal, mas essa discussão é bem trabalhada com eles, desde que eles entram aqui. É o que eu te falei: acho que o primeiro ano é um trabalho de desconstrução, muita coisa, né, porque eles vêm meio que adestrados, né. Muitos procuram a escola por causa dos resultados que ela tem e, quando chegam aqui, meio que reformulam as ideias, sabe? Eu acho isso muito legal.

Pesquisadora Você já teve acesso aos documentos oficiais que definem as diretrizes curriculares para EPTM? Em que medida essas diretrizes influenciam o seu trabalho pedagógico?

Profa. Cleo

Especificamente da área de educação profissional? Por acaso, sim, porque, como eu te disse, eu faço mestrado aqui na escola e o mestrado é em educação profissional. Em saúde, né? Então eu tenho acesso aos decretos, a toda trajetória, à luta da educação profissional e aí que eu te falo: a escola tem um papel importante para tentar mudar essa concepção de educação profissional vigente, né, no Brasil. Aquela coisa utilitarista, economicista, então, a escola entende trabalho como...

242

assim... característica do ser humano mesmo e se propõe a recusar a visão instrumental de disciplinas, sabe? Então... é... mas essa luta está posta, né? Não terminou... esse decreto, o 5154 foi uma vitória em relação ao 2208, né, mas não é nada que a gente possa estar tranquilo agora. Não. Eu acho que a luta, agora, está aí. A gente tá matando um dragão por dia.

Pesquisadora Como você avalia o desempenho e o interesse de seus alunos em suas aulas?

Profa. Cleo

A grande maioria gosta muito e eu acho que entende desse jeito que eu te falei, sabe? Eles até chegam... eu pego as turmas de primeiro ano... eu adoro pegar o primeiro ano, porque eu adoro desconstruir isso pra eles, sabe? Da biologia... sempre falo pra eles: esqueçam tudo que vocês ouviram sobre esse assunto... vamos começar do zero aqui, sabe? Então, quando chega ao segundo ano, é legal a diferença, sabe? A transformação deles. Eles já não chegam com tanto preconceito, sabe? No sentido mesmo de pré-conceito. Não chegam com tanto. Já sabem que é de outro jeito. A grande maioria adere totalmente ao projeto, como eu disse, né, não tem... assim... os alunos todos são apaixonados por biologia? De jeito nenhum. Sei que não, mas eu consigo um resultado muito legal deles.

Pesquisadora Cleo, você envolve os seus alunos em algum projeto de pesquisa? Considera esse envolvimento importante?

Profa. Cleo Na formação geral, bom, na formação geral, não, assim, não em termos da minha disciplina. Mas, eu não sei se vocês sabem, que, no terceiro ano, eles têm uma monografia, eles têm trabalho de conclusão de curso.

Pesquisadora Não sabia.

Profa. Cleo

Então, isso também é trabalhado na IEP. Eles são orientados e aí, desde o segundo ano, eles já buscam o professor orientador, nos moldes de qualquer TCC que a gente vê, entendeu? Escolhem um tema de pesquisa e começam a se familiarizar com as técnicas de pesquisa, procura bibliográfica, exercitam a escrita e normas técnicas e aí, no final, no terceiro ano, eles apresentam a monografia deles. É muito legal eles saem daqui ... é o que eu falo: o objetivo, assim, não é nem a monografia em si. Eles saem daqui pesquisadores.

Pesquisadora Você já orientou algum aluno aqui na escola?

Profa. Cleo

Tô com quatro... (risos)..., tô com quatro esse ano e já tenho três pro ano que vem. Três me chamaram já no segundo ano, porque eles começam no segundo ano, né? No ano passado, eu orientei uma menina, foi o primeiro “terceiro ano”, né, que eu orientei e esse ano peguei quatro, ano que vem já tem três me chamando.

Pesquisadora Então, Cleo, quais são os princípios que norteiam a pesquisa que você procura orientar? Os valores que são colocados?

Profa. Cleo

Então, o que eu acho, assim, que eu considero que seja mais importante é cultivar o hábito e a disciplina da pesquisa, né, que a gente sabe que tem que ter, então eles começam a ter contato com as fontes, né, bibliográficas, tanto fonte eletrônica quanto mídia impressa, né, a coisa do recorte do objeto, entendeu? Porque eles chegam com umas coisas, assim, megalomaníacas, então a gente, o nosso papel é ir recortando o objeto pra eles e eles vão e acabam aprendendo isso. Todas essas técnicas que a gente, na maioria das vezes, só vai aprender quando vai fazer monografia na faculdade, às vezes, até na pós-graduação. Não, aqui, no terceiro ano, eles já começam a ter isso, sabe? Não pode ser uma coisa muito ampla. Você tem que recortar. Recorte do tempo, recorte do espaço, sabe? Que tipo de pesquisa eu vou fazer ? Internet serve? Ah, não, vou ver periódicos. Periódicos servem? Ah, livro? Qual a bibliografia que eu vou utilizar? Sabe? Na biblioteca daqui não tem, então vai lá embaixo ver se tem. Vai na UFRJ ver se tem, entendeu? Então eles começam a se familiarizar com esse mundo mesmo da pesquisa. Eu acho que isso é mais importante, independente do tema que eles escolham. Acho que o tema acaba sendo consequência. Acaba sendo, assim, é como se fosse um incentivo: eles escolhem um tema que eles gostam e aprendem a pesquisar. Acho que essa é a intenção do TCC.

243

APÊNDICE 7 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR MURILO (ESCOLA B)

ENUNCIADOR ENUNCIADO

Pesquisadora

Então, professor Murilo, segundo as legislações, as diretrizes curriculares nacionais e o projeto político pedagógico vigentes para a Escola B, o ensino de biologia no curso técnico tem, como objetivo central, a formação para o trabalho. Qual é a sua visão sobre este objetivo, sobre o ensino de biologia na formação profissional?

Prof. Murilo

Acho que aqui, ao mesmo tempo em que a resposta se torna mais tranquila, ela se torna também mais complexa, porque nós temos diferentes habilitações aqui. O estudante de análises clínicas tem uma relação inequívoca com a biologia, porque são conceitos fundamentais aí pra que ele possa desempenhar um bom papel no campo profissional. Apesar de eu realmente entender a biologia, ou o currículo de biologia, contendo dentre muitos outros também, né, contendo como estando sofrendo com esse processo de “vestibularização” do ensino médio. Então, bizarramente, tentando fazer aqui uma correlação entre alguns estudantes de escola particulares constantes daqui, no terceiro ano parece que o daqui também, ele tenta focar, ele tenta entender um pouco mais a biologia a partir do que é pedido no vestibular. Por que eu tô falando isso? Alguns estudantes de terceiro ano, eles não veem talvez com muitos bons olhos uma separação do que a gente trabalha em sala de aula, com aquilo que é pedido no vestibular. Então, eu tento, a todo momento, deixar claro pra eles a minha opinião, por exemplo, de que o vestibular ele é algo extremamente nocivo pro ensino médio, porque o ensino médio deveria ter outros objetivos que o vestibular, né? Que é um processo meritocrático, um processo de seleção bastante excludente, bastante nocivo, porque a gente entende que vários estudantes não têm talvez a maturidade suficiente pra desempenhar um bom papel nessa prova, mas muitos talvez apresentem essa maturidade, mas ao mesmo tempo, quando chegam lá, se deparam com uma prova que talvez não faça tanto sentido com relação àquilo que ele tá estudando.

Pesquisadora A formação para o trabalho.

Prof. Murilo

A formação do trabalho, eu acho que qualquer recorte de saberes que trabalha junto a um fomento, ao senso crítico do estudante, eu acho que vai estar auxiliando. Até porque na maioria das escolas que trabalham com educação profissional, elas... Tenho medo de generalizar, mas acho que algumas experiências que eu tenho entendem aquele técnico como um mero reprodutor de determinados procedimentos, o que vai totalmente contra ao que a gente acredita. Que a gente acredita no trabalho como um principio educativo, sim, tanto que ele é um dos eixos desse componente inter, transdisciplinar, multidisciplinar, que a gente chama de iniciação à educação politécnica, que a gente aqui na escola tenta trabalhar, e tenta deixar um pouco mais claro pro estudante esse nosso posicionamento, de que existem muitos outros saberes que estão relacionados com a formação desse estudante para o seu trabalho, né, ou com a sua habilitação profissional, a partir daí.

Pesquisadora Você estabeleceria outros objetivos para o ensino da biologia?

Prof. Murilo

Eu acho a biologia, ela tem uma... ela é privilegiada, porque vários dos saberes que a gente aborda em sala de aula pode ter a ver com a realidade do estudante. Nesse ponto, dentro das minhas muitas limitações acadêmicas, fecha um pouco com o que o Paulo Freire realmente fala, e tento trabalhar isso em sala de aula, a todo momento, mas a biologia também pode ser da mesma forma uma ferramenta pra alienação do estudante, se ele trabalha simplesmente por trabalhar ali aqueles saberes, conteudistas do Ciclo de Crebs, o Ciclo de Crebs ele vai entender a biologia como uma simples associação, ou junção de uma série de nomes que pode fazer sentido pra ele naquela prova,

244

mas depois no final das contas se esquece, né?

Pesquisadora Como que essa sua visão dos objetivos para o ensino da biologia influencia a seleção de conteúdos, metodologia de ensino e sua avaliação?

Prof. Murilo

Recortando aqui eu tento, a gente tem uma ementa disciplinar que já foi discutida já há alguns anos, eu acho que sempre vale a gente tá em contínuo processo de discussão referente a esses termos. Desculpa, eu esqueci a pergunta. Desculpas, eu tenho problemas, eu tenho Alzheimer, eu tenho Alzheimer. ( RISOS, BRINCADEIRA)

Pesquisadora

Não tem problema nenhum. Eu perguntei em relação à definição de outros objetivos pra formação profissional, do ponto de vista do ensino da biologia, como que isso influencia sua seleção de conteúdos, a sua metodologia, sua avaliação?

Prof. Murilo

Eu tento priorizar, eu tenho outro privilégio aqui que é dar aula em dupla de biologia, com outro professor, professor Ariel. E a gente tenta, nós temos uma hora e meia por semana, então a biologia é uma das matérias que tem uma carga mais pesada aí de conteúdo. A gente tenta priorizar dentro daquilo que já está definido, pra que nós trabalhemos em sala de aula com os estudantes, mas a gente sempre tenta puxar uma discussão, vou ser repetitivo aqui, pra junto da realidade do estudante. Então, se a gente vai falar de herança quantitativa dentro da genética e utilizar o exemplo da cor da pele, a gente vai falar de racismo, a gente vai tentar abordar aí dentro das possibilidades de tempo, falar um pouco sobre a eugenia, tentar passar um filme. Então, por exemplo, já numa caminhada dessas, passei um filme bem interessante chamado “Homo Sapiens 1900”, que aborda o mesmo cara que fez a “Arquitetura da destruição”, que é um filme relativamente famoso sobre, um diálogo de pensamento sobre a II Guerra. Esse filme aborda, por exemplo, alguns entendimentos de eugenia, não só no caso mais clássico da II Guerra Mundial, do nazismo, mas alguns experimentos trabalhados nos Estados Unidos, na União Soviética, então, tentar trabalhar com estudante que, no final das contas, é tão importante quanto saber esses conceitos são as possíveis aplicações desses conceitos. Então, será que a ciência é tão parcial realmente assim, como dizem? Nós aqui entendemos que não, ou pelo menos eu entendo que não. Então, dentro de sala de aula a gente também vai trabalhar de maneira mais enviesada. Aí, então a gente sempre tenta trabalhar, eu sempre tento trabalhar com um olhar mais crítico sobre aquele conteúdo que tá sendo abordado. Repito, ao mesmo tempo em que esse conteúdo, quando “bem” abordado pode nos fornecer subsídios ali pra uma troca de ideias riquíssimas, também pode ser usado mais uma vez pra um esquema alienador pro estudante.

Pesquisadora E como você vê o papel dos laboratórios no ensino de Biologia?

Prof. Murilo

Não preciso nem me delongar muito, o laboratório, ele é maravilhoso porque o estudante tá vendo ali alguns conceitos muito práticos, né? O estudante, ele no ensino médio, talvez ele tenha que trabalhar um pouco mais com a abstração. Mas, algumas vezes, talvez a gente abstraia demais, ou fazemos encadeamentos que fazem com que o estudante se perca talvez um pouco no caminho. Essa ida ao laboratório, o olhar uma célula, um realizar uma prática de extração de DNA, uma observação de parasitas, eu trabalho com uma disciplina de protozoologia, onde a gente vai estudar os parasitas, recortando dos protozoários, e a gente faz uma prática que os alunos adoram, que é pedir pra eles trazerem alface de feiras livres, pra nós observarmos formas de resistência desses parasitas. Daí, protozoários e helmintos também, e não só trabalhamos como fazer, mas conversamos sobre isso. O que leva ao encontro de um cisto de ameba, por exemplo, numa plantação. Não há saneamento básico ali, ou talvez essa água que é utilizada pra irrigação, talvez não seja tratada, oriunda de um lugar onde... Eu tento sempre na medida do possível, e dentro das minhas muitas limitações também, estar problematizando isso junto ao estudante, né? Então, além daquele saber que ele vai adquirir ali com aquele método centrífugo, flutuação, método onde ele vai...

Pesquisadora Mais técnico?

Prof. Murilo Mais técnico, exatamente. Não faz sentido pra mim eu tentar trabalhar com a

245

alface que o garoto compra em feira livre, a gente sempre acha alguma coisa, infelizmente, tu sempre tá problematizando com ele. É isso. É normal isso aí mesmo então, né? O que a gente não estaria vendo, né? Isso eu sempre trabalho muito com eles uma ideia verdadeira. Quarenta e cinco horas de disciplina, não tem como ele sair um expert em microscopia para exames parasitológicos. Não há, não há. Então isso ele vai aprender, e aí eu converso muito com eles com relação a minha caminhada de aprendizado. Eu tive o privilégio de trabalhar em diferentes lugares com diferentes inserções, e tenho aí um rastro de trabalho técnico que me permite trocar com um pouco mais de intimidade com esse estudante acerca desses saberes. As poucas coisas que eu sei, muitas delas eu aprendi exatamente na bancada, mas problematizando tudo aquilo que me é passado dentro do laboratório. Porque, no final das contas, se a gente não for para além disso, esse profissional, ele tá sendo cada vez mais substituído por máquinas. Só que essa formação diferenciada sempre fará, dentro do meu entendimento, que um profissional, um chefe, um coordenador, entenda esse profissional como algo muito maior que um simples reprodutor ali de coisas, e possa ajudá-lo a utilizar alguns processos, a realmente reavaliar alguns processos, e por aí vai.

Pesquisadora Você costuma consultar alguns dos documentos oficiais, as legislações, as diretrizes curriculares nacionais, os objetivos que são ali definidos para a EPTM, o projeto político pedagógico da escola?

Prof. Murilo

Não há muito tempo hábil pra isso, de forma muito sincera. Mas, essa escola com relação a seu modo de funcionamento, ela permite que existam espaços de discussão e de maior compreensão de determinados documentos. Então essa escola, ela tem uma câmara técnica de ensino, onde, por exemplo, acho que a Bia falou aqui, a gente tá... já está pautado em um início de discussão para que nós reformulemos, rediscutamos o projeto político pedagógico dessa escola. Então, ao mesmo tempo em que não há realmente tempo hábil, a gente pode tentar se inserir dentro desses espaços e pode tá somando. Em teoria, eu acredito que era pra todo professor dessa escola estar participando disso, só que, realmente, a gente tem noventa e poucos alunos nessa escola, todos eles... Noventa e poucos alunos nessa escola, perdão, no terceiro ano. Desses alunos, onde todos qualificam os seus projetos, eu, por exemplo, eu estou em treze bancas, eu tô em um sexto das bancas dos alunos dessa escola do terceiro ano. Não há tempo pra gente poder acumular mais conhecimento sobre esses assuntos, mas a gente, aos trancos e barrancos, vai tentando...

Pesquisadora Como que você avalia, Prof. Murilo, o interesse e desempenho dos alunos nas suas aulas?

