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PROGRAMA DOUTORAL EM FILOSOFIA Mobilização e Aceleração no contexto da Modernidade Tardia Dirk Michael Schmidt D 2021 | 1 |

Mobilização e Aceleração no contexto da Modernidade Tardia

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Page 1: Mobilização e Aceleração no contexto da Modernidade Tardia

PROGRAMA DOUTORAL EM FILOSOFIA

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Dirk Michael Schmidt

D2021

| 1 |

| 2 |

Dirk Michael Schmidt

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Tese realizada no acircmbito do Programa Doutoral em Filosofia

orientada pela Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2021

| 3 |

Dirk Michael Schmidt

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Tese realizada no acircmbito do Programa Doutoral em Filosofia

orientada pela Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira

Membros do Juacuteri Presidente

Doutora Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens Travis Professora Catedraacutetica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Vogais

Doutor Joatildeo Manuel Cardoso Rosas Professor Associado da Universidade do Minho

Doutora Magda Eugeacutenia Pinheiro Brandatildeo Costa Carvalho Teixeira Professora Auxiliar da Universidade dos Accedilores

Doutor Joseacute Francisco Preto Meirinhos Professor Catedraacutetico da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Maria Joatildeo Couto Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade

do Porto

| 4 |

| Sumaacuterio

| Declaraccedilatildeo de honra 7

| Agradecimentos 8

| Resumo 9

| Abstract 10

| Nota sobre traduccedilotildees 11

| Introduccedilatildeo 12

PARTE I DIAGNOacuteSTICOS FILOSOacuteFICOS E APRECIACcedilOtildeES CRIacuteTICAS

OS CONCEITOS DE MOBILIZACcedilAtildeO E DE ACELERACcedilAtildeO e do

trabalhador

26

| Capiacutetulo 1 Sob o signo da velocidade 27

11| O ldquovelocifeacutericordquo de Goethe 28

12| Da aceleraccedilatildeo como fenoacutemeno cultural e esteacutetico 42

13| ldquoA Mobilizaccedilatildeo Totalrdquo e ldquoO Trabalhadorrdquo aproximaccedilotildees ao pensamento

de Ernst Juumlnger

49

| Capiacutetulo 2 Em torno do conceito de modernidade tardia Posturas filosoacutefico-criacuteticas 73

21| A Teoria Criacutetica e a Modernidade 74

22| A modernidade como fenoacutemeno contraditoacuterio 84

23| Zygmunt Bauman e o conceito de modernidade liacutequida 94

| 5 |

24| O pensamento filosoacutefico-social de Hartmut Rosa o conceito de aceleraccedilatildeo 105

PARTE II PARA UMA PROPOSTA DE APRECIACcedilAtildeO DO OacuteCIO ENQUANTO

CONCEITO EMINENTEMENTE CRIacuteTICO

119

| Capiacutetulo 1 O oacutecio Delimitaccedilatildeo de um conceito filosoacutefico 120

11| Primeiros delineamentos 121

12| A dicotomia histoacuterico-cultural entre trabalho e oacutecio 146

| Capiacutetulo 2 Espaccedilos e tempos do oacutecio Uma leitura cultural 157

21| Do oacutecio como categoria espacial e temporal 158

22| Pierre Hadot sobre Goethe da vivecircncia do presente como exerciacutecio

espiritual

198

23| Rousseau e a autonarrativa 210

24| O enquadramento do oacutecio 217

25| O enquadramento do idiacutelico 221

| Capiacutetulo 3 Sobre a possibilidade de inscriccedilatildeo do oacutecio no acircmbito da modernidade

tardia Um ensaio

232

| Referecircncias bibliograacuteficas 254

I Errata 282

| 6 |

| Declaraccedilatildeo de honra

Declaro que a presente tese eacute de minha autoria e natildeo foi utilizada previamente

noutro curso ou unidade curricular desta ou de outra instituiccedilatildeo As referecircncias a outros

autores (afirmaccedilotildees ideias pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da

atribuiccedilatildeo e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referecircncias

bibliograacuteficas de acordo com as normas de referenciaccedilatildeo Tenho consciecircncia de que a

praacutetica de plaacutegio e autoplaacutegio constitui um iliacutecito acadeacutemico

Porto 06 de abril de 2021

Dirk Michael Schmidt

| 7 |

| Agradecimentos

| 8 |

| Resumo

A analise dos conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo concebidos como

modos filosoacuteficos de considerar e de descrever a designada Modernidade Tardia

constitui a temaacutetica principal desta tese de doutoramento Eacute nosso propoacutesito fornecer

um estudo abrangente e detalhado das vaacuterias posiccedilotildees sobre mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo

desenvolvidas por filoacutesofos alematildees contemporacircneos tais como Peter Sloterdijk

Hartmut Rosa e Byung-Chul Han Atraveacutes da exposiccedilatildeo das perspetivas sobre o assunto

avanccediladas por Sloterdijk Rosa e Han ndash que compotildee o nuacutecleo da ldquoParte Irdquo desta tese de

doutoramento ndash pretendemos apresentar de modo criacutetico o mais recente (ou poder-se-

ia dizer o mais urgente) toacutepico de discussatildeo filosoacutefica no contexto cultural alematildeo e

europeu Juntamente com tal diagnoacutestico filosoacutefico relativo aos aspetos centrais da

denominada Modernidade Tardia pretenderemos desenvolver um estudo cuidado sobre

o conceito de oacutecio tomado como um conceito eminentemente criacutetico ndash este seraacute o foco

da ldquoParte IIrdquo da nossa tese de doutoramento A ausecircncia de tal conceito de oacutecio (e o seu

contraste cultural com o hegemoacutenico e omnipresente conceito de trabalho) no acircmbito da

Modernidade Tardia tal como a consideraccedilatildeo das causas de tal ausecircncia formam um

relevante toacutepico de anaacutelise nesta tese de doutoramento Este trabalho acadeacutemico destina-

se a constituir um modesto contributo para o estudo filosoacutefico da Modernidade Tardia o

nosso tempo presente a uacuteltima e definitiva palavra sobre o assunto natildeo seraacute

seguramente escrita por noacutes

Palavras-chave Mobilizaccedilatildeo Aceleraccedilatildeo Oacutecio Trabalho Modernidade Tardia

| 9 |

| Abstract

The analysis of the concepts of mobilisation and acceleration regarded as

philosophical modes of considering and describing the so-called Late Modernity is the

chief subject of this PhD thesis It is our purpose to offer a comprehensive and detailed

study concerning the several positions on mobilisation and acceleration developed by

contemporary German philosophers such as Peter Sloterdijk Hartmut Rosa and Byung-

Chul Han By expounded the perspectives on the subject advanced by Sloterdijk Rosa

and Han ndash which forms the heart of ldquoPart 1rdquo of this doctoral thesis ndash we intend to

present in a critical way the most recent (or one may say the most urgent)

philosophical topic of discussion within the German and European cultural context

Along with such a philosophical diagnosis regarding the central aspects of the so-called

Late Modernity our PhD thesis is also concerned with proposing a critical perspective

on the subject accordingly we intend to develop a thorough study devoted to the

concept of leisure taken as a pre-eminently critical concept ndash this is the focus of ldquoPart

IIrdquo of our doctoral thesis The absence of such a concept of leisure (and its cultural

contrast to the hegemonic and omnipresent concept of labour) within Late Modernity

and the consideration of the causes of this absence forms a relevant topic of analysis in

this PhD thesis This academic work is intended to constitute a modest contribution to

the philosophical study of Late Modernity our present time the last and definitive word

on the subject will certainly not be written by us

Keywords Mobilisation Acceleration Leisure Labour Late Modernity

| 10 |

| Nota sobre traduccedilotildees

As citaccedilotildees em inglecircs e francecircs permanecem na liacutengua original Salvo indicaccedilatildeo

em contraacuterio todas as traduccedilotildees das citaccedilotildees de obras originalmente escritas em liacutengua

alematilde apresentadas ao longo da presente tese satildeo da nossa autoria As exceccedilotildees a tal

procedimento devidamente assinaladas neste trabalho acadeacutemico constituem as

traduccedilotildees portuguesas de algumas obras de Peter Sloterdijk e de Byung-Chul Han

publicadas pela editora Reloacutegio drsquoAacutegua

| 11 |

Introduccedilatildeo

| 12 |

Em direccedilatildeo a oeste a movimentaccedilatildeo moderna torna-se cada vez maior de modo que paraos Americanos os habitantes da Europa na sua totalidade se apresentam como seres quegostam do sossego e dele usufruem quando estes mesmos no entanto voam em confusatildeocomo abelhas e vespas Esta movimentaccedilatildeo torna-se tatildeo grande que a cultura superior jaacutenatildeo pode madurar os seus frutos eacute como se as estaccedilotildees do ano se seguissem umas agraves outrasdemasiado depressa Por falta de sossego a nossa civilizaccedilatildeo vai dar a uma nova barbaacuterieEm nenhuma eacutepoca os ativos ou seja os irrequietos foram tatildeo considerados Reforccedilar emgrande medida o elemento contemplativo faz parte por conseguinte das necessaacuteriascorreccedilotildees que se tem de efetuar no caraacuteter da humanidade No entanto desde jaacute cadaindiviacuteduo que seja calmo e constante de coraccedilatildeo e de cabeccedila tem o direito de crer quepossui natildeo soacute um bom temperamento mas tambeacutem uma virtude de utilidade geral e que aoconservar essa atitude ateacute cumpre uma missatildeo superior

Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano

A ldquomobilidade propriamenterdquo uma ldquomobilidade aceleradardquo agrave maacutexima potecircncia natildeo eacute senatildeoo fenoacutemeno que noacutes proacuteprios apelidamos de sempre-mais-sempre-mais-para-sempre-mais oqual realmente eacute como que o englobante (mas imanente) dos vaacuterios aspetos que temosvindo a explicitar como tiacutepicos da atual era tecnoloacutegica A proacutepria loacutegica do atual poder e dosatuais fluxos comunicacionais eacute aquele fenoacutemeno que procura elevar agrave extremaexponenciaccedilatildeo Para quecirc ndash perguntar-se-aacute A resposta imediata eacute oacutebvia mas uma respostamenos imediata uma resposta de tipo ontoloacutegico talvez deva consistir em dizer que paranada

Adeacutelio Melo O bloqueio do espiacuterito na actual era tecnoloacutegica

Degraves que nous avons compris le programme de lhistoire remarque Baudrillard nous allonsplus loin quelle par lesprit ldquoEt cette mutation est due agrave une acceacuteleacuteration on essaie dallerde plus en plus vite si bien quen fait on est deacutejagrave arriveacutes agrave la fin Virtuellement Mais on y estquand mecircmerdquo Cette ruse moderniste les theacuteories de la singulariteacute aussi bien que lemouvement acceacuteleacuterationniste de Nick Srnicek et Alex Williams la reprennent agrave leur compteLa vitesse moderne qui charmait les poegravetes nest plus suffisante et les vieilles automobilessemblent bien lentes un demi-siegravecle plus tard On peut ecirctre exciteacute par la rapiditeacute des voituresactuelles dont on devine pourtant quelles sont plus lentes que celles de demain Il ne fautpas sarrecircter en chemin il faut aller encore plus vite que le mouvement actuel Ainsi lasingulariteacute technologique est-elle la repreacutesentation de lacceacuteleacuteration du progregravestechnologique jusquagrave un point au-delagrave duquel une machine supra- intelligente supplanteralintelligence humaine Le Manifeste acceacuteleacuterationniste de 2013 rejette quant agrave lui la critiquefrileuse du neacuteolibeacuteraiisme et du progregraves des techniques par la vieille gauche pour defendreson acceacuteleacuteration par la penseacutee progressiste leacutemancipation ne consiste pas agrave ralentirlintensiteacute du progregraves mais agrave aller encore plus vite que lui par la penseacutee et agrave imaginer denouveau ldquoun avenir plus modernerdquo Pour le rendre de nouveau sensible il faut surencheacuterir sursa repreacutesentation devenue trop familiegravere Il ne faut pas accepter les fatigues de lespritconservateur mais inventer plus et eacutemanci- per mieux Continuer agrave progresser comme avantcest deacutejagrave faire du surplace et bientocirct reacutegresser donc devenir reacuteactionnaire ll faut presser lepas et aller plus vite que la musique On ne progresse quagrave ce prix ldquoacceacuteleacuterer toujours leprocessus deacutevolution technologiquerdquo Bien sucircr le plaisir de lacuteacceacuteleacuteration relegraveve de la logiquede laddiction il en va de lideacutee de progregraves comme de limpression de satisfaction augmenteacuteepar la morphine

Tristan Garcia La vie intense

| 13 |

ldquoAinda eacute compreensiacutevel para os seres humanos o moderno curso do mundo

desencadeado pelos homensrdquo1 ndash a interrogaccedilatildeo envolta num tom tatildeo melancoacutelico quatildeo

iroacutenico proacuteprio de quem natildeo possui esperanccedilas de obter uma resposta satisfatoacuteria eacute

avanccedilada por Peter Sloterdijk na sua obra A Mobilizaccedilatildeo Infinita publicada em 1989

Natildeo seria supeacuterfluo a este respeito chamar a atenccedilatildeo para um pequeno fait

divers editorial agrave partida filosoficamente irrelevante que envolve o tiacutetulo de tal obra de

Sloterdijk com efeito aquando da publicaccedilatildeo do livro em questatildeo o tiacutetulo inicialmente

previsto seria Eurotaoismus ndash Zur Kritik der politischen Kinetik tendo o filoacutesofo

alematildeo decidido de um modo inopinado proceder agrave sua alteraccedilatildeo a favor do seguinte

tiacutetulo (que a traduccedilatildeo portuguesa existente datada de 2002 jaacute contempla) A

Mobilizaccedilatildeo Infinita A desconcertante introduccedilatildeo do termo Eurotaoiacutesmo de pendor

porventura demasiado obscuro ou esoteacuterico no tiacutetulo de uma obra de filosofia ocidental

poderia constituir a justificaccedilatildeo da postura de recuo ou de correccedilatildeo de Sloterdijk ndash e em

verdade o prefaacutecio de tal obra escrito pelo proacuteprio oferece diversas consideraccedilotildees

acerca do desconforto com que a Academia alematilde recebera tal livro assim intitulado

No entanto do nosso ponto de vista importaria atentar de um modo mais avisado

sobre o novo tiacutetulo que se impotildee e natildeo propriamente sobre o tiacutetulo preterido a

preferecircncia por A Mobilizaccedilatildeo Infinita ndash tiacutetulo que convoca de modo aberto e

declarado um outro tiacutetulo A Mobilizaccedilatildeo Total ensaio de Ernst Juumlnger ndash poderia ser

compreendida agrave luz de uma certa premecircncia manifesta no interior do pensamento de

Sloterdijk em voltar a pensar a modernidade Justamente a premecircncia em pensar

ainda a modernidade ndash tal poderaacute ser apreciado da nossa perspetiva como uma das

posturas filosoacuteficas que marcam o pensamento de Sloterdijk e em especial os eixos

teoacutericos que estruturam as posiccedilotildees avanccediladas em A Mobilizaccedilatildeo Infinita

Uma das principais linhas de pensamento que compotildeem A Mobilizaccedilatildeo Infinita

consiste na sustentaccedilatildeo de uma afinidade essencial entre modernidade e movimento Tal

afinidade essencial poderia com justeza ser concebida como passiacutevel de configuraccedilatildeo

de uma singular definiccedilatildeo de modernidade ndash agrave luz do conceito de movimento do seu

conceito de movimento Eis o conceito que se assume como proacuteprio da modernidade

como o seu conceito definidor Sloterdijk natildeo se dispotildee a perspetivar a ceacutelebre

dicotomia antigos vs modernos que percorrera o pensamento filosoacutefico alematildeo dos

1 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p23

| 14 |

seacuteculos XVIII e XIX de Winckelmann e Lessing a Schiller e Hegel e que procurara

determinar os princiacutepios culturais constitutivos do moderno a partir de um fundo de

contraste relativamente ao mundo antigo natildeo obstante poder-se-ia a este respeito

evocar o par de oposto repouso vs movimento como ilustrativo de tal dicotomia tenha-

se presente pois a eminente relevacircncia filosoacutefica do conceito de repouso no acircmbito do

pensamento antigo culminando com a metafiacutesica de Aristoacuteteles e a sua conceccedilatildeo de ser

perfeito definido pois como motor que influencia o movimento dos seres inferiores

mas determinado na sua perfetibilidade ontoloacutegica pela sua proacutepria imobilidade ndash pelo

seu repouso O sentido lacunar do movimento e da entidade que se move em direccedilatildeo a

algo que natildeo possui ou encontra em si mesma traduz uma perspetivaccedilatildeo proacutepria da

filosofia grega que natildeo encontra continuaccedilatildeo ou aprofundamento no acircmbito metafiacutesico

moderno Do mesmo modo a apreciaccedilatildeo grega do conceito de limite concebido

segundo a sua possibilidade de inteligibilidade racional e perspetivado por

conseguinte agrave luz das noccedilotildees de determinaccedilatildeo de nuacutemero e de proporccedilatildeo natildeo poderaacute

ser plenamente transposta para o pensamento moderno especialmente se tivermos em

atenccedilatildeo o enaltecimento filosoacutefico mecacircnico-fiacutesico e esteacutetico do conceito contrastante

de infinito desde Descartes ateacute Kant e aos idealistas alematildees

Tais consideraccedilotildees que natildeo consideramos fuacuteteis permitem-nos recorrendo agrave

postura filosoacutefica alematilde que animou os debates filosoacuteficos dos seacuteculos XVIII e XIX

acerca da dicotomia antigos vs modernos avaliar a possibilidade de definiccedilatildeo da

modernidade procurando vislumbrar os seus princiacutepios e eixos teoacutericos proacuteprios e

constitutivos Em A Mobilizaccedilatildeo Infinita Sloterdijk propotildee-se desenvolver esta mesma

tarefa filosoacutefica pensar a modernidade e o que a define

De acordo com a posiccedilatildeo-chave sustentada por Sloterdijk em A Mobilizaccedilatildeo

Infinita ndash a saber a alianccedila indissociaacutevel entre modernidade e movimento ndash o projeto

moderno funda-se numa singular utopia cineacutetica2 nunca antes enunciada enquanto tal

Pensar tal impensado da modernidade e desvelaacute-lo criticamente enquanto sua

determinaccedilatildeo essencial e definidora constitui o propoacutesito de Sloterdijk nesta obra

Neste sentido de acordo com o filoacutesofo a eacutepoca denominada moderna poderaacute ser

caracterizada como um momento histoacuterico-cultural desenvolvido segundo um quadro de

pensamento que integra no seu nuacutecleo uma teoria do movimento civilizador no acircmbito

da qual o curso do mundo e a accedilatildeo da humanidade se anunciam como a mesma

2 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p24

| 15 |

realidade confluente Eis o projeto da modernidade a aspiraccedilatildeo tomada como passiacutevel

de realizaccedilatildeo da identidade ou da conciliaccedilatildeo ou justaposiccedilatildeo entre o movimento do

mundo e o movimento das accedilotildees da humanidade afirmada como subjetividade livre

Leia-se a este respeito Sloterdijk

[hellip] todo o movimento do mundo deve passar a ser a realizaccedilatildeo do plano que noacutes temos

dele Os nossos proacuteprios movimentos vitais passam a ser progressivamente idecircnticos ao

proacuteprio movimento do mundo o processo mundial no seu todo coincide

progressivamente com a nossa manifestaccedilatildeo de vida as coisas acontecem conforme se

pensa porque aquilo que acontece cada vez mais se realiza por noacutes o fazermos3

O projeto da modernidade assente na emergecircncia e na configuraccedilatildeo exultantes

de uma humanidade que se reconhece a si mesma como subjetividade ativa movente

livre e autoacutenoma capaz de criar o curso do mundo e da sua histoacuteria permite-nos a

proclamaccedilatildeo da modernidade como ldquopuro ser-para-o-movimentordquo4 Tal como elucida

Sloterdijk se a modernidade se anuncia como a nova eacutepoca que reuacutene as condiccedilotildees de

possibilidade de emancipaccedilatildeo do ser humano da sua situaccedilatildeo de menoridade e como

tal como novo tempo que permite cumprir o movimento de autolibertaccedilatildeo da

humanidade importaria concluir que nos encontramos com efeito perante um processo

que ldquonoacutes pura e simplesmente natildeo podemos natildeo querer e de um movimento que nos eacute

impossiacutevel natildeo fazermosrdquo5

A transposiccedilatildeo do conceito fiacutesico-mecacircnico de movimento para o acircmbito

filosoacutefico-cultural ndash elevado a princiacutepio ou primado definidores dos novos tempos

modernos ndash constituiacutera assinala Sloterdijk um gesto ilustre eminentemente eacutetico Tal

como nos elucida o filoacutesofo a cineacutetica eacute a eacutetica da modernidade ndash de que forma Tenha-

se presente a este propoacutesito a interseccedilatildeo entre o projeto eacutetico da modernidade ndash a

proclamaccedilatildeo da saiacuteda da humanidade da sua situaccedilatildeo de menoridade mediante a

afirmaccedilatildeo da sua liberdade ndash e a cineacutetica ndash a assunccedilatildeo de um conceito de subjetividade

que se carateriza pelas suas potencialidades de atividade e de produccedilatildeo do mundo e da

sua histoacuteria enquanto espaccedilo de liberdade Em verdade a modernidade definira-se

desde o seu iniacutecio como ldquoprogressiva e progressistardquo6 na sua forma de execuccedilatildeo e

cumprimento de si a noccedilatildeo de progresso um dos elementos mais estruturantes do

ideaacuterio da modernidade assinala a dimensatildeo eacutetica da cineacutetica trata-se pois da

3 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p24-254 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p335 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p346 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p31

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possibilidade de realizaccedilatildeo concreta do automovimento da subjetividade na sua

atividade e na sua liberdade constitutivas Assim a curiosa fusatildeo entre moralidade e

fiacutesica-mecacircnica caracteriacutestica da modernidade resulta numa unidade de accedilotildees que se

designa por subjetividade ndash perspetivada por seu turno como ldquomisteriosa forccedila de

iniciativa que se manifesta como a capacidade de pocircr em marcha novas seacuteries de

movimento intituladas accedilotildeesrdquo7 No mesmo tom esclarece Sloterdijk

A experiecircncia de um progresso real ensina-nos que uma iniciativa humana prenhe de

valores sai lsquopara fora de sirsquo rebenta com os antigos limites da sua mobilidade alarga o seu

campo de accedilatildeo e se impotildee com boa consciecircncia frente a entraves internos e a resistecircncias

externas8

A argumentaccedilatildeo de Sloterdijk assume de um modo crescente uma tonalidade

luacutegubre mas nem por isso menos incisiva agrave medida que a sua critica da utopia cineacutetica

da modernidade se delineia e se aprofunda Convocando uma metaacutefora de Novalis

apresentada em Cristandade e a Europa de 1799 Sloterdijk perspetiva tal subjetividade

em movimento como o moleiro no moinho que se moacutei a si mesmo dos tempos modernos

tal como o esclarece Sloterdijk a metaacutefora de Novalis que servira para designar o novo

princiacutepio de funcionamento do complexo homem-maacutequina-natureza ldquoque fora posto em

marcha por meros Eus-empresaacuterios prosaicamente automovidos por protestantes

Britacircnicos Prussianos e professoresrdquo9 constitui a primeira formulaccedilatildeo filosoacutefica do

conceito de utopia cineacutetica que define a modernidade a imagem do moinho no seu

perpetuum mobile ldquoque eacute movido pela corrente do acaso e vai flutuando sobre elardquo10

ilustra uma mobilidade ldquoem que o elemento dinacircmico eacute ao mesmo tempo o

desconsolador uma deriva propulsionada pelo Eu em direccedilatildeo ao que eacute insensato

catastroacutefico desenfreado mortalrdquo11 Segundo Sloterdijk a metaacutefora de Novalis repleta

de teor diagnoacutestico soacute hoje poderaacute ser compreendida em todo o seu alcance No

contexto da modernidade tardia que nos envolve eacute-nos permitido sob a forma de

lamento tomar consciecircncia daquilo que a subjetividade ldquoconsegue fazer na sua

maacutequinardquo12 no acircmbito do seu automovimento infinito agrave sombra de um progresso que se

revela natildeo mais do que curso decadente movimento vazio para mais movimento vazio

7 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p328 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p329 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3510 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3511 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3512 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p36

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imposto por uma capacidade de movimento cada vez mais acelerada e incrementada e

reconhecida tanto como fuacutetil quanto como desastrosa

A postura filosoficamente exultante dos iniacutecios do projeto da modernidade ndash o

seu projeto eticamente eminente pois assente na aspiraccedilatildeo de cumprimento de

emancipaccedilatildeo da humanidade na sua atividade e na sua liberdade ndash afigura-se no acircmbito

da modernidade tardia em que vivemos como um sentimento perdido A perspetivaccedilatildeo

do curso do movimento do mundo e da humanidade confluindo na mesma realidade ndash e

concebido agrave luz da ilustre conceccedilatildeo de progresso ndash adquire os contornos de um mal-

estar tatildeo imprevisto quatildeo inexoraacutevel Leia-se Sloterdijk a este respeito

As consequecircncias do moderno processo mundial que caminham por si proacuteprias ndash eacute o que

noacutes vemos com crescente mal-estar ndash apoderam-se dos projetos controlados e da parte

essencial do empreendimento da Modernidade da consciecircncia do automatismo espontacircneo

e guiado pela razatildeo irrompe um fatal movimento estranho que nos escapa em todas as

direccedilotildees Aquilo que parecia uma saiacuteda controlada para a liberdade revela-se agora como

um resvalar para uma incontrolaacutevel heteromobilidade catastroacutefica13

Segundo Sloterdijk tal sentimento de indeleacutevel mal-estar traduz uma situaccedilatildeo de

nova e inesperada passividade da subjetividade que agora se reconhece a si mesma

como viacutetima porque produtora do controlo perdido do movimento do mundo ndash

transformado num mero automatismo cineacutetico ndash que resulta tambeacutem ser o movimento-

de-si-mesma Tal passividade da subjetividade que se verifica no ldquomundo

historicamente movimentadordquo14 poderaacute ser descrita agrave luz de uma nova e inusitada

situaccedilatildeo de perda de autonomia o movimento do mundo conquanto produzido no

decurso do movimento proacuteprio da subjetividade enquanto tal afigura-se todavia como

uma entidade outra estranha opressora ndash numa palavra uma entidade heteroacutenoma

relativamente agrave subjetividade Neste acircmbito procurando delinear modos de anaacutelise de

tal sentimento de mal-estar perante o curso do mundo subjetivamente produzido

marcado por uma opressiva mobilidade indelevelmente acelerada e incrementada

Sloterdijk introduz o termo mobilizaccedilatildeo [Mobilmachung] evocando de modo expliacutecito

a noccedilatildeo avanccedilada por Ernst Juumlnger

A referecircncia aberta a Juumlnger tal como a apresenta Sloterdijk afigura-se envolta

de subtis cuidados justificativos que traduzem e reforccedilam em verdade a pertinecircncia da

13 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 pp25-2614 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p28

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menccedilatildeo a obra de Juumlnger perspetivada pela tradiccedilatildeo cultural que lhe eacute posterior como

maldita suspeita de preconizadora de fascismo e como tal mais odiada do que

rigorosamente lida e discutida pela intelligentsia ndash assim o assume Sloterdijk ndash conteacutem

as bases seminais da anaacutelise seacuteria e filosoficamente delineada acerca do fenoacutemeno da

mobilizaccedilatildeo enquanto realidade inscrita na totalidade do processo social natildeo obstante a

sua origem beacutelica e militar Trata-se justamente do ensaio A Mobilizaccedilatildeo Total de

1930 (e na sequecircncia desta obra O Tabalhador) Tal como elucida Sloterdijk as

anaacutelises de Juumlnger datando da deacutecada de 1930 constituem um espetro de

perspetivaccedilotildees suscetiacuteveis de compreensatildeo do fenoacutemeno da mobilizaccedilatildeo como realidade

moderna devendo merecer as melhores atenccedilotildees dos filoacutesofos do nosso tempo ndash ainda

que tais pontos de vista natildeo sejam compatiacuteveis com o ldquosono dos justos no projeto da

Modernidaderdquo

A convocaccedilatildeo do mal-afamado pensamento de Ernst Juumlnger no que respeita agrave

questatildeo da avaliaccedilatildeo da utopia cineacutetica da modernidade ndash e natildeo se transformam todas as

utopias em distopias ndash poderaacute ser tomado como um modo de afirmaccedilatildeo de uma certa

excentricidade teoacuterica de Sloterdijk Todavia para o filoacutesofo alematildeo a criacutetica

contemporacircnea da modernidade deveraacute desenvolver-se em torno da problemaacutetica da

mobilizaccedilatildeo perspetivada como ldquoprocesso autoacutegeno da Modernidaderdquo15 impelindo ao

delineamento de criacutetica alternativa da modernidade enquanto criacutetica da falsa

mobilidade Tal consiste com efeito num dos projetos mais relevantes da filosofia de

Sloterdijk a configuraccedilatildeo de uma nova teoria criacutetica que no caso singular de A

Mobilizaccedilatildeo Infinita se assume como teoria criacutetica do movimento no momento da

modernidade tardia isto eacute no momento do autorreconhecimento da modernidade ldquono

seu lado sofridordquo16 A este respeito leia-se Sloterdijk esclarecendo o seu proacuteprio projeto

filosoacutefico

Assim a criacutetica da sociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se apoacutes a

derrocada do marxismo e depois do ambiacuteguo ensurdecimento das escolas de Frankfurt

ainda pode haver uma terceira versatildeo de teoria criacutetica de um tipo exigente entatildeo com

certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica do movimento17

15 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p4116 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p4217 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p41

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A tese de doutoramento que aqui apresentamos intitulada Mobilizaccedilatildeo e

Aceleraccedilatildeo no contexto da Modernidade Tardia integra a aspiraccedilatildeo de constituir-se

como o ensaio ou a tentativa de delineamento de resposta ao apelo ou ao repto de

Sloterdijk Eacute pois nosso propoacutesito pensar a modernidade tardia agrave luz das categorias de

mobilizaccedilatildeo [Mobilmachung] e de aceleraccedilatildeo [Beschleunigung] ndash aqui tomadas como

conceitos filosoficamente definidores e estruturantes dos tempos que vivemos ndash

partindo de um ponto de vista que convoca as mais recentes posiccedilotildees avanccediladas pela

filosofia poliacutetica e social Com efeito a perspetivaccedilatildeo criacutetica das omnipresentes e

volaacuteteis mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo da modernidade tardia constitui uma das temaacuteticas

culturais mais prementes dos nossos dias configurando-se como uma nova e intensa

problemaacutetica de discussatildeo em torno da qual um singular panorama filosoacutefico tatildeo

complexo quatildeo vasto e abrangente se impotildee e se delineia poder-se-ia a este respeito

nomear a teoria dromoloacutegica de Virilio18 o trabalho de Lipovetsky19 e Garcia20 na

Franccedila a teoria da aceleraccedilatildeo de Hartmut Rosa21 e o trabalho de Sloterdijk22 e Byun

Chul Han23 na Alemanha as posiccedilotildees de Baumann24 em Inglaterra e de Ferraris25 em

Itaacutelia

O especto de teorizaccedilotildees que compotildee o nosso quadro de pensamento poderaacute ser

traccedilado desde Ernst Juumlnger e Peter Sloterdijk ndash cujas perspetivaccedilotildees acerca do conceito

de mobilizaccedilatildeo concentraratildeo as nossas melhores atenccedilotildees ndash ateacute aos filoacutesofos alematildees

contemporacircneos Hartmut Rosa e Byun-Chul Han ndash cujas posiccedilotildees acerca da temaacutetica da

aceleraccedilatildeo considerada como conceito filosoacutefico receberaacute da nossa parte uma anaacutelise

que se pretende cuidada e exaustiva Os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo

criticamente avaliados do ponto de vista filosoacutefico permitir-nos-atildeo o desenho dos eixos

18 Virilio P Vitesse et Politique essai de dromologie Paris 1977 Virilio P Dromologie logiquede la course Paris 199119 Lipovetsky G Le Bonheur paradoxal essai sur la socieacuteteacute dhyperconsommation Paris 2006Lipovetsky G LrsquoEmpire de leacutepheacutemegravere la mode et son destin dans les socieacuteteacutes modernes Paris 1987Lipovetsky G LEgravere du vide Paris 1983 Lipovetsky G Les Temps hypermodernes Paris 2004 20 Garcia T La vie intense Une obsession moderne Paris 201621 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 Rosa H RessonanzBerlin 2016 Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 201822 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 23 Han B-C A Sociedade de Transparecircncia Lisboa 2014 Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo TradGilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014 Han B-C O Aroma do tempo Lisboa 2016 Han B-CPsicopolitica Lisboa 201524 Bauman Z Liquid Fear Cambridge 2006 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 200725 Ferraris M Mobilizaccedilatildeo Total Lisboa 2018

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culturais que determinam o periacuteodo histoacuterico que nos envolve e sobre o qual

ensaiaremos pensar a modernidade tardia

Segundo Rosa a tendecircncia de aceleraccedilatildeo constitui-se como caracteriacutestica de toda

a modernidade todavia importaria distinguir no que concerne ao conceito de

modernidade a designada modernidade tardia ndash eacutepoca sobre a qual nos deteremos de

um ponto de vista filosoacutefico-criacutetico ndash da modernidade dita claacutessica A expectativa

acerca de um futuro melhor ndash uma das facetas do progresso da modernidade ndash que

marcara o periacuteodo anterior agraves deacutecadas de 1960 e 1970 acabou por desmoronar-se a tal

ponto que a experiecircncia do progresso linear se tornara nas uacuteltimas deacutecadas ndash assim

sublinha Rosa ndash a experiecircncia de uma celeridade sem sentido

Tanto no aspeto individual quanto no aspeto coletivo trata-se pois da transiccedilatildeo de um

movimento experimentado por uma dinamizaccedilatildeo sem direccedilatildeo que evoca por sua vez a

sensaccedilatildeo de paralisaccedilatildeo apesar de ndash ou justamente devido a ndash uma dinacircmica de aumento

dos acontecimentos26

A pergunta sobre a causa e o modo como lidar com este processo de aceleraccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo ndash pergunta agrave qual os trabalhos de Rosa procuram responder e que mereceraacute

no acircmbito da presente tese a nossa atenccedilatildeo ndash deveraacute ser analisada com o devido

cuidado Tomando esta pergunta como ponto de partida Rosa retoma a proposta de

Peter Sloterdijk acerca da necessidade de desenvolver a teoria criacutetica agrave luz desta mesma

orientaccedilatildeo ndash ou seja a do questionamento criacutetico acerca da aceleraccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo

(ou nas palavras de Sloterdijk a cineacutetica) enquanto eixo definidor da modernidade

Ten years ago an analogous idea was advanced byhellip Peter Sloterdijk who attempted to

develop a new critical theory of ldquopolitical kineticsldquo conceived as a third version of critical

theory after Marx and the Frankfurt School In Sloterdijkacutes view both earlier versions of

critical theory ultimately failed because they misunderstood and uncritically supported the

kinetic forces of modernity which set everything in motion until they ultimately achieve a

state of bdquototal mobilizationldquo (bdquototale Mobilmachungldquo) a warlike state where everything is

determined by the logic of speed [hellip] Nonetheless we believe that something useful can

be retrieved from his otherwise highly problematic reformulation of critical theory27

Detendo-se sobre a proposta de Sloterdijk Rosa delineara o seu ensaio

Aceleraccedilatildeo e Alienaccedilatildeo Esboccedilo de uma teoria criacutetica da temporalidade na

26 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p43727 Rosa HScheuerman W High-Speed Society Social Acceleration Power and ModernityPennsylvania University Park 2009 p15

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modernidade tardia (Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen

Theorie spaumltmoderner Zeitlichkeit) 28 no qual apresenta uma teoria da modernidade que

procura ligar e dar continuidade agrave teoria criacutetica A concordacircncia com a visatildeo de Axel

Honneth de que a identificaccedilatildeo de patologias sociais constitui um objetivo central natildeo

soacute da teoria criacutetica enquanto tal mas tambeacutem da filosofia social29 poderaacute ser assinalado

como um dos pontos teoacutericos centrais do ensaio de Rosa30 O filoacutesofo contrasta pois o

conceito de alienaccedilatildeo ndash tomado como uma patologia da modernidade criada pela

aceleraccedilatildeo ndash com o conceito de ressonacircncia aqui apresentado como o epiacutetome de uma

28 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen Theorie spaumltmodernerZeitlichkeit Frankfurt aM 201329 Enquanto subdisciplina da filosofia praacutetica a filosofia social interroga sobre o modo como as pessoasvivem e agem e como devem viver e agir A filosofia social natildeo considera as pessoas como indiviacuteduosisolados mas como membros de um mundo social que dependem de formas bem-sucedidas decoexistecircncia sob um modo que natildeo eacute apenas instrumental ndash isto eacute enquanto zoon politikon A filosofiasocial aborda assim a forma adequada das nossas instituiccedilotildees e praacuteticas sociais indagando ateacute que pontoestas podem promover ou minar as possibilidades de os indiviacuteduos de desenvolverem uma boa vidaPois se soacute pode ser indiviacuteduo em sociedade entatildeo enquanto ser genuinamente social o indiviacuteduodesenvolve sempre em conjunto os preacute-requisitos supra-individuais das suas accedilotildees individuais (Jaeggi RCelikates R Sozialphilosophie Eine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017 p11) A filosofia social surge destemodo como que focada numa tese exigente O social ndash praacuteticas sociais instituiccedilotildees e relaccedilotildees ndash deveser entendido como uma condiccedilatildeo constitutiva de individualidade e de liberdade Natildeo obstante a suaproximidade agrave sociologia a filosofia social difere desta por desenvolver uma reflexatildeo normativamenteorientada sobre o funcionamento das instituiccedilotildees sociais bem como sobre as patologias sociais ou sejaos desenvolvimentos mal orientados e as crises (Jaeggi R Celikates R Sozialphilosophie EineEinfuumlhrung Muumlnchen 2017 p11) Aleacutem disso a filosofia social coloca questotildees metodoloacutegicas esocioloacutegicas fundamentais o que em alguns aspectos a torna uma instacircncia de metarreflexatildeo da teoria-social da sociolologia e das ciecircncias sociais (HollisM Soziales Handeln Berlin 1995 Risjord MPhilosophy of Social Science London 2014) Num contexto alematildeo a filosofia social em contraste como contexto anglo-americano distingue-se da filosofia poliacutetica (apesar de todas as sobreposiccedilotildees) natildeo soacutepelo seu enfoque mais amplo nos fenoacutemenos sociais (em oposiccedilatildeo aos fenoacutemenos poliacutetico-institucionais)mas tambeacutem pelo facto de se esforccedilar por uma anaacutelise soacutecio-teoacuterica e soacutecio-ontoloacutegica da estrutura e dadinacircmica das relaccedilotildees sociais Deste modo a filosofia social estende-se tambeacutem para aleacutem da filosofiapraacutetica no sentido mais restrito devido ao seu interesse numa classificaccedilatildeo avaliativa dos fenoacutemenossociais a filosofia social natildeo se preocupa apenas com o significado normativo das praacuteticas e instituiccedilotildeessociais mais do que uma teoria puramente normativa a filosofia social interessa-se pela descriccedilatildeoempiacuterica e pela penetraccedilatildeo conceptual do mundo social com as suas situaccedilotildees problemaacuteticas especiacuteficas(Dewey J Syllabus Social Institutions and the Study of Morals (1923) Em Middle Works Vol 15Carbondale 1983 p 230-373 Ferrara A The Idea of a Social Philosophy Em Constellations 9 (2002)3 p 419-435 Pollmann A Integritaumlt Aufnahme einer sozialphilosophischen Personalie Bielefeld2005) A filosofia social eacute assim definida tanto por uma determinada aacuterea temaacutetica como por umadeterminada abordagem Em parte concentra-se em fenoacutemenos que natildeo satildeo tidos em conta por outrasdisciplinas a configuraccedilatildeo das instituiccedilotildees e praacuteticas sociais bem como os problemas sociais que surgemna interface entre o indiviacuteduo e a sociedade Por outra parte a filosofia social analisa os mesmosfenoacutemenos ndash tais como os problemas no trabalho e de comercializaccedilatildeo ndash sob uma perspetiva diferenteDeste modo mesmo conceitos centrais como liberdade ou poder afiguram-se compreendidos deforma muito diferente em filosofia social do que em filosofia poliacutetica se atentarmos especialmente sobreo contexto alematildeo (Jaeggi R Celikates R Sozialphilosophie Eine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017p11)Por contraste a filosofia social no contexto anglo-saxoacutenico eacute frequentemente equiparada agrave filosofiapoliacutetica Segundo Rahel Jaeggi uma das representantes da quarta geraccedilatildeo da Escola de Frankfurt a ideiade uma espeacutecie de divisatildeo de trabalho entre filosofia poliacutetica e filosofia social tambeacutem poderia serenganadora pois natildeo eacute faacutecil distinguir entre fenoacutemenos de vida social que tambeacutem incluem aacutereas como afamiacutelia situados abaixo das instituiccedilotildees de coexistecircncia politicamente constituiacutedas e a aacuterea maisestreita dos fenoacutemenos das instituiccedilotildees poliacuteticas ou estatais (Jaeggi R Celikates R SozialphilosophieEine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017p13)

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vida natildeo-alienada31 (Rosa utiliza o conceito de alienaccedilatildeo natildeo somente no contexto do

trabalho mas tambeacutem no acircmbito de outros contextos da vida na modernidade tardia

mobilizada e acelerada)

A teoria da ressonacircncia de Rosa foi recebida e discutida de forma controversa32

Com efeito a derivaccedilatildeo abrangente do conceito de ressonacircncia a partir de uma

variedade de perspetivas e contextos foi alvo de profunda condenaccedilatildeo por parte de

diversos leitores que invocaram por seu turno o facto de o conceito de ressonacircncia

supostamente parecer arbitraacuterio como que carecendo de precisatildeo e de realidade e em

uacuteltima anaacutelise afigurar-se inadequado enquanto conceito soacutecio-filosoacutefico baacutesico33 tal

como Rosa o pretenderia inicialmente sustentar Um outro ponto de criacutetica diz respeito

ao suposto recurso de Rosa ao universo intelectual do Romantismo34 Natildeo obstante

cumpria esclarecer que embora Rosa se refira em muitos casos agrave sensibilidade

ressonancial do Romantismo (em contradiccedilatildeo deliberada com conceitos racionalistas) o

filoacutesofo adverte tambeacutem que de acordo com a mundividecircncia do Romantismo a

prevalecircncia eacute concedida agrave emoccedilatildeo puramente subjetiva e interior ao inveacutes da

ressonacircncia com o mundo exterior35 Poder-se-ia com justeza e rigor afirmar que na

teoria da ressonacircncia de Rosa a relaccedilatildeo ou a convocaccedilatildeo do Romantismo natildeo se traduz

numa postura de sustentaccedilatildeo ou propagaccedilatildeo de um retorno aos ideias ou agrave

mundividecircncia de tal periacuteodo cultural mas sim numa descriccedilatildeo seacuteria e destituiacuteda de

qualquer bizarra exultaccedilatildeo do efeito continuado dos conceitos romacircnticos de

ressonacircncia na modernidade36

A abordagem de Rosa assume um papel especial em relaccedilatildeo a outras tentativas

proeminentes de atualizaccedilatildeo da teoria criacutetica Honneth e Jaeggi poderiam sem

dificuldade concordar sobre um meta-criteacuterio que determinaria qual a melhor teoria

30 HonnethA Pathologierı des Sozialen Frankfurt aM1994 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 p27031 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p14732 Brumlik M Resonanz oder Das Ende der kritischen Theorie In Blaumltter fuumlr deutsche undinternationale Politik Mai 2016 Berlin 2016 p 120ndash123 Peters C-H- Schulz P Resonanzen undDissonanzen Hartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 Wils J-P ResonanzIm interdisziplinaumlren Gespraumlch mit Hartmut Rosa Baden-Baden 201833 HartmannM Im Resonanzhafen bekommt die Welt ein anderes Gesicht In Frankfurter AllgemeineZeitung 5 April Frankfurt 201634 Taylor C Resonanz und die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und DissonanzenHartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249-27035 Hartmut Rosa Resonanz Berlin 2016 p 47936 Hartmut Rosa Resonanz Berlin 2016 p 600

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criacutetica da sociedade nomeadamente no que concerne ao seu grau de reflexividade37

Para Rosa de modo distinto o criteacuterio apropriado parece avaliar quatildeo bem uma teoria

consegue descrever condiccedilotildees que contradizem uma necessidade baacutesica da natureza

humana (considerando no entanto que a natureza humana natildeo deveraacute ser entendida

de forma substancialista38) Aleacutem disso Rosa propotildee aprofundar a visatildeo da filosofia

social no que respeita agraves experiecircncias da proacutepria existecircncia corporal e corpoacuterea

enfatizando este seu desiderato em contraste com o paradigma intersubjectivista de

reconhecimento de Honneth39

Neste ponto um conceito moderno de autonomia poderia ser especificado de

vaacuterias maneiras e Rosa salienta uma caracteriacutestica da conceptualizaccedilatildeo acerca da

autonomia no acircmbito de filosofia social40 nomeadamente a privatizaccedilatildeo da questatildeo da

boa vida41 Daqui decorreria que ldquoo imperativo normativo se mede pela distribuiccedilatildeo

dos recursos [] ndash e eacute sempre melhor ter mais do que ter menosrdquo42 Se a proacutepria

normatividade da filosofia social exige um mero mais quantitativo de recursos entatildeo

tal como Rosa assinala a filosofia social parece encontrar-se na ausecircncia de uma

postura de questionamento criacutetico dos processos abrangentes de aceleraccedilatildeo ndash pois em

uacuteltima instacircncia e paradoxalmente parece que ela mesmo os coproduz ou pelo menos

os corrobora Ao inveacutes de medir a qualidade de vida com base em recursos e opccedilotildees o

foco da filosofia social deveraacute ser segundo Rosa a relaccedilatildeo com o mundo a

renovaccedilatildeo da teoria criacutetica tal como Rosa a propotildee deveraacute orientar-se e desenvolver-se

agrave luz da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoSe a aceleraccedilatildeo eacute o problema entatildeo a ressonacircncia eacute talvez

a soluccedilatildeordquo43

No acircmbito da presente tese de doutoramento a pergunta formulada por Rosa ndash o

modo como eacute possiacutevel lidar com este processo de aceleraccedilatildeo ndash e a que ele procurara

responder delineando a sua teoria da ressonacircncia como uma teoria ldquoabrangenterdquo44

constituiraacute igualmente um dos eixos teoacutericos definidores ou estruturantes Todavia

este nosso trabalho acadeacutemico proporaacute uma outra tentativa de resposta agrave mesma

37 Honneth A Gerechtigkeit und kommunikative Freiheit Uumlberlegungen im Anschluss an Hegel InSubjektivitaumlt und Anerkennung Paderborn 2004pp 213ndash227 Jaeggi R Kritik von LebensformenBerlin 201438 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p30139 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p33340 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p4941 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p1742 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p4943 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p3944 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p21

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interrogaccedilatildeo convocando desde um ponto de vista filosoacutefico outras teorias que talvez

possamos designar como ldquoclaacutessicasrdquo e que se desenvolveram na antiguidade ndash

referimo-nos pois ao conceito de oacutecio que sob o nosso olhar se apresentaraacute como um

conceito eminentemente criacutetico

Relativamente agrave estrutura interna da presente tese importaria esclarecer que a

mesma integra duas partes temaacuteticas a primeira parte seraacute dedicada ao diagnoacutestico

filosoacutefico dos conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo bem como agrave anaacutelise de distintas

posturas filosoacutefico-criacuteticas acerca da modernidade tardia ndash conceito este que tambeacutem

seraacute objeto de atenta consideraccedilatildeo e a segunda parte a mais longa constituiraacute a

tentativa de proposta de elaboraccedilatildeo do conceito de oacutecio ndash filosoficamente determinado

- como conceito eminentemente criacutetico perspetivado agrave luz da possibilidade da sua

inserccedilatildeo no acircmbito de uma teorizaccedilatildeo criacutetica acerca da modernidade tardia A

contraposiccedilatildeo cultural entre os conceitos de oacutecio e de trabalho seraacute igualmente um

elemento de cuidada discussatildeo O momento final da tese que aqui se apresenta

integraraacute pois um ensaio de indagaccedilatildeo de eventuais soluccedilotildees criacuteticas para as

problemaacuteticas de filosofia social e poliacutetica analisadas no acircmbito deste trabalho

acadeacutemico

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PARTE I

___

Diagnoacutesticos filosoacuteficos e apreciaccedilotildees criacuteticas

Os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo

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Capiacutetulo 1

Sob o signo da velocidade

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11 | O ldquovelocifeacutericordquo de Goethe

Poreacutem tudo meu caro amigo eacute hoje ultra45 tudo transcende ininterruptamente tanto nopensamento como na accedilatildeo Jaacute ningueacutem se conhece ningueacutem percebe o elemento no qualflutua e reage ou a mateacuteria com a qual trabalha Os jovens vecircem-se afligidos demasiadocedo e depois integrados no ceacutelere voacutertice do tempo riqueza e velocidade satildeo aquilo que omundo mais admira e deseja o mundo instruiacutedo conta com caminhos de ferro correioexpresso barcos a vapor e todas as possiacuteveis comodidades de comunicaccedilatildeo para se superarhellip

JW von Goethe ldquoCarta a Zelterrdquo 1825

Com o enorme aceleramento da vida o espiacuterito e o olhar acostumam-se a ver e ajulgar parcial ou erradamente e cada qual se assemelha ao viajante que conheceterras e povos pela janela do comboio

Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano

Ateacute que ponto e de que modo os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo (ou

eventualmente de incremento)46 quando considerados do seu ponto de vista filosoacutefico

e assim desenvolvidos no acircmbito de uma filosofia poliacutetica e social ndash poderatildeo ser

compreendidos agrave luz da sua inserccedilatildeo no contexto da modernidade tardia Poderatildeo tais

conceitos e as realidades que referem ser perspetivados como traccedilos definidores ou

caracteriacutesticos da histoacuteria cultural da modernidade tardia ndash se sim de que modo

Segundo Marshall Berman a modernidade alcanccedila a sua primeira expressatildeo artiacutestica no

Fausto de Goethe47 O episoacutedio de Fileacutemon e Baucis eacute evocado como exemplar o

destino das duas figuras simboacutelicas do mundo antigo pautado pela perenidade eacute

desafiado pelo espiacuterito inquieto e movente de Fausto Com este episoacutedio integrado na

segunda parte de Fausto Goethe como que propotildee a conclusatildeo de que dos

comportamentos precipitados resultam de modo inexoraacutevel o erro e a violecircncia48

Fausto erra porque se precipita porque eacute incapaz devido agrave sua impaciecircncia inquieta de

45 Sobre a influecircncia linguiacutestica crescente do prefixo ldquoultrardquo num contexto alematildeo consultar Dewitz H-G Briefwechsel zwischen Goethe und Zelter in den Jahren 1799 bis 1832 Muumlnchen 1998 p67346A palavra Steigerung (que poderiacuteamos traduzir por ldquoincrementordquo) ndash proposta por Hartmut Rosa parapensar a modernidade tardia ndash natildeo possui com efeito uma palavra correspondente em portuguecircs Poderiasignificar ldquofazer maisrdquo num sentido quantitativo ou tambeacutem num sentido qualitativo Linguisticamente otermo significa ldquoa comparaccedilatildeo de um adjetivordquo podendo tambeacutem significar o melhoramento dodesempenho crescimento intensificaccedilatildeo aprimoramento expansatildeo e incremento47 Berman M All That Is Solid Melts Into Air The Experience of Modernity New York 1988 Marianne Gronemeyer tambeacutem concebe a tiacutepica expressatildeo do ideal de vida moderno segundo a ausecircnciapermanente de descanso e de tranquilidade a partir de Fausto Gronemeyer M Das Leben als letzteGelegenheit Darmstadt 1996 p122

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ser perspicaz no momento certo Fausto parece servir-se sempre ndash com a ajuda de

Mefistoacutefeles ndash das perversidades da violecircncia49 Jaacute a elas havia recorrido na primeira

parte da trageacutedia no que concerne ao assassinato do irmatildeo de Margarida Agora na

segunda parte apoacutes a morte de Fileacutemon e Baucis Fausto apercebe-se ndash tarde demais ndash

da consequecircncia fatal da sua precipitaccedilatildeo ldquoFoi lesta a ordem mais lesto o fimrdquo50 Na

recusa do presente por um futuro antecipado e velocifeacuterico51 de Fausto Goethe prevecirc

igualmente outro fenoacutemeno da precipitaccedilatildeo que Heidegger retrata em ldquoSer e Tempordquo a

preocupaccedilatildeo [Sorge] A preocupaccedilatildeo como personificaccedilatildeo de uma consciecircncia

exacerbada e voltada para o futuro Apenas a preocupaccedilatildeo exagerada possibilita

finalmente o cenaacuterio apocaliacuteptico do ldquovelocifeacutericordquo Fausto ocupa-se jaacute cego com

visotildees ldquomodernasrdquo e voltadas para o futuro com projetos de grande escala influenciado

pela precipitaccedilatildeo ldquoApresso-me a dar corpo ao que penseirdquo52 Aqui se sela o seu decliacutenio

sob o signo da cegueira e da ilusatildeo

48Safranski R Goethe Kunstwerk des Lebens Frankfurt 2015 Venzke A Goethe und des PudelsKern Wuumlrzburg 2006 Bollmann S Warum ein Leben ohne Goethe sinnlos ist Muumlnchen 201649 Diz um proveacuterbio turco que foi o diabo quem inventou a pressa Dahl J Die Eile hat der Teufelerfunden In Scheidewege Jahresschrift fuumlr skeptisches Denken Jahrgang 19 198990 p171 Nomesmo tom Hans Blumenberg afirma que a estreiteza do tempo eacute a raiz do malrdquo Blumenberg HLebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p71 Sob o pretexto de que o humanamente possiacutevelapenas se realiza pela pressa o diabo Mefistoacutefeles quer tentar Fausto a natildeo ser tatildeo preciso na suaexploraccedilatildeo do mundo Quer atordoaacute-lo com vatildes distraccedilotildees embriagaacute-lo com prazeres sensaborotildees lanccedilaacute-lo em tumultos e atraiacute-lo com selvagens libertinagens para garantir que se esvazia interiormente e pascenos seus desejos natildeo realizados Mefistoacutefeles dita para Fausto um fracassar diferente daquele que esteantecipa para si mesmo Mefistoacutefeles espera seduzi-lo agrave banalidade tornaacute-lo inconsciente com o alvoroccedilodo mundo e colocaacute-lo numa satisfaccedilatildeo ilusoacuteria Mefistoacutefeles quer livrar-se da sua viacutetima com umasuperficialidade friacutevola pois natildeo eacute soacute o demoniacuteaco como tambeacutem a vulgaridade e a irreflexatildeo que podemdar corpo ao mal segundo Hannah Arendt Arendt H Vom Leben des Geistes Band 1 Das DenkenMuumlnchenZuumlrich 1979 p14) O ldquodiabo tem portanto um interesse vital em minar o pensamento e oincorruptiacutevel desejo por experiecircncia ele ldquoinventou a pressardquo para afianccedilar que o questionar e o pensaraprofundadamente fossem reprimidos e mesmo sem a presenccedila miacutetica de um diabo resta concluir que aaceleraccedilatildeo origina uma trivialidade e um superficialismo nas experiecircncias nas relaccedilotildees e no contacto50 Goethe JW Fausto Trad Joatildeo Barrento Lisboa 1999 v11382 p53451 Para grande infortuacutenio da nossa eacutepoca que natildeo permite que coisa alguma amadureccedila devoreconhecer que devoramos jaacute no proacuteximo instante aquele que acabou de transcorrer desperdiccedilando o diano proacuteprio dia vivendo apenas de preocupaccedilotildees imediatas sem nos determos demoradamente em nadaPois se jaacute haacute mesmo jornais para cada uma das fases do dia Uma boa cabeccedila poderia provavelmenteinterpolar uma coisa e outra Com isso tudo o que se faz o que se empreende o que se compotildee oumesmo o que se planeia eacute logo arrastado para a cena puacuteblica Ningueacutem pode estar triste ou alegre sem queisso sirva de passatempo aos outros e isso se estenda de casa em casa de cidade em cidade de paiacutes empaiacutes e por fim de continente em continente tudo velocifeacutericordquo Goethe JW Briefe vol4 Briefe derJahre 1821 -1832 Muumlnchen 1988 p159 A palavra ldquovelocifeacutericordquo criada por Goethe combina avelocidade (ldquovelocitasrdquo) com o diaboacutelico (do ldquoLuacuteciferrdquo) Manfred Osten coloca tal neologismo nocontexto da totalidade da obra de Goethe Alles veloziferisch [Tudo (eacute) velocifeacuterico] ou a descoberta dalentidatildeo por Goetherdquo Osten M Zur Modernitaumlt eines Klassikers im 21Jahrhundert Frankfurt a M2003 p3352 Goethe JW Fausto Trad Joatildeo Barrento Lisboa 1999 v11501 p541

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Com a morte de Fileacutemon e Baucis rompe-se com a ideia de cultura baseada na

lei da continuidade O oacutedio de Fausto ao passado a recusa de qualquer cultura

sustentada na memoacuteria ou na evocaccedilatildeo da recordaccedilatildeo antecipa aqui o elogio da rutura

o gosto pela descontinuidade caracteristicamente modernos Goethe que no seu

romance Willhelm Meister adverte que natildeo se deve perder de vista o antigo

(perspetivado pois como uma salutar e desejaacutevel contraposiccedilatildeo agravequilo que no mundo

moderno tatildeo rapidamente se altera e se transfigura) procurara no mesmo sentido

alertar que a postura mais razoaacutevel a adotar deveria consistir em inibir repetidas vezes

os passos para a modernidade ritmadamente acelerada e correlativamente observar a

situaccedilatildeo em quietude Na eacutepoca de Goethe foi sobretudo Napoleatildeo quem determinou

exemplarmente o novo ritmo Napoleatildeo foi natildeo somente o primeiro a praticar a

moderna guerra de movimento (ldquoLEmpereur a trouveacute une nouvelle meacutethode de faire la

guerre il ne se sert que de nos jambes et pas de nos baiumlonnettesrdquo53) como tambeacutem

introduziu enquanto poliacutetico um ritmo ateacute entatildeo desconhecido Napoleatildeo impocircs agrave

Europa a velocidade (eacutelan et vitesse) ndash o segredo pessoal do seu sucesso como um

sentido de viver ldquomodernordquo

No pensamento de Nietzsche a figura do energeacutetico e dinacircmico Uumlbermensch

parece contrapor-se agrave visatildeo desenvolvida pelo filoacutesofo de que a falta de quietude eacute

uma das marcas de uma civilizaccedilatildeo que entrou numa nova barbaacuterie54 Nietzsche

sustenta nas Consideraccedilotildees Intempestivas que a aceleraccedilatildeo inquieta que a

volatilizaccedilatildeo e a dissoluccedilatildeo de circunstacircncias e crenccedilas estabelecidas que ldquoo hiper-

raacutepido e impensado estilhaccedilamento e o definhar de todo os fundamentos e a sua

dissoluccedilatildeo num vir-a-ser que sempre estaacute a fluir e a dissolver-se que o desfiar e a

historizaccedilatildeo incansaacutevel de tudo o que chegou a ser atraveacutes do homem moderno helliprdquo

(Das rasend-unbedachte Zersplittern und Zerfasern aller Fundamente ihre Aufloumlsung

in ein immer flieszligendes und zerflieszligendes Werden das unermuumldliche Zerspinnen und

Historisieren alles Gewordenen durch den modernen Menschenhellip)55constituem os

53 Lormier D Fiers de notre Histoire Paris 201354 Nietzsche F Menschliches Allzumenschliches Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol2Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p 232 A secccedilatildeo nordm285 da Primeira Parte da obra apresenta oilustrativo tiacutetulo O moderno desassossego55 Nietzsche F Unzeitgemaumlszlige Betrachtungen Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol1Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 239 p313A traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova (cf Nietzsche F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva TradMarco Antonio Casanova Rio de Janeiro 2003) natildeo transmite o sentido original dado por Nietzsche ldquobdquooraivoso e impensado estilhaccedilamento e o desmantelamento de todos os fundamentos sua dissoluccedilatildeo emum vir a ser que sempre se dilui o desfiar e a historizaccedilatildeo incansaacutevel de tudo o que veio a ser atraveacutes do

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princiacutepios baacutesicos da cultura moderna (Europeu super-orgulhoso do seacuteculo XIX tu

andas hiper-raacutepido (Uumlberstolzer Europaumler des neunzehnten Jahrhunderts du

rasest)rdquo56 Neste desenvolvimento Nietzsche acredita ter reconhecido a origem da

degradaccedilatildeo e da decadecircncia quando o filoacutesofo ldquopensa na pressa geral e na crescente

velocidade da queda na suspensatildeo de toda contemplatividaderdquo eacute ldquocomo se percebesse

os sintomas de uma total erradicaccedilatildeo e desenraizamento da culturardquo57

Curiosamente a avaliaccedilatildeo de alteraccedilotildees e mudanccedilas cada vez mais aceleradas no

contexto da modernidade manifesta-se desde logo no interior de debates culturais

sobre qualquer modo de inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Jaacute em 1877 W G Greg contemporacircneo

de Nietzsche formulara

Sem duacutevida a caracteriacutestica mais saliente da vida nesta segunda metade do seacuteculo XIX eacute a

rapidez ndash [hellip] a velocidade com que nos movemos a enorme pressatildeo a que estamos

submetidos ndash e haacute que pensar numa primeira questatildeo se esta alta velocidade eacute em si uma

coisa boa e numa segunda se vale o preccedilo que pagamos ndash um preccedilo que soacute calculamos e

apenas com dificuldade sabemos estabelecer fielmente58

A questatildeo da teacutecnica e da tecnologia constitui-se pois como uma das dimensotildees

que acompanha a reflexatildeo cultural sobre os fenoacutemenos da aceleraccedilatildeo e do incremento

modernos ndash e desde logo a partir do seacuteculo XIX Com efeito e tal nos esclarece

Hartmut Rosa em Beschleunigung (2005) diversas inovaccedilotildees teacutecnicas de

incrementaccedilatildeo de aceleraccedilatildeo promoveram aquando da sua criaccedilatildeo e introduccedilatildeo uma

forma de luta dentro da cultura na qual os ardentes defensores das novas tecnologias

que elogiavam a abertura a novas possibilidades e promessas enfrentavam adversaacuterios

igualmente determinados que advertiam por sua vez para a perda da dimensatildeo e da

homem modernohellip Tambeacutem a ediccedilatildeo mais recente de Andreacute Itaparica (cf Nietzsche F Sobre autilidade e a desvantagem da histoacuteria para a vida Segunda consideraccedilatildeo intempestiva Trad AndreacuteItaparica Satildeo Paulo 2017) natildeo transmite o sentido original dado por Nietzsche ldquoSeu dilaceramento edesfibramento coleacuterico de todo fundamento sua dissoluccedilatildeo em um devir derretido e fluido o incansaacuteveldestecer e historiar tudo o que deveio atraveacutes do homem modernordquo56 Nietzsche F Unzeitgemaumlszlige Betrachtungen Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol1Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 239 p313A traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova (cf Nietzsche F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva TradMarco Antonio Casanova Rio de Janeiro 2003) natildeo transmite o sentido original de Nietzsche ldquoEuropeusuper-orgulhoso do seacuteculo XIX tu estaacutes fora de tirdquo Tambeacutem a ediccedilatildeo mais recente de Andreacute Itaparica(cf Nietzsche F Sobre a utilidade e a desvantagem da histoacuteria para a vida Segunda consideraccedilatildeointempestiva Trad Andreacute Itaparica Satildeo Paulo 2017) natildeo transmite sentido original de NietzscheldquoEuropeu orgulhoso do seacuteculo vocecirc estaacute perdendo o juiacutezordquo57 Nietzsche F Schopenhauer como educador Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo 1999p29258 Citado Levine R Eine Landkarte der Zeit Wie Kulturen mit Zeit umgehen Muumlnchen 1999 p206

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medida humanas e para a emergecircncia de um ambiente passiacutevel de ser controlado bem

como para as consequecircncias fiacutesica e psicologicamente nocivas da nova tecnologia59 Os

processos de aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica natildeo decorrem natildeo obstante de modo uniforme e

linear mas muitas vezes irregularmente enfrentando obstaacuteculos resistecircncia e

contramovimentos que podem ser motivo ou causa de eventuais atrasos na sua

implementaccedilatildeo desencadeando porventura a sua interrupccedilatildeo ou inclusivamente a sua

inversatildeo temporaacuteria Aleacutem disso um determinado impulso de aceleraccedilatildeo teacutecnica eacute por

vezes seguido por um discurso cultural de desaceleraccedilatildeo conquanto e por regra o

entusiasmo pelos frutos do ritmo acelerado se sobreponha60 apesar da criacutetica por parte

dos ldquodesaceleradoresrdquo a maioria destas lutas terminaram com a vitoacuteria dos

ldquoaceleradoresrdquo ndash assim elucida Hartmut Rosa para quem a aceleraccedilatildeo e ldquoincrementordquo se

afiguram como realidades necessaacuterias para manter a estabilidade do capitalismo na

modernidade tardia

O dever de uma justificaccedilatildeo eacute por assim dizer posposto do movimento para a

perseveranccedila ldquoDoravante natildeo satildeo os agentes de mudanccedila que na cultura se tecircm de

justificar mas aqueles que se querem agarrar ao existenterdquo61

Haacute mais de cem anos Max Weber formulou na sua nota preliminar aos ensaios

sobre sociologia da religiatildeo (portanto no contexto da sua investigaccedilatildeo sobre a eacutetica

protestante) que o capitalismo eacute ldquoo mais fatiacutedico da nossa vida modernardquo62 Com o

termo vida moderna Weber referia-se acima de tudo ao estilo de vida individual e

coletiva o foco principal do seu trabalho63 De acordo com as posiccedilotildees de Weber o

capitalismo enquanto forma especiacutefica da atividade econoacutemica influencia molda e

determina de um modo intenso e maciccedilo as formas do estilo de vida individual ou

coletiva As consequecircncias da influecircncia do capitalismo e da crescente burocratizaccedilatildeo

da vida no acircmbito das sociedades modernas constituem como sabemos temas centrais

dos estudos de Max Weber de acordo com as posiccedilotildees weberianas as sociedades

59 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p8060 Os defensores da desaceleraccedilatildeo a favor da quietude tentavam por vezes conferir uma expressatildeooriginal ao seu protesto contra a velocidade - eg nos moldes da moda parisiense de 1840 observada porWalter Benjamin no seu ensaio sobre o flacircneur segundo o qual em passeios flanam tartarugasBenjamin W bdquoDer Flaneurldquo In Benjamin W Gesammelte Schriften Rolf TiedemannHermannSchweppenhaumluser volV Frankfurt aM 1982 p53261 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p8362 Weber M Vorbemerkungen In Die Protestantische Ethik Eine Aufstzsammlung Winkemann J(ed) Guumltersloh 1991 p1863 Hennis W Max Webers Fragestellung Tuumlbingen 1987

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modernas poderatildeo ser compreendidas agrave luz de uma curiosa metaacutefora ndash a metaacutefora de

uma caixa dura como o accedilo da qual o espiacuterito teraacute fugido e no interior da qual nos eacute

imposto um estilo de vida que tende a transformar-nos em hedonistas sem coraccedilatildeo e

saacutebios sem espiacuterito ldquoO capitalismo que conseguiu nos nossos dias o domiacutenio da vida

econoacutemica cria e educa []os sujeitos econoacutemicos [] de que necessitardquo64

O capitalismo impotildee de acordo com o olhar de Weber um estilo de vida

especiacutefico ndash que lhe eacute mais do que afim ou conforme uacutetil na era do capitalismo tardio

tal estilo de vida desenvolve-se no sentido da constituiccedilatildeo da figura e do

comportamento do designado consumidor ndash condiccedilatildeo necessaacuteria para a configuraccedilatildeo e a

manutenccedilatildeo de tal sistema econoacutemico Esta estreita fundamental e determinante

conexatildeo entre capitalismo e estilo de vida problemaacutetica tratada de modo profundo em

Weber afigura-se como uma questatildeo indevidamente desconsiderada ou negligenciada

assim aponta Hartmut Rosa em Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung

(2012) no acircmbito da discussatildeo filosoacutefica contemporacircnea65 apesar de a penetraccedilatildeo

capitalista em todas as esferas da vida ter aumentado significativamente desde as

primeiras deacutecadas do seacuteculo XX momento histoacuterico do qual datam os estudos de

Weber

Com efeito o liberalismo poliacutetico subjacente ao capitalismo proclama que

dentro de certos limites se trata de uma questatildeo exclusiva dos proacuteprios indiviacuteduos

determinarem a forma e o conteuacutedo de uma vida boa66 Tal implica que a resposta a esta

questatildeo central uma problemaacutetica relevante no interior do pensamento de Weber mas

tambeacutem no de Kant ndash a questatildeo sobre como devemos viver ndash deve ser reservada

apenas e soacute aos indiviacuteduos Estes devem descobrir e decidir de forma tatildeo autoacutenoma e

genuiacutena quanto possiacutevel o que segundo as palavras de Herder eacute a sua proacutepria

medida ou o seu modo de vida proacuteprio A ideia de que soacute o podem alancar na

comunicaccedilatildeo e no diaacutelogo ou seja de que soacute atraveacutes da interaccedilatildeo com outros sujeitos

64 Weber M A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Ana Falcatildeo Bastos e Luiacutes LeitatildeoLisboa 2018 p 4365 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15266 Aqui uso o termo aristoteacutelico ldquoεὖ ζῆνldquo que poderaacute ser traduzido por bdquovida boaldquo Aristoacuteteles afirma queeacute geralmente aceite que o fim de todo o comportamento humano eacute a eudaimonia viver bem (εὖ ζῆν) eacuteagir bem (εὖ πράττειν) com a finalidade de atingir a eudaimonia (consultar Aristoacuteteles Eacutetica aNicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1095a15-20) εὖ ζῆν deve portanto sertraduzido como ldquovida boardquo (natildeo confundir com ldquoboa vidardquo) No latim era usada a traduccedilatildeo beata vita pormeio do qual na liacutengua portuguesa se tornou comum o termo ldquovida felizrdquo (tambeacutem na liacutengua alematilde se usao termo aristoteacutelico ldquogutes lebenrdquo (vida boa) e natildeo o termo ldquogluumlckliches Lebenrdquo (vida feliz))

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podem desenvolver uma identidade e uma conceccedilatildeo proacutepria de vida boa natildeo se opotildee agrave

ideia da autonomia eacutetica individual67 A sociedade como um todo deveraacute disponibilizar

aos indiviacuteduos um espectro amplo e ilimitado de opccedilotildees e oportunidades de vida e ao

mesmo tempo segundo uma posiccedilatildeo eminentemente liberal natildeo julgar decisotildees

individuais Todavia e tal como sublinha Hartmut Rosa hoje inuacutemeros problemas ou

fenoacutemenos sociais satildeo atraveacutes das estrateacutegias de privatizaccedilatildeo e da desregulamentaccedilatildeo

poliacutetico-econoacutemica transferidas do campo da poliacutetica para outras esferas da sociedade ndash

inclusivamente as questotildees eacuteticas aquelas que se relacionam com a definiccedilatildeo de uma

vida boa De acordo com as proclamaccedilotildees do liberalismo poliacutetico que subjaz ao

capitalismo para que todos os indiviacuteduos tenham a oportunidade de encontrar de modo

livre a sua proacutepria e autecircntica forma de viver a sociedade deve definir e garantir uma

estrutura formal que garanta os direitos e as liberdades defendidos pelo liberalismo no

acircmbito dos quais os conceitos de bem e de vida boa sejam considerados do modo mais

neutro possiacutevel a fim de salvaguardar a liberdade e a igualdade de oportunidades

Correlativamente a liberdade individual deve incluir na sua definiccedilatildeo a procura de um

plano de vida proacuteprio que a liberdade econoacutemica ndash devido agrave eficiecircncia da economia de

livre mercado ndash parece satisfazer apesentando os preacute-requisitos econoacutemicos que

proporcionem a maior diversidade possiacutevel de opccedilotildees quanto agrave escolha de um plano de

vida proacuteprio Como pressuposto baacutesico do liberalismo poliacutetico ndash que se transfigura ele

mesmo em liberalismo econoacutemico ndash assume-se que ldquoos mercadosrdquo se comportam de

maneira neutra em relaccedilatildeo agraves conceccedilotildees de vida boa pois fornecem quer qualitativa

quer quantitativamente somente os serviccedilos e bens que os participantes individuais do

mercado (com base nas suas preferecircncias) desejam

Asseverar-se-ia que a doutrina do liberalismo poliacutetico se afigura pois

insuscetiacutevel de ser completamente separada da tendecircncia atual de desregulamentaccedilatildeo

poliacutetico-econoacutemica que coloca cada vez mais aacutereas da vida individual e coletiva agrave

mercecirc do jogo do mercado livre No entanto daqui resulta a seguinte contradiccedilatildeo para

as sociedades ocidentais contemporacircneas por um lado encontramo-nos perante o

supostamente salutar ideal do liberalismo poliacutetico que consiste na possibilidade de

constituiccedilatildeo de imagem pluralista e individualista das mais diversas e heterogeacuteneas

ldquoconceccedilotildeesrdquo de vida boa e por outro lado deparamo-nos com a exigecircncia dos sistemas

67 Cooke M Authenticity and Autonomy Taylor Habermas and the Politics of Recognition InPolitical Theory 25 (1997) pp 258

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capitalistas que afirma a imposiccedilatildeo de que pelo menos a maioria dos indiviacuteduos deve

desenvolver identidades que coloquem a produccedilatildeo a carreira e o consumo no topo da

sua lista de prioridades Por conseguinte os indiviacuteduos das sociedades modernas devem

estar dispostos a adaptarem-se natildeo apenas agraves exigecircncias fiacutesicas e psicoloacutegicas de um

sistema capitalista cuja essecircncia eacute uma mudanccedila permanente e aceleradaincrementada

em quase todas as aacutereas da vida mas tambeacutem e de certo modo a reconhececirc-las como

componentes indispensaacuteveis de uma vida boa Neste sentido a visatildeo acerca de uma

conceccedilatildeo de vida boa que eventualmente se basearia na continuidade durabilidade e

permanecircncia das condiccedilotildees de vida tradicionais tem no acircmbito das condiccedilotildees externas

das sociedades modernas tendecircncia a ser frustrada tal como elucida para aleacutem de

Hartmut Rosa tambeacutem Richard Sennett em The Corrosion of Character The Personal

Consequences Of Work In the New Capitalism68 Como tal e seguindo Sennet e Rosa

importaria questionar a proclamada possibilidade de a sociedade capitalista fornecer um

efetivo fundamento garantidamente neutro que permita que todos os estilos de vida

possam ser livremente ou autonomamente cumpridos e realizados seratildeo os sujeitos da

modernidade tardia efetivamente livres e autoacutenomos no que respeita a definir o seu

estilo de vida individual e numa dimensatildeo coletiva uma ldquosociedade boardquo tal como

autenticamente desejam

Voltemos a Weber O sistema capitalista parece estar exposto a uma bizarra

compulsatildeo trata-se da exigecircncia de desvalorizar segundo um ciclo incessante novos

produtos teacutecnicas e estilos de vida que acabam de ser inventados pois a compulsatildeo

vazia e sem propoacutesito pelo novo deveraacute sempre digamos recomeccedilar do iniacutecio69

Todavia haacute um cenaacuterio que se afigura e com o qual nos deparamos a visatildeo liberal

acerca da responsabilidade individual pelas definiccedilotildees (plurais) de vida boa combinada

com a realidade socioeconoacutemica das sociedades capitalistas liberais da modernidade

tardia parece conduzir-nos em uacuteltima instacircncia e de um modo como que inexoraacutevel agrave

ldquocaixa de accedilo e mecanizadardquo a metaacutefora formulada por Max Weber da qual ldquotodo o

espiacuterito escapourdquo Citemos Max Weber aludindo ao ldquoUacuteltimo Homemrdquo em Nietzsche

Onde o capitalismo se mostra mais forte nos Estados Unidos a procura da riqueza

despida do seu sentido eacutetico-religioso tende hoje a associar-se a paixotildees puramente

68 Sennet R The Corrosion of Character The Personal Consequences Of Work In the New CapitalismNew York 1998 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p16069 Gamm G Das metaphorische Selbst Tuumlbingen 1992 p81

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agoniacutesticas o que natildeo raramente lhe confere um caraacuteter de ldquodesportordquo Ainda ningueacutem

sabe quem no futuro habitaraacute a jaula e se no fim deste desenvolvimento brutal novos

profetas viratildeo ou renasceratildeo com toda potecircncia dos antigos pensamentos e ideais ou

ainda ndash caso nada disso aconteccedila ndash se se instalaraacute uma petrificaccedilatildeo mecacircnica coroada por

uma espeacutecie de presunccedilatildeo convulsiva Nesse caso para ldquoos uacuteltimos homensrdquo dessa fase da

civilizaccedilatildeo tornar-se-atildeo verdade as seguintes palavras ldquoespecialistas sem espiacuterito

hedonistas sem coraccedilatildeo ndash estes natildeo imaginam ter subido um degrau da Humanidade nunca

antes atingido70

Considerando tais problemaacuteticas Hartmut Rosa levanta a questatildeo acerca do

porquecirc das conceccedilotildees individuais de vida boa (que de acordo com a doutrina liberal

devem ser escolhidas o mais plural e livremente quanto possiacutevel) nos conduzem natildeo

somente a ambicionar ser ldquobons produtoresrdquo ndash o que significa segundo Rosa o desejo

de alcanccedilar um alto niacutevel na hierarquia dos produtores (e respetivamente na carreira

profissional) ndash mas tambeacutem e num sentido inverso nos incitam agrave aquisiccedilatildeo dos

produtos por noacutes produzidos Encontramo-nos portanto perante uma situaccedilatildeo

caracterizada por ciclos de consumo incessante crescente e sem limites ndash que definem

ldquoo ethos do consumidorrdquo sendo eventualmente condiccedilatildeo sine qua non da determinaccedilatildeo

de um estilo de vida A questatildeo para a qual Hartmut Rosa chama a atenccedilatildeo eacute pois a

seguinte porque eacute que os ideais ldquoautecircnticosrdquo e individuais de vida boa encaixam tatildeo

perfeitamente nas necessidades sisteacutemicas da economia capitalista orientada para o

crescimento para uma constante aceleraccedilatildeo e incremento da produccedilatildeo e do consumo71

Gerhard Gamm por sua vez propotildee uma resposta em Das metaphorische Selbst (1992)

As prestaccedilotildees da adaptaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo psicoloacutegica e fiacutesica das pessoas agrave diretriz do

sistema satildeo tomadas como garantidas [hellip] As sociedades da modernidade tardia estatildeo

acima de tudo interessadas em adquirir os recursos necessaacuterios ao sistema que a niacutevel da

produccedilatildeo e do consumo incidem sobre a capacidade de transformaccedilatildeo e incremento do

comportamento humano72

A posiccedilatildeo de Gerhard Gamm apresenta-se afim das posiccedilotildees de Weber

anteriormente mencionadas acerca da capacidade de o capitalismo criar e desenvolver

os seus proacuteprios (e a si mesmo necessaacuterios e uacuteteis) sujeitos econoacutemicos No

seguimento de tais posiccedilotildees assim comenta Hartmut Rosa

70 Weber M A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Ana Falcatildeo Bastos e Luiacutes LeitatildeoLisboa 2018p 16571 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15672 Gamm G Das metaphorische Selbst Tuumlbingen 1992 p80

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Para uma sociedade capitalista orientada para o crescimento econoacutemico e para o

incremento eacute indispensaacutevel que os seus membros natildeo escolham uma conceccedilatildeo de ldquovida

boardquo qualquer mas uma muito especiacutefica nomeadamente a ldquodoutrina abrangenterdquo

(comprehensive doctrine) do paradigma consumidorprodutor que faz com que a sua

atenccedilatildeo e energia sejam canalizadas numa determinada direccedilatildeo e natildeo na direccedilatildeo da

contemplaccedilatildeo meditaccedilatildeo ascetismo encaixe social desenvolvimento e crescimento

criativo ou algo semelhante73

Tal como Hartmut Rosa observa eventuais mudanccedilas neste padratildeo de orientaccedilatildeo

capitalista comportariam o possiacutevel perigo de decliacutenio econoacutemico e social de tal

sociedade74 Natildeo obstante e tal como enfatizara claramente Max Weber este natildeo eacute o

uacutenico padratildeo de orientaccedilatildeo possiacutevel nem o mais ldquoracionalrdquo ou o mais ldquonaturalrdquo A

definiccedilatildeo de vida boa subjacente ao capitalismo deve a sua existecircncia a uma constelaccedilatildeo

uacutenica profundamente especiacutefica de vaacuterios fatores culturais ndash por exemplo uma religiatildeo

(cristatilde) que rejeita tendencialmente o mundo mas que ao mesmo tempo aposta num

envolvimento ativo com o mundo e que pode recorrer a bases poliacuteticas juriacutedicas e

econoacutemicas determinadas A este respeito Hartmann Tyrell escreve o seguinte

introduzindo a reflexatildeo sobre o relevante conceito de pleonexia como aspeto

determinante do capitalismo

O espiacuterito do capitalismo portanto o espiacuterito dirigido metodologicamente ndash calculado pela

pleonexia resiste a toda a moralidade social (e econoacutemica) convencional e mostra-se

como um complexo de comportamentos estranho ofensivo irracional e ldquosem sentidordquo

isto se o colocarmos agrave luz de outros pontos de vista de valores (eacuteticos religioso-

metafiacutesicos esteacuteticos ou aristocraacutetico-nobres)75

Na sua Eacutetica a Nicoacutemaco Aristoacuteteles define a pleonexia (πλεονεξία) como um

ldquosempre-querer-ter-maisrdquo (relacionado com a ganacircncia e a avareza) caracterizando tal

conceito como uma das trecircs formas da injusticcedila Para Aristoacuteteles ndash e mais tarde para

Epicuro e para o estoicismo ndash a pleonexia representa um enorme mal76 O facto de o

conceito de pleonexia ter sido avaliado negativamente manifesta-se natildeo soacute em

Aristoacuteteles mas em toda a historiografia e filosofia antigas em Heroacutedoto e em

Tuciacutedides o termo era usado de forma pejorativa assim como em Xenofonte e em

73 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15674 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15675 Tyrell H ldquoWorum geht es in der Protestantischen Ethik Ein Versuch zum besseren Vestaumlndnis MaxWebers In Saeculum 41 2 (1990) 13176 MacphersonCB Die politische Theorie des Besitzindividualismus Frankfurt a M 1967 pp 74

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Platatildeo entre outros77 H Busche define o conceito a partir de um contexto aristoteacutelico

da seguinte forma ldquopleonexia o (querer)-ter-mais (πλεονεξία do latim avaritia) eacute um

termo que se compotildee por ldquomaisrdquo (pleon) e ldquoterrdquo (echein) Se de Heroacutedoto a Platatildeo

pleonexia significa a aspiraccedilatildeo injusta do ter mais do que seria justo em Aristoacuteteles por

seu turno o termo natildeo denota subjetivamente a atitude injusta mas objetivamente a

injusticcedila no ldquoexcesso de bensrdquo78 Com efeito em Aristoacuteteles a pleonexia o querer-ter-

mais constitui um conceito que se insere no domiacutenio da injusticcedila Recorde-se que a

justiccedila eacute para Aristoacuteteles a mais alta de todas as virtudes caracterizada como essencial

para o harmonioso e regulado conviver como criteacuterios de justiccedila aplicam-se o legal e o

igual e as leis devem garantir que a todos seja atribuiacuteda a sua devida parte daqui se

conclui que a igualdade entre os cidadatildeos eacute um criteacuterio essencial de justiccedila Aristoacuteteles

define pois a igualdade agrave luz do conceito de justa medida que eacute comum a todas as

virtudes eacuteticas

Uma vez que o injusto eacute iniacutequo e a injusticcedila iniquidade eacute evidente que haacute um meio termo

entre [os extremos da] iniquidade a saber a igualdade Em toda e qualquer espeacutecie de

acccedilatildeo haacute um mais e um menos haacute tambeacutem um igual Ora se a justiccedila eacute iniquidade entatildeo a

justiccedila eacute igualdade coisa que eacute aceite por todos sem ser necessaacuteria demonstraccedilatildeo79

Se a justiccedila eacute a mais elevada das virtudes ndash e se a pleonexia eacute o seu conceito

contraposto ndash entatildeo a pleonexia natildeo poderaacute ser considerada como um viacutecio entre os

demais de acordo com a eacutetica aristoteacutelica a pleonexia eacute ldquonatildeo uma parte da perversatildeo

mas antes a mais completa perversatildeordquo80 A pleonexia natildeo eacute um viacutecio exclusivamente

puacuteblico trata-se de um viacutecio que torna igualmente impossiacutevel a correta forma de vida

individual uma vez que aqueles que ldquodistribuem por si a maior parte do dinheirordquo81

violam a prudecircncia Recorde-se pois e a partir de tais consideraccedilotildees que a filosofia

eacutetica de Aristoacuteteles se apresentada determinada pelas noccedilotildees de justa medida e de

ordem racional perspetivados como modos de efetividade da convivecircncia entre os

homens Como de acordo com Aristoacuteteles o ser humano eacute por natureza um ser

poliacutetico que soacute pode ser considerado realizado na relaccedilatildeo com outros a pleonexia

enquanto transgressatildeo da justa medida constitui uma maldade fundamental pois

77 Consultar Delling G πλεονέκτης In Friedrich G (ed) Theologisches Woumlrterbuch zum neuenTestament Stuttgart 1959 pp 226-248 Reiner H Geiz In Ritter J (ed) Historisches Woumlrterbuchder Philosophie BaselStuttgart 1974 pp217-21978 Houmlffe O (ed) Aristoteles-Lexikon Stuttgart 2005 p 45679 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1131a1080 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1130a1081 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1168b16

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assume-me como causa que impossibilita a vida boa individual no mesmo sentido e em

termos coletivos o querer-ter-mais afigura-se como elemento que coloca em perigo a

comunidade poliacutetica dos cidadatildeos baseada por sua vez na igualdade como valor

fundamental

Muitos incluindo ateacute aqueles que pretendem estabelecer regimes aristocraacuteticos cometem

o erro de natildeo soacute favorecerem os ricos como de ludibriarem as expectativas do povo

Todavia o certo eacute que acaba por chegar a hora em que dos falsos bens nasce

inevitavelmente um verdadeiro mal pois os excessos cometidos pelos ricos constituem um

factor mais dissolvente dos regimes do que os cometidos pela massa popular82

A pleonexia eacute ndash como jaacute foi dito ndash o maior dos viacutecios pois dificulta a

coexistecircncia dos cidadatildeos na polis impossibilitando-a em casos extremos Ora para

Aristoacuteteles a polis eacute a forma mais elevada de comunidade pois assegura a autarquia dos

cidadatildeos Tal autarquia natildeo existe apenas na independecircncia econoacutemica (que

corresponderia ao nosso entendimento atual) mas eacute o requisito baacutesico para a realizaccedilatildeo

e para o cumprimento da vida boa conforme descrito na Eacutetica a Nicoacutemaco Recorde-se

que para Aristoacuteteles uma entidade pode ser dita autaacuterquica quando aspira a algo por

motivaccedilatildeo proacutepria e natildeo por motivaccedilatildeo alheia O mesmo se aplica agrave principal finalidade

humana a eudaimonia Segundo o pensamento aristoteacutelico somente na polis eacute possiacutevel

ao ser humano realizar o seu proacuteprio teacutelos ndash a eudaimonia justamente

A cidade enfim eacute uma comunidade completa formada a partir de vaacuterias aldeias e que por

assim dizer atinge o maacuteximo de auto-suficiecircncia Formada a princiacutepio para preservar a

vida a cidade subsiste para assegurar a vida boa83

Por conseguinte poder-se-ia a este respeito concluir que para Aristoacuteteles o

objetivo da vida humana consiste em desenvolver uma vida boa e que esta soacute na polis

pode ser alcanccedilada realizada cumprida ndash e vivida Aquele que aspira a ter mais e mais

ndash aquele que pratica pois o mais grave dos viacutecios a pleonexia ndash coloca em perigo

atraveacutes da sua extrema ambiccedilatildeo dirigida a coisas externas a comunidade que em

Aristoacuteteles eacute considerada digna per se Deste modo o quer-ter-mais age como que

82 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981297a5-1583 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981252b25

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contra a natureza do ser humano tornando periclitante o objetivo fundamental pelo

qual os humanos se juntam em comunidade a vida boa

De modo distinto no acircmbito do pensamento de Thomas Hobbes a pleonexia eacute a

principal causa ou motivaccedilatildeo das accedilotildees socias que segundo o filoacutesofo natildeo satildeo

eticamente nem moralmente questionaacuteveis ou demonizaacuteveis (a menos que conduzam a

certas situaccedilotildees com previsiacuteveis consequecircncias negativas reclamando entatildeo por parte

do estado ndash o Leviatatilde ndash uma intervenccedilatildeo) Atendendo a tal definiccedilatildeo de pleonexia

importaria pois chamar a atenccedilatildeo para o facto de a antropologia hobbesiana diferir

essencialmente no seu fundamento da antropologia aristoteacutelica O projeto hobbesiano

de estado baseia-se na premissa de que o querer-ter-mais (a pleonexia aristoteacutelica)

constitui o principal motor das accedilotildees humanas como que expressando uma desejaacutevel

atitude de conservaccedilatildeo e de manutenccedilatildeo da proacutepria existecircncia e de proteccedilatildeo de si-

proacuteprio contra danos externos84 Por conseguinte poder-se-ia afirmar e de um modo

natildeo especialmente controverso que de acordo com Hobbes o homem eacute profundamente

determinado pela pleonexia e que de certa forma tal viacutecio aristoteacutelico se traduz num

relevante virtude social ndash o mesmo quadro de pensamento poderia certamente ser

aplicado a Bernard Mandeville que concebera os mais moralmente condenaacuteveis viacutecios

humanos como causas indispensaacuteveis da prosperidade econoacutemica de uma sociedade

Neste sentido os viacutecios humanos avaliados pelos pensadores antigos como elementos

corrosivos da vida social apresentam-se perspetivados como potenciais elementos

positivos ndash de acordo com os novos ritmos e movimentaccedilotildees sociais e econoacutemicos ndash no

contexto dos alvores da modernidade e do capitalismo Interessantemente o proacuteprio

Hobbes um dos principais teorizadores da filosofia poliacutetica moderna concebera a sua

proacutepria filosofia como uma rutura contra a tradiccedilatildeo apresentando o seu proacuteprio

pensamento poliacutetico como um novo e desejaacutevel comeccedilo que de um modo inaugural

permitiria a verdadeira compreensatildeo sobre a necessidade e a geacutenese de um estado A

este respeito assim escreve Adorno sobre Hobbes

O esclarecimento comprometera-se com o liberalismo Se todos os afetos se valem a

autoconservaccedilatildeo ndash que domina de qualquer modo a figura do sistema ndash parece constituir a

fonte mais provaacutevel das maacuteximas de accedilatildeo Eacute ela que viria a ser liberada no mercado livre

Os escritores sombrios dos primoacuterdios da burguesia como Hobbes [] que foram os porta-

vozes do egoiacutesmo do eu reconhecem por isso mesmo a sociedade como o princiacutepio

84 Hobbes T Leviathan Fetscher I (ed) Frankfurt aM 1966 p95

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destruidor e denunciam a harmoniahellip Com o desenvolvimento do sistema econoacutemico no

qual o domiacutenio do aparelho econoacutemico por grupos privados divide os homens a

autoconservaccedilatildeo confirmada pela razatildeo que eacute o instinto objetualizado do indiviacuteduo

burguecircs revelou-se como um poder destrutivo da natureza inseparaacutevel da

autodestruiccedilatildeo85

85 Adorno TW Horkheimer M Dialeacutetica do esclarecimento Trad Guido Antonio de Almeida Riode Janeiro 1985 p89

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12 | Da aceleraccedilatildeo como fenoacutemeno cultural e esteacutetico

Agrave dolorosa luz das grandes lacircmpadas eleacutectricas da faacutebrica Tenho febre e escrevo Escrevo rangendo os dentes fera para a beleza disto Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Oacute rodas oacute engrenagens r-r-r-r-r-r-r eterno Forte espasmo retido dos maquinismos em fuacuteria Em fuacuteria fora e dentro de mim Por todos os meus nervos dissecados fora Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto Tenho os laacutebios secos oacute grandes ruiacutedos modernos De vos ouvir demasiadamente de perto E arde-me a cabeccedila de vos querer cantar com um excesso De expressatildeo de todas as minhas sensaccedilotildees Com um excesso contemporacircneo de voacutes oacute maacutequinas ()

Fraternidade com todas as dinacircmicasPromiacutescua fuacuteria de ser parte-agenteDo rodar feacuterreo e cosmopolitaDos comboios estreacutenuosDa faina transportadora-de-cargas dos naviosDo giro luacutebrico e lento dos guindastesDo tumulto disciplinado das faacutebricasE do quase-silecircncio ciciante e monoacutetono das correias de transmissatildeo

Aacutelvaro de Campos Ode triunfal

Lhomme intense du libertinage ou du romantisme se mue bientocirct en homme exalteacute desmouvements davant-garde du_surreacutealisme du futurisme du constructivisme porteur duprojet dune humaniteacute nouvelle Il espegravere ldquotenir le pas gagneacuterdquo selon le mot de Rimbaud Degeacuteneacuteration en geacuteneacuteration il appelle de ses vœux une avanceacutee une perceacutee deacutecisive dans ledomaine de la poeacutesie de la penseacutee des arts visuels de la politique ou des mœurs En avantCe qui acceacutelegravere sans cesse agrave la vitesse fulgurante des automobiles des trains des avionsnous emporte loin du monde preacutehistorique et mythique ougrave la reacutepeacutetition eacutetait la valeursupeacuterieure de la culture Les poegravetes Apollinaire Marinetti ou Pessoa quand ils se montrentlas du monde ancien espegraverent que la vie moderne augmentera nos perceptions pour nousarracher agrave lordinaire des vieilles ideacutees et des ouvrages clas- siques Le modernisme de cepoint de vue est la plus puissante des drogues de lesprit il promet une surexcitationinimaginable de toute notre humaniteacute arracheacutee agrave la banaliteacute Bien sucircr on saccoutume agravecette drogue Ce nest pas grave il faut en augmenter les doses et acceacuteleacuterer encore lemouvement par la penseacutee

Tristan Garcia La vie intense

No dia 20 de fevereiro de 1909 o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti

publicou o texto ldquoFundaccedilatildeo e Manifesto Futuristardquo no jornal francecircs Le Figaro Natildeo

se trata nem do manifesto de uma organizaccedilatildeo concreta nem de uma visatildeo puramente

profeacutetica do futuro De um modo distinto o texto reclama um novo estilo artiacutestico que

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represente uma experiecircncia da vida proacutexima da realidade86 Marinetti declara de modo

tatildeo veemente quatildeo incisivo a obsolescecircncia da arte claacutessica de acordo com o italiano o

olhar claacutessico procura desde sempre os elementos da estabilidade da harmonia da

eternidade etc tomados por Marinetti como valores esteacuteticos obsoletos regressivos

referentes a um passado ndash e como tal sem lugar na vida moderna Voltar costas ao

passado e encaminhar-se para o futuro a verdadeira direccedilatildeo do desenvolvimento

progressista ldquoQuerem vocecircs pois desperdiccedilar todas as vossas melhores forccedilas nesta

eterna e inuacutetil admiraccedilatildeo pelo passado da qual soacute poderatildeo sair fatalmente exaustos

diminuiacutedos e vencidosrdquo87

Segundo Marinetti o que determina o ser humano na sociedade moderna eacute a

mudanccedila a insurreiccedilatildeo o dinamismo e acima de tudo a velocidade Dever-se-ia

esquecer o passado e procurar experienciar o elemento mais relevante da sociedade

moderna a velocidade justamente

Afirmamos que a magnificecircncia do mundo se enriqueceu de uma beleza nova a beleza da

velocidade (hellip) O tempo e o espaccedilo morreram ontem Agora vivemos no absoluto porque

jaacute criamos a velocidade eterna e omnipresente88

De certa forma a singularidade do futurismo consiste menos na reinvenccedilatildeo da

arte ou no apelo a um novo sentido esteacutetico (subjetivo ou objetivo) do que no

abandono de todas as tradiccedilotildees a fim de apresentar uma experiecircncia contemporacircnea de

beleza ndash e a velocidade estaacute no acircmago de tal posiccedilatildeo Quando o manifesto foi publicado

em 1909 o futurismo alastrou-se rapidamente para os domiacutenios esteacuteticos da pintura

literatura escultura muacutesica arquitetura entre outros em muacuteltiplos paiacuteses Para

acentuar a importacircncia da velocidade ie a fim de fundar e expandir uma consciecircncia

social da velocidade os futuristas tentaram representar a experiecircncia da velocidade

atraveacutes de diferentes formas de arte e de vaacuterias teacutecnicas artiacutesticas ldquoTudo se move tudo

flui tudo acontece com a maacutexima velocidade Uma figura nunca paira imoacutevel diante de

noacutes mas aparece e desaparece incessantementerdquo89

86 Apollonio U Der Futurismus In Apollonio U (ed) Der Futurismus Manifest und Dokumenteeiner kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln 1972 p1087 Marinetti FT Gruumlndung und Manifest des Futurismus In Apollonio U (ed) Der FuturismusManifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1909]) p3588 Marinetti FT Gruumlndung und Manifest des Futurismus In Apollonio U (ed) Der FuturismusManifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1909]) p3389 Boccioni U et al Die futuristischen Malerei ndash Technisches Manifest In Apollonio U DerFuturismus Manifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1910])

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A erosatildeo da materialidade soacutelida causada pela velocidade apresenta-se como

uma caracteriacutestica central da pintura futurista A representaccedilatildeo da velocidade pura

constitui-se com efeito como uma das expressotildees de tal movimento esteacutetico

Inclusivamente a escultura e a arquitetura futuristas distinguem-se pelo desprezo

relativamente agrave imobilidade e agrave harmonia perspetivadas como caracteriacutesticas de

condiccedilotildees do passado de acordo com a intenccedilatildeo de proclamar uma consciecircncia da

velocidade A destruiccedilatildeo do soacutelido como teacutecnica de representaccedilatildeo da velocidade eacute pois

significativa para as artes plaacutesticas ndash do mesmo modo no acircmbito da arquitetura os

futuristas procuraram preconizar uma correspondecircncia com a realidade da vida

moderna

O problema da arquitetura futurista (hellip) reside na urgecircncia de construir a casa futurista do

zero usando todas as ferramentas da ciecircncia e tecnologia no atentar de todas as

reivindicaccedilotildees dos nossos costumes e dos nossos espiacuteritos pelo mais nobre no esmagar de

tudo o que eacute grotesco e dissidente de noacutes (tradiccedilatildeo estilo esteacutetica proporccedilatildeo) (hellip)

Perdemos o sentido para o monumental o pesado o estaacutetico e enriquecemos o gosto pelo

ligeiro o praacutetico o efeacutemero e o veloz90

O Futurismo proclamando a iminecircncia da velocidade apresenta-se dotado

desde o seu surgimento de um potencial criacutetico e revolucionaacuterio Devido ao desejo de

experiecircncia da velocidade extremas alguns futuristas ansiaram pela guerra Tenha-se

presente pois a este respeito o lamento de Antonio Gramsci relativamente ao facto de

alguns futuristas se terem voltado para a guerra e para o fascismo glorificante da

violecircncia91 Assim escreve Walter Benjamin sobre a mateacuteria

p4090 SantacuteElia A Die futuristische Architektur In Apollonio U (ed) Der Futurismus Manifest undDokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1910]) p21391 Gramsci A A Letter to Leon Trotsky on Futurism Revolutionary History 7 (2) 1999 pp118-120A relaccedilatildeo entre Futurismo e Fascismo Italiano eacute profundamente complexa e natildeo pode ser aqui explicadade forma exaustiva Apontemos natildeo obstante alguns elementos que deveratildeo ser tomados comorelevantes para a compreensatildeo de tais relaccedilotildees Comecemos pela anaacutelise das posturas poliacuteticas assumidaspelos artistas futurista italianos com efeito os Futuristas italianos publicaram um programa poliacutetico (comcontornos ideoloacutegicos expliacutecitos) apoacutes o fim da guerra em 1918 o designado Manifesto del partitopoliacutetico futurista que se seguiu ao seu programa esteacutetico de 1913 (Hesse E Die Achse Avantgarde ndashFaschismus Zuumlrich 1992 p282) Os objectivos aiacute formulados representaram uma nova orientaccedilatildeo nodesenvolvimento do Futurismo e a proclamaccedilatildeo do programa poliacutetico de 1918 significou um corte entreo (dito) Futurismo poliacutetico e o Futurismo artiacutestico (Schmidt-Bergmann H-G Futurismus Reinbek1993 p151) A partir daiacute Marinetti procurara diferenciar o movimento artiacutestico do Futurismo que ()permaneceu um movimento muitas vezes mal compreendido e de vanguarda () que () a maioria natildeoconsegue compreender() e o () Partido do Futurismo Italiano() que () deveria ter em containtuitivamente as necessidades mais agudas () do povo italiano (citado por Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p151) Apesar desta separaccedilatildeo o objetivo final do Futurismo italianopermaneceu esteacutetico consistindo na proclamaccedilatildeo da possibilidade de criaccedilatildeo da artecrazia (umaexpressatildeo para a ideia futurista de uma forma de governo em que os artistas guiariam o destino da naccedilatildeo

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Somente a guerra possibilita mobilizar a totalidade dos meios teacutecnicos da atualidade

sob o auspiacutecio das relaccedilotildees de posse Eacute evidente que a apoteose da guerra no fascismo natildeo

se serve desses argumentos Apesar disso eacute instrutivo notaacute-los No manifesto de Marinetti

em favor da guerra colonial na Etioacutepia lecirc-se lsquoHaacute 27 anos noacutes futuristas opomo-nos agrave

caracterizaccedilatildeo da guerra como antiesteacutetica () De acordo com tal determinamos () a

guerra eacute bela porque fundamenta graccedilas agraves maacutescaras de gaacutes aos assustadores megafones

aos lanccedila-chamas e aos pequenos tanques o domiacutenio da humanidade sobre a maacutequina

subjugada A guerra eacute bela porque inaugura a tatildeo sonhada metalizaccedilatildeo do corpo humano

A guerra eacute bela porque enriquece um campo florido com as orquiacutedeas iacutegneas das

metralhadoras A guerra eacute bela porque unifica os tiros de fuzil os balaccedilos de canhatildeo os

cessar-fogos os perfumes e odores putrefatos numa sinfonia A guerra eacute bela porque cria

novas arquiteturas como a dos grandes tanques dos geomeacutetricos esquadrotildees aeacutereos das

espirais de fumaccedila sobre aldeias em chamas e muitas outras () Poetas e artistas do

futurismo () lembrai-vos destes princiacutepios para uma esteacutetica da guerra para que vossa

luta por uma nova poesia e uma nova plaacutestica () seja por eles iluminadarsquo Esse manifesto

tem a vantagem da nitidez O seu questionamento merece ser retomado pelo dialeacutetico Para

este a esteacutetica da guerra dos dias de hoje apresenta-se do seguinte modo se o uso natural

das forccedilas produtivas eacute bloqueado pela distribuiccedilatildeo da propriedade a elevaccedilatildeo dos meios

teacutecnicos em termos de ritmo de fontes de energia pressiona em direccedilatildeo a uma utilizaccedilatildeo

antinatural dessas forccedilas92

(Ver Baumgarth C Geschichte des Futurismus Reinbek 1966 pp 118) Em marccedilo de 1919 omovimento poliacutetico do Futurismo decidiu unir forccedilas com a Fasci di combattimento fundada porBenito Mussolini (Chiantera-Stutte P Von der Avantgarde zum Traditionalismus Frankfurt aM 2002p53) Marinetti e Mussolini que jaacute se tinham encontrado em comiacutecios em 1915 (Hesse E Die AchseAvantgarde ndash Faschismus Zuumlrich 1992 p284) entraram nas eleiccedilotildees parlamentares italianas de finais de1919 numa lista comum natildeo alcanccedilando no entanto a vitoacuteria Mussolini retirou as suas conclusotildees desteresultado eleitoral pressupondo que tal fraco desempenho se devera a alguns dos pontos de vista dosFuturistas os quais poderiam ter conduzido agrave perda de votos entre a burguesia (Hesse E Die AchseAvantgarde ndash Faschismus Zuumlrich 1992 p284) Seguidamente Mussolini desenvolveu com o seufasci uma mudanccedila ideoloacutegica no sentido de uma poliacutetica mais conservadora a fim de alcanccedilar umeleitorado mais amplo nas aacutereas do clero dos ricos e dos industriais (Aragno P Futurismus undFaschismus In Grimm R Hermand J Faschismus und Avantgarde Koumlnigstein 1980 p86) A ruturatemporaacuteria entre Marinetti e Mussolini ocorreu no Segundo Congresso do Partido dos Fascistas em maiode 1920 quando Mussolini anunciou publicamente a sua nova vontade de compromisso com os gruposconservadores tendo o liacuteder futurista e a maioria dos seus seguidores deixado o partido em protesto(Chiantera-Stutte P Von der Avantgarde zum Traditionalismus Frankfurt aM 2002 p57) Com a suaretirada do partido fascista em 1920 o desenvolvimento poliacutetico do Futurismo chega ao fim doravante asua influecircncia far-se-ia sentir somente no acircmbito das poliacutetcas culturais (Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p151) Todavia em 1924 Marinetti procurou a reconciliaccedilatildeo com ofascismo publicando a antologia Futurismo e Fascismo dedicada ao seu grande e querido amigoMussolini E em verdade Marinetti permaneceu ligado a Mussolini pelo menos pessoalmente ateacute agrave suamorte E a arte futurista sobreviveu ao fascismo especialmente na arquitetura (Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p169-171) Sobre este assunto ver tambeacutem Strobel-Koop R Geschichteund Theorie des italienischen Futurismus ndash Literatur Kunst und Faschismus Saarbruumlcken 2008 GentileE The Struggle for Modernity Nationalism Futurism and Fascism New York 2003 Hans HbdquoSchoumlnheit gibt es nur im Kampfldquo Zum Verhaumlltnis von Gewalt und Aumlsthetik im italienischen FuturismusGoumlttingen 2015

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Na Primeira Guerra Mundial figuras maacuteximas da arte futurista como Umberto

Boccioni e Antonio SantElia por exemplo natildeo sobreviveram os campos de batalha

europeus Ainda assim persistiu o entusiasmo antes vivenciado93 e com a Segunda

Guerra Mundial o futurismo sucumbiu parcialmente ao fascismo Com efeito segundo

Peter Sloterdijk em Os Filhos Terriacuteveis dos Tempos Modernos (2014) o fascismo

possui tambeacutem raiacutezes neste tipo de pensamento marcado pela negaccedilatildeo da

desmobilizaccedilatildeo

Natildeo se deve ver no fascismo um mero partido ou uma ideologia convencional No seu

gesto elementar ele emergiu de um militantismo mobilizado de poliacutetica de rua este como

espiacuterito da negaccedilatildeo da desmobilizaccedilatildeo [] alicerccedila-se na [] crenccedila de ter iniciado a

guerra sem um depois em vista [] comunicando com Oswald Spengler O fascismo eacute a

postura de pessoas que confundem a mobilizaccedilatildeo com a vitoacuteria94

No mesmo sentido Peter Sloterdijk caracteriza a modernidade tardia do iniacutecio

do seacuteculo XXI como um deslizar e precipitar num Futurismo generalizado95 Assim

escreve Sloterdijk

A fissura ontoloacutegica na qual estranhamente o mundo moderno se encontra em casa torna-

se inteligiacutevel em observaccedilotildees de pequena escala atraveacutes de declaraccedilotildees sobre

92 Benjamin W Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit GesammelteSchriften Tiedemann RSchweppenhaumluser H (ed) volI 2 Frankfurt aM 1980 p46893Segundo a compreensatildeo futurista a velocidade afigurar-se-ia como um elemento em constantemutaccedilatildeo no que toca a todas as formas de vida como uma caracteriacutestica inerente da sociedade modernaUsando exemplos das formas diversas ndash as operaccedilotildees mecacircnicas e tecnoloacutegicas o movimento da luz adestruiccedilatildeo de corpos o catildeo em movimento etc ndash os futuristas ilustram uma relevacircncia latente dofenoacutemeno da velocidade para aleacutem das dimensotildees puramente fiacutesicas 94Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p146Importaria ainda ter presente as seguintes consideraccedilotildees de Sloterdijk O discurso de Heidegger sobre oser-para-a-morte articula o sentimento de que a mobilizaccedilatildeo-para-a-morte do sujeito apoacutes 1918 natildeoreconhece qualquer acalmia A impossibilidade de uma desmobilizaccedilatildeo cunhou o estado de espiacuteritoexistencial das pessoas que fizeram parte do evento da Guerra Mundial - incluindo aqueles que apoacutes aguerra se precipitaram para aquilo que encaravam como entretenimento Como a mobilizaccedilatildeo para aguerra das guerras acabou por se provar irreversiacutevel para muitos dos combatentes o Dasein ulteriorrepresenta-se apenas por um militar contiacutenuo e por um deslizar de guerra para guerra - especialmenteentre aqueles que como os marxistas os darwinistas poliacuteticos e os decisionistas querem acreditar naconstacircncia da luta e da inimizade A siacutendrome que assomou imediatamente a seguir da Guerra Mundialcom o nome de fascismo baseada no movimento de uniatildeo e de luta desfilante em camisas negrasesquerdo-nacionalista de Mussolini influenciou numerosas formaccedilotildees poliacuteticas militares e culturais queapoacutes os anos de 1917 e 1918 sentiram exigiram glorificaram e praticaram a transiccedilatildeo de uma guerrapara a outra ndash nos Freikorps nas associaccedilotildees a favor da guerra civil nas tropas de assalto dos partidosparlamentares nos quadros revolucionaacuterios da esquerda e em algumas secccedilotildees da remexida arteEncontra-se o impulso fascista ndash a vontade de continuar a lutar apoacutes a guerra das guerras ndash em muitoslugares tambeacutem naqueles em que ele natildeo se chama assimrdquo Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder derNeuzeit Frankfurt aM 2014 p14695 Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p85

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desproporccedilotildees anteriores e posteriores O principal teorema civilizacionalmente dinacircmico

prescreve que no processo do mundo poacutes-hiato mais energias satildeo libertadas do que

podem ser contidas em formas de civilizaccedilatildeo transmissiacuteveis Isto significa que o excesso

croacutenico das mobilizaccedilotildees de atividades e a libertaccedilatildeo progressiva de fluxos de eventos pela

accedilatildeo movidos que se repercutem em reliacutequias objetivas propulsionam tanto a relaccedilatildeo com

o mundo como a experiecircncia da realidade na modernidade para crescentes e constantes

assimetrias96

Segundo Sloterdijk a exaustatildeo do presente deve-se ao facto de a accedilatildeo sensata

dos sujeitos ter sido substitutiacuteda pela sensaccedilatildeo de que se eacute impulsionado de forma

externa e infligida Os indiviacuteduos nas sociedades ocidentais apesar da prosperidade

material lamentam-se de depressatildeo e sobrecarga de tarefas O indiviacuteduo encontraria

aliacutevio em tudo o que natildeo tem de fundar ou inventar em tudo o que jaacute existia antes de

vir ao mundo e estaacute para existir quando do mundo partir Em tudo enfim que eacute

herdado tanto no material como nas regras e valores morais ndash e em relaccedilatildeo ao qual se

pode reivindicar uma validade objetiva mesmo que com a mesma natildeo se esteja

inteiramente satisfeito A este respeito Sloterdijk perspetiva os gestos do poder como

justificaccedilatildeo para tal quadro cultural apontado atraveacutes do recurso ao termo hiato a

ausecircncia de qualquer tipo de viacutenculo ou de modos de continuidade entre as novas

geraccedilotildees e as geraccedilotildees anteriores trata-se de acordo com o filoacutesofo da consideraccedilatildeo de

formas lacunares insertas no tempo de modos de rutura entre o antes e o depois A

capacidade de sobrevivecircncia de uma cultura traduz a sua potencialidade de se repetir

com sucesso apenas quando o herdado conta mais do que o novo apenas quando o

vigente natildeo ultrapassa o legiacutetimo haacute mais estabilidade do que erosatildeo Tal de acordo

com a anaacutelise de Sloterdijk correra razoavelmente bem ateacute ao Renascimento a eacutepoca

em que mercadores descobridores e artistas abandonaram os guetos das guildas e

assumiram posiccedilotildees influentes e prestigiadas Foi com a Revoluccedilatildeo Francesa que

segundo Sloterdijk a reviravolta futurista finalmente se estabeleceu ndash um imparaacutevel e

dinacircmico processo

96 Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p84

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13 | ldquoA mobilizaccedilatildeo totalrdquo e ldquoO trabalhadorrdquo aproximaccedilotildees ao pensamento

de Ernst Juumlnger

Os trabalhadores funcionam de acordo com leis semelhantes agraves das componentes de uma maacutequina

FW Taylor The Principles of Scientific Management

No ensaio A Mobilizaccedilatildeo Total97 de 1930 Ernst Juumlnger refere-se agrave Primeira

Guerra Mundial descrevendo- a como o acontecimento histoacuterico-beacutelico no qual o geacutenio

da guerra se embrenhou pela primeira vez com o geacutenio do progresso98 A mobilizaccedilatildeo

experienciada durante a Guerra natildeo soacute pelos exeacutercitos mas por toda a sociedade

constitui aos olhos de Juumlnger um princiacutepio estrutural da modernidade Tal como Juumlnger

salienta para que a vitoacuteria na guerra pudesse torna-se possiacutevel assistiu-se a uma

colossal pressatildeo nas universidades nos laboratoacuterios de pesquisa e nas faacutebricas para

desenvolver inovaccedilotildees tecnoloacutegicas cada vez mais raacutepidas as quais foram conduzidas

de modo imensamente acelerado agrave maturidade da sua produccedilatildeo Juumlnger traccedilou tal

princiacutepio estrutural agrave luz de uma crescente conversatildeo da vida em energia ndash o que de

acordo com o escritor alematildeo se traduziu como uma realizada materializada natildeo apenas

nos tempos de guerra mas tambeacutem nos tempos de paz Com a mobilizaccedilatildeo total

sustenta Juumlnger esbateu-se a diferenccedila entre guerra e paz ndash pois agora a guerra

avaliada como permanente corrida ao armamento prolonga-se em tempos da paz

Segundo Juumlnger a mobilizaccedilatildeo ocultar-se-ia atraacutes de uma maacutescara de razatildeo natildeo

sendo todavia racionalmente controlaacutevel e obedecendo somente agraves suas proacuteprias leis99

97 Walter Benjamin escreveu sobre este ensaio O que surge aqui sob disfarce de voluntaacuterio na PrimeiraGuerra Mundial posteriormente de mercenaacuterio no poacutes-guerra eacute na verdade o confiaacutevel e fascistaguerreiro das classesldquo Benjamin W Society GS III Berlin pp238-250 citado por Kiesel H ErnstJuumlnger Muumlnchen 2007 p378 Helmuth Kiesel por outro lado avalia o ensaio da seguinte formaldquoJuumlnger natildeo foi nem o inaugurador nem o difusor irrefletido da mobilizaccedilatildeo total mas quem lhe fez odiagnoacutesticordquo Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2007 p374 A respeito de Walter Benjamin e de ErnstJuumlnger eacute curioso que Theodor W Adorno numa entrevista em fevereiro de 1951 com o filoacutesofo ehistoriador judeu e amigo de Benjamin Gershom Scholem relacionou Ernst Juumlnger que fazia parte doEstado-Maior alematildeo em Paris com uma operaccedilatildeo de resgate e de salvaccedilatildeo de Walter Benjamin nocontexto da qual seria suposto Benjamin usar o disfarce que o salvaria de enfermeira num hospitalmilitar (Juumldische Allgemeine de 04062009) Veja tambeacutem a correspondecircncia entre Scholem e Juumlngerem ScholemG Ernst Juumlnger und Gershom Scholem Briefwechsel 1975-1981 em Weichelt M KraumlmerG (Ed) Sinn und Form (32009) Berlin 2009 p29398 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p 24599 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p240

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Num outro livro O Trabalhador100 (1932) que funcionaraacute como complemento de A

Mobilizaccedilatildeo Total Ernst Juumlnger procura transcender a sua experiecircncia da guerra e

iniciar um diagnoacutestico universal da modernidade Em verdade O Trabalhador retrata

a figura do ldquotrabalhadorrdquo como poder elementar passiacutevel de destruir a sociedade

burguesa Nele Juumlnger revela a emergecircncia de uma nova eacutepoca caracterizada pelo

ldquocaraacutecter total de trabalhordquo que destroacutei os valores do mundo burguecircs ndash a apreciaccedilatildeo do

indiviacuteduo o liberalismo democraacutetico o contrato social ndash contrapondo-lhes conceccedilotildees

de ldquotipordquo e proclamando noccedilotildees de ldquoestado operaacuteriordquo e de ldquoplano de trabalhordquo como

factos objetivos A visatildeo geral de Juumlnger sobre as diferentes eacutepocas culturais natildeo eacute

fundamentada com uma teoria rigorosa Juumlnger prefere referir-se as distintas formas do

ldquotrabalhadorrdquo a partir de diferentes perspetivas Deste modo Juumlnger dissocia tais

formas das condiccedilotildees sociais e concebe-as agrave luz de um poder elementar Este invade o

mundo burguecircs e remodela-o ateacute desaparecer definitivamente Como as formas natildeo satildeo

fenoacutemenos transitoacuterios de configuraccedilotildees espontaneamente concebidas mas antes

intemporais as suas intervenccedilotildees fortalecidas na modernidade tornam-se parte de um

processo inevitaacutevel Na segunda parte do livro Juumlnger oferece um rico panorama de

observaccedilotildees sobre a ascensatildeo da figura do ldquotrabalhadorrdquo que vai desde o vestiaacuterio o

comportamento das massas nos seus tempos livres o culto do corpo a rejeiccedilatildeo do teatro

a favor do cinema o comportamento dos moradores das cidades etc Central aqui eacute a

substituiccedilatildeo do indiviacuteduo pelo ldquotrabalhadorrdquo enquanto tipo A isto estaacute associada uma

uniformidade do mundo civilizado (visiacutevel tambeacutem na similaridade entre aacutereas diacutespares

como as da publicidade da estatiacutestica etc) que ocasionalmente se converte num tipo de

crueldade Mais tarde no final da deacutecada de 1930 o proacuteprio Juumlnger abandonaria esta

sua perspetivaccedilatildeo Como alternativa o escritor alematildeo procurou avaliar possibilidades

que permitissem ao indiviacuteduo escapar ao funcionalismo do mundo total do trabalho

segundo as quais o ser humano pudesse sobreviver agrave succcedilatildeo niilista quando

confrontado com a aniquilaccedilatildeordquo Considerando que de acordo com o conceito de

mobilizaccedilatildeo total o ldquosistemardquo se afigura capaz de integrar qualquer resistecircncia ativa

Juumlnger contrapotildee-lhe um momento de resistecircncia do ldquodisfuncionalrdquo101

Embora O Trabalhador soacute possa ser varialmente interpretado como um

diagnoacutestico de um sistema ora totalitaacuterio fascista ora comunista-estalinista ou

100 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934101 Citado por Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p253

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porventura capitalista o livro foi tomado por muitos criacuteticos como uma antecipaccedilatildeo da

realidade do fascismo no Terceiro Reich102 Agrave estrutura da obra subjaz como jaacute

mencionado a hipoacutetese formulada por Juumlnger de que as suas observaccedilotildees e conclusotildees

sobre a postura do ser humano na Primeira Guerra Mundial tambeacutem pertencem ao

mundo da paz Entre outras coisas estaacute presente a ideia de libertar todas as forccedilas

produtivas A base para o seu diagnoacutestico eacute o reconhecimento da aceleraccedilatildeo como parte

do caraacutecter da modernidade Juumlnger declara neste sentido que o ser humano vive

numa eacutepoca de grande consumo cujo uacutenico efeito eacute o movimento acelerado das

rodas103 Embora O Trabalhador revele traccedilos antiliberais e anti-burgueses o livro foi

rejeitado pela imprensa nacional-socialista104

As obras O Trabalhador e A Mobilizaccedilatildeo Total contecircm elementos de pendor

diagnoacutestico apesar da afinidade com pensamentos militaristas e antiliberais a ambos os

textos estatildeo subjacentes o discernimento sobre o processo de desdobramento dialeacutetico

da Aufklaumlrung e a natureza dupla do uso natildeo restrito da razatildeo instrumental Salientar-se-

ia tambeacutem a afirmaccedilatildeo de que a tecnologia ascendera ao escalatildeo de sujeito histoacuterico

Assim resultam frutiacuteferos pontos de ligaccedilatildeo com a filosofia criacutetica da tecnologia

emergente durante e apoacutes a Segunda Guerra Mundial e ndash tenha-se presente ndash

desenvolvida pela primeira vez pelo irmatildeo de Ernst Juumlnger Friedrich Georg amigo

proacuteximo de Martin Heidegger De facto Heidegeer conhecia tanto A Mobilizaccedilatildeo

Total e O Trabalhador como ldquoA Perfeiccedilatildeo da Tecnologiardquo de Friedrich Georg

Juumlnger105 Com efeito para Heidegger Ernst Juumlnger afigurava-se como um dos mais

importantes representantes contemporacircneos da filosofia de Nietzsche106

102 Consultar Sombart N Ernst Juumlnger Der Arbeiter Zur Neuauflage 1964 In Nachdenkenuumlber Deutschland Vom Historismus zur Psychoanalyse Muumlnchen 1987 p147103 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p171104 A recensatildeo de Thilo von Trotha no Voumllkischer Beobachter apresenta de forma precisa as diferenccedilasideoloacutegicas entre Ernst Juumlnger e os nacional-socialistas as especulaccedilotildees Ernst Juumlnger sobre a tecnologiaa sua visatildeo planetaacuteria a sua declinaccedilatildeo de fundaccedilotildees racial-eacutetnicas a sua distinccedilatildeo categoacuterica entreburgueses e trabalhadores separam-no de forma muito clara da doutrina do Blut und Boden ancoradano nazismo Von Trotha T Das endlose dialektische Gespraumlch In Voumllkischer Beobachter Bayern-Ausgabe 45 Nr 296 vom 22 Oktober Muumlnchen 1932 p23 Peter Koslowski conclui bdquoOTrabalhadorldquo natildeo era compatiacutevel com a ideologia Blut und Boden (ldquosangue e terrardquo) do nazismoporque o seu trabalhador-tipo eacute tatildeo transnacional como eacute transsocialista e transcapitalistaldquo Koslowski PDer Mythos der Moderne Die dichterische Philosophie Ernst Juumlngers Muumlnchen 1991 p69 105 Juumlnger GF Die Perfektion der Technik Frankfurt a M 1946106 Heidegger M Zu Ernst Juumlnger Gesamtausgabe vol90 Frankfurt aM 2004Em janeiro de 1940 Heidegger convocou um pequeno ciacuterculo de colegas da Universidade de Freiburgpara um Debate sobre Juumlnger Desta assembleia resultam textos nos quais Heidegger expotildeedetalhadamente o seu juiacutezo sobre as visotildees de Juumlnger acerca do caraacutecter do tempo e da compreensatildeo daeacutepoca marcada pela vontade de poder e pela tecnologia Estes e outros materiais elaborados entre 1934e 1954 sobre Ernst Juumlnger que constituem em verdade reflexotildees sobre o contexto histoacuterico do

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O grau de destruiccedilatildeo humana cultural e civilizacional da Primeira Guerra

Mundial foi sentido pela maioria dos contemporacircneos como uma verdadeira rutura

Como resultado o quadro tradicional de referecircncias em que se inseriam o pensamento e

accedilatildeo foi profundamente abalado e questionado Com efeito Ernst Juumlnger em A

Mobilizaccedilatildeo Total acolheu a ideia da mobilizaccedilatildeo ldquoagrave maneira Nietzscheanardquo enquanto

libertaccedilatildeo do empedernimento civilizacional e da decadecircncia na sociedade tendo

acabado poreacutem por se distanciar por completo de tais posiccedilotildees ainda na deacutecada de

1930 A este respeito Peter Sloterdijk retoma em A Mobilizaccedilatildeo Infinita o conceito

de mobilizaccedilatildeo (total) de Ernst Juumlnger107 um conceito libertado do seu significado

militar especiacutefico e aplicado agrave sociedade moderna ndash como observa Sloterdijk De acordo

com Sloterdijk a liberdade de movimento constitui desde o Iluminismo a base fiacutesica

da autonomia Independentemente da forma como fora interpretada a mobilizaccedilatildeo fora-

o de algum modo positivamente pois muitas vezes se negligenciaram os aspetos

problemaacuteticos da sua dinacircmica

Este corre de tal maneira que noacutes empregamos com franqueza o conceito de mobilizaccedilatildeo

como expressatildeo principal para descrever e explicar o processo fundamental da

Modernidade [hellip] trata-se apenas por agora de corroborar a evidecircncia as

modernizaccedilotildees para noacutes apresentam sempre do ponto de vista cineacutetico o caraacutecter de

comunismo do nacional-socialismo e da guerra preenchem todo o volume 90 da ediccedilatildeo completa deobras de Heidegger O longo contacto amigaacutevel iniciado em 1942 e que durara mais de trinta anos comFriedrich Georg Juumlnger irmatildeo de Ernst inluenciou o pensamento de Heidegger de maneira marcanteDepois de 1945 a palestra A questatildeo da Tecnica datada de 1949 forma juntamente com Das Gestell(1955) o acircmago de pensamento de Heidegger acerca de tal questatildeo Inicialmente Heidegger tendera arelacionar a visatildeo de Juumlnger com o nacional-socialismo que nivelara as antigas fronteiras de classecriando uma nova grande vontade do Estado Gradualmente a partir de 193435 a perspetiva deHeidegger mudara A URSS e os Estados Unidos satildeo pensados pelo filoacutesofo jaacute em 1935 como expressatildeode o mesmo sombrio frenesim da tecnologia desenfreada e da organizaccedilatildeo sem fundamento de povos(Heidegger M Einfuumlhrung in die Metaphysik (Sommersemester 1935) Jaeger P (Ed) Frankfurt a M1983 p40) Se o nacional-socialismo fora tomado por Heidegger como uma alternativa poliacutetica agravemodernidade economizada e tecnologizada mais tarde o filoacutesofo alematildeo natildeo poderia continuar a ignoraruma realidade mais profunda ldquopois noacutes tambeacutem aumentamos o armamento em termos de tecnologia eorganizaccedilatildeo (numa palavra aumentamos o armamento para a ldquoMachenschaftrdquo(ldquomanipulativedominationrdquordquodominaccedilatildeo manipuladorardquo) Heit H Heideggers Revolution In Sezession (44) Steigra2015 p 22107 A controveacutersia em torno de Ernst Juumlnger do homem e da sua biografia revela complexidades deenorme monta A visatildeo convencional de Juumlnger como um entusiasta nacional-socialista constitui umaspeto que merece um atento esclarecimento ndash a este respeito Hannah Arendt manifesta-se sobre oescritor alematildeo rejeitando as posturas correntes de condenaccedilatildeo simplista Os diaacuterios de guerra de ErnstJuumlnger fornecem talvez a melhor e mais honesta prova das dificuldades enfrentadas pelo indiviacuteduoquando este quer manter inquebrantaacuteveis as proacuteprias conceccedilotildees de valor e o proacuteprio conceito de verdadenuma situaccedilatildeo no qual a moralidade e a verdade natildeo existem mais Apesar da influecircncia inegaacutevel da obrainicial de Juumlnger em certos membros da intelligentsia nazi ele era um ativo oponente ao nazismo doprimeiro ao uacuteltimo dia do regime provando que o conceito de honra um tanto antiquado uma vezcorrente no corpo de oficiais prussiano era completamente suficiente para uma resistecircncia individualArendt H Besuch in Deutschland Berlin 1993 p73

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mobilizaccediloumles [hellip] Que se multiplica o nuacutemero dos milionaacuterios nos negoacutecios que as

borboletas da nossa infacircncia jaacute natildeo existem que as curvas do turismo em paiacuteses distantes e

das despesas com o armamento mostram uma significativa tendecircncia para subirhellip [hellip]

Muito para aleacutem das intenccedilotildees de Juumlnger a categoria da mobilizaccedilatildeo pode facultar pontos

de vista que natildeo satildeo compatiacuteveis com o sono dos justos no projecto da Modernidade A

foacutermula ominosa da ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo prepara-nos para o reconhecimento que continua

sendo escandaloso ateacute quase insuportaacutevel de que haacute no mundo moderno um processo

fundamental poliacutetico-cineacutetico que tende a neutralizar de facto a diferenccedila moralmente

importante entre guerra e trabalho e anula cada vez mais a antiga distinccedilatildeo entre a

situaccedilatildeo de reserva e a entrada em acccedilatildeo Eacute esse precisamente o fatiacutedico processo de

mobilizaccedilatildeo que encaminha para a ldquofrenterdquo tudo quanto seja reserva de forccedilas e impele

para a realizaccedilatildeo tudo quanto seja potencial Dos exerciacutecios duvidosos de Juumlnger - o

homem mau que seraacute citado a grande distacircncia embora nunca sem respeito pela sua

capacidade de percepccedilatildeo - no sentido do diagnostico da eacutepoca resultou por fim a

definiccedilatildeo hellip como a ldquomobilizaccedilatildeo do planeta pela figura do trabalhadorrdquo108

A combinaccedilatildeo do entusiasmo de Juumlnger relativamente agrave tecnologia enquanto

desmascaramento e as posiccedilotildees de Heidegger quanto agrave essecircncia da tecnologia na

forma de Gestell serve a Sloterdijk como guia para a interpretaccedilatildeo da

mobilizaccedilatildeo enquanto processo fundamental autoacutegeno da Modernidade leva a pocircr agrave

disposiccedilatildeo potenciais de movimento sempre crescentes para manter posiccedilotildees que

precisamente devido agraves condiccedilotildees preacutevias e agraves consequecircncias desses estados de prontidatildeo

se tornam impossiacuteveis come posiccedilotildees e impelem para o insustentaacutevel 109

Com efeito de acordo com Sloterdijk a nova ldquoteoria criacuteticardquo deve desenvolver-

se segundo a possibilidade de integraccedilatildeo de uma investigaccedilatildeo em torno dos fenoacutemenos

da mobilizaccedilatildeo concebidos como eixos definidores da modernidade tardia procurando

soluccedilotildees de pendor criacutetico para tal realidade110

108 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p47109 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p52110 bdquoAbre-se aqui para uma criacutetica alternativa da Modernidade o vasto campo dos paradoxos cineacuteticosDeste modo a criacutetica da sociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se apoacutes a derrocada do marxismoe depois do ambiacuteguo ensurdecimento das escolas de Francoforte ainda pode haver uma terceira versatildeo deteoria criacutetica de um tipo exigente entatildeo com certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica domovimento O seu criteacuterio terapecircutico consistiria na diferenciaccedilatildeo caso esta se possa conseguir comexactidatildeo entre autecircntica mobilidade e falsa mobilizaccedilatildeo A sua ofensiva exigecircncia de verdade basear-se-ia no reconhecimento de que haacute em questotildees cineacuteticas um espectro que se estende desde o fisioloacutegico ateacuteao poliacutetico Graccedilas a uma teoria criacutetica da mobilizaccedilatildeo lanccedilar-se-ia uma ponte sobre o abismo existenteentre o processo mental e o acontecer real no plano dos conceitos fundamentaishellip Se ela for possiacutevelentatildeo concretizar-se-ia desde o princiacutepio como escola preparatoacuteria da desmobilizaccedilatildeo Somente comotranquila teoria do movimento somente como silenciosa teoria da ruidosa mobilizaccedilatildeo eacute que uma criacuteticada Modernidade ainda pode ser diferente do objecto criticadohellipA questatildeo da possibilidade de uma

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Poder-se-ia com justeza afirmar que o ensaio de Ernst Juumlnger com o tiacutetulo A

Mobilizaccedilatildeo Total publicado em 1930 se afigura delineado segundo um certo sentido

de afinidade teoacuterica e conceptual com o universo de pensamento de O Trabalhador

constituindo com efeito como que uma introduccedilatildeo agraves temaacuteticas avanccediladas pelo filoacutesofo

nesta uacuteltima obra publicada dois anos depois em 1932111 Mediante a elaboraccedilatildeo do

conceito de ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo de contornos teoacutericos declaradamente beacutelicos Juumlnger

procurara perspetivar a emergecircncia de novos modos de preparaccedilatildeo e de conduccedilatildeo da

guerra cuja caracteriacutestica essencial consistiria no uso de todos os recursos disponiacuteveis

de um Estado bem como de todas as suas forccedilas civis e econoacutemicas com vista agrave

construccedilatildeo de um colossal processo de trabalho beacutelico ndash um exeacutercito de trabalho112

justamente Segundo a metafiacutesica de Juumlnger ndash se nos eacute permitido usar tal expressatildeo ndash a

designada ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo apresenta-se passiacutevel de ser realizada somente por si

mesma como que segundo uma certa autopoieses natildeo se afigurando suscetiacutevel de ser

desenvolvida por uma subjetividade que lhe seja exterior Tal como avanccedila Juumlnger a

ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo poderaacute ser concebida agrave luz do princiacutepio que criou as cidades

tecnologizadas e com as quais o ser humano se encontra profundamente

comprometido113 Segundo as posiccedilotildees expressas por Juumlnger em O Trabalhador poder-

se-aacute compreender que a mobilizaccedilatildeo total visa em verdade a dominaccedilatildeo para laacute da

guerra ndash todavia se pensarmos aqueacutem da esfera beacutelica importa pois conceber a

possibilidade de na era das massas e das maacutequinas cada indiviacuteduo se apresentar

impelido a transformar-se num trabalhador114

ldquoterceirardquo teoria criacutetica essencialmente diferente vai assim desembocar no enigma claacutessico como eacutepossiacutevel a calma na tempestade para seres do princiacutepio ao fim condenados agrave acccedilatildeoldquo Sloterdijk P AMobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p52Hartmut Rosa retomou tal posiccedilatildeo aprofundando-a bdquoTen years ago an analogous idea was advanced bythe hellipGerman philosopher Peter Sloterdijk who attempted to develop a new critical theory of ldquopoliticalkineticsrdquo conceived as a third version of critical theory after Marx and the Frankfurt School InSloterdijkrsquos view both earlier versions of critical theory ultimately failed because they misunderstood anduncritically supported the kinetic forces of modernity which set everything in motion until theyultimately achieve a state of ldquototal mobilizationrdquo (ldquototale Mobilmachungrdquo) a warlike state whereeverything is determined by the logic of speed Unfortunately Sloterdijkrsquos own approach was overlyspeculative unsystematic hellip Nonetheless we believe that something useful can be retrieved from hisotherwise highly problematic reformulation of critical theory In our view temporal structures provide aspecial point of access to the necessary connection between systemic macro- and individual microlevelperspectives on social experience There is no question that structural social transformations (for examplethe emergence of industrial capitalism) yield corresponding changes in individual self-understandings andorientations towards actionrdquo Rosa HScheuerman W High-Speed Society Social Acceleration Powerand Modernity Pennsylvania University Park 2009 p16111 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p97112 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p125113 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128114 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128

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Os sinais que traduzem tal realidade poderatildeo ser assinalados historicamente nos

uacuteltimos anos da Primeira Guerra Mundial assim os perspetiva Juumlnger de acordo com o

filoacutesofo a derrota dos alematildees deveraacute ser compreendida mediante a invocaccedilatildeo da falta

de adaptaccedilatildeo do povo alematildeo ao espiacuterito de progresso115 Como conceber tal posiccedilatildeo

de Juumlnger Com efeito segundo o filoacutesofo o progresso constitui a possibilidade de

configuraccedilatildeo de um ajuste ou de uma equalizaccedilatildeo das condiccedilotildees de vida dos povos

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave emergecircncia de uma ldquomobilizaccedilatildeo superiorrdquo dos recursos e das

forccedilas o que conduz por sua vez agrave desejada destruiccedilatildeo das caracteriacutesticas e das

tradiccedilotildees culturais e ao consequente desgaste da ldquomaacutescara humanitaacuteriardquo Neste sentido

tal como Juumlnger subtilmente o analisa o espiacuterito humanista do progresso como que

provoca paradoxalmente um inusitado novo curso do mundo natildeo antevisto pelos seus

preconizadores nas suas intenccedilotildees o niilismo completo o resultado inopinado do

progresso tal como Juumlnger o avalia constitui uma das temaacuteticas filosoacuteficas mais

relevantes de O Trabalhador ndash pois de acordo com o filoacutesofo o desejo do alcance de

um ldquoponto zero civilizacionalrdquo e num sentido dialeacutetico a inversatildeo de tal movimento na

sua direccedilatildeo oposta apresenta-se como a uacutenica possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a emergecircncia de uma nova realidade a realidade da ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo

A possibilidade de redenccedilatildeo ou de salvaccedilatildeo do niilismo a que o progresso

burguecircs no conduzira afigura-se aos olhos de Juumlnger como decorrecircncia de um poder

que se revela como mobilizaccedilatildeo total Importaria a este respeito ter presente que tal

conceito de Juumlnger o conceito de mobilizaccedilatildeo total se apresenta como uma expressatildeo

que representa uma realidade mais abrangente do que a sua envolvecircncia beacutelica ou

militar parece fazer crer Trata-se em verdade de um conceito que traduz um elemento

essencialmente utoacutepico e fantaacutestico da ideia de civilizaccedilatildeo elaborada por Juumlnger

Conquanto a origem de tal conceito resida na avaliaccedilatildeo teoacuterica da experiecircncia da guerra

que culmina com o ensaio que integra o proacuteprio conceito no seu tiacutetulo A Mobilizaccedilatildeo

Total apresentar-se teoricamente insuficiente ou porventura conceptualmente

equiacutevoco definir a noccedilatildeo em questatildeo mediante a consideraccedilatildeo de modos de incremento

intensificaccedilatildeo ou expansatildeo radical de tal realidade representada O conceito de

mobilizaccedilatildeo total constitui-se como um dos elementos centrais do pensamento de

Juumlnger ndash e sua envolvecircncia filosoacutefica na qual se integra uma certa conceccedilatildeo relativa agrave

sua determinaccedilatildeo fatiacutedica como que historicamente necessaacuteria e repleta de sentido

115 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 pp129 136

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metafiacutesico natildeo deveraacute ser desprezada nem depreciada Tal como a define Juumlnger a

mobilizaccedilatildeo total eacute

muito menos realizada do que ela proacutepria realiza se por ela proacutepria eacute na guerra e na paz a

expressatildeo das misteriosas e convincentes exigecircncias a que esta vida na era das massas e

das maacutequinas nos submete116

Curiosamente e tal natildeo deixa de ser surpreendente no seu ensaio A Mobilizaccedilatildeo

Total Juumlnger parece minimizar a temaacutetica da primazia da tecnologia no acircmbito da sua

definiccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo total embora tal conceccedilatildeo se afigure central no contexto da

sua utopia tecnoloacutegica ndash como compreender tal posiccedilatildeo Poder-se-ia a este propoacutesito

evocar uma certa postura proacutepria de Juumlnger que natildeo raro se deseja afirmar pelos seus

contornos eminentemente metafiacutesicos como que corrigindo a impressatildeo de

materialismo frio Atente-se sobre a seguinte citaccedilatildeo

O lado teacutecnico da Mobilizaccedilatildeo Total natildeo eacute no entanto o decisivo Pelo contraacuterio a sua

condiccedilatildeo preacutevia como a condiccedilatildeo preacutevia de qualquer tecnologia eacute mais profunda

queremos abordaacute-la aqui como a prontidatildeo para a mobilizaccedilatildeo117

Natildeo obstante o seu caraacutecter metafisicamente natildeo necessaacuterio o desenvolvimento

teacutecnico natildeo eacute definido por Juumlnger como arbitraacuterio com efeito o filoacutesofo analisa a sua

proacutepria geraccedilatildeo na sua eufoacuterica disposiccedilatildeo para a submissatildeo exultante aos ditames

daquilo que eacute tecnicamente possiacutevel

A simultaneidade de certos meios com uma certa forma da humanidade natildeo depende do

acaso mas eacute enquadrada no quadro de uma necessidade superior A unidade do homem

com os seus meios eacute portanto a expressatildeo de uma unidade de tipo superior118

A instacircncia metafiacutesica que supostamente deveria promover tal unidade

perspetivada por Juumlnger a unidade do homem com os seus meios eacute avanccedilada pelo

filoacutesofo mediante a invocaccedilatildeo do conceito de espiacuterito do mundo (Weltgeist) Assim o

apresenta Juumlnger ldquoEacute um grande e terriacutevel espetaacuteculo ver os movimentos das massas

cada vez mais uniformemente formadas agraves quais o espiacuterito do mundo coloca as suas

armadilhasrdquo119

116 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128117 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128118 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p240119 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p141

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Interessantemente tal quadro filosoacutefico traccedilado por Juumlnger parece desenvolver-

se segundo uma afinidade conceptual com o pensamento de Hegel em especial com a

sua conceccedilatildeo de espiacuterito do mundo A consideraccedilatildeo da introduccedilatildeo de certas referecircncias

histoacuterico-intelectuais natildeo nos permitem concluir uma influecircncia direta do sistema

hegeliano no pensamento de Juumlnger bem entendido em todo o caso poder-se-ia evocar

a existecircncia de relevantes analogias entre a importacircncia central do princiacutepio do trabalho

em Juumlnger e a ideia de Hegel relativa ao ldquoespiacuterito do mundo que se realiza no trabalhordquo

ndash ambas as conceccedilotildees parecem traduzir com uma consonacircncia comum o quadro

civilizacional da modernidade A este respeito o filoacutesofo Peter Koslowski afirma no

seu livro sobre o pensamento de Ernst Juumlnger com o tiacutetulo O Mito da Modernidade que

os sistemas totalitaacuterios de pendor comunista e fascista do seacuteculo XX continham nos

seus ideaacuterios entre outras coisas elementos de um exagero patoloacutegico do caraacuteter de

trabalho da modernidade O conceito de trabalho de Hegel120 bem como a sua

conceccedilatildeo de espiacuterito do mundo constituem elementos definidores da modernidade e

todos os seus erros podem ser rastreados ateacute ele

Apenas Hegel [] transferiu a ideia de que o sujeito se constitui unicamente atraveacutes do

120 No que respeita agraves relaccedilotildees entre as posiccedilotildees de Hegel e de Juumlnger sobre o conceito de trabalhoimportaria tomar em atenccedilatildeo as seguintes elucidaccedilotildees o lsquotrabalhadorrsquo de Juumlnger aponta com efeito parauma universalidade enquanto Gestalt provando que a categoria econoacutemica marxista do lsquotrabalhadorenquanto proletariadorsquo eacute insuficiente e e natildeo corresponde agrave ubiquidade do lsquocaraacutecter trabalhistarsquo namodernidade A 24 de setembro de 1978 numa carta a Henri Plard Juumlnger escreve ldquoNa altura natildeoconseguia prever o risco que estava a correr com a conceccedilatildeo Marx perspetiva o sistema do trabalhadormas natildeo o compreende totalmente Algo semelhante poderia ser determinado sobre a sua relaccedilatildeo comHegel Suspeito que Hegel estaria mais de acordo com a Gestalt do trabalhador do que com a reduccedilatildeomarxista de pendor econoacutemico A Gestalt representa o lsquoespiacuterito do mundorsquo para uma determinada eacutepocaincluindo no que diz respeito agrave economia O problema baacutesico eacute o poder este lsquodetermina o detalhersquordquo(Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 390) Tal como afirma Juumlnger o trabalhadorpoderia assim ser interpretado como a Gestalt que o espiacuterito do mundo assume no auge damodernidade e as interpretaccedilotildees hegeliano-idealista e marxista-materialista da figura do trabalhador satildeoapenas dois lados do mesmo fenoacutemeno Porque Por detraacutes da representaccedilatildeo do espiacuterito do mundo estaacute amateacuteria natildeo a ideia A teoria natildeo determina como Hegel frequentemente e decididamente enfatiza arealidade mas eacute a realidade que daacute origem a ideias a partir de si mesma Inclusivamente a invenccedilatildeoteacutecnica segue a sua compulsatildeo Natildeo eacute nem ficcional nem acidental em uacuteltima instacircncia Tal correspondea uma compreensatildeo da mateacuteria que nos conduz de regresso a Platatildeo ndash natildeo eacute materialista mas material(Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 390) Segundo Juumlnger a interpretaccedilatildeoeconoacutemica do trabalhador implica apenas um segmento da mobilizaccedilatildeo total da modernidade O facto deas avaliaccedilotildees econoacutemicas poderem ser alargadas em grande medida [hellip] pode ser explicado pelo facto deque o trabalho tambeacutem pode ser interpretado economicamente mas natildeo pelo facto de que o trabalho eacutesinoacutenimo de economia Pelo contraacuterio o trabalho eleva-se acima de tudo o que eacute econoacutemicordquo (Juumlnger ESaumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 94) Atraveacutes da mobilizaccedilatildeo na modernidade o ser humanotorna-se segundo Juumlnger um trabalhador total ideal para quem o mundo eacute apenas o material daapropriaccedilatildeo teacutecnica e do controlo De acordo com Juumlnger tal mobilizaccedilatildeo possui o seu iniacutecio na teoria deHegel sobre o espiacuterito do mundo a entidade que dentro da atividade do espiacuterito subjetivo (do serhumano) impulsiona o processo da histoacuteria mundial Do mesmo modo Hegel natildeo reconhece qualquerdiferenccedila real entre o desenvolvimento do trabalho humano e o desenvolvimento do mundo o mundoapresenta-se completamente entregue agraves matildeos do homem e do seu trabalho

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trabalho [] para Deus e assim deu uma consagraccedilatildeo quase religiosa ao caraacuteter de trabalho

do mundo ] O eu moderno sobrecarrega-se a si mesmo atraveacutes da sobrecarga de

trabalho que para o trabalhador da modernidade torna-se o uacutenico princiacutepio constitutivo da

sua subjetividade de facto o uacutenico princiacutepio para a criaccedilatildeo de sentido121

Tal como pertinentemente avalia Koslowski o passo filosoacutefico de Juumlnger

constitui-se como uma decorrecircncia concebida como culminante das posiccedilotildees de Hegel

acerca do trabalho como elemento definidor da subjetividade e do mundo modernos

atraveacutes do ensaio O Trabalhador Juumlnger ndash como que sem o entrever ndash contribuiacutea para a

possibilidade de revelaccedilatildeo de tais traccedilos patoloacutegicos do pensamento progressista e da

eacutetica do trabalho que caracterizam a modernidade promovendo mediante o culto do

trabalho o exacerbamento radical envolto num tom celebrativo de tal princiacutepio

constitutivo dos tempos modernos

No contexto da mobilizaccedilatildeo industrial moderna configurada agrave luz do progresso

teacutecnico anuncia-se uma caracteriacutestica relevantemente definidora do novo ldquotipordquo de

trabalhador trata-se da autoconsciecircncia (ou do reconhecimento) da sua capacidade de

domiacutenio das possibilidades que o raacutepido desenvolvimento dos meios teacutecnicos produz no

mundo e no ser humano A legitimaccedilatildeo da pretensatildeo do trabalhador a tal poder de

domiacutenio decorre do facto de aquele o trabalhador se afigurar de modo consciente

capaz de enfrentar os desafios da tecnologia de um modo soberano ndash pois

contrariamente ao bourgeois que manteacutem uma relaccedilatildeo secundaacuteria ou derivada com os

meios teacutecnicos o trabalhador desenvolve relativamente a estes uma ldquorelaccedilatildeo

substancialrdquo Esta eacute pois uma das linhas de pensamento mais estruturantes de O

Trabalhador

Na histoacuteria das descobertas geograacuteficas e cosmograacuteficas naquelas invenccedilotildees cujo sentido

mais secreto se revela uma vontade irada de omnipotecircncia omnipresenccedila e omnisciecircncia

[] o espiacuterito por assim dizer correu para aleacutem de si mesmo para acumular um material

que aguarda ordem e penetraccedilatildeo de poder Esse caos de factos meios de poder e

possibilidades de movimento surgira pronto para ser usado como uma ferramenta para

governar em grande escala122

121 Koslowski P Der Mythos der Moderne Die dichterische Philosophie Ernst Juumlngers Muumlnchen1991 p211122 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p71

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Tal como Juumlnger o analisa no contexto do seacuteculo XX o domiacutenio dos meios

teacutecnicos revela-se crescentemente como uma tarefa que a burguesia parece enfrentar

com a impotecircncia do aprendiz de feiticeiro do poema de Goethe A utilizaccedilatildeo parcial

orientada para o lucro dos meios teacutecnicos pela ordem econoacutemica burguesa constitui

apenas uma fraccedilatildeo do seu potencial desenvolvendo como que uma dinacircmica ou um

movimento sem direccedilatildeo ou orientaccedilatildeo determinaacuteveis que soacute poderatildeo revelar-se

destrutivos Por conseguinte o domiacutenio da tecnologia pelo trabalhador tal como

possibilitado no acircmbito da mobilizaccedilatildeo total eacute afirma-o Juumlnger da maior importacircncia

para o mundo123 Tal como avalia Juumlnger somente o trabalhador possui a soberania do

controlo do vasto arsenal de meios teacutecnico-industriais que no acircmbito do seacuteculo XX

adquiriram a forma de agentes destruidores totais ndash pois somente ele o trabalhador

manteacutem uma relaccedilatildeo direta com as forccedilas elementares e vitais apresentando-se a si

proacuteprio como o protagonista da mobilizaccedilatildeo teacutecnica Repare-se a este propoacutesito que

de acordo com o filoacutesofo a emancipaccedilatildeo moderna relativamente agrave esfera do natural e do

elementar tal como empreendida pelas elites burguesas promovera uma distanciaccedilatildeo da

vida (o que potenciara a equiacutevoca afirmaccedilatildeo de que a direccedilatildeo do progresso permitiria

um contiacutenuo e crescente desenvolvimento da prosperidade e da seguranccedila fiacutesica e

material) e em uacuteltima instacircncia a ausecircncia de contacto com as designadas ldquoforccedilas

elementaresrdquo configurando um estilo de vida burguecircs que se desenvolve segundo

relaccedilotildees ldquoderivadasrdquo124 com a realidade Inclusivamente no que concerne ao ideal

romacircntico da natureza encarnado num enquadramento burguecircs que desprezaria com

hostilidade o progresso Juumlnger vislumbra natildeo mais do que a expressatildeo de decadecircncia

de uma vida enfraquecida no seu acircmago revelando neste ponto a influecircncia de

Nietzsche

A nossa tarefa natildeo eacute ser as contrapartes mas os jogadores que tudo arriscam [] A

extensatildeo de um caminho que parecia levar ao conforto e agrave seguranccedila conduz agora agrave zona

do perigoso Neste sentido o trabalhador aparece aleacutem do recorte que o progresso lhe

mostrou como o portador da substacircncia baacutesica heroica que determina uma nova vida125

No seguimento de tais posiccedilotildees Juumlnger formula a sua perspetivaccedilatildeo decisiva o

ceacutelere progresso teacutecnico que supostamente deveria permitir agrave humanidade tornar-se

independente da natureza e dominar economicamente os seus recursos promovera uma

123 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p79124 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p46125 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p46

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aceleraccedilatildeo um incremento e uma dinacircmica teacutecnicos inesperados que tornam por sua

vez as forccedilas libertadas incontrolaacuteveis Segundo tal quadro Juumlnger delineia a conceccedilatildeo

de um sentido metafiacutesico que determinara o ser humano alienado no acircmbito no processo

de trabalho moderno como que propondo uma criacutetica ou uma soluccedilatildeo para as suas

visotildees assaz ambivalentes e oscilantes entre o lamento condenatoacuterio e a afirmaccedilatildeo

exultante da tecnologia ldquoA maacutequina roubou-nos muito Tirou o tudo de noacutes e fez de

noacutes especialistas [] Mas temos de reconhecer isto Os movimentos inevitaacuteveis natildeo

podem ser paradosrdquo126

Perante o reconhecimento da impossibilidade de deter o curso do

desenvolvimento tecnoloacutegico Juumlnger proclama a afirmaccedilatildeo da tecnologia

Na grande cidade entre carros e letreiros de neacuteon nas reuniotildees poliacuteticas de massa na

velocidade motora do trabalho e do prazer no meio da azaacutefama da Babilocircnia moderna

seria necessaacuterio parar por um momento como uma pessoa de outro mundo com o espanto

profundo do qual as crianccedilas satildeo capazes e dizer Tudo isto tem o seu significado um

significado profundo que tambeacutem se realiza em mim127

No mesmo tom de proclamaccedilatildeo metafiacutesica Juumlnger procura desenvolver a

afirmaccedilatildeo da tecnologia como que denunciado no seu proacuteprio pensamento uma

inspiraccedilatildeo futurista

E aqui eu senti novamente o que se sente atraacutes do motor do aviatildeo quando o punho empurra

o acelerador para a frente e o terriacutevel rugido da forccedila que quer escapar da terra se eleva ou

quando se corre pelas paisagens cicloacutepicas da regiatildeo do Ruhr num comboio Expresso agrave

noite enquanto as chamas brilhantes dos altos-fornos rasgam a escuridatildeo e no meio do

movimento furioso nenhum aacutetomo parece possiacutevel agrave mente que natildeo estaacute em trabalho128

Neste ponto do pensamento de Juumlnger a tecnologia parece constituir-se como o

siacutembolo do espiacuterito da eacutepoca ndash que por sua vez eacute capturado por um frio olhar que

penetra ateacute aos aacutetomos ldquodo trabalhordquo que seguem uma necessidade maior A partir de

tais conceccedilotildees Juumlnger traccedila uma perspetivaccedilatildeo relativa agraves condiccedilotildees preacutevias para a

designada ldquoGestalt do trabalhadorrdquo Com efeito em O Trabalhador o pensamento de

Juumlnger assume contornos eminentemente metafiacutesicos ndash eacute pois agrave luz de tal envolvecircncia

126 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p160127 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p301128 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p154

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que se deseja metafiacutesica que o conceito de Gestalt desempenha um papel determinante

Tenha-se presente a este respeito a relevacircncia intelectual de tal conceito no contexto de

iniacutecios do seacuteculo XX no acircmbito da Teoria Gestalt fundada por Christian von Ehrenfels

em 1889 a noccedilatildeo de Gestalt concebida segundo as possibilidades de percetibilidade

visual de formas externas apresenta-se transferida para o domiacutenio estrutural de outras

entidades sensoriais psicoloacutegicas ou inclusivamente espirituais Na deacutecada de 1920 o

conceito de Gestalt apresenta-se inserido e desenvolvido no acircmbito da filosofia de vida

(Lebensphilosophie) de Ludwig Klages e das ideias histoacuterico-filosoacuteficas de Theodor

Lessing129 Natildeo obstante os desenvolvimentos mais decisivos para a compreensatildeo de tal

conceito a partir do ponto de vista do pensamento de Juumlnger satildeo as posiccedilotildees elaboradas

por Leibniz Oswald Spengler e Hans Driesch Como definir e compreender tal conceito

a partir de Juumlnger Primeiramente importaria ter presente uma primeira relaccedilatildeo

porventura demasiado pueril mas nem por isso menos ilustrativa descrita por Juumlnge a

relaccedilatildeo entre carimbo (Stempel) ndash a partir do qual o filoacutesofo apresentaraacute o seu

conceito de Gestalt que encarna a categoria da perenidade ndash e estampagem (Praumlgung)

ndash concebida como a atualizaccedilatildeo concreta e temporal130 Leiamos Juumlnger a este respeito

Na Gestalt repousa o todo que compreende mais do que a soma das suas partes e que era

inalcanccedilaacutevel numa era anatoacutemica Eacute o sinal de um tempo que se voltaraacute a ver sentir e agir

sob o feiticcedilo das Gestalten [] Mas da maior importacircncia eacute o facto de que a Gestalt natildeo

estaacute sujeita aos elementos do fogo e da terra e que portanto o homem como Gestalt

pertence agrave eternidade131

O conceito de Gestalt constitui-se assim como um princiacutepio que tal como um

carimbo metafiacutesicordquo concede ao homem concreto ndash bem como a toda uma eacutepoca ndash a

sua forma (interior e exterior) tal forma natildeo estaacute sujeita agrave temporalidade mas repousa

eternamente em si mesma permanecendo para aleacutem do tempo ndash e como tal natildeo se

apresenta suscetiacutevel de ser descoberta mediante a metodologia cientiacutefica A

proximidade intelectual deste conceito com o quadro dualista ideia-aparecircncia tem

conduzido recorrentemente agrave consideraccedilatildeo do pensamento de Juumlnger como um

pensamento de pendor platoacutenico132 Com efeito o proacuteprio Ernst Juumlnger chamara a

129 Bohrer K-H Die Aumlsthetik des Schreckens Die pessimistische Romantik und Ernst JuumlngersFruumlhwerk MuumlnchenWien 1978 p476 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p94130 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p 37131 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p37132 Blumenberg H Der Mann vom Mond Uumlber Ernst Juumlnger Frankfurt a M 2007 p25 Meyer MErnst Juumlnger MuumlnchenWien 1990 p114 Trawny P Die Autoritaumlt des Zeugen Ernst Juumlngerspolitisches Werk Berlin 2009 p25

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atenccedilatildeo para a semelhanccedila da sua conceccedilatildeo de Gestalt com o conceito de Goethe de

planta primordial (Urplanze)133 Como tal enfatizando um certo sentido de

totalidade da natureza Juumlnger professara resolutamente o monismo134

Recorde-se que de acordo com a morfologia de Goethe as formas de

organismos existentes consistem em variaccedilotildees de um fenoacutemeno primordial

(Urphaumlnomen) do respetivo grupo de organismos que pode ser abstraiacutedo e concebido

como realidade perene das formas em mudanccedila Spengler por sua vez aplicara tal

conceito agrave histoacuteria perspetivando uma forma primordial (Urform) metafiacutesica de

cultura que se traduz como o ideal formal subjacente a todas as culturas135 Por sua vez

Juumlnger recorrera ao conceito de Gestalt para representar o surgimento de um novo

princiacutepio que governaria uma nova eacutepoca histoacuterica136 No ensaio Typus Name Gestalt

de 1963 Juumlnger ilustra o seu conceito de Gestalt atraveacutes de um modelo orgacircnico se

uma flor determinada (o aspeto concreto) for identificada com base nas suas

caracteriacutesticas como um liacuterio tal flor determinada pertenceraacute a um certo tipo Este

tipo apresenta-se determinado e produzido pela Gestalt ou seja a planta primordial

O conceito de Gestalt consiste no natildeo especificado137

As ideacuteias de Hans Driesch professor de Juumlnger poderatildeo ser igualmente

convocadas para o delineamento de tal modelo Segundo a bio-teoria de Driesch no

acircmbito da qual o todo eacute mais do que soma das suas partes tipo e totalidade

afiguram-se como palavras-chave de acordo com as posiccedilotildees de Driesch acerca do fator

de controlo da vida os seres vivos possuem um desenvolvimento autorregulador a que

o professor de Juumlnger designa de entelechie seguindo Aristoacuteteles Tendo presente que

este princiacutepio se revela eficaz em todos os organismos importaria compreendecirc-lo como

elo de ligaccedilatildeo dos seres vivos enquanto totalidade Com efeito Driesch estende tais

conceccedilotildees para um acircmbito metafiacutesico concedendo agrave forccedila vital entelequial uma

existecircncia transcendente natildeo submetida ao espaccedilo-tempo138 O proacuteprio Juumlnger refere-se

133 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p390 Consultar Gnoli A VolpiF Ernst Juumlnger Wien 2002 p42134 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p 242135Felken D Oswald Spengler Muumlnchen 1988 p42136 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p13137 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p138138 Loumlffler T Ernst Juumlngers organologische Verwindung der Technik auf dem Hintergrund derBiotheorie seines akademischen Lehrers Hans Driesch Em Titan Technik Ernst und Friedrich GeorgJuumlnger uumlber das technische Zeitalter Wuumlrzburg 2000 p 57

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igualmente agrave afinidade mantida entre o seu conceito de Gestalt e a monadologia de

Leibniz139 fazendo-nos recordar que tambeacutem Leibniz se debruccedilara sobre a ideia de

entelechie A partir da convocaccedilatildeo de diversas influecircncias nem sempre representadas

de um modo filosoficamente rigoroso ou conceptualmente claro Juumlnger crecirc encontrar-se

na posse de um elemento metafiacutesico que lhe permite garantir a unidade na

multiplicidade dos fenoacutemenos e por conseguinte estabelecer uma nova realidade140

com base em analogias

Poder-se-ia afirmar que no acircmbito de O Trabalhador Juumlnger parece

desenvolver ideias previamente elaboradas segundo uma tonalidade teoacuterica que poderaacute

ser descrita como uma fusatildeo de diagnoacutestico prognoacutestico e poleacutemica nesta obra o modo

de determinaccedilatildeo da Gestalt do trabalhador consiste em tornar-se reconheciacutevel

produzindo assim uma nova realidade neste quadro assim apreciado a tecnologia

enquanto siacutembolo desempenha um papel decisivo Ao longo da sua argumentaccedilatildeo

Juumlnger revela-se convicto de que a substituiccedilatildeo da burguesia pela classe trabalhadora se

apresenta como um processo inevitaacutevel trata-se pois de um ldquofactordquo ndash que natildeo merece

qualquer explicitaccedilatildeo por parte de Juumlnger ndash de que o trabalhador se encontra em

contacto com os poderes elementares necessitando de compreender-se a si mesmo

enquanto tal reconhecendo a superioridade metafiacutesica das suas potencialidades de

poder sobre a burguesia No seguimento de tais posiccedilotildees Juumlnger sustenta uma definiccedilatildeo

do conceito de trabalhador natildeo se trata de todo de proletariado mas sim de uma

unidade metafiacutesica Assim definido eacute tarefa do trabalhador cumprir-se enquanto tal

devendo primeiramente desenvolver o reconhecimento de si como expressatildeo de uma

Gestalt141

A visatildeo de Gestalten eacute um ato revolucionaacuterio pois reconhece um ser na plenitude total e

uniforme da vida Eacute a grande superioridade deste processo que se realiza para aleacutem das

avaliaccedilotildees morais e esteacuteticas bem como cientiacuteficas142

Tal como aponta Juumlnger em contraste com a visatildeo racional-positivista do

mundo que se afigura traccedilada segundo fragmentos diacutespares o trabalhador que se

alimenta da dimensatildeo profunda do ser apresenta-se capaz de compreender os siacutembolos

139 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p390140 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p13141 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p45142 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p46

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da unidade integral da vida O alinhamento do homem e da maacutequina acelerada sugerido

neste contexto pode assim ser justificado num mundo onde a velha distinccedilatildeo entre

forccedilas mecacircnicas e orgacircnicas falha143 o trabalhador enquanto entidade funcional

funde-se com os seus instrumentos De modo a traduzir tal fusatildeo Juumlnger elaborara o

termo construccedilatildeo orgacircnica tal processo por sua vez tornar-se-ia visiacutevel agrave luz da

inserccedilatildeo do ser humano numa rede num sistema abrangente de interligaccedilotildees com os

sistemas de transporte e com o sistema monetaacuterio bem como com os sistemas de meios

de comunicaccedilatildeo de massas e os meios de comunicaccedilatildeo144

Segundo as observaccedilotildees de Juumlnger tal fusatildeo entre o trabalhador e a tecnologia

poderaacute ser perspetivada agrave luz de um profundo processo de uniformizaccedilatildeo e de

massificaccedilatildeo do ser humano a fisionomia de cada individuo assume os contornos de

uma maacutescara que todos passam a usar a indumentaacuteria por sua vez assemelha-se a um

uniforme de trabalho a perda da individualidade ou da subjetividade individual torna-se

patente nos novos ideaacuterios das artes plaacutesticas do cinema ou da fotografia ndash evoque-se

pois o futurismo Inclusivamente na nova induacutestria emergente a publicidade torna-se

possiacutevel entrever a dissoluccedilatildeo da individualidade humana mediante a uniformizaccedilatildeo do

uso dos mesmos bens por todos os sujeitos atraveacutes do poder sugestivo e

profundamente influente dos anuacutencios publicitaacuterios elaborados por poucas corporaccedilotildees

Em O Trabalhador Juumlnger faz preceder as suas principais posiccedilotildees de uma

reflexatildeo fundamental acerca das relaccedilotildees entre o ser humano e a tecnologia advertindo

que o primeiro natildeo se afigura relativamente agrave segunda nem como seu criador nem

como sua viacutetima145 Com efeito poder-se-ia asseverar que de acordo com a visatildeo de

Juumlnger a dimensatildeo da teacutecnica ou da tecnologia natildeo se apresenta como elemento

definidor ou constitutivo do ser humano ou da relaccedilatildeo deste com o mundo Natildeo

obstante no contexto da modernidade ndash e em especial a partir do momento histoacuterico

que envolve a Primeira Guera Mundial ndash importaria conceber a tecnologia como

elemento determinante da emergecircncia e da configuraccedilatildeo de novas condiccedilotildees que

143 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p104144 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p124145 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160

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orientam a accedilatildeo humana como que criando uma nova realidade146 e interessantemente

uma nova linguagem vaacutelida no espaccedilo do trabalho que deve ser dominada

Esta linguagem natildeo eacute menos importante natildeo menos profunda do que qualquer outra pois

possui natildeo soacute gramaacutetica mas tambeacutem metafiacutesica Neste contexto a maacutequina desempenha

um papel tatildeo secundaacuterio como o do ser humano eacute apenas um dos oacutergatildeos atraveacutes dos quais

esta linguagem eacute falada147

Na sua qualidade de linguagem a tecnologia apresenta-se compreensiacutevel por

todos ela eacute pois universal ndash e como prova de tal realidade Juumlnger refere a sua raacutepida

difusatildeo mundial Aquele que se relaciona com a tecnologia aquele que fala a sua

linguagem adapta-se agraves possibilidades de um poder que se esconde por detraacutes dos

siacutembolos teacutecnicos148 Estes os siacutembolos teacutecnicos afiguram-se passiacuteveis de introduzir

alteraccedilotildees nos antigos siacutembolos tradicionais promovendo inclusivamente a destruiccedilatildeo

da velha lei da vida Curiosamente tal como Juumlnger a perspetiva a tecnologia revela-se

em uacuteltima instacircncia anticristatilde149 e correlativamente niilista a tecnologia promove a

anarquia anunciando-se como um meio de revoluccedilatildeo total150 Natildeo obstante

importaria elucidar tal como Juumlnger o faz que o poder destrutivo da tecnologia se

afigura passiacutevel de ser consumado apenas pela burguesia ndash natildeo pelo trabalhador

Repara-se que segundo Juumlnger apenas o representante da ldquoGestalt do trabalhadorrdquo o

trabalhador enquanto ldquotipordquo manteacutem uma relaccedilatildeo elementar com a tecnologia151

sabendo-se a si mesmo capaz de compreender a combinaccedilatildeo entre a vontade humana e

o poder tecnoloacutegico tendo em vista a mobilizaccedilatildeo total Homem e maacutequina ndash

trabalhador e tecnologia ndash constituem uma construccedilatildeo orgacircnica A tecnologia eacute a forma

pela qual a Gestalt do trabalhador mobiliza o mundo152

A este respeito o trabalhador desenvolve toda uma seacuterie de mutaccedilotildees de diversa

ordem provocada pela tecnologia153 O caraacutecter da tecnologia como siacutembolo

146 Figal G Der metaphysische Charakter der Moderne Ernst Juumlngers Schrift Uumlber die Linie (1950)und Martin Heideggers Kritik Uumlber bdquoDie Linieldquo (1955) em Ernst Juumlnger im 20 Jahrhundert Muumlller H(Ed) Muumlnchen 1995 P 186147 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160148 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp169172149 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p164150 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p173151 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160152 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160153 Fiorentino F Mythographie einer zersplitterten Welt Ernst Juumlngers konservativ- revolutionaumlreAntwort auf die Moderne Em Prognosen Figal G e Knapp G (Ed) Tuumlbingen 2001 P 69

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destrutivo introduzida por Juumlnger em A Mobilizaccedilatildeo Total e repetida vaacuterias vezes e

gradualmente descrita em O Trabalhador aponta para uma preocupaccedilatildeo central do

autor natildeo restaratildeo duacutevidas de que a tecnologia eacute por sua proacutepria natureza um puro

meio de poder ausente de qualquer relaccedilatildeo com os ideais humanitaacuterios de progresso

seguranccedila fiacutesica ou material e inclusivamente de conforto A tecnologia permite com

efeito a satisfaccedilatildeo das exigecircncias do trabalhador especialmente no acircmbito da fase da

sua perfeiccedilatildeo mas o seu propoacutesito determinante consiste na possibilidade de alcance de

um estado de domiacutenio total O seu uacutenico escopo eacute a preparaccedilatildeo da unidade imperial154

Uma vez atingido este objetivo o desenvolvimento da teacutecnica perde o seu sentido

De modo a ilustrar as vantagens do impeacuterio prometido Juumlnger delineia o quadro

de um presente caoacutetico sujeito a mudanccedilas constantes no contexto do qual a guerra se

apresenta travada em tempo de paz devido a aspiraccedilotildees de pendor econoacutemico Tal

como Juumlnger o avalia a concorrecircncia excessivamente incrementada conduz agrave

destruiccedilatildeo de vastas somas de dinheiro que tecircm de ser gastas a fim de criar necessidades

natildeo naturais no consumidor e tornaacute-lo por seu turno dependente da conveniecircncia A

matildeo-de-obra empregue na produccedilatildeo de bens deve portanto ser constantemente

incrementada155 No entanto no acircmbito de O Trabalhador a economia estaacute sujeita a um

controlo rigoroso e a uma constacircncia de meios

Somente a constacircncia incondicional de meios natildeo importa como esses meios satildeo sempre

constituiacutedos eacute capaz de reduzir a competiccedilatildeo excessiva e imprevisiacutevel a uma competiccedilatildeo

como pode ser observada dentro dos reinos da natureza ou dentro das condiccedilotildees sociais

que se tornaram histoacutericas156

A constacircncia dos meios segundo Juumlnger soacute se afigura possiacutevel num espaccedilo

estaacutetico altamente ordenado no qual a mobilizaccedilatildeo total jaacute se encontra realizada Este

espaccedilo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da perfeiccedilatildeo da tecnologia condiccedilatildeo da sua possibilidade

de domiacutenio total157 Tal quadro revela justamente a visatildeo fulcral de Juumlnger acerca da

tecnologia esta representa uma espeacutecie de veiacuteculo metafiacutesico que deveria conduzir no

futuro a humanidade de regresso a uma era dourada Natildeo obstante de acordo com as

posiccedilotildees de Juumlnger a tecnologia encontra-se ainda numa fase de transiccedilatildeo e o uso dos

154 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp178 180155 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p184156 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p190157 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp182 190 194

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meios teacutecnicos de energia ainda possui um caraacutecter de oficina158 Revela-se neste

sentido imperioso ndash e tal consiste no apelo de Juumlnger dirigido a uma nova elite jaacute

presente em O Coraccedilatildeo Aventuroso (Das abenteuerliche Herz) de 1929 ndash ldquoincrementar

a forccedila e a velocidade dos processos Embora Juumlnger descreva a tecnologia a partir de

noccedilotildees como ferramenta meios e instrumentos o filoacutesofo natildeo a considera (de

acordo com uma definiccedilatildeo tradicional) como um meio neutro159 De acordo com Juumlnger

existem certas ordens ou comandos que se encontram entelechialmente incluiacutedos na

tecnologia possuindo uma autonomia proacutepria o que a dota por sua vez de um caraacuteter

demoniacuteaco Tal autonomiadaemonia pode ser concebida do ponto de vista do ser

humano como fator promotor de alienaccedilatildeo Em resposta a tal possibilidade Juumlnger

propotildee-se desenvolver contra-estrateacutegias segundo uma postura que poderaacute assemelhar-

se a determinadas posiccedilotildees marxistas ou tecnocratas Juumlnger esforccedila-se por desenvolver

uma re-instrumentalizaccedilatildeo da tecnologia

O modo como se processa a configuraccedilatildeo e a realizaccedilatildeo do Estado do

ldquotrabalhadorrdquo num sentido eminentemente poliacutetico permanece uma temaacutetica equiacutevoca

e pouco clara no interior do pensamento de Juumlnger Natildeo obstante a retoacuterica marcial

proacutepria de Juumlnger permite-nos compreender que a determinaccedilatildeo de tal estado natildeo

poderaacute concretizar-se sem o recurso agrave violecircncia Repare-se partindo de um outro ponto

de vista que tambeacutem a arte se constitui aos olhos de Juumlnger como um meio de

mudanccedila apta ao delineamento das condiccedilotildees de configuraccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo total

uma vez que a arte tambeacutem ela deve representar o ldquoGestalt do trabalhadorrdquo o seu

objeto principal eacute pois o trabalho o objetivo e a tarefa da arte satildeo o desenho espacial

uniforme que resulta na revalorizaccedilatildeo da escultura da arquitetura e do planeamento

urbano160 Tal como avanccedila Juumlnger o Estado deve assegurar o controlo das fontes de

mateacuterias-primas proclamando e decretando o dever de serviccedilo de trabalho para toda a

populaccedilatildeo161 O Parlamento por sua vez deveraacute ser transformado de oacutergatildeo da sociedade

num oacutergatildeo estatal determinando-se como uma entidade de trabalho O Estado no

contexto das poliacuteticas de educaccedilatildeo ndash que se anunciam como um quadro cultural

relevantiacutessimo ndash assume-se como responsaacutevel pela educaccedilatildeo dos afetos de uma raccedila

de pessoas desenvolvida em escolas especiais tendo em vista a criaccedilatildeo de uma nova

158 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp194 203159 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p170160 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p218161 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p293

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elite funcional que suporta todas as caracteriacutesticas de uma ordem162 A constituiccedilatildeo do

Estado eacute substituiacuteda pelo plano de trabalho ndash neste ponto como prontamente nos eacute

sugerido as posiccedilotildees de Juumlnger parecem evocar as poliacuteticas econoacutemicas sovieacuteticas

relativas aos planos quinquenais163

O poder do Estado eacute pois de acordo com Juumlnger determinado pela metafiacutesica

do mundo do trabalho e tal eacute decisivo ao ponto de o Gestalt do trabalhador se expressar

nas forccedilas responsaacuteveis164 A democracia do trabalho descrita por Juumlnger natildeo se

afigura declaradamente nacionalista (pois apresenta-se envolta por uma perspetiva

planetaacuteria global) nem nacional-socialista (natildeo estamos perante a ideologia de sangue

e solo) mas possui sim as caracteriacutesticas gerais de um sistema totalitaacuterio natildeo se

poderaacute portanto falar de uma utopia positiva A caracteriacutestica especial da sua

configuraccedilatildeo eacute com efeito a sua envolvecircncia metafiacutesica Assim de acordo com Ernst

Juumlnger o Estado do trabalhador possui por um lado as caracteriacutesticas de uma

tecnocracia e por outro os elementos metafiacutesicos cujas intenccedilotildees poderiam ser

reconhecidas por uma futura elite funcional (que Juumlnger designa de ordem)165

162 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p299163 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p300164 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p273165 Apoacutes a tomada do poder pelos nacional-socialistas Juumlnger refugiou-se numa emigraccedilatildeo interior queculminou numa resistecircncia poeacutetica com a escrita de Sobre as Faleacutesias de Maacutermore (Auf denMarmorklippen) Esta obra publicada em 1939 pouco antes do iniacutecio da Segunda Guerra Mundial natildeofora surpreendentemente banida pelas autoridades de censura Sobre as Faleacutesias de Maacutermore uma dassuas obras mais poleacutemicas poderaacute ser considerada como a pedra de toque da mudanccedila de atitude do autorrelativamente ao Nacional-Socialismo No centro da trama estatildeo o narrador em primeira pessoa emqualquer nome que o identifique e o irmatildeo Otho (a referecircncia aos disciacutepulos Ernst e Friedrich Georgpor detraacutes das personagens poderia natildeo obstante ser enunciada) As personagens vivem junto agraves faleacutesiasde maacutermore no Rautenklause perto de um lago a Grande Marina dedicando-se aiacute agrave botacircnica Satildeoapoiados pelo Padre Lampros interessado em filosofia natural Anteriormente serviram com oscavaleiros de roxo e para cumprir o seu dever de feudo participaram de uma campanha ilegal deconquista natildeo valorizando tal missatildeo como certa ou errada (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15)Stuttgart 1978 - 1983 P 259 294 287) A analogia com a participaccedilatildeo dos irmatildeos Juumlnger na PrimeiraGuerra Mundial e a justificaccedilatildeo de Ernst Juumlnger para a guerra revelam-se evidentes No passado osirmatildeos haviam sido membros da Ordem dos Mauritanos imersos no teacutedio ambos sonhavam compoder e superioridade abandonando a Ordem Os Mauritanos satildeo descritos como intelectuaisorgulhosos e fundamentalmente maus satildeo os velhos conhecedores do poder e veem amanhecer umanova hora para restaurar a tirania que tem vivido nos seus coraccedilotildees desde o iniacutecio (Disciacutepulos E AllWorks (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 Pp 265) Assim os representantes do Novo Nacionalismocom sua luta pelo poder e pela ditadura satildeo adequadamente caracterizados conquanto Juumlnger mencioneos Mauritanos como um siacutembolo intemporal O mauritanismo acredita Juumlnger floresce sempre onde oEstado revela fraqueza Juumlnger admite o seu erro mas ao mesmo tempo relativiza a sua culpa Mais tardeouvi o irmatildeo Otho dizer sobre os nossos tempos na Mauritacircnia que um erro soacute se torna um erro sepersistir nele (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 P265) Um membro dosmauritanos eacute igualmente o chefe dos guardas florestais que domina o Hochwald apostado em alargar oseu poder No iniacutecio soacute se ouvem rumores depois os relatos de violecircncia tornam-se mais frequentesO chefe dos guardas florestais agrega em torno de si a corjardquo promovendo a anarquia com umacombinaccedilatildeo de terror aberto e infiltraccedilatildeo E um decliacutenio dramaacutetico dos valores ocorre no acircmbito do caosprevalecente (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 P 269)

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Natildeo obstante importaria ter presente a oscilaccedilatildeo continuamente presente no

espiacuterito de Juumlnger entre o lamento e a exultaccedilatildeo posiccedilotildees profundamente ambivalentes

relativamente agrave configuraccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo total O filoacutesofo debruccedila-se de facto

sobre o processo de empobrecimento e de deformaccedilatildeo a que o indiviacuteduo se encontra

sujeito no ambiente das grandes cidades e dos distritos industriais A este respeito

Juumlnger menciona a dissoluccedilatildeo da individualidade na massa de transeuntes e o

deambular do flacircneur como uma espeacutecie moribunda pelos meios de transporte

modernos

paisagens urbanas inteiras nas grandes cidades satildeo sobrepostas por um clima de

decadecircncia Aqui encontramos o indiviacuteduo em decliacutenio cujo sofrimento estaacute gravado em

dezenas de milhares de rostos e cuja visatildeo enche o observador de uma sensaccedilatildeo de

enfraquecimento de uma falta de um sentido 166

Tais observaccedilotildees veemente ilustrativas impelem-nos agrave convocaccedilatildeo das visotildees

expressionistas dos pintores desta eacutepoca todavia em contraste com tais artistas como

George Grosz (Metropolis) ou LS Lowry cuja visatildeo pouco generosa da atrofia da

individualidade ganha acuidade sobretudo pelo sofrimento imposto pelos sintomas da

modernidade teacutecnico-industrial Juumlnger natildeo condena tal desenvolvimento concebendo-

o neutralmente como um processo de transiccedilatildeo para novas formas de existecircncia que

deve por sua vez ser desejado incrementado e acelerado Tal como aponta Claudia

Gerhards no acircmbito do pensamento de Juumlnger estamos perante a seguinte posiccedilatildeo

a estrutura do movimento ascendente constante inscrito na ideia de progresso eacute

radicalizada [] em favor de uma mudanccedila abrupta de deficiecircncia extrema para

abundacircncia absoluta167

Considerando as perspetivaccedilotildees de Juumlnger sobre o domiacutenio do trabalhador a

partir do ponto de vista de um discurso apocaliacuteptico tal como Gerhards o empreende

tornam-se patentes as diversas caracteriacutesticas que identificam este ensaio como uma

contribuiccedilatildeo para o apocaliticismo da modernidade Em verdade Juumlnger interpreta a

modernidade como uma fase transitoacuteria na qual os fenoacutemenos de fragmentaccedilatildeo

Importaria ter presente que a obra O Trabalhador fora discutida de forma controversa na imprensa em1932 no Voumllkischer Beobachter surge uma criacutetica extremamente negativa a rejeiccedilatildeo de Juumlnger doconceito bioloacutegico de raccedila e da perspetiva planetaacuteria global que natildeo conhece nenhuma ideologia desangue e solo eacute pois deplorada pelos editores no jornal (Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2009 pp394)166 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p117 167 Gerhards C Apokalypse und Moderne Wuumlrzburg 1999 P33

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alienaccedilatildeo e destruiccedilatildeo natildeo soacute tecircm de ser suportados como tambeacutem forccedilados e

incrementados Para Juumlnger a Primeira Guerra Mundial constituiu o comeccedilo do decliacutenio

da ordem burguesa que se revelou incapaz de lidar com a dinacircmica da mecanizaccedilatildeo

Somente o trabalhador natildeo se encontra passivamente sujeito aos desenvolvimentos

especiacuteficos da modernidade podendo pois conduzir a sua accedilatildeo como protagonista da

aceleraccedilatildeo do incremento e da radicalizaccedilatildeo da modernidade no momento da

mobilizaccedilatildeo total O processo histoacuterico encontra entatildeo a sua conclusatildeo na perfeiccedilatildeo

da tecnologia na construccedilatildeo orgacircnica que permite ao trabalhador possuir o domiacutenio

absoluto no espaccedilo da dominaccedilatildeo planetaacuteria

Na sua interpretaccedilatildeo da modernidade Juumlnger acabaria por empreender a

paradoxal tentativa de uma re-mistificaccedilatildeo do mundo desencantado pela tecnologia e

pela racionalizaccedilatildeo procurando superar tal processo de empobrecimento atraveacutes de uma

descriccedilatildeo da tecnologia segundo categorias mitoloacutegicas e apocaliacutepticas Neste sentido

Juumlnger parece seguir a loacutegica interna da dialeacutetica do Iluminismo na medida em que a

religiatildeo se encontra secularizada pelo progresso do conhecimento o ser humano

perante a situaccedilatildeo de vazio de valores entatildeo criada reconhece-se a si mesmo nas suas

necessidades metafiacutesicas aspirando a preencher tal situaccedilatildeo com novos valores Como

tal a sacralizaccedilatildeo da tecnologia e a organizaccedilatildeo da poliacutetica transfiguradas em culto

constituem segundo Juumlnger as estrateacutegias mais importantes para superar tal situaccedilatildeo de

vacuidade

Martin Heidegger enfatizou de modo declarado que a leitura de O Trabalhador

lhe proporcionou a elaboraccedilatildeo de ideais fundamentais para suas proacuteprias interrogaccedilotildees

sobre tecnologia168 Por seu lado Ernst Juumlnger refere-se vaacuterias vezes ao longo da sua

obra ao conceito de tecnologia desenvolvido por Heidegger como Gestell169 Depois de

Juumlnger Heidegger assume que o conceito de trabalho alterado expressa uma nova

qualidade ldquoPois o trabalho (cf Ernst Juumlnger Der Arbeiter 1932) atinge agora uma

categoria metafiacutesica da objetificaccedilatildeo incondicional de tudo o que estaacute presente []rdquo170

168 Heidegger M (Briefe 1955) em Ernst Juumlnger ndash Martin Heidegger Briefe 1949 ndash 1975 Stuttgart2008 pp 155169 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p539 Juumlnger E SaumlmtlicheWerke Stuttgart 1978 p564 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p244170 Heidegger M Vortraumlge und Aufsaumltze Pfullingen 1954 p72

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O diaacutelogo entre Heidegger e Juumlnger apresenta-se envolto de relevante

importacircncia filosoacutefica O Walten do Gestell descreve um processo semelhante que

Ernst Juumlnger designou de mobilizaccedilatildeo total ou pensamento teacutecnico Enquanto que

Juumlnger procura sublinhar a existecircncia de um princiacutepio metafiacutesico oculto que integra um

objetivo determinaacutevel na histoacuteria Heidegger propotildee sustentar a emergecircncia da

perniciosa autonomia ou independecircncia do pensamento matemaacutetico-racionalista ndash

decorrente como bem sabemos do pensamento metafiacutesico que Heidegger procura

superar Tais conceccedilotildees de Heidegger e de Juumlnger poderatildeo ser vistas como confluentes

na sua tarefa de superaccedilatildeo do niilismo em Uumlber die Linie (Do outro lado da linha)

Juumlnger aspira a vislumbrar a linha da metafiacutesica cruzada integrando no seu

pensamento uma conceccedilatildeo de vontade de poder (ou a vontade terrena) Heidegger por

outro lado visa uma superaccedilatildeo da metafiacutesica propondo assim o delineamento de um

pensamento para aleacutem da metafiacutesica da vontade O texto de Juumlnger Uumlber die Linie171 eacute

curiosamente publicado pela primeira vez como parte integrante de uma publicaccedilatildeo

comemorativa do 60ordm aniversaacuterio de Martin Heidegger172 Atraveacutes de um foco

existencialista sobre o indiviacuteduo173 Juumlnger neste texto datado de 1950 introduz

algumas alteraccedilotildees na orientaccedilatildeo da sua interrogaccedilatildeo essencial repetidamente

formulada desde 1930 sobre como pode o homem escapar do uso sem sentido do

mundo das maacutequinas e dos autoacutematos174

171Juumlnger E Uumlber die Linie Frankfurt aM 1950 Juumlnger E Uumlber die Linie In Saumlmtliche Werke(Vol7) Stuttgart 1978 ndash 1983172 Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2007 p601173 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p178174 Em ldquoUumlber die Linierdquo partindo da questatildeo do niilismo levantada na obra de Friedrich NietzscheJuumlnger revela-se natildeo obstante otimista de acordo com o filoacutesofo a travessia do ldquoponto zerordquo natildeoconstitui uma realidade ineacutedita ndash tal situaccedilatildeo jaacute fora superada por exemplo na poliacutetica designadamenteno afastamento dos alematildees relativamente aos partidos radicais Embora o niilismo domine os sistemaspoliacutetico-econoacutemicos e a ordem teacutecnica a crescente perda de valores a reduccedilatildeo da vida e a crescenteaceleraccedilatildeo dos processos indicam segundo Juumlnger que se atingiu um cliacutemax que promove por sua vezum contramovimento Todavia uma nova situaccedilatildeo de seguranccedila tal como Juumlnger a considera ainda natildeofora conquistada O cruzamento da linha a passagem do ponto zero divide o espetaacuteculo indica o meiomas natildeo o fim(Juumlnger E Uumlber die Linie In Saumlmtliche Werke (Vol7) Stuttgart 1978 ndash 1983 p261)Se a linha for atravessada uma nova devoccedilatildeo ao ser pode ser esperada (Juumlnger E Uumlber die Linie InSaumlmtliche Werke (Vol7) Stuttgart 1978 - 1983 p267) Interessantemente a reaccedilatildeo de Heidegger agraveconceccedilatildeo de superaccedilatildeo do niilismo proposta por Ernst Juumlnger eacute negativa Heidegger condena o facto deJuumlnger permanecer preso agrave linguagem e ao pensamento da metafiacutesica Como se mesmo a linguagem dametafiacutesica e da proacutepria metafiacutesica seja a do Deus vivo ou morto enquanto metafiacutesica impotildee aquelabarreira que impossibilita a transiccedilatildeo para laacute da linha ou seja a superaccedilatildeo do niilismordquo Heidegger MBriefe 1955 In Heidegger M Briefe 1949 ndash 1975 Stuttgart 2008 p172

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Capiacutetulo 2

Em torno do conceito de modernidade tardia

Posturas filosoacutefico-criacuteticas

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21 | A Teoria Criacutetica e a Modernidade

O nuacutecleo da criacutetica da economia poliacutetica de Marx eacute a necromancia como um heroacutei que desceao reino dos mortos para se bater com as sombras do valor Marx segue mantendo-se deforma inquietante atual no presente O morto-vivo que circula entre os seres humanos naqualidade de valor monetaacuterio e que na de comunicador sorridente subtrai o tempo e a almados vivos governa hoje quase sem subterfuacutegios sobre as sociedades avanccediladas O trabalhoa comunicaccedilatildeo a arte e o amor pertencem aqui por completo agraves eliminatoacuterias finais dodinheiro Formam a substacircncia da era dos media e da experiecircncia Tal como o dinheironecessita de tempo para ser aproveitado a chamada ldquogrande histoacuteriardquo tambeacutem prosseguede forma fantasmagoacuterica Toda a histoacuteria tornou-se tendencialmente uma histoacuteria doaproveitar eacute um jogo em constante prolongamento Contudo essa histoacuteria jaacute natildeo eacute umdiaacutelogo entre vivos e mortos sobre a bonomia do mundo mas antes uma impregnaccedilatildeo dovivo cada vez mais profunda pelo assombro econoacutemico Da subjetividade humana do nossotempo espreita cada vez mais descoberta a alma do dinheiro uma sociedade decompradores comprados e de prostituidores prostituiacutedos instala-se sob condiccedilotildees demercado globalizadas O claacutessico e liberal laissez-faire explicita-se num mamar e deixar-semamar poacutes-moderno

Peter Sloterdijk Temperamentos filosoacuteficos de Platatildeo a Foucault

Quid est beata vita securitas et perpetua tranquillitas

Seneca Epistulae morales ad Lucilium

ldquoNatildeo haacute vida correta na falsardquo175 Esta eacute uma das frases mais conhecidas de

Adorno integrada num aforismo que encerra uma secccedilatildeo de Minima Moralia dedicada

agrave reflexatildeo sobre as severas possibilidades de desenvolver uma vida boa ndash uma vida

correta ndash nos tempos modernos Recorde-se pois que a frase de Adorno proveacutem do

livro redigido nos uacuteltimos anos da Segunda Guerra Mundial ndash Minima Moralia

justamente ndash e publicado em 1951 com o subtiacutetulo assaz expressivo ldquoReflexotildees a partir

de uma vida danificadardquo A ceacutelebre maacutexima de Adorno evoca tal subtiacutetulo apoacutes o

colapso da civilizaccedilatildeo o morticiacutenio industrial organizado pelos nazis as duas

175 Na traduccedilatildeo de Luiz Bicca (Adorno TW Minima Moralia Reflexotildees a partir da vida danificadaTraduccedilatildeo de Luiz Bicca e revisatildeo de Guido de Almeida Satildeo Paulo 1992) lecirc-se ldquonatildeo haacute vida correta nafalsardquo jaacute na de Gabriel Cohn ldquoNatildeo haacute vida certa na falsardquo (Adorno TW Minima Moralia Reflexotildees apartir da vida lesada Trad Gabriel Cohn Rio de Janeiro 2008 p34) No original alematildeo lecirc-se ldquoEs gibtkein richtiges Leben im falschenrdquo (Adorno TW Minima Moralia Reflexionen aus dembeschaumldigten Leben Frankfurt a M 1951 p43) Em alematildeo a questatildeo eacute substancialmente complexa epor isso a sua traduccedilatildeo para o portuguecircs mostra-se difiacutecil Eacute apenas pela contraposiccedilatildeo da palavra alematildebdquorichtigldquo a bdquofalschldquo (bdquofalsaldquo) que esta se torna bdquocorretaldquo num sentido de ldquovida boardquo Sem a contraposiccedilatildeoa palavra e o conceito de bdquorichtigrdquo ligados agrave palavra e ao conceito de bdquoLebenrdquo (vida) teriam antes osignificado de bdquoverdadeiraldquo associado a bdquointensaldquo por exemplo bdquoIch habe nie richtig gelebtldquo deveriaaqui ser traduzido para bdquonunca vivi verdadeiramente (e intensivamente)ldquo O aforismo de Adorno jogaprecisamente com estas variantes de significado

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aterradoras guerras mundiais os totalitarismos de um tumultuoso seacuteculo XX os traumas

e as sistemaacuteticas reificaccedilotildees em que a presenccedila humana na modernidade teve de

incorrer ldquoa vidardquo teria ficado indelevelmente danificada mas natildeo obstante esta mesma

vida prolonga-se como que de um modo igualmente inexoraacutevel na modernidade

tardia176

Eacute aqui que se posicionam os autores da designada ldquoQuarta Geraccedilatildeo da Escola de

Frankfurtrdquo tais como Hartmut Rosa e Rahel Jaeggi que continuaram e prolongaram

durante os uacuteltimos anos o trabalho de desenvolvimento das ideias da teoria criacutetica

Estes desenvolvimentos posteriores da teoria criacutetica tentaram manter-se fieacuteis agraves

abordagens dos ldquofundadoresrdquo Marx Horkheimer Adorno e Marcuse mas tambeacutem de

outros representantes como Walter Benjamin ou Erich Fromm ndash incluindo por fim

Habermas e Honneth ndash sem adotar no entanto qualquer tipo de postura de limitaccedilatildeo ou

restriccedilatildeo a um determinado horizonte teoacuterico177 Pertence pois agraves posiccedilotildees basilares

desta escola teoacuterica a convicccedilatildeo de que as metodologias e as asserccedilotildees sobre a verdade

satildeo sempre historicamente fundamentadas e enquadradas que natildeo existem verdades

sociais supra-histoacutericas ou ahistoricamente vaacutelidas e que todas as formas de trabalho

teoacuterico tecircm de ser adaptadas agraves condiccedilotildees mutaacuteveis da praacutetica social Daqui resulta a

posiccedilatildeo de que novos projetos ou abordagens da teoria criacutetica natildeo devam apenas seguir

cegamente os pressupostos metodoloacutegicos e teoacutericos dos ldquoclaacutessicosrdquo da tradiccedilatildeo mas

adaptaacute-los continuamente ao contexto social em mutaccedilatildeo ndash no nosso caso ao contexto

da modernidade tardia

A este respeito Hartmut Rosa encontra-se em concordacircncia com a visatildeo de Axel

Honneth de que a identificaccedilatildeo de patologias sociais constitui um objetivo central natildeo

soacute da teoria criacutetica enquanto tal mas tambeacutem da filosofia social178 Representantes

desta tradiccedilatildeo de pensamento sempre recorreram a padrotildees normativos de ambas as

176 Natildeo obstante tecircm de ser encontrados espaccedilos nos quais as pessoas possam descobrir apoio efelicidade Para Adorno tal consistiria na arte Adorno reconhecia a grande arte ndash Beethoven SchoumlnbergBeckett ou Kafka ndash como algo que pela sua forma resiste ao inquieto decorrer da vida Em conformidadecom as posiccedilotildees de Adorno encontra-se sobretudo a grande arte que natildeo participava na injusticcedila domundo Pelo contraacuterio a sua existecircncia forccedila e beleza o seu espiacuterito de liberdade contestaram asmentiras nas quais todos parecem ter encontrado paz O iminente definhar da arte ndash a sua segundoAdorno perversa degeneraccedilatildeo em induacutestria da cultura ndash relaciona-se com o facto de cada vez maisartistas terem desistido de compreender a cultura o campo da liberdade que resiste agrave alienaccedilatildeo177 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p269178 HonnethA Pathologierı des Sozialen Frankfurt aM1994 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 p270

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aacutereas Estes padrotildees de valor que podem ser adotados em instituiccedilotildees ou estruturas

sociais e que caraterizam tais ldquopatologiasrdquo natildeo podem segundo Rosa ser deduzidos de

um ponto de vista supra-histoacuterico e supra-social O real sofrimento humano natildeo

constitui o mero ponto de partida normativo teoricamente apropriado mas o elemento

histoacuterico-social que motiva a criacutetica desenvolvida pela teoria criacutetica ndash tal base

normativa se assim a designarmos deveraacute estar caso se acompanhe esta posiccedilatildeo

ancorada no quotidiano e na experiecircncia de vida dos atores sociais

Tal como adverte Rosa sofrimento poreacutem natildeo significa num sentido imediato

uma oposiccedilatildeo consciente179 eacute sempre possiacutevel que os atores sociais sofram no interior

de instituiccedilotildees ou estruturas sem estarem (claramente) cientes de tal situaccedilatildeo e eacute

precisamente aqui que as teorias da falsa consciecircncia e da criacutetica ideoloacutegica ganham

plausibilidade e atratividade180 Tal como Hartmut Rosa expotildee no ensaio ldquoCriacutetica das

circunstacircncias do tempo Aceleraccedilatildeo e alienaccedilatildeo como conceitos-chave da criacutetica

socialrdquo (2009)181 o caminho mais promissor para uma variante contemporacircnea da teoria

criacutetica182 traccedila-se a seu ver (e de Rahel Jaeggi) a partir de uma justaposiccedilatildeo criacutetico-

comparativa entre as conceccedilotildees de ldquovida boardquo perseguidas (consciente ou

inconscienteimplicitamente) pelos atores e pelas praacuteticas sociais que eles de facto

praticam Eacute pois esta a convicccedilatildeo de Hartmut Rosa que desenvolveu em Identitaumlt und

kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor (1998) obra na qual se

confronta com o trabalho de Charles Taylor183 a ideia de que os sujeitos humanos nas

179 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p271180 A este respeito Sloterdijk exige uma nova teoria criacutetica da falsa mobilidade ldquoAssim a criacutetica dasociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se hellip ainda pode haver uma terceira versatildeo de teoriacriacutetica de um tipo exigente entatildeo com certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica do movimento Oseu criteacuterio terapecircutico consistiria na diferenciaccedilatildeo caso esta se possa conseguir com exactidatildeo entreautecircntica mobilidade e falsa mobolisaccedilatildeordquo (Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio deCastro Lisboa 2002 p41181 Consultar Jeaggi RWesche T(ed) Was ist Kritik Frankfurt aM 2009 pp23-54182 A primeira geraccedilatildeo da teoria criacutetica surgiu em termos intelectuais na Repuacuteblica de Weimar os seusseguidores mantinham contacto pessoal entre si Todos se encontravam sob ameaccedila da perseguiccedilatildeofascista e emigraram para fora da Alemanha (representantes TW Adorno M Horkheimer WBenjamin E Fromm H Marcuse Otto Kirchheimer etc) A segunda geraccedilatildeo da teoria criacutetica eracomposta na sua maioria por disciacutepulos de Horkheimer e Adorno cujo pensamento se fez sentir noperiacuteodo do poacutes-guerra contrariamente agrave primeira geraccedilatildeo a interaccedilatildeo destes membros tinha como basecontactos pessoais esporaacutedicos (representantes J Habermas L von Friedeburg A Lorenzer ASchmidt O Negt etc) Como representante principal da terceira geraccedilatildeo eacute frequentemente referido AHonneth (mais 37 candidatos do espaccedilo alematildeo e 32 do espaccedilo anglo-saxoacutenicco - Muharrem Accedilikgoumlzentra na lista com base na literatura avaliada em Acikgoumlz M Die Permanenz der kritischen TheorieMuumlnster 2014 p129) Mais recentemente impulsos inovadores (ldquo4 Geraccedilatildeordquo) chegam-nos de R Forstna temaacutetica da alienaccedilatildeo de R Jaeggie sobretudo de H Rosa183 Rosa H Identitaumlt und kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor Frankfurt aMNew York 1998

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suas accedilotildees e decisotildees retornam sempre a uma ndash consciente e reflexiva ou impliacutecita e

desarticulada ndash noccedilatildeo de ldquovida boardquo na qual encontram orientaccedilatildeo De acordo com

Rosa as pessoas necessitam de saber para onde querem (ou devem) mover-se e do que

seria para si mesmas uma vida realizada a fim de poderem agir184 as condiccedilotildees

sociais que motivam estruturalmente o sujeito a perseguir as ditas conceccedilotildees de uma

vida bem-sucedida e que se perdem nas suas circunstacircncias constituem assim um

ponto de investigaccedilatildeo privilegiado e extremamente relevante para a criacutetica social Por

esta razatildeo os ideais de autodeterminaccedilatildeo (individual e coletiva) tendo em vista o modo

de vida escolhido e a luta pela emancipaccedilatildeo dos obstaacuteculos poliacuteticos estruturais e

institucionais agrave concretizaccedilatildeo da autonomia ndash que sempre foram de importacircncia nuclear

na tradiccedilatildeo teoacuterica da Escola de Frankfurt ndash natildeo se devem guiar por normas universais

a promessa de autonomia e liberdade a convicccedilatildeo de que os indiviacuteduos devem ter o

direito e a oportunidade de encontrar uma vida adequada agraves suas capacidades

necessidades e esperanccedilas e o entendimento de que por essa mesma razatildeo a

comunidade poliacutetica deve organizar-se democraticamente para servir de molde para a

estrutura coletiva satildeo em termos filosoacuteficos o centro da modernidade formando o

coraccedilatildeo daquilo que Juumlrgen Habermas chamou ldquoprojeto da modernidaderdquo185

Consequentemente as condiccedilotildees sociais que estiolam a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo e aniquilam as potencialidades do exerciacutecio da autonomia individual e

coletiva devem ser identificadas e denunciadas sempre que se constituam como um

impedimento sistemaacutetico para um sujeito concretizar a sua ideia de uma vida boa186

Importaria aqui mencionar o criteacuterio de uma ldquotranscendecircncia intramundanardquo conforme

formulado por Axel Honneth187 Segundo este criteacuterio exige-se que os proacuteprios atores

sociais (e natildeo apenas os criacuteticos) tenham em sua posse uma noccedilatildeo acerca daquilo que

poderia configurar uma vida ou uma sociedade melhores e aleacutem disso que manifestem

nas suas praacuteticas diaacuterias uma sensibilidade para as patologias que a teoria criacutetica tenta

identificar formulando especificamente os modos possiacuteveis de superaccedilatildeo dessas

mesmas patologias

184 Rosa H Identitaumlt und kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor Frankfurt aMNew York 1998 p38185 Habermas J Die Moderne ein unvollendetes Projekt Leipzig 1994186 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p272187Honneth A Pathologien der Vernunft Geschichte und Gegenwart der kritischen Theorie FrankfurtaM 2007

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As duas versotildees atualmente mais discutidas da teoria criacutetica (a teoria da

comunicaccedilatildeo de Juumlrgen Habermas e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth)

propotildeem dois princiacutepios distintos para a identificaccedilatildeo da unidade conceptual

fundamental de uma sociedade Segundo Habermas a unidade (synthesis) de uma

sociedade encontra-se nas circunstacircncias de aproximaccedilatildeo e no mundo da vida

construiacutedo com base na comunicaccedilatildeo enquanto que para Honneth satildeo as condiccedilotildees de

reconhecimento que formam a base de uma sociedade188 Importaria natildeo obstante

avanccedilar que Hartmut Rosa por seu turno trabalha com termos como ldquoaceleraccedilatildeordquo e

ldquoincrementordquo(ldquoSteigerungrdquo) todavia e tendo presente que conceitos como

ldquoaceleraccedilatildeordquo189 ou ldquoincrementordquo190 natildeo referem substacircncias mas processos Rosa natildeo

sustenta que a aceleraccedilatildeo eacute a base ou a unidade fundamental (synthesis) da sociedade

moderna ndash de um outro modo Rosa afirma que eacute pois a dynamis a loacutegica moderna do

desenvolvimento e da mudanccedila e que neste sentido a modernidade ndash e a modernidade

tardia em particular ndash seriam ininteligiacuteveis sem um entendimento adequado deste

princiacutepio de dinamizaccedilatildeo191 Hartmut Rosa natildeo questiona a premissa de que as

condiccedilotildees de interaccedilatildeo (que incluem as relaccedilotildees de comunicaccedilatildeo tal como as de

reconhecimento) possam ser concebiacuteveis como base de uma sociedade mas o filoacutesofo

procura sustentar em todo o caso que a modernidade tardia natildeo seraacute adequadamente

analisada e compreendida se natildeo forem tomados adequadamente em consideraccedilatildeo a

dimensatildeo dinacircmica da modernidade o poder transformador da aceleraccedilatildeo e do

incremento da mobilizaccedilatildeo e ainda as ldquocircunstacircncias de ressonacircnciardquo192

De acordo com o conceito de Juumlrgen Habermas desenvolvido na ldquoTeoria da

Accedilatildeo Comunicativardquo as patologias sociais surgem da distorccedilatildeo sistemaacutetica das

condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo193 Segundo Habermas eacute objetivo e missatildeo da teoria criacutetica

identificar as causas estruturais destas distorccedilotildees Eis a sua ideia fundamental as

reivindicaccedilotildees de poder e de conhecimento bem como as de valor e de verdade satildeo

188 Breuer S Kritische Theorie Tuumlbingen 2016 Walter-Busch E Geschichte der Frankfurter SchuleKritische Theorie und Politik Muumlnchen 2010189 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005190 Rosa H Resonanz Berlin 2016191 Gertenbach L Rosa H Kritische Theorie Stuttgart 2009 p 36 Rosa H Weltbeziehungen imZeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p123192 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p56 Rosa HRessonanz Berlin 2016 p113193 Habermas J Theorie des kommunikativen Handelns Frankfurt am Main 1981 Habermas JVorstudien und Ergaumlnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns Frankfurt am Main 1984

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justificadas apenas se forem ou puderem ser reconstruiacutedas como resultado de um

discurso livre de dominaccedilatildeo isto eacute quando emergirem ou pelo menos puderem

emergir de um discurso ao qual todas as posiccedilotildees e argumentos tecircm livre acesso De

acordo com tal visatildeo o processo de formular filtrar deliberar e ponderar coletivo dos

argumentos revela-se um processo moroso Tal como Habermas e os seus seguidores

apologistas de uma conceccedilatildeo de democracia deliberativa tecircm argumentado de forma

convincente o poder poliacutetico na modernidade soacute pode ser justificado se decorrer de um

processo democraacutetico de muacuteltiplas camadas processo este que necessita de um grande

nuacutemero de espaccedilos de discussatildeo e filtros para formular e experimentar argumentos e

reivindicaccedilotildees de validade Natildeo apenas todos os grupos sociais mas tambeacutem em

princiacutepio todo o indiviacuteduo deve ter a oportunidade de formular exigecircncias e ideias e de

as levar agrave praccedila puacuteblica para que sejam subsequente e gradualmente filtradas e

canalizadas pelo processo poliacutetico por meio de deliberaccedilatildeo e representaccedilatildeo ateacute ao ponto

de fazerem parte de decisotildees e leis coletivamente desenvolvidas No entanto mesmo se

considerarmos este conceito de democracia excessivo ou demasiado ambicioso natildeo haacute

duacutevida de que o processo de evoluccedilatildeo de uma vontade democraacutetica e de uma tomada de

decisatildeo satildeo por si soacute morosos Tal pressupotildee a identificaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo de cada

grupo social afetado e requer o desenvolvimento e a formulaccedilatildeo de argumentos e

programas (coletivos) a experiecircncia e a ponderaccedilatildeo deliberativos de posiccedilotildees e

reivindicaccedilotildees e finalmente o estabelecimento e a implementaccedilatildeo constitucional e

institucional de decisotildees e ambiccedilotildees vinculadas coletivamente Sob a condiccedilatildeo da

modernidade tardia se desenvolver agrave luz de um pluralismo poacutes-convencional e de um

aumento das dependecircncias globais este processo consome tendencialmente cada vez

mais tempo mais pessoas e mais grupos satildeo afetados cada vez menos coisas satildeo

inquestionaacuteveis e mais pontos de vista e mais necessidades diversas devem ser

considerados A complexidade das condiccedilotildees e das consequecircncias destas decisotildees

aumenta o que dificulta o planeamento e a previsibilidade das alternativas Em

contrapartida no processo de aceleraccedilatildeo os recursos de tempo disponiacuteveis para as

decisotildees tambeacutem natildeo avultam ndash pelo contraacuterio diminuem Devido agrave elevada taxa de

inovaccedilatildeo tecnoloacutegica agrave velocidade das transaccedilotildees econoacutemicas e ao ritmo da mudanccedila

sociocultural mais decisotildees tecircm de ser tomadas em menos tempo o que forccedila a poliacutetica

a acelerar o andamento das suas deliberaccedilotildees e decisotildees No entanto tal significa que os

horizontes e padrotildees temporais das tomadas de decisatildeo democraacuteticas e deliberativas por

um lado e os desenvolvimentos teacutecnicos econoacutemicos cientiacuteficos e culturais por outro

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divergem dramaticamente Sem negar a teoria da comunicaccedilatildeo de Habermas a longo

prazo natildeo se poderaacute evitar atentar contra os drasticamente alterados e acelerados

padrotildees de comunicaccedilatildeo sociais e privados tal como adverte Hartmut Rosa194

Habermas resume os seus pensamentos sobre a modernidade no notaacutevel ensaio

ldquoModernidade - um projeto inacabadordquo tal como se segue

A questatildeo permanece indecisa teremos que manter-nos com as intenccedilotildees do Iluminismo

apesar de ser corrompido ou pelo contraacuterio haveraacute que dar o projeto da modernidade

como perdido e desejar por exemplo que os potenciais cognitivos - que natildeo desembocam

no progresso teacutecnico no crescimento econoacutemico e na administraccedilatildeo racionalizada - sejam

canalizados de tal maneira que a praacutetica vital remetendo para tradiccedilotildees tornadas cegas

natildeo seja afetada por eles195

Eacute bem sabido que Habermas membro da Escola de Frankfurt apresenta-se

como um pensador que natildeo abdica do recurso ao conceito de Iluminismo a fim de

concretizar o potencial cognitivo e emancipatoacuterio desta linha de pensamento na

sociedade No excerto citado natildeo obstante revela-se tambeacutem a sua criacutetica da

modernidade como um processo de diferenciaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo ndash uma criacutetica baseada

nas teorias das sociedades modernas de Max Weber Durkheim e Simmel Habermas tal

como Simmel concebe o desenvolvimento social moderno como um processo funcional

de diferenciaccedilatildeo196 que conduz a que sociedades deixem de funcionar com base em

relaccedilotildees arcaicas ou feudais de parentesco sendo progressivamente dominadas por

sistemas como o da poliacutetica da economia etc Embora Habermas classifique

positivamente a racionalizaccedilatildeo moderna como um processo de diferenciaccedilatildeo porque

liberta o ser humano da tutela tambeacutem mediada pela tradiccedilatildeo ainda assim o filoacutesofo

refere um outro lado mais pernicioso trata-se do perigo do privileacutegio concedido agrave

ldquoaccedilatildeo racional-finalistardquo (Zweckrationales Handeln de Max Weber) e agrave ldquorazatildeo

Instrumentalrdquo197 (instrumentelle Vernunft de Max Horkheimer) afins ao ldquoprogresso

194 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p206195 Habermas J A Modernidade um projeto inacabado Trad Nuno Ferreira Fonseca 1980 InCriacutetica - Revista do Pensamento Contemporacircneo 2 (1987) p13196 Simmel G Uumlber soziale Differenzierung Leipzig 1890197 Horkheimer M Zur Kritik der instrumentellen Vernunft Gesammelte Schriften vol6 bdquoZur Kritikder instrumentellen Vernunftldquo Frankfurt a M 1991 pp19-186 Segundo Habermas o conceito de razatildeoinstrumental lembra a ldquoracionalidade finaliacutestica alargada agrave totalidaderdquo a razatildeo teraacute assim assimiladopoder e uma distinccedilatildeo entre o que exige validade e o que beneficia de autopreservaccedilatildeordquo (Habermas JDer Diskurs der Moderne Zwoumllf Vorlesungen Frankfurt a M1985 p144) Poreacutem na ldquoDialeacutetica doEsclarecimentordquo Horkheimer e Adorno observaram acima de tudo uma ldquoliga entre razatildeo e soberaniapoder e legitimidaderdquo (Habermas J Der Diskurs der Moderne Zwoumllf Vorlesungen Frankfurt a

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teacutecnico [ao] crescimento econoacutemico e [agrave] administraccedilatildeo racionalizadardquo198 tal situaccedilatildeo

segundo Habermas poderaacute condenar agrave ldquoatrofiardquo199 toda a accedilatildeo comunicativa orientada

para a compreensibilidade (e a razatildeo comunicativa)

As teorias de modernidade ldquoclaacutessicasrdquo enfrentam vaacuterias objeccedilotildees200 Uma delas eacute

que o fenoacutemeno da modernidade eacute por elas interpretado como um desenvolvimento natildeo-

linear e contiacutenuo e que desta forma natildeo tem em conta ou natildeo o tem suficientemente em

conta as descontinuidades heterogeneidades ruturas e mudanccedilas na histoacuteria do mundo

ocidental da modernidade Outra objeccedilatildeo eacute o latente etno ou eurocentrismo das teorias

M1985 p146) Horkheimer distingue na sua criacutetica da razatildeo instrumental por um lado uma ldquorazatildeoobjetivardquo como o sistema abrangente de todos os seres (incluindo os seres humanos e suas finalidades) epor outro uma ldquorazatildeo subjetivardquo como a capacidade de classificar inferir deduzir ou seja o resumo dofuncionamento abstrato do mecanismo do pensamento Natildeo eacute a razoabilidade dos objetivos mas aadequaccedilatildeo dos procedimentos que satildeo objeto delas Nas suas obras especialmente na criacutetica eleapresenta a razatildeo instrumental como a loacutegica do domiacutenio sobre a natureza Esta tambeacutem tem um impactono pensamento e na psique do homem atraveacutes do pensamento abstrato dominaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo satildeointernalizadas Para Horkheimer a razatildeo encontra-se em crise pois hoje uma razatildeo objetiva natildeo eacuteconcebida ou mesmo contestada como ilusatildeo ndash pelo contraacuterio vivemos uma subjetivaccedilatildeo e formalizaccedilatildeoda razatildeo Ele advoga a favor de uma loacutegica de conteuacutedo em prol de uma loacutegica puramente formal Overdadeiro racionalismo seraacute mais do que uma simples forma e deveraacute incluir momentos de conteuacutedo Senatildeo haacute uma teoria social em particular como pano de fundo entatildeo toda a epistemologia permaneceraacuteformalista e abstrata A loacutegica formal (entendida anaacuteloga agrave matemaacutetica) seraacute apenas uma sucessatildeo detautologias sem um significado concreto na realidade histoacuterica Ao separar factos e valores o status quoseraacute sempre legitimado A razatildeo segundo Horkheimer e dentro de uma tradiccedilatildeo hegeliana e marxista eacute acapacidade de compreender as conexotildees dialeacuteticas como uma realidade mais profunda aleacutem de merasaparecircncias Jaacute que a razatildeo significaraacute sempre uma reconciliaccedilatildeo de contradiccedilotildees Horkeimer projeta umareconciliaccedilatildeo entre a razatildeo ldquoobjetivardquo e ldquosubjetivardquoHerbert Marcuse por outro lado descreve a razatildeo da seguinte forma ldquoA razatildeo eacute por essecircnciacontradiccedilatildeo oposiccedilatildeo negaccedilatildeo enquanto a razatildeo ainda natildeo for possiacutevelrdquo (Marcuse H Vernunft undRevolution Berlin 1962 p370) Ele estabelece uma diferenccedila entre o conceito de racionalidade (hojegeralmente uma racionalidade tecnoloacutegica) e o conceito de razatildeo A razatildeo seraacute o ser real dentro do qualestatildeo unidas todas as oposiccedilotildees cruciais (sujeito-objeto essecircncia-aparecircncia pensamento-ser) seraacute aunidade de facticidade e verdade coisa e conceito realidade e ideia existecircncia e essecircncia Mas o ser natildeoeacute racional imediatamente deveraacute antes ser levado agrave razatildeo pois existe na presente sociedade irracionaluma alternativa racional como possibilidade negativa A razatildeo eacute o objetivo desta sociedade (ideal) para acriacutetica da presenteexistente sociedade a razatildeo eacute a norma Marcuse distingue a razatildeo de umaracionalidade cientiacutefica formal ldquotecnoloacutegicardquo (como Horkheimer a razatildeo objetiva da subjetiva) Aciecircncia moderna libertara a natureza de todos os propoacutesitos a mateacuteria de todas as qualidades Emprimeiro plano estaraacute a operabilidade e usabilidade praacutetica A racionalidade cientiacutefica eacute desprovida devalor natildeo tem propoacutesitos eacute-lhes neutra eacute essencialmente uma mera forma que pode ser subjugada aqualquer fim Para Marcuse ldquoum a priori tecnoloacutegicordquo significa ver a natureza apenas como um potencialmeio enquanto mateacuteria controlaacutevel e organizaacutevel Natildeo tem valor eacute meramente mateacuteria mateacuteria-primapara exploraccedilatildeo natildeo lhe eacute imanente sentido plano ou propoacutesito A ldquoracionalidade tecnoloacutegicardquo significaolhar as coisas a natureza e os seres humanos como um meio em si A natureza eacute submetida a esta razatildeotecnoloacutegica e instrumentalista que estaacute adaptada agraves exigecircncias do capitalismo e esta conceccedilatildeo noentanto tambeacutem prevalece no homem na natureza do homem nos impulsos fundamentais em adaptaccedilatildeoagraves exigecircncias do sistema existente O domiacutenio da natureza combinado com o domiacutenio do homem ambosse tornam objetos substituiacuteveis Existe aqui uma analogia com a racionalidade formal de Max Webercomo a racionalidade dos meios empregues para qualquer propoacutesito198 Habermas J A Modernidade um projeto inacabado Trad Nuno Ferreira Fonseca 1980 InCriacutetica - Revista do Pensamento Contemporacircneo 2 (1987) 16199 Para a distinccedilatildeo de diferentes conceitos de razatildeo e soluccedilotildees concernentes a isto com referecircncia aHabermas consultar Vilares A O Percurso Eacutetico do Reconhecimento Porto 2017 p33200 Joas HKnoumlbl W Sozialtheorie Frankfurt aM 2004 p430

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de modernidade acusando-as de projetarem aspetos culturais especiacuteficos das sociedades

ocidentais nos objetivos universais de desenvolvimento Natildeo seraacute de nenhuma maneira

correto assumir que a modernidade na Ameacuterica Latina em Aacutefrica ou no Sudeste

Asiaacutetico teraacute o mesmo rumo ou ateacute os mesmos padrotildees estruturais e culturais que

conhecemos da Europa ou Ameacuterica do Norte Em ambos os casos a criacutetica aponta para

o facto de estas teorias da modernidade negarem a priori a possibilidade de um

pluralismo (histoacuterico eou geograacutefico) da modernidade No entanto natildeo seraacute de

esquecer que teorias ldquopoacutes-modernistasrdquo201 sobre o ldquopluralrdquo ou sobre as ldquomuacuteltiplas

modernidadesrdquo formam muitas vezes um espaccedilo lacunar na medida em que por um

lado justificam razoavelmente as contradiccedilotildees as diferenccedilas e as mudanccedilas da

modernidade ocidental e da heterogeneidade e hibridismo do moderno em diferentes

regiotildees do mundo mas por outro natildeo permitem especificar o que seraacute a ldquomodernidaderdquo

unificadora por detraacutes da multiplicidade de fenoacutemenos na qual a unidade se forma sob

uma pluralidade A dissoluccedilatildeo da ideia de moderno na ideia de pluralidade poderia

anular o conceito de modernidade o discurso sobre as ldquomuacuteltiplas modernidadesrdquo

poderia tornar-se equivalente agrave constataccedilatildeo de que existem diversas formas de vida e

201 Habermas daacute a seguinte sugestatildeo sobre o poacutes-modernismo e do mesmo modo aponta para o perigodesta linha de pensamento que ultimamente tambeacutem foi empregada por neoconservadores (por exemplonos Estados Unidos) para eludir justificaccedilotildees racionais e cientiacuteficas ldquo[] Com estes ldquopoacutesrdquo osprotagonistas querem desfazer-se de um passado agrave atualidade natildeo podem ainda dar um novo nome namedida em que para os reconheciacuteveis problemas do futuro natildeo temos ateacute agora nenhuma respostaFoacutermulas como ldquopoacutes-Iluminismordquo ou ldquopoacutes-histoacuteriardquo desempenham o mesmo papel Gestos de despedidaapressada como estes satildeo adequados aos periacuteodos de transiccedilatildeo Agrave primeira vista os ldquopoacutes-modernistasrdquo dehoje apenas repetem o credo dos assim chamados ldquopoacutes-racionalistasrdquo de ontem [hellip] Mas o prefixo quenos coloca diante de tais designaccedilotildees de estilo e de orientaccedilatildeo natildeo tem sempre o mesmo significado Oque eacute comum aos ldquoismosrdquo que se formam com o prefixo ldquopoacutesrdquo eacute o sentido do tomar distacircncia Elesexpressam uma experiecircncia de descontinuidade poreacutem assumem posiccedilotildees diferentes em relaccedilatildeo aopassado que distanciam Com a palavra ldquopoacutes-industrialrdquo por exemplo os socioacutelogos querem apenas dizerque o capitalismo continuou a desenvolver-se e que os novos setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos seampliaram agrave custa do acircmbito diretamente produtivo Com a palavra ldquopoacutes-empiacutericordquo os filoacutesofos queremdar a entender que determinados conceitos normativos de ciecircncia e de progresso cientiacutefico foramultrapassados pelas novas investigaccedilotildees Os ldquopoacutes-estruturalistasrdquo querem aperfeiccediloar mais do quesuperar (hellip) Inicialmente a expressatildeo ldquopoacutes-modernordquo designava novas variantes no interior do amploespectro da modernidade tardia isto ao ser aplicada nos Estados Unidos durante os anos 50 e 60 agravescorrentes literaacuterias que se queriam diferenciar das obras do modernismo inicial O poacutes-modernismo soacute setransformou em grito de guerra afetivamente carregado e diretamente poliacutetico quando nos anos 70 duasposiccedilotildees contraacuterias ganharam forccedila de expressatildeo de um lado os neoconservadoreshelliprdquo Habermas JArquitetura moderna e poacutes-moderna Trad Carlos Eduardo Jordatildeo Machado 1987 Novos EstudosCEBRAP 18 (1987) pp115-116 Eacute evidente que os vaacuterios aspetos do poacutes-modernismo podem serinterpretados e estruturados de forma diferente Uma sugestatildeo eacute feita por P Pereira ldquoTemos assim aquiloa que podemos chamar duas poacutes-modernidades uma (a que chamamos primeira) que se esboccedila noslimites da proacutepria modernidade que precisou de fragmentar o homem para o re-construir e re-conhecerface ao outro e que tem em conta a singularidade a finitude e a transitividade de todo o pensarremetendo essencialmente para a reconciliaccedilatildeo do pensamento com a vida outra (a segunda) que numaldquocontinuidaderdquo da loacutegica racionalista se configura em torno de uma ldquoestetizaccedilatildeordquo da realidadecaracteriacutestica a mediatizaccedilatildeo e da neo-coisificaccedilatildeo que tem resultado numa cultura poacutes-filosoacuteficardquoPereira P Do sentir e do pensar Porto 2006 p 89 Neste trabalho eacute utilizado o termo ldquomodernidadetardiardquo na tradiccedilatildeo da Escola de Frankfurt

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arranjos sociais que podem entrar em conflito O desafio central poderia ser portanto

descrever a modernidade ou entatildeo o processo de ldquomodernizaccedilatildeordquo ndash se se partilhar a

convicccedilatildeo de que esta comporta um desenvolvimento processual ndash de tal forma que esta

definiccedilatildeo possa absorver as mudanccedilas radicais na histoacuteria do Ocidente moderno bem

como a diversidade cultural das ldquomodernidadesrdquo contemporacircneas

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22 | A modernidade como fenoacutemeno contraditoacuterio

Eacute na faculdade de mentir que caracteriza a maior parte dos homens atuais que se baseia acivilizaccedilatildeo moderna (hellip) Atualmente a mentira chama-se utilitarismo ordem social sensopraacutetico disfarccedilou-se nestes nomes julgando assim passar incoacutegnita A maacutescara deu-lheprestiacutegio tornando-a misteriosa e portanto respeitada De forma que a mentira comoordem social pode praticar impunemente todos os assassinatos como utilitarismo todos osroubos como senso praacutetico todas as tolices e loucuras A mentira reina sobre o mundoQuase todos os homens satildeo suacutebditos desta omnipotente Majestade Derrubaacute-la do tronoarrancar-lhe das matildeos o cetro ensanguentado (hellip)

Teixeira de Pascoaes A Saudade e o Saudosismo

Como eacute que o indiviacuteduo apesar de ser mais autoacutenomo depende cada vez mais da sociedadeComo eacute que este se torna mais pessoal e mais solidaacuterio ao mesmo tempo Pois eacute irrefutaacutevelque estes dois movimentos por mais contraditoacuterios que pareccedilam aconteccedilamparalelamenterdquo

Eacutemile Durkheim Uumlber soziale Arbeitsteilung

Se atentarmos natildeo soacute aos textos ldquoclaacutessicosrdquo sobre a Modernidade mas tambeacutem a

outros tornar-se-aacute claro que a modernidade eacute um fenoacutemeno contraditoacuterio

ambivalente202 ldquoum fenoacutemeno ambiacuteguo incerto e de vaacuterias facesrdquo203 um acontecimento

que natildeo traz apenas algo de bom ou somente de mau mas de ambos oportunidades

mas tambeacutem riscos ganhos mas tambeacutem perdas aspetos positivos mas tambeacutem

negativos Por um lado a modernidade pode significar a libertaccedilatildeo204 libertaccedilatildeo das

ldquodependecircncias primordiaisrdquo205 das ldquolimitaccedilotildees tradicionais e (simplesmente)

202 Bauman Z Modernity and Ambivalence Ithaca NY 1991203 Beck UBeck-Gernsheim E Riskante Chancen Opladen 1990 p15204 Beck (Beck U Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne Frankfurt a M 1986p223) compreende o conceito de individualizaccedilatildeo autoacutenoma na modernidade sob um duplo sentido(positivonegativo) por um lado assistimos agrave separaccedilatildeo de formas e laccedilos sociais historicamentepredeterminados em contextos tradicionais de poder o que nos permite cumprir a dimensatildeo delibertaccedilatildeo da modernidade por outro lado verificamos a perda da seguranccedila no que diz respeito aoconhecimento da accedilatildeo das normas orientadoras do comportamento e da feacute imperando neste sentido adimensatildeo de desencanto (ldquoDimension der Entzauberungrdquo) Uma breve notaccedilatildeo sobre uma questatildeo de traduccedilatildeo a traduccedilatildeo do termo alematildeo Entzauberung eacuteprofundamente complexa A expressatildeo portuguesa desencantamento do mundo carece de um elementoque poderia ser associado a um elemento romacircntico maacutegico e talvez o termo des-enfeiticcedilamentocairia aqui melhor Entzauberung eacute um termo que natildeo pode ser traduzido por uma palavra soacute Comefeito o encantamento do mundo ocorreu principalmente no Romantismo alematildeo e com o processode desencantamento do mundo descrito por Max Weber verificou-se um processo oposto Oencantamento romacircntico poderia ser interpretado no sentido de Novalis quando o poeta descreve omundo a partir do seu conceito de idealismo maacutegico (Brucker M Novalis Leipzig 1992 p11)205 Habermas J Nachmetaphysisches Denken Philosophische Aufsaumltze Frankfurt aM 1989 p234

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monoacutetonasrdquo206 de ldquopressotildees fatiacutedicasrdquo 207 do ldquoespartilho dos papeacuteis normas e caminhos

de vida estanquesrdquo 208 das ldquocorrentes enferrujadas do estatuto e das ordens feudaisrdquo209

de ldquolaccedilos constritivosrdquo210 No entanto a acelerada emancipaccedilatildeo dos contextos

tradicionais tambeacutem se relaciona com uma ldquomagnanimidade em expansatildeordquo da

autonomia individual para planear e configurar a vidardquo 211 O ser humano tem a

oportunidade e a obrigaccedilatildeo ldquode construir biograficamente algo para si mesmo a partir

das perspetivas sugeridas pela sociedade sobre o curso da vidardquo 212 Este ldquoreivindica um

pedaccedilo da sua proacutepria vidardquo213 e pode escolher o seu niacutevel como antes nunca foi

possiacutevel Em todas as aacutereas desde o ldquopiso teacuterreo das mercadoriasrdquo ateacute ao ldquoandar

superiorrdquo onde se ldquoproduz sentidordquo214 existe ldquoriqueza de variedaderdquo215 e ldquovariedade de

opccedilotildeesrdquo216 Se antes apenas um modo de viver poderia ser representado como ldquonormalrdquo

agora muito outros podem concorrer ao mesmo epiacuteteto Uma ldquoficccedilatildeo idealrdquo do ldquoser

humano modernordquo217 eacute superada e substituiacuteda por uma nova compreensatildeo mais aberta

da identidade O Eu tem um horizonte de oportunidade para se libertar natildeo eacute ldquomais um

servo das convenccedilotildees e padronizaccedilotildees sociaisrdquo218 O ser humano tem em seu poder

mais do que nunca a possibilidade de ldquoser diferente sem medordquo segundo Adorno219

Natildeo obstante tal processo tambeacutem pode ser experienciado como uma ldquoperda dos

apoios convencionaisrdquo220 Por conseguinte modernidade tambeacutem pode significar perda

a ldquoperda de uma inclusatildeo social estaacutevelrdquo221 a ldquoperda de valores inquestionavelmente

vaacutelidosrdquo222 a ldquoperda da proteccedilatildeo abrangecircncia ndash coletiva e individual ndash de um abrigo de

significado (Sinn-Dach)rdquo223 a ldquoperda das certezas tradicionais no que diz respeito aos

206 Berger P Individualisierung Statusunsicherheit und Erfahrungsvielfalt Opladen 1996 p279207 Schoumlll A Ich glaube dass ich nicht an Gott glaube Frankfurt aM New York 1995 p227208 Keupp H Ambivalenzen postmoderner Identitaumlt Frankfurt aM 1994 p337209 Gross P Die Multioptionsgesellschaft Frankfurt aM 1994 p37210 Gergen K Das uumlbersaumlttigte Selbst Heidelberg 1996 p282211 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p38httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]212 Boumlhnisch L Sozialpaumldagogik der Lebensalter WeinheimMuumlnchen 1997 p34213 Beck U Jenseits von Stand und Klasse Goumlttingen 1983 p43214 Gross P Die Multioptionsgesellschaft Frankfurt aM 1994 p41215 Gross P Pop-Soziologie Zeitdiagnostik in der Multioptionsgesellschaft Wien 2003 p44216 Schroer M Individualisierte Gesllschaft Muumlnchen 1997 p174217 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p16httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]218 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p16httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]219 AdornoTW Minima Moralia Gesammelte Schriften vol4 Frankfurt aM 1980 p113220 Habermas J Nachmetaphysisches Denken Philosophische Aufsaumltze Frankfurt aM 1989 p234221Barz H Neue Werte ndash Neue Wuumlnsche Future Values DuumlsseldorfBerlinRegensburg 2001 p 41222 Keupp H Bildung zwischen Anpassung und Lebenskunst Salzburg 2006 p6223 Hitzler RHoner A Bastelexistenz Frankfurt aM 1994 p307

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conhecimentos praacuteticos agraves crenccedilas e agraves normas orientadorasrdquo224 a ldquoperda do dado

adquiridordquo225 ldquoA saiacuteda do homem da sua menoridade de que ele proacuteprio eacute culpado eacute ao

mesmo tempo uma saiacuteda veloz do ninho das relaccedilotildees humanas em estruturas fixasrdquo226

O ldquoprojeto da Modernidaderdquo proclamado por Juumlrgen Habermas e outros autores

eacute sobretudo fundamentado na ideia e na promessa da saiacuteda do homem da sua

menoridade de que ele proacuteprio eacute culpado na promessa da autonomia e

autodeterminaccedilatildeo significativa desde o Iluminismo Tal natildeo contradiz contudo o facto

de que o sujeito autoacutenomo se encontra tambeacutem sob certa forma ldquodependenterdquo da ldquorede

de significadosrdquo de relaccedilotildees constitutivas e de comunidades para encontrar um plano

de vida razoaacutevel para si227 Mas esta ideia estaacute entrelaccedilada com a ideia poliacutetica de

participaccedilatildeo democraacutetica e de autodeterminaccedilatildeo pois as macrocondiccedilotildees

socioeconoacutemicas determinantes da accedilatildeo e da vida natildeo podem ser controladas pelos

indiviacuteduos enquanto tal Se estas satildeo mais do que um coincidente resultado da interaccedilatildeo

entre forccedilas sobre as quais natildeo haacute controlo entatildeo deveratildeo ser orientadas por um

processo deliberativo poliacutetico e coletivo A promessa da Modernidade decorre com

efeito do desejo de superar as restriccedilotildees impostas agrave autodeterminaccedilatildeo pela pobreza e a

escassez a doenccedila e a deficiecircncia a ignoracircncia e todas as possiacuteveis circunstacircncias

naturais adversas A este respeito assim escreve Hartmut Rosa

O projeto da modernidade faz-se numa forccedila de persuasatildeo e de atraccedilatildeo com aquilo a que

se poderia chamar a ldquoenergia cineacuteticardquo da sociedade tambeacutem com a introduccedilatildeo de uma

acelerada mudanccedila social De forma semelhante o desenvolvimento de uma economia

capitalista voltada para o crescimento forte e produtiva bem como o progresso

simultaneamente cientiacutefico e tecnoloacutegico produziram os recursos que credibilizaram a

promessa de transformaccedilatildeo poliacutetica da sociedade (por meio de redistribuiccedilatildeo) e de

liberdade de escolha Em suma o processo da aceleraccedilatildeo moderna (social e competitiva) e

o projeto (eacutetico) de autonomia e autodeterminaccedilatildeo tecircm-se pelo menos em princiacutepio

apoiado mutuamente Mas a Modernidade em determinados aspetos nunca cumpriu esta

promessahellip Hoje num seacuteculo XXI ldquoglobalizadordquo a promessa quase perdeu todo o seu

potencial e a pressatildeo ganhou tal magnitude que a ideia (democraacutetica) de autonomia

individual e coletiva se tornou quase anacroacutenica228

224 Beck U Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne Frankfurt aM 1986 p206225 Bolz N Die Sinngesellschaft Berlin 1997 p10226 Dahrendorf R Das Zerbrechen der Ligaturen und die Utopie der Weltbuumlrgergesllschaft FrankfurtaM 1994 p424227 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p113228 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115

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Segundo Hartmut Rosa a promessa de autonomia poliacutetica para organizar a

sociedade para aleacutem das necessidades econoacutemicas eacute ldquodentro de um quadro referente agrave

Modernidade tardia uma lembranccedila teacutenuerdquo229 pois a loacutegica da competiccedilatildeo do

ldquoincrementordquo (Steigerung) do crescimento e da aceleraccedilatildeo natildeo possui limites no seu

interior Isto seria segundo Rosa ldquoum equivalente da heterodeterminaccedilatildeo absoluta da

heteronomia completa e portanto tambeacutem uma negaccedilatildeo total da promessa da

Modernidaderdquo230 Os princiacutepios imperativos da aceleraccedilatildeo inovaccedilatildeo e do ldquoincrementordquo

(Steigerung) ameaccedilam erodir o campo de manobra da poliacutetica e o potencial de liberdade

nos modos individuais de viver231 assunto este com o qual natildeo soacute Hartmut Rosa mas

tambeacutem Zygmunt Bauman se ocupou

Zygmunt Bauman e Hartmut Rosa em particular tecircm-se envolvido

intensamente ao longo dos uacuteltimos anos nos seus respetivos trabalhos com o problema

do incremento da mobilizaccedilatildeo da dinamizaccedilatildeo progressiva e da aceleraccedilatildeo das

circunstacircncias sociais que ambos conceptualizam como caracteriacutesticas capitais da

Modernidade232 Ambos afirmam que em parte o projeto da aceleraccedilatildeo perpeacutetua se

emancipou e atingiu os seus limites naturais no presente tal como constatam que uma

ldquoUm grande nuacutemero de pessoas provavelmente ateacute a maioria nunca desfrutou da possibilidade dedeterminar autonomamente as suas proacuteprias vidas devido agraves pressotildees das condiccedilotildees de trabalhoheteroacutenomas Este argumento aplica-se na minha opiniatildeo natildeo apenas aos trabalhadores assalariados mastambeacutem aos empregadores e gerentes jamais conseguiram controlar as regras do jogo apenasaprenderam a jogaacute-lo com ecircxito E o ldquogrande compromissordquo de aceitar heteronomia no local de trabalhopara garantir autonomia na vida familiar nunca funcionou bem conforme nos apontou Charles Taylor(1988) No entanto o ldquosistema modernordquo de privatizaccedilatildeo eacutetica capitalismo econoacutemico e poliacuteticademocraacutetica conseguiu ldquomanter o sonho vivordquo ateacute agraves uacuteltimas trecircs deacutecadas do seacuteculo XX a promessa deuma ldquoexistecircncia paciacuteficardquo para usar a formulaccedilatildeo de Marcuse parecia crediacutevel pois esperava-se umcrescimento econoacutemico consistente progresso tecnoloacutegico emprego para todos reduccedilatildeo do horaacuterio detrabalho e um Estado social em crescimento A histoacuteria poderia ainda ser entendida como evolutiva se aluta econoacutemica (diaacuteria) a luta pela sobrevivecircncia e a competiccedilatildeo social perdessem o seu poder decisivosobre a forma individual e coletiva de viver No entanto o capitalismo somente valeria como um sistemaeconoacutemico aceitaacutevel culturalmente ao abrigo da firme convicccedilatildeo - propagada e compartilhada pelos seusdefensores de Adam Smith a Milton Friedman - de que o sistema se poderia tornar tatildeo produtivo einquebrantaacutevel que o indiviacuteduo acabaria por se ver em liberdade para pocircr em praacutetica os seus planos devida os seus sonhos valores e objetivos sem a ameaccedila ominosa de pobreza de decliacutenio e de fracasso Aaceleraccedilatildeo e a competitividade poderiam entatildeo ser interpretadas como meios para alcanccedilar o fim daautodeterminaccedilatildeo Como jaacute se deveria ter tornado evidente na argumentaccedilatildeo desenvolvida nos capiacutetulosanteriores sou da opiniatildeo de que na ldquosociedade da aceleraccedilatildeordquo da Modernidade tardia esta promessaperdeu toda a credibilidade A aceleraccedilatildeo jaacute natildeo eacute experienciada como uma forccedila de libertaccedilatildeo mascomo uma forccedila que exerce pressatildeo e opressatildeordquo Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 pp115 sgts229 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p118230 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115231Doumlrre K Lessenich S Rosa H Soziologie Kapitalismus Kritik Frankfurt aM 2009232 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005

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vez ultrapassados esses limites se poderaacute tornar mais difiacutecil manter em accedilatildeo a demanda

pela sincronizaccedilatildeo e integraccedilatildeo sociais Relativamente a este aspeto os autores

reportam a ldquotransiccedilatildeordquo para outra fase da Modernidade233

Numa das suas obras Bauman descreve metaforicamente o estado desta eacutepoca

atual ldquoLiquid Modernityrdquo234 eacute uma das suas obras principais que reuacutene os seus

pensamentos sobre a nova orientaccedilatildeo da Modernidade235 Bauman recorre agrave metaacutefora da

liquidez para compreender as especificidades do presente e da nova fase da histoacuteria da

nossa era236 Em contraste com uma precedente Modernidade soacutelida esta reorientaccedilatildeo

associa-se agrave crescente volatilizaccedilatildeo ldquode tudo que era dos estados (ou ordens sociais) e

estaacutevelrdquo237 e agraves dinacircmicas contiacutenuas de aceleraccedilatildeo238 Neste sentido Bauman afirma que

a ordem atual se apresenta determinada essencialmente pela sua volatilidade pela

inadequaccedilatildeo das estruturas sisteacutemicas pela liquefaccedilatildeo do quotidiano e pela

flexibilizaccedilatildeo especialmente no domiacutenio do trabalho De acordo com o filoacutesofo os

processos de trabalho e de vida temporalmente rotineiros (e espacialmente vinculados)

foram substituiacutedos por padrotildees temporais e espacialmente muito mais flexiacuteveis Estas

condiccedilotildees de vida em mudanccedila tornam-se portanto o centro da investigaccedilatildeo de

Bauman Influenciada pelo pensamento marxista a sua anaacutelise da economia como

ldquobaserdquo da sociedade constitui um ponto de partida fundamental para o estudo que o

filoacutesofo realiza dos processos sociais modernos239 A partir dos mecanismos principais

de integraccedilatildeo social Bauman descreve a transiccedilatildeo da Modernidade soacutelida para a

Modernidade liacutequida desenvolvendo um diagnoacutestico criacutetico do tempo atual cujo toacutepico

principal consiste na avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees atuais de vida No que seguimento de tais

233 Rosa utiliza o termo Modernidade tardia para descrever esta ldquooutra fase da Modernidaderdquoconcordando com aos representantes da Escola de Frankfurt ao passo que Bauman nas suas primeirasobras emprega o de poacutes-Modernidade termo que eacute substituiacutedo posteriormente pelo conceito deModernidade liquida Tendo em vista uma simplificaccedilatildeo seraacute utilizado no presente trabalho aterminologia estabelecida referente agrave ldquoModernidade tardiardquo234 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000235 O livro Liquid Modernityldquo eacute uma das suas obras mais significativas para a dinamizaccedilatildeo dasociedade e por isso uma obra-alicerce para a seguinte anaacutelise das suas teses Com esta terminologiadesliga-se do poacutes-modernismo que ele proacuteprio utilizou em trabalhos anteriores e apoia-se empublicaccedilotildees posteriores nas suas reflexotildees sobre a Modernidade liacutequida Portanto neste debruccedilar sobre asteses de Bauman seraacute usado apenas o conceito de Modernidade liacutequida236 ldquoThese are reasons to consider ldquofluidityrdquo or ldquoliquidityrdquo as fitting metaphors when we wish to graspthe nature of the presentrdquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2237 ldquoTudo o que era dos estados [ou ordens sociais mdash staumlndisch] e estaacutevel se volatilizahelliprdquo (Marx KEngels F Manifesto do Partido Comunista Ed Instituto Joseacute Luis e Rosa Sunderman 2003 p13)238 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p3239 Varcoe IKilminster R Zygmunt Baumanns Sozialkritik Wiesbaden 2007 p28

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consideraccedilotildees Bauman enfatiza o tema da liberdade versus a libertaccedilatildeoautonomia240

(verdadeiras) do sujeito241 que o filoacutesofo nomeia como objetivo primeiro do processo

de ldquomodernizaccedilatildeordquo242 Em oposiccedilatildeo agrave abordagem associativa e fenomenoloacutegica de

Bauman Hartmut Rosa desenvolve por seu turno a anaacutelise da Modernidade atraveacutes de

uma posiccedilatildeo marcadamente estruturalista Rosa ocupa-se igualmente com as estruturas

temporais das sociedades modernas bem como com os correlativos desenvolvimentos e

problemaacuteticas sociais num plano tanto individual como coletivo Para Rosa a categoria

240 Geralmente a autonomia pode ser conceptualizada como autodeterminaccedilatildeo livre de influecircnciasextriacutensecas e rastos de dependecircncia (Junge M Ambivalente Autonomie Muumlnster 2004 p143 PauenM Autonomie Muumlnchen 2011 p 254) Frequentemente em equiparaccedilatildeo com termos como liberdade eautodeterminaccedilatildeo a autonomia caracteriza-se pela capacidade de estabelecer regras para si isto eacute agirconforme as regras para si estabelecidas (Pauen M Autonomie Muumlnchen 2011 pp 254) Em suacontraposiccedilatildeo estaacute heteronomia e anomia heterodeterminaccedilatildeo submissatildeo e tambeacutem alienaccedilatildeo Nafilosofia moral de Kant o termo foi cunhado ateacute aos dias de hoje (consultar Shell S Kant and the limitsof autonomy Cambridge 2009 p2) e natildeo significa neste entendimento uma liberdade sem regras ouarbitrariedade mas uma vinculaccedilatildeo do sujeito autoacutenomo por si mesmo (Pauen M AutonomieMuumlnchen 2011 p255) A autonomia natildeo se refere a accedilotildees individuais mas a uma qualidade que pertencea corporaccedilotildees pessoas ou objetos como um todo e confere-lhes assim uma capacidade para agirindedependentemente de influecircncias extriacutensecas ou da aleatoriedade Uma pessoa pode neste contextoser considerada autoacutenoma quando age nem em pura arbitrariedade nem por induccedilatildeo ou imposiccedilatildeoextriacutensecas mas guiada nas suas decisotildees e accedilotildees por princiacutepios proacuteprios (cf Ibid p257) Asconcetualizaccedilotildees do sujeito moderno satildeo comumente caracterizadas pela reclamaccedilatildeo por parte doIluminismo para que o ser humano se liberte da sua menoridade por culpa proacutepria (Kant) e que persigauma vida autoacutenoma e autodeterminada (Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichenWandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) A autonomia vista como umconceito relativo aponta contudo tambeacutem para a ambiguidade da autonomia individual e deste modotambeacutem para o conceito de sujeito Consequentemente o sujeito moderno natildeo deve ser pensado comopuramente autoacutenomo uma vez que ainda eacute dependente de estruturas e tradiccedilotildees sociais (Ibid p9)Subjectividade e capacidade de agir satildeo aplicadas socialmente as estruturas e relaccedilotildees sociais moldam osujeito moderno (Meiszligner H Jenseits des autonomen Subjekts Bielefeld 2010 p10) Assim asdiferentes concepccedilotildees de sujeito implicam por um lado uma relaccedilatildeo ativa e formativa com o mundo elascolocam-no em relaccedilatildeo com a realidade social e formulam-no natildeo apenas como um produto do seu meio(Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in derSpaumltmoderne Bielefeld 2006 p9) Por outro lado jaacute a semacircntica do termo (subiectum) implica umareivindicaccedilatildeo absoluta de soberania O sujeito estaacute ancorado nas estruturas sociais e tem que incorporarnum mundo dado estrutrado pelo poder (ibid p15) o que necessariamente conduz agrave limitaccedilatildeo daautonomia (cf Ibid) Reckwitz define esta estrutura dupla do sujeito moderno como se seguesubiectum o sujeito tem um duplo sentido eacute o elevado agraves alturas e o subjugado Eacute o centro da accedilatildeoautoacutenoma e do pensamento [] E eacute aquilo que subjaz ao que se sobrepotildee [] Na sua ambiguidade osujeito apresenta-se como dominador subordinado um sujeitado sujeitandoldquo (Reckwitz A Das hybrideSubjekt Goumlttingen 2010 p9)241 O conceito de sujeito representa uma categoria baacutesica no desenvolver de teoria dentro das ciecircnciassociais especialmente no que diz respeito agraves abordagens modernas e poacutes-moderna da Modernidade tardia(Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in derSpaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) pode ser visto como o conceito-chave heuriacutestico das ciecircncias sociaise da cultura no iniacutecio do seacuteculo XXI (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p10) A ideiado sujeito moderno e reflexivo da teoria do conhecimento de Descartes formava um comeccedilo e foi atraveacutesde Hobbes e Kant que se manifestou como um fator decisivo no processo de entendimento (BeerRSievi Y Subjekt oder Subjektivation Wien 2010 p4) No entanto dada a mudanccedila socialatualmente sobre rodas que faz parte da criaccedilatildeo teoacuterica na Modernidade tardia ou no poacutes-modernismo oconceito eacute posto agrave prova natildeo sem controveacutersia desde a morte do sujeito que resultara do teacutermino poacutes-moderno das bdquograndes narrativasldquo sobre o sujeitoldquo (Keupp HHohl J Subjektdiskurse imgesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) ateacute agraveadesatildeo ao conceito de sujeito como base para qualquer perceccedilatildeo e criacutetica de condiccedilotildees sociais o tema

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de anaacutelise ldquotempordquo constitui o fundamento essencial para a sua teoria sobre a

Modernidade uma vez que na sua argumentaccedilatildeo a compreensatildeo das dinacircmicas

modernas de aceleraccedilatildeo deve integrar um conhecimento significativo sobre os processos

atuais de mudanccedila243 O facto de que o tempo e a aceleraccedilatildeo estatildeo diretamente ligados

aos desenvolvimentos sociais da Modernidade configura tambeacutem um elemento basilar

para Bauman e tornou-se entretanto ndash e natildeo apenas nas ciecircncias sociais ndash um tema

amplamente debatido Assim valida-se em grande parte como indiscutiacutevel a afirmaccedilatildeo

de que o tempo eacute uma categoria-chave para uma anaacutelise sociocientiacutefica da

Modernidade244 Desde Durkheim e da sua questatildeo acerca da estabilidade e da ordem

sociais no contexto de uma aceleraccedilatildeo crescente o problema tem vindo a destacar-se

nas teorias modernas da sociedade245 Tambeacutem Anthony Giddens sublinhou em 1984 a

importacircncia do tempo e da sua relaccedilatildeo com o espaccedilo

It [time and space DS] is not a specific type or ldquoareardquo of social science which can be

pursued or discarded at will lt is at the very heart of social theory as interpreted through

the notion of structuration246

estaacute discutido numa maneira controversa Esta discussatildeo prefigura uma fragmentaccedilatildeo que implica quenatildeo existe uma uacutenica conceccedilatildeo abrangente do sujeito poacutes-modernoda modernidade tardia dentro dasciecircncias sociais Capital no decorrer deste trabalho no entanto satildeo as suposiccedilotildees fundamentais nadefiniccedilatildeo geral de termos de que o sujeito moderno eacute objetivo e interface das praacuteticas do discursordquo deque surge do dualismo entre o interior mental e o exterior material e de que deste modo natildeo estaacutesimplesmente disponiacutevel mas sempre resulta num processo de produccedilatildeo cultural permanenterdquoReckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p10) No sujeito estatildeo retratadas natildeo soacute asespecificidades individuais como tambeacutem as de foro social cultural poliacutetico cultural e histoacuterico da suarespetiva eacutepoca Os sujeitos configuram-se sobretudo atraveacutes das diferentes praacuteticas sociais e ordens deconhecimento que o moldam na compreensatildeo de si mesmo nas suas perceccedilotildees e ateacute mesmo nos seusproacuteprios movimentos corporais (Ibid p7) Assim evoluem a compreensatildeo de si mesmo e a suaidentidade agrave luz da respetiva bdquocultura do sujeitoldquo (Keupp HHohl J Subjektdiskurse imgesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p45) SegundoReckwitz em contraste com o conceito de indiviacuteduo o conceito de sujeito trata mais a questiona em quemedida a accedilatildeo do ser singular eacute determinada socialmente e qual eacute a forma que os indiviacuteduos assumem emdeterminados contextos sociais e histoacutericos (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p9) Otermo sujeito pode por conseguinte ser entendido como aquilo que denota toda a forma cultural [] naqual o indiviacuteduo enquanto entidade corpoacutereo-mental-afetiva em determinadas praacuteticas e discursos setorna um ser social (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p17) No cerne das anaacutelises dosujeito edificam-se portanto estruturas especiacuteficas respetivas que compotildeem determinadas formas desubjetividade (Meiszligner H Jenseits des autonomen Subjekts Bielefeld 201 p11)242 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p18243 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24244 Elias N Uumlber die Zeit Frankfurt aM 1984 Giddens A The Constitution of Society Cambridge1984 pp34 110 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der ModerneFrankfurt a M 2005 p20 Scheuerman W Social Theoty of Speed In European Lournal of Sociology47 (2006) 443245Scheuerman W Social Theoty of Speed In European Lournal of Sociology 47 (2006) 443246 Giddens A The Constitution of Society Cambridge 1984 p110

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Tanto a pesquisa existente e as investigaccedilotildees detalhadas como os estudos sobre

o tempo teoricamente orientados carecem aos olhos de Rosa de um viacutenculo metoacutedico

relativamente a uma teoria de base empiacuterica descurando por conseguinte a

identificaccedilatildeo dos aspetos cruciais do tempo e dos atuais desenvolvimentos sociais247

Rosa tenta preencher esta lacuna existente na literatura das ciecircncias sociais delineando

a sua teoria da aceleraccedilatildeo social e do ldquoincrementordquo (Steigerung) Ao contraacuterio de

Bauman cujas observaccedilotildees sobre os processos de aceleraccedilatildeo influenciam fortemente as

suas reflexotildees sobre a Modernidade liacutequida conquanto natildeo formem sistematicamente o

seu centro de atenccedilatildeo Rosa parte para a investigaccedilatildeo da anaacutelise das estruturas temporais

modernas Ao analisar a interaccedilatildeo automotora da aceleraccedilatildeo social e ao integraacute-la numa

teoria da Modernidade Rosa pretende apresentar uma obra que revele o paradoxo do

tempo e a crescente dinamizaccedilatildeo das condiccedilotildees sociais e das suas consequecircncias248 O

objetivo eacute que o trabalho compreenda249 os ldquoatuais desenvolvimentos e problemas

sociais no contexto da Modernidade tardia250 procurando representar o entrelaccedilamento

sistemaacutetico entre as perspetivas do agente e as do sistema251 De acordo com Rosa os

processos sociais podem ser geralmente vistos como micro ou macrossocioloacutegicos

Nos primeiros o foco estaacute no sujeito na sua relaccedilatildeo consigo mesmo nas relaccedilotildees

sociais entre pessoas e grupos e entre o sujeito e o mundo o plano do agente eacute o ponto

de partida para anaacutelises microssocioloacutegicas Por outro lado os ensaios

macrossocioloacutegicos tratam os processos sociais como alteraccedilotildees de estruturas

sisteacutemicas252 nos quais a grande criaccedilatildeo social e a sua estrutura satildeo o acircmago da

investigaccedilatildeo Rosa propotildee-se a desenvolver em conformidade com a teoria

criacuteticaescola de Frankfurt um viacutenculo entre as duas perspetivas (anaacutelises sociais

247 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p22248 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p23249 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p 24 47250 Rosa opta pelo termo Modernidade taacuterdia para poder escrever sobre a mudanccedila social dos tempospresentes atraveacutes de uma perspectiva estrutural (Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p49) O termo poacutes-modernismo a seu verpressupotildee uma perspetiva cultural (cf Busch M Solidaritaumlt im beschleunigten Wandel Berlin 2012p53) A designaccedilatildeo ldquoModernidade tardiardquo tambeacutem se poderaacute referir mais agravequilo que eacute processual aodesenvolvimento per se da Modernidade (Para uma elaboraccedilatildeo mais aprofundada sobre a diferenciaccedilatildeohistoacuterica entre o modernismo claacutessico e a Modernidade tardia entre outros cf Rosa HStrecker DStreckmann A Soziologische Theorien Konstanz 2007251 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24252 Turner B (ed) The Cambridge Dictionary of Sociology Cambridge 2006 pp346383

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sisteacutemico-estruturais e abordagens centradas no sujeito)253 Para aleacutem de tal propoacutesito a

teoria de Rosa tem ainda em vista investigar os equivalentes dos processos

socioculturais na construccedilatildeo de autorrelaccedilotildees subjetivas ou seja analisar a ldquoassimilaccedilatildeo

das loacutegicas dos sistemas e das accedilotildees pessoaisrdquo254

Apesar da enunciaccedilatildeo de tais aspetos negativos da modernidade Hartmut Rosa

considera a ldquoexpansatildeo do alcance do mundordquo255 (Weltreichweitenvergroumlszligerung) como

um elemento moderno que merece enaltecimento filosoacutefico e cultural A loacutegica da

dinamizaccedilatildeo da aceleraccedilatildeo e do incremento (ldquoSteigerungrdquo) da modernidade tem

consequecircncias segundo Rosa no modo como o sujeito eacute colocado no mundo e no tipo

de relaccedilotildees que este pode formar Como resultado a relaccedilatildeo entre sujeito e mundo torna-

se mais dinacircmica256 A ldquoposiccedilatildeo no mundordquo o lugar na ordem que um ser humano

ocupa ou pode ocupar natildeo eacute mais predeterminada mas eacute estabelecida segundo uma

competiccedilatildeo dinacircmica e muitas vezes contingente Na modernidade tardia tal significa

que esta posiccedilatildeo pode nova e constantemente mudar natildeo se encontrando como

acontecia no acircmbito da modernidade claacutessica determinada antes da vida adulta e

consolidada mediante uma carreira ou um percurso profissionais na modernidade

tardia a posiccedilatildeo do indiviacuteduo no mundo carateriza-se bem mais pela inseguranccedila

dinacircmica e tem de ser disputada defendida ou trocada repetidas vezes ao longo do

tempo de vida Tal pressupotildee que o sujeito natildeo ldquose conecte e cresccedila numa maneira

ressonanterdquo257 quando tem de se reposicionar dinacircmica e repetidamente sendo a

obrigado a acertar contiacutenuas tomadas de posiccedilatildeo Ao mesmo tempo contudo o

indiviacuteduo alarga o seu horizonte de alcance relativamente ao mundo torna-o mais

previsiacutevel disponiacutevel e dominaacutevel Eacute neste sentido que a histoacuteria da modernidade pode

ser contada como uma histoacuteria natildeo restrita de progresso

Atraveacutes do crescimento da riqueza econoacutemica e da potecircncia produtiva atraveacutes do domiacutenio

cada vez mais abrangente da natureza atraveacutes do incremento das possibilidades e

disponibilidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas mas tambeacutem como resultado dos processos

sociais de liberalizaccedilatildeo pluralizaccedilatildeo e individuaccedilatildeo bem como em muitos lugares de

democratizaccedilatildeo aumentam as ldquopossibilidades do mundordquo dos indiviacuteduos desde o seacuteculo

253Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24254 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p25255 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p704 H Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 256Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt a M 2012257 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p312

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XVIII 258

Segundo Rosa a tecnologia dos transportes coloca quase toda a superfiacutecie

terrestre ao alcance de um sempre crescente nuacutemero de pessoas em termos de turismo e

da migraccedilatildeo a digitalizaccedilatildeo e a mediatizaccedilatildeo permitem a novas pessoas um mais

elevado alcance comunicativo a comercializaccedilatildeo por sua vez torna disponiacutevel

diariamente um nuacutemero cada vez maior de possibilidades e tudo isto acontece no

momento em que a ciecircncia permite que aspetos do mundo e do corpo se tornem

tecnologicamente manipulaacuteveis e maleaacuteveis Colocar o mundo ao alcance do indiviacuteduo

constitui o motivo da modernidade em geral Com a expressatildeo ldquoexpansatildeo do alcance do

258 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p520

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mundordquo259 resumem-se segundo Rosa o programa estrutural e o projeto cultural da

modernidade

23 Zygmunt Bauman e o conceito de modernidade liacutequida

O ritmo de mudanccedila raacutepido e continuamente acelerado torna verdadeiro seguinte

que o futuro natildeo seraacute como o presente

259 De acordo com Rosa uma caracteriacutestica determinante da sociedade moderna ndash que nos permitecompreender o conceito de ldquoexpansatildeo do alcance do mundordquo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) ndash consisteno facto de esta apenas poder manter a estrutura atraveacutes de formas de incremento e de mobilizaccedilatildeo isto eacuteatraveacutes de crescimento (econoacutemico) de aceleraccedilatildeo (tecnoloacutegica) eou de sequecircncias de inovaccedilotildees cadavez mais raacutepidas (Rosa H Escalation the crisis of dynamic stabilization and the prospect of resonance In Doumlrre K (Ed) Sociology capitalism critique LondonNew York 2015 pp 280ndash305 Rosa HResonanz Berlin 2016 pp 671ndash706 Rosa H et al Appropriation activation and acceleration Theescalatory logics of capitalist modernity and the crisis of dynamic stabilization In Theory Culture andSociety 34 2017 pp 53ndash74) Quando Rosa fala de estabilizaccedilatildeo e de preservaccedilatildeo o filoacutesofo pretendereferir-se em primeiro lugar agrave estabilizaccedilatildeo da ordem institucional baacutesica nomeadamente a economia demercado orientada para a concorrecircncia o sistema cientiacutefico educativo e social o sistema de sauacutede e aordem baacutesica geral poliacutetica e juriacutedica e em segundo lugar agrave loacutegica operacional de acumulaccedilatildeo edistribuiccedilatildeo propriamente dita que define por seu turno o status quo por outras palavras trata-se daloacutegica de incremento da acumulaccedilatildeo de capital ativaccedilatildeo mobilizada crescimento aceleraccedilatildeo e inovaccedilatildeo(Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 29) Mesmo que as instituiccedilotildees poliacuteticas econoacutemicas oueducativas possam mudar ao longo do tempo no que concerne agrave sua aparecircncia ou composiccedilatildeo os seusimperativos sisteacutemicos e compulsotildees internas de incremento e crescimento permanecem (Rosa HUnfuumlgbarkeit Wien 2018 p 63) O ciacuterculo de incremento resultante da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica social eda vida faz da ldquoestabilizaccedilatildeo dinacircmicardquo um processo que se impulsiona a si proacuteprio (ver Rosa HBeschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p 243)Atraveacutes do incremento contiacutenuo da capacidade da produccedilatildeo e da eficiecircncia este processo manteacutem ostatus quo socioeconoacutemico e com ele as instituiccedilotildees da economia de mercado e do estado social bemcomo as da ciecircncia e da educaccedilatildeo Como resultado a loacutegica do incremento permanente e com ela anecessidade de crescimento velocidade e aperfeiccediloamento inscreve-se na subjetividade moderna e na suaestrutura habitual De facto esta loacutegica estaacute segundo Rosa duplamente enraizada no caraacutecter modernopor um lado como o desejo de expandir os nossos recursos e possibilidades por outro lado como o medode perder esses mesmos recursos em competiccedilatildeo (e portanto as condiccedilotildees para uma vida boa) Eacuteinegaacutevel que o crescimento (econoacutemico) a aceleraccedilatildeo (tecnoloacutegica) e a inovaccedilatildeo (sociocultