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O herói caboclo Reconto do invencionário popular Mônica Machado Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras - 2º semestre de 2007 Há quem defenda que “os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses”. — Roque de Barros LARAIA, Cultura, um conceito antropológico

Machado, M - O herói caboclo

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Monografia apresentada a Auto Lyra Teixeira, na Letras, UFRJ.

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  • O heri caboclo

    Reconto do invencionrio popular

    Mnica Machado

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Faculdade de Letras - 2 semestre de 2007

    H quem defenda que os brasileiros herdaram

    a preguia dos negros,

    a imprevidncia dos ndios e

    a luxria dos portugueses.

    Roque de Barros LARAIA, Cultura, um conceito

    antropolgico

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    Advertncias de pensamento, de teorias

    e as graas do texto

    Para entrarmos logo no assunto, declaro-me, de incio

    descrente que algum algum dia tenha contado, cantado ou

    emprestado a Ilada ao povo de Regncia. Digo logo de incio

    porque no tenho a menor inteno de fazer estudo nenhum

    voltado para este ou para aquele texto primeiro, inicial.

    Aqui trato de uma breve comparao entre a contao da

    histria do caboclo Bernardo e a contao da histria de

    Aquiles e de sua ira.1 Isto porque os dois surgiram heris

    necessrios a suas gentes. Porque so seus heris carregam de

    si e da gente o que lhes cabe e o que todo heri precisa

    carregar, um bocado da histria, um bocado da crena, um bocado

    de lembrana e outro tanto de inveno.

    No acredito que o povo tenha criado o caboclo Bernardo

    (1859-1914) baseado em ningum seno em seus prprios desejos e

    segundo sua prpria formao cultural. Assim, de uma maneira

    lgica, reconheo, logo de incio, admitir que o povo heleno

    1 Neste momento fundamental interromper a leitura e assistir Assim caminha Regncia. (S, 2005)

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    tenha tambm, talvez da mesma maneira, criado seu heri

    Aquiles.

    Os povos, por razes mais culturais, religiosas e humanas,

    criaram as histrias de seus heris, o Bernardo e o Aquiles.

    Seus livros-arquivos so de memria e msica, so religiosos,

    so o conjunto de seus conheceres, saberes, dvidas e vontades.

    A necessidade desses povos, os dois, o grego e o capixaba,

    era fixar-se, precisavam fundamentar-se em algo. Eu, aqui,

    privilegio os livros de nossa cultura. neste frescor

    primeiro e primitivo, de produo demasiadamente humana que me

    interessa explicar a gnese da arte potica.

    As criaes (lenda, mito, histria, epopia) desta gente

    que lhes asseguram a imortalidade. Juntaram sagas, lendas,

    mitos de origens variadas incorporados a conjunto cada vez mais

    complexos (NUNES, s/d, p. 7); tanto a histria do caboclo

    (ainda vrias) quanto a do heri Aquiles so ambas um apanhado,

    um livro tradicional em que muitas geraes trabalharam.

    A Ilada, um dos mais antigos monumentos da literatura

    grega, de tradio oral, de origens diversas e tambm,

    contada em episdios.

    Trabalho com a histria de caboclo Bernardo colhida dos

    relatos de seu Mido, da crnica de Rubem Braga (1949) e de

    diversos outros relatos do documentrio (S, 2005) e o que no

    est nos livros me contou o moo Hauley Valim, em vrias

    manhs, tardes e noites, aqui mesmo, longe de tudo quanto

    soubemos. A fonte da Ilada uma s, a traduo de Carlos

    Alberto Nunes (1 edio de 1962), em verso; os complementos

    que vm das aulas nas trs disciplinas durante o semestre.

    O caso aqui so as proximidades ficcionais brasileiras to

    chegadas histria do heri Aquiles, na cultura do povo

    heleno, quanto histria cantada do caboclo Bernardo. A

    histria a mesma, sempre; os atores que mudam (MEIRELES,

    2007).

    Escolhi voltar-me para Fundamentos da Cultural Grega e

    Fundamentos da Cultura Brasileira e sustentar-me pelos estudos

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    de Literatura Comparada exatamente porque no h estudo que eu

    conceba apartado de seus pares.

    Procurando rastrear o processo de formao da

    Ilada (...), nada mais fazemos, de fato, do que

    tentar surpreender os mistrios em nosso ntimo, da

    prpria gnese da poesia. (NUNES, s/d)

    Na mitologia: o caboclo tem origem nobre (obviamente pela

    maneira enviesada brasileira); D. Pedro I, em suas viagens pelo

    rio Doce procura do Eldorado, encontrava-se com a irm do

    caboclo Bernardo, este, portanto, cunhado do imperador.

    Aquiles filho da ninfa Ttis e do rei Peleu.

    O mito do caboclo pico, herico, episdico e religioso.

    Mito narrativa de acontecimento passado e de histrias

    fabulosas de comunidades juntas para festejar, aprender e

    comercializar.

    Na epopia da ira de Aquiles,

    as cenas mais profundamente humanas, que se

    afirmam como criaes de beleza inexcedvel, so

    justamente as de criao livre que independem de

    tradio histrica ou que possam ser consideradas

    sublimao das gestas (). (NUNES, s/d)

    O mito no diz uma verdade, o mito, na realidade, tem sua

    maneira prpria de dizer as coisas. Os gregos provavelmente

    criaram o teatro na percepo de que no ramos apenas razo,

    mas f e festa. Nossas relaes entre razo e paixo que nos

    equilibram. A teatralidade foi necessria figurao do eu,

    impostao designadora da pose. Para Hesodo, e com belo

    exemplo em Os trabalhos e os dias, as relaes de poder esto

    atreladas ao dinheiro. Na disputa com o irmo, Hesodo, quer

    mostrar aos juzes que apenas o canto das musas pode mostrar

    aos homens a verdade. Uma questo inexplicvel basicamente

    respondida pelo mito, a lenda se encarrega de enfeitar a

    histria.

    Segundo o dicionrio Houaiss, o heri 1) o mortal

    divinizado aps sua morte, segundo a acepo mitolgica, por

    seus feitos guerreiros, pela heroicizao; 2) homem dotado de

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    coragem, tenacidade, abnegao, magnanimidade; que suporte de

    maneira exemplar sua sorte incomum; 3) quem arrisca a vida pelo

    dever em benefcio de outrem; 4) figura central de um perodo

    histrico, quem desperta enorme admirao.

    A epopia conta do incio ao fim a histria de um povo. A

    poesia didtica de seu Mido se aproxima mais da de Hesodo,

    historiogrfica, mas mesmo ainda fabulosa.

    Por fbulas e mximas da sabedoria popular se fizeram os

    primeiros cantos. Os poemas homricos so obra coletiva. A

    lenda cantada e representada do Caboclo Bernardo tambm. A

    oralidade escrita, a leitura em voz alta e a representao

    teatral caracterizam as duas poesias, a grega e a brasileira.

    A diviso da Ilada em cantos, especificamente os cantos IX

    e XIX, na forma, quase atesta que no foi espontnea a criao

    da epopia, houve trabalho para juntar as pontas. Acontece

    criao popular na histria do Caboclo Bernardo, o sujeito fica

    indeterminado repetidas vezes, , como a Ilada, de nascimento

    annimo, se forma por si mesma e cresce como as plantas (NUNES,

    s/d, p. 31).

    As primeiras narrativas e aventuras que basearam o pico do

    heri Aquiles, j Nunes (s/d) admitia, estavam dispersas em

    episdios. A juntada das narrativas brota mais da fantasia do

    poeta que de fatos propriamente histricos. A Ilada um poema

    fundado em vasto material preexistente, poesia, canto, lenda e

    histria foram usadas na composio do conjunto. De maneira que

    a Ilada, pelos estudos de Nunes (s/d) pode ser a juno feliz

    de outros tantos casos. A pequena Ilada, a Tomada de lio,

    a Amaznia. Alguns trechos esparsos justificam o retorno de

    Aquiles guerra, Tria sitiada, para vingar Ptroclo ou

    Antloco. (NUNES, p. 25). Umas curiosas partes at sugerem

    atualizaes posteriores: antes, muito antes de Enas estar de

    compromisso com a Eneida, Posdon, na Ilada, sugere que Apolo

    preserve e proteja o heri da histria posterior.

    Herdoto (apud LARAIA, 2000) diz

  • 6

    se oferecssemos aos homens a escolha de todos os

    costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem

    melhores, eles examinariam a totalidade e acabariam

    preferindo os seus prprios costumes, to

    convencidos esto de que estes so melhores do que

    todos os outros.

    Caboclo o nascido de ndio e branco, de pele morena e

    cabelos lisos, de fsico e modos desconfiados, retrados. No

    tempo em que viveu o caboclo Bernardo (S, 2005) os ndios

    botocudos estava acuados pelo poder do imprio, no eram parte

    dele, no eram reconhecidos brasileiros.