Prof. Murilo

Eu tenho o privilégio, mais uma vez, gosto muito de falar isso, de estar em várias salas de aula ao mesmo tempo. Existem muitos estudantes que gostam de biologia. Então, no ensino particular, por exemplo, e quando você tenta traçar essa estratégia de estar associando os saberes a serem trabalhados ali com o cotidiano do estudante, ajuda, né, ajuda. Biologia eu acho que talvez tenha mais um percentual de alunos interessados do que física, sei lá, por exemplo, do que a própria química, que já vem cheia de... já vem carregada de preconceitos, né, que esse estudante tem contato, seja dos pais, seja dos próprios professores que acabam usando várias vezes a química e a física como exemplo de matérias demoníacas, ou o simples fato do aluno não ter entendido o conceito de átomo, por exemplo, mas se interessam. Porém, existem conteúdos que não despertam tanto interesse do estudante, dentro da própria biologia. Dentro da protozoologia, eu trabalho com alunos num grau de maturação mais avançado, eu dou aula para o terceiro ano dessa escola, que hoje, nesse momento, é o último ano. A gente fez uma reforma curricular onde a gente passou aí o ensino médio para quatro anos. Devido à maturidade, aí eu também tenho que tentar valorizar um pouco o meu procedimento dentro de sala de aula. Eu tento trabalhar esse entendimento com relação às doenças, com alguns dados que tornam a coisa mais alarmante. Então, quando eu falo pro estudante que ele tem... que malária é importante de ser estudada, porque você tem um número de quinhentos milhões de casos por ano, né, dois milhões e meio de mortes, a cada trinta segundos morre uma

246

criança na África, vítima de malária. Ou que aqui no Brasil, mesmo ele não vendo em nenhum telejornal, você tem seiscentos, setecentos mil casos de malária por ano, concentrados na região norte. Tento fazer com que isso chame a atenção do estudante sobre algum aspecto. E brinco muito com eles, por exemplo, eu falo pra eles: “Olha, o meu exercer a profissão de maneira ruim, é ele ter uma aula ruim”. Mas, uma coisa que ele pode na sua caminhada compensar. Um técnico que trabalha de forma equivocada, ou um mau técnico, ele pode muitas das vezes tá causando a morte de um paciente, e ele vai trabalhar aqui diferente da Federal de Química, aqui ele é formado para o SUS, diferentemente da Federal de Química de quando eu fui formado, eu fui formado, preciso dizer isso, pra pesquisa, tá? Então, eu saí de lá, fui trabalhar com Radovan Borogevick, que é um cara relativamente famoso. O estudante sai daqui, ele vai estagiar num posto de saúde, ele vai estagiar no INCA, né? Então, é diferente, é diferente. Ao mesmo tempo, se você perguntar pro estudante que tá aqui, eu acho que ele ia querer ser formado para trabalhar na pesquisa, porque um estudante de cada trinta, dentro de uma sala, levanta a mão quando a gente pergunta quem quer trabalhar como técnico. Interessantemente, tristemente, esse estudante que a gente tá formando como técnico, ele não vai trabalhar como técnico, e o SUS precisa desse cara. O SUS acaba recrutando o cara que tem uma formação técnica totalmente mecanizada. É isso, eu tenho muito mais dúvidas do que respostas.

Pesquisadora

Mas isso é ótimo! Murilo, historicamente, a educação profissional e a educação geral já foram integradas, separadas, obrigatoriamente, em 97. Depois em 2004, o Decreto 5154, ofereceu novamente a possibilidade de formação integrada. Não sei se lembra disso...

Prof. Murilo Lembro.

Pesquisadora Eu gostaria que você falasse pra mim sobre a sua visão de formação integral. Você acha que consegue realizar essa formação, você acha que a instituição consegue, há esta preocupação, quais são as dificuldades?

Prof. Murilo Que pergunta difícil! Eu, talvez não consiga te responder, não tenha repertório pra te responder sobre...

Pesquisadora É a sua compreensão, a sua visão...

Prof. Murilo

Sobre a utopia de uma formação integrada, mas tentando viajar sobre isso nesse momento, eu tendo pegando como experiência aqui, tá? A gente tem... Eu lido com professores... Pra começo de conversa, eu acho que eu sou coordenador da disciplina que visa integrar os conteúdos, porque eu faço parte, porque eu dou aula de uma disciplina técnica, estou inserido na habilitação profissional, estou inserido no ensino médio regular, via biologia, e ao mesmo tempo trabalhei dando aula aqui de metodologia da pesquisa, que é uma disciplina que existe aqui que tenta instrumentalizar o estudante pra que ele possa desenvolver o seu projeto de monografia. A simples convivência desses diferentes profissionais, para o estudante, faz com que ele enriqueça, tá, e muito, a sua percepção não só enquanto cidadão. E por que eu estou te falando isso? Nós aqui recebemos uma série de profissionais que estavam há anos em pesquisa de bancada e que vem pra cá. Quando ele vem pra cá, muitos deles querendo, muito louco isso, não mais trabalhar como trabalhavam antes, mas muitos quando chegam aqui decidem trabalhar e entendem que o trabalho daqui é muitas vezes muito mais penoso do que você lidar com camundongos, ou com células pura e simplesmente. Então, acho que isso proporciona, de forma totalmente desconexa na resposta, uma formação inclusive humana pra esse profissional que começa a reaprender uma série de coisas aqui dentro dessa escola. O estudante, ele vai ter algo mais pormenorizado advindo desses profissionais, ao mesmo tempo ele precisa de outro profissional que o auxilia a contextualizar esse pormenor dentro do todo. Então, eu sou oriundo de uma formação de ensino médio regular, lá na Federal

