Upload
monica-machado
View
42
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Monografia apresentada a Auto Lyra Teixeira, na Letras, UFRJ.
Citation preview
O heri caboclo
Reconto do invencionrio popular
Mnica Machado
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras - 2 semestre de 2007
H quem defenda que os brasileiros herdaram
a preguia dos negros,
a imprevidncia dos ndios e
a luxria dos portugueses.
Roque de Barros LARAIA, Cultura, um conceito
antropolgico
2
Advertncias de pensamento, de teorias
e as graas do texto
Para entrarmos logo no assunto, declaro-me, de incio
descrente que algum algum dia tenha contado, cantado ou
emprestado a Ilada ao povo de Regncia. Digo logo de incio
porque no tenho a menor inteno de fazer estudo nenhum
voltado para este ou para aquele texto primeiro, inicial.
Aqui trato de uma breve comparao entre a contao da
histria do caboclo Bernardo e a contao da histria de
Aquiles e de sua ira.1 Isto porque os dois surgiram heris
necessrios a suas gentes. Porque so seus heris carregam de
si e da gente o que lhes cabe e o que todo heri precisa
carregar, um bocado da histria, um bocado da crena, um bocado
de lembrana e outro tanto de inveno.
No acredito que o povo tenha criado o caboclo Bernardo
(1859-1914) baseado em ningum seno em seus prprios desejos e
segundo sua prpria formao cultural. Assim, de uma maneira
lgica, reconheo, logo de incio, admitir que o povo heleno
1 Neste momento fundamental interromper a leitura e assistir Assim caminha Regncia. (S, 2005)
3
tenha tambm, talvez da mesma maneira, criado seu heri
Aquiles.
Os povos, por razes mais culturais, religiosas e humanas,
criaram as histrias de seus heris, o Bernardo e o Aquiles.
Seus livros-arquivos so de memria e msica, so religiosos,
so o conjunto de seus conheceres, saberes, dvidas e vontades.
A necessidade desses povos, os dois, o grego e o capixaba,
era fixar-se, precisavam fundamentar-se em algo. Eu, aqui,
privilegio os livros de nossa cultura. neste frescor
primeiro e primitivo, de produo demasiadamente humana que me
interessa explicar a gnese da arte potica.
As criaes (lenda, mito, histria, epopia) desta gente
que lhes asseguram a imortalidade. Juntaram sagas, lendas,
mitos de origens variadas incorporados a conjunto cada vez mais
complexos (NUNES, s/d, p. 7); tanto a histria do caboclo
(ainda vrias) quanto a do heri Aquiles so ambas um apanhado,
um livro tradicional em que muitas geraes trabalharam.
A Ilada, um dos mais antigos monumentos da literatura
grega, de tradio oral, de origens diversas e tambm,
contada em episdios.
Trabalho com a histria de caboclo Bernardo colhida dos
relatos de seu Mido, da crnica de Rubem Braga (1949) e de
diversos outros relatos do documentrio (S, 2005) e o que no
est nos livros me contou o moo Hauley Valim, em vrias
manhs, tardes e noites, aqui mesmo, longe de tudo quanto
soubemos. A fonte da Ilada uma s, a traduo de Carlos
Alberto Nunes (1 edio de 1962), em verso; os complementos
que vm das aulas nas trs disciplinas durante o semestre.
O caso aqui so as proximidades ficcionais brasileiras to
chegadas histria do heri Aquiles, na cultura do povo
heleno, quanto histria cantada do caboclo Bernardo. A
histria a mesma, sempre; os atores que mudam (MEIRELES,
2007).
Escolhi voltar-me para Fundamentos da Cultural Grega e
Fundamentos da Cultura Brasileira e sustentar-me pelos estudos
4
de Literatura Comparada exatamente porque no h estudo que eu
conceba apartado de seus pares.
Procurando rastrear o processo de formao da
Ilada (...), nada mais fazemos, de fato, do que
tentar surpreender os mistrios em nosso ntimo, da
prpria gnese da poesia. (NUNES, s/d)
Na mitologia: o caboclo tem origem nobre (obviamente pela
maneira enviesada brasileira); D. Pedro I, em suas viagens pelo
rio Doce procura do Eldorado, encontrava-se com a irm do
caboclo Bernardo, este, portanto, cunhado do imperador.
Aquiles filho da ninfa Ttis e do rei Peleu.
O mito do caboclo pico, herico, episdico e religioso.
Mito narrativa de acontecimento passado e de histrias
fabulosas de comunidades juntas para festejar, aprender e
comercializar.
Na epopia da ira de Aquiles,
as cenas mais profundamente humanas, que se
afirmam como criaes de beleza inexcedvel, so
justamente as de criao livre que independem de
tradio histrica ou que possam ser consideradas
sublimao das gestas (). (NUNES, s/d)
O mito no diz uma verdade, o mito, na realidade, tem sua
maneira prpria de dizer as coisas. Os gregos provavelmente
criaram o teatro na percepo de que no ramos apenas razo,
mas f e festa. Nossas relaes entre razo e paixo que nos
equilibram. A teatralidade foi necessria figurao do eu,
impostao designadora da pose. Para Hesodo, e com belo
exemplo em Os trabalhos e os dias, as relaes de poder esto
atreladas ao dinheiro. Na disputa com o irmo, Hesodo, quer
mostrar aos juzes que apenas o canto das musas pode mostrar
aos homens a verdade. Uma questo inexplicvel basicamente
respondida pelo mito, a lenda se encarrega de enfeitar a
histria.
Segundo o dicionrio Houaiss, o heri 1) o mortal
divinizado aps sua morte, segundo a acepo mitolgica, por
seus feitos guerreiros, pela heroicizao; 2) homem dotado de
5
coragem, tenacidade, abnegao, magnanimidade; que suporte de
maneira exemplar sua sorte incomum; 3) quem arrisca a vida pelo
dever em benefcio de outrem; 4) figura central de um perodo
histrico, quem desperta enorme admirao.
A epopia conta do incio ao fim a histria de um povo. A
poesia didtica de seu Mido se aproxima mais da de Hesodo,
historiogrfica, mas mesmo ainda fabulosa.
Por fbulas e mximas da sabedoria popular se fizeram os
primeiros cantos. Os poemas homricos so obra coletiva. A
lenda cantada e representada do Caboclo Bernardo tambm. A
oralidade escrita, a leitura em voz alta e a representao
teatral caracterizam as duas poesias, a grega e a brasileira.
A diviso da Ilada em cantos, especificamente os cantos IX
e XIX, na forma, quase atesta que no foi espontnea a criao
da epopia, houve trabalho para juntar as pontas. Acontece
criao popular na histria do Caboclo Bernardo, o sujeito fica
indeterminado repetidas vezes, , como a Ilada, de nascimento
annimo, se forma por si mesma e cresce como as plantas (NUNES,
s/d, p. 31).
As primeiras narrativas e aventuras que basearam o pico do
heri Aquiles, j Nunes (s/d) admitia, estavam dispersas em
episdios. A juntada das narrativas brota mais da fantasia do
poeta que de fatos propriamente histricos. A Ilada um poema
fundado em vasto material preexistente, poesia, canto, lenda e
histria foram usadas na composio do conjunto. De maneira que
a Ilada, pelos estudos de Nunes (s/d) pode ser a juno feliz
de outros tantos casos. A pequena Ilada, a Tomada de lio,
a Amaznia. Alguns trechos esparsos justificam o retorno de
Aquiles guerra, Tria sitiada, para vingar Ptroclo ou
Antloco. (NUNES, p. 25). Umas curiosas partes at sugerem
atualizaes posteriores: antes, muito antes de Enas estar de
compromisso com a Eneida, Posdon, na Ilada, sugere que Apolo
preserve e proteja o heri da histria posterior.
Herdoto (apud LARAIA, 2000) diz
6
se oferecssemos aos homens a escolha de todos os
costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem
melhores, eles examinariam a totalidade e acabariam
preferindo os seus prprios costumes, to
convencidos esto de que estes so melhores do que
todos os outros.
Caboclo o nascido de ndio e branco, de pele morena e
cabelos lisos, de fsico e modos desconfiados, retrados. No
tempo em que viveu o caboclo Bernardo (S, 2005) os ndios
botocudos estava acuados pelo poder do imprio, no eram parte
dele, no eram reconhecidos brasileiros.
S algum especial para vencer o mal, o mar, lugar dos
bichos medonhos. O predestinado, era de quem precisava o povo
de Regncia: pelo assoreamento do rio Doce comeou a faltar
peixe; pela proteo e proibio de pescar tartarugas na praia,
o povo de Regncia precisava ir pescar no mar. A boa hora e o
grande mote so: se o caboclo pde, podemos ns todos tambm,
com a proteo dele. Os povos externos, os invasores, do rio
foram, basicamente, a Aracruz Celulose e o projeto Tamar. Havia
lutas polticas na Grcia no sculo VI, aqui no Brasil, desde
alguns sculos atrs o povo da foz do rio Doce foi perdendo sua
gua e sua pesca. Lutar politicamente possvel, sim, mas na
prtica a teoria outra. Na prtica, o povo quem se
reconhece, era necessria a readaptao.
Depois de cantadas as proezas dos heris os cantadores
passam a cantar as proezas de seu filho, h uma sugesto de
proximidade com o romance de cavalaria medieval. Assim como
Aquiles no deixou filhos, mas o povo grego; Regncia no tem
filhos de Caboclo Bernardo, todo o povo capixaba seu
herdeiro.
Este invencionrio traz um pequeno recorte ltero mtico e
musical brasileiro sobre o caboclo Bernardo. Seu mito oral,
religioso, voltado para o mar, lugar dos bichos medonhos. A
forma da escritura do caboclo pode ser mesmo provavelmente a
usada pelo povo grego para a Ilada, na voz de Homero. Este
ato, o ato esttico, o mais alto da razo (LINS, 2007).
7
O trabalho de antropologia tem suas variedades. Aqui trato
de perseguir algumas indicaes do pensamento popular e do
invencionrio brasileiro, das histrias criadas por nosso
empenho autarcizante (COUTINHO, 2007). Em LARAIA (2000, p. 34)
h uma idia de que a cultura desenvolve-se de maneira
uniforme, de tal forma que era de se esperar que cada sociedade
percorresse as etapas j percorridas por outras mais avanadas,
num evolucionismo simples. Discordo. O intervalo grande
demais, de tempo, de terra e de texto.
Em Claude Levi-Strauss, cultura tudo o que no natureza,
cultura sistema simblico, criao acumulativa da mente
humana, seu trabalho tem sido o de descobrir na estruturao
dos domnios culturais mito, arte, parentesco, linguagem os
princpios da mente que geram estas elaboraes culturais (apud
LARAIA, 2000). O homem se espanta e com o espanto vem a pergunta
de si e, logo, segue a resposta (sim), da est criado um
evento de cultura (COUTINHO, 2007).
Pela cultura o homem liberta-se dos limites da natureza. O
heri Aquiles bravo enfrenta os muros de Tria para vingar a
morte de Ptroclo, o mito criado permite todo jovem aqueu
entrar nas cidades e tambm, quantas vezes for necessrio,
lutar e vingar quantas vidas puder, em primeiro a sua.
Pela cultura o homem liberta-se dos limites da natureza. O
Caboclo Bernardo bravo enfrenta o mar para salvar os irmos, o
mito criado permite a todo jovem pescador entrar no mar e
tambm quantas vezes for necessrio salvar quantas vidas puder,
em primeiro a sua.
O que precisamente singular no espao brasileiro a
conjuno da escrita do cenrio com o cenrio real. Seu Mido
faz a conjuno e ainda d outras pistas: a mitologia do
caboclo permite o mergulho no mar, o reconhecimento do imprio
e a justificativa da vida de todos. O culto brasilidade.
Desta forma o povo cria seu heri em seu prprio e necessrio
8
ambiente, no serve a abstrao lingstica, o povo prefere a
apropriao do heri.
Havia necessidade do povo de Regncia em reconhecer-se,
conseguir designar a noo da minha terra. O tal empenho em
fazer-se, o empenho autarcizante, desperta as histrias do
povo, do farol, do Eldorado e reconstri ou rene a
historiografia da foz do rio Doce, transformada de espao
meramente locativo para espao fundamentalmente genitivo.
(PORTELA, apud COUTINHO, 2007). A grande significao eram idias
acerca das novas funes a serem assumidas pelo humano. Nossa
modernidade literria colocada na nossa nacionalidade
literria.
Assim como os poemas de Homero so basicamente a
cristalizao da poesia oral dos helenos, a histria do caboclo
Bernardo ; mas principalmente est se fazendo, ainda h
verses e debates, ainda h, entre os velhos, a sensao da
memria mais prxima. O texto se achega pelo caminho da
oralidade, o repentista cantador da vila de Regncia encadeia o
canto.
A guerra contra Tria pode ter sido apenas uma figurao de
todos os conflitos, as muralhas de Tria podem ter sido a
figurao do inimigo insupervel. De modo que a bravura do
caboclo contra o mar, lugar dos bichos medonhos, em noite de
tempestade, pode ser tambm a figurao das adversidades do
povo da vila de Regncia. Caboclo Bernardo era a superao do
medo do mar, a criao da coragem de viver do mar.
9
Aproximaes hericas e simblicas,
os feitos e os contados
Cunhado de D. Pedro. Foi assim que se estabeleceu a origem
nobre de caboclo Bernardo. O povoado de Regncia fica na foz do
rio Doce. Segundo a lenda dos povos de l, D. Pedro I, curioso
como era, andou pelo rio Doce atrs do lugar encantado
Eldorado, do mesmo jeito que andou todo mundo naquelas bandas e
naqueles tempos. O caso que, num de seus passeios, o
imperador encantou-se com as douradas ondas dos caminhares de
uma ndia. Era a irm do caboclo Bernardo. Para bom brasileiro,
agregado j casado, fez-se ento o caboclo cunhado de D.
Pedro.
O caboclo agentou quarenta minutos de soco em uma briga
que teve com o irmo (S, 2005). Era dos botocudos. Seu povo
malvisto pela Coroa, habita o bico de Regncia, na ponta bem
dentro do mar.
Lugar dos bichos medonhos, o mar est simbolicamente para as
mulheres e para a maldade, a manha. O mar a sexualidade
feminina? As barcas dos gregos quase foram afundadas no mar
10
Egeu, o mar quem ameaa envolver, tragar, sugar o homem? Deve
ser a mulher-mar?
Na mitologia a Noite era a escurido primordial, feminina,
da Noite veio o Dia, ela anterior, geradora e matriz. A
presena do corpo feminino assim como a nossa origem ndia e
negra constituem referncias fundamentais acerca de nossa
cultura. Os aqueus e os capixabas so povos da cultura do mar.
Outro trao caracterstico do homem grego: o apego a objetos
de valor. No difere quase de nosso povo, desde o mais humilde
pescador at a mais graciosa noiva, todos aqui se derramam pela
beleza e nobreza dos objetos de valor.
Ora, tia Mariquinha e Briseida so as duas mulheres
cultuadoras, uma de Apolo, outra do Caboclo. Interessa ignorar
a diferena de idades das mulheres e destacar sim suas
competncias religiosas para a manuteno dos mitos.
Enquanto na Ilada h tradies militares das tribos, na
histria de caboclo Bernardo o costume festejar o nascimento
do heri com Congo, de ganzaca e batuque. Um dos grandes
propsitos dos guerreiros aqueus era fazer desaparecer da face
da terra a construo gigantesca, o muro de defesa de Tria. Os
deuses se incumbiram deste desmonte.
A recitao da Ilada e da Odissia acontecia anualmente em
festejos pblicos, em episdios, na seqncia natural da
fabulao do aedo. Eram recitados os feitos do heri e
invocados os deuses para novamente o povo lembrar e cantar sua
fora (NUNES, p. 31). Nas comemoraes do caboclo h um grande
festival invocatrio.
O congo ocorre principalmente em comemoraes
religiosas. () De origem popular (registros antigos
apontam o surgimento do congo para cerca de 200
anos), as msicas do congo mostram nas letras das
cantigas tradicionais vrias referncias da formao
do povo brasileiro, como a escravido, a
religiosidade, o cotidiano e a ligao com o mar
como fonte de vida e caminho para nova vida.
(ILHANDARILHA, 2007)
11
Os heris aqueus tinham armas fabricadas por deuses. No
congo bem mais prxima de ns a fabricao.
As bandas utilizam instrumentos de percusso
feitos, em geral, pelos prprios msicos com
materiais acessveis a eles, como barricas, pau oco,
taquara, peles de animais e folhas-de-flandres. Os
instrumentos utilizados so os tambores, as caixas,
a casaca2 e a cuca. A casaca () do congo capixaba
tem uma caracterstica nica que o detalhe da
cabea talhada em madeira no alto do instrumento.
Como os tambores em geral so pesados (originalmente
eram feitos de tronco de rvore oco, ou pau oco), os
tocadores de tambor sentam-se sobre eles,
modificando, assim, sua sonoridade. O mestre ()
utiliza, ainda, uma espcie de megafone primitivo,
feito de folhas-de-flandres, para amplificar sua voz
e marcar o ritmo das canes. (ILHANDARILHA, 2007)
Entre uma apresentao e outra do aedo ou de Seu Mido (o
responsvel pela preservao da histria e da memria do
Caboclo Bernardo) persiste a histria na memorizao, no
pensamento criativo mais ainda. As musas pela memria constroem
a tradio; juntas consubstanciam a identidade do povo grego e
do povo capixaba.
A poesia cantada da histria recitada que propicia a
reunio para ouvir. A cano mtica estabelece a participao
do cidado em sua comunidade. As moas do congo, as musas do
canto, so filhas de Zeus (deus maior, pai de todos) e de
Mnemosine (a memria). Calope a da bela voz. pura
oralidade, corpo, gestual, dana. Os dons das deusas
afastam os homens da cidade de toda a aflio da amargura e do
sofrimento do dia-a-dia. Clio (glria, musa da histria);
Euterpe (alegria, musa da msica); Tlia (festa, musa da
comdia); Melpmene (danarina, musa da tragdia); Terpscore
(alegria-coro, musa da dana); Erato (amorosa, musa da poesia
lrica); Polmnia (hilria, musa da oratria e do canto);
Urnia (celeste, musa da astronomia). Assim como no h um
2 O canz, ou a ganzaca, tem origem africana, instrumento de bambu
grosso, tem ranhuras horizontais que lhe garantem o som prximo ao do reco-
reco, um bocado mais grave.
12
grego puro, mas vrias etnias unidas pela forma da linguagem e
pela cultura reconhecidamente helnica no h nem questo sobre
a mistura originria do povo de Regncia, portugus, negro e
ndio.
Mrio de Andrade instala a ambgua pluralidade de nossa
formao cultural em um de seus escritos: somos a soma de 300
culturas e no nos identificamos mais com nenhuma delas, somos
nossa prpria cultura brasileira.
As musas so as danarinas do congo ao som dos tambores e da
ganzaca? So elas que evocam os deuses e sadam os antepassados
todo dia 3 de junho, a cada ano?
Na noite, acontecia uma pausa natural da narrativa; os
ouvintes que se dispersavam para suas casas, ao cair da noite,
levariam a certeza da prxima derrota dos Aquivos (NUNES, s/d,
p. 34).
Aquiles soube pela me que se voltasse luta teria uma vida
curta e gloriosa, se desistisse teria uma velhice apagada. Na
praia, antes do resgate dos portugueses, a me de caboclo
Bernardo o avisa: se mergulhar ele morre. O caboclo escolhe
arriscar a prpria vida para salvar os nufragos.
Aquiles tinha um ponto vulnervel no p, o caboclo era
vulnervel em casa (pior, sentado na beira da cama, comendo
banana).
Na Ilada, Aquiles morre porque distraiu-se e deixou
desprotegido o p, o calcanhar exposto era seu ponto fraco, sua
certeza de humanidade.
Em Regncia, o heri caboclo foi assassinado exatamente
quando merecia a pausa do fim do dia, a grande fragilidade do
pescado a terra, na volta do mar. Enquanto a mulher cozinhava
o peixe pescado, o caboclo se senta na beira da cama, descansa,
pega uma banana para comer e , ento, assassinado com um tiro,
covardia.
necessria a marca do maravilhoso, do extraordinrio, uma
marca que singulariza que diferencia a coisa ou o evento
13
ameaador ao heri e a seu povo. A monumental construo dos
muros de Tria era a maravilhosa fora antagnica de Aquiles. O
antagonista do capixaba era marcado pela inveja.
O assassino de caboclo Bernardo descrito como uma das
piores criaturas do mundo: mal encarado, de ar ruim, com cara
de gamela, de voz monstruosa. Chamou o caboclo de macaco
comendo banana sentado na beira da cama. Claro, ningum apenas
ruim poderia dar conta do heri, era necessrio o pior dos
homens. Alm de todos os defeitos o assassino agiu por inveja.
Seu Mido diz Caim matou Abel por inveja (S, 2005). No
naufrgio, apenas o caboclo foi quem pulou no mar, foi o nico.
A inveja o pior dos males.
O grande detalhe, Aquiles e caboclo Bernardo foram mortos
traio, nos momentos do descanso, longe do campo de batalha, o
um, e do mar, o outro.
O caboclo nadou quatro vezes para a ponta em que estava
presa a caravela, apenas na quinta vez a alcanou e salvou 128
pessoas de morrer no mar bravio. H alguma relao com o fato
de, por trs vezes, Ptroclo arremeter contra os muros de Tria
e, apenas na quarta vez, Apolo intervir e tirar dele o elmo
protetor. Apolo deixou Ptroclo ser ferido por Euforbo e
finalmente ser assassinado por Heitor.
O caboclo Bernardo salva portugueses, condecorado, vai
corte receber sua medalha e volta com a garantia ao seu povo do
reconhecimento pelo reino da existncia da regio e de fiis
seguidores do Imprio. O caso que antes, pouco at, o Imprio
perseguia os botocudos. O Caboclo era botocudo, assim como todo
o povo de Regncia. O Caboclo, por seu povo indgena se deixa
dobrar a normas, etiquetas e hierarquia. O caboclo, por seu
povo portugus, se joga ao mar em fria. Nas palavras de seu
Mido: Vou salvar o povo portugus que meu irmo de sangue.
A me diz No v, meu filho, voc vai morrer!
14
A medalha do Caboclo ningum sabe onde est, ningum sabe o
fim que teve. Palpites todos tm. J derreteu e virou
dentadura est com os poderosos da regio que se negam a
entregar coisa to valiosa a um museu e jamais admitiro o modo
como tiveram a medalha O prprio Caboclo trocou a medalha por
cachaa Da condecorao pela princesa Isabel deveria ter
sobrado a medalha, como prova e cone valoroso. Ningum sabe o
paradeiro da medalha, mas h quem acredite que ele mesmo no
lhe deu valor. Trocou por cachaa. Seu Mido no acredita. Um
bandido, talvez o mesmo que matou o heri, roubou a medalha.
H uma escola construda com o dinheiro que rendeu a venda
dela. A medalha est na mo dos poderosos da regio, se
mostrarem admitiro o malfeito e perdero a posse. J deve ter
derretido, deve ter virado dentadura. Regncia resiste.
Seu Mido chama para cantar, poderia tranqilamente chamar
para louvar. Seu Mido usa desta autoridade do velho pedagogo.
Seu Mido quem protege, venera e cuida de Caboclo Bernardo, e
um demiurgo, que trabalhava para a comunidade, assim como Tia
Mariquinha, no culto da casinhola e a administradora do museu,
na preservao do acervo. Na tragdia grega h sempre um velho
a que do o nome de pedagogo. (NUNES, p. 15)
O cantador da vida de caboclo Bernardo um missionrio, tem
em si vrios causos ainda a contar. Anjo da guarda, carinhoso,
conhecido zelador do caboclo, seu Mido d e pede retorno,
confia que o caboclo lhe reservar um lugar no cu. No dia do
julgamento, seu Mido, cantador, ainda espera conhecer o
caboclo, a me, o pai, que nunca viu. Esta veia religiosa do
cantador de guardar a memria e de resistncia. Seu Mido
conta que abaixaram ele e o companheiro num centro esprita,
para as bandas de Minas Gerais.
A hierarquia e a ancestralidade so indispensveis
formao do heri.
15
Assim , com o Caboclo Bernardo, a fixao da identidade,
com seu Mido e tia Mariquinha dizer que inventaram o
inexistente pelo folclore reduzir a complexidade esttica dos
smbolos da gente. Murais e painis artsticos e festas, dana
e figurino, modos de resistncia e superao aos modos raros de
no percepo do mundo.
Em 1887, o caboclo morreu e foi enterrado como heri. At a
Marinha o reconhece por heri e modelo. O caboclo Bernardo foi
resgatado da vida apagada, tornou-se heri por sua morte.
Aquiles deveria tambm viver at a velhice calma e apagada, se
no retornasse a Tria, viveria por muito tempo ainda, mas foi
chamado pela ira. Recusou os conselhos da me, Ttis.
No podemos jamais acreditar no unitarismo integral depois
de saber das criaes e do invencionrio do povo de Regncia, a
obra coletiva assim como cada bandeirinha na festa anual do
caboclo foi cortada, colada e hasteada por uma mo
imediatamente, ajudada por todas as outras, juntas.
Entre saber o que sei, acreditar no que sei e confiar no que
sei h uma distncia enorme; esta distncia a da criao de
meus mitos.
Aprendo, aceito e acredito nos ensinamentos dos ancestrais e
fao aqui apenas um apanhado do que foi inventado pelo povo
litorneo, matuto, praieiro, ribeirinho, brasileiro.
16
Referncias bibliogrficas
BRAGA, Rubem. Caboclo Bernardo. In Crnicas do Esprito
Santo. Datado de fevereiro de 1949. Morro do moreno,
acessado em 20 de novembro de 2007.
(http://www.morrodomoreno.com.br/especial11.htm)
COUTINHO, Luiz Edmundo Bouas. Curso de Fundamentos da Cultura
Brasileira. Anotaes de aula. Rio de Janeiro: UFRJ, 2
semestre de 2007.
HOMERO. Ilada. Traduo de Carlos Alberto Nunes. 3 edio (1
edio, 1962). So Paulo: Melhoramentos, s/d.
ILHANDARILHA. Congo das Paneleiras. Vitria: Overmundo, 29 de
agosto de 2007. (www.overmundo.com.br/over-blog/congo-das-
paneleiras)
LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropolgico.
15 edio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
LINS, Ronaldo Lima. A construo e a destruio da esttica.
Palestra de abertura do seminrio Ps-modernismo: a arte na
cena contempornea. Em 3 de outubro de 2007.
17
MEIRELES, Teresa Cristina. Curso de Literatura Comparada.
Anotaes de aula. Rio de Janeiro: UFRJ, 2 semestre de
2007.
NUNES, Carlos Alberto. A questo homrica. In Ilada. 3
edio (1 edio, 1962). So Paulo: Melhoramentos, s/d.
S, Ricardo. Assim caminha Regncia. Rio de Janeiro: DOCTV,
2005. O documentrio conta a histria do caboclo em suas
criaes e verses; tudo na responsabilidade de Seu Mido, o
mantenedor da memria; teve como consultor Hauley Valim,
capixaba, graduado em Teologia, licenciando em Cincias
Sociais e mestrando em Cincias da Religio pela
Universidade Metodista de So Paulo (UMESP).
TEIXEIRA, Auto Lyra. Curso de Fundamentos da Cultura Grega.
Anotaes de aula. Rio de Janeiro: UFRJ, 2 semestre de
2007.
VALIM, Hauley. Caboclo Bernardo. Wikipdia, acessado em 21 de
novembro de 2007.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Caboclo_Bernardo)
18
O caboclo Bernardo
(Rubem BRAGA, 1949)
Parece que no tinha nenhum sangue europeu; era apenas um
ndio, com seu nome cristo de Bernardo Jos dos Santos. Era
alto, de espduas largas, a cara grande. Vejo numa gravura da
poca sua basta cabeleira negra, e um bigode ralo que lhe cai
pelo canto da boca, no feitio mongol. A cara enrgica e
suave, e as sobrancelhas finas se unem no centro, sob uma
ruga vertical na testa; suas extremidades descem, numa curva
em que se l obstinao.
O caboclo Bernardo est com 28 de idade no dia 7 de setembro
de 1887. nascido ali mesmo onde vive, no povoado de
Regncia Augusta, antiga Barra do Rio Doce e como seu pai,
o velho Manduca, conhece o rio, o mar, e a mata. Foi naquele
7 de setembro, uma e quarenta da madrugada, sob um raivoso
sudoeste e grande escurido, que o cruzador Imperial
Marinheiro, um dos mais novos barcos da Marinha de Guerra
Brasileira (deslocamento, 726 toneladas; boca, 8m27; calado
3m40; mquina 150 cavalos; marcha horria 11 milhas;
armamento, 7 canhes de 34 e 4 metralhadoras, com 142 homens
a bordo), chocou-se contra o pontal sul da barra do rio Doce,
a 120 metros da costa. Foi arriado um escaler com 12 homens;
o mar arrebentou o escaler, mas 12 homens chegaram s 2 da
madrugada cabana do patro-mor da barra para pedir socorro.
No escuro, e sem nenhuma embarcao diante do mar furioso, os
homens ficaram na praia enquanto o mar esfrangalhava o
cruzador. Quando veio a luz do dia os nufragos estavam
reunidos nas partes mais altas, ainda no submersas, do
barco, e os tubares rondavam entre as ondas encapeladas.
O caboclo Bernardo jogou-se ao mar tentando levar at o
cruzador um cabo de espia. Luta contra as ondas, mas jogado
na praia. Tenta ainda uma vez, e volta novamente, depois de
19
uma luta terrvel contra a fora das guas. Sua me, uma
cabocla velha, pede-lhe para no insistir, mas ele se lana
ainda ao mar. Parece que da primeira vez teria levado o cabo,
excessivamente pesado, amarrado cintura; de outra o
amarrara sua rede, com tremalhos de cortia, ou a uma linha
de pescar, que puxaria pelos dentes. O fato que luta em vo
contra as guas aoitadas pelo vento; e regressa praia
exausto. Os nufragos olham tudo aquilo com angstia. O
caboclo Bernardo se desvencilha dos braos dos que querem
det-lo e entra no mar pela quarta vez. Nada com desespero em
direo ao navio, mas no avana; pouco depois jogado
areia. Levanta-se e volta. S ento, pela quinta vez,
consegue chegar at o navio com o cabo salvador. Forma-se um
cabo de vai e vem, e os marinheiros saltam de bordo agarrados
a ele para chegar em terra. Muitos o conseguem. Outros,
enfraquecidos pelas horas de tormenta, no resistem e morrem.
O caboclo Bernardo joga ento ao mar a nica embarcao que
resta, uma pequena chalana. Pede dois marinheiros para ajud-
lo, e ligando essa chalana ao cabo leva os nufragos para
terra, de dois a dois. De vez em quando a chalana vira; o
caboclo Bernardo, com seus dois companheiros, cai na gua
para desvirar a embarcao e segurar os nufragos. Trabalham
assim durante horas, at que o mar despedaa de uma vez a
chalana. Havia ainda 13 homens a bordo, que afinal se
salvaram em uma jangada improvisada, agarrando-se ao cabo.
Graas ao brutal herosmo do caboclo Bernardo foram salvos
128 homens em um total de 142.
Estas notas eu as extraio do livro do Sr. Norbertino Bahiense
O Caboclo Bernardo e o Naufrgio do Imperial Marinheiro, que
acaba de ser publicado em Vitria; e o que no est no livro
me contou o velho Meireles, numa destas manhs de chuva e
sudoeste, ali mesmo na Barra, onde tudo assistiu. Deixo para
outra crnica o resto da histria desse caboclo Bernardo, to
rude e to bom.
20
Estes so rabiscos...
Em pensamentos de futuro, a orientao continuar investigando para
ver de que maneira so cantadas as cantigas do congo, a dana e a
msica que hoje lembram, celebram, rememoram a vida e os feitos do
caboclo.
Tempestade era promessa de tenso, perigo. Todo ser humano tem que
morrer, o heri morre porque humano. O futuro expectao,
expectativa. O futuro no se sustenta sem a fora do passado.
Agamenon o senhor do mundo, mas na casa manda Clitemnestra. Povo de
marinheiros. Nas culturas mgicas, o nome que deixa algum
entregue aos exorcismos de seus inimigos. (NUNES, s/d, p. 4). Helder
Macedo diz que a realidade boa, o realismo que no nos presta
para nada.
As honras fnebres, a Heitor foram necessrias e garantidas pelo
entendimento do pai, Pramo. Apenas o zelo de seu Mido garante ao
Caboclo alguma ateno.
O povo de Regncia teve sempre uma vida sofrida, num lugar sem
conforto, viviam de apanhar ovo de tartaruga para comer, guaiamum no
manguezal. At a chegada do projeto Tamar. O rio Doce, antes
navegvel, agora s banco de areia.
Tudo chega por intermdio do caboclo, com humildade e s por
insistncia da princesa Isabel, o caboclo, sempre esquecido de si,
pediu pelo povo um farol. Deu ainda mais orgulho para toda a gente. O
farol mandado fazer pela princesa Isabel. Hoje o Farol de Regncia
est desativado, sobrou apenas a pea de estimao do povo e
lembrana da mgoa e da impotncia contra os malfeitos do poder
pblico.
Trabalho em comparao, sem nunca de verdade acreditar.
PIMENTEL, Joe e BRASIL, Tibico. Canoa veloz. Fortaleza: Porta Curtas
Petrobrs, 2005. (http://www.portacurtas.com.br) Canoa Veloz um
documentrio sobre uma regio, um modo de vida, uma atividade e um
tempo em mutao. No municpio de Icapu, litoral leste do Estado do
Cear, os pescadores artesanais de lagosta preservam uma rstica e
interessante forma de sobrevivncia h mais de 40 anos, enfrentando o
mar e desafiando o tempo.