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1 MARXISMO E CRISTIANISMO COSMOVISÕES RIVAIS Escrito por Leslie Stevenson & David I. Haberman CONCEPÇÕES RIVAIS DA NATUREZA HUMANA Há muitas coisas que dependem de nossa concepção da natureza humana: no caso dos indivíduos, o significado e o propósito de nossa vida, o que devemos fazer ou nos empenhar por conseguir, o que podemos alimentar a esperança de realizar ou de vir a ser; no caso das sociedades humanas, rumo a que visão de comunidade humana podemos esperar caminhar ou que tipo de mudanças sociais deveríamos fazer. Nossas respostas a todas essas perguntas tão complexas dependem de pensarmos se existe ou não alguma natureza “verdadeira” ou “inata” dos seres humanos. Se existe, qual é essa natureza? Ela difere entre homens e mulheres? Ou não existe nenhuma natureza humana “essencial”, mas apenas uma capacidade de ser moldado pelo ambiente social – por forças econômicas, políticas e culturais? Há muitíssimas divergências acerca dessas questões fundamentais sobre a natureza humana. “O que é o homem, para dele te lembrares? ... Tu o fizeste pouco menos do que um deus, e o coroaste de glória e esplendor” – escreveu o autor do Salmo 8 no Antigo Testamento. A Bíblia vê os seres humanos como tendo sido criados por um Deus transcendente com um propósito definido para nossa vida. “A real natureza do homem é a totalidade das relações sociais”, escreveu Karl Marx em meados do século XIX. Marx negou a existência de Deus e sustentou que toda pessoa é um produto do estágio econômico particular da sociedade em que vive. “O homem está condenado a ser livre”, afirmou Jean-Paul Sartre, que escreveu na França ocupada pela Alemanha, nos anos 1940. Sartre também era ateu, mas diferia de Marx ao sustentar que nossa natureza não é determinada pela sociedade, nem por nenhuma outra coisa. Ele sustentava que toda pessoa individual é completamente livre para decidir o que quer ser e fazer. Em contraste com isso, recentes teóricos sociobiológicos trataram os seres humanos como um produto da evolução, sendo nós dotados

Marxismo e Cristianismo

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MARXISMO E CRISTIANISMOCOSMOVISES RIVAISEscrito por Leslie Stevenson & David I. Haberman

CONCEPES RIVAIS DA NATUREZA HUMANA

H muitas coisas que dependem de nossa concepo da natureza humana: no caso dos indivduos, o significado e o propsito de nossa vida, o que devemos fazer ou nos empenhar por conseguir, o que podemos alimentar a esperana de realizar ou de vir a ser; no caso das sociedades humanas, rumo a que viso de comunidade humana podemos esperar caminhar ou que tipo de mudanas sociais deveramos fazer. Nossas respostas a todas essas perguntas to complexas dependem de pensarmos se existe ou no alguma natureza verdadeira ou inata dos seres humanos. Se existe, qual essa natureza? Ela difere entre homens e mulheres? Ou no existe nenhuma natureza humana essencial, mas apenas uma capacidade de ser moldado pelo ambiente social por foras econmicas, polticas e culturais?

H muitssimas divergncias acerca dessas questes fundamentais sobre a natureza humana. O que o homem, para dele te lembrares? ... Tu o fizeste pouco menos do que um deus, e o coroaste de glria e esplendor escreveu o autor do Salmo 8 no Antigo Testamento. A Bblia v os seres humanos como tendo sido criados por um Deus transcendente com um propsito definido para nossa vida. A real natureza do homem a totalidade das relaes sociais, escreveu Karl Marx em meados do sculo XIX. Marx negou a existncia de Deus e sustentou que toda pessoa um produto do estgio econmico particular da sociedade em que vive. O homem est condenado a ser livre, afirmou Jean-Paul Sartre, que escreveu na Frana ocupada pela Alemanha, nos anos 1940. Sartre tambm era ateu, mas diferia de Marx ao sustentar que nossa natureza no determinada pela sociedade, nem por nenhuma outra coisa. Ele sustentava que toda pessoa individual completamente livre para decidir o que quer ser e fazer. Em contraste com isso, recentes tericos sociobiolgicos trataram os seres humanos como um produto da evoluo, sendo ns dotados de padres de comportamento biologicamente determinados especficos da espcie.

No h de escapar ateno dos leitores contemporneos que essas trs citaes, da Bblia, de Marx e de Sartre, usam todas elas a palavra masculina homem (em traduo para o portugus) quando a inteno era presumivelmente fazer referncia a todos os seres humanos, incluindo mulheres e crianas. Esse uso tem sido generalizado e costuma ser defendido como uma abreviao conveniente, mas viu-se recentemente criticado por contribuir para pressupostos questionveis acerca do domnio da natureza humana masculina e para a consequente negligncia com a relao natureza feminina ou para a consequente opresso desta. H aqui importantes questes, que implicam bem mais do que o uso lingustico.[1] Tocamos em temas feministas em pontos especficos deste livro, mas no os abordamos diretamente: no h um captulo sobre teorias especificamente feministas da natureza humana. Esforamo-nos para evitar linguagem sexista em nossos prprios textos, mas dificilmente a podemos evitar quando se trata de citaes.

Concepes diferentes da natureza humana levam a distintas ideias sobre o que devemos fazer e sobre como podemos fazer. Se um Deus todo-poderoso e supremamente bom nos criou, ento Seu propsito que define o que podemos ser e o que devemos fazer, e temos de buscar Sua ajuda. Se, por outro lado, somos produtos da sociedade, e se julgamos nossa vida insatisfatria, no pode haver uma soluo real at que a sociedade humana seja transformada. Se somos radicalmente livres e nunca podemos fugir necessidade da escolha individual, temos de aceitar essa condio e fazer nossas opes com plena conscincia do que fazemos. Se nossa natureza biolgica nos predispe ou nos determina a pensar, a sentir e a agir de uma dada maneira, temos de levar isso em conta de forma realista.

Crenas rivais acerca da natureza humana so tipicamente personificadas em diferentes modos de vida individuais, bem como em sistemas polticos e econmicos. A teoria marxista (em alguma de suas verses) dominou a tal ponto os pases de regime comunista no sculo XX que qualquer questionamento dela poderia trazer srias consequncias para seu autor. Podemos facilmente nos esquecer de que, h alguns sculos, o cristianismo exerceu uma posio dominante similar na sociedade ocidental: os hereges e no-crentes eram discriminados, perseguidos e at queimados na fogueira.[2] Mesmo em nossos dias, em alguns pases e comunidades h um consenso cristo socialmente estabelecido a que as pessoas s podem se opor pagando algum preo. Na Repblica da Irlanda, por exemplo, a doutrina catlica romana tem sido aceita (at recentemente) como uma limitao imposta a polticas relativas a questes sociais como o aborto, a contracepo e o divrcio. A Igreja Catlica exerce uma forte influncia semelhante na Polnia ps-comunista. Nos Estados Unidos, um ethos cristo protestante informal afeta boa parte das discusses polticas, apesar da separao oficial entre a Igreja e o Estado.

Uma filosofia existencialista como a de Sartre pode dar a impresso de ter menos implicaes sociais. Mas uma maneira de justificar a moderna democracia liberal consiste em recorrer concepo filosfica segundo a qual no h valores objetivos para a vida humana, mas apenas escolhas individuais subjetivas. Esse pressuposto (que incompatvel tanto com o cristianismo quanto com o marxismo) tem grande influncia na sociedade ocidental moderna, indo alm de sua manifestao particular na filosofia existencialista francesa da metade do sculo XX. A democracia liberal se acha entronizada na Declarao de Independncia do Estados Unidos, que apresenta uma separao entre poltica e religio e reconhece o direito de cada pessoa individual no sentido de buscar sua prpria concepo de liberdade. (Deve-se, no entanto, observar que algum que acredita que existem padres morais objetivos ainda pode dar apoio a um sistema liberal se pensar que no aconselhvel tentar p-los em prtica.)

UMA COMPARAO ENTRE O CRISTIANISMO E O MARXISMO

Examinemos um pouco mais detalhadamente os cristianismo e o marxismo como teorias rivais da natureza humana. Embora sejam radicalmente diferentes no tocando ao contedo, apresentam notveis semelhanas em termos de estrutura, na maneira como as partes de cada uma das doutrinas se integram entre e si e do origem a modos de vida.[3] Em primeiro lugar, as suas doutrinas fazem alegaes sobre a natureza do universo como um todo. claro que o cristianismo est comprometido com a crena em Deus, num ser pessoal onipotente, onisciente e perfeitamente bom, o Criador, Dirigente e Juiz de tudo o que existe. Marx condenou a religio como o pio do povo, um sistema de crenas ilusrio que desvia as pessoas de seus reais problemas sociais. Ele sustentava que o universo existe sem ningum por trs ou alm dele, e que sua natureza fundamentalmente material.

Tanto o cristianismo como o marxismo tm crenas acerca da histria. Para o cristo, o significado da histria dado pela relao desta com o eterno. Deus usa os eventos da histria para concretizar Seus propsitos, revelando-Se ao Seu povo prometido (no Antigo Testamento), mas sobretudo na vida e na morte de Jesus. Marx afirmava ter descoberto um padro de progresso na histria humana que inteiramente intrnseco a ela. Julgava haver um desenvolvimento inevitvel de um estgio econmico para outro, de maneira que, assim como o sistema econmico do feudalismo tinha sido superado pelo capitalismo, este seria substitudo pelo comunismo. Ambas as concepes veem na histria um padro e um significado, embora concebam de modos distintos a natureza e a direo da fora motriz.

Em segundo lugar, como decorrncia das alegaes conflitivas acerca do universo, h diferentes descries da natureza essencial de seres humanos individuais. De acordo com o cristianismo, somos feitos imagem de Deus, e nosso destino depende de nossa relao com Ele. Todas as pessoas so livres para aceitar ou rejeitar os desgnios de Deus, e sero julgadas de acordo com o modo pelo qual exerceram essa liberdade.[4] Esse juzo ultrapassa tudo o que existe nesta vida, dado que cada um de ns vai sobreviver morte fsica. O marxismo nega que exista vida aps a morte e qualquer juzo eterno desse gnero. Tambm descarta a liberdade individual e diz que nossas ideias e atitudes morais so determinadas pelo tipo de sociedade em que vivemos.

Em terceiro lugar, h diferentes diagnsticos sobre o que h de errado com a vida humana e a humanidade. O cristianismo afirma que o mundo no est de acordo com os propsitos de Deus, que nossa relao com Deus se acha desfeita, porque abusamos de nossa liberdade, rejeitamos a vontade de Deus e estamos contaminados pelo pecado. Marx substitui a noo de pecado pelo conceito de alienao, que tambm sugere algum padro ideal a que a vida humana concreta no atende. A ideia de Marx, porm, parece ser de alienao do homem com relao a si mesmo, de sua verdadeira natureza: ele alega que os seres humanos tm um potencial que as condies socioeconmicas do capitalismo no lhes permite desenvolver.

A prescrio para um problema depende do diagnstico. Assim, por ltimo, o cristianismo e o marxismo oferecem respostas completamente divergentes aos males da vida humana. O cristo acredita que s o poder do Prprio Deus pode nos salvar de nosso estado de pecado. a declarao surpreendente a de que, na vida e na morte de Jesus, Deus agiu com vistas a redimir o mundo. Todos precisam aceitar esse perdo divino para ento poder iniciar uma nova vida regenerada. A sociedade humana s ser de fato redimida quando os indivduos se transformarem dessa maneira. O marxismo diz o oposto: no pode haver real melhoria das vidas individuais enquanto no ocorrer uma radical mudana da sociedade. O sistema socioeconmico do capitalismo tem de ser substitudo pelo comunismo. Afirma o marxismo que essa mudana revolucionria inevitvel como decorrncia das leis do desenvolvimento histrico; o que as pessoas tm de fazer integrar-se ao movimento progressista e ajudar a abreviar as dores do parto da nova era.

Acham-se implcitas nessas prescries rivais diferentes concepes de um futuro no qual a humanidades estar redimida ou regenerada. A viso crist das pessoas restauradas ao estado que Deus lhes destina, amando e obedecendo livremente ao seu Criador. A vida nova comea assim que o indivduo aceita a salvao de Deus e se integra comunidade crist, mas o processo tem de se completar para alm da morte, visto que os indivduos e as comunidades so eternamente imperfeitos nesta vida. A viso marxista a de um futuro neste mundo, de uma sociedade perfeita em que as pessoas possam ser quem de fato so, j no alienadas pelas condies econmicas, mas livremente ativas na cooperao de umas com as outras. essa a meta da histria, embora no se deva esperar que seja alcanada imediatamente depois da revoluo: vai ser necessrio um estgio de transio antes que a fase superior da sociedade comunista possa se concretizar.

Temos aqui dois sistemas de crena de alcance total. Tradicionalmente, cristos e marxistas alegam ser portadores da verdade essencial sobre a totalidade da vida humana: fazem alguma declarao sobre a natureza de todos os seres humanos, em todas as pocas e em todos os lugares. E essas verses de mundo pedem no apenas assentimento intelectual como ao prtica; quem de fato acredita em alguma dessas teorias deve aceitar suas implicaes no que se refere ao seu prprio modo de viver e agir de acordo com isso.

Como ltimo ponto de comparao, observe-se que, para cada um desses sistemas de crena, tem havido uma organizao humana que pede a adeso dos fiis e afirma ser dotada de uma certa autoridade tanto em termos de doutrina como de prtica. Para o cristianismo h a Igreja, e, para o marxismo, o Partido Comunista. Ou, para ser mais preciso, h muito tempo existem igrejas crists rivais e uma variedade de partidos marxistas ou comunistas. Cada uma dessas igrejas ou partidos faz declaraes concorrentes de que segue a verdadeira doutrina de seu fundador, definindo verses rivais da teoria bsica como ortodoxas e seguindo diferentes polticas prticas.

NOTAS:[1] Quanto discusso do uso de linguagem sexista tem se tornado comum entre escritores sob a influncia do feminismo, o que lamentvel, pois, no h depreciao intencional do valor essencial da mulher no uso tradicional da linguagem comum de dois gneros. [2] A diferena bsica que os autores deveriam acentuar que no essencial cosmoviso crist esta postura de totalitarismo poltico. O marxismo busca o totalitarismo, inclusive pelo extermnio da oposio baseado na premissa bsica da luta de classes, agindo coerentemente com a sua ideologia. Algumas faces crists, em momentos pontuais na histria, exerceram incoerentemente aes polticas [por exemplo, a Inquisio, ou, as Cruzadas] quebrando os dois maiores mandamentos da f crist.[3] interessante que os autores neste pargrafo apresentem o cristianismo e o marxismo como dois sistemas de cosmoviso diferentes e incompatveis. Leslie Stevenson e David I. Haberman descrevem neste artigo x forma mais lata de cristianismo abrangendo desde romanistas, ortodoxos, bem como protestantes no seu sentido mais lato. Ainda assim, o essencial da teoria marxista diametralmente contrrio ao essencial f crist. Se levarmos o contraste para o plano de marxismo e calvinismo obviamente a rivalidade acentua mais ainda.[4] A concepo de liberdade dos autores teologicamente resulta em semipelagianismo.

Extrado de Leslie Stevenson & David I. Haberman, Dez teorias da natureza humana (So Paulo, Editora Martins Fontes, 2005), pp. 5-12.

Os autores:Leslie Stevenson professor da University de St. Andrews, Esccia.David I. Haberman professor associado na Indiana University, EUA.Notas de Rev. Ewerton B. Tokashiki.