247

de Química, onde eu acredito, dentro da minha leitura de estudante daquela época que não havia uma integração, assim como não há aqui, mas aqui eu vejo uma tentativa, inclusive com esse processo de reorganização curricular da gente estar mudando isso. Um exemplo bocó era de que, dentro de uma escola integral e integrada, você tem as mais variadas disciplinas, porém, todas até o ano passado, do ensino médio eram dadas pela manhã, e o ensino técnico à tarde. Pelo simples fato da gente tá modificando esses horários, então por que o professor do técnico não pode tá aqui oito horas da manhã em sala de aula? Parece até uma relação de poder, muito louco isso, né? Então, forçamos isso, começamos a modificar isso, nem todo mundo gosta, nós não sabemos aonde vai parar, porque começamos agora um processo que vai durar quatro anos pra que nós avaliemos aí essa primeira caminhada, esse arcabouço aí, e vamos ver como vai ser. Agora, sem dúvida alguma, tentando pegar um exemplo da minha irmã, que entrou na Federal de Química depois que eu saí, que já pegou essa dissociação do ensino médio regular com o ensino técnico, parece que eles colocam, parece que as disciplinas são muito mais entendidas como caixinhas, tá, quando você dissocia, do que elas como sendo parte maior de um todo, tá, onde ela é tão importante pra formação desse estudante, como o professor de literatura, como o professor de IEP, que é uma disciplina aqui, por exemplo, um pouco mais estigmatizada pro estudante como tranquila, porque não tem um processo de avaliação individual, nem sempre há, na maioria das vezes não há, então, ele já chega achando que tá tudo certo. Mas ele ainda não tem a maturidade de, exatamente por causa disso, ele poder estudar de peito mais aberto, pelo contrário, ele não quer estudar.

Pesquisadora Quer estudar aquela disciplina em um processo mais tradicional, com avaliação...

Prof. Murilo

Quase uma Síndrome de Estocolmo, né? Gosta mesmo dessa de ser refém desse processo avaliativo traumatizante, né? Mas, ao mesmo tempo também é importante, eu não vou tirar aqui a importância da prova, quem sou eu pra falar isso. Mas eu acho a riqueza dessa amplitude muito maior do que ele venha a entender como educação, do que ele venha a entender como um professor. Aqui tem tudo quanto é tipo de professor, né, com seus muitos bônus, com seus também muitos ônus. Uma vez você dentro de uma escola dessa, você não precisa ter um professor com uma formação de licenciatura, né? A formação de licenciatura, ela existe e a meu ver ela não tem que ser considerada como algo... como um penduricalho. Então a gente precisa que o professor tenha amadurecido ali algumas discussões referentes ao que acontecerá na sala de aula, como o que é a sala de aula, né? Porque senão ele vai entrar ali e vai se comportar como um palestrante, e a gente sabe que...

Pesquisadora Qual a sua visão sobre a forma como o conhecimento científico, a biologia é apresentada aos alunos?

Prof. Murilo

Aqui, mais uma vez, é uma visão singular, porque quando a gente discute de cota, sobre cotas com o estudante, por exemplo, eu tenho que falar pra ele que existe um artigo acadêmico mostrando que o desempenho de cotistas formando numa graduação, ele é melhor do que o não cotista. Porque se eu falar pra ele pura e simplesmente, ele não vai acreditar muito. Então, o estudante daqui ele tá acostumado com esse lidar, com periódicos, com esse lidar com periódicos, com essas diferentes publicações científicas. Os estudantes daqui, ele vai a congresso, a gente leva um número reduzido de estudantes, tá, no terceiro ano, eu sou um dos responsáveis por isso, junto a FESB, que é um congresso de várias sociedades de biologias experimentais. Então ele, não obstante, apresentar a monografia dele, que muitas vezes é mal vista pelos integrantes e pelos congressistas da FESB, porque ele muitas vezes não consegue fazer um experimento, porque ele não tem tempo. Eu fui orientador de uma menina há dois anos atrás, que ela tinha sido, eu acho que a segunda aluna que apresentou a monografia experimental. Tô indo agora para uma terceira, então eu tô aqui desde 2009... 2009, 10, 11, 12, 13, e até

248

agora, de vinte anos pra cá, você só teve três, quatro monografias experimentais. Mas ele tem contato a todo o momento com isso. Entram em sala, a todo o momento, profissionais que estão lidando com esses saberes, estão digerindo esses saberes e tentando torná-los mais palatáveis a esses estudantes. Eu mesmo faço isso com a minha disciplina técnica. Então, uma das minhas... a minha forma de avaliação pra conhecer estudantes, na minha disciplina técnica, é dividi-los em grupos e cada grupo vai apresentar um seminário, cuja base é um artigo científico, cuja base é um artigo de 2012, 2012 por exemplo. Ele vai lá e vai estudar determinadas proteínas presentes na célula da Entamoeba Histolytica, assuntos que lhes interessam. Então, eu peço pra que eles, vamos à biblioteca, vamos aqui conhecer o PUB médio, o CIELO, vamos pegar um artigo que vocês gostem, vamos apresentá-lo. Então eu tento fazer isso com o terceiro ano, mas sei que desde o inicio aí os professores estão tentando...

Pesquisadora Prof. Murilo...

Prof. Murilo Não sei se eu tô seguindo...

Pesquisadora Tá ótimo! Professor, como é apresentada a visão de ciência, da biologia para os seus alunos?

Prof. Murilo

A gente tenta desconstruir isso, né? Inclusive um dos componentes, uma das disciplinas que fazem parte desse eixo maior que a gente chama de IEP, aqui, uma das disciplinas é o chamado eixo ciência, onde ele vai fazer aí um resgate histórico, tá, do que a gente chama de ciência. Mas, dentro de uma instituição de saúde como é a Escola B, as ciências biomédicas, elas, muitas das vezes, é colocada como algo soberano, né? E eu vivo brincando com eles: “Pô, porque você vai no shopping, vai comprar um colchão com um cara que tá de jaleco?”. Então, a gente tenta discutir um pouco essa visão que a Escola B coloca muito como algo soberano porque tudo isso né, vem lá do positivismo e aqui a gente entende o mundo como só existindo uma verdade absoluta. Faz um recorte aqui nas ciências biomédicas, né? E a gente tenta mostrar pra ele, eu tento mostrar pra ele, vários outros profissionais, a escola oficialmente tenta mostrar pra esse estudante, que o conceito de eficiência talvez seja muito mais amplo que isso, né? E que não é demérito um conjunto de saberes não ser classificados como ciência, em vez de sociologia, sei lá, né, não vou meter muito na seara dos outros. Mas, ao mesmo tempo em que a gente tenta desconstruir isso, muitos dos nossos estudantes do curso de análises clínicas, eu acho que eles... acho que isso talvez não os pegue muito não. Eu acho que é tanto professor que entra colocando a minha ciência como algo acima do bem e do mal, que ele talvez saia daqui um pouco seduzido com essa ideia. Se ele for pra faculdade, ele vai ter essa ideia corroborada, né? Talvez ele só consiga desconstruir isso quando ele estiver lidando efetivamente com quem faz a ciência, conseguir entender que existem várias outras coisas que envolvem aí esse ambiente, do ego a ... enfim, uma série de outros pontos que podem ser analisados aí.

Pesquisadora Prof. Murilo, então, diante de tudo que a gente conversou aqui, da sua visão de ensino, o que pra você é um ensino de biologia de qualidade na formação profissional?

Prof. Murilo

O ensino... eu acho que qualquer ensino de qualidade, independente de biologia ou qualquer outro, é um ensino que esteja somando, agregando ali ao fomento de senso crítico desse estudante, junto com a autonomia intelectual dele. Ele tem que saber como ele vai encontrar as informações que ele está a fim, ele tem que saber perguntar, ele tem que saber problematizar aquilo, e tem que entender que não existe uma única verdade, você tem diferentes pontos de vista. Só que a biologia, ela é uma matéria meio ingrata talvez um pouco pra isso, porque a gente vive... não é uma ciência exata, talvez como com a matemática, ou a química, você vai ter sempre aquela resposta, é a ciência talvez das exceções, mas a gente é ainda muito regrado pelo método científico,

249

o método cientifico tá há mais de cem anos moldando aí a forma como a gente enxerga, né? Com todo valor, com todo respeito, meu mestrado, ele só se materializou graças ao método científico, graças às experimentações. Devemos valorizar, mas não devemos dar ao método científico o poder de estar definindo sobre tudo. Tô falando isso porque muitos dos alunos justificam pensamentos que a meu ver são um pouco equivocados, através do simples raciocínio lógico. Ora, muitos alunos falam: “Olha, se a favela tem bandido, se nasce muita gente na favela, por que você não tem ali um controle de natalidade?”. Muitos deles, quando ouvem a frase do Sérgio Cabral que “a favela é fábrica de bandido”, ou é “uma produção em massa de marginal”, acham que é isso aí, porque a partir disso é importante, devido a esse encadeamento, lógico, controlar a natalidade dos outros, né? Mesmo, aí eu falo pra ele problematizar, o Sérgio Cabral ele tem cinco filhos, ele pode falar o que, de quem? Então, tentar buscar alguma forma, a gente não dá senso crítico a ele, jamais. Mas, fomentar a usar a esse ponto aí, sei lá se é utópico ou não. Mas, os estudantes daqui eles são... aí, vamos voltar ao começo, quando eu comparo com os estudantes de ensino médio, de escola particulares de localidades classe média alta, você vê que o daqui ele está com algumas discussões dentro da mente dele muito mais amadurecidas, muito mais amadurecidas, entendeu? Então eu acho que é esse mosaico louco, estranho, de uma série de profissionais das mais diferentes origens, com suas diferentes formas de trabalho, seus diferentes entendimentos. E nós aqui somos além de uma escola que trabalha em regime integral, a gente orienta o estudante, então a gente tá em contato a todo o momento com os estudantes. Eu chego pra trabalhar aqui oito e meia da manhã, antes das nove já tem um aluno querendo tirar uma dúvida sobre uma lista de exercício que eu passei, ou querendo uma reunião de orientação, ou um aluno que vem entregar um projeto do qual vou fazer parte da banca. Então, nós estamos em contato a todo o momento com esses estudantes. Enquanto eu estava esperando você pra fazer essa entrevista, vieram dois, três alunos ali, tiraram algumas dúvidas comigo, conversaram algumas coisas. Então, esse trabalho fora de sala de aula, aqui dentro dessa escola, eu não sei se é isso, mas eu acho isso também um componente que auxilia a formação do cidadão.

Pesquisadora

E quando ele sai daqui formado como técnico para atuar no SUS, conforme você já disse, quando você avaliaria: “Esse técnico é um técnico que foi formado com qualidade”? O que você considera que seriam fatores de qualidade na formação dele?

Prof. Murilo

O aluno que sai daqui, ele sai com uma formação em análises clínicas. Ele sai com uma boa noção técnica, ele sabe fazer as técnicas básicas de uma maneira eficiente, o que já dá a ele toda a diferença quando ele chega em um laboratório com essa formação, tá? Primeiro que ele se destaca devido a má formação dos seus outros colegas, tá formado em diferentes lugares, não obviamente um técnico da Escola A, mas o técnico da Escola A e um técnico da Escola B dentro de um mesmo laboratório, eles vão ter ali o mesmo desempenho. Por quê? Eles além de saberem uma série de coisas, eles sabem como aprender, eles sabem como questionar, eles sabem como elucidar mecanismos, tá, presentes dentro daquela rotina dele, e ele sabe pensar em cima de determinado objeto, de determinado recorte. Isso pra ele faz toda a diferença. Isso pra mim sempre fez muita diferença, onde eu estivesse, com todas as minhas limitações e meus senões, mas isso pra Escola A, isso a Escola B, eu acredito que apresente aos estudantes e aí vai de cada maturidade, ao mesmo tenho também não tenho como não te falar, vão existir alguns aqui que vão sair e quando chegarem num local profissional não vão desempenhar um bom papel. Na Escola A, também não. Isso talvez vá... tem uma relação com a gente fazer tudo muito mais atropelado, fazer tudo muito mais a toque de caixa, não por incompetência nossa, ou

250

irresponsabilidade nossa, mas muito de acordo com a música que toca no background que a gente também é obrigado a dançar muitas das vezes. Mas, um técnico com qualidade, eu acho que é um técnico que entenda, não só o que acontece na bancada, mas o que acontece no entorno daquele laboratório que faz com que a saúde caminhe numa direção boa, ou por que demora tanto para algumas coisas, né? Então eu brinco muito com eles isso. A Doença de Chagas é uma doença que tem mais de cem anos de descoberta, mais da metade dos laboratórios da Fiocruz trabalham com Doença de Chagas. Como é que até agora a gente não teve nenhum avanço tão significativo? Somente a produção de um fármaco. Não foi da Fiocruz. Como é que uma doença que atinge um milhão e meio de pessoas no Brasil, e você tem Far-Manguinhos, você tem Bio-Manguinhos, você tem o Instituto Osvaldo Cruz, a UFRJ, você tem a USP, e ninguém até agora trabalhou de forma sinérgica, com todo o respeito, a biologia desse parasita, mas talvez a gente possa, tá, melhorar e muito a nossa forma de trabalho fora a bancada, fora aquele experimento, que nos permita aí atingir um patamar que a gente considere mais aceitável. Não sei se eu tô sendo claro naquilo que eu tô...

Pesquisadora Muito claro, professor, agradeço.

Prof. Murilo Quem agradece sou eu. Obrigado.

Pesquisadora Pela entrevista.

Prof. Murilo Quase uma sessão de análise profissional, né?

251

APÊNDICE 8 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, _________________________________________, após receber explicações orais da pesquisadora do Programa de Pós-graduação do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde em Educação em Ciências e Saúde (NUTES/UFRJ), estou ciente do(s):

1. Objetivo da pesquisa

Esta pesquisa tem como finalidade investigar os sentidos de qualidade da educação científica, na voz dos professores da educação profissional técnica de nível médio, considerando os diferentes horizontes sociais de cada professor.

2. Procedimentos

a. A coleta de dados da pesquisa será realizada por meio de uma entrevista. b. Para o registro das entrevistas será utilizado um gravador MP3, cujas gravações em áudio serão posteriormente transcritas por esta pesquisadora. c. Como foi informado pelo pesquisador, no início das atividades todos os sujeitos envolvidos na pesquisa terão garantia de que sua identidade será mantida em total sigilo.

3. Riscos e desconforto

Esta pesquisa não traz nenhum risco nem desconforto aos seus participantes, na medida em que não há possibilidade de danos a qualquer dimensão do ser humano (item II.8 e II.9, da resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde), pois os procedimentos acima descritos asseguram a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos sujeitos de pesquisa, dando garantia a estes sujeitos de que sua identidade será mantida em total sigilo durante todo o processo, tendo somente sua condição de professor das disciplinas de Ciências Naturais do Ensino Médio mencionada nos textos que divulgarão os resultados da pesquisa. 4. Garantia de recusa

Caso eu não queira participar de qualquer parte da pesquisa comunicarei aos pesquisadores do meu desejo de não participar e este será respeitado.

5. Garantia de acesso aos dados, resultados e ao grupo de pesquisadores

Sempre que considerar necessário tirar dúvidas, acessar dados e resultados, recorrerei à pesquisadora do (NUTES/UFRJ) pelo endereço eletrônico [email protected] ou pelo telefone: (21) 25626345 ou (21) 25626614. Sendo assim, consinto participar da pesquisa como está explicado neste documento.

_________________________________________

Local e data

Assinaturas:

__________________________________________

Participante

__________________________________________

Coordenação do Projeto

252

ANEXO 1 - MATRIZ CURRICULAR DO CURSO TÉCNICO DE QUÍMICA

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E

TECNOLÓGICA

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro

Campi Duque de Caxias, Maracanã, Nilópolis e São Gonçalo

MATRIZ CURRICULAR DO CURSO TECNICO DE QUÍMICA

INTEGRADO AO ENSINO MÉDIO – 2012

Anexo à Resolução ConSup nº 07 de 25 de janeiro de 2012.

Objetivo do Curso

Formar profissionais técnicos de nível médio da ÁREA PROFISSIONAL QUÍMICA, na habilitação Técnico em Química, de acordo com as tendências tecnológicas da região e em consonância com as demandas dos setores produtivos.

Perfil Profissional de Conclusão

O Técnico em Química apresentará competências e habilidades para atuar como analista de laboratórios de controle, de pesquisa e desenvolvimento e como operador e controlador de processos industriais, cuja base científico-tecnológica dos insumos, produtos e processos sejam a Química ou áreas afins.

Duração e Carga Horária do Curso

Duração do curso: 8 semestres. Total de horas do Curso Técnico: 3699 horas. Total de horas de Estágio Curricular: 480 horas.

Diploma

Diploma: Técnico em Química. Registro Profissional: Conselho Regional de Química. Área Profissional: Química

Base Legal: Decreto Federal no 5154/2004

Itinerário Formativo

As etapas do curso são seqüenciais. Não há terminalidades parciais. Após a conclusão do último período, o aluno receberá o diploma de técnico, com certificação do ensino médio, desde que tenha realizado, com aprovação, o estágio curricular.

Público Alvo

São candidatos ao curso Técnico de Química estudantes oriundos da 8ª série do ensino fundamental ou que já tenham concluído esse grau de ensino.

253

Períodos e Componentes Curriculares do Curso Técnico de Química

1º Período: Carga horária no período: 486 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL (h/a) CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira I T 4 54 Educação Física I T/P 2 27 Artes I T 2 27 Sociologia I T 2 27 Geografia I T 2 27 Filosofia I T 2 27 Matemática I T 4 54 Física I T/P 6 81 Biologia I T/P 6 81 Química Geral I T/P 6 81 Total 36 486

T = atividades teóricas P = atividades práticas 2º Período: Carga horária no período: 486 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL (h/a) CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira II T 4 54 Educação Física II T/P 2 27 Artes II T 2 27 Sociologia II T 2 27 Geografia II T 2 27 Filosofia II T 2 27 Matemática II T 4 54 Física II T/P 6 81 Biologia II T/P 6 81 Química Geral II T/P 6 81 Total 36 486

3º Período: Carga horária no período: 486 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL

(h/a)

CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira III T 4 54 Educação Física III T/P 2 27 Geografia III T 2 27 Matemática III T 4 54 Física III T/P 4 54 Química Orgânica I T/P 6 81 Físico-Química I T/P 6 81 Biologia III T 2 27 Química Inorgânica I T/P 6 81 Total 36 486

254

4º Período: Carga horária no período: 486 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL

(h/a)

CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira IV T 4 54 Educação Física IV T/P 2 27 Geografia IV T 2 27 Matemática IV T 4 54 Física IV T/P 4 54 Biologia IV T 2 27 Química Orgânica II T/P 6 81 Físico-Química II T/P 6 81 Química Inorgânica II T/P 6 81 Total 36 486

5º Período: Carga horária no período: 486 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL

(h/a)

CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira V T 4 54 Educação Física V T/P 2 27 História I T 4 54 Sociologia III T 2 27 Matemática V T 4 54 Inglês Instrumental I T 4 54 Química Orgânica III T/P 4 54 Química Analítica Quantitativa I T/P 6 81 Química Analítica Qualitativa I T/P 6 81 Total 36 486

6º Período: Carga horária no período: 486 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL

(h/a)

CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira VI T 2 27 Educação Física VI T/P 2 27 História II T 4 54 Inglês Instrumental II T 2 27 Estatística T 2 27 Bioquímica T 4 54 Química Analítica Quantitativa II T/P 6 81 Química Analítica Qualitativa II T/P 6 81 Síntese e Análise Orgânica T/P 6 81 QSST T 2 27 Total 36 486

255

7º Período: Carga horária no período: 405 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL

(h/a)

CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Língua Portuguesa e Lit. Brasileira VI T 2 27 Inglês Instrumental III T 4 54 Microbiologia T/P 4 54 Análise Instrumental I T/P 6 81 Tratamento de Dados T 2 27 Fundamentos de Metrologia T 2 27 Processos Inorgânicos T 6 81 Processos Orgânicos I T 4 54 Operações Unitárias T 4 54 Total 34 459

8º Período: Carga horária no período: 378 horas.

DISCIPLINAS

ATIVIDADES

CARGA HORÁRIA

SEMANAL

(h/a)

CARGA HORÁRIA

SEMESTRAL

(horas) Análise Instrumental II T/P 4 54 Instrumentação Industrial T 4 54 Processos Orgânicos II T 4 54 Processos Bioquímicos T/P 4 54 Processos Produtivos e Meio Ambiente T/P 2 27 Corrosão T 4 54 Operações Unitárias T 2 27 Total 24 324

Total de Horas do Curso: 3699 horas.

Total de Horas de Estágio Curricular: 480 horas.

256

ANEXO 2 – MATRIZ CURRICULAR DO CURSO TÉCNICO DE LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS

Objetivo:

Consolidar a Educação Básica, possibilitando o prosseguimento dos estudos e a preparação básica para o trabalho em saúde e para o exercício da cidadania, nos termos dos artigos 35 e 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, do Decreto 5154/2004, da Resolução Nº1/2005, na forma Integrada à Educação Profissional Técnica de Nível Médio.

Descrição:

A formação geral correspondente aos estudos do Ensino Médio como última etapa da Educação Básica. Os conteúdos da formação geral são organizados nas seguintes áreas de conhecimento: - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; - Ciências Humanas, Filosofia e suas Tecnologias. O processo de ensino-aprendizagem se baseia na problematização, contextualização e sistematização dos saberes teóricos; no desenvolvimento de saberes operatórios e na iniciação à cultura do trabalho e da investigação científica, por meio de atividades disciplinares e interdisciplinares.

A quem se destina:

Alunos que já tenham concluído o ensino fundamental.

Carga Horária:

4 anos

Titulação:

Diploma de conclusão da Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na habilitação cursada.

Disciplinas:

Biologia

Educação Artística (Música, Teatro, Artes Plásticas e Visuais e Produção de Audiovisual)

Educação Física (Desporto ou Expressão Corporal)

Filosofia

Física

Geografia

História

Língua Estrangeira (Inglês ou Espanhol)

Língua Portuguesa

Literatura Brasileira

Matemática

Química

Sociologia

257

Componentes curriculares específicas Curso Técnico em Análises Clínicas (Biodiagnóstico)

Série Disciplina CHT

1 Animais de Laboratório 45

1 Técnicas Básicas em Laboratório 60

1 Boas Práticas Laboratoriais e Biossegurança

30

1 Manutenção Preventiva 45

1 Fundamentos de Química Analítica 60

1 Morfologia 120

1 Iniciação a Educação Politécnica (IEP)

240

Total 600

Série Disciplina CHT

2 Bioquímica 120

2 Biologia Molecular 60

2 Técnicas Histológicas 120

2 Imunologia 60

2 Hematologia 60

2 Fluidos Corporais 30

2 Bioestatística 30

2 IEP 120

Total 600

Série Disciplina CHT

3 Protozoologia 45

3 Helmintologia 45

3 Micologia 30

3 Virologia 45

3 Bacteriologia 45

3 Estágio 300

3 IEP 90

Total 600

Total incluindo estágio: 1800 horas Total sem estágio: 1500 horas