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Geografia e Questao Ambiental Olindina Vianna Mesquita Solange Tietzmann Silva (coordenadoras) Rio de Janeiro 1993 SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E COORDENAÇÃO FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE DIRETORIA DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

MELLO, J. B. F. de. A humanização da natureza – uma odisséia para a

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Geografia e Questao Ambiental

Olindina Vianna MesquitaSolange Tietzmann Silva

(coordenadoras)

Rio de Janeiro1993

SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E COORDENAÇÃOFUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE

DIRETORIA DE GEOCIÊNCIASDEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

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ISBN 85 240 0464 9

© IBGE

EQUIPE TÉCNICA

A elaboração da pesquisa foi coordenada pelo Departamento de Geografia DEGEO/DGC

CoordenaçãoOlindina Vianna MesquitaSolange Tietzmann Silva

SupervisãoCesar Ajara

AutoresAdma Hamam de FigueiredoCesar AjaraDora Rodrigues HeesFany DavidovichHelena Maria Mesquita BalassianoJoão Baptista Ferreira de MelloMaria Luisa Gomes Castello BrancoMaria Mônica V C O NeillMiguel Angelo Campos RibeiroOlindina Vianna MesquitaRoberto Lobato CorrêaRoberto Schmidt de AlmeidaSolange Tietzmann Silva

Equipe de ApoioJana Maria CruzPaulo Afonso Melo da SilvaRegina Célia Silva AlonsoSergio Medeiros de Lavor

EQUIPE EDITORIALPublicação editorada e elaboradapelo Sistema de Editoração na Divisão de Editoração/Departamentode Editoração e GráficaDEDIT/CDDI

Estruturação EditorialCeni Maria de Paula de SouzaOscar Ribeiro Rodrigues

CopidesqueSolange Gomes de SouzaWilton de Almeida Tavares

RevisãoCristina Carlos de Carvalho Pinholaracy Prazeres GomesKatia Domingos VieiraUmberto Patrasso Filho

EdiçãoElizabete Cruz da SilvaMaurício Alves da SilvaOlevim Dias FilhoVanda Ribeiro dos Anjos

DiagramagãoLuiz Carlos Chagas Teixeira

IMPRESSAO

Divisão de Gráfica/Departamentode Editoração e GráficaDEDIT/CDDI em novembro de1993 OS 03 03 10308/93

CAPA

Fernando Portugal Fraga Divisãode Promoção/Departamento de Promoção e ComercializaçãoDECOP/CDDI

Geografia e questão ambiental / OlindinaVianna Mesquita Solange Tietzmann Silva(coordenadoras) -Rio de Janeiro : IBGEDepartamento de Geografia 1993

166 p

ISBN e5 240-0464 9

1 Geografia humana

Brasil 2Desenvolvimento econômico Aspectosambientais. 3 Meio ambiente

Brasil 1 .Mesquita Olindina Vianna II Silva SolangeTietzmann III IBGE Departamento de Geografia

IBGE CDDI Dep de Documentação e BibliotecaRJ IBGE/93 14

CDU 911 3(81)

Impresso no Brasil/Printed In Brazil

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A Humanização da Natureza - UmaOdisséia para a (re)Conquista

do Paraíso*Jodo Baptista Ferreiro de Mello **

Considerações iniciais

natureza transformada tem recebido no-menclaturas, definições e análises diversas

de positivistas (meio ambiente artificial), mar-xistas (segunda natureza) e humanísticos (ver-são humanizada da natureza)' Para os gregospré-socráticos a natureza é a totalidade ou otodo envolvendo "os céus acima, a terra abaixoe as águas sobre a terra"' A raça humana, bus-cando alimento, proteção e conforto, tem se es-merado - por necessidade vital - em preparar,consumir e metamorfosear as dádivas da mãe-natureza Suas conquistas, alcançadas ao longode milênios, são revestidas de vitórias, dissabo-res, sentimentos, conflitos, mitos e esplendoresO homem cria a sua fabulosa versão da natu-

reza recorrendo aos mais variados elementos,

t Respectivamente Milton Santos, 1988 p 84 citando Sauer, Corria 1988 p 54 e Than 1988 p 8

2 Ttian 1980 p 152 lembrando os grega pró socráticos e citando C 8 Lewìe

bens e frutos oferecidos pelo meio ambiente Talproeza exige trabalho, arte, empenho e inteli-gência A tarefa, como se sabe, difícil de ser rea-lizada, é conduzida de maneira admirável,fazendo com que os limites entre os ambientesnatural e humanizado, por vezes, se confundamA geografia humanística, preocupada com a

morada do homem, em qualquer escala, temprocurado, de alguma maneira, explorar a in-fluência da natureza e, muito insistentemente,enfocar as intervenções humanas no espaço emsua busca incessante da felicidade e da promo-ção da "boa vida" Este conceito originalmentetrabalhado pelos filósofos existencialistas foiampliado pelo pensador Yi-Fu Tuan em sua belissima obra The Good Life Geógrafo chinês,radicado nos Estados Unidos, Dr Tuan abando-nou propositadamente o lado sombrio das rela-ções humanas com o meio ambiente Como o

' Dedicado ao geógrafo Miguel Angelo Campos Ribeiro do Departamento de Geografia da FundaçÃo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística DEGEO/IBGE

porsua atençãoe lnelatóncia pare que eu escrevesse um texto sobre o meio ambiente utilizando os principia dehumanismo em Geografia

" Analista Especializado em Geografia doDEGEO/IBGEGostada de expressar minha profunda gratidão ao geógrafo Roberto Lobato Corroa (IBGFJUFRJ) pela leitura do texto e suas valiosas considera~ Não posso deixar

de registrar o meu orgulho pelo privilégio de poder recorrer a ente profissional que ocupa por seu conhecimento e sensibilidade uma posição singular no seio da comunidado geográfica do Pata. Oe agradecimentos são extensiva às geógrafas Eltane Ribeiro da Silva, Fany Davidovich e Maria Lulas GomaCastello Branco Em conversas informais no Departamento de Geografia do IBGE DEGEO , coe geógrafas argumentaram, muito acertadamente embora sem acesso aos manuscritos do ensaio , que otitulo provieódo *A Humanização da Natureza uma Odieséia para a Promoção da Ba Viris" poderia gerar criticas e polémicas imediatas No Breeil a expressão "boavida" possui como vários outra termos uma conotação pejorativa de aversão ao trabalho ou desprovida de escrúpulos para o alcance dos objetivos e, por outro lado de-nota lapsos ou prolongamentos deuma exìstóncia repleta de realizações ebem estar sentido este seguido e incorporado no presente estudo

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humanismo em geografia é uma corrente holís-tica, não interessada em focalizar tão somente omeio ambiente esculpido pelo homem, afloramno presente artigo não apenas questões perti-nentes às alegrias e celebrações, como igual-mente às amarguras, lutas e lendas ocorridasno levantamento e manutenção do meio ambienteEm realidade, a meta da orientação humanís-

tica é tentar "especificamente entender como asatividades e os fenômenos geográficos revelama qualidade da conscientização humana" Ageografia humanística "não nega as perspecti-vas científicas sobre o homem; trabalha sobreelas?`, o que não impede os seus pronunciamen-tos críticos e radicais dirigidos principalmenteao positivismo que "omite as questões da vida"'e fala de um mundo habitado por homens contados aos montes, como gado'No âmbito da vertente humanística, espaço e

lugar são distintos O espaço é amplo, desconhecido, temido e rejeitado O lugar, recortadoafetivamente, onde as pessoas se sentem segu-ras e à vontade, emerge nas experiências coti-dianas, nos locais de moradia, trabalho,compras, lazer e encontros' Para o humanismoem geografia, na simbiótica relação entre ho-mens e meio ambiente, lugares devem ser considerados como pessoas e pessoas comolugares' . Por conseguinte, para esta escola dopensamento - surgida nos anos 70 e apoiadanas filosofias do significado - cada ser humano éum geógrafo informal, pois é o homem que cria,atua e vive no espaço, estando portanto capaci-tado para discorrer sobre o seu mundo vivido,pleno de mistérios, entendimentos, significados,devaneios, premências, rejeições, fantasias, sa-tisfações e reminiscênciasO presente texto, procurando abordar uma

expressiva gama de fenômenos, evidencia, alémde alguns aspectos da natureza, as diferentesetapas do meio ambiente Um primeiro segmen-to discorre sobre os "universos lunares, solarese chuvosos" Os posteriores (campos agrícolas,reflorestamentos, parques e jardins - recriandoa criação; aterros, subterrâneos, túneis e repre-sas: a profanação da natureza e "shopping center - a utópica natureza pós moderna?") sãodedicados às obras trabalhadas pelo homem

'Tuen 1984 p 1464 Tusn 1985 p 144' Relph 1979 e 1981' Mello 1990 p 93' Mello 1990 p 102' Pocock 1981 p 337Buttimer spud Coles Robert~ 1985 p 187

Universos Lunares,Solares e Chuvosos

O dia e a noite são antagônicos (e complementares) O Senhor é luz, diz o texto sagrado O sol,resplandecente, transmite vida e inspira confian-ça Em contrapartida, as trevas, dominadas pelasforças do mal, serão herdadas pelos impurosPara fugir dos horrores da escuridão da noite

e desenvolver suas atividades, o homem temprocurado alumiar o ambiente noturno com cla-rões produzidos por substâncias gordurosas ecombustíveis, como lamparinas e velas e, numatentativa de copiar a luz natural, recorrido afontes tecnologicamente avançadas como aenergia elétrica, o gás neon e o mercúrio Essesrecursos, no entanto, ofuscam o brilho das es-trelas, principalmente em áreas poluídas ou in-tensamente iluminadas A noite, portanto, nãose resume a fantasmas, padecimentos e receiosQuem vive em regiões de população rarefeita ouem imensos descampados saboreia, em noitesde céu límpido, um refulgente aglomerado deestrelas Alguns desses contrastes, entre o des-cortinamento da abóbada celeste no campo e nacidade, estão assentados em um dos ensaios dageógrafa Anne Buttimer" graças ao sensível re-lato de uma migrante apalachiana: " gosto delembrar os dias em que vivemos no vale e nemJack e nem eu importávamo-nos em saber ashoras ( ) Havia o sol, naturalmente; a hora dosol era suficiente para nós Aqui, nunca vemoso sol Pergunto a mim mesma: o que aconteceucom o sol e a lua? Posso caminhar durante se-manas e jamais ver qualquer sinal de lua, e asestrelas estão sempre atrás de alguma nuvemE o sol não brilha dentro de nossas janelas; pa-rece que estamos no ângulo errado . Minha ga-rotinha ouve-me queixar, porém realmente elanão sabe do que estou falando Tinha dois anosquando saímos de casa, e ela não se lembra da-quelas noites com estrelas tão baixas que vocêpodia estender uma xícara e enchê-la com elas,diria minha mãe, e a lua empoleirava-se sobreuma árvore, sorrindo para você E pela manhã,você repentinamente ouvia os pássaros começa-rem a cantar e você sabia que estavam gritandoo seu alô ao sol, que estava tentando chegar doseu território - da China, não é? Isso é o que onosso professor dizia, que à noite o sol estava

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e

na China (

) Se tivesse de dizer uma coisa doque mais acho falta, seria o nascer do sol E asegunda, seria o pôr do sol Eu vejo porque todomundo aqui tem de ter um relógio por perto Deoutro forma, eles jamais saberiam se está claroou escuro nas ruas"Os habitantes do campo e os indivíduos de so-

ciedades ágrafas sabem distinguir o tempo pre-vendo chuvas, vendavais e tempestades Osautóctones aventuram-se por terras e mares,tendo como guia o posicionamento de astros eestrelas O homem urbano (comum), ao contrá-rio; aprende algumas noções Sabe que o solnasce no leste - ao meio-dia está justo sobre asua cabeça - e se põe no oeste Conhece esta ouaquela estrela e, baseado nas crenças popula-res, recorre ao calendário para avaliar o possí-vel sucesso de um novo tipo de regimealimentar ou a época propícia ao corte de cabe-lo, de acordo com o ciclo lunar Pessoas de siste-mas sociais comunitários e estratificadosacreditam que são microcosmos, e por isso mes-mo a lua e os astros interferem em seus desti-nos e nas mudanças climáticasOs fenômenos da natureza, como a chuva

que abranda as temperaturas, ajuda a germi-nar a semente e torna as plantas mais exube-rantes , são bem-vindos Mas o excessoprejudica o desenrolar da dinâmica da vida Aschuvas torrenciais destroem as plantações nasáreas rurais e, no espaço urbano, atrapalham ocorre-corre diário e o leque diversificado desuas funções, quando não causam danos irrepa-ráveis Na ausência de explicações para a violência da natureza, o povo prefere, em diversasoportunidades, decifrar o enigma apelando pararazões sobrenaturais Em meados da década de60, quando o Rio de Janeiro foi assolado, emdois verões consecutivos, por grandes temporais, a população carioca julgou que a retiradado feriado de São Sebastião, padroeiro da cida-de, provocara a sua ira. Entretanto, mesmo como retorno oficial do feriado do dia 20 de janeiro,as chuvas dos primeiros meses do ano, por vezes amedrontadoras, continuam a ocorrer emum ou outro verão carioca, caracterizado pordias muito quentes e ensolarados

Campos Agrícolas,Reflorestamentos, Parques eJardins - Recriando a Criação

A arte do cultivo da terra tem sido uma dasprincipais atividades desenvolvidas pelo ho-

" Sobre o "Aterro do Flamengo" ver entre outros o Rio de Janeiro e suas Praças 1988

mam, seja através da exploração primitiva dossolos, seja por intermédio dos métodos empregados na agricultura moderna Base da riquezadas nações, o excedente agrário permitiu o flo-rescimento das primeiras cidades e, ainda hoje,a despeito de sua opulência, o espaço urbanodepende da produção rural Além desses aspectos, o homem citadino busca, também, nas pai-sagens rurais (e silvestres) fontes de inspiraçãopara viver a "boa vida", em um ambiente próxi-mo (ou cópia) da natureza espontâneaA maior floresta urbana do mundo, replanta

da a partir de 1861, por um período de quasetrês décadas, domina algumas porções monta-nhosas da cidade do Rio de Janeiro, em umaárea anteriormente ocupada pela Mata Atlântica. O reflorestamento, realizado por um pequeno grupo de escravos, obedeceu às ordensassinadas pelo Imperador D Pedro II atento àdevastação causada pelas antigas plantaçõescafeeiras O replantio de cerca de cem mil mu-das de espécimes nativos - vencendo as agressões ao meio ambiente - procurava não apenasrecompor a exuberância florestal, como afastar operigo da falta de água para a população cario-ca Quase um século depois, em 1943, a Florestada Tijuca recebeu um novo reflorestamento con-servando sua aura ao apresentar uma gama deatrações muito ampla, onde pode ser sorvido onéctar da "boa vida", catalisado através de seuverde radiante, o frescor de temperaturas ame-nas, além de cascatas e grutas Integrante docircuito turístico e freqüentada como área parapiqueniques, caminhadas e passeios, este (outro) oásis da "Cidade Maravilhosa" - tombadocomo Patrimônio Histórico da Humanidadepossui status de Reserva Mundial da Biosfera,título este conferido pela UNESCO"

Os parques urbanos, flancos qualitativosonde podem ser desfrutados momentos espe-ciais e de contemplação, estabelecem uma outraalternativa do homem para atenuar os impactos à degradação ambiental

Um primoroso manto verde incrustado na pe-riferia da área central do Rio de Janeiro, popu-larmente consagrado como Campo de Santana,está catalogado nos anais de diversos acontecimentos relevantes do País Em sua galeria defatos notáveis, após a chegada dos brancos aocontinente, consta que, de campo para pasto,passou a ser - como propriedade herdada porescravos - depósito de lixo e esgoto, obtendo tra-tamento urbanístico no início do Século XIX.Em 1880, com um novo plano de ajardinamen

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to, espelhado nos moldes ingleses, o Campo deSantana tornou-se um parque construído acimado nível das ruas que o circundam, ostentandouma pompa magnífica ornada com alamedas,lagos, cavernas artificiais, variados tipos de ár-vores e gramíneas, além de animais, como co-tias, cisnes e pavões" Palco imponente dascerimônias festivas do casamento do PríncipeDom Pedro e Dona Maria Leopoldina (em1818), o espaço em questão serviu também (iro-nicamente), em 1889, como plataforma para obrado da Proclamação da República Em 1942 aárea verde em destaque cedeu uma parte deseu terreno para a construção de um monumen-to suntuoso : a Avenida Presidente Vargas, comsuas pistas largas Todavia, os seus atalhos enotadamente o seu interior estão a salvo do barulho ensurdecedor e do fantástico movimentode veículos que transitam em suas redondezasProtegido por grades e portões de ferro, o uso doCampo de Santana se restringe ao horário diur-no e às primeiras horas da noite, evitando, as-sim, segundo os administradores públicos, queo local se transforme em antro noturno de va-dios, mendigos e assaltantes

Os parques, jardins e sobretudo os edifícioslevantados hodiernamente costumam mere-cer, em sua maioria, a mesma atenção devota-da aos seus antecessores? Os arquitetos,planejadores e paisagistas permanecem daslumbrando os povos com os cuidados e desenhos dispensados aos prédios e áreas verdesContudo, algumas paisagens, até mesmoaquelas que podem ser intituladas como ul-tramodernas, parecem obedecer a um padrãoestandartizado A essas paisagens monótonas,"xerocopiadas", com repetição de seqüências,o geógrafo Relph" conceituou, em sua tese dedoutoramento, como placelessness, neologismoque, em português, talvez possa ser mais bemcompreendido como "deslugar"

Com referência aos parques e jardins, os espe-cialistas tentam converter, com capricho, para obem-estar das populações, a exuberância da na-tureza No entanto, como lembra Mello" "os pla-nejadores fechados em seus gabinetes parecemignorar detalhes mínimos enfrentados pelo povoem sua vida cotidiana O traçado dos caminhosnos parques e jardins é riscado sem consulta aospopulares Assim, nos desafios do dia a dia opovo não obedece aos caminhos aprontados pelaspolíticas públicas, passando a redesenhar as tri-

lhas em diagonal - ou veredas ligeiramente fortas - com os próprios pés Uma maneira simples, eficiente e cômoda de cortar caminho, parachegar mais rápido ao seu destino"Quanto a outras características e adaptações

das maravilhas do campo ao espaço urbano,pode-se lembrar que os subúrbios americanos eos bairrosjardins persistem, com êxito, em conectar o esplendor do verde à grandeza da tidade O cinema tem sido pródigo em mostrar aplatéias embevecidas as vantagens locacionaise aprazíveis dos subúrbios americanos, édenspreenchidos por mansões com dois ambientes,sem muros, cercadas de canteiros e jardins Nospaíses desenvolvidos, como os Estados Unidos,as pessoas de alto poder aquisitivo residem embairros afastados da confusão e do ar poluído docentro de negócios e, ao mesmo tempo, próxi-mas (de automóvel) da abundância de bens eserviços oferecidos nos espaços urbanos Nospaíses do Terceiro Mundo onde os custos para aimplantação dos melhoramentos urbanísticos ea irradiação das amenidades se tornam extremamente dispendiosos, as elites e alguns segmentos da classe média procuram, da mesmaforma, habitar em redomas de verde, como osbairrosjardins (ou em condomínios fechados,nas encostas das serras ou ainda à beira-mar)

1~ ORio de Janeiro e suas Praças (1988) p 20ix Tese de doutoramento em geografia de RelphEdward publicadaem livro noano de 1976i1 Mello 1990 p 98"Com respeito è sagração doslugares as consultas podem ser feitas entre outros aTuan 1978 Mello 1990 p 107 eMello 1991 p 199

Aterros, Subterrâneos, Túneise Represas: A Profanação

da Natureza

O saber geográfico tem procurado elucidar asquestões referentes à sagração e profanação doslugares Assim, aproveitando a idéia expressapela tradição judaico-cristã, o humanismo emgeografia lembra que todo e qualquer lugar, emrazão da onipresença do Senhor, é sagrado"Todavia, a temática a ser abordada nesta partedo texto diz respeito àprofanação da naturezaPor que (e para que) o homem constrói ater-

ros, subterrâneos, túneis e represas? A respos-ta, seguindo a trilha do pensamento aquitraçado, é simples: para viver a "boa vida" Emcontrapartida, o que diriam os povos das cha-madas sociedades tradicionais - como índiosbrasileiros, pigmeus africanos e aborígines aus-tralianos - acostumados a operar pequenos im-pactos e a viver em comunhão com anatureza?O local das grandes metamorfoses é, por ex

celência, a cidade, um monumento suntuoso

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produzido pelo homem, onde se pode viver a"boa vida", em função da pluralidade dos recur-sos disponíveis Entretanto, estajóia majestosa,eternamente burilada, perpetua se em meio aconstantes reparos Na realidade, o espaço ru-ral também sofre mudanças, mas as ações pre-datórias/restauradoras de maior relevânciaocorrem no espaço urbano tais como desmontese aterros, algumas das grandes insígnias do ho-mem no espaço . Nesse sentido, o caso do Rio deJaneiro é notório A cidade, fundada no SéculoXVI, junto aos morros Cara de Cão e Pão-de-Açúcar, foi, pouco tempo depois, transferidapara o morro do Castelo Mas a presença de vá-rios acidentes geográficos - como morros, brejos,mangues, lagos, rios e o próprio mar - impedia oseu espraiamento Por conseguinte, o homempassou a empreender diferentes retoques urba-nísticos para tornar a cidade saudável, aprazí-vel e funcional, logo, humanizadaO "Aterro do Flamengo" - assim popularmen-

te chamado - é um dos exemplos mais significativos do processo de embelezamento e expansãoque a paisagem carioca tem recebido ao longode sua existência Situado entre a baía de Gua-nabara, cercanias da área central e Zona Sul da"Cidade Maravilhosa", o "maior parque urbanodo mundo" abriga, junto a um concorrido bal-neário e sobre uma extensa faixa ajardinadaalém de diversos monumentos, clubes náuticos,restaurantes, museus de artes e militares, qua-dras e campos esportivos -, também vias queservem como escoadouro do tráfego de veículosOs primeiros aterros em seu perímetro foramexecutados entre 1779 e 1783 com o arrasamen-to do morro das Mangueiras, resultando na ex-tinção da infeçtada lagoa de Boqueirão Outrospequenos aterros foram realizados sob a res-ponsabilidade dos moradores locais com autori-zação e, por vezes, ressarcimento da CâmaraMunicipal Em 1919, na antevéspera da exposi-ção comemorativa do Centenário da Inde-pendência do Brasil, o "Aterro" teve as suasdimensões acentuadamente ampliadas Para aconcretização de tal objetivo, o morro do Caste-lo - "berço dá cidade" - foi arrasado e seus edifí-cios históricos, entre eles a antiga Catedral,bem como vários prédios residenciais, destruí-dos Seu entulho continha um volume de talmonta que serviu igualmente para aterrar par-te da orla marítima do bairro da Urca e o sopédo morro do Pão-de-Açúcar Uma outra etapade alargamento do Parque Brigadeiro EduardoGomes - seu nome oficial data de 1954 com ademolição do morro de Santo Antônio, outra

11 Abreu 1987 e 0 Riode Janeiro e sues Praças (1988) p 40 47

elevação que obstruía o espraiamento do centroda cidadelaAo longo de sua existência o "Parque do Fla-

mengo" tem servido de arena para vários even-tos Mesmo antes de sua inauguração sediou,em 1955, com altar projetado 'pelo urbanistaLúcio Costa, as solenidades litúrgicas doXXXVI Congresso Eucarístico InternacionalNas últimas décadas, o "Aterro" experiencia,nos dias úteis, manifestações importantes porser um centro e local de passagem, repouso, di-versão, cultura e trabalho Aos domingos, com otrânsito correndo tão-somente nas pistas situa-das junto ao paredão de edifícios do bairro doFlamengo, o "Aterro" cumpre as funções perti-nentes a um parque, ao ser transformado emum grande playground para recreação de adul-tos e criançasNo que concerne aos subterrâneos, o metro-

politano - sistema de viação que desliza sobretrilhos no subsolo de algumas das grandes ci-dades do planeta - salienta uma outra facetalaboriosa e desafiante do homem como trans-formador da naturezaA maioria dos metros - construídos para de-

safogar o trânsito de superfície - exerce um fas-cínio notável, não apenas por sua própriaconcepção, como pela grandiosidade ou misté-rios que encerram O underground de Londrescausa espanto por ter sido aberto no século pas-sado e por servir aos mais diversos recantos dacapital inglesa O metro de Moscou é reconheci-damente uma relíquia que ostenta desenhos, vitrais e pinturas como uma galeria de artesubterrânea O subway de Nova Iorque é famo-so por mesclar, à sua eficiência, perigo e violên-cia O metrô de São Paulo facilita a vida dospaulistanos estabelecendo ligações nos sentidosnorte-sul-leste-oeste da maior cidade da Améri-ca do Sul O caso do metropolitano do Rio de Ja-neiro é igualmente admirável Como grandeparte do seu eixo primaz serve à área central,os meandros e transtornos para sua execuçãoforam enormesA estação Carioca do metrô do Rio de Janei-

ro, uma das mais imponentes e de movimentomais intenso do core da cidade, funciona comoamostra em relação aos obstáculos vencidos du-rante a perfuração dos caminhos subterrâneosna ex-capital do País O famoso Largo da Cario-ca - erigido em sítio onde anteriormente haviauma lagoa - enfrentou, durante séculos, váriasondas de aterros, ampliações e processos de

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ajardinamentos,

càminando,

recentemente,nos anos 70, com a inauguração da referida estação subterrânea Por isso mesmo a populaçãoda cidade, colocando em dúvida a conclusão daobra, comentava que aqueles grandes buracosespalhados pela cidade poderiam sucumbir, aqualquer instante, com os temporais que casti-gam o espaço urbano carioca, notadamente noverão Na época, enquanto os pedestres procura-vam evitar o mar de lama e nuvens de poeiraequilibrando se entre os tapumes protetores e astábuas utilizadas como passarelas - as unidadescomerciais e de serviços situadas nos logradouros atingidos ficaram sujeitas aos tormentos daqueda vertiginosa de seus negócios Todavia, afinalização da linha 1 do metrô contemplou oRio de Janeiro com umararidade repleta de encantos e serventia capaz de reverter a condutado carioca A esta obra monumental o povo temdispensado um tratamento absolutamente distinto e (até mesmo) paradoxal Nas estações dometrô, munidas de sistema de ventilação e arcondicionado, com forte luminosidade, conforto,segurança e escadas rolantes, entre outros atributos, persistem as regras da educação ocidental Os usuários, solícitos, falam baixo, nãofumam ou jogam qualquer espécie de lixo nochão, as paredes de mármore ou concreto continuam imaculadas, sem pichações, e os assaltosou suicídios são raríssimos (e, por vezes, encobertos) Em contraponto, na parte superior dasestações do metropolitano o solo artificial oulaje, que separa dois mundos absolutamenteopostos - pulsa um cenário com uma mixórdiade acontecimentos comuns, incongruentes einusitados

Na superfície, no Largo da Carioca propria-mente dito, assomam as mazelas de uma miserópolis como Calcutá ou Bombaim, modelo quealgumas metrópoles brasileiras teimam em seguir desde o início dos anos 80, com o recrudescimento da crise econômica brasileira Nesseimenso palco aberto atuam como protagonistase coadjuvantes, na coreografia do dia-a dia,transeuntes dos mais diversos grupos sociais efaixas etárias, que assim podem apreciar a solene e aparatosa arquitetura do Convento deSanto Antônio, ou o luxo dos modernos ediíi-cios, com mais de 30 pavimentos, que mar-geiam o logradouro Ao mesmo tempo, os atoresdo teatro da vida, enquanto ouvem os ecos dostrovadores e instrumentistas de rua, tentamnão tropeçar nos tabuleiros dos camelôs espalhados por todos os lados Nesse quadro multifacetado o desconforto e o pavor surgem frenteàs mais variadas e deprimentes manifestaçõesda degradação humana 0 espaço coletivo em

tela, freqüentemente utilizado pela populaçãosem teto, como dormitório, é outrossim ponto dehordas de meninos e meninas de rua que, carco-midos pela fome e o abandono, a todo instante,mendigam, cheiram cola de sapato ou preparamalguma investida para roubar um pedestrequalquerOs túneis constituem outro grande sinal dos

esforços do homem em modificar a naturezapara viver a "boa vida" Esses caminhos subter-râneos - muito embora vençam obstáculos, taiscomo morros e montanhas, permitindo o fluxomais rápido de veículos carregam, sobretudono espaço intra urbano, um rastro de dor e de-solação coetâneo aos períodos de suas constru-ções A propósito, um exemplo muito rico dizrespeito ao bairro do Catumbi, localizado entrea periferia da área central e a Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, que padeceu sobrema-neira com as obras para o aprontamento dostúneis Santa Bárbara (conectando Catumbi aobairro das Laranjeiras, na Zona Sul da cidade)e Prefeito Martins Vaz, interligando as RuasFrei Caneca e Henrique Valadares

Desde 1927, quando da elaboração do PlanoAgache, os proprietários de estabelecimentos comerciais ou industriais e as pessoas domiciliadas em casas e cortiços do bairro do Catumbisuportaram, com temor e descrença, os constantes rumores e noticiário da imprensa, a respeitoda desapropriação de seus imóveis Mas somente no início dos anos 60, durante a gestão do Governo Carlos Lacerda, as obras relativas àabertura do túnel Santa Bárbara foram realmente efetivadas Diversos imóveis, logradourose a capela de Nossa Senhora da Conceição foramlenta e dolorosamente atingidos, mutilados ou,para usar a consagrada expressão popular, "ris-cados do mapa", para agilizar a entrega ao tráfego, em 1963, do túnel "Catumbi Laranjeiras" eainda para a perfuração das galerias pluviais,tendo em vista que o bairro, rodeado de morros(Santa Teresa, Coroa, Querosene, Catumbi, Mineira), era transformado, em dias de chuvas forrenciais, em uma "grande bacia hidrográfica",com suas ruas formando "calhas" ou "caudalososrios" de água barrenta, repleta de lixo que rolava das encostas dos morros e favelas

No transcurso da década de 70 o bairro doCatumbi amargou um novo ciclo de arrasamento de vários quarteirões que, afora a inauguração do túnel Prefeito Martins Vaz, em 1977,permitiu a edificação de vias expressas Comode hábito, no conjunto da reorganização do espaço promovido pelas políticas públicas, os pro-prietários de estabelecimentos comerciais e

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prédios residenciais do bairro foram contempla-dos com indenizações irrisórias, restando aosinquilinos, além da amargura do despejo, aslembranças do antigo universo vividoA transformação espacial assistida pelo Ca-

tumbi, com a abertura de túneis, entre outrasgrandes obras, não rompeu de todo com os laçosde amizade trançados ao longo de várias gera-ções de representantes das colônias portuguesa,espanhola, italiana e ciganos sedentários esta-belecidos no local A reurbanização trouxe os la-ços de concreto (viadutos/vias expressas) para ofluxo do trânsito, nesse espaço não totalmentereestruturado em razão da luta dos comercian-tes, padres e populares unidos em torno da As-sociação de Moradores do Catumbi Nos dias dehoje, longe dos tempos do canto emocionado etriste das suas grandes procissões e a ale-gria/descontração dos famosos carnavais de ou-trora, permanecem cristalizados lado a lado o"antigo" e o "novo" na paisagem do Catumbi,diante das marcas do conflito Estado X Comu-nidade de bairro, através de casas e prédios hu-mildes contrastando com um emaranhado delaços de concretoObras faraônicas como aterros, subterrâneos

e túneis são geralmente encontradas nas cida-des Todavia, as represas, uma das megainter-venções do homemna natureza e, como se sabe,consumidoras de muito espaço são, via de re-gra, erigidas fora do perímetro urbano Instru-mentos de alento para o sofrimento dos povos,as represas viabilizam a irrigação dos solos, ar-mazenam e fornecem água e energia elétricapara as populações circunvizinhas e, entre ou-tros aspectos, corrigem - de acordo com as ne-cessidades humanas - o curso dos rios e osregimes de queda-d'água, facilitando, assim, odesenvolvimento dos meios de transportes la-custre/fluvial.A cidade - plural, heterogênea, polifórmica e

(in)completa - é o artefato mais pujante e complexo talhado pelo homem; Mas, como produtosingular, as represas impressionam pelo gigan-tismo Com sua habilidade o ser humano temsido capaz de domar parte da natureza, construindo, para o seu proveito, um objeto que, porvezes, transcende o tamanho de cidades, principados e mesmo alguns paísesA represa de Sobradinho, construída em mea-

dos dos anos 70, no Estado da Bahia, regiãoNordeste do Brasil, ganhou maior notoriedadecom o sucesso nacional da música Sobradinho(1978), escrita a quatro mãos por Luis Carlos

16 Oliveira (inédito)

Sá e Gutemberg Guarabira Seus versos meló-dicos começam narrando : "O homem chega e jádesfaz a naturezaltira gente, põe represa, dizque tudo vai mudar/o São Francisco, lá pracima da Bahia/diz que dia menos dia vai subirbem devagar/e passo a passo vai cumprindo aprofecia do beato que dizia/que o sertão ia ala-gar/o sertão vai virar mar, dá no coração%medo que algum dia o mar também vire ser-tão "O reservatório de Sobradinho aparece com

destaque no mapa de um País de dimensõescontinentais como o Brasil Contudo, para o ho-mem construir um utensílio dessa magnitude -apontando o seu fantástico estágio tecnológico -desfaz parte da natureza e arranca o povo deseu lugar vividoO rio São Francisco nasce no Estado de Mi-

nas Gerais e, como uma bênção, atravessa osertão semi-árido, banhando alguns estados daRegião Nordeste como Bahia, Pernambuco, Ala-goas e Sergipe " Lá pra cima da Bahia ",quer dizer no norte do estado, teve o seu cursoalterado para que à estagnada situação do vale,de atividade econômica tradicionalmente pau-tada na pecuária extensiva, pudessem ser in-corporadas as técnicas de irrigação paralavoura e a atividade pesqueira no lago de So-bradinho'e Mas as mutações drásticas operadasna natureza são acompanhadas de presságiosaterrorizantes : " o sertão vai virar mar, dá nocoração% medo que algum dia o mar tambémvire sertão " Assim, crendices, surpresas, te-mores e dúvidas misturam-se aos vaticínios dealguma vingança irreversível da naturezaNa segunda parte do contundente discurso

melódico afamosa dupla de cantores/composito-res Sá e Guarabira saúda os lugares atingidoscom versos tecidos de nostalgia e (repetidos) re-ceios: " deus Remanso, Casa Nova, SentoSé/adeus Pilão Arcado, vem o rio te engolir/de-baixo d'água lá se vai a vida inteira/por cima dacachoeira o gaiola vai subir/vai ter barrragemno salto do Sobradinho% o povo vai se emboracom medo de se afogar/o sertão vai virar mar,dá no coração% medo que algum dia o martam-bém vire sertão"Para a concretização da " barragem no salto

do Sobradinho " municípios como " Remanso,Casa Nova, Sento Sé (e) Pilão Arcado " cede-ram porções de seus territórios, tendo suas po-pulações sido transferidas para locais prévia emonotonamente edificados, segundo as normasditadas pelos dirigentes e planejadores gover-

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namentais " Debaixo d'água lá se vai a vidainteira : " transformada com o "progresso" eminquietações e lembranças Todavia, ao lado dacrueldade do desalojamento das pessoas damística do antigo universo vivido, resta ainda,juntamente com a saudade, o consolo de conti-nuar navegando nas águas do "Velho Chico" (ocarinhoso apelido do rio) em embarcações como" o gaiola " e usufruir do potencial e farturaoferecidos pela represa de Sobradinho, com vis-tas à prosperidade e à "boa vida"

Shopping Center - A UtópicaNatureza Pós-moderna?

Os shopping centers seriam o coroamento dopatamar mais radical e sofisticado da natureza(re)elaborada pelo homem?-4s chamadas "catedrais do consumo", somatório de vários aspectos, associam elementos do projeto utópicosonhado por Thomas Morus (1480 1535) e a pa-rafernália da pós-modernidade

Nas fantasias extraordinárias de Morus oshabitantes dos lugares utópicos vivem em casascobertas por um telhado resistente ao mautem-po e dotadas de janelas envidraçadas contra-postas à ação da corrente de ar" As ruas epraças - amplas, higiênicas e ajardinadas - com-poriam (de maneira resumida) o emolduramen-to desses magníficos recantos paradisíacos

A pós-modernidade, por outro lado, é uma te-mática que tem acirrado discussões acaloradasno âmbito das ciências sociais e das filosofiasEnquanto alguns estudiosos se debruçam comafinco sobre o assunto, outros pensadores en-tendem o pós-moderno como uma tolice estéril,conseqüência de um modismo pedante

A mídia, vez por outra, transmite, para ogrande público, as idéias de alguns especialis-tas de que a modernidade começou com a thegada de Colombo à América em 1492 Osprimeiros passos do homem na lua não pode-riam ser, então, o marco de um novo tempo?Para o antropólogo Jair Ferreira dos Santos,um dos filósofos de pós moderno, as mudançasdo pós-guerra demarcaram uma nova era Geó-grafos como David Harvey opinam que o exórdio da pós-modernidade se deu com a implosãode um prédio, símbolo da arquitetura moderna,ocorrida em 1972'8

1° 91Lan citando Palmar p s"eSantos Jair Ferreira doe 1988 e Harvey 1888" Peito 1984 p 90 89"Mello 1991 p 200

À guisa de ilustração, vale recordar que, emsuas premissas evolucionistas, Lewis HenryMorgan (1818-1881), "pai da antropologia ame-ricana", arrola algumas das grandes fases cul-turais do homem partindo da etapa anterior àdieta do peixe e o acesso ao fogo e à fala até acivilização, com o advento do alfabeto" Hodiernamente, a complexidade e a heterogeneidadedos bens e serviços são - não há como negar - altamente seletivas Mas, no conjunto das inovações, o laser, a "maquininha" das instituiçõesbancárias (com sistema on line), o microcompu-tador, o fax, o telex, as transmissões radiofónicas e televisivas via satélite, a antenaparabólica, a liberdade de ação, os novos costumes e experiências, para citar apenas algunsexemplos, trazem benefícios à população mun-dial, como podem ser reconhecidos nos serviçosprestados pela medicina e nos momentos de La-zerOs shopping centers - construídos em conso-

nância com os ditames estadunidenses - "sub-centros fechados e de luxo", ou como quer quesejam rotulados, não devem ser confundidos (aressalva é importante) com as galerias comer-ciais. Enclaves glamurosos e das maravilhas,onde os passantes são belos ou assim se fazem,por suas roupas e ainda pela conduta, esses"rincões da pós-modernidade", como nos lindossonhos de fadas, reproduzem paraísos encantados, os quais oferecem para os seus "eleitos" co-modidade, música, pequenos lagos e canteiros,iluminação feérica, comércio e serviços refina-dos, além de proteção contra a violência, a po-luição, as intempéries e a pobreza ou miséria domundo "exterior""

Epílogo

Com "o suor do teu rosto comerás o teu pão"(Gênesis, 3,19) disse o Criador a Adão, antes deexpulsá-lo do Jardim do Éden Desde então, ohomem, com perseverança e constância conti-nua insistindo em "retornar" ao paraísoOs fiéis seguidores de algumas religiões

crêem que após o sofrimento vivido na Terra al-cançarão o reino dos céus Os princípios e os desejos de chegada a um mundo fabuloso não serestringem aos adeptos de filosofias monoteís-tas como cristãos e muçulmanos Agnósticos ecrentes, e ainda povos de sociedades tribais almejam ancorar no paraíso ou viver a "boa vida"

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Antes do "Descobrimento do Brasil", em 1500,os povos do mundo Tupi-Guarani - instruídospelos karai, profetas-filósofos, que se diziam fi-lhos de uma mulher com uma divindade - for-maram intensas correntes migratórias emdireção ao leste, ao encontro da "terra semmal" Embora a barreira oceânica frustrasse osonho de atingir o que poderia ser traduzidopara a cultura ocidental como um espécie de"shangri-lá", os índios continuaram a acalentaros delírios de aportar na morada dos deuses,onde o milho cresce sem qualquer trabalho e osol brilha intensamente"Os sonhos e os devaneios aliviam as dores e

conduzem os indivíduos a lugares encantadosOs meios de comunicação e as artes também co-locam (indiretamente), ao alcance das multi-dões, paraísos naturais como as ilhas dos Maresdo Sul ou do Caribe e aqueles trabalhados pelamão do homem Mas, com exceção de seus próprios habitantes, alguns desses lugares só podem ser visitados por turistas aquinhoadosOs paraísos naturais conservam sua magia

diante da luz solar As noites enluaradas tam-bém exercem um grande fascínio Contudo, amaioria as pessoas prefere não se aventurarnas praias, montanhas ou bosques junto aosmistérios da noite

As tentativas de "reproduções" paradisíacassão acompanhadas de percalços e muito traba-lho, por um lado, e fantasias ou ansiedades, poroutro, que impedem o pleno gozo da "boa vida"No bojo da reorganização do espaço váriasobras construídas - de acordo com os empreen-dedores das políticas públicas para minorar osofrimento do povo e trazer o "progresso" ense-jam conflitos e, depois de prontas, continuam aser rejeitadas, por outros motivos Os claustró-fobos se recusam a "cortar caminho" atraves-sando os túneis cavados na base dos morros oua viajar de metrô "debaixo da terra", no que sãoacompanhados pelas pessoas temerosas de al-gum tipo de desabamento Os "paraísos utópi-cos" como os shopping centers são desprezados,por alguns, exatamente porque, imunes à açãodo clima exterior, mudam o ritmo da vida tradi-cional e impedem o "bater pernas" nas calçadase o acompanhamento das coisas simples domundo vivido

O que é o paraíso? Onde está localizado? Àsopiniões são múltiplas e divergentes Cada serhumano tem uma concepção sobre o "shangri-lá", o lugar das delícias Todavia, se há um traçocomum entre a humanidade é o da travessia do

21 clasaae 1988 P 85 101

portal do paraíso para viver a "boa vida" (nestaou em outra dimensão), A busca, continua

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