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REVISTA DE MANGUINHOS | DEZEMBRO DE 2008 32 U FIO DA HISTÓRIA Renata Fontoura m acervo de valor inestimá- vel para a saúde pública brasileira está sendo recu- perado e levado a público por meio de um museu vir- tual. Desde órgãos humanos de impor- tantes casos médicos, coletados pelo próprio Oswaldo Cruz e por grandes nomes da ciência nacional, até a maior coleção de febre amarela do mundo es- tarão disponíveis na versão online do Museu de Patologia do Instituto Oswal- do Cruz (IOC) da Fiocruz. São três coleções científicas que abrigam peças anatômicas reunidas desde 1903 e mais de 500 mil amostras de fígado coletadas durante campanhas para controle da febre amarela no país. O lançamento está previsto para março de 2009. Há aproximadamente dois anos o acervo do museu passa por um pro- cesso de restauração. As peças anatô- micas das coleções da Seção de Ana- tomia Patológica já foram recuperadas por meio da limpeza dos vidros e da troca do fixador utilizado para conser- vação das peças. Neste momento, o trabalho está concentrado na recupe- ração das lâminas com corte histoló- gico da Coleção de Febre Amarela, já com 10% das amostras de fígado res- tauradas. “Cada coleção tem uma especificidade, mas todas têm aspec- tos importantes da memória do que foi realizado pela Patologia do Institu- to durante estes anos”, avalia o pes- quisador Marcelo Pelajo, chefe do La- boratório de Patologia do IOC. “Além de recuperar a memória, o trabalho traz de volta este material para que possa ser estudado com as tecnologi- as de que dispomos hoje”, ressalta. Integrante da equipe que atua na restauração, o auxiliar de necrópsia Nelson Araújo Silva, de 65 anos, se emociona ao falar das peças. “Entrei na Patologia do IOC em 1968 e co- nheço todo este material. Estou muito orgulhoso de estar trabalhando neste projeto, de ter iniciado esta recupera- Memórias da patologia Dividido em três coleções científicas, acervo iniciado por Oswaldo Cruz é restaurado ção”, afirma. Já aposentado, com mais de cinco décadas de vida dedicadas à Fiocruz, o técnico José Carvalho Filho, de 72 anos, se juntou à equipe há qua- tro meses. “Sou um apaixonado pelo IOC e rever este material é uma sen- sação muito boa”, comemora. Em média, cerca de 2.5 mil lâminas estão sendo restauradas por semana e 68 mil já foram digitalizadas. O técnico em processamento de dados Newton Marinho da Costa Júnior, de 28 anos, representa a gera- ção mais nova envolvida no projeto. “Meu campo de ação sempre foi ma- temática, tecnologia, informação. Tra- balhando com Nelson e com José, es- tou ampliando meu conhecimento. Além das teorias laboratoriais, estou aprendendo muito com a vivência de- les”, dispara. Para a pesquisadora Barbara Dias, do Laboratório de Patologia, umas das responsáveis pelo projeto, o IOC está cumprindo seu papel em manter o pa- trimônio cultural da ciência. “A res-

Memórias da patologia - Agência Fiocruz de Notícias...32 REVISTA DE MANGUINHOS | DEZEMBRO DE 2008 U FIO DA HISTÓRIA Renata Fontoura m acervo de valor inestimá-vel para a saúde

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FIO DA HISTÓRIA

Renata Fontoura

m acervo de valor inestimá-vel para a saúde públicabrasileira está sendo recu-perado e levado a públicopor meio de um museu vir-

tual. Desde órgãos humanos de impor-tantes casos médicos, coletados pelopróprio Oswaldo Cruz e por grandesnomes da ciência nacional, até a maiorcoleção de febre amarela do mundo es-tarão disponíveis na versão online doMuseu de Patologia do Instituto Oswal-do Cruz (IOC) da Fiocruz. São trêscoleções científicas que abrigam peçasanatômicas reunidas desde 1903 e maisde 500 mil amostras de fígado coletadasdurante campanhas para controle dafebre amarela no país. O lançamentoestá previsto para março de 2009.

Há aproximadamente dois anos oacervo do museu passa por um pro-cesso de restauração. As peças anatô-micas das coleções da Seção de Ana-tomia Patológica já foram recuperadas

por meio da limpeza dos vidros e datroca do fixador utilizado para conser-vação das peças. Neste momento, otrabalho está concentrado na recupe-ração das lâminas com corte histoló-gico da Coleção de Febre Amarela, jácom 10% das amostras de fígado res-tauradas. “Cada coleção tem umaespecificidade, mas todas têm aspec-tos importantes da memória do quefoi realizado pela Patologia do Institu-to durante estes anos”, avalia o pes-quisador Marcelo Pelajo, chefe do La-boratório de Patologia do IOC. “Alémde recuperar a memória, o trabalhotraz de volta este material para quepossa ser estudado com as tecnologi-as de que dispomos hoje”, ressalta.

Integrante da equipe que atua narestauração, o auxiliar de necrópsiaNelson Araújo Silva, de 65 anos, seemociona ao falar das peças. “Entreina Patologia do IOC em 1968 e co-nheço todo este material. Estou muitoorgulhoso de estar trabalhando nesteprojeto, de ter iniciado esta recupera-

Memórias da patologiaDividido em três coleções científicas, acervo iniciado por Oswaldo Cruz é restaurado

ção”, afirma. Já aposentado, com maisde cinco décadas de vida dedicadas àFiocruz, o técnico José Carvalho Filho,de 72 anos, se juntou à equipe há qua-tro meses. “Sou um apaixonado peloIOC e rever este material é uma sen-sação muito boa”, comemora. Emmédia, cerca de 2.5 mil lâminas estãosendo restauradas por semana e 68 miljá foram digitalizadas.

O técnico em processamento dedados Newton Marinho da CostaJúnior, de 28 anos, representa a gera-ção mais nova envolvida no projeto.“Meu campo de ação sempre foi ma-temática, tecnologia, informação. Tra-balhando com Nelson e com José, es-tou ampliando meu conhecimento.Além das teorias laboratoriais, estouaprendendo muito com a vivência de-les”, dispara.

Para a pesquisadora Barbara Dias,do Laboratório de Patologia, umas dasresponsáveis pelo projeto, o IOC estácumprindo seu papel em manter o pa-trimônio cultural da ciência. “A res-

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tauração das Coleções ressalta o per-fil empreendedor de Oswaldo Cruz.Ele acreditava que, para fazer pesqui-sa séria no país, seria necessário ter opróprio acervo biológico interno. Nãoadianta querer estudar febre amarelano Brasil, como ele fez, trazendo pe-ças de outros lugares do mundo”,exemplifica.

Cada peça anatômica do acervoda Coleção da Seção de AnatomiaPatológica corresponde a um caso es-tudado para investigação de mortesem decorrência de doenças como Cha-gas e malária. A documentação é pre-servada pela Casa de Oswaldo Cruz.“Durante a ditadura militar, no episó-dio conhecido como Massacre de Man-guinhos, em 1970, parte da documen-tação das coleções que compõem oMuseu foi destruída, assim como gran-de parte das peças históricas. Muitasdas peças que compõem hoje o acer-vo se salvaram porque foram escondi-das pelos pesquisadores em outraspartes do campus ou até em suas resi-dências”, conta Barbara.

Uma versão online do Museu Vir-tual da Patologia está disponível paratestes em www.ioc.fiocruz.br/yf.

Coleção da Seção deAnatomia Patológica

Composto atualmente por maisde 850 peças anatômicas, o acervoda Seção de Anatomia Patológicafoi iniciado por Oswaldo Cruz em1903 e é resultado do trabalho degrandes nomes da ciência nacionaldesenvolvido até a década de 1970.Embora tenham ocorrido perdas dematerial principalmente durante osanos de 60 e 70, as peças anatômi-cas remanescentes constituem opróprio documento histórico do tra-balho de famosos patologistas daEscola de Manguinhos.

Coleção de Febre Amarela

Composta por 498 mil casos -amostras de fígado coletadas porviscerotomia - o acervo foi geradopelo Laboratório de Histopatologiaimplantado em 1931, quando ocontrato entre o governo Brasileiroe a Fundação Rockfeller foi renova-do, e os norte-americanos, atravésdo Serviço Cooperativo da FebreAmarela, assumiram a responsabili-

dade pela campanha anti-amarílicaem quase todo o país. O acervo foitransferido para o IOC em 1949 euma vasta documentação escrita,impressa e iconográfica, preserva-da pelo Departamento de Arquivoe Documentação da Casa de Oswal-do Cruz, acompanha o material.Protocolos de pesquisas, registros decasos da doença, fichas com laudosda histopatologia, além de fotos deindivíduos ou locais de coleta, fa-zem parte da documentação.

Coleção do Departamentode Patologia do IOC

Reunido a partir de 1984, o acer-vo remete às atividades do Departa-mento de Patologia do IOC e é com-posto por material biológico edocumental humano e de animais deexperimentação. A coleção guardaa história de pesquisas científicas quevêm resultando em contribuições im-portantes para o entendimento dafisiologia humana e de algumas do-enças, como a esquistossomose e aangiostrongilíase.

Oswaldo Cruz em ação em seulaboratório na Fiocruz: peças doMuseu incluem órgãos humanoscoletados pelo próprio sanitarista(Arquivo COC/Fiocruz)

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Fernanda Marques

integração e o povoa-mento do interior do país,bem como o incrementoda agricultura, estavamentre os objetivos da Co-

missão de Linhas Telegráficas Estraté-gicas do Mato Grosso ao Amazonas,cujo comando militar ficou a cargo dofamoso marechal Candido Mariano daSilva Rondon. Mais conhecida comoComissão Rondon, ela realizou váriasviagens de exploração no noroeste dopaís entre 1907 e 1915. Suas ativida-des prioritárias e sistemáticas incluíamnão só a construção de postes e esta-ções telegráficas, mas também inven-tários científicos em áreas como zoo-logia e botânica, com destaque paraa participação de naturalistas do Mu-seu Nacional. É o que contam as his-toriadoras da Fiocruz DominichiMiranda de Sá, Magali Romero Sá eNísia Trindade Lima em artigo recém-publicado na revista História, Ciên-cias, Saúde – Manguinhos.

Como resultado das atividades daComissão Rondon, foram depositadosno Museu Nacional, entre 1908 e1916, cerca de 5.6 mil exemplares deanimais e 8.8 mil de plantas, sendoque, entre eles, havia espécies atéentão desconhecidas. A análise detodo esse material rendeu dezenas depublicações científicas, algumas delasainda consideradas fundamentais paraestudiosos da fauna e da flora da re-gião. Ou seja: mesmo que a Comis-são Rondon não tenha alcançado ple-namente seu objetivo civilizatório depovoar e modernizar os longínquossertões do noroeste brasileiro, ela con-tribuiu bastante para o conhecimentocientífico da região.

Contudo, os materiais zoológicose botânicos coletados nas expediçõesdemoraram anos ou até décadas paraserem organizados, analisados e co-nhecidos. Alguns materiais, na épo-

ca, nem foram estudados por falta deespecialistas brasileiros. Houve tam-bém amostras enviadas ao exteriorpara análise por especialistas de paí-ses como Alemanha, Estados Unidose Inglaterra. Essas trocas com cientis-tas estrangeiros, porém, foram inter-rompidas por causa das grandes guer-ras mundiais.

Se análise dos materiais encontroudificuldades, mais difícil ainda foi o tra-balho de coleta dentro da FlorestaAmazônica. Lá os naturalistas que

acompanhavam a Comissão Rondonenfrentaram períodos de calor inten-so seguidos por fortes temporais; mos-quitos e doenças transmitidas por eles,sobretudo a malária; rígida disciplinamilitar; escassez de alimentos; com-panheiros perdidos na mata e flecha-dos por índios.

Isso sem contar os problemas detransporte: a bagagem dos naturalistasincluía instrumentos para captura eacondicionamento dos espécimes cole-tados, lentes, lupas, telas, vidrarias, pin-ças, estiletes e toda sorte de apetrechoscientíficos. Cuidar dessa bagagem não

era fácil, ainda mais durante as traves-sias pela mata ou as viagens de barco.Em não raras vezes, os naturalistas – sobcondições adversas e tendo que seguirem frente – precisaram deixar para trásinstrumentos e espécimes da fauna eflora já coletados. Parte dos materiaistambém se perdeu nos freqüentes nau-frágios das canoas.

Apesar de tantos contratempos,a Comissão Rondon trouxe contribui-ções ímpares para o desenvolvimentocientífico brasileiro. Uma demonstra-

ção disso foi o que escreveu em 1945o zoólogo Alípio de Miranda Ribeira,que participou das expedições: “Ascoleções reunidas durante a ComissãoRondon fizeram em oito anos maispelo Museu Nacional do que tudo quetinha sido realizado em 100 anos deexistência da instituição”. De acordocom as historiadoras da Fiocruz queassinam o artigo, os levantamentos ci-entíficos da Comissão Rondon foramdecisivos para a valorização do traba-lho dos naturalistas brasileiros e paraampliar o conhecimento sobre exten-sas áreas do interior do país.

A

Entre a aventura e a ciênciaFIO DA HISTÓRIA

Naturalistas na Comissão Rondon

Rondon, segundo à esquerda, em 1914, na expedição científica Rondon-Roosevelt

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