    S algum especial para vencer o mal, o mar, lugar dos

    bichos medonhos. O predestinado, era de quem precisava o povo

    de Regncia: pelo assoreamento do rio Doce comeou a faltar

    peixe; pela proteo e proibio de pescar tartarugas na praia,

    o povo de Regncia precisava ir pescar no mar. A boa hora e o

    grande mote so: se o caboclo pde, podemos ns todos tambm,

    com a proteo dele. Os povos externos, os invasores, do rio

    foram, basicamente, a Aracruz Celulose e o projeto Tamar. Havia

    lutas polticas na Grcia no sculo VI, aqui no Brasil, desde

    alguns sculos atrs o povo da foz do rio Doce foi perdendo sua

    gua e sua pesca. Lutar politicamente possvel, sim, mas na

    prtica a teoria outra. Na prtica, o povo quem se

    reconhece, era necessria a readaptao.

    Depois de cantadas as proezas dos heris os cantadores

    passam a cantar as proezas de seu filho, h uma sugesto de

    proximidade com o romance de cavalaria medieval. Assim como

    Aquiles no deixou filhos, mas o povo grego; Regncia no tem

    filhos de Caboclo Bernardo, todo o povo capixaba seu

    herdeiro.

    Este invencionrio traz um pequeno recorte ltero mtico e

    musical brasileiro sobre o caboclo Bernardo. Seu mito oral,

    religioso, voltado para o mar, lugar dos bichos medonhos. A

    forma da escritura do caboclo pode ser mesmo provavelmente a

    usada pelo povo grego para a Ilada, na voz de Homero. Este

    ato, o ato esttico, o mais alto da razo (LINS, 2007).

  • 7

    O trabalho de antropologia tem suas variedades. Aqui trato

    de perseguir algumas indicaes do pensamento popular e do

    invencionrio brasileiro, das histrias criadas por nosso

    empenho autarcizante (COUTINHO, 2007). Em LARAIA (2000, p. 34)

    h uma idia de que a cultura desenvolve-se de maneira

    uniforme, de tal forma que era de se esperar que cada sociedade

    percorresse as etapas j percorridas por outras mais avanadas,

    num evolucionismo simples. Discordo. O intervalo grande

    demais, de tempo, de terra e de texto.

    Em Claude Levi-Strauss, cultura tudo o que no natureza,

    cultura sistema simblico, criao acumulativa da mente

    humana, seu trabalho tem sido o de descobrir na estruturao

    dos domnios culturais mito, arte, parentesco, linguagem os

    princpios da mente que geram estas elaboraes culturais (apud

    LARAIA, 2000). O homem se espanta e com o espanto vem a pergunta

    de si e, logo, segue a resposta (sim), da est criado um

    evento de cultura (COUTINHO, 2007).

    Pela cultura o homem liberta-se dos limites da natureza. O

    heri Aquiles bravo enfrenta os muros de Tria para vingar a

    morte de Ptroclo, o mito criado permite todo jovem aqueu

    entrar nas cidades e tambm, quantas vezes for necessrio,

    lutar e vingar quantas vidas puder, em primeiro a sua.

    Pela cultura o homem liberta-se dos limites da natureza. O

    Caboclo Bernardo bravo enfrenta o mar para salvar os irmos, o

    mito criado permite a todo jovem pescador entrar no mar e

    tambm quantas vezes for necessrio salvar quantas vidas puder,

    em primeiro a sua.

    O que precisamente singular no espao brasileiro a

    conjuno da escrita do cenrio com o cenrio real. Seu Mido

    faz a conjuno e ainda d outras pistas: a mitologia do

    caboclo permite o mergulho no mar, o reconhecimento do imprio

    e a justificativa da vida de todos. O culto brasilidade.

    Desta forma o povo cria seu heri em seu prprio e necessrio

  • 8

    ambiente, no serve a abstrao lingstica, o povo prefere a

    apropriao do heri.

    Havia necessidade do povo de Regncia em reconhecer-se,

    conseguir designar a noo da minha terra. O tal empenho em

    fazer-se, o empenho autarcizante, desperta as histrias do

    povo, do farol, do Eldorado e reconstri ou rene a

    historiografia da foz do rio Doce, transformada de espao

    meramente locativo para espao fundamentalmente genitivo.

    (PORTELA, apud COUTINHO, 2007). A grande significao eram idias

    acerca das novas funes a serem assumidas pelo humano. Nossa

    modernidade literria colocada na nossa nacionalidade

    literria.

    Assim como os poemas de Homero so basicamente a

    cristalizao da poesia oral dos helenos, a histria do caboclo

    Bernardo ; mas principalmente est se fazendo, ainda h

    verses e debates, ainda h, entre os velhos, a sensao da

    memria mais prxima. O texto se achega pelo caminho da

    oralidade, o repentista cantador da vila de Regncia encadeia o

    canto.

    A guerra contra Tria pode ter sido apenas uma figurao de

    todos os conflitos, as muralhas de Tria podem ter sido a

    figurao do inimigo insupervel. De modo que a bravura do

    caboclo contra o mar, lugar dos bichos medonhos, em noite de

    tempestade, pode ser tambm a figurao das adversidades do

    povo da vila de Regncia. Caboclo Bernardo era a superao do

    medo do mar, a criao da coragem de viver do mar.

  • 9

    Aproximaes hericas e simblicas,

    os feitos e os contados

    Cunhado de D. Pedro. Foi assim que se estabeleceu a origem

    nobre de caboclo Bernardo. O povoado de Regncia fica na foz do

    rio Doce. Segundo a lenda dos povos de l, D. Pedro I, curioso

    como era, andou pelo rio Doce atrs do lugar encantado

    Eldorado, do mesmo jeito que andou todo mundo naquelas bandas e

    naqueles tempos. O caso que, num de seus passeios, o

    imperador encantou-se com as douradas ondas dos caminhares de

    uma ndia. Era a irm do caboclo Bernardo. Para bom brasileiro,

    agregado j casado, fez-se ento o caboclo cunhado de D.

    Pedro.

    O caboclo agentou quarenta minutos de soco em uma briga

    que teve com o irmo (S, 2005). Era dos botocudos. Seu povo

    malvisto pela Coroa, habita o bico de Regncia, na ponta bem

    dentro do mar.

    Lugar dos bichos medonhos, o mar est simbolicamente para as

    mulheres e para a maldade, a manha. O mar a sexualidade

    feminina? As barcas dos gregos quase foram afundadas no mar

  • 10

    Egeu, o mar quem ameaa envolver, tragar, sugar o homem? Deve

    ser a mulher-mar?

    Na mitologia a Noite era a escurido primordial, feminina,

    da Noite veio o Dia, ela anterior, geradora e matriz. A

    presena do corpo feminino assim como a nossa origem ndia e

    negra constituem referncias fundamentais acerca de nossa

    cultura. Os aqueus e os capixabas so povos da cultura do mar.

    Outro trao caracterstico do homem grego: o apego a objetos

    de valor. No difere quase de nosso povo, desde o mais humilde

    pescador at a mais graciosa noiva, todos aqui se derramam pela

    beleza e nobreza dos objetos de valor.

    Ora, tia Mariquinha e Briseida so as duas mulheres

    cultuadoras, uma de Apolo, outra do Caboclo. Interessa ignorar

    a diferena de idades das mulheres e destacar sim suas

    competncias religiosas para a manuteno dos mitos.

    Enquanto na Ilada h tradies militares das tribos, na

    histria de caboclo Bernardo o costume festejar o nascimento

    do heri com Congo, de ganzaca e batuque. Um dos grandes

    propsitos dos guerreiros aqueus era fazer desaparecer da face

    da terra a construo gigantesca, o muro de defesa de Tria. Os

    deuses se incumbiram deste desmonte.

    A recitao da Ilada e da Odissia acontecia anualmente em

    festejos pblicos, em episdios, na seqncia natural da

    fabulao do aedo. Eram recitados os feitos do heri e

    invocados os deuses para novamente o povo lembrar e cantar sua

    fora (NUNES, p. 31). Nas comemoraes do caboclo h um grande

    festival invocatrio.

    O congo ocorre principalmente em comemoraes

    religiosas. () De origem popular (registros antigos

    apontam o surgimento do congo para cerca de 200

    anos), as msicas do congo mostram nas letras das

    cantigas tradicionais vrias referncias da formao

    do povo brasileiro, como a escravido, a

    religiosidade, o cotidiano e a ligao com o mar

    como fonte de vida e caminho para nova vida.

    (ILHANDARILHA, 2007)

  • 11

    Os heris aqueus tinham armas fabricadas por deuses. No

    congo bem mais prxima de ns a fabricao.

    As bandas utilizam instrumentos de percusso

    feitos, em geral, pelos prprios msicos com

    materiais acessveis a eles, como barricas, pau oco,

    taquara, peles de animais e folhas-de-flandres. Os

    instrumentos utilizados so os tambores, as caixas,

    a casaca2 e a cuca. A casaca () do congo capixaba

    tem uma caracterstica nica que o detalhe da

    cabea talhada em madeira no alto do instrumento.

    Como os tambores em geral so pesados (originalmente

    eram feitos de tronco de rvore oco, ou pau oco), os

    tocadores de tambor sentam-se sobre eles,

    modificando, assim, sua sonoridade. O mestre ()

    utiliza, ainda, uma espcie de megafone primitivo,

    feito de folhas-de-flandres, para amplificar sua voz

    e marcar o ritmo das canes. (ILHANDARILHA, 2007)

    Entre uma apresentao e outra do aedo ou de Seu Mido (o

    responsvel pela preservao da histria e da memria do

    Caboclo Bernardo) persiste a histria na memorizao, no

    pensamento criativo mais ainda. As musas pela memria constroem

    a tradio; juntas consubstanciam a identidade do povo grego e

    do povo capixaba.

    A poesia cantada da histria recitada que propicia a

    reunio para ouvir. A cano mtica estabelece a participao

    do cidado em sua comunidade. As moas do congo, as musas do

    canto, so filhas de Zeus (deus maior, pai de todos) e de

    Mnemosine (a memria). Calope a da bela voz. pura

    oralidade, corpo, gestual, dana. Os dons das deusas

    afastam os homens da cidade de toda a aflio da amargura e do

    sofrimento do dia-a-dia. Clio (glria, musa da histria);

    Euterpe (alegria, musa da msica); Tlia (festa, musa da

    comdia); Melpmene (danarina, musa da tragdia); Terpscore

    (alegria-coro, musa da dana); Erato (amorosa, musa da poesia

    lrica); Polmnia (hilria, musa da oratria e do canto);

    Urnia (celeste, musa da astronomia). Assim como no h um

    2 O canz, ou a ganzaca, tem origem africana, instrumento de bambu

    grosso, tem ranhuras horizontais que lhe garantem o som prximo ao do reco-

    reco, um bocado mais grave.

  • 12

    grego puro, mas vrias etnias unidas pela forma da linguagem e

    pela cultura reconhecidamente helnica no h nem questo sobre

    a mistura originria do povo de Regncia, portugus, negro e

    ndio.

    Mrio de Andrade instala a ambgua pluralidade de nossa

    formao cultural em um de seus escritos: somos a soma de 300

    culturas e no nos identificamos mais com nenhuma delas, somos

    nossa prpria cultura brasileira.

    As musas so as danarinas do congo ao som dos tambores e da

    ganzaca? So elas que evocam os deuses e sadam os antepassados

    todo dia 3 de junho, a cada ano?

    Na noite, acontecia uma pausa natural da narrativa; os

    ouvintes que se dispersavam para suas casas, ao cair da noite,

    levariam a certeza da prxima derrota dos Aquivos (NUNES, s/d,

    p. 34).

    Aquiles soube pela me que se voltasse luta teria uma vida

    curta e gloriosa, se desistisse teria uma velhice apagada. Na

    praia, antes do resgate dos portugueses, a me de caboclo

    Bernardo o avisa: se mergulhar ele morre. O caboclo escolhe

    arriscar a prpria vida para salvar os nufragos.

    Aquiles tinha um ponto vulnervel no p, o caboclo era

    vulnervel em casa (pior, sentado na beira da cama, comendo

    banana).

    Na Ilada, Aquiles morre porque distraiu-se e deixou

    desprotegido o p, o calcanhar exposto era seu ponto fraco, sua

    certeza de humanidade.

    Em Regncia, o heri caboclo foi assassinado exatamente

    quando merecia a pausa do fim do dia, a grande fragilidade do

    pescado a terra, na volta do mar. Enquanto a mulher cozinhava

    o peixe pescado, o caboclo se senta na beira da cama, descansa,

    pega uma banana para comer e , ento, assassinado com um tiro,

    covardia.

    necessria a marca do maravilhoso, do extraordinrio, uma

    marca que singulariza que diferencia a coisa ou o evento

  • 13

    ameaador ao heri e a seu povo. A monumental construo dos

    muros de Tria era a maravilhosa fora antagnica de Aquiles. O

    antagonista do capixaba era marcado pela inveja.

    O assassino de caboclo Bernardo descrito como uma das

    piores criaturas do mundo: mal encarado, de ar ruim, com cara

    de gamela, de voz monstruosa. Chamou o caboclo de macaco

    comendo banana sentado na beira da cama. Claro, ningum apenas

    ruim poderia dar conta do heri, era necessrio o pior dos

    homens. Alm de todos os defeitos o assassino agiu por inveja.

    Seu Mido diz Caim matou Abel por inveja (S, 2005). No

    naufrgio, apenas o caboclo foi quem pulou no mar, foi o nico.

    A inveja o pior dos males.

    O grande detalhe, Aquiles e caboclo Bernardo foram mortos

    traio, nos momentos do descanso, longe do campo de batalha, o

    um, e do mar, o outro.

    O caboclo nadou quatro vezes para a ponta em que estava

    presa a caravela, apenas na quinta vez a alcanou e salvou 128

    pessoas de morrer no mar bravio. H alguma relao com o fato

    de, por trs vezes, Ptroclo arremeter contra os muros de Tria

    e, apenas na quarta vez, Apolo intervir e tirar dele o elmo

    protetor. Apolo deixou Ptroclo ser ferido por Euforbo e

    finalmente ser assassinado por Heitor.

    O caboclo Bernardo salva portugueses, condecorado, vai

    corte receber sua medalha e volta com a garantia ao seu povo do

    reconhecimento pelo reino da existncia da regio e de fiis

    seguidores do Imprio. O caso que antes, pouco at, o Imprio

    perseguia os botocudos. O Caboclo era botocudo, assim como todo

    o povo de Regncia. O Caboclo, por seu povo indgena se deixa

    dobrar a normas, etiquetas e hierarquia. O caboclo, por seu

    povo portugus, se joga ao mar em fria. Nas palavras de seu

    Mido: Vou salvar o povo portugus que meu irmo de sangue.

    A me diz No v, meu filho, voc vai morrer!

  • 14

    A medalha do Caboclo ningum sabe onde est, ningum sabe o

    fim que teve. Palpites todos tm. J derreteu e virou

    dentadura est com os poderosos da regio que se negam a

    entregar coisa to valiosa a um museu e jamais admitiro o modo

    como tiveram a medalha O prprio Caboclo trocou a medalha por

    cachaa Da condecorao pela princesa Isabel deveria ter

    sobrado a medalha, como prova e cone valoroso. Ningum sabe o

    paradeiro da medalha, mas h quem acredite que ele mesmo no

    lhe deu valor. Trocou por cachaa. Seu Mido no acredita. Um

    bandido, talvez o mesmo que matou o heri, roubou a medalha.

    H uma escola construda com o dinheiro que rendeu a venda

    dela. A medalha est na mo dos poderosos da regio, se

    mostrarem admitiro o malfeito e perdero a posse. J deve ter

    derretido, deve ter virado dentadura. Regncia resiste.

    Seu Mido chama para cantar, poderia tranqilamente chamar

    para louvar. Seu Mido usa desta autoridade do velho pedagogo.

    Seu Mido quem protege, venera e cuida de Caboclo Bernardo, e

    um demiurgo, que trabalhava para a comunidade, assim como Tia

    Mariquinha, no culto da casinhola e a administradora do museu,

    na preservao do acervo. Na tragdia grega h sempre um velho

    a que do o nome de pedagogo. (NUNES, p. 15)

    O cantador da vida de caboclo Bernardo um missionrio, tem

    em si vrios causos ainda a contar. Anjo da guarda, carinhoso,

    conhecido zelador do caboclo, seu Mido d e pede retorno,

    confia que o caboclo lhe reservar um lugar no cu. No dia do

    julgamento, seu Mido, cantador, ainda espera conhecer o

    caboclo, a me, o pai, que nunca viu. Esta veia religiosa do

    cantador de guardar a memria e de resistncia. Seu Mido

    conta que abaixaram ele e o companheiro num centro esprita,

    para as bandas de Minas Gerais.

    A hierarquia e a ancestralidade so indispensveis

    formao do heri.

  • 15

    Assim , com o Caboclo Bernardo, a fixao da identidade,

    com seu Mido e tia Mariquinha dizer que inventaram o

    inexistente pelo folclore reduzir a complexidade esttica dos

    smbolos da gente. Murais e painis artsticos e festas, dana

    e figurino, modos de resistncia e superao aos modos raros de

    no percepo do mundo.

    Em 1887, o caboclo morreu e foi enterrado como heri. At a

    Marinha o reconhece por heri e modelo. O caboclo Bernardo foi

    resgatado da vida apagada, tornou-se heri por sua morte.

    Aquiles deveria tambm viver at a velhice calma e apagada, se

    no retornasse a Tria, viveria por muito tempo ainda, mas foi

    chamado pela ira. Recusou os conselhos da me, Ttis.

    No podemos jamais acreditar no unitarismo integral depois

    de saber das criaes e do invencionrio do povo de Regncia, a

    obra coletiva assim como cada bandeirinha na festa anual do

    caboclo foi cortada, colada e hasteada por uma mo

    imediatamente, ajudada por todas as outras, juntas.

    Entre saber o que sei, acreditar no que sei e confiar no que

    sei h uma distncia enorme; esta distncia a da criao de

    meus mitos.

    Aprendo, aceito e acredito nos ensinamentos dos ancestrais e

    fao aqui apenas um apanhado do que foi inventado pelo povo

    litorneo, matuto, praieiro, ribeirinho, brasileiro.

  • 16

    Referncias bibliogrficas

    BRAGA, Rubem. Caboclo Bernardo. In Crnicas do Esprito

    Santo. Datado de fevereiro de 1949. Morro do moreno,

    acessado em 20 de novembro de 2007.

    (http://www.morrodomoreno.com.br/especial11.htm)

    COUTINHO, Luiz Edmundo Bouas. Curso de Fundamentos da Cultura

    Brasileira. Anotaes de aula. Rio de Janeiro: UFRJ, 2

    semestre de 2007.

    HOMERO. Ilada. Traduo de Carlos Alberto Nunes. 3 edio (1

    edio, 1962). So Paulo: Melhoramentos, s/d.

    ILHANDARILHA. Congo das Paneleiras. Vitria: Overmundo, 29 de

    agosto de 2007. (www.overmundo.com.br/over-blog/congo-das-

    paneleiras)

    LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropolgico.

    15 edio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

    LINS, Ronaldo Lima. A construo e a destruio da esttica.

    Palestra de abertura do seminrio Ps-modernismo: a arte na

    cena contempornea. Em 3 de outubro de 2007.

  • 17

    MEIRELES, Teresa Cristina. Curso de Literatura Comparada.

    Anotaes de aula. Rio de Janeiro: UFRJ, 2 semestre de

    2007.

    NUNES, Carlos Alberto. A questo homrica. In Ilada. 3

    edio (1 edio, 1962). So Paulo: Melhoramentos, s/d.

    S, Ricardo. Assim caminha Regncia. Rio de Janeiro: DOCTV,

    2005. O documentrio conta a histria do caboclo em suas

    criaes e verses; tudo na responsabilidade de Seu Mido, o

    mantenedor da memria; teve como consultor Hauley Valim,

    capixaba, graduado em Teologia, licenciando em Cincias

    Sociais e mestrando em Cincias da Religio pela

    Universidade Metodista de So Paulo (UMESP).

    TEIXEIRA, Auto Lyra. Curso de Fundamentos da Cultura Grega.

    Anotaes de aula. Rio de Janeiro: UFRJ, 2 semestre de

    2007.

    VALIM, Hauley. Caboclo Bernardo. Wikipdia, acessado em 21 de

    novembro de 2007.

    (http://pt.wikipedia.org/wiki/Caboclo_Bernardo)

  • 18

    O caboclo Bernardo

    (Rubem BRAGA, 1949)

    Parece que no tinha nenhum sangue europeu; era apenas um

    ndio, com seu nome cristo de Bernardo Jos dos Santos. Era

    alto, de espduas largas, a cara grande. Vejo numa gravura da

    poca sua basta cabeleira negra, e um bigode ralo que lhe cai

    pelo canto da boca, no feitio mongol. A cara enrgica e

    suave, e as sobrancelhas finas se unem no centro, sob uma

    ruga vertical na testa; suas extremidades descem, numa curva

    em que se l obstinao.

    O caboclo Bernardo est com 28 de idade no dia 7 de setembro

    de 1887. nascido ali mesmo onde vive, no povoado de

    Regncia Augusta, antiga Barra do Rio Doce e como seu pai,

    o velho Manduca, conhece o rio, o mar, e a mata. Foi naquele

    7 de setembro, uma e quarenta da madrugada, sob um raivoso

    sudoeste e grande escurido, que o cruzador Imperial

    Marinheiro, um dos mais novos barcos da Marinha de Guerra

    Brasileira (deslocamento, 726 toneladas; boca, 8m27; calado

    3m40; mquina 150 cavalos; marcha horria 11 milhas;

    armamento, 7 canhes de 34 e 4 metralhadoras, com 142 homens

    a bordo), chocou-se contra o pontal sul da barra do rio Doce,

    a 120 metros da costa. Foi arriado um escaler com 12 homens;

    o mar arrebentou o escaler, mas 12 homens chegaram s 2 da

    madrugada cabana do patro-mor da barra para pedir socorro.

    No escuro, e sem nenhuma embarcao diante do mar furioso, os

    homens ficaram na praia enquanto o mar esfrangalhava o

    cruzador. Quando veio a luz do dia os nufragos estavam

    reunidos nas partes mais altas, ainda no submersas, do

    barco, e os tubares rondavam entre as ondas encapeladas.

    O caboclo Bernardo jogou-se ao mar tentando levar at o

    cruzador um cabo de espia. Luta contra as ondas, mas jogado

    na praia. Tenta ainda uma vez, e volta novamente, depois de

  • 19

    uma luta terrvel contra a fora das guas. Sua me, uma

    cabocla velha, pede-lhe para no insistir, mas ele se lana

    ainda ao mar. Parece que da primeira vez teria levado o cabo,

    excessivamente pesado, amarrado cintura; de outra o

    amarrara sua rede, com tremalhos de cortia, ou a uma linha

    de pescar, que puxaria pelos dentes. O fato que luta em vo

    contra as guas aoitadas pelo vento; e regressa praia

    exausto. Os nufragos olham tudo aquilo com angstia. O

    caboclo Bernardo se desvencilha dos braos dos que querem

    det-lo e entra no mar pela quarta vez. Nada com desespero em

    direo ao navio, mas no avana; pouco depois jogado

    areia. Levanta-se e volta. S ento, pela quinta vez,

    consegue chegar at o navio com o cabo salvador. Forma-se um

    cabo de vai e vem, e os marinheiros saltam de bordo agarrados

    a ele para chegar em terra. Muitos o conseguem. Outros,

    enfraquecidos pelas horas de tormenta, no resistem e morrem.

    O caboclo Bernardo joga ento ao mar a nica embarcao que

    resta, uma pequena chalana. Pede dois marinheiros para ajud-

    lo, e ligando essa chalana ao cabo leva os nufragos para

    terra, de dois a dois. De vez em quando a chalana vira; o

    caboclo Bernardo, com seus dois companheiros, cai na gua

    para desvirar a embarcao e segurar os nufragos. Trabalham

    assim durante horas, at que o mar despedaa de uma vez a

    chalana. Havia ainda 13 homens a bordo, que afinal se

    salvaram em uma jangada improvisada, agarrando-se ao cabo.

    Graas ao brutal herosmo do caboclo Bernardo foram salvos

    128 homens em um total de 142.

    Estas notas eu as extraio do livro do Sr. Norbertino Bahiense

    O Caboclo Bernardo e o Naufrgio do Imperial Marinheiro, que

    acaba de ser publicado em Vitria; e o que no est no livro

    me contou o velho Meireles, numa destas manhs de chuva e

    sudoeste, ali mesmo na Barra, onde tudo assistiu. Deixo para

    outra crnica o resto da histria desse caboclo Bernardo, to

    rude e to bom.

  • 20

    Estes so rabiscos...

    Em pensamentos de futuro, a orientao continuar investigando para

    ver de que maneira so cantadas as cantigas do congo, a dana e a

    msica que hoje lembram, celebram, rememoram a vida e os feitos do

    caboclo.

    Tempestade era promessa de tenso, perigo. Todo ser humano tem que

    morrer, o heri morre porque humano. O futuro expectao,

    expectativa. O futuro no se sustenta sem a fora do passado.

    Agamenon o senhor do mundo, mas na casa manda Clitemnestra. Povo de

    marinheiros. Nas culturas mgicas, o nome que deixa algum

    entregue aos exorcismos de seus inimigos. (NUNES, s/d, p. 4). Helder

    Macedo diz que a realidade boa, o realismo que no nos presta

    para nada.

    As honras fnebres, a Heitor foram necessrias e garantidas pelo

    entendimento do pai, Pramo. Apenas o zelo de seu Mido garante ao

    Caboclo alguma ateno.

    O povo de Regncia teve sempre uma vida sofrida, num lugar sem

    conforto, viviam de apanhar ovo de tartaruga para comer, guaiamum no

    manguezal. At a chegada do projeto Tamar. O rio Doce, antes

    navegvel, agora s banco de areia.

    Tudo chega por intermdio do caboclo, com humildade e s por

    insistncia da princesa Isabel, o caboclo, sempre esquecido de si,

    pediu pelo povo um farol. Deu ainda mais orgulho para toda a gente. O

    farol mandado fazer pela princesa Isabel. Hoje o Farol de Regncia

    est desativado, sobrou apenas a pea de estimao do povo e

    lembrana da mgoa e da impotncia contra os malfeitos do poder

    pblico.

    Trabalho em comparao, sem nunca de verdade acreditar.

    PIMENTEL, Joe e BRASIL, Tibico. Canoa veloz. Fortaleza: Porta Curtas

    Petrobrs, 2005. (http://www.portacurtas.com.br) Canoa Veloz um

    documentrio sobre uma regio, um modo de vida, uma atividade e um

    tempo em mutao. No municpio de Icapu, litoral leste do Estado do

    Cear, os pescadores artesanais de lagosta preservam uma rstica e

    interessante forma de sobrevivncia h mais de 40 anos, enfrentando o

    mar e desafiando o tempo.