Território, Participação Popular e Saúde: Manguinhos em debate

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    FUNDAO OSWALDO CRUZ - Fiocruz

    PresidentePaulo Ernani Gadelha Vieira

    ESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA SRGIO AROUCA - ENSP

    DiretorAntnio Ivo de Carvalho

    ASSESSORIA DE COOPERAO SOCIAL

    CoordenadorJos Leondio Madureira de Sousa Santos

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    Territrio, Participao Popular

    e Sade: Manguinhos em debate

    Organizadores:Carla Moura LimaLeonardo Brasil Bueno

    Realizao:

    Assessoria deCooperaoSocial

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    Copyright 2010 dos autores

    Distribuio e informaes:Fundao Oswaldo Cruz Fiocruz

    ISBN: 978-85-88026-47-6

    Capa, Criao e DiagramaoQuattri Design

    Reviso de TextoLeide Marili Dannehl Martinez

    Pr-Impresso, CTP e ImpressoEdiouro Grfica e Editora Ltda

    FotosAcervo Rede CCAP

    ApoioFundao Oswaldo Cruz Fiocruz

    Escola Nacional de Sade PblicaSrgio Arouca - ENSP

    Catalogao na fonteCentro de Informao Cientfica e TecnolgicaBiblioteca da Escola Nacional de

    Sade Pblica Srgio Arouca

    L732t Lima, Carla Moura (org.) Territrio, participao popular e sade: Manguinhosem debate. / organizado por Carla Moura Lima e LeonardoBrasil Bueno. Rio de Janeiro : ENSP/Fiocruz, 2010.

    104 p.

    ISBN: 978-85-88026-47-6

    1. Participao Comunitria. 2. Sade Ambiental.3. Violncia. 4. Dengue preveno & controle.

    5. Movimentos Sociais. 6. Territrio. I. Bueno, LeonardoBrasil (org.). II. Ttulo.

    CDD - 22.ed. 363.7

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    Carla Moura Lima2

    Cristina Barros1

    Daniel Soares2

    Elisabeth Campos2

    Felipe Eugnio dos Santos Silva5

    Fernando Luis Soares2

    Jos Leondio Madureira de Sousa Santos1

    Leonardo Brasil Bueno2

    Mayalu Matos2

    Michelle Oliveira2

    Nildimar Honrio4

    Paulo Bruno3

    Rosane Souza2

    1 Coordenadoria de Cooperao Social da Fiocruz2 Assessoria de Cooperao Social/ENSP/Fiocruz3 Departamento de Saneamento e Sade Ambiental/ENSP/Fiocruz4 Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz5 Programa de Educao de Jovens e Adultos PEJA Manguinhos

    Autores

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    Sumrio

    Apresentao

    Introduo

    Anlise crtica do Plano de DesenvolvimentoUrbanstico do Complexo de Manguinhos

    Territrio de exceo enquanto limite epossibilidade para a Gesto Democrticaem favelas da cidade do Rio de Janeiro

    PCDM Programa de Controle da Dengue emManguinhos: reflexes sobre uma experinciacoletiva no campo da sade

    Vozes de quem sofre: discutindo a

    Sade Ambiental na Bacia do Canal do Cunha

    Reiventando a Esperana dos SujeitosHistricos do Esturio de Manguinhos

    Ecomuseu de Manguinhos: a memria

    dos gestos no desenvolvimento local

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    Apresentao

    A Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca (ENSP), ao longo das duas

    ltimas dcadas, vem ampliando cada vez mais o seu compromisso com Man-

    guinhos. Diversas iniciativas institucionais voltadas para a promoo da sade

    e enfrentamento dos mltiplos determinantes e condicionantes sociais da sa-

    de esto sendo desenvolvidas nesse lugar, marcado pela pobreza e demais for-mas de violncia social, e tambm pela capacidade criativa da populao e das

    suas organizaes presentes nesses territrios na construo de alternativas

    para mitigao desses fatores. Marcas essas comuns a diversos outros terri-

    trios situados nas regies metropolitanas do pas, colocando-nos o desafio

    de cooperar com a sociedade civil e governos na replicao de experincias

    intersetoriais exitosas e indutoras de polticas pblicas redutoras das inacei-

    tveis e superveis iniquidades que interferem diretamente na qualidade de

    vida urbana dessas populaes. Por ser uma instituio pblica e de interesse

    pblico, a ENSP possui um compromisso pblico para com a transformao

    social desses territrios.

    Na perspectiva adotada aqui entendemos ser imprescindvel que o conheci-

    mento tcnico-cientfico reconhea e reforce a capacidade contida nas prticas

    cotidianas e solidrias de resistncia - reao e criao - violncia social em

    territrios vulnerabilizados. Protagonizada pelas populaes locais, essa resis-

    tncia adquire sentido no apenas como reao imediata violncia sofrida, mastambm como forma criativa de superao de situaes adversas no territrio.

    Seguindo o propsito de cooperao para o fortalecimento dessas prticas, a

    ENSP institui, em 2005, a Assessoria de Projetos Sociais, atualmente denomi-

    nada Assessoria de Cooperao Social (ACS/ENSP/FIOCRUZ), responsvel por

    esta publicao. Pautada por conceitos de fortalecimento da cidadania, eqidade,

    transversalidade, territorializao de direitos e sustentabilidade socioambiental,

    a ACS/ENSP/FIOCRUZ visa efetivao de processos locais de controle social

    e gesto participativa de polticas pblicas.

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    Essa publicao se insere no conceito de cooperao que est presente nasreas de ensino e pesquisa da ENSP. Representa, portanto, mais uma inicia-tiva que reflete o nosso esforo de empreender diversos olhares sobre osdesafios que nos so colocados cotidianamente. Por atuarmos no territrio

    de Manguinhos e nos colocarmos solidariamente ao lado dessa populao,procuramos estreitar os laos de cooperao. Como uma instituio pblicacomprometida com o maior valor que a vida, buscamos colocar nossos re-cursos tcnico-cientficos a servio da busca de solues dos entraves sadeda populao. Fazemos isso em conjunto com os atores sociais locais, com osquais aprendemos muito e temos tido trocas cada vez mais frutferas.

    Os problemas enfrentados pelos moradores de todas as comunidades de

    Manguinhos so encarados por ns como entraves promoo da sade nes-se territrio. Por isso no podemos nos furtar a enfrentar discusses acercados determinantes sociais da sade em seus diversos nveis de repercusso naqualidade de vida dessas comunidades.

    Diferentes experincias tm sido postas em curso, e essa publicao espelhauma vertente do trabalho da ENSP, a cooperao social, que no s tende continuidade, como tambm ao crescimento e contnuo aprimoramento.

    Neste sentido, os relatos e reflexes contidos nos textos contribuem de modoimportante para tal vertente de trabalho, principalmente, num momento deimplantao de projeto Territrio Integrado de Ateno Sade -Teias EscolaManguinhos- com destaque para um modelo de gesto participativa, de redescolaborativas e desenvolvimento de tecnologias inovadoras com perspectivade sua replicabilidade.

    Apostamos no estreitamento nas relaes com governos e sociedade civil

    para que os esforos se transformem em polticas pblicas territorializadas etenham xito para a elevao da qualidade de vida em todos os lugares, emespecial no territrio de Manguinhos.

    Direo da ENSP

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    Introduo

    Manguinhos vive um momento indito da sua histria urbana. Esse territrioque formado, em sua maior parte, por um conjunto de favelas com origens emperodos muito diferenciados, est sofrendo profundas modificaes a partir deintervenes de projetos de diversas naturezas, que no s mexem com a infra-

    estrutura urbana, mas tambm alteram relaes de poder e mobilizam sujeitosindividuais e coletivos inteiros em sua vida e subjetividade. Desde o anncio dasobras do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC) em 2006, a vida daspessoas do lugar tem sido afetada por promessas, boatos, desmentidos, infor-maes distorcidas e muitas vezes a ausncia total de informaes.

    Este novo cenrio coloca novos desafios no s para os moradores, comotambm para as instituies que atuam no territrio, como o caso da Fio-

    cruz. Neste sentido, uma das iniciativas da Escola Nacional de Sade Pbli-ca Srgio Arouca foi a de aprofundar o seu dilogo com atores sociais locaisatravs da Assessoria de Cooperao Social.

    Estar junto com a populao local, assessorando o movimento social em seusespaos de organizao e contribuindo com o fomento reflexo crtica acer-ca da realidade, bem como a sistematizao de experincias, eventos, propos-tas e respostas, so algumas das aes da Assessoria de Cooperao Social.

    O enfrentamento de desafios gerados pelo PAC e outras aes governamen-tais que vieram na sua esteira requerem um olhar constante para a origemdo planejamento do Programa, para a sua execuo e em especial, para arelao que o poder pblico estabelece com os moradores de Manguinhos esuas organizaes locais.

    Dessas reflexes nasceram diversos textos de anlises, dentre esses foram

    selecionados cinco textos, em formato de artigos, alguns mais conceituais e

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    outros ainda que prenunciam processos elaborados no intuito de oferecersolues inovadoras para a preservao da identidade cultural formada na lutasocial da gente que mora nessa terra to mexida e machucada, com suas feri-das abertas que sangram, mas tambm transbordam vida, produo de beleza

    e reflexo crtica e que conferem sentido, fioconduzem a passagem portantas mudanas.

    Nosso fio condutor o territrio de Manguinhos e o PAC. Alguns dessestextos encontram-se na presente compilao, que nasceu da necessidade decompartilhar parte da sistematizao dos debates vivenciados ao longo desseano e meio de trabalho.

    Tais textos so denncia e anncio, como dizia Paulo Freire. A primeira par-te do livro contm texto que analisa o Plano de Desenvolvimento Urbansticodo Complexo de Manguinhos, elaborado em 2004, que serviu como refern-cia para as principais decises do PAC-Manguinhos e os limites e possibilida-des para a gesto democrtica de polticas pblicas em territrios de favelas,marcados pela suspenso permanente de direitos, nas quais vivem os seusmoradores. A partir da categoria poltica territrio de exceo, construdacom o movimento social local e organizaes de base durante o trabalho da

    ACS/ENSP/Fiocruz, analisa-se um estado de exceo no declarado oficial-mente, mas territorializado nas comunidades de favelas da cidade do Rio deJaneiro. Denncia.

    Na perspectiva Freiriana, denncia precisa preceder anncio. Na segunda par-te do livro h alguns anncios, cujo fio condutor subjacente o tema sadeambiental. Uma experincia de intersetorialidade, parceria entre pesquisado-res, tcnicos e populao, em torno de um tema altamente desafiador: o en-

    frentamento da Dengue a partir da construo coletiva de saberes e prticas.Outros anncios foram levantados, denunciados e propostos na Pr-Confe-rncia de Sade Ambiental da Bacia do Canal do Cunha e seus desdobramen-tos e por fim, os princpios que fundamentam um processo que hora se inicia,- o Ecomuseu de Manguinhos.

    As reflexes por vezes duras, outras vezes mais suaves e at lricas, mas sem-pre crticas, marcam esse trabalho, cuja tentativa contribuir para o debate

    sobre a vida em territrios de favela de grandes cidades. Estes so portadores

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    de toda a sorte de dificuldades, do qual o enfrentamento de maneira compar-tilhada e democrtica urge, de forma a garantir a todos e todas, os direitosbsicos dignidade, com preservao de sua identidade e esperana que nutraa sua luta cotidiana por uma vida com mais qualidade.

    O territrio de Manguinhos

    A partir de dados do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsti-ca - 2000), do Instituto Municipal Pereira Passos, do censo PAC Empresarial doComplexo de Manguinhos (2009) e PAC Domiciliar do Complexo de Mangui-

    nhos (2009), ambos elaborados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, almdo clculo da taxa mdia anual de crescimento populacional estipulada para obairro, a ACS/ENSP/Fiocruz aponta hoje para, aproximadamente, 38.000 milpessoas residindo no bairro de Manguinhos e para, aproximadamente, 48.500pessoas residindo no Complexo de Manguinhos. Estando atualmente entre ossete piores no ranking do ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mu-nicpio do Rio de Janeiro. O bairro de Manguinhos um microcosmo da desi-gualdade brasileira. No territrio grande parte de sua extenso classificada

    enquanto reas subnormais pelo IBGE, aonde convivem tambm grandesempresas pblicas e privadas, nacionais e transnacionais, com seus centros dedesenvolvimento tecnolgico produzindo pesquisa.

    O bairro de Manguinhos, segundo o Decreto No7.980 de 12 de Agosto de19881tem sua delimitao geogrfica:

    Da confluncia do Canal do Cunha com a Avenida Brasil seguindo por esta (in-

    cluda) at o Ramal de Minrios de Arar; por este (includo) at o entroncamentocom o Ramal Leopoldina da RFFSA; seguindo pelo leito deste, at o cruzamentocom o Rio Jacar; pelo leito deste at a Avenida Suburbana; por esta (excluda)at a Rua Jos Rubino; por esta (excluda) at a Avenida dos Democrticos; poresta (includo apenas o lado par) at a Rua Capito Bragana; por esta (includa,incluindo a Rua Hespria), atravessando a Rua Uranos, at o Ramal Leopoldinada RFFSA; pelo leito deste, at o prolongamento do alinhamento da Rua Eurico

    Introduo

    1 Disponvel em: http://www2.rio.rj.gov.br/smulbuscafacil/arquivos/pdf/d7980m.pdf

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    Souza Leo; por este e pela Rua Eurico Souza Leo - (includa); Avenida Novo Rio(includo apenas o lado mpar) at a Avenida Brasil por esta (includo apenas olado mpar, incluindo o Viaduto de Manguinhos) at o ponto de partida.

    Nas delimitaes, tanto do Complexo, quanto do bairro, os espaos para ha-bitao em Manguinhos so, em sua grande maioria, territrios favelizadosque apresentam diversas carncias e necessidades. O bairro de Manguinhoscontm atualmente, dez comunidades em territrio favelizado - CHP2, Con-junto Habitacional Nelson Mandela, Parque Joo Goulart, Vila Turismo, ParqueCarlos Chagas- Varginha, Mandela de Pedra, Nova Embratel, Samora Machel,Parque Oswaldo Cruz- Amorim e Conab- Vitria de Manguinhos. No entanto,o Complexo de Manguinhos abrange alm das comunidades de favelas con-

    tidas na delimitao do bairro, mais quatro comunidades: CCPL, Vila Unio,Vila So Pedro e Comunidade Agrcola de Higienpolis.

    O cotidiano nos territrios de favelas de Manguinhos se caracteriza por violentocontrole social exercido sobre a maioria de seus moradores; violao de direitoscivis e polticos por aparelhos de coero pblicos e privados; pouco acesso adireitos sociais (acesso educao, sade/ambiente, habitao, etc); alto desem-prego e precarizao acentuada do trabalho; baixa escolaridade e acesso restri-

    to sade pblica; condies ambientais deterioradas; populao empobrecida,desprovida tambm de capital cultural e social; polticas pblicas assistencialistas epaternalistas; cultura de massa incentivando ao individualista e fragmentada; cri-minalizao do territrio. O desafio da ACS/ENSP/Fiocruz contribuir, a partir dereflexo e prtica crtica, com a criao de alternativas locais para a transformaoefetivamente democrtica desse cotidiano. Para tanto, elege como ponto funda-mental de seu trabalho o assessoramento e o apoio luta por cidadania efetiva ereconstruo da dignidade humana2desenvolvida por movimentos sociais e or-

    ganizaes de base nos territrios de favela. A discusso aqui introduzida objetiva,portanto, chegar tanto nas prticas e debates realizados em meios acadmicos,quanto em espaos de movimentos sociais, organizaes de base e de indivduosem busca de reverso do cotidiano injusto em que vivem.

    Os Organizadores

    2 Expresso inspirada em fala do deputado estadual do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, em evento CEENSP organizado pela Assessoria de

    Cooperao Social, realizado na Escola Nacional de Sade Pblica, no dia 19/11/2008. No evento mencionado, Freixo se referiu urgnciade revertemos o quadro de desconstruo da dignidade em curso nas favelas da cidade do Rio de Janeiro.

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    Anlise crtica do Plano de

    Desenvolvimento Urbanstico doComplexo de Manguinhos

    Daniel Soares*

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    Anlise crtica do Plano deDesenvolvimento Urbanstico do

    Complexo de ManguinhosDaniel Soares*

    Resumo

    O presente texto o resultado de um esforo coletivo de anlise do Planode Desenvolvimento Urbanstico elaborado para Manguinhos que orientou asdecises do poder pblico sobre o que priorizar nas intervenes do Progra-ma de Acelerao do Crescimento (PAC) em Manguinhos.

    Palavras-chave

    Movimento social organizado; protagonismo local; territrio; violncia.

    Introduo

    O Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), lanado em 2007, trata deuma srie de investimentos pblicos que segundo o Governo Federal objeti-

    vam promover a acelerao do crescimento econmico, o aumento da ofertade emprego e em ltima anlise, a melhoria das condies de vida da popula-o brasileira. Os dados oficiais do programa prevem um total de R$ 503,9bilhes em investimentos, dos quais R$170,8 bilhes na rea social e urbana,para intervenes entre 2007 e 2010.

    * O presente artigo contou com a co-autoria de Leonardo Brasil Bueno, Fernando Luis Soares, Carla Moura Lima, Elisabeth Campos,Michelle Oliveira, Rosane Souza, Jos Leondio Madureira de Sousa Santos.

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    Os investimentos do PAC destinam-se especialmente a obras de infra-estruturapara facilitar o funcionamento de empresas no Brasil reduzindo os seus custose aumentando a sua produtividade. Alm disso, h mais blocos de medidas eco-nmicas previstas como: estmulo ao crdito e ao financiamento; melhora do

    ambiente de investimento; desonerao e aperfeioamento do sistema tribut-rio; e medidas fiscais de longo prazo. Outro objetivo bastante divulgado do PAC a eliminao de desigualdades sociais. Em virtude da atual crise econmica,paira um sentimento de insegurana com relao permanncia do montanteprevisto de investimentos no PAC. Em resposta a isso o Governo Federal anun-ciou que todas as obras previstas sero mantidas, j que foram licitadas desde2006 e em funo da crise global, haver um aumento oramentrio de 26 porcento para 2010*. A ministra chefe da casa civil Dilma Rousseff, em entrevista,

    esclareceu ainda que o dinheiro vir: 56 por cento das estatais; 17 por cento dosetor privado; 7 por cento na seguridade social e 16 por cento no financiamentodireto do governo e 4 por cento viro de Estados e municpios.

    Entre as diversas iniciativas do PAC, cuja descrio detalhada no objeto dopresente trabalho, cabe ressaltar que h a previso de R$ 3,5 bilhes de inves-timentos na urbanizao de favelas. Na cidade do Rio de Janeiro h interven-es iniciadas em diversas favelas, porm o maior montante de investimentos

    destina-se a Manguinhos, Alemo e Rocinha.

    Todos os projetos do PAC em reas de favela no Rio de Janeiro contam comuma obra-smbolo. No Complexo do Alemo, um telefrico ligando a partealta do complexo estao de trem de Bonsucesso. Na Rocinha, a passarelaprojetada por Oscar Niemeyer sobre a auto-estrada Lagoa-Barra e o anelrodovirio de 3,4 mil metros em torno da comunidade. Em Manguinhos, aelevao da linha frrea do ramal de Gramacho/Saracuruna ao longo de mais

    de dois quilmetros e a construo de um grande parque metropolitano narea a ser liberada pela elevao.

    Em Manguinhos, o projeto de interveno do PAC norteia suas atuaes peloPDU Plano de Desenvolvimento Urbanstico do Complexo de Manguinhos,encomendado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em 2003 e execu-tado parcialmente , em 2004, por um consrcio privado. O plano no foi im-

    * Em 03/12/2008

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    plantado pela Prefeitura do Rio de Janeiro por no ter sido submetido ao pro-cesso de avaliao social, previsto no processo administrativo 16/000339/03,e no prosseguiu a terceira e ltima fase do processo, a de prognose, ficandorestrito s fases de identificao e diagnstico, no sendo sequer publicado no

    stio da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Tal plano parte de uma srie depressupostos tcnicos para tentar decifrar a realidade local. De acordo comestes pressupostos, oferece alguns argumentos guisa de concluso e sugereplanos de ao do poder pblico para a rea.

    I Uma anlise do PDU

    A principal crtica ao PDU est em sua metodologia, o que compromete o pro-cesso de trabalho como um todo. O plano encara Manguinhos quase comouma entidade autonomizada, supostamente independente da totalidade social,e no como um territrio que est submetido a uma lgica de desenvolvimen-to, ocupao e gerenciamento do espao em prtica h sculos no Brasil e noRio de Janeiro. Na verdade, a metodologia arregimenta seu ferramental parajustificar um projeto urbanstico, no molde moderno-colonial, dentro do mar-co do modelo de desenvolvimento hegemnico. Moderno-colonial capitalista,pois desqualifica outras formas de utilizar e pensar o territrio, propondo aesefetivas bastante distantes das prioridades reivindicadas pelas populaes locais.Segue a tendncia histrica de concepo dos grandes projetos urbansticos,norteados pela negao participao popular efetiva e por discursos pautadosna naturalizao de desigualdades (que longe de serem naturais, so produzidasno processo histrico que privilegia os mais poderosos).

    Manguinhos um microcosmo da desigualdade brasileira. Num bairro ondevivem aproximadamente 38 mil pessoas em reas classificadas como subnor-mais pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica), convivem gran-des empresas pblicas e privadas nacionais e transnacionais, com seus centrosde desenvolvimento tecnolgico produzindo pesquisa de ponta. Os dejetos dodesenvolvimento industrial brasileiro contaminam os rios e canais que passamna porta de casas e inundam as mesmas em dias de chuva, enquanto outrascamadas da populao transitam por essa rea de carro (se possvel blindado), omais rpido quanto puder, quando no h outra alternativa, por uma das grandesvias expressas e arteriais da cidade que cortam o bairro e seu entorno.

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    II Manguinhos e o mundo: o territrio comoproduto histrico

    O primeiro impacto da atuao humana em Manguinhos se deu ainda durantea primeira globalizao, o colonialismo e a implantao da moderno-colonia-lidade (Porto-Gonalves, 2006). Num processo de globalizao da exploraoda natureza com proveitos e rejeitos distribudos desigualmente, a metrpoleportuguesa explorou com intensidade o pau-brasil ento existente na regio,colorindo roupas europias, desmatando as matas fechadas do que viria a serManguinhos e expulsando as populaes indgenas que ali viviam.

    Findo o potencial extrativista no local, iniciou-se o agrcola, onde o trabalhoescravo transformava a fertilidade da terra em riqueza para os proprietrios epara a Coroa, primeiro a portuguesa, e depois a brasileira.

    Na segunda metade do sculo XIX o territrio brasileiro comeou a ser ras-gado por ferrovias, principalmente na regio sudeste, onde se localizavam asprincipais culturas brasileiras de exportao: o caf e a cana-de-acar. Umciclo econmico que se inseria dentro da lgica da segunda globalizao,o capitalismo fossilista e o Imperialismo. Era necessrio alimentar, a baixos

    custos, a massa de trabalhadores europeus, principalmente ingleses. Sendo oRio de Janeiro a capital do Imprio e um de seus principais portos, da cidadepartiram linhas frreas para as regies produtoras. Em 1886, foi fundada a Es-trada de Ferro Leopoldina, partindo das imediaes do Porto do Rio de Janei-ro e seguindo para o norte fluminense, plo produtor de cana-de-acar. Paracontornar a Baa da Guanabara, a linha seguia rumo ao norte, paralelamente baa, at que fosse possvel inclinar-se ao leste por terra, circundando a massade gua, para depois tomar novo rumo ao norte.

    Entre o fim do sculo XIX e o incio do XX, o Rio de Janeiro continuava a sero principal centro da atividade econmica dinmica at ento: a produo eexportao de caf. Capital, reunia grande parte da estrutura burocrtica doacanhado governo federal brasileiro, j ento uma Repblica, assim como omaior contingente de suas tropas militares. Sendo a cidade do principal portodo pas, concentrava os servios comerciais relativos exportao de caf.Era uma cidade de muitas possibilidades de emprego e subemprego a brancos

    pobres, negros ex-escravos e mestios sem alternativas no campo dominado

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    por latifndios. A conseqncia foi o inchamento das reas centrais da cida-de, resultando em caos nas condies de higiene e no colapso dos serviospblicos.

    Para sanear o Rio de Janeiro era necessrio abrir espaos e descongestionaras reas centrais da cidade. Dada a assimetria de poder entre as elites e asclasses populares, no difcil saber em detrimento de quem esta reforma foifeita. Como o Estado no forneceu alternativas habitacionais aos expulsos, assolues encontradas pelos prprios foram as ocupaes das encostas e dasperiferias ento desabitadas. Surgiram as primeiras favelas. A primeira, situadano Morro de Santo Antonio e a posterior e mais famosa localizada no Morroda Providncia, ambas formando a parte perifrica da rea central da cidade

    (Abreu,1993; Vaz e Jacques,2002; Fernandes, 2006).

    E como morar nas reas centrais era cada vez mais caro, mesmo aqueles quetinham condies de pagar algum valor no tinham como faz-lo nestas reas.Surgiu assim mais uma oportunidade para a valorizao de estoque de capitalna cidade: a incorporao das antigas fazendas das zonas norte e oeste, seuparcelamento e revenda para fins habitacionais. Principalmente nas reas noentorno dos ramais ferrovirios, que, dada a nova demanda, cada vez mais

    se transformavam em ramais de passageiros, transportando trabalhadores abaixos custos para o comrcio, porto e indstrias cariocas.

    Este processo, iniciado na dcada de 1900, intensificou-se e consolidou-se aolongo das primeiras dcadas do sculo XX. E como as reas centrais foramse tornando saturadas at mesmo para a atividade econmica, os estabeleci-mentos industriais procuraram se localizar ao longo dos eixos de transportes,na primeira metade do sculo XX, ainda predominantemente ferrovirios. As

    indstrias reforaram o processo de atrao das reas de entorno de ferrovia populao operria. Assim fez-se a ocupao do que o PDU chama de reaformal (ou normal) de Manguinhos e seu entorno, bem como se criou o que oplano chama de vocao industrial da regio (pg. 81).

    Na metade do sculo XX, em meio s altas taxas de crescimento econmicodentro do processo de industrializao do pas, as reas nobres do Rio deJaneiro viram-se novamente saturadas. A rea nobre agora era a zona sul da

    cidade. Integrada ao centro por linhas de bonde e avenidas construdas sobre

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    aterros e cercada de amenidades naturais, como a Floresta da Tijuca, a LagoaRodrigo de Freitas e, principalmente, as praias ocenicas ornamentadas pelasmontanhas cariocas. Todos queriam morar prximos s maravilhas da CidadeMaravilhosa. E parte desta rea estava ocupada por favelas, produtos to diretos

    da industrializao quanto o crescimento econmico, uma vez que o subdesen-volvimento um irmo gmeo do desenvolvimento capitalista (Furtado, 2000).

    Ao longo das dcadas de 1950 e 1960, o Rio de Janeiro sofre intenso processode remoo. Em nova agenda definida pela elite e amplamente apoiada pela jnumerosa classe mdia, o Estado removeu os moradores de favelas das zonasnobres, liberando o espao para ser ocupado por novos empreendimentosimobilirios, destinado queles que podiam pagar pelo endereo chique, be-

    neficiando o setor de construo civil. Esse setor, por sua vez, maximizavalucros minimizando as despesas com os salrios da mo-de-obra, moradora,majoritariamente, de favelas e periferias.

    Remoes tambm foram necessrias em reas preciosas para a promoodo progresso brasileiro. Algumas reas, mesmo que fora da zona nobre, eramprximas ao porto ou seriam necessrias para a construo de vias de escoa-mento de pessoas e produtos, como a ponte Rio - Niteri.

    Em Manguinhos, diversas reas de mangue no entorno da estao de tremlocal foram aterradas. Cidados oriundos de remoes da zona sul, do Caju eda Ilha de Sapucaia, aterrada para dar origem atual Ilha do Fundo e construira Cidade Universitria, foram removidas para estas reas em habitaes ditasprovisrias, em sua maioria de madeira, minsculas e sem redes de servios.Tais reas permanecem sujeitas a alagamentos, uma vez que os aterros foramfeitos s pressas em reas de mangue onde desguam vrios rios e canais que

    escoam as guas das chuvas e do esgotamento sanitrio domstico e industrialde parte da zona norte para a Baa de Guanabara. Abandonados prpria sor-te, os cidados removidos pelo Estado transformaram o provisrio em per-manente. O barraco de madeira em alvenaria1e assim por diante. Foi a origemdas comunidades do entorno da linha frrea.

    1 A transformao das habitaes de madeira em alvenaria nas favelas ocorreu principalmente a partir do momento em que houve

    garantias mnimas, por parte do poder pblico, de permanncia da populao nestas reas e expanso dos servios pblicos em direoa elas, o que se deu a partir do primeiro governo estadual de Leonel Brizola (1983-1987).

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    Nas dcadas de 1960 e 1970, grandes contingentes continuavam a chegar aoRio de Janeiro, atrados pela expectativa de uma vida melhor, para desfrutardo milagre econmico brasileiro, quando a economia do pas cresceu taxamdia de 11% ao ano entre 1968 e 1973, cujas benesses foram amplamen-

    te divulgadas pela mdia televisiva, que a partir da dcada de 1960 passou atransmitir em rede nacional seus noticirios e novelas (que exaltavam o novoBrasil moderno, urbano e industrial). Desenvolvimento deliberadamente con-centrado e concentrador nas reas j industrializadas, de modo a aproveitarao mximo as economias de escala e fazer o pas crescer, na marra, o mximoque pudesse, j que a ditadura militar (no poder desde 1964) necessitava de-sesperadamente se justificar socialmente, e o fazia atravs da promoo dodesenvolvimento econmico.

    Uma vez que havia na rea habitaes instaladas, e estando ausente o poderpblico, as reas remanescentes de Manguinhos se tornaram alvos de ocupa-o espontnea e desordenada. Com o tempo, servios pblicos, mesmo queprecrios, facilidade de acesso diversas reas da cidade e proximidade doCentro atraram grandes contingentes oriundos de migrao direta de outrasregies do estado e do pas (principalmente Minas Gerais e Nordeste) e mes-mo populaes de outras favelas cariocas, gerando a grande densidade popula-

    cional identificada pelo PDU, apesar de o plano (p. 73) subestimar a migraonordestina e mineira na rea em um texto truncado, que diz ser inexpressivaa presena de migrantes de outros estados na regio, embora o grfico 6.32,logo abaixo, indique cerca de 15% dessa presena na populao.

    Aps as crises do petrleo de 1973 e 1979, o cenrio no incio da dcada de1980 era de estagnao econmica e de inflao crescente. Isto num ambien-te em que grandes contingentes chegavam ao mercado de trabalho, fruto da

    grande taxa de aumento populacional ao longo dos anos 1950 e 19602. Sememprego e com o custo de vida alto, principalmente para os mais pobres,a soluo de moradia para os filhos da favela era continuar em casa mesmodepois de constituir a prpria famlia (aumento da densidade populacional pordomiclio), um barraco nas franjas da favela (expanso horizontal), ocupaode reas prximas vazias ou abandonadas (criao de novas favelas) ou a cons-truo de um segundo andar nas casas de alvenaria (expanso vertical).

    2

    A taxa de aumento populacional brasileira saltou de 1,8% ao ano entre 1872 e 1940 para 3% entre 1950 e 1960, resultado principal-mente da queda acentuada da taxa de mortalidade, sobretudo a infantil, no ps-guerra.

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    No fim da dcada de 1980, chuvas torrenciais castigaram o Rio de Janeiro novero de 1988. As enxurradas deixaram milhares de desabrigados. Reeditandoas mesmas velhas prticas, a Prefeitura carioca tratou os cidados desabrigadoscomo de segunda classe. Favelados desabrigados, no haveriam de ter direito a

    morar em habitaes decentes. A eles foram destinadas unidades habitacionaisde 22m beira de canais e rios poludos por resduos industriais. Servidos porservios pblicos precrios. Manguinhos passava a ter, assim, sua feio atual,com a criao das comunidades ao leste da avenida Leopoldo Bulhes.

    Nos anos 1990, a agenda neoliberal pde se impor de maneira mais efetiva noBrasil, consolidando o pensamento nico e marginalizando as crticas atra-vs do discurso tcnico fatalista e pretensamente neutro. O efeito colateral

    das prticas neoliberais se manifestou atravs da reestruturao abrupta dosetor industrial brasileiro e do mercado de trabalho. Com o mercado brasilei-ro sendo invadido por produtos importados baratos, sejam os de baixa e m-dia tecnologia (produzidos em larga escala e por mo-de-obra barata na sia)ou de tecnologia de ponta (com componentes de ponta produzidos por mode obra qualificada dos pases do Norte e montados por mo-de-obra maisbarata em pases do Sul). Sem condies para concorrer desta forma, diversasplantas industriais fecharam, desempregando muitos trabalhadores3que, de

    repente, tiveram suas especialidades transformadas em obsoletas.Como consequncia da adoo de polticas de cunho neoliberal, cresce emrapidez exponencial o mundo do trabalho chamado precrio ou informal queocupa, no caso do Brasil, um espao cada vez maior. De forma impessoal, odesemprego estrutural que decorre da acumulao flexvel e global tratadocomo inevitvel, como uma espcie de pequeno pedgio que seria precisopagar para se ter acesso aos benefcios da modernizao acelerada e violenta

    do capitalismo. Oportuno para legitimar o crescimento intenso da esfera fi-nanceira, o neoliberalismo e suas premissas traduzem-se como nunca nas re-laes sociais de trabalho e no que chamamos de precarizao do trabalho4.

    3 Nos trs anos aps o plano Collor, entre maro de 1990 e maro de 1993 o nmero de carteiras de trabalho assinadas no pas caiu21%, retornando ao nvel pr-plano Collor apenas em agosto de 2007, diante de uma populao economicamente ativa 33% maior.Fonte: Ipea.4 A precarizao do trabalho o processo de diluio dos obstculos constitudos pela luta de classe voracidade do capital no decorrer dosculo XX. to-somente a explicitao da precariedade como condio ontolgica da fora de trabalho como mercadoria. A precarizaopossui um sentido de perda de direitos acumulados no decorrer de anos pelas mais diversas categorias de assalariados. Mas, tal como aseguridade social, construda a partir das lutas sociais do mundo do trabalho organizado, em sindicatos e partidos trabalhistas, no perodo deascenso histrica do capital, a precarizao sntese concreta da luta de classes e da correlao de foras polticas entre capital e trabalho.

    contedo de uma determinada forma de Estado poltico o Estado neoliberal que visa suceder o Estado social. O Estado neoliberal oEstado poltico do capital em seu perodo de decadncia histrica e de crise estrutural A precarizao um processo societrio, de conte-do histrico-politico, de natureza complexa, desigual e combinada, que atinge o mundo do trabalho (ALVES, 2004).

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    O espao econmico brasileiro tambm foi forado reorganizao. A de-cadncia do parque industrial do Rio de Janeiro que comeara com a transfe-rncia da capital federal em 1960, exacerbou-se com a crise generalizada doparque industrial nacional. Mesmo a partir da desvalorizao do real frente ao

    dlar, em 1999, e de sinais intermitentes de recuperao na atividade econ-mica nos primeiros anos do sculo XXI, a instalao de novas plantas indus-triais se deu em novas bases. Com mais tecnologia incorporada, prxima aolocus de produo de novos setores dinmicos e incorporando mo-de-obraem quantidade menor e com maior qualificao.

    Manguinhos e seu entorno, regio de vocao industrial ao longo do scu-lo XX, foram duramente afetados por esta reorganizao espacial. s novas

    atividades, a regio tomada por velhos galpes, vales poludos e cercado defavelas, passa a no interessar mais. O destino de diversos prdios industriaisabandonados em Manguinhos e em seu entorno acabaria sendo o da ocupaoe criao de novas favelas, j na dcada de 2000. Ao longo dos sculos, o ex-trativismo predatrio, a indstria de base fossilista e o descaso do Estado e dasociedade com os deserdados do progresso exauriram o territrio. Aquelesque se locupletaram neste territrio retiraram-se, deixando atrs de si umaterra arrasada.

    A grande mdia produz a representao social de que a atividade econmi-ca capitalista est sendo expulsa deste territrio devido a violncia urbana,tendendo a culpar os favelados pelo esvaziamento econmico da regio. Talrepresentao omite a anlise fundamental para o entendimento da atual si-tuao do territrio de Manguinhos. A anlise do processo de construo deManguinhos, condicionado pelas contradies histricas do prprio sistemacapitalista e pautado pela utilizao daquele territrio enquanto mero insumo

    produtivo, a ser consumido enquanto for lucrativo e descartado como resduoquando no provir mais retornos.

    III Violncia, excluso social e medo.

    A excluso de direitos nasce da incluso precria (Martins, 2002). Desde sem-pre, o Brasil foi uma sociedade excludente, onde s uma parte da populao

    tinha o benefcio de ser protegida pela legislao vigente. Desde os homens

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    bons, brancos e proprietrios que eram os nicos com direito a voto nascidades coloniais, at a CLT (Consolidao das Leis Trabalhistas) que estendebenefcios trabalhistas apenas aos trabalhadores urbanos.

    Era naturalizado dentro desta sociedade, portanto, que ao contingente de ex-escravos e migrantes pobres que chegavam ao Rio de Janeiro no fim do sculoXIX e incio do sculo XX fossem negados os direitos de cidadania, apesar daConstituio de 1891, da recm proclamada Repblica, afirmar em seu artigo 72serem todos iguais perante a lei. Eram excludos com base em vrios critrios,como o de serem analfabetos ou no possurem ocupao fixa5. Serviam comomo-de-obra barata, mas no ao convvio. Empurrados para o alto dos morrose para as vrzeas das periferias, deviam l ficar confinados e sair e voltar apenas

    para trabalhar. Desde h muito, favelado no asfalto sem estar a caminho ouvoltando do trabalho, tratado como elemento perigoso, suspeito pela polciae pela sociedade em geral. As favelas, portanto, historicamente, tm a feiode guetos. Aglomerados onde vivem cidados indispensveis ao funcionamentoda cidade, integrados economicamente a ela, porm excludos dos direitos decidadania desfrutados pelos demais cidados, configurando assim verdadeirosterritrios segregados ao pleno Estado de Direito Democrtico.

    Nessa difcil dinmica, cada vez mais acirrada em suas iniquidades e desigual-dades, a favela na cidade configura o espao - histrico e desigual destacadoda combinao das mais distintas formas de violncia da cidade, apresentandocaractersticas que nos permitem represent-lo enquanto territrio de exce-o, onde efetivamente existe a excluso de direitos civis, polticos e sociaispara a maioria de seus moradores. Nos momentos de conflitos mais intensosentre faces criminosas, e destas com os aparatos policiais e militares oficiaisdo Estado, essa ausncia de direitos aparece de modo parcial para o restante

    da cidade, normalmente atravs da mdia e sua tendncia sensacionalista, eli-tista e apologtica de aes policiais violentas. No entanto, essas representa-es escondem ou deixam de analisar prioritariamente a origem e situao daviolncia social territorializada que marca diretamente o cotidiano da grandemaioria de moradores sem relao com nenhuma forma de criminalidade nes-

    5 Caso emblemtico de ferramenta de controle social a possibilidade de priso por vadiagem nos termos do Decreto-Lei 3.688de 03/10/1941, em seu artigo 59, que torna passvel de priso todos aqueles em idade adulta sem ocupao fixa: Art. 59. Entregar-sealgum habitualmente ociosidade, sendo vlido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistncia, ouprover prpria subsistncia mediante ocupao ilcita:

    Pena priso simples, de quinze dias a trs mesesPargrafo nico. A aquisio superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistncia, extingue a pena.

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    tes espaos. O Plano de Desenvolvimento Urbanstico no desenvolve umaperspectiva critica em relao a essas representaes, comprometendo suacondio de referncia para uma poltica pblica com sustentabilidade e pau-tada por aes estruturantes.

    As trs ltimas dcadas da histria do Ocidente foram caracterizadas (Ho-bsbawn apud Souza, 2005) como a Era do Desmoronamento, em funodo registro do quadro mais sombrio de tortura e terror da histria aliado aquadros significativos e provavelmente inditos causados pelas desigualdadessociais, a pobreza, o meio familiar e social que colocam os desempregadose sem esperana de conseguir emprego, os no-empregados (Boff, 1997)- mais vulnerveis ao mundo do crime. So esses tambm os mais expostos

    a serem vitimados pela violncia e criminalizados pelo aparelho repressivo(Baierl, 2004).

    Se, dentro do sistema capitalista, o desenvolvimento acompanhado neces-sariamente pelo subdesenvolvimento, o progresso traz ao mesmo tempo apujana de uns e a misria de outros. Quadro social frtil para a proliferaode diversas violncias, levando ao quadro atual onde a causa-mortis de 39,7%dos jovens de 15 a 24 anos mortos no Brasil em 2006 foi o Homicdio6. A vio-

    lncia deve ser pensada tambm para alm dos jovens que so suas principaisvtimas diretas, precisa ser analisada tendo em vista os contextos histricos,polticos, econmicos, sociais, culturais, territorializados de sua produo(Baierl, 2004. p.22). No se pode buscar explicao e analisar questes rela-tivas violncia e ao medo, desvinculadas das diferentes formas de exclusosocial. Essas geram nas pessoas um medo social ou sofrimento tico-poltico(Sawaia, 1999 apud Baierl, 2004), onde embora seja o indivduo que sofre, agnese do sofrimento no est nele, e sim em intersubjetividades delineadas

    socialmente (Almendra e Baierl, 2002).

    Nos dias atuais, numa cidade como o Rio de Janeiro, a violncia tem ampliadoo medo social, tpico do imaginrio coletivo (no caso das classes, mdia e alta,causado pelo aumento perverso dos ndices de violncia na cidade) ou real(no caso das classes populares moradoras da maioria das favelas ocasionadopor ameaas reais advindas da convivncia com sujeitos fortemente armados

    6 Mapa da Violncia, 2006.

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    que intimidam com prticas pautadas no terror), imprimindo ritmo e dinmicacotidiana, pois no fundo todos se sentem ameaados, e de uma forma ou deoutra, correndo perigo. Esse medo geralmente utilizado como instrumentode coero por grupos que submetem pessoas aos seus interesses. O medo

    social vem alterando o tecido e o territrio urbano. Na tentativa de se adaptarpara sobreviver, as pessoas vo reestruturando a forma de se apropriar domeio urbano construindo novas formas de sociabilidade e dilapidando o capi-tal social. No caso dos moradores, lideranas de favelas e profissionais queatuam nelas, ou em unidades que atendem a essas pessoas, a reao possvel o emudecimento. Sartre(apud Baierl, 2004, p.16) assinala que a necessidadede segurana intrnseca ao homem e simboliza a vida, enquanto a inseguran-a sinaliza a morte

    Organizados de forma capitalista, os diversos grupos criminosos existentes nacidade concorrerem entre si, por mais fatias de mercado. Dentro das caracte-rsticas desta atividade, o controle do territrio fundamental lucratividade,uma vez que mais territrio representa mais pontos de venda, maior popula-o passvel de ser extorquida de taxas e maior mercado consumidor aos ser-vios monopolizados pelo crime. Como se trata de atividade ilegal e reguladapela fora do arsenal militar que cada grupo monta, a disputa pelo mercado

    feita pela fora das armas. As disputas entre quadrilhas pela ampliao de seuterritrio de atuao e conseqentemente pela ampliao de seu mercadocausam reflexos no asfalto, na cidade formalizada. Tiroteios prximos sreas nobres e balas perdidas comeam a se tornar comuns nos anos de 1980e se generalizam na dcada seguinte. A resposta do poder pblico se d napoltica do confronto de modo a satisfazer uma sociedade civil ansiosa porpunies exemplares e vingana por seus mortos. Esta poltica contribui parao aumento da violncia nas favelas e em seus entornos, aumentando o des-

    respeito aos direitos dos cidados que nelas moram, ampliando o fosso quesepara os moradores das favelas dos moradores do resto da cidade, tornandoa favela um lugar cada vez mais fcil de ser dominado por grupos criminosos.

    O crescimento da violncia, alm do medo generalizado, trouxe aumento dopreconceito contra os pobres em geral, tomados como os agentes da violncia,e auxiliou a tendncia de demonizar os usurios de drogas, por consider-los afonte de todo o mal, de toda a violncia. Os usurios por sua vez, encontram

    dificuldade em conseguir tratamento mdico, ficando a merc do traficante

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    e do policial corrupto (Zaluar, 2004). A poltica de confronto contribui parauma mudana no perfil da atrao dos jovens s organizaes criminosas, namedida em que ao matar indiscriminadamente, as foras de segurana geramcontra si um dio coletivo que reconhece nas organizaes criminosas um

    meio para promover o combate do inimigo odiado.

    O plano expressa surpresa quando os moradores identificam o medo da vio-lncia como principal motivo para querer se mudar do local, ao mesmo tem-po em que aponta a calma e tranquilidade do lugar como principais motivospara se gostar dali. No entende esta questo tambm por no ter dimensohistrica crtica. A histria da favela a histria de ser o lugar dos banidosdo convvio com o resto da cidade. Dos removidos e dos expulsos econ-

    mica e socialmente. Daqueles aos quais s lhes admitido a circulao pelacidade quando para trabalho, habitualmente precrio. O fato de no seremdiscriminados quando dentro da favela, faz com que os moradores se sintammais calmos, tranqilos (pp. 77 e 83). Como no se sentiriam indo jantar numrestaurante da zona sul, correndo o risco de serem maltratados ou mesmobarrados na porta, devido sua aparncia fsica, ao modo de se portar ao oujeito de se vestir.

    Embora o PDU aponte a violncia como questo relevante, no apresentanenhuma problematizao aprofundada para esta. Mais grave que isto, noapresenta formulaes claras, enquanto plano, de quais seriam as medidasnecessrias para o combate violncia no territrio de Manguinhos.

    IV O territrio e as relaes de poder

    H no PDU, portanto, uma lacuna em termos de problematizao das rela-es de poder produzidas e mediadas pelo territrio de Manguinhos. Aquipercebe-se novamente a ausncia de uma interpretao histrica que consi-dere criticamente a curta e a longa durao do processo formador das rela-es de poder daquele territrio e as mltiplas escalas geogrficas necessriaspara a anlise deste. O primeiro problema grave do PDU reside na condioprivilegiada dada s proposies [dos presidentes] das associaes de mo-radores enquanto organizaes capazes de representar todos os moradores

    das comunidades de Manguinhos, assimilando diretamente as anlises destas

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    Embora represente atualmente uma limitao imediata para a mobilidade e,sobretudo, liberdade da grande maioria dos moradores de Manguinhos, otrfico de drogas no deve ser considerado apenas por sua escala local. Aoapontar a necessidade de medidas de curto, mdio e longo prazo que viabi-

    lizem o combate ao trfico de drogas no Complexo de Manguinhos... entreas prioridades do PDU(p.83), o diagnstico necessita de uma explicitaoe uma problematizao de quais seriam tais medidas. Parece fundamentalentender que Manguinhos no pode ser representado como um territriohomogneo a ser combatido por foras policiais e militares, como nas con-cepes mais conservadoras de territrio que ainda influenciam as polticasimplementadas nas cidades do pas. Faz-se necessria uma compreenso doprocesso global e regional das rotas do narcotrfico e de sua associao com

    os circuitos do trfico de armas adicionada anlise do sentido e forma dolugar sob influncia do trfico de drogas, justamente para evitar discursos quecriminalizem ou estigmatizem o cotidiano da maioria de trabalhadores mora-dores de Manguinhos sob influncia violenta destes grupos. Evit-los significatambm incorporar a questo da violncia urbana s distintas escalas das pr-ticas capitalistas7:

    s favelas que no caso do Rio de Janeiro se inscrevem historicamentena malha urbana privilegiada por investimentos pblicos e privados sis-

    tematicamente atribudo o epicentro da violncia, em decorrncia do seuenvolvimento no circuito da droga. Nessa atribuio desconhece-se... ofato banal de que os grupos de comando abrigados em favelas, envolvidosno comrcio a varejo da droga, no controlam a totalidade dos circuitos donarcotrfico e das armas pesadas (Torres Ribeiro, 2000, p. 25).

    O processo de incorporao do trfico de drogas e de armas ao territrioda cidade do Rio de Janeiro e sua relao com os movimentos populares nosconduz para uma reflexo que demanda a articulao das escalas de anlise.

    O diagnstico apresenta uma ausncia de anlises que sugiram articulaesentre as diferenas locais, a histria do pas8e os mecanismos globais que oscompreendem. Questes que s podem ser consideradas mediante as con-

    7 Em relao ao assunto, Souza (1995, p. 166) assim sintetiza : a realidade que o trfico de drogas, se se considerar a repartiodos lucros da escala local s escalas mais amplas nas quais ele se inscreve, e particularmente os grandes financiadores do asfalto que noarriscam a pele diretamente , consiste em um capitalismo verdadeiramente selvagem e em uma forma brutal de explorao da mode obra favelada.8 Pensando as redes e ns que formam o trfico de drogas no pas a partir dos anos 80, Souza(1995, p.169) atenta para a tendncia dedifuso do consumo e do trfico de drogas pelo territrio brasileiro, concluindo que o n mais importante dessa rede , primeira

    vista, o Rio de Janeiro, mas seu alcance se amplia rapidamente: da Grande So Paulo, outro n muito importante , at a cidade- modeloCuritiba ....

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    junturas nas quais o pas se encontrou inserido nas ltimas dcadas. Comoexplica Zaluar (1995, p.24 -5):

    o processo de democratizao coincidiu com a dramtica transformaona organizao do crime, a qual afetou principalmente as regies metropo-

    litanas e, dentro delas, os bairros populares. A entrada dos cartis colom-bianos e da mfia talo- americana ligada ao narcotrfico, particularmente, oda cocana, trouxe para o pas as mais modernas armas de fogo que foramdistribudas entre os jovens... Os movimentos sociais foram tambm afe-tados por este novssimo fenmeno que gerou novas dificuldades para osseus militantes.

    Nos ltimos dez anos, sobretudo, a relao entre movimentos sociais urba-nos e grupos criminosos vm tornando-se um tema de interesse especial de

    especialistas e dos prprios movimentos populares na Amrica Latina, quebuscam entender e transformar o processo que est se desenvolvendonas periferias das grandes cidades, aonde se disputa um triplo jogo entre osestados, os movimentos e o crime organizado, que vem sendo ganho peloltimo(Zibechi,2006, p. 228). Os novos cenrios de possibilidades, eclodidosnas ltimas dcadas de expresso urbana da crise societria que enfren-tamos, sero inevitavelmente desafiados por essa questo (Torres Ribeiro,2006). Enfrent-la sem rodeios no significa, no entanto, a proposio de so-

    lues ancoradas em confrontao violenta aberta por parte dos movimentospopulares, nem da manuteno em longo prazo desses mesmos em condiesmarginais ou isoladas. Um desafio delicado para os movimentos popularesurbanos, pois os j referidos guetos das grandes cidades perifricas, como osque desenham o territrio de Manguinhos, normalmente so regidos por umverdadeiro estado de exceo com dois limites muito precisos: planos sociaisno limite da sobrevivncia, por um lado, e os narcotraficantes por outro (Zi-bechi, 2006, p. 228).

    O Plano de Desenvolvimento Urbanstico no explicita a participao e a influ-ncia dos movimentos populares locais na sua implementao, se restringindoapenas a identificar alguns destes movimentos. Isto implica no no reconhe-cimento do indivduo e da coletividade, e sua potencialidade colaborativa, deforma a produzir processos participativos que contribuam efetivamente paramudanas nas condies de vida de uma dada localidade.

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    O acionamento da histria no diagnstico aparece apenas em momentos iso-lados, como, por exemplo, para apontar a porcentagem de 70% de morado-res supostamente satisfeitos em residir no local, dado justificado pelo longotempo de residncia dessas pessoas e a consequente constituio de estrei-

    tos laos de vizinhana entre elas. Carece aqui, no entanto, de uma anliseque aponte para a influncia, certamente desenraizadora e desarticuladora,da violncia para esses laos de vizinhanas. Problemas gritantes que parecememudecidos pela ausncia de problematizao no transcorrer do diagnstico.

    As polticas de combate violncia para territrios historicamente vulnerabi-lizados e criminalizados, necessitam ser pensadas de forma mais ampla, abar-cando: a intensificao emergencial de investimentos em projetos pblicos

    de educao, cultura e sade intensivos em participao social organizada emredes sociais locais e abrangentes. Devem tambm planejar e estabelecer po-lticas de enfraquecimento das condies propcias criminalidade, evitandocolocar em risco os moradores, trabalhadores e transeuntes. A articulaodesses planos, intersetoriais de ao poder gerar efetividade na reduo daviolncia e da criminalidade de Manguinhos, no apenas uma poltica de en-frentamento direto via ao policial ou militar. Essas so questes que o planopouco problematiza.

    Segundo o Memorial Descritivo do Complexo de Manguinhos realizado pelaEMOP-Empresa de Obras Pblicas do Estado do Rio de Janeiro, em 2007,este projeto (do PAC) tem como principal objetivo a estruturao scio-terri-torial da regio, atravs da implantao de um conjunto de servios pblicos eelevao da linha frrea, que se constitui como obstculo para a comunicaoentre as comunidades, hoje impedida. O projeto referente linha frreamerece ateno, porque se baseia no que foi apontado de forma unilateral no

    PDU (2004), ao colocar que a suposta barreira territorial imposta pela linhado trem (Supervia) e seus muros dificultam tanto a comunicao entre oslados leste e oeste das comunidades, quanto constitui uma faixa de risco notrnsito pela regio, que o Plano dever equacionar. No fica claro, nessapassagem, a questo de fundo, que vai justificar investimentos to altos paraa elevao de parte de uma linha frrea. uma demanda da populao deque no h comunicao entre as comunidades, ou o suposto risco, talvezda violncia do crime organizado, oferecido aos veculos que trafegam pela

    faixa de trnsito que acompanha a linha frrea? A rea dita como conflitiva,

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    seria ento resultado desta diviso instransponvel determinada pelo traadoferrovirio, que divide a regio em duas partes desconexas. Vale ressaltar quevrios bairros do Rio de Janeiro so cortados por uma, s vezes duas linhasfrreas, e que seguindo a lgica apontada pelo Diagnstico, seria necessrio

    elevar a maior parte dos cerca de 200 quilmetros de linhas frreas da RegioMetropolitana do Rio de Janeiro.

    importante uma discusso mais aprofundada sobre a pertinncia de umaobra desta natureza, haja vista que, no foi definida como prioridade pelosmoradores locais. Como soluo no PDU para amenizar essa situao sercriado o parque metropolitano, a partir da elevao da linha frrea. A ideia que este espao pblico atraia principalmente os jovens, hoje praticamente

    sem opes, e que consequentemente sero retirados das reas de influn-cias ilegais (EMOP, pg. 67, 2007). O que tambm se observa neste proces-so de trabalho do Estado o no reconhecimento de experincias positivasdesenvolvidas por instituies locais e desqualificao do movimento populare do lugar, ao descrever o parque metropolitano como um elemento que vaidefinir uma nova forte imagem para este lugar sem identidade.

    V Concluso

    Portanto, se faz necessrio avaliar o PDU e sua concepo de territrio. Aono analisar Manguinhos como construo e condio social desigual produ-zida historicamente, ou seja, resultado de um longo e complexo processohistrico (Bacelar,2008, p.10), o PDU compromete seriamente a relevn-cia de seu diagnstico e, consequentemente, das solues neste indicadas. Odiagnstico, inclusive, se contradiz quando, nas pginas 82 e 83, afirma que aviolncia na regio a maior causa do isolamento das comunidades de Man-guinhos entre si, depois de passar todo o documento afirmando que o princi-pal fator de isolamento da comunidade so as barreiras fsicas representadaspela linha frrea e pela Avenida Leopoldo Bulhes. E esta violncia est ligadas questes histricas, como as descritas acima. Se o isolamento foi produ-zido pela violncia, que por sua vez foi produzida por questes histricas esociais, certamente no ser uma interveno urbana fsica que acabar como isolamento. O risco o de se aplicar milhes de reais em uma bela obra,

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    que poder no ser usada por ningum, dado o medo da violncia criminosa epolicial e devido ao fato de no interessar ao crime a livre circulao na rea.No limite, um novo muro pode ser construdo embaixo da linha frrea pelotrfico de drogas, da mesma forma que hoje em dia j limitada a circulao

    de pessoas e veculos pelas ruas de acesso s favelas com o depsito de galhosde rvore, pedras, objetos metlicos e entulho em geral.

    A soluo para a integrao cidad das favelas entre si e a cidade como umtodo, passa pela incluso efetiva de sua populao ao Estado de Direito. Ecabe, destacadamente, aos movimentos populares locais, levar a discusso deque os moradores de favelas so cidados com os mesmos direitos e deveresdo que os demais habitantes da cidade.

    A tarefa certamente no fcil, tendo em vista que a maioria dos polticosque controlam as intervenes do Estado, os grupos criminosos que domi-nam o espao e mesmo as lideranas comunitrias que se beneficiam da atualsituao tm o interesse de no transformar significativamente as relaesque constroem o territrio de Manguinhos. Da que seja estratgica a lutapara que quaisquer recursos investidos pelas intervenes do poder pblicona favela tenham a contrapartida de tambm financiar aes estruturantes

    sobre iniciativas locais e populares de mobilizao e construo de cidadaniacrtica e participativa. Porque s no momento em que o movimento socialorganizado for estruturado e tomado como seu pela maior parte dos mora-dores do lugar, poder ter fora para se contrapor a tantos atores poderosose fortalecer sua posio frente aos poderes interessados na perpetuao dasatuais condies.

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    Territrio de Exceo enquanto

    Limite e Possibilidade para a GestoDemocrtica em Favelas da Cidadedo Rio de Janeiro.

    Leonardo Brasil Bueno*

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    Territrio, Participao Popular e Sade: Manguinhos em debate.

    Territrio de Exceo enquanto Limite ePossibilidade para a Gesto Democrtica

    em Favelas da Cidade do Rio de Janeiro.Leonardo Brasil Bueno*

    Resumo

    A combinao entre restries materiais essenciais, implementao de polti-cas pblicas caracterizadas por paternalismo e criminalizao do territrio, eviolncia exercida por instituies dotadas de amplo instrumental blico mar-ca diretamente as favelas da cidade, entendidas aqui enquanto territrios deexceo. A categoria poltica territrio de exceo adquire importncia,pois afirma as condies singulares e restritivas enfrentadas pelas tticas eestratgias contra-hegemnicas nos territrios de favela da cidade do Rio deJaneiro. A consolidao e a legitimao de territrios de exceo na cidade

    significa uma afronta radical liberdade coletiva/individual das pessoas queali residem. Significa a condio limite para a participao popular e a im-possibilidade da territorializao ampliada de propostas emancipatrias e degesto participativa em polticas pblicas nestes espaos. Em ltima instncia,representa a negao das condies fundamentais para a gesto democrticada cidade.

    Palavras-chave

    Violncia; territrio de exceo; participao popular.

    *

    O presente artigo contou com a co-autoria de Daniel Soares, Fernando Luis Soares, Carla Moura Lima, Elisabeth Campos, MichelleOliveira, Rosane Souza, Jos Leondio Madureira de Sousa Santos.

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    As favelas da cidade do Rio de Janeiro enquanto territri-os de exceo em um contexto de medo generalizado

    A cidade do Rio de Janeiro pode ser representada historicamente como

    um espao de (re)produo incessante de iniquidade e desigualdade social,alimentada pela disseminao da violncia. Neste contexto, para a maioriade sua populao ser pobre sempre foi estar exposto a riscos especficose aumentados1. A perpetuao das variadas formas de violncia social queacompanham a cidade desde sua origem , porm, significativamente poten-cializada a partir da dcada de 80, quando a um contexto de alastramento dapobreza e do desemprego soma-se uma proliferao do trfico de armas defogo e da organizao de grupos criminosos, necessria escala que estas ati-

    vidades ilcitas alcanaram. Como exemplo dessa proliferao, nesta dcada,podemos apontar o destaque da cidade dentro da tendncia nacional - nasgrandes capitais das regies metropolitanas - de aumento de bitos causadospor armas de fogo2:

    Em 1980 foram notificadas 2.515 mortes nas capitais das Regies Metropo-litanas envolvendo armas de fogo, o que representava 14,5% dos 17.305bitos por causas externas. Em 1989 houve 6.265 mortes por este meio,significando 26% dos 24.095 bitos por violncia. As capitais onde este

    crescimento foi mais intenso so, pela ordem, o Rio de Janeiro, que pas-sou de 28,5% (mortes por armas de fogo), em 1980, para 46,8%, em1989; Recife, onde a proporo se elevou de 19,7% para 38,2%; Salvador,que saltou de 7,2% para 23,5%; e Porto Alegre, que subiu de 11,1% para26,4% (Minayo, 1994, p. 6)

    Torna-se relevante acrescentarmos a este contexto um entendimento de queas informaes e dados relativos criminalidade violenta no territrio dacidade so, em sua grande maioria, imprecisos ou desqualificados, uma vez

    que as instituies tratam os dados como de domnio privado e no de acessopblico sociedade3(Minayo, 2001).

    1 Lessa (2000, p.292). O Rio de todos os Brasis : uma reflexo em busca de auto-estima2 Em relao a estes nmeros, Minayo oportunamente ressalva que as indicaes acima, que sero amplamente analisadas no conjuntode textos deste nmero temtico, padecem de um problema crnico especfico da mortalidade por violncia, alm de todos os outrosj assinalados: a subnotificao. Por envolver aspectos conflitivos nas relaes sociais entre beligerantes, bem como implicaes legaisrelacionadas s informaes policiais e mdicas, uma grande parte dos dados cai num buraco negro de outras violncias ou leses quese ignora se foram acidental ou intencionalmente infligidas. Uma parcela no-desprezvel dos homicdios, porm, no nem mesmonotificada, sobretudo nos casos de extermnio, onde desaparecem, sem vestgios dos corpos, as vtimas fatais.3 De fundamental importncia, entretanto, a compreenso de que os nmeros brutos referentes criminalidade violenta devem serrelativizados, no somente pela sua falta de confiabilidade e deficincia de divulgao pblica, mas porque no problematizam o que

    efetivamente h, nestes dados, de violncia criminalizada e de violncia socialmente legitimada (normalmente excluda dos dadosreferente a criminalidade violenta e das anlises realizadas com base nestes mesmos).

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    A criminalidade violenta certamente no se manifesta de maneira homog-nea no territrio da cidade do Rio de Janeiro. Como explicam estudiosos dotema (Souza, 2008; Campos, 2005;Torres Ribeiro, 2000;Cano,1997), as par-celas mais pobres da populao residentes em favelas so efetivamente mais

    vulnerveis a nveis extremos de violncia - homicdios e torturas, destacada-mente- do que pessoas de classe mdia e elites residentes nos espaos maisabastados e providos de uma quantidade/qualidade maior de servios pblicosda cidade. Alm disso, a represso violenta em favelas por parte de forascoercitivas oficiais do Estado- policiais e militares - tende a ser legitimada porrepresentaes sociais que atribuem a estes espaos o epicentro de todas asformas de violncia da cidade, limitando significativamente nosso olhar para asmltiplas escalas geogrficas que envolvem a questo. Estas escalas compre-

    endem tambm espaos alm dos limites territoriais jurdicos da cidade, sejapensando na dimenso nacional, quanto internacional do processo:

    1. Pensando as redes e ns que formam o trfico de drogas no pas a partirdos anos 80, Souza(1995, p.169) atenta para a tendncia de difuso doconsumo e do trfico de drogas pelo territrio brasileiro, concluindo queo n mais importante dessa rede , primeira vista, o Rio de Janeiro, masseu alcance se amplia rapidamente: da Grande So Paulo, outro n muito

    importante , at a cidade- modelo Curitiba ....2. Zaluar sintetiza o momento histrico de crescimento e proliferao da

    criminalidade no pas em sua relao com o mercado internacional quandoexplica: o processo de democratizao coincidiu com a dramtica trans-formao na organizao do crime, a qual afetou principalmente as regiesmetropolitanas e, dentro delas, os bairros populares. A entrada dos cartiscolombianos e da mfia talo- americana ligadas ao narcotrfico, particular-mente, o da cocana, trouxe para o pas as mais modernas armas de fogo

    que foram distribudas entre os jovens traficantes (...). Os movimentossociais foram tambm afetados por este novssimo fenmeno que gerounovas dificuldades para os seus militantes. (Zaluar, 1995)

    A militarizao ampliada da (in)segurana e da questo urbana produz a con-formao de um estado de medo generalizado(Souza,2008). Esta dinmicainsere-se no contexto das principais iniquidades produzidas pela nossa socie-dade, interferindo diretamente na qualidade de vida e produzindo o adoeci-

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    mento de milhes de pessoas. O gegrafo Marcelo Lopes de Souza chega arepresentar o espao urbano sob estas condies enquanto uma fobpole:

    Uma fobpole uma cidade em que grande parte de seus habitantes, pre-sumivelmente, padece de estresse crnico (entre outras sndromes fbico-

    ansiosas, inclusive transtorno de estresse ps-traumtico) por causa daviolncia, do medo da violncia e da sensao de insegurana (Souza,2008,p.40).

    O entendimento da caracterizao de um estado de medo generalizadopara o contexto da cidade certamente requer as necessrias qualificaes parao uso do conceito. Faz-se sempre relevante ressaltarmos que o medo nosterritrios favelizados da cidade tende a surgir de ameaas iminentes, muitomais frequentemente confirmadas em concretude nesses espaos do que nos

    demais lugares da cidade. Entretanto, a disseminao e a banalizao da vio-lncia e de seu imaginrio atingem patamares to elevados que possibilitamafirmar a existncia de uma produo generalizada de insegurana e medo portoda a cidade, ainda que muitas vezes este se manifeste como percepodescolada em parte da incidncia objetiva de crimes violentos(Souza,2008,p.54). Como afirma Souza(2008,p.58):

    Um medo generalizado, ainda que matizado tambm ele (de acordo coma classe, a cor de pele, a faixa etria, o sexo e o local de residncia), toma

    conta de coraes e mentes, (re)condicionando hbitos de deslocamentoe lazer, influenciando formas de moradia e habitat e modelando algunsdiscursos-padro sobre a violncia urbana.

    Nessa difcil dinmica, cada vez mais acirrada em suas iniquidades e desigual-dades, a favela configura o espao - histrico e desigual destacado da combi-nao das mais distintas formas de violncia da cidade, apresentando caracte-rsticas que nos permitem represent-lo enquanto territrio de exceo, ondeefetivamente existe a excluso de direitos civis e sociais para a maioria de seusmoradores. Nos momentos de conflitos mais intensos entre faces crimi-nosas, e destas com os aparatos policiais e militares oficiais do Estado, essaausncia de direitos aparece de modo parcial para o restante da cidade, nor-malmente atravs da mdia e sua tendncia sensacionalista, elitista e apolog-tica de aes policiais violentas. No entanto, essas representaes escondemou deixam de analisar prioritariamente a origem e situao da violncia socialterritorializada que marca diretamente o cotidiano da grande maioria de mo-

    radores sem relao com nenhuma forma de criminalidade nestes espaos.

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    As favelas da cidade do Rio de Janeiro vivem um estado de exceo, no de-clarado legalmente, mas territorializado no cotidiano de seus moradores etrabalhadores. Alm do histrico desrespeito aos direitos essenciais para asobrevivncia e reproduo social via degradao do ambiente e privao de

    servios pblicos bsicos -, as favelas da cidade sofrem explicitamente formascotidianas de supresso de direitos civis e polticos. Como o prprio presiden-te do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, Roberto Wider, afirmou:

    O Rio no vive um estado de exceo, mas um estado de direitos, ondeexistem problemas sociais que no so de hoje, vm de longa data, e esta-mos sempre lutando por essas comunidades carentes que se vem domi-nadas pelo narcotrfico e, agora, pelas milcias tambm.(O Globo Online,28/07/08).

    A afirmao do presidente do TRE/RJ nega a existncia de um estado de ex-ceo na cidade, porm admite a ausncia de exerccio pleno de direitos emdeterminados territrios. H, entretanto, uma questo omitida na fala de Wi-der, pois a restrio de direitos civis e polticos no somente decorrncia docontrole e uso do espao por faces do narcotrfico e de milcias, mas tam-bm pela ao policial oficial nesses territrios. Ao sempre orientada poruma representao que criminaliza favela e periferia e aponta para a lgicado enfrentamento de territrios inimigos.

    A Constituio vigente do pas, em seu artigo 5, que trata dos direitos civisdos cidados, torna-se praticamente letra morta nos territrios de exceodas favelas. Ignora-se diariamente a garantia jurdica a todos de tratamentoigual perante a lei, sem distines. O cotidiano nesses territrios tambmnega, sistematicamente, a fundao das bases de um Estado de Direito queincluiria a inviolabilidade do lar e garantia de um julgamento justo.

    A Constituio Federal prev em seu texto a possibilidade de suspenso tem-porria e justificada de parte dos direitos civis, nas declaraes do Estadode Defesa e do Estado de Stio, conforme os artigos 136 a 1414 do texto

    4 O artigo 136, em seu caput, trata da declarao do Estado de Defesa: O Presidente da Repblica pode, ouvidos o Conselho da Re-pblica e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos edeterminados, a ordem pblica ou a paz social ameaadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidadesde grandes propores na natureza. O decreto presidencial que estabeleceria tal estado deve ser encaminhado para apreciao doCongresso Nacional num prazo de vinte e quatro horas, que deve aprov-lo por maioria absoluta em um prazo de dez dias contados apartir de seu recebimento. Caso contrrio, o decreto perder a validade. A Constituio prev que no territrio de vigncia do Estadode Defesa haver restries dos direitos de i) reunio, ainda que exercida no seio das associaes; ii) sigilo de correspondncia; iii) sigilo

    de comunicao telegrfica e telefnica. O prazo de vigncia deste dispositivo de trinta dias, prorrogveis por mais trinta se persistiremas razes que justificaram a sua decretao.

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    constitucional. A nica maneira de se adotar legalmente no Brasil quaisquermedidas de exceo ao pleno exerccio do Estado de Direito Democrtico a sequncia de medidas elencadas nestes artigos, que exigem uma srie demecanismos de controle e transparncia. Desta forma, a atuao do Estado

    brasileiro no territrio das favelas inconstitucional, na medida em que noapenas desrespeita diretamente os direitos civis previstos no artigo 5 da CFatravs de seu aparato repressivo, indo muito alm de qualquer medida deexceo prevista pela CF, que no prev em hiptese alguma o relaxamentodo direito vida, como deixa de garanti-los, ao no combater estes mesmosdesrespeitos quando perpetrados por grupos armados ilegais que exercemo controle direto do territrio, muitas vezes com a anuncia do aparato re-pressivo estatal. Este flagrante desrespeito Constituio se reproduz e se

    perpetua sob a indiferena das elites da sociedade, que se reflete diretamentena indiferena dos governantes, que no apenas ignoram a barbrie das vio-lncias cometidas dentro dos territrios de favela, como a naturaliza e mesmoglorifica. Referindo a condio atual das classes subalternas na cidade do Riode Janeiro, Leite(2005, p.43) afirma

    ... a condio de subcidadania desses segmentos populacionais [clas-ses subalternas] no deriva apenas da impossibilidade do acesso a bens eservios que o Estado no garante ou no realiza de forma parcial e limita-

    da, mas do fato de que sua modalidade de acesso(precrio) cidade ocorresob o controle e a mediao do poder desptico de quadrilhas do trficode drogas sediadas nesses territrios e/ou segundo o arbtrio das foras desegurana pblica que usualmente transita do abuso policial criminaliza-o dos moradores e de sua ao coletiva.

    At mesmo em uma perspectiva conservadora de respeito aos direitos indivi-duais vida, integridade fsica, Justia, Proteo Penal, entre outros, per-cebemos uma situao de subnormalidade que revela, ao menos nas favelas,

    um estado de exceo, no-declarado oficialmente, mas territorializado. Ainstitucionalizao da violncia, no entanto, estende, de forma sistmica, oslimites desse estado a toda sua circunscrio. No possvel segregar, confi-nar e apartar de forma absoluta a favela da cidade. A progresso da tecnologiablica, agravada pela concentrao de recursos nos setores de Segurana P-blica, adquiriu uma escala que incorpora toda a cidade em uma dinmica desi-gual e combinada em que diferentes formas de amedrontamento e violnciastambm correspondem a um estado de medo generalizado.

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    Criminalizao do territrio de favela

    H, porm, necessidade de problematizao quando nos referirmos aos pro-cessos de criminalizao historicamente estabelecidos na cidade do Rio de

    Janeiro. Requer-se uma diferenciao entre os processos de criminalizaodos pobres na cidade - forma referida as favelas e para alm desses espaos- e de criminalizao do territrio de favela, ou como nos referimos aqui deterritrios de exceo. Ainda que os dois processos sejam indissociveis eigualmente signifiquem a impossibilidade de construo de uma cidade efeti-vamente democrtica, necessitam de diferenciao socioespacial. O primeiroprocesso objetiva legitimar a violncia simblica e material contra os pobresna cidade, sem restringir-se aos pobres que vivem em favelas. A forma maiscomum deste processo de criminalizao parte da escala do corpo, com es-tigmas e representaes referentes condio econmica e no raro tambmsubmetidas a argumentaes racistas. Objetiva, habitualmente, legitimar aconcreta e direta violncia policial contra os mais pobres e ratificar a condiode subcidadania desses.

    O segundo processo, destacado em nossas anlises, consiste em uma criminaliza-o do territrio de favela amplamente legitimada pelo setor formal da economia,pelo Estado e pela mdia, com pequenas variaes de construo e proposio,mas com diagnsticos igualmente intimidadores e restritivos liberdade- indivi-dual e coletiva- dos moradores de favelas da cidade. Resulta destacadamente emconcreta violncia policial e de faces criminosas contra os mais pobres, masocorre de maneira extremamente intensificada em suas dimenses armadas deconflito e circunscrita ao territrio de favelas. Estas aes so pautadas pelo prin-cpio do combate ao territrio de favela e pe em risco iminente de morte, lesesfsicas e sequelas emocionais qualquer pessoa que se situe naquela delimitao es-pacial. A criminalizao do territrio de favelas na cidade do Rio de Janeiro legitimaa permanncia da favela enquanto territrio de exceo.

    As possibilidades de construo poltica solidria e emancipatria presentesnesses territrios e nos projetos contidos em seus moradores, apenas podemdesenvolver-se caso sejam impulsionadas por polticas que se territorializema partir de perspectivas crticas e participativas, distanciadas da criminalizaoou do paternalismo, historicamente dominantes nas polticas pblicas imple-mentadas em favelas na cidade do Rio de Janeiro

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    Territrio de exceo enquanto limite e possibilidadepara uma gesto efetivamente democrtica de polticaspblicas da cidade.

    Torna-se relevante destacarmos como surge a categoria territrio de exce-o. Surge, fundamentalmente, enquanto uma categoria poltica oriunda demovimentos populares situados em favelas da cidade do Rio de Janeiro e deorganizaes polticas que priorizam o trabalho de assessoria e apoio a essesmovimentos. Como categoria poltica, adquire valor imprescindvel, pois afir-ma as condies singulares e restritivas enfrentadas pelas tticas e estratgiascontra-hegemnicas nos territrios de favela da cidade do Rio de Janeiro. As

    diferentes escalas de controle social- via coero e cooptao- a que so sub-metidos os movimentos populares e lideranas comunitrias nas favelas dacidade obrigam o entendimento das condies singulares desses territriosde exceo. Portanto, a categoria poltica contm um carter de dennciainerente a sua origem, mas no restringe-se a tal carter, pois possu tambmrelevncia para nortear a territorializao de projetos e proposies contra-hegemnicas.

    No incomum ouvir, pela voz de lideranas comunitrias e militantes de mo-vimentos sociais em favelas, a expresso estar sempre no olho no furacocomo referncia condio para a ao poltica em territrios de exceo. Aexpresso costuma se referir s condies excepcionais de relao de podere de violncia territorializadas que expem movimentos populares, movimen-tos sociais e lideranas comunitrias a diversos riscos no cotidiano de seustrabalhos em favelas. As aes de socializao segundo uma perspectiva soli-dria e participativa, direcionadas para trabalhos horizontais e coletivamente

    construdos, tendem a serem fragmentadas ou mesmo impossibilitadas emsua origem pelo controle do territrio exercido por faces criminosas5 esuas formas economicamente privatistas e poltico-culturalmente arbitrriasde produo do espao.

    Os projetos com objetivo emancipatrio, norteados pela democratizao dainformao, pela formao poltica crtica e com finalidade de distribuio de

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    Faces que so certamente tambm produtos histricos da maneira socialmente desigual pela qual o Estado - suas esferas oficias deatuao- e o mercado se estabeleceram no territrio da cidade do Rio de Janeiro.

  • 7/25/2019 Territrio, Participao Popular e Sade: Manguinhos em debate

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    Territrio, Participao Popular e Sade: Manguinhos em debate.

    renda encontram diferentes dificuldades que variam de falta de financiamentopblico at ausncia de espao (ou de espao seguro6) para sua efetiva terri-torializao. No raro ouvir de moradores de favelas envolvidos com estesprojetos a afirmao de que buscam motivao e vontade para continuar seus

    trabalhos apesar do jeito que a polcia nos trata, ou que o Estado no res-peita a gente que mora na favela, ou ainda que realizam suas aes apenasquando o poder local permite que elas aconteam na comunidade.

    Os projetos dessa natureza sofrem restries simblicas e materiais nas maisvariadas formas, em espao definido e delimitado por e a partir de relaesde poder singulares (Souza, 2000, p.78). Alm dos direitos essenciais vida,como alimentao, habitao e saneamento bsico, os moradores sofrem com

    estigmas e julgamentos que eliminam, na maioria das vezes, perspectivas demdio e longo prazo de desenvolvimento social.

    Das condies excepcionais de vida em territrios de exceo surgem tam-bm aes excepcionais e criativas de solidariedade protagonizadas por pes-soas que vivem a favela. O grande desafio reside na passagem destas aespara uma escala geogrfica mais ampla e emancipatria, superando as escalaslocais bastante restritas e a fragmentao territorial nas quais encontram-se

    limitadas ou aprisionadas. Desafio que passa prioritariamente pela criao decondies territorializadas para polticas pblicas que garantam efetivamenteo amplo contedo enunciado7no artigo 2, inciso II, do Estatuto da Cidade(LEI 10.275/2001):

    Gesto democrtica por meio de participao da populao e associaesrepresentativas dos diversos segmentos da comunidade na formulao, exe-cuo e acompanhamentosde planos, programas e projetos de desenvol-

    vimento urbano6 Neste sentido, o artigo 5 da Constituio Federal, em seu inciso XVI e IX, soa como utopia improvvel e distante da realidade esta-belecida em territrios de favela da cidade do Rio de Janeiro: XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertosao pblico, independentemente de autorizao, desde que no frustrem outra reunio anteriormente convocada para o mesmo local, sendoapenas exigido prvio aviso autoridade competente;(...) IX - livre a expresso da atividade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao,independentemente de censura ou licena.7 No tocante a participao popular, o Estatuto de 2001 certamente apresenta ganhos em termos de regulamentao, mas cabe destacar que seucarter ,na sua maior parte, consultivo e por vezes de contedo vago no tem garantido xito no uso por movimentos populares na cidade. Souza(2006.p.220) explica que possvel concordar em que o Estatuto foi um avano, enquanto marco jurdico formal. Contudo, foroso reconhecer que ele bastante vago em quase todas as passagens em que se menciona a participao. A maneira como o Estatuto a esta se refere , quase sempre, ouindefinida admitindo-se uma interpretao que privilegie , a depender da Prefeitura, um processo deliberativo ou meramente consultivo-, ou entoa tnica claramente consultiva . Passagens