MARTINS, Jose de Souza - A Imagem Incomum

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    Criao / Fotografia

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    Reflexes introdutrias

    sobre uma sociologia do conhecimento visualFOTOGRAFIA, na perspectiva sociolgica ou antropolgica, sabemos, noesgota as possibilidades cognitivas nos temas cuja visualizao permite (1).Por trs da fotografia, mesmo aquela com inteno documental, h uma

    perspectiva do fotgrafo, um modo de verque est referido a situaes e significa-dos que no so diretamente prprios daquilo que est sendo fotografado e da-queles que esto sendo fotografados, mas referido prpria e peculiar inserodo fotgrafo no mundo social. Sem contar, obviamente, as limitaes propria-mente tcnicas da fotografia, que chegam a ter repercusses culturais duradouras.Um bom exemplo que nas populaes sertanejas do Brasil ainda hoje, mesmoem face de cmeras ultra-rpidas, as pessoas se perfilam diante da mquina, o cor-po enrijecido, a respirao contida. Algo que, a rigor, nada tem a ver com a foto-grafia na atualidade, mas de fato memria de um tempo em que a fotografiadependia de exposies longas e at de poses pr-determinadas. Freqentemente,o fotografado tinha que contar com o apoio de algum meio disfarado, como acadeira de espaldar alto, um poste, uma parede, um porto, para manter-se im-vel pelo longo tempo necessrio ao ato de fotografar.

    Mas h tambm dimenses, significaes e determinaes ocultas na reali-dade fotografada. O verossmil no necessariamente o verdadeiro e, certamen-te, no o concreto, embora seja o real. Por seu lado, ao fotografar, o fotgrafoimagina. Tambm o socilogo e o antroplogo, ao fotografar, imaginam, do mes-

    mo modo que imaginam quando fazem suas outras formas de registro, mesmoque se possa e at se deva pensar numa imaginao fotogrfica(ou numa imagi-nao sociolgica, como prope C. Wright Mills) (2). De Margareth Mead a Os-car Lewis, a histria do trabalho antropolgico registra e reconhece vrios epis-dios e orientaes imaginativas, de natureza valorativa, que afetaram os rumos deobservaes e descobertas.

    Aimagem incomum:a fotografia dos atos de fno Brasil*JOSDESOUZAMARTINS

    A

    * Trabalho apresentado no Symposium on Popular Religion and Visual Culture in Brazil,organizado pelo Centre for Brazilian Studies e pelo Pitt Rivers Museum, da Universida-de de Oxford (Inglaterra), no Ashmolean Museum, em 1 de fevereiro de 2002.

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    Aimaginao fotogrficaenvolve um modo de produo de imagens foto-grficas, a composio e a perspectiva, o apelo a recursos tcnicos para escolher e

    definir a profundidade de campo, enfim um modo de construir a fotografia, dejuntar no espao fotogrfico o que da fotografia deve fazer parte e o modo comodeve fazer parte. O chamado congelamento do instante fotogrfico , na verdade,a reduo das desencontradas temporalidades contidas nos diferentes componen-tes da composio fotogrfica a um nico e peculiar tempo, o tempo da fotografia.

    nessa construo, nessa reduo dos tempos da realidade social ao espa-o da imagem fotogrfica e ao seu tempo aparentemente nico, que o fotgrafoimagina, isto , constri a sua imagem fotogrfica, aquilo que quer dizer atravsda fotografia. Mas, das expresses de um rosto aos elementos simblicos dovesturio e da circunstncia da fotografia, inevitavelmente agregam-se imagemfotogrfica os decodificadores que a descongelam, isto , que revelam a di-menso sociolgica e antropolgica do que foi fotografado. Se a fotografia aparen-temente congela um momento, sociologicamente, de fato, ela descongelaesse momento ao remet-lo para a dimenso da histria, da cultura e das relaessociais. O congelar no mais do que o sublinhar elementos de referncia deum imaginrio cujo mbito no se restringe ao reducionismo dos supostos con-gelamentos. O pressuposto de que a fotografia um ato de congelamentono mais do que ideologia do ato fotogrfico, algo bem distante da apreciaopropriamente cientfica do que a fotografia.

    Os fotografados tambm imaginam, e se imaginam, e so agentes e perso-nificaes das estruturas e dos processos sociais de que tm apenas uma compre-

    enso imaginria ou, simplesmente, ideolgica.Portanto, decifrar o que se esconde por trs do visvel (e do fotografvel)

    continua sendo um desafio para os cientistas que se documentam com expres-ses visuais da realidade social. Um desafio, sobretudo, de natureza metodolgica.Talvez as coisas fiquem um pouco mais fceis se pudermos lidar com a documen-tao visual, e especialmente com a fotografia, enquanto meio de compreensoimaginria da sociedade e abrirmos mo, de vez, da iluso de haver na fotografiaum documento socialmente realista e objetivo (3). As fantasias, as iluses, as dis-tores, os equvocos de interpretao de senso comum, as expresses de falsaconscincia ou de auto-engano tambm so documentos relevantes para as cin-

    cias sociais, para o estudo das mentalidades e das relaes entre conscincia sociale relaes sociais. At porque outras tantas fantasias entram cotidianamente nojogo dos relacionamentos sociais face-a-face, at de modo mais ou menos cons-ciente (4). nesse jogo que os processos interativos so surpreendidos e analisa-dos pelo socilogo jogo que a encenao, o relacionamento apoiado no ima-ginrio, como premissa do ato de desvendamento prprio do conhecimento so-ciolgico, que dele difere e a ele se ope.

    Mesmo que consigamos fazer uma etnografia dos elementos da composi-o fotogrfica e consigamos, portanto, desconstruir os tempos da fotografia

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    para chegar realidade social que ela pretende documentar, estaremos em facede algo que outra coisa, diversa daquilo que estava l no momento do ato

    fotogrfico. Teremos que admitir que essa realidade no mais ela mesma e simuma realidade mediada pelo tempo da fotografia, pelo olhar e pela situao socialdo prprio fotgrafo, por aquilo que ele socialmente representa e pensa isto ,pelas nfases que na composio decorrem do ato fotogrfico, pelos objetos etemas que, desse modo, so colocados no horizonte visual da sociedade e de seusmembros. Com a fotografia, a sociedade passa a ver mais e a ver menos ao mes-mo tempo, porque passa a ver atravs da mediao de um instrumento tcnicoda sociedade racional e moderna.

    No entanto, eu no diria que a fotografia de interesse sociolgico possa serconsiderada hbrida combinao de fico e realidade. O ilusrio sociologica-mente mediao constitutiva do real. A questo tem sido, portanto, para os soci-logos, ou reconhecer-lhe a legitimidade ou rejeit-la como documento social. Acmera fotogrfica dota a sociedade moderna de um instrumento de produode uma conscincia visual prpria e caracterstica da modernidade: racionaliza etecnifica a produo da imagem, ampliando a possibilidade da conscincia fanta-siosa e, ao mesmo tempo, libertadora nos cerceamentos do mundo da razo e datcnica. Mas uma conscincia fantasiosa limitada a um eixo de referncia, que a prpria sociedade e sua dinmica de tensa disputa entre produo e reproduodas relaes sociais (5). Portanto, uma conscincia fantasiosa constitutiva do reale do que supomos socialmente objetivo, a representao de uma sociedade queoculta e domestica sob a razo e a racionalizao algumas de suas necessidades

    fundamentais de expresso, de emoo, de criao e de vivncia (6).A suposta pureza virginal da sociedade observada se perde no ato fotogr-

    fico, ao mesmo tempo em que se enriquece com a luz que advm dessas media-es e intervenincias. Nesse sentido, perdem-se as cincias sociais no falso dile-ma da distino entre fotografia documental e fotografia artstica. No s porquepode haver uma indiscutvel dimenso artstica na fotografia documental, comona obra fotogrfica de Sebastio Salgado ou de Pierre Verger (7), como obvia-mente h uma indiscutvel dimenso documental na fotografia artstica.

    A insistncia nessa fratura limita e empobrece o campo da sociologia visual,o que se tornar cada vez mais grave na medida em que o amadorismo fotogr-

    fico, uma fonte documental de importncia crescente na sociologia, estar cadavez mais marcado por orientaes estticas e por um deliberado aperfeioamen-to esttico do ato fotogrfico. Algo cada vez mais distante da ingnua fotografiapopular estudada h alguns anos por Pierre Bourdieu e sua equipe (8).

    Para o socilogo, o importante da fotografia est no imaginrio social deque ela meio, na imaginao mediadora que suscita. O socilogo l a fotogra-fia indiretamente, atravs da compreenso que dela tem o homem comum, dainterpretao da vida social e da conscincia social de que ela instrumento eexpresso. A sociologia visual poderia ser tambm e, talvez, sobretudo uma socio-

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    logia doconhecimento visual, sociologia de um modo de conhecer visualmente asociedade e suas relaes sociais e um modo de conhecer a conscincia social e os

    meios e modos cada vez mais diversificados de sua expresso.A leitura popular da fotografia, a leitura que dela faz o homem comum ecotidiano, se prope, sobretudo em seus usos, nas formas espontneas de inter-pret-la, nos comentrios que suscita, nas recordaes que viabiliza, na vivnciaque promove (9). Na concepo popular da fotografia, a sociedade se projeta, seprope interpretativamente. Essa no a nica leitura possvel da fotografia, masdo ponto de vista sociolgico a que se poderia definir como leitura documentale, portanto, uma das matrias-primas do conhecimento relativo construo so-cial da realidade. Refiro-me, particularmente, sociologia centrada nos proces-sos interativos e na relevncia da mediao simblica que neles h, uma sociolo-gia que reconhece a eficcia da dimenso fenomnica nos relacionamentos e naconscincia social. Portanto, uma sociologia fundada no pressuposto de que asociedade se prope interpretao sociolgica como estrutura social e comoprocesso cognitivo ao mesmo tempo. O que pede uma sociologia do conheci-mento de senso comum, na concepo de Berger e Luckmann (10), e mesmouma sociologia do conhecimento na concepo clssica de Karl Mannheim (11).

    O visvel e o invisvel na religiosidade popular brasileira

    Neste texto, no me proponho a fazer apenas uma interpretao, uma lei-tura de fotografias relativas ao mundo da f, nem a fazer apenas uma reflexosobre o uso documental da fotografia em relao ao tema da exposio Acts of

    Faith, que rene trabalhos de cinco conhecidos fotgrafos brasileiros (12). En-tendo que no se podepensar a fotografia, nesses casos, sempensar o objeto dafotografiae, tambm, pensar o objetivo da fotografia. Uso, objeto e objetivodafotografia so temas inter-relacionados.

    O tema proposto pela exposio , nessa perspectiva, particularmente ricode sugestes e desafios antropolgicos e tambm sociolgicos (13). A obra doscinco autores expostos trata de um dos aspectos mais complexos e mais desafia-dores da cultura brasileira a religio popular, em especial o catolicismo populare suas manifestaes, suas prticas, o imaginrio que lhe d sentido e de que parte (14). No raro que se veja em documentao assim a evidncia de um cer-to folclorismo ingnuo do povo e, para muitos, at um certo atraso, evidncia deuma recusa em aceitar o inevitvel mundo moderno. Minha compreenso vaicontra essa tendncia ainda muito forte no Brasil, no s nos crculos letrados,mesmo nos meios acadmicos, mas tambm nas organizaes polticas.

    Ouvi h alguns anos, no serto do centro-oeste do Brasil, uma devota can-tando um belssimo bendito aprendido em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, centrode romaria de que h fotografias nessa exposio. Lembro de uma estrofe dessecanto devocional e litrgico:

    Bendito e louvado sejaNosso Senhor da Pobreza.

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    Se o pobre no trabalhar,O rico no tem nobreza.

    Nada menos idlico e folclrico do que essa expresso de uma devooreligiosa atravessada por uma conscincia clara das diferenas sociais e das razessociais da pobreza. Uma conscincia ainda referida, tanto tempo depois, ao carterestamental da diferenciao social na Colnia: as diferenas sociais so apreendi-das a partir da postura soberba dos ricos, numa poca, persistente alis, em que apostura, isto , o dar-se a ver, era momento constitutivo e essencial da hierarquiasocial. Uma evidncia no s de uma certa conscincia da estratificao social,mas tambm da enorme relevncia do ver e do visvel na ordenao dos estamentos o que tem sentido numa sociedade em que a ostentao era parte dos meios dedominao. Uma ostentao que acercava vivos e mortos do altar-mor das igre-

    jas, como se v na ordem dos sepultamentos nos templos catlicos: mais pertodo sacrrio, e de Deus ali simbolizado, os mais ricos e poderosos. Portanto, umaostentao que, de algum modo, era um regalo divino, prprio dos puros desangue e puros de f. Marcas de ostentao que faziam de um rico um cavaleirocalado e do pobre um peo descalo, formas visveis da diferenciao social. Asdiferenas sociais tinham que ser vistas para serem legtimas, algo que permanecena cultura brasileira at hoje. Por isso mesmo, a transgresso no dar-se a ver, ofazer-se ver com a mscara do outro, do que domina, tem sido uma forma poli-ticamente imperceptvel de protesto social dos pobres. Uma espcie de inversocarnavalesca das identidades, uma inverso alegrica.

    O ver e o ver-se ficaram inscritos profundamente na realidade das relaessociais e, sobretudo, da conscincia religiosa, como um poderoso resqucio da fe do ordenamento social barrocos. Um modo de vida que distinguia os quetinham estilo (e direito a t-lo) dos que no o tinham. No estranho, portanto,que a difusa e lenta insurgncia popular no Brasil inclua a captura da ostentaodos ricos pelos pobres, como se v em fotos das devotas da Irmandade da BoaMorte, em Cachoeira, na Bahia, ostentando a estola sacerdotal do padre catlico.E se v, tambm, em vrias fotos de Tiago Santana em que aparecem beatos ebeatas vestidos improvisadamente de frades, padres e monjas (15). Uma capturade um fundamental equipamento de identificao do estamento sacerdotal, como forte significado de uma transfigurao simblica e imaginria.

    Nela a ordem social aparece invertida, revertida atravs de equipamentosde identificao que transladam os humilhados e ofendidos para o mbito dosagrado, redimindo-os simbolicamente da humilhao de sua subalternidade (16).No casual, pois, que as mais significativas rebelies populares na histria bra-sileira tenham sido, e de certo modo continuem sendo, ao mesmo tempo, ummergulho dos pobres no sagrado, na sacralidade plena. Um arrebatamento, maisdo que uma efetiva revolta. Um justiamento imaginrio levado a cabo pelospobres e injustiados. Expresso de uma conscincia social de que a injustia constitutiva da sociedade que a eles se prope de cabea para baixo, invertida

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    pelo Maligno, que o senhor da riqueza, dos bens materiais, dos poderes e detodas, assim popularmente concebidas, aberraes sociais. Neste caso, atravs de

    vestes e adornos, de o que identifica os agentes do sagrado, h o intento dacaptura do poder do trato com o sagrado, mediao essencial na construo domundo colonial, como privilgio e monoplio dos sacerdotes consagrados.

    As grandes revoltas populares no pas tm estado profundamente marcadaspela mediao das crenas religiosas das populaes camponesas. Mesmo nos l-timos cinqenta anos, em que o pas passou por grandes transformaes sociais epolticas, e sofreu acentuada e generalizada modernizao, os milhares de confli-tos sociais envolvendo comunidades camponesas s podem ser compreendidosse levarmos em conta que a motivao religiosa tem a desempenhado uma fun-o central.

    A migrao de milhares de pessoas do nordeste e do centro-oeste para aAmaznia, a partir dos anos 50 e at hoje, lugar de numerosos conflitos campo-neses, tem sido concebida pelos prprios migrantes como uma imensa romariaem direo terra prometida. No mais das vezes, devotos do padre Ccero deslo-cam-se em busca da mtica Bandeira Verde, cuja existncia ele teria mencionadoem suas profecias, vulgarizadas em folhetos de cordel. Tudo indica que a concep-o utpica resulta de uma mescla de crenas medievais que rene as idias deGioacchino da Fiore sobre a Terceira Era, o tempo do Divino Esprito Santo, com

    o imaginrio das cruzadas e das peregrinaes Terra Santa (17).Eu mesmo ouvi, de um grupo desses migrantes joaquimitas na Amaznia,

    a explicao de que seguiam o rumo da Via Lctea, especialmente visvel no

    Brasil central em certas pocas do ano, o Caminho de Santiago (o caminho deSaint Jacques, o caminho dos peregrinos de Santiago de Compostela, e refern-cia das jacqueries as revoltas camponesas na Europa). Essas crenas sedifundiram no Brasil na poca da Conquista e so at hoje um dos fundamentosda religiosidade popular no pas. Portanto, h nelas um certo milenarismo e umcerto messianismo, no raro associados, ainda, esperana no retorno do jovemrei Dom Sebastio, de Portugal, morto no sculo XVI na guerra contra os mouros.Morte que custou ao reino a anexao coroa da Espanha por um perodo desessenta anos. O maior escritor sacro do Brasil e do ento reino de Portugal, opadre Antnio Vieira, foi joaquimita e sebastianista, razo pela qual chegou a ser

    processado pela Inquisio (18).As duas maiores guerras sertanejas do pas, a de Canudos, na Bahia (1896-1897), e a do Contestado, em Santa Catarina (1912-1916), foram revoltas deinspirao joaquimita e sebastianista. Nas duas, a igreja Catlica apoiou o Estadoe se ps contra os camponeses, que supunha herticos. O maior e mais ativomovimento campons do Brasil, na atualidade, quase um partido poltico, oMovimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), nasceu no interior daigreja Catlica. Nasceu em grupos catlicos (e, em algumas regies, tambmprotestantes) inspirados remotamente na insurgncia nacionalista e joaquimita

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    do padre Ibiapina, de que o padre Ccero foi continuador, do mesmo modo queantes deste o fora Antnio Conselheiro, a figura mtica da guerra de Canudos.

    Para mim, essas referncias so essenciais para compreender as personagense as circunstncias das fotos dos cinco autores expostos, para decifrar muitas dasocultaes e revelaes dessas fotografias e para situar social e historicamente a fpopular e a religiosidade que dela decorre. Eu mesmo fiz pesquisas e fotografiasnesses diferentes lugares ou momentos de devoo popular Pirapora do BomJesus (So Paulo), So Francisco do Canind (Cear), Juazeiro do Norte (Cea-r), Monte Santo (Bahia), Crio de Nazar (Belm do Par), Aparecida do Norte(So Paulo), Trindade (Gois), Santa Cruz dos Enforcados (So Paulo) e as regiesde Canudos e Contestado. Quem chega a alguns desses lugares para o pagamen-to de promessas, importante reconhecer, no deixa para trs a histria da quala romaria aos lugares santos apenas momento. Os devotos reavivam e dovisibilidade ritual, reproduzem e recomeam, as dimenses histricas e simbli-cas profundas da realidade social da qual so agentes ativos.

    O instante da fotografia no recobre seno um fragmento da temporalidadedessa peregrinao pela vida, dessa busca incessante e inacabvel. Por isso, foto-grafias como as dessa exposio pedem uma demora na sua leitura e na suaapreciao. Quase um meditar junto com cada fotgrafo, quase uma liturgia deconciliao do ato fotogrfico com o ato interpretativo. Os muitos detalhes se-cundrios de cada foto contm informaes relativas ao mbito mais amplo e aotempo mais amplo da realidade dos peregrinos. a que o tempo nico da foto-grafia encontra sua contradio. Detalhes que so o mbito e o tempo dos emba-

    tes pelo Bem e tudo que ele significa vida, sade, justia, fartura, abrigo. Oflagrante de um instantneo fotogrfico pode ocultar muita coisa, pode reduzir arealidade social brevidade de um fragmento. Mas no pode ocultar e anular asinformaes da circunstncia, do detalhe que contm o seu prprio tempo, otempo que pode escapar ao olho do fotgrafo.

    A esttica do detalhe em vrias fotos de Tiago Santana sugere, justamente,uma interrogao do fragmentrio, no que para mim um estilo diretamentederivado dos ex-votos de madeira ou de cera. A ida aos lugares sagrados nopode deixar de ser interpretada como breve intervalo, ligeiro descanso devocionalnuma vida de sofrimentos em busca do mundo da Promessa. Uma romaria puri-

    ficadora, como fica evidente quando se compreende quem dela participa. O im-pacto visual de realidades assim na sensibilidade de um fotgrafo, mesmo que eledisso no saiba antropologicamente, pode incorporar composio fotogrfi-ca varias evidncias de uma histria no caminho da Utopia (19).

    A imagem fotogrfica no imaginrio da f

    A religiosidade popular se apossou rapidamente da fotografia no Brasil.Aparentemente, a fotografia veio aperfeioar a funo insuficientemente cumpri-da dos ex-votos no imaginrio religioso. O corpo imaginado das toscas escultu-ras de madeira, mera aluso parte doente e afetada, contaminada, passa a ser

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    substitudo pela verossimilhana da fotografia. Das duas uma: ou a verossimilhanaj era concebida como representao perfeita do milagre, e os meios disponveis

    para express-la no estavam disponveis, sobretudo para os pobres, ou as mu-danas culturais do sculo XIX, que, na sociedade inteira, introduziram a culturado verossmil, da representao visual perfeita, criaram a necessidade social denovos recursos visuais para exprimir o imaginrio. J ouvi expresses de admira-o em relao a pinturas e desenhos: Parece fotografia! Ou reclamaes, quantoa fotografias: No parece eu, No parece ele. Ou elogios: eu!

    A construo incorreta das frases eloqente e essencial neste caso. No raro nas classes populares, no Brasil, a pessoa se referir a si mesma na terceira pes-soa, sobretudo na relao com o estranho ou com coisas estranhas s suas tradi-es. No caso da fotografia, o erro perfeito. Ao ver-se na foto, a pessoa no sereconhece seno como outro, seno como alteridade, como objeto: eu emvez de Sou eu.

    A parecena , nessa cultura, tomada como prova de qualidade da imagemfotogrfica. Antes da fotografia, num pas em que a pintura foi pobre e pouca, osex-votos pictricos tiveram grande importncia. significativo que tenham de-saparecido quase ao mesmo tempo em que apareceu a fotografia: a imagem doenfermo na cama e num canto do cmodo, como apario, como proteo invi-svel, levitando, o santo ou, geralmente, uma invocao de Nossa Senhora vigi-lante e protetora, a figurao do autor do milagre. Mas a pintura vai aos poucosparecendo, por mais imaginativa que seja, meio insuficiente para testemunhar omilagre. Faz-se necessria a palavra escrita, geralmente extensa, narrando o mila-

    gre e sua circunstncia. Uma espcie de nota de rodap da pintura numa culturaem que o imaginrio frtil do catolicismo barroco e prolixo pede a complementa-ridade das expresses no testemunho do acontecido. verdade que a adoo douso da fotografia como ex-voto no dispensou a incluso de textos escritos queexplicam o milagre acontecido. Mas, evidente, tambm, que a economia deescritos nesse caso sugere a maior eloqncia testemunhal da imagem fotogr-fica.

    Nessa fase, a cultura visual estava profundamente marcada pela conscinciade que o real constitudo pelo que se v e pelo que no se v ao mesmo tempo,mas que est l, faz parte do pictrico imaginrio. E o que se v apenas frag-

    mento do que ocorre. A vida cotidiana estava povoada de seres imaginrios,entes benficos ou malficos, que disputavam entre si a alma, atravs do corpodos viventes. O mundo barroco, na Colnia, o mundo de batalhas contnuasentre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo. Numa frase lapidar, posta na boca deum sertanejo, Guimares Rosa sintetiza: E Deus mesmo, se vier, que venhaarmado. A f nesse momento a clara expresso da conscincia desse combate. uma f que transcorre no mundo do imaginrio e da imagem mental, de umaimagem que nem sempre tem condies de materializar-se, at por falta de meiostcnicos que correspondam apropriadamente ao que est sendo imaginado.

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    Mas, a imagem desse imaginrio significativamente confinada ao limiteentre a vida e a morte, em face do risco da morte iminente. A necessidade de dar

    visibilidade ao invisvel foi uma necessidade prpria do mundo colonial, cujosresqucios persistem de vrios modos na cultura brasileira. Era uma necessidadecircunscrita a uma idia de tempo, o tempo da eternidade, do para sempre, doirremedivel. O tempo da passagem do perecvel para o perene, da incerteza paraa certeza. A iminncia da morte como momento final de acerto de contas, depagamento de dvidas materiais e espirituais, de balano perfeito entre o dbito eo crdito, como abundantemente mostram os testamentos da poca colonial. Etambm as figuraes coloniais do anjo so Miguel, pesando em sua balana osmritos e demritos do pecador que bate porta do Purgatrio.

    Nesse mundo, a necessidade de imagem e a necessidade de ver muito almdo cotidianamente visvel so necessidades limitadas certeza de que o invisveldo confronto entre Deus e o Diabo, nico momento em que se acercam dosmortais para disput-los, um invisvel que contm uma potencial visibilidade, ado risco iminente da perdio eterna. Esse risco prope conscincia do homemcomum a necessidade de visibilidade, necessidade de ver, necessidade do conhe-cimento visual, necessidade da correo possvel dos erros da vida nesses mo-mentos liminares de anncio da morte. A chegada da fotografia ao Brasil, commotivaes estrangeiras de uma elite de senhores de escravos culturalmente es-trangeira, desconheceu o lugar especfico do visual na tradio do pas.

    Justamente por isso a histria da fotografia no Brasil a histria da suacaptura por esse momento simbolicamente liminar e pela cultura religiosa que

    nele tem a sua referncia estruturante, a base de sua edificao, que o medo doinvisvel e do conflito fatal que ele contm. A fotografia no entra no Brasil pelaporta estreita do moderno escasso e limitado. Ela entra justamente pela porta lar-ga da religio e da tradio, do papel fundante que o medo teve na religiosidadeengendrada pela Contra-Reforma e pelo Conclio de Trento mesmo que o eli-tismo dos difusores da fotografia faa crer que era ela um momento de constitui-o do moderno no pas. Era muito mais, um poderoso episdio adicional daconstituio da modernidade, isto , do hibridismo cultural bifronte e dupla-mente orientado tanto para o passado quanto para o futuro, tanto para o sagradoquanto para o profano (20).

    O advento da fotografia como cone e como ex-voto sugere uma mudanano imaginrio religioso, reflete a reduo da f ao imaginrio de um real supos-tamente sem ocultaes, sem invisibilidades, sem demnios. De certo modo, afotografia vem cumprindo uma funo iconoclstica na religiosidade do brasilei-ro, destruindo o irrealismo fantasioso das imagens e figuraes barrocas. A f daera da fotografia tornou-se outra f, menos a f do medo e mais a f da esperana.H a uma lenta transformao que ainda no se cumpriu por inteiro. A fotogra-fia pode cumprir a misso de expressar essa f, porque o verossmil nega porinteiro as ocultaes, desconhece e nega o invisvel no real. Tambm porque se

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    corpo sagrado e imortal. O milagre um momento de promiscuidade entre osagrado e o profano, e resulta na sacralizao parcial do corpo, na captura do sa-

    grado pelo profano, que ao mesmo tempo o seu contrrio. H um certo reco-nhecimento de que a parte do corpo que foi objeto do milagre por meio dele sesacraliza. As partes sagradas do corpo, como o tero e o seio, nas mulheres; osolhos, em todos. Os momentos sagrados no corpo, na infncia, na gravidez. significativo que no haja ex-votos das partes pudendas, das partes sexuais docorpo, o profano e o pecaminoso por excelncia, a negao da sacralidade, oinstrumento do prazer e do pecado.

    A fotografia ex-voto anuncia justamente a desordem que h na relaoentre profano e sagrado, entre mortalidade e imortalidade, na oferenda sacrificialde uma parte do corpo, no sacrifcio da privao de um ornamento natural.

    A figurao das partes do corpo que foram objeto da interveno divina re-fere-se a uma espcie de segundo nascimento, de ressurreio parcial. A represen-tao por excelncia. O estar em lugar de. a que mais intensamente se revela oimaginrio, no s atravs do imaginado, mas sobretudo do fazer o outro imaginar.

    O milagre nos fala do limiar da morte, a desordem suprema porque defini-tiva, porque reordena os mundos o do transcendente e o da vida. O milagrenosfala do tempo, nos fala de transubstanciao das partes mortas, doentes, docorpo em partes vivas, sadias; nos fala de renascimento, de transformaes.

    A ordem da exposio de fotos e objetos nas salas dos milagres nos fala,porm, de classificao e nosfala de espao, de permanncia, de poder. Portanto,as salas de milagres dos santurios brasileiros no nos falam apenas de imagens

    fotogrficas, que beatas e funcionrios do sagrado procuram ordenar para asse-gurar a sua mais intensa visualizao, como se v na foto que Antonio Saggesefez na sala dos milagres de Aparecida do Norte, em 1992 [FOTO2]. O nguloescolhido ressalta, justamente, a pequenez de quem observa a sala, o testemunhocoletivo constitudo por milhares de fotografias de pessoas alcanadas pela graade um milagre uma espcie de abbada da f. Tiago Santana, alis, deu-seconta desse detalhe significativo ao construir, no recinto da exposio Benditos,em So Paulo, uma capela imaginria ao redor da imagem do padre Ccero, cujasparedes e teto so forrados por fotografias de pessoas.

    Mas a ordem do exposto no a ordem do acontecido nem a ordem do

    testemunhado. A ordem do exposto, o extico dos critrios de classificao, ape-nas revela a tentativa burocrtica de assegurar a ordem num espao de poder, que o espao do templo e dos gestores do sagrado. A se prope a contradio queh entre o sagrado e o profano. verdade que o sagrado regenera as rupturas doprofano, repe a aparncia da ordem na desordem do inaparente, do que nopode ser visto. Pode apenas ser testemunhado. Porm, h uma grande contradi-o entre a visualidade proposta pelo beneficirio do milagre e a visualidadeexibicionista e classificatria que os funcionrios do sagrado procuram dar aosobjetos de que so apenas depositrios e gestores.

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    Assim como os funcionrios do sagrado procuram ordenar visualmente osobjetos que testemunham a eficcia da f, cabe perguntar que ordenamento pro-

    pem os fotgrafos dos atos de f. Qual propriamente o milagre da fotografia?Em Saggese, esse intuito ordenador claro: ele intenta mostrar e demonstrar amaterialidade obsolescente dos ex-votos, a mortalidade dos testemunhos da imor-talidade, as imagens fotogrficas. S pode faz-lo proclamando a imortalidadeesttica da fotografia, o estilo, a fotografia como obra de arte. A fotografia da fo-tografia que ele pratica procura restituir fotografia a sua dimenso de arte. Isto, procura resgat-la da promscua convivncia com o imaginrio vulgar e o sensocomum. Procura reencontrar no produto banalizado como ex-voto perecvel, or-denvel pelos gestores do sagrado, a desordem do nico, a sacralidade do esttico,a universalidade de um modo de ver, mais do que simplesmente do que visto.

    Desencantamento e desconstruo nas imagens da fEssa perspectiva reaparece em Christian Cravo de um outro modo. Ele

    intui a sobrevivncia dos resqucios do barroco numa realidade social aparente-mente desprovida de estilo, a dos pobres, dos penitentes, dos que tm f. elo-qente a foto do penitente, em Bom Jesus da Lapa, que carrega um crucifixo,em que as pessoas que o circundam so quase tocadas pela mo estendida de umsanto barroco, um missionrio agnico nas contores do xtase [FOTO3]. Elaconstitui uma inigualvel expresso dessa busca, dessa procura de liames com omundo do atual, do sem-estilo. Cravo documenta a persistncia de um mundoem que o estilo era fundamental, em que a vida cotidiana ainda no se constitu-

    ra, a vida de todo dia mergulhada integralmente no sagrado, como foi o mundocolonial. Um mundo que sobrevive de muitos modos nessa fora do sagrado, nasinvases constantes de um cotidiano indeciso e mal constitudo, inacabado einacabvel.

    S a fotografia permite esse encontro dos tempos, essa durabilidade estti-ca da f no mundo residual da Conquista, mesmo na suposio discutvel de quea fotografia congela o tempo e institui o seutempo, que apenas o tempo doaparente. A imagem barroca, que foi por sculos a mediao na construo socialdo catolicismo popular, se encontra na mesma cena com o homem comum pos-sudo pela mesma f barroca. O ato de f move e comove os circunstantes, pesso-as e imagens. O crente que ergue o crucifixo enche de vida o Cristo agonizante

    que segura com as duas mos como se fosse um Cristo ressuscitado, ressurgindodas sombras da morte, como se fosse um milagre triunfal do povo da rua. Hmovimento e vida nessa imagem que mescla estilos de um quadro da Renascenacom o do Cinema Novo brasileiro, como O Pagador de Promessas, de AnselmoDuarte, ou Deus e o Diabo na Terra no Sol, de Glauber Rocha.

    No obstante, um certo ceticismo se apresenta nas fotografias de TiagoSantana, em Juazeiro do Norte, uma certa descrena presente no registro dedecodificadores do que est sendo fotografado decodificadores que dessacralizama cena, que num certo sentido a poluem. So referentes que impedem a invaso

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    da fotografia por fices de sacralidade pura e exemplar, por algo que poderia serdefinido como fotografia edificante. uma atitude propriamente fotogrfica e,

    num certo sentido, hertica. Ainda que com outra linguagem, expressa valores pa-recidos com os que orientam a fotografia de Antonio Saggese. Isso talvez se ex-plique pelo fato de que, sendo nativo da regio, Tiago Santana cresceu presencian-do a mescla visual, a indistino de sagrado e profano, a banalidade do aparentena rotina de uma cidade de peregrinao e de encenao de episdios de f extre-ma. Justamente a a fotografia fala mais do fotgrafo do que do fotografado.

    O que pode um fotgrafo ver no barroco tardio e insistente de tantas ma-nifestaes de misticismo e f das festas religiosas brasileiras e dos lugares deromaria, lugares de acerto de contas com o sagrado?

    No seu olhar de surpresa e de estranhamento, pode ver e fixar aspectosmidos de um grande e solene rito de reconciliao do homem com sua divinda-de perdida. Porque o humano aparece inteiramente na coisa adorada. A f popu-lar em grande parte o reconhecimento penitencial desse estranhamento, a rela-o culpada e penitente com a divinizao das carncias que se consubstanciamna divindade imaginada, buscada, desejada.

    Os fotgrafos da exposioActs of Faith, cujas obras esto expostas, docu-mentam, no detalhe mido de gestos dirigidos ao sagrado e nos intervalos estra-nhos que o sagrado permeia, justamente as evidncias do sagrado, a construosocial do sagrado. A participao litrgica do romeiro, do pagador de promessas,dirige liturgicamente a ateno dos participantes para o sagrado em si. O partici-pante da liturgia no tem com o sagrado a relao de observador. Ele parte,

    com sua presena, da prpria sacralizao, porque ali ele se consagra.O olhar de certo modo hertico ou descrente do fotgrafo v o invisvel,

    isto , o irrelevante do ponto de vista litrgico, os referenciais de desconstruoda sacralidade da imagem fotogrfica (22). Sacralidade, alis, que capturou a fo-tografia como ex-voto muito antes de a fotografia se interessar pelo sagrado. Ofotgrafo estranha o que v. A fotografia a, portanto, o documento desse es-tranhamento revelador. Os temas falam das midas e, aparentemente, irrelevantescaractersticas da relao com o sagrado. Falam, pois, de um sagrado que noest apenas, nem essencialmente, na liturgia e, portanto, nas aes dos funcion-rios do sagrado, mas de um sagrado que est em toda parte, embora no neces-

    sariamente em todos os momentos. Um sagrado, porm, que domina um tempomaior da vida do que apenas o tempo do ofcio litrgico.O fotgrafo, portanto, desmente sem querer a tese da fotografia como

    congelamento do tempo, do mesmo modo que essa falsa premissa desmentidapela prpria existncia de uma disciplina como a sociologia visual. A indagaosociolgica sobre o visual impossvel a partir do pressuposto de que na fotogra-fia o tempo congelado, fixado, suprimido. Pois a sociologia lida com processossociais e, portanto, com a mediao de alguma concepo de tempo, seja o tem-po da interao social, seja o tempo da Histria.

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    Esse , tambm, um sagrado que se apossa mais intensamente do corpo doque do espao que o circunda, de modo que as fotografias nos revelam mais os

    gestos da prestao ritual e do corpo como mediao entre o sagrado e o profa-no. Os corpos revelados na sua singularidade pelo cenrio que ora confirma osagrado, ora o nega. Tudo depende do olhar do fotgrafo em face da polissemiavisual densa dos cenrios em que se desenrolam os atos de f.

    Por isso, Antonio Saggese pode propor a deteriorao da imagem fotogr-fica dos pagadores de promessa e seu envelhecimento, sua promiscuidade e suadesordem como desconstrutores do sagrado. Na verdade, esse no o foco pri-meiro que explica sua fotografia. Em suas fotos de fotografias em tmulos dete-riorados de diferentes lugares (23), de psteres erticos consumidos pela sujeirade borracharias, de marcenarias, de oficinas de conserto de automveis, ele pro-pe o reconhecimento do que se poderia definir como o desencantamento visual dafotografia. Mas, justamente, essa proposta ganha desdobramentos nas fotogra-fias de ex-votos. Esse paradigma de deciframento da fotografia destinada ao con-sumo, mais do que ao uso, tem um alcance adicional quando o autor dirige suaslentes para o terreno das prticas religiosas. A se amplia o mbito de conjecturasrelativas a um certo fetichismo da fotografia, que o objetivo de seus ensaios:por que a foto deteriorada, convertida em objeto de consumo, que seria destina-da ao lixo, permanece como cone, venerada ou admirada em paredes de adobe,em meio a ferramentas ou recoberta de serragem em marcenarias e carpintarias?

    Em um de seus trabalhos, Saggese fotografa duas fotografias comparativase comprobatrias do milagre no homem que exibe o brao direito enfermo e, na

    seqncia, o brao direito so. Coincidindo com partes do corpo fotografado, cu-pins cor de ferrugem se aglomeram sobre a imagem em preto e branco [FOTO4].Uma terrvel proposio visual das trmitas devorando a fotografia, uma metfo-ra do corpo do fotografado sendo devorado pelos vermes. Justamente, a afirma-o da ressurreio da parte doente do corpo. Uma alegoria da morte e da f quepode venc-la.

    A imagem, a fotografia e o ex-voto propem-se como expresses mortas emortais da celebrao do milagre e da vida que o milagre assegurou. Nesse enve-lhecimento, a fotografia fotografada se revela fotografia, fetiche, como querSaggese. As composies falam de contextualizaes distantes dos vvidos e sole-

    nes momentos de pagar promessa. Saggese nos fala de uma f esmaecida pelotempo, devorada pelo suceder dos dias imagens desfiguradas pela mescla ins-lita que junta solenes esculturas e pinturas com prosaicos objetos do mundosimples dos que tm f. Fala, tambm, do confronto inevitavelmente corrosivoda imagem religiosa com a imagem fotogrfica dos que tm religio, como se vna foto feita em Congonhas do Campo: a parte inferior de um quadro que retra-ta o Crucificado com dezenas de fotos encaixadas a esmo entre a tela e a moldu-ra, antiga e dourada [FOTO5]. De verdade, Saggese nos fala da pobreza cotidianada fotografia que se deixa consumir pelo tempo muito depressa. Nela o contem-

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    porneo se torna obsoleto o produto fotogrfico no resiste corroso que lheimpe a obra de arte e o sagrado. Saggese nos fala da fotografia como banalizao

    da imagem desprovida de dimenso esttica.A fotografia deteriorada, usada mais do que contemplada, ganha consis-tncia e dimenso esttica na fotografia da fotografia, na crtica esttica do atofotogrfico que se reduz ao produto de uma f capturada pela coisa. Saggeseprope uma fotografia cuja pompa est na circunstncia.

    A obra de Saggese, ao mostrar a fotografia abandonada nas salas de mila-gres dos santurios, pode nos dizer, tambm, que a vida da fotografia s podeexistir no interior de processos interativos, isto , no calor da memria. A foto-grafia como instrumento da interao imaginria com os ausentes (e com osmortos). Os pantees fotogrficos nas casas de famlia, nas paredes, nos lbuns,nas gavetas, nas caixas de sapatos, nos falam de uma hierarquia da memria, dosprximos e dos distantes, desde os que precisam ser revistos imaginariamentecom freqncia ao longo dos momentos da vida cotidiana, todos os dias, aos queprecisam ser vistos na liturgia familiar do lembrar, nos episdicos momentos devisitar os lbuns de famlia, at os que so acidentalmente revistos nas buscas emcaixas e gavetas.

    Ao fotografar as fotografias mortas e abandonadas dos pantees sagradosdas igrejas, Saggese nos envia diretamente ao cenrio prprio da fotografia, comodocumento da imortalizao que h nos afetos, no amor, na memria. Sociolo-gicamente, esse tipo de fotografia nos fala da dimenso imaginria dos processosinterativos e, portanto, das circunstncias muito especficas da morte social, como

    morte da lembrana, como falecimento da memria. A fotografia se constituinum meio essencial de sustentao da sobrevida dos mortos, da continuidadeimaginria das relaes sociais mesmo depois da morte (24). Por esse meio, fala-nos da comunidade imaginria que se sobrepe mortalidade fsica do contem-porneo.

    dos vivos que a fotografia quer falar, mesmo quando fala de mortes cul-turais e simblicas. Ou quando nos fala de um sagrado cercado, ameaado decorroses de todo tipo, mas que, no entanto, persiste, se renova, at mesmo in-corporando a fotografia que o condena.

    Nas fotos de Bassit, o sagrado se implanta num cdigo de vivos e vivacida-

    des. Aquele pequeno Cristo crucificado no meio da multido de devotos emBom Jesus da Lapa mais um companheiro do que um deus [FOTO6], do mesmomodo que os ex-votos de Canind, amontoados, mistura desordenada de cabe-as, ps, braos, desindividualizam promessas e milagres [FOTO7]. Mas sobre-tudo o casal idoso de Canind, a mulher com a maqueta de uma casa na cabea[FOTO8], que parece oferecer-se ao fotgrafo como prova visual do carter pro-fano das reivindicaes dos penitentes. Talvez.

    A casa simblica modesta, com o nmero e uma cruz desproporcional nafachada. Quase um pedido de bno com endereo para que no haja erro.

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    Romeiros e penitentes carregando maquetas de casas na cabea podem ser vistosem vrios centros de devoo no Brasil. Vi um grande nmero de pessoas carre-

    gando essas maquetas na procisso do Crio de Nazar, em Belm, em 2000.Muitas dessas casas tinham detalhes, o que parece indicar a representao da casareal, at com garagem para o carro.

    Neste caso, em particular, a casa pobre e simples. a cruz na fachada quenos fala da dimenso simblica da casa na cultura sertaneja, velho costume medie-val que chegou ao Brasil e sacralidade da casa j no incio da colnia uma casauterina, como demonstram os ritos funerrios e os cuidados e tabus com osmortos na ordem da disposio do corpo e da sada do funeral: ordem inversa do nascimento (25). A cruz pintada na porta da frente, um sinal para repelir eafastar o anti-Cristo. A casa, como casa de Deus, aparece nas folias do Divino enas folias de Reis j no intrito dos cnticos, associando o sacrrio da hstia coma casa da famlia: Deus te salve, casa santa, entoam os folies cantores.

    Mas uma casa que fruto de trabalho. No interior do Brasil, a mulhernormalmente faz seu trabalho de carregar produtos da roa em cestos assentadossobre uma rodilha de pano na cabea potes de gua, trouxas de roupa, feixes delenha. Um gesto bem feminino de trabalho numa cultura em que no raro amulher se considera burro de carga. Alis, a palavra rodilhasignifica tambmpessoa desprezvel, subalterna, insignificante. Assim, a casa, na cultura sertaneja, uterina na arquitetura simblica e tambm feminina nas funes. a mulherquem paga a promessa. O homem a mero coadjuvante, como acontece nogeral na vida domstica rural. A casa, com seus utenslios, da mulher. Da os

    ritos de purificao que a cercam, as providncias para evitar sua contaminaopela morte e pelos malefcios que sempre lhe so externos e, especialmente, oscuidados para afastar o mau-olhado em relao aos recm-nascidos. Na culturasertaneja e da religiosidade popular, a casa est simbolicamente oposta morte eao morto e a tudo que possa matar, fsica e simbolicamente.

    Embora seja pouco provvel que o fotgrafo tenha clareza a respeito dessadimenso antropolgica do que est fotografando, justamente este fato acentuaa importncia documental de sua fotografia. O que pode ter sido pictoricamente in-teressante no ato de fotografar interessante justamente porque carrega consigouma completa e evidente carga de significados. Embora os fotografados no narrem

    expressamente o contedo antropolgico de sua representao, de sua teatralidade,seus atos, vivncias e representaes compem deliberadamente um fato socialtotal. As expresses e a ornamentao litrgica do ato dizem tudo, conectam ogesto ao objeto, definem o todo do pagamento de uma promessa ou de realiza-o de uma promessa. Mais, a idade dos fotografados nos fala da casa comoprojeto de uma vida. O sentido de uma vida inteira est ali a casa e a famlia.

    Vejo esse contraponto dessacralizador tambm em Procisso, de Jos Bassit,feita em Juazeiro do Norte [FOTO9]: a casa rstica de pau-a-pique ou adobe, asjanelas abertas, o morador debruado numa delas, apreciando a procisso que

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    passa, cuja sombra se projeta sobre as paredes da casa, a cruz, os estandartes. Noobstante, os homens esto de chapu.

    Algumas perguntas: Por que as janelas esto abertas? Por que o moradorest em casa e no na procisso? Por que alguns homens na procisso esto dechapu? A prpria fotografia no oferece respostas a essas perguntas. No hnada nela que oferea um decodificador. As janelas abertas indicam, sem dvida,uma orientao oposta orientao da morte, ocasio em que as janelas sofechadas. As janelas abertas falam do sentido profundo da procisso de peregri-nos, a sua fora sacralizadora. Falam de acolhimento bno e vida que elarepresenta. A janela aberta um convite a que o pblico invada o ntimo, a queo que bendito se aposse do que sagrado, a casa, o lugar da famlia e da vida.

    Em Juazeiro do Norte, um morador que no participa de uma atividadeto importante como a procisso pode indicar vrias coisas: uma delas (que aparece,de certo modo, na fotografia de Santana) a cidade de romeiros como cidadevoltada para o de fora e no para o de dentro o de dentro numa relao deaparente indiferena quanto ao sagrado, algum cuja rotina de vida no demarcada pela contraposio de festa e trabalho, de sagrado e profano. Arotinizao do sagrado gera a passividade do morador, cuja vida quase certa-mente dependente de atividades econmicas relacionadas com a vida religiosa dolugar. Ele quase um funcionrio do sagrado, um auxiliar do culto.

    Essa procisso de sombras e fantasmas pretende ser, tambm, a mensagemdo fotgrafo. Entre as sombras que desfilam e as pessoas que dela participam, ofotgrafo viu sentido nas sombras e no nas pessoas. Viu sentido na alegoria da f

    e no na sua prtica, no no ato de f. Ou, ento, quis atribuir uma dimensoalegrica a esse ato. H nisso um ver fotogrfico que no cotidiano, que sepreserva em relao quilo que contempla, que no se deixa convencer pela ten-tao do documental.

    Cotidiano o ver do morador da casa, que se debrua na janela como meroespectador no momento da procisso e da fotografia. Ele real e no alegrico.Ele v os que crem. Ele contempla o teatro da f, a celebrao da f. O cotidianocontempla o no-cotidiano. Nessa foto, o fotgrafo celebra seu prprio estra-nhamento. Nela tambm o cotidiano contempla o no-cotidiano da f trans-formada em festa e teatro religioso, em agir no regulado por regras cotidianas, as re-

    gras da sobrevivncia. O tema do contemplativo e o fotgrafo contemplativo, comona fotografia de Saggese, do consistncia justamente quilo que nega a dessacralizao.Os chapus na cabea intrigam. Numa populao sertaneja, que, ao mencio-

    nar o nome de Deus e de qualquer santo, costuma levantar o chapu em sinal derespeito, esse estar de chapu na procisso nos diz que a sacralidade da procissono completa, nos diz que a procisso momento de ir ao sagrado, mas no o sagrado. o prembulo do sacro. Isso talvez explique a passividade espectado-ra do homem na janela, a desnecessidade de incorporar-se sacralidade provis-ria do momento.

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    A fotografia e o fotgrafo na construo social do sagrado

    Nessas contraposies, quero destacar em particular a foto em que Bassit

    retrata o romeiro ciclista carregando pesada imagem do padre Ccero na cabea,enquanto ao lado passa um caminho de romeiros, um pau-de-arara [FOTO10].Essa foto pode ser tomada como uma combinao de preciosismo tcnico e grandesorte do fotgrafo. Mas sobretudo um documento sobre a competncia deBassit. Na composio da foto tudo se ajusta, at mesmo a sombra do ciclista eseu santo na porta da cabina do caminho de romeiros, como um contrapontoda devoo apressada e descansada. Em primeiro lugar, documenta uma certahierarquizao da f dos romeiros. H romeiros e romeiros. H os que vo aolugar sagrado, como os que esto no caminho. O ato de f se cumprir sobretu-do no lugar de destino. A sacralidade do ato fica confinada ao momento espec-fico de testemunhar a gratido. Tiago Santana tambm fotografou situaes quetestemunham essa concepo de f: a do romeiro cujos gestos e modos falam deuma f fragmentria, uma f j atravessada pelo cotidiano e pelo moderno. Santanasublinha os momentos, documenta essa modalidade de f residual de uma hist-ria que sucumbiu a transformaes e desfiguraes.

    O ciclista de Bassit cumpre desde a partida, e ao longo do caminho, um atopenitencial. Sua f ntegra, integral. No est confinada aos momentos de umaliturgia fragmentada, seqencial, na qual o leigo mero aclito do celebrante emero cliente da instituio religiosa. O ciclista da foto cumpre funes sacerdo-tais claras. H uma dimenso sacrificial no seu gesto e na sua opo. Ele sabe ograve que seria se a imagem do padre Ccero casse e quebrasse, uma profanao.

    Ele oferece a Deus mais do que a viagem ao lugar sagrado. Ele oferece sua f, acerteza de que o poder do Padim Cio no deixar que isso acontea. Na verda-deira f no h riscos, apenas certezas absolutas. Sobre a bicicleta trafega umcorpo sacralizado pela f e pelo sacrifcio de semelhante mandato. Ela o andordo santo, o pedestal. Faz-nos lembrar das prticas penitenciais dos que carregampesadas pedras na cabea para pagar suas promessas. Um so Cristvo do ser-to, que carrega nos ombros o profeta em sua travessia. Uma forte concepo daf barroca: s h f no sofrimento e sofrimento ostensivo. Uma f testemunhal,missionria, destinada a comover e converter os incrus. Uma f ainda colonial.

    Essa foto nos fala da sacralizao do corpo no correr do ato penitencial,

    tema que, de vrios modos, aparece na obra de outros fotgrafos expostos. Nasfotos de Christian Cravo est proposta a funo litrgica das mos enquantoliame entre o mundo carnal e o mundo espiritual: junto ao esquife do SenhorMorto dos ndios kiriri, de Mirandela [FOTO11], na casa dos milagres e na precede uma mulher na igreja de Juazeiro do Norte [FOTO12]. Ou na tentativa intilde tocar o rosto torturado do Senhor dos Passos, em So Francisco do Canind[FOTO13]. Ou ainda nas mos erguidas para o cu, em Bom Jesus da Lapa [FOTO14]. As mos, em particular a mo direita, estendem-se para colher e recolher asacralidade dos santos ou dos cus. extrema a importncia das mos, em espe-

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    cial da mo direita, no contato com o sagrado mos de um corpo dividido,decomposto em partes, classificado, inserido no universo das dilaceraes do mun-

    do: o sagrado e o profano, o puro e o impuro, a mo direita e a mo esquerda.O poder simblico das mos reaparece na obra fotogrfica de Tiago Santanasobre Juazeiro. No qualquer mo que enlaa o carnal e o espiritual. As mosnas fotos de Santana so no geral mos profanas no cenrio do sagrado e no asmos da sacralidade. So mos da vaidade ou mos utilitrias ou mos inteis.Em sua fotografia, elas so opunctum: o que uma mo diz, a outra desdiz (26)[FOTO15]. Essa desconstruo est claramente presente na foto feita em Juazeirodo Norte, em 1993, das duas mulheres rezando com a cabea encostada na pe-dra, ao p da escultura monumental do padre Ccero. A mo esquerda da mulhermais nova, de trana e roupa escura, constitui um quase sacrilgio no ambientede beatas e romeiros de Juazeiro do Norte. Pelo teste que fiz na foto preto-e-branco, as unhas esto pintadas, provavelmente de vermelho, uma cor que causaarrepios nos seguidores do padre Ccero, evitada em trajes e objetos. Os romei-ros usam de preferncia o azul claro e o branco, cores de Nossa Senhora dasDores, da devoo do Padim (27). A mesma mo, verdade, segura um tero,mas tambm ostenta anis e uma pulseira. A pessoa ostenta no pescoo um colarde metal, provavelmente dourado. O contraste claro com a senhora idosa, aolado, de roupa clara, sem adornos, que pousa a testa sobre a mo direita. As mosesto a polarizadas no seu simbolismo forte na religiosidade popular brasileira:do mal a mo esquerda e do bem a direita. Opostos que se repelem, aquimarcados justamente pela mo esquerda, que ostenta o ouro, o bem da Besta,

    como advertem os textos de cordel sobre as profecias do padre Ccero, textos tocheios de sugestes de imagens. A mo profanadora que contrasta com a cenareaparece na foto de 1995, dos fiis na via-crcis da penosa subida ao horto. Nocanto esquerdo, a pessoa negra olha na direo contrria enquanto consome umpicol [FOTO16].

    De diferentes modos, os temas desconstrutivos esto presentes nas foto-grafias dos cinco autores.

    Adenor Gondim documenta momentos solenes dos desempenhos rituaisda Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, de Cachoeira, na Bahia. Essacorporao de mulheres descendentes de escravos africanos, que praticam o can-

    dombl, inverte o costumeiro sincretismo, que apresenta em primeiro plano san-tos catlicos que so, ao mesmo tempo, ocultaes de divindades africanas. Emsuas prticas religiosas, essas mulheres proclamam a mortalidade de Nossa Se-nhora que, segundo a crena, no morreu, mas foi arrebatada. Humanizam,portanto, a me do Deus catlico e a tornam sua cativa, velando-a como semorta fosse no dia da celebrao de sua ascenso ao cu [FOTO17]. Praticam algoque , certamente, o elemento constitutivo mais forte do catolicismo popular: asinverses, o manejo dos contrrios como meio de lidar com a conciliao cultu-ral impossvel, a funcionalidade irrealizvel.

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    Em Canudos e no Contestado, guerras camponesas de motivao religio-sa, as inverses reencantaram o mundo, regeneraram as conexes rompidas e as

    estruturas sociais dilaceradas pelas inconsistncias do mundo material e profano.As devotas da Boa Morte atuam no limiar do profano e do sagrado, mas tambmno limiar do catolicismo e do candombl. A bela e competente fotografia deAdenor Gondim mostra-o bem. Negam, de fato, o suposto sincretismo. Apos-sam-se dos paramentos catlicos, como a estola da sua celebrante, enquantoadorno adicional de suas vestes solenes, rituais e tradicionais.

    Um dos aspectos sociologicamente mais importantes da existncia e atuaoda Irmandade da Boa Morte est na substancializao das palavras. Nossa Se-nhora da Boa Morte, na crena catlica, no a Madona que morre, mas a quefaz companhia ao moribundo, que abre seu caminho no doloroso transe, naagonia. A designao de sua devoo, no entanto, foi lida ao p da letra: umaNossa Senhora que tem uma boa morte, a morte desejada, cercada pela famliavicria, as negras egressas do cativeiro, que, com ritos, oraes e a luz das velas,asseguram-lhe a libertao que a boa morte representa. No seu contrrio, ela setorna uma Nossa Senhora que morre, que inverte os cdigos e os poderes de que expresso e smbolo. Uma Nossa Senhora mortal que carece do amparo doshumanos e, dentre eles, dos mais humilhados, os que carregam no corpo e nahistria pessoal as marcas profundas do cativeiro injusto, para que se efetive adialtica da ressurreio.

    Essas desconstrues e inverses enchem de imagens e adornos os rituais.E, tambm, de imagens possveis, como as imagens fotogrficas, que vemos aqui.

    As religies populares no Brasil tm sido intensamente visuais. Excetuadosepisdios de represso policial contra as culturas africanas (o candombl, a capo-eira), em que as prticas tiveram que se disfarar no interior de outras formasculturais sancionadas pela lei ou pela tradio, desde a Conquista as prticas reli-giosas sempre tiveram intensa visualidade. E o visual parece ter estado associadono s teatralidade da relao com os catecmenos: a colonizao foi tambmcolonizao visual, colonizao do olhar dos povos subjugados.

    possvel fazer uma ampla etnografia do olho, do olhar e do visual nacultura subalterna das populaes rsticas do Brasil. Essencial a centralidadesimblica do olho na agonia, no momento da morte, juntamente com a impor-

    tncia do ouvido e da fala (da boca). O crucifixo ou o santo de devoo domoribundo para ser visto, tocado e beijado no momento extremo, um modode ocupar os sentidos no instante do perigo maior, o risco da posse da alma pelodemnio um circunstante obrigatrio no imaginrio da agonia no catolicismopopular brasileiro. Esse o momento supremo do visvel, justamente quando ovisvel se nega no invisvel das ocultaes prprias desse momento liminar. Nega-se no que tem visibilidade unicamente atravs da f.

    A se constitui o campo socialmente ambguo e contraditrio em que estsituada a rica diversidade de imagens possveis em que os fotgrafos podem mo-

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    ver-se. Esse um mundo de tradio, mas tambm de criatividades potenciais, deintervenincias possveis, de expresses formalmente novas do que parece antigo

    e persistente.Se em Cravo e Gondim existe uma esttica da f, uma recaptura do Barro-co que ainda h nas evidncias da f por parte dos crentes, em Bassit, Santana eSaggese existe um intuito claro de negar esse Barroco, de indicar a materialidadecircunstante da prtica da f no catolicismo popular. Os dois ltimos nos falamdo progresso inevitvel do que propriamente secular, do cerco que limita e de-marca at os momentos mais solenes e de maior entrega na manifestao da f,como o das romeiras rezando de cabea encostada na base da esttua monumen-tal do padre Ccero.

    Pode-se, pois, refletir no s sobre a fotografia dos fenmenos religiosos,mas tambm sobre as circunstncias especficas da absoro do fotgrafo na pr-pria construo social do sagrado.

    Nos vrios centros religiosos ou lugares de peregrinao em que estive, possvel observar uma gradao no comportamento dos fotografados. Impe-seainda a proposio de que no s a fotografia se incorpora ao sagrado, mas tam-bm o fotgrafo. Admiti-lo na cena sagrada, tolerar sua atuao diversa da atuaopropriamente litrgica, tolerar sua intruso e recri-lo simbolicamente comoprotagonista do culto, mesmo que disso ele no se d conta.

    Nesse caso, contraditoriamente, o fazedor de imagens reconhecido comoum iconoclasta potencial. Sua iconoclastia est no desconstrutivismo de suas com-posies, no seu necessrio af de superar e negar o realismo da verossimilhana.

    Est na sua misso de ir alm da suposta epistemologia do olho e do olhar. nesse plano que a fotografia pode tornar-se obra de arte. nesse plano, tambm,que ela pode se tornar antropolgica e sociologicamente documental (28), o queme permite supor que o tempo e o espao do sagrado nessa cultura de converso,que a do catolicismo popular, constituem-se em mediaes ao mesmo tempodemonizadoras e includentes. nesse maniquesmo autoprotetivo que se move(ou no se move) o fotgrafo dos fenmenos religiosos e nele que a fotografiapode ter (ou no ter) abrigo e sentido.

    Nos momentos mais sagrados, h maior indiferena em relao a quemfotografa. So os momentos de maior concentrao e compenetrao. Momen-

    tos em que as pessoas se deixam confundir com o sagrado: elas prprias socomponentes da sacralidade. H uma certa metamorfose das pessoas, umadespersonalizao, uma queda da mscara, da persona. So os momentos de in-tensa objetivao do sagrado, de constituio de um todo nico, singular, espe-cfico na comunho do sujeito e do objeto. Um momento de transfigurao.

    Pude ver isso em certos momentos no Crio de Nazar. Momentos deintensa emoo, de intensa identificao com o objeto sagrado, de intensa entre-ga. Em Aparecida do Norte, na sala das velas, tambm possvel ver isso, aindaque com menos dramaticidade. A atitude mais atitude de orao, de contem-

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    plao. Em Bom Jesus de Pirapora, o mesmo pode ser dito das pessoas quesobem a escada para orar brevemente aos ps do Cristo sofredor. E a, como no

    Crio, tambm se v a necessidade de tocar o objeto sagrado, o toque que asse-gura a consumao do sagrado e a purificao do crente. As fotos que fiz dospuxadores da corda da berlinda de Nossa Senhora de Nazar, na procisso doCrio, so fotos de corpos e, sobretudo, rostos torturados pela dor e pelo sofri-mento fsico. (Uma procisso que teve 1,7 milho participantes no ano 2000.) Oespao circundante se sacraliza nessas atitudes, incorporando todos e tudo, aindaque com diferenciaes bvias, do mais sagrado ao menos sagrado. H uma or-dem que inclui tudo nas gradaes do sagrado.

    Nos lugares de romaria, comum a realizao de uma foto de famlia de-fronte a uma imagem do santo ou, sobretudo, defronte fachada da igreja. Athoje os romeiros que vo a Aparecida do Norte querem ser fotografados diantedo santurio antigo, quase contemporneo da apario da santa, mesmo que sejapara depois levar as fotos para a sala de milagres no monumental e modernosanturio relativamente distante. O novo santurio o lugar da missa e o velhosanturio ainda o lugar do apogeu da f. No novo santurio esto os padres eno velho est a santa, no a imagem a santa imaginada. A fotografia entra nessaf produzindo a necessidade de imaginar o invisvel, que o sagrado, simboliza-do pelo templo antigo. Da a importncia que adquire a figurao do sagrado nasfotografias de recordao de peregrinaes e romarias.

    Nesse sentido, o aparecimento da fotografia nesse universo da f veio pre-encher uma necessidade: a necessidade de imaginar o sagrado, de imaginar-se no

    sagrado, e a necessidade de verossimilhana nesse imaginar. A necessidade de vi-sualizar o mais precisamente possvel as mediaes simblicas e o objeto consti-tudo pelo milagre, sobretudo de visualizar a sua materialidade, a sua carnalidade,a sua humanidade. Porque o milagre s pode existir na relao dos contrrios: osagrado se troca com o profano, o propriamente material, para regener-lo enessa troca, nesse toque, sacraliza o que foi tocado, promove a ressurreio doque estava morto, na morte parcial da doena, do ferimento, da dor.

    Nessa troca, a fotografia tambm se reveste de sentido como momentosingular do prprio sagrado.

    Notas1 Identifico-me com as mesmas preocupaes tericas de Elizabeth Edwards quanto

    situao do trabalho fotogrfico no limite dos campos especficos da Antropologia eda Fotografia. Cf. Elizabeth Edwards, Border Practices: Photography andAnthropology em Acts of faith: Brazilian contemporary photography (Oxford:BrazilConnects/Pitt Rivers Museum, 2001), pp. 11-14; Elizabeth Edwards, Beyondthe Boundary: A Consideration of the Expressive in Photography and Anthropologyem Marcus Banks e Howard Morphy (eds.) Rethinking visual anthropology (NewHaven e Londres: Yale University Press, 1997), pp. 53-80. Interesso-me especial-

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    mente pela interao de cdigos nos vrios limites que demarcam o territrio dosusos possveis da fotografia e definem a sua polissemia. nessa perspectiva que osocilogo pode produzir uma sociologia do conhecimento visual. Uma esclarecedorareviso crtica e histrica do tema, em particular da relao entre o icnico e o indicial,encontra-se no ensaio de Philippe Dubois, Da Verossimilhana ao ndice em PhilippeDubois. O ato fotogrfico e outros ensaios, traduo de Marina Appenzeller, 2 edio(Campinas: Papirus Editora, 1998), pp. 23-56.

    2 Mills assinala: A imaginao sociolgica permite ao seu possuidor compreender ocenrio histrico mais amplo quanto ao seu significado para a vida interior e para atrajetria exterior da diversidade de indivduos. Ela lhe permite ter em conta como osindivduos, no tumulto da experincia cotidiana, esto com freqncia falsamenteconscientes de suas posies sociais. [...] A imaginao sociolgica nos permite captara histria e a biografia e a relao entre ambas na sociedade. Cf. C. Wright Mills. La

    imaginacin sociologica, (Cidade do Mxico-Buenos Aires: Fondo de Cultura Eco-nmica, 1961), pp. 25-26. Do mesmo modo, a meu ver, por motivaes estticas oudocumentais, a imaginao fotogrficase manifesta na busca dos desconstrutores dovisvel, como ocorre com alguns dos fotgrafos cujas obras foram includas nessamostra. nessa perspectiva que o falsamente consciente pode ser revelado.

    3 til aqui o lembrete de Adorno sobre o mtodo na Sociologia: Em geral, aobjetividade da investigao social emprica de mtodo, no do investigado. Cf.Theodor W. Adorno. La Sociologa y la Investigacin Empirica, emMax Horkheimere Theodor W. Adorno. Sociologica, traduo de Vctor Snchez de Zavala (Madri:Taurus Ediciones S.A., 1966), p. 277.

    4 o que nos sugere a sociologia fenomenolgica, em particular a dramaturgia socialde Goffman. Em especial, cf. Erving Goffman,A representao do eu na vida cotidia-na, traduo de Maria Clia Santos Raposo, 6 edio (Petrpolis: Vozes, 1995).

    5 Cf. Henri Lefebvre. La prsence et labsence: contribution la thorie des reprsentations(Paris: Casterman, 1980), p. 24.

    6 Essas tenses tm sido a referncia do tema do fantasioso e do onrico na sociologia.Bastide j havia indicado a estrutura bsica de sua ocorrncia ao constatar que emnossa civilizao ocidental esto cortadas as pontes entre a metade diurna e ametade noturna do homem. Cf. Roger Bastide. Sociologia do Sonho em RogerCaillois e G. E. von Grunebaum (orgs.) O sonho e as sociedades humanas (Rio deJaneiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1978), p. 138. Fromm retoma o tema da

    conscincia dividida ao distinguir conscincia de viglia e conscincia de sonho.Cf. Erich Fromm. Consciencia y Sociedad Industrial em Erich Fromm et alii. Lasociedad industrial contempornea, traduo de Margarita Suzan Prieto e Julieta Cam-pos (Cidade do Mxico: Siglo XXI Editores, 1967), p. 4.

    7 Salgado, por convices ideolgicas, recusa a interpretao de que sua fotografia sejamais do que fotografia documental e que tenha, portanto, qualquer orientao denatureza esttica. Nos debates de que tem participado e em conversa pessoal quecom ele tive durante a exposio xodos, em So Paulo, ouvi dele a convicta afir-mao de que um reprter fotogrfico. Pierre Verger, que fez da fotografia uma

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    obra de arte sobre a frica negra e o mundo que os escravos criaram nos dois lados doAtlntico, reconhecia que medida que passara a ser definido como antroplogo eaceitara essa identidade, sua fotografia se empobrecera como obra de arte, tendendopara o deliberadamente documental. De fato, numa ampla exposio panormica ecronolgica de sua obra, no Museu de Arte de So Paulo, era possvel constatar omomento dessa inflexo e dessa perda.

    8 Pierre Bourdieu (org.) Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie(Paris: Les ditions de Minuit, 1965).

    9 O tratamento da fotografia como coisa morta e da morte se choca com aspectos doseu uso popular como coisa viva e como fator de vivncia, como ato de afirmao davida. Tiago Santana, um dos fotgrafos aqui considerados, cujo olhar fotogrficoquase iconoclasta um dos fatores da importncia antropolgica de sua fotografia,surpreendeu-se, quando da realizao de sua exposio Benditos, no Cear, em 2000,

    ao constatar que muitas vezes, quem literalmente percorria os caminhos da exposi-o chorava, se sentava em um canto e refletia ou rezava. Cf. O Olhar Atento deTiago Santana sobre os Benditos, O Estado de S. Paulo (Caderno 2), 17 de abril de2001. Ocorre-me, tambm, outro fato relacionado com a vida da fotografia. Umdia, por mos de missionrios catlicos, chegou nica aldeia subsistente dos ndiostapirap, no Brasil central, um exemplar do denso e volumoso livro que sobre elesescrevera o etnlogo Herbert Baldus. Cf. Herbert Baldus. Tapirap: tribo tupi noBrasil central(So Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da Universidade deSo Paulo, 1970). A pesquisa de Baldus fora feita entre os anos 1930 e 1940, quandoos tapirap estavam sendo contatados pelos brancos. Seu livro amplamente ilustra-do com fotografias dessa poca, quando os tapirap ainda se distribuam por mais de

    uma aldeia e ainda no haviam sido dizimados pelos ndios kayap, seus inimigostradicionais. Ao verem as fotos no livro, os tapirap iniciaram o pranto ritual, o chorode acolhimento dos que partiram e voltam. Como fizeram, nos anos 1970, quandoreencontraram na floresta uma famlia de seus compatriotas extraviados e perdidosdesde o ltimo ataque kayap, muitos anos antes. Creio que o uso do retrato foto-grfico na macumba ou na feitiaria outra indicao da fora que alguns grupossociais reconhecem a fotografia como representao viva, como equivalente, mais doque como mera figurao e semelhana.

    10 Cf. Peter L. Berger e Thomas Luckmann. The social construction of reality: a treatisein the sociology of knowledge(Nova York: Anchor Books, 1967).

    11 Cf., especialmente, Karl Mannheim. Ideologa y utopa: introduccin a la sociologa delconocimiento, traduo de Salvador Echavarra (Cidade do Mxico: Fondo de Cultu-ra Econmica, 1941).

    12 Exposio realizada no Ashmolean Museum of Art and Archeology, em Oxford (In-glaterra), de 25 de outubro de 2001 a 3 de fevereiro de 2002, reunindo obras deAdenor Gondim, Antonio Saggese, Christian Cravo, Jos Bassit e Tiago Santana. Aexposio desenvolveu-se simultaneamente com a exposio Opulence and Devotion:Brazilian Baroque Art.

    13 Alguns dos fotgrafos que participam da exposio esto presentes tambm em Maria

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    Luiza Melo Carvalho. Novas travessias: contemporary Brazilian photography (Lon-dres e Nova York: Verso, 1996).

    14 Neste texto, refiro-me principalmente s fotografias reproduzidas no catlogo daexposio, publicado sob o ttuloActs of faith: Brazilian contemporary photography(Oxford: BrazilConnects/Pitt Rivers Museum, 2001).

    15 Alm das fotos desse autor contidas no catlogo da exposio, remeto o leitor, tam-bm, ao livro de Tiago Santana. Benditos(Fortaleza: Tempo dImagem, 2000).

    16 Uso a concepo de equipamento de identificao no sentido em que a prope ErvingGoffman, Internados: ensayos sobre la situacin social de los enfermos mentales, tradu-o de Mara Antonia Oyuela de Grant (Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1970),p. 32. Goffman desenvolve essa idia em conexo com a anlise de processos interativosdesidentificadores. No caso presente, as pessoas incorporam o equipamento de iden-tificao de outro grupo social, motivadas pelo intuito de se apropriar do carismanele supostamente contido.

    17 Cf. Antonio Crocco. Gioacchino da Fiore e il Gioachimismo(Npoles: Liguori Editori,1976).

    18 Cf. Antnio Vieira. Apologia das coisas profetizadas, traduo do latim de ArnaldoEsprito Santo, organizao e fixao do texto de Adma Fadul Muhana (Lisboa: Edi-es Cotovia, 1994), pp. 177-203.

    19 A fotografia dos atos de f, numa situao social e religiosa como a brasileira,amplamente permeada por significaes e orientaes sociais marcadamentemilenaristas ou messinicas, o que especialmente claro no caso do profetismo dopadre Ccero, no pode ser lida e interpretada sem referncia dimenso utpicaque lhe prpria. Tomo utopia no sentido em que a define Karl Mannheim: So-mente sero designadas com o nome de utopias aquelas orientaes que transcendema realidade quando, ao passar ao plano da prtica, tendam a destruir, parcial ou com-pletamente, a ordem de coisas existente em determinada poca. Cf. Karl Mannheim.Ideologa y utopa, p. 169. Nesse caso, sem a contextualizao histrica e antropol-gica dos cenrios, pessoas e situaes sociais fotografados, fica impossvel recuperarna leitura documental da fotografia suas verdadeiras revelaes, especialmente os in-dcios de desconstruo antropolgica e sociolgica da imagem fotogrfica.

    20 H uma concepo historicamente mais ampla do hibridismo latino-americano emNstor Garca Canclini, Culturas hbridas: estrategias para entrar y salir de la

    modernidad(Cidade do Mxico: Editorial Grijalbo, 1990), pp. 65-93.21 Cf. A. Saggese. sua imagem e semelhana(Curitiba: Fund. Cultural de Curitiba, 1995).

    22 Em suas reflexes sobre o embate entre fotografia documental e fotografia expressiva,Elizabeth Edwards trata de modo consistente e sugestivo do lugar do visvel e doinvisvel na fotografia, em particular retornando ao tema do punctumproposto porBarthes. Cf. Elizabeth Edwards, Beyond the Boundary: A Consideration of theExpressive in Photography and Anthropology, pp. 58-59.

    23 Cf.Antonio Saggese(Museu de Arte de So Paulo/Museu de Arte Moderna do Riode Janeiro, 1991).

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    24 Em seu ensaio sobre a fotografia, Barthes retorna diversas vezes ao tema da morte.No meu modo de ver, porm, a ausncia de referncias antropolgicas comparativasem seu estudo circunscreve essa associao a uma viso da moderna classe mdia e seupeculiar secularismo. Barthes, alis, de origem protestante, embora assinale suaeducao artstica catlica, o que torna compreensvel esse aspecto de sua concepoda fotografia como uma espcie de idolatria dos vivos em relao aos mortos. significativo que as ilustraes de seu texto sejam sobretudo retratos. Cf. RolandBarthes.A cmara clara: nota sobre a fotografia, traduo de Jlio Castaon Guima-res (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984), pp. 53, 106, 112-113, 137-138.No caso das fotografias exibidas em Acts of Faith, estamos em face da realidade depopulaes ainda fortemente vinculadas ao mundo pr-capitalista e a uma religiosi-dade bem diferente da que constitui a referncia de Barthes, uma religiosidade queno instituiu ainda a radical separao entre a vida e a morte. Mesmo que, para aspopulaes presentes nas fotos da exibio aqui comentada, a morte seja uma refe-rncia dos atos e no das fotos, estamos em face de uma outra dimenso da morte: amorte como mediao dialtica de uma concepo de vida eterna e de utopia. Por-tanto, a vida como realidade mais forte que a realidade da morte. As fotos nos falamda esperana de vitria do homem sobre sua prpria morte e no da angstia dohomem moderno em face do fim inevitvel, da consumao definitiva, tema, alis, deuma breve e significativa considerao de Weber. Cf. Max Weber. Cincia e poltica:duas vocaes, traduo de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota (So Pau-lo: Editora Cultrix, 1970), p. 31.

    25 Cf. Lus da Cmara Cascudo. Dicionrio do folclore brasileiro(Braslia: Instituto Na-cional do Livro, 1972), p. 199.

    26 Em sua definio depunctum, Barthes se refere ao acaso que punge por oposio astudium(Roland Barthes, op. cit., p. 46). No entanto, a definio de acaso a impre-cisa. Ela poderia legitimamente incluir a intuio antropolgica do fotgrafo no-antroplogo, isto , do autor de fotografia artstica ou documental que incorpora sua fotografia o que o cientista social pode ler e interpretar como decodificador,como revelador da etnografia que h na fotografia no intencionalmente etnogrfica. o caso dos cinco autores dessa exposio. Na sua concepo de inconsciente tico,Benjamin assinala com preciso esse ponto de referncia fundamental para a leiturada fotografia pelas cincias sociais. Cf. Walter Benjamin, Pequena Histria da Foto-grafia emWalter Benjamin. Obras escolhidas, v. 1, 7 edio, traduo de SrgioPaulo Rouanet (So Paulo: Editora Brasiliense, 1994), p. 94. Schaeffer reitera a cons-

    tatao da amplificao do universo visual que devemos ao dispositivo fotogrfico.Cf. Jean-Marie Schaeffer.A imagem precria: sobre o dispositivo fotogrfico, traduode Eleonora Bottmann (Campinas: Papirus Editora, 1996), pp. 20-21. Samain, comen-tando Barthes quanto aopunctum, vai, enfim, ao essencial: Ele o sentido obtuso,um sentido que no pertence mais ao domnio da lngua, mas que se confessa na aber-tura de uma ferida. a ausncia e o silncio de todo sentido que, paradoxalmente,provoca um novo sentido, este grito ntimo, intenso, necessrio a seres vivos, confron-tados naquilo de que sempre a fotografia fala: a vida e a morte, o tempo e a existncia.Cf. Etienne Samain, Um Retorno Cmara Clara: Roland Barthes e a AntropologiaVisual em Etienne Samain (org.) O fotogrfico(So Paulo: Hucitec/CNPq, 1998), p. 131.

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    27 Euclides da Cunha j havia observado na guerra sertaneja e religiosa de Canudos(1896-1897) que os beatos vestem roupas azuis, cingidas as cinturas por cordas delinho alvssimo; no variam nunca este uniforme consagrado. Cf. Euclydes da Cu-nha. Canudos: dirio de uma expedio(Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Edito-ra, 1939), pp. 38-39.

    28 Tomo como referncia dois textos fundamentais sobre o tema. Cf. Robert A . Nisbet.Sociology as an Art Form em Tradition and revolt(Nova York: Vintage Books,1970), pp. 143-162; e Robert Nisbet. Sociology as an art form (Londres: OxfordUniversity Press, 1976).

    Jos de Souza Martins professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da Universidade de So Paulo; fellowde Trinity Hall e professortitular da Ctedra Simn Bolivar da Universidade de Cambridge (1993-94); e membroda Junta de Curadores do Fundo Voluntrio das Naes Unidas Contra as Formas Con-temporneas de Escravido. Dentre outros livros, autor de Reforma Arria o impos-svel dilogo(So Paulo: Edusp, 2000).

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    Foto 1: Antonio SaggesePirapora do Bom Jesus, So Paulo,1992

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    Foto2: Antonio SaggeseAparecida do Norte , So Paulo,1992

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    Foto 3: Christian Cravo Bom Jesus da Lapa, Bahia,1998

    Foto 4:Antonio Saggese Aparecida do Norte, So Paulo,1992

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    Foto 5:Antonio SaggeseCongonhas do Campo, Minas Gerais,1992

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    Foto 6:Jos Bassit Festa do Santurio, Bom Jesus da Lapa, Bahia,2000

    Foto 7:Jos Bassit Ex-votos, Canind, Cear,2000

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    Foto 8:Jos Bassit Canind, Cear,2000

    Foto 9:Jos Bassit Procisso, Juazeiro do Norte, Cear,2000

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    Foto 10:Jos Bassit Juazeiro do Norte, Cear,2000

    Foto 11: Christian Cravo ndios Kiriri rezando, Mirandela, Bahia,1993

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    Foto 12: Christian Cravo Juazeiro do Norte, Cear,2000

    Foto 13: Christian Cravo So Francisco de Canind, Cear,1999

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    Foto 14: Christian Cravo Bom Jesus da Lapa, Bahia,2000

    Foto 15: Tiago Santana Juazeiro do Norte, Cear,1993

  • 7/29/2019 MARTINS, Jose de Souza - A Imagem Incomum

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    FO TO G R A FI A S (PELA O R D EM)

    Foto 16: Tiago Santana Juazeiro do Norte, Cear,1995

    Foto 17:Adenor Gondim Cachoeira, Bahia,1998