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33 REM: R. Esc. Minas, Ouro Preto, 57(1): 33-38, jan. mar. 2004 Resumo Carbonado, uma variedade policristalina do diaman- te, tem sua gênese alvo de intensas controvérsias. A dis- cussão das principais hipóteses propostas para a ques- tão, em associação com o enquadramento geológico das sequências pré-cambrianas que portam o material na ser- ra do Espinhaço, parece favorecer uma dessas hipóteses. Na mesma, os microcristais que compõem o carbonado se formariam ordinariamente no manto, seriam trazidos para a crosta junto com os diamantes monocristalinos encontrados nessas sequências e, em estágio posterior, se agregando num ambiente sedimentar rico em material radioativo. Palavras-chave: diamante, carbonado, serra do Es- pinhaço. Abstract Carbonado, a polycrystalline diamond variety, has a very controversial genesis. The geologic setting of the carbonado-bearing precambrian sequences in the Serra do Espinhaço, and other aspects regarding the genesis, seem to favor one specific hypothesis: the mycrocrystals that make up the carbonado could have been formed by the “usual” way within the mantle and were brought up to the crust together with large diamond crystals found in the same sequences; in a later stage, the mycrocrystals formed aggregates in a radioactive-rich sedimentary environment. Keywords: diamond, carbonado, Espinhaço range. Diamante variedade carbonado na serra do Espinhaço (MG/BA) e sua enigmática gênese Mario Luiz de Sá C. Chaves Professor do IGC/UFMG e Pesquisador do MHN/UFMG, Belo Horizonte-MG E-mail: [email protected] Paulo Roberto Gomes Brandão Professor da EEng/UFMG e Pesquisador do CNPq, Belo Horizonte-MG E-mail: [email protected] Geociências

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33REM: R. Esc. Minas, Ouro Preto, 57(1): 33-38, jan. mar. 2004

Mario Luiz de Sá C. Chaves et al.

ResumoCarbonado, uma variedade policristalina do diaman-

te, tem sua gênese alvo de intensas controvérsias. A dis-cussão das principais hipóteses propostas para a ques-tão, em associação com o enquadramento geológico dassequências pré-cambrianas que portam o material na ser-ra do Espinhaço, parece favorecer uma dessas hipóteses.Na mesma, os microcristais que compõem o carbonadose formariam ordinariamente no manto, seriam trazidospara a crosta junto com os diamantes monocristalinosencontrados nessas sequências e, em estágio posterior,se agregando num ambiente sedimentar rico em materialradioativo.

Palavras-chave: diamante, carbonado, serra do Es-pinhaço.

AbstractCarbonado, a polycrystalline diamond variety, has

a very controversial genesis. The geologic setting of thecarbonado-bearing precambrian sequences in the Serrado Espinhaço, and other aspects regarding the genesis,seem to favor one specific hypothesis: the mycrocrystalsthat make up the carbonado could have been formed bythe “usual” way within the mantle and were broughtup to the crust together with large diamond crystalsfound in the same sequences; in a later stage, themycrocrystals formed aggregates in a radioactive-richsedimentary environment.

Keywords: diamond, carbonado, Espinhaço range.

Diamante variedade carbonado na serra doEspinhaço (MG/BA) e sua enigmática

gênese

Mario Luiz de Sá C. ChavesProfessor do IGC/UFMG e Pesquisador do MHN/UFMG, Belo Horizonte-MG

E-mail: [email protected]

Paulo Roberto Gomes BrandãoProfessor da EEng/UFMG e Pesquisador do CNPq, Belo Horizonte-MG

E-mail: [email protected]

Geociências

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Diamante variedade carbonado na serra do Espinhaço (MG/BA) e sua enigmática gênese

1. IntroduçãoDepósitos diamantíferos secundá-

rios, contendo juntamente diamante (mo-nocristalino) e sua variedade policrista-lina carbonado, são típicos da serra doEspinhaço em Minas Gerais (região deItacambira-Grão Mogol) e Bahia (regiãoda Chapada Diamantina). Tal associação,longe de ser fortuita, indica condiçõesanômalas e especiais de gênese dessesdiamantes. Os principais modelos atual-mente propostos para explicar a forma-ção dos carbonados são conflitantes,baseando-se em dados teóricos e/ou la-boratoriais, sem levar em conta o condi-cionamento geológico de suas regiõesde ocorrência. Dessa maneira, através dadiscussão sobre tais modelos genéticos,em associação com o enquadramentogeológico das seqüências sedimentaresoriginais onde eles se depositaram (Su-pergrupo Espinhaço), pretende-se nes-se artigo contribuir para a definição dequal deles poderia ser melhor aplicadoao problema em questão1 .

2. Contexto geológicoA unidade litoestratigráfica princi-

pal que sustenta o espigão serrano doEspinhaço é o Supergrupo Espinhaço(Figura 1), definindo uma grande provín-cia diamantífera onde a mineralização sedepositou junto com seqüências rudá-ceas das formações Sopa-Brumadinho(Espinhaço Meridional), Grão Mogol(Espinhaço Central) e Tombador (Cha-pada Diamantina). Embora tais seqüên-cias não sejam exatamente crono-corre-latas (ver discussões em Uhlein & Cha-ves, 2001), é interessante ressaltar quetodas elas situam-se em porções basaisdo Supergrupo Espinhaço nas respecti-vas regiões.

A deposição do Supergrupo Espi-nhaço ocorreu entre 1,75-1,30 Ga (Paleo/Mesoproterozóico), em bacia do tipo riftensiálico encaixada na borda leste (casodo Espinhaço Meridional/Central) ouinternamente (caso da Chapada Diaman-

tina) ao núcleo arqueano definido peloCráton do São Francisco; dobramento emetamorfismo em fácies xistos verdesverificaram-se durante o Ciclo Brasilia-no no Neoproterozóico (e.g. Dussin &Dussin, 1995). Na Chapada Diamantina,encontram-se os mais importantes depó-sitos contendo carbonados de todomundo, onde a relação diamante/carbo-nado varia em torno de 90/10 podendoem alguns locais atingir até 50/50 (Leo-nardos, 1937). No Espinhaço Central mi-neiro, carbonados ocorrem na região deItacambira-Grão Mogol, associados à

mesma unidade. Karfunkel et al. (2001)mencionam também a provável existênciade carbonado no Grupo Macaúbas (Neo-proterozóico), porém, como parte dessaseqüência glaciogênica formou-se às cus-tas de contribuições terrígenas do Super-grupo Espinhaço, considera-se poucorelevante discutir sua fonte na mesma.

3. Caracterizaçãomineralógica

Carbonados são diagnosticados

1 O tema é também objeto de trabalho de Pós-Doutoramento efetuado no CPGEM/Escola deEngenharia da UFMG, por M. L. Chaves.

Figura 1 - Distribuição geográfica da serra do Espinhaço (em destaque) e da unidadeestratigráfica que a sustenta, Supergrupo Espinhaço, na região centro-oriental brasileira.Domínios geográficos: 1 - Espinhaço Meridional; 2 - Espinhaço Central; 3 - EspinhaçoSetentrional; 4 - Chapada Diamantina.

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como diamantes desde a década de 1840,quando começaram a ser lavrados nosdepósitos aluvionares da Chapada Dia-mantina, Bahia (Leonardos, 1937). Nasdécadas seguintes, o interesse econô-mico pelo material fez que, por diversasvezes, sua produção significasse 60-70%de toda a produção brasileira de diaman-tes. Em 1905, foi encontrado em Lençóiso maior de todos os carbonados, pesan-do 3.167ct. Designado de “Carbonadodo Sérgio”, ele é o maior diamante já en-contrado no mundo, com peso superiorem 61ct ao famoso “Cullinan” da Áfricado Sul (3.106ct), de modo geral conside-rado o primeiro.

Carbonados ocorrem como indiví-duos granulares, mais ou menos poro-sos e geralmente de coloração preta/cin-zenta, amarronzada ou avermelhada, de-vido a uma fina película (pátina) que re-cobre os grãos (Figura 2). Constituemagregados policristalinos (indivíduos nafaixa de 0,01-0,001mm, Orlov, 1973), mos-trando dimensões totais inconstantesaté 8cm de diâmetro, como no “Carbona-do do Sérgio”. A superfície de fratura deum carbonado revela, mesmo sob baixosaumentos, os cristalitos de diamante eos poros abundantes presentes (Figura3). A densidade de amostras da Chapa-da Diamantina/Rio Macaúbas varia en-tre 3,10-3,40, inferior à do diamante mo-nocristalino cujo valor (teórico) é 3,515.Essa densidade baixa é devida a sua po-rosidade maior (até 5%), como tambémpela riqueza de inclusões “leves”, taiscomo quartzo, ortoclásio e caulinita, juntoa outras menos abundantes como rutilo,zircão, óxidos de ferro, fosfatos e ligasmetálicas complexas.

Estudos descritivos sobre a morfo-logia do carbonado (e.g., Fettke & Stur-ges, 1933, Kerr et al., 1948), assim comosobre sua estrutura e inclusões minerais,indicaram uma possível origem a partirde processos de sinterização, de modosemelhante aos materiais cerâmicos (Tru-eb & Butterman, 1969, Trueb & De Wys,1969). Nesse modelo, carbonados seri-am formados em altas temperaturas,quando impurezas adsorvidas se deslo-cariam para as bordas dos cristalitos, erecristalização parcial causaria a agrega-ção destes. Entretanto nenhum proces-so geológico foi sugerido como causa-dor do fenômeno.

Hall (1970) conseguiu experimen-talmente a formação de possíveis“carbonados” sintéticos a partir dematéria grafitosa sob altas tempera-turas. Robinson (1978) especulouque tais processos poderiam ocor-rer em zonas de subducção pela in-

filtração nas mesmas de material ricoem carbono, hipótese essa que setornou a primeira proposta genéticade conotação geológica. Novamen-te, porém, não se especulou comoos carbonados poderiam atingir de-pois os níveis crustais.

Figura 2 - Superfície original do carbonado, mostrando a pátina marrom-avermelhadaescura e lustrosa (foto em microscópio estereoscópico).

Figura 3 - Superfície de fratura de um carbonado, revelando os cristalitos de diamante(pequenos pontos brilhantes) e os poros (cor escura) relativamente grandes eabundantes; a pátina escura é visível na periferia do carbonado (foto em microscópioestereoscópico).

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4. Modelamentosgenéticos

Além da “sugestão” precursora deRobinson (1978), quatro principais mo-delamentos mais elaborados quanto àgênese do carbonado são encontradosna literatura, detalhados a seguir.

4.1 A hipótese de Smith eDawson (1985)

Segundo esses autores, carbona-dos se formariam pelo metamorfismo deimpacto sobre rochas crustais contendocarbono orgânico ou grafita, pela quedade corpos extraterrestres durante o Pré-Cambriano. Tal proposta baseou-se: (a)na presença de inclusões tipicamentecrustais, além da ausência de fases indi-cadoras kimberlíticas; (b) no conteúdode carbono “leve” (∂13C ≅-28), típico derochas carbonosas crustais, enquantodiamantes kimberlíticos possuem taxasmédias muito mais altas; (c) na grandeprobabilidade de terem ocorrido tais im-pactos sobre tais rochas carbonosas,baseando-se na observação de craterasna lua e planetas próximos; (d) na pre-sença de diamante e lonsdaleíta nas cra-teras de impacto de Ries (Alemanha) ePopigai (Sibéria, Rússia). Polkanov et al.(1973, in Kaminsky, 1991) sugeriram queos agregados diamante-lonsdaleíta dealuviões da Ucrânia poderiam resultar deestruturas semelhantes.

Smith e Dawson (1985), no entan-to, desconsideraram o fato de que car-bonados estão sempre associados a di-

amantes monocristalinos nos depósitosde pláceres (ou paleopláceres), como naserra do Espinhaço e na República Cen-tro-Africana (CAR), omitindo o fato ex-tremamente improvável de ocorreremduas fontes distintas que supririam taisdepósitos com diamantes e carbonados,em locais distantes entre si. Também foimal esclarecido o fato de que, pelo bom-bardeio meteorítico pressuposto, enor-mes massas de quartzo teriam se trans-formado nos polimorfos coesita e stisho-vita, fases não encontradas nos pláce-res em questão ou como inclusões noscarbonados.

4.2 A hipótese de Kaminsky(1991)

Estudos desse pesquisador russolevaram a uma considerável evoluçãosobre os processos de formação doscarbonados. De início, foi reconhecida aexistência de dois tipos essencialmentedistintos em termos de composição, pro-priedades e modo de formação: (i) car-bonado comum, designado “Braziliantype” e (ii) “yakutita”, uma nova varie-dade (Tabela 1). Na variedade yakutita,cuja composição química incluiria o po-limorfo lonsdaleíta, estariam os agrega-dos conhecidos em aluviões da Yakutia(Rússia). Esse material já havia sidodescrito como “diamante hexagonal”(Bundy e Kasper, 1967) e “carbonadocom lonsdaleíta” (Orlov & Kaminsky,1981), cuja gênese se daria pelo impactode meteoritos sobre rochas crustais(Hanneman et al. 1967 - as três últimascitações em Kaminsky, 1991). Nessa ca-

tegoria, também estariam os agregadosencontrados em pláceres da Ucrânia.

Dessa maneira, Kaminsky (1991)argüiu contrariamente as idéias de Smithe Dawson (1985) sobre uma origem ex-traterrestre para a questão, assim comoas de Hall (1970) e Robinson (1978),considerando que os carbonados sinté-ticos são diferentes dos seus congêne-res naturais, desde o tamanho dos cris-talitos (muito maiores nos sintéticos) atéas características dos deslocamentos es-truturais. Nos carbonados naturais, ve-rifica-se uma alta densidade de desloca-mentos, sendo tais feições orientadas ir-regularmente e nunca mostrando poli-gonalização (ao contrário dos sintéticos).Como essas últimas características sãotípicas de altas temperaturas, e carbona-dos não as apresentam, foi especuladauma possível influência de radioativida-de para causar a agregação “fria” dos cris-talitos.

Tendo como base pesquisas sobrepelículas de diamantes ultrafinas, a ener-gia de superfície dos cristais recém-for-mados é um potencial termodinâmico in-dependente e de direção oposta em rela-ção ao potencial químico. Assim, quan-do o tamanho dos cristalitos é pequeno(r>100nm), o diagrama de equilíbrio grafi-ta-diamante não difere do “tradicional-mente” conhecido. Entretanto, quandoesse tamanho é muito mais reduzido(r<10nm), a superfície de equilíbrio defases declina notavelmente para o domí-nio de baixa pressão. A agregação doscristalitos no carbonado sob baixas pres-sões foi ainda apoiada no estudo de Bre-ger (1964, in Kaminsky, 1991), que en-

Tabela 1 - Principais aspectos comparativos entre as variedades de diamante carbonado e yakutita (modificado de Kaminsky, 1991).

Propriedades dos cristalitos Carbonado Yakutita

Forma Irregular, isométrica Hexagonal achatado

Peso médio, em quilates (ct) 1-40ct (< 3167ct) 0,01-0,2ct (< 2,2ct)

Tamanho dos cristalitos 0,5-80 µm (usualmente 10-40) 0,1-1 µm

Estrutura Ausente Presente

Fases do carbono, que não diamante Não ocorrem Lonsdaleíta (< 50%)

Composição isotópica de carbono δ13C -23,2 a -30,6% -9,9 a -20,1%

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controu “diamond-like clusters” em ro-chas uraníferas do Colorado (EUA), ex-plicando tal fenômeno devido à radioati-vidade do meio.

4.3 A hipótese de Ozima et al.(1991) e Kagi et al. (1991, 1994)

Após Kaminsky (1991) ter especu-lado que carbonados poderiam se for-mar na crosta, a partir de carvão expostoa U-Th, sem a existência de altas tempe-raturas e/ou pressões, Ozima et al. (1991)identificaram produtos de fissão espon-tânea nas composições isotópicas degases nobres contidos nesses materiais.De modo semelhante, Kagi et al. (1991),ao observarem carbonados através defotoluminescência induzida a laser, en-contraram marcas de bombardeio porexposição à radioatividade; entretanto aconexão com rochas carbonosas, pro-posta por Kaminsky, foi consideradamera sugestão.

Novos estudos sobre carbonadosda RCA levaram Kagi et al. (1994) a umaproposta genética complexa, onde a ra-dioatividade teria um importante papelna agregação dos cristalitos de diaman-te, os quais, porém, teriam uma origem“ordinária” no manto. Da mesma formaque nos outros modelos, no entanto,esses autores não especificaram quaisos possíveis mecanismos geológicos degeração dos microcristais de diamantes,nem seus modos de emplacement ouambientes de agregação na crosta. Emsíntese, propôs-se que os cristalitos seformaram no manto, com base na formade ocorrência do nitrogênio contido noscristalitos formando pequenas lamelas(platelets) por recozimento, comporta-mento típico de uma gênese mantélica.Posteriormente, na crosta, os microcris-tais seriam expostos a partículas-a emiti-das por U/Th sob temperaturas e pres-sões moderadas. Tal processo resultariana formação dos centros de cor bombar-deados pela radiação e na “supercolagem”dos microcristais. Finalmente, esses sofre-riam corrosão por fluidos hidrotermais, queocasionariam também a dissolução do U eparte dos elementos terras-raras contidosnas inclusões, além da incorporação deminerais de origem crustal.

4.4 A hipótese de Haggerty(1995)

Nesse modelo, aspectos interessan-tes do carbonado foram ressaltados,como a cor geral cinza-escura com tona-lidades variáveis até preta-azeviche, mar-rom e avermelhada; a pátina externa im-plicando fusão e rápido resfriamento; aporosidade alta, embora a permeabilida-de seja extremamente baixa; e a ausênciade inclusões “verdadeiras”, pois as in-clusões conhecidas representam materi-ais infiltrados entre os grãos. A partirdesses dados e pelo fato de sua distri-buição ser muito restrita, porém apare-cendo em quantidades apreciáveis noBrasil e na República Centro-Africana,Haggerty (1995) especulou que algummecanismo exótico deveria ser requeri-do para a síntese do material.

A hipótese procurou mostrar queum stress hidrodinâmico gerado acusti-camente poderia ocorrer sob temperatu-ras (>5000oC) e pressões (acima de 1Mbar) superelevadas. Tais condições sedariam durante a cavitação momentânea(de micro- a picosegundo) de microbo-lhas em colapso e implosão, as quais ex-cedem largamente as mínimas requeridaspara a formação de diamantes. Embora acavitação tivesse sido previamente su-gerida para a cristalização do mineral emkimberlitos (Galimov, 1973), considerou-se tal processo pouco plausível nessasrochas, pois a formação de bolhas é umfenômeno de baixa pressão de confina-mento, estando em desacordo com a pre-sença comum de inclusões de pressãoalta a muito alta nos diamantes.

O material de “partida”, propostoneste modelo, seria a água molecular tri-dimensional na forma de gelo (clatrato),de ocorrência natural nas margens con-tinentais dos oceanos. Os clatratos cons-tituem estruturas cristalinas porosas (ver-dadeiras “gaiolas”), onde gases estãoaprisionados; seus tipos “I” e “II” sãocúbicos, os últimos possuindo simetriaestrutural do diamante, além de versatili-dade para hospedar moléculas de gasesde pequeno e grande diâmetros. Haggerty(1995) afirmou que o metano, comum nosclatratos naturais, seria o gás preferen-cial sugerido. Na presença de água, são

conseguidas altas proporções H:C cau-sando protonação (i.e., hidrogênio) e aadesão requerida para a colagem do dia-mante, processo semelhante ao de de-posição a vapor para síntese de filmesultrafinos de diamantes sob baixas pres-sões e altas temperaturas no estado deplasma.

Assim, a cavitação acelerada balis-ticamente poderia justificar a porosida-de, os gases nobres detectados, as páti-nas de fusão e a própria colagem. A fon-te sônica, desconhecida, teve algumassuposições: atividade sísmica intensa,explosões sônicas associadas a vulca-nismo explosivo, choque e irradiaçãotransmitidos pelo som devido ao impactode meteorito ou cometa, etc. Haggerty(1995) finalizando, deixou a questão: aformação dos carbonados teria entãoocorrido em evento único, arqueano,quando Brasil e República Centro-Afri-cana seriam territórios contíguos? As-sim, caso o processo for relacionado aoimpacto de corpos extraterrestres, a cra-tera Chicxulub, do limite K-T na Penín-sula de Yucatan (México), poderia serum ambiente ideal de formação (e procu-ra) de carbonados.

5. Discussão sobreo problema na serrado Espinhaço

Os modelamentos genéticos previ-amente discutidos, com soluções com-plexas, díspares, e nenhuma delas apoi-ada em dados geológicos de campo, fa-zem crer que o problema da gênese doscarbonados ainda está longe de uma res-posta final. Entretanto, a partir do co-nhecimento geológico sobre a região doEspinhaço, deve-se ressaltar que:

• Carbonados ocorrem na matriz de ro-chas metassedimentares rudáceas,juntamente com diamantes monocris-talinos, nas regiões da Chapada Dia-mantina (BA) e do Espinhaço Central(MG), em seqüências proterozóicasdesignadas de Formação Tombador eFormação Grão Mogol, respectiva-mente. No Espinhaço Meridional (tam-bém em MG), nunca foi constatada a

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Diamante variedade carbonado na serra do Espinhaço (MG/BA) e sua enigmática gênese

presença de carbonados nos conglo-merados diamantíferos (FormaçãoSopa-Brumadinho). É interessanteobservar que as duas unidades porta-doras de carbonados são crono-cor-relatas e situam-se sobre a FormaçãoSopa-Brumadinho (Chaves et al., 1999,Uhlein & Chaves, 2001). Assim, pare-ce que a época de maior aporte de car-bonados é algo posterior à fase riftinicial, datada entre 1,75-1,70 Ga (e.g.Dussin & Dussin, 1995, Uhlein & Cha-ves, 2001), quando houve o suprimentodos sedimentos formadores da basedo Supergrupo Espinhaço a partir deuma área-fonte a oeste, no Cráton doSão Francisco.

• Considera-se improvável que, na área-fonte dos sedimentos que alimentarama bacia Espinhaço, houvesse, ao mes-mo tempo, intrusões ultrabásicas kim-berlíticas/lamproíticas e o choque ca-taclísmico de algum bólido espacialcom a Terra (como proposto nas hipó-teses de Smith & Dawson, 1985, e deHaggerty, 1995), para gerarem quasesimultaneamente diamantes monocris-talinos e carbonados. Dessa maneira,essas duas hipóteses parecem estarbastante prejudicadas frente ao con-texto geológico verificado no Espinha-ço. Além disso, Chaves (1997) consi-derou as populações de diamantes(monocristalinos) encontradas no Es-pinhaço Meridional/Central como mui-to semelhantes, sugerindo, assim, umaprovável origem comum para ambas.

• De outro modo, a hipótese deKaminsky (1991), aperfeiçoada com osestudos de Ozima et al. (1991) e Kagiet al. (1991, 1994), indicou que os car-bonados se formaram em níveis pro-vavelmente sedimentares ricos em U eTh, onde microdiamantes mantélicosteriam condições de se agregar embaixas temperatura e pressão. Nessecontexto, salienta-se que uma das ca-racterísticas das populações de dia-mantes da serra do Espinhaço é a pre-sença conspícua de cristais com “capaverde”, cuja gênese é atribuída à radi-oatividade emanada a partir de mine-rais e/ou soluções ricas em U e Th (e.g.Vance et al. 1973, Chaves et al. 2001).

• Embora desconhecido, tal ambientegerador da agregação dos microdia-mantes em carbonados, responsávelpela formação das capas verdes nosdiamantes monocristalinos e cujas ro-chas já foram erodidas durante o pró-prio processo de evolução da baciado Espinhaço, deve ter sido intracra-tônico, pós-emplacement das rochasfontes primárias, além de sin- a pós-rifteamento gerador da bacia do Espi-nhaço. Esse ambiente sedimentar, aquidesignado de “camada-X”, foi prova-velmente continental e de calmaria tec-tônica, recebendo a contribuição derochas graníticas cratônicas, ricas emminerais radioativos.

6. ConclusãoEmbora, na atualidade, a definição

da gênese do diamante tenha atingidoum adiantado grau de compreensão, avariedade policristalina carbonado ain-da carece de conhecimento adequado.Muitos pesquisadores, em particular ja-poneses e russos, procuram o entendi-mento de tal mecanismo genético, visan-do a objetivos comerciais de produzir di-amantes sintéticos a custos inferiores.No presente estudo, procurou-se de-monstrar que o equacionamento de talquestão deve, de modo obrigatório, pas-sar pela contextualização geológica, aqual foi sempre relegada a segundo pla-no, e que análises ainda mais sofistica-das que as atualmente disponíveis fa-zem-se necessárias para tal compreen-são. Não obstante, acredita-se que, en-tre os modelos explicados, a hipótese deKagi et al. (1994) parece a que mais estáadequada ao conhecimento geológicodisponível para os depósitos brasileiros.Nesse contexto, as capas verdes se for-maram nos diamantes monocristalinos eos carbonados se agregaram conjunta-mente, em um mesmo ambiente sedimen-tar aqui designado de “camada-X”.

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Artigo recebido em 30/05/2003 eaprovado em 05/05/2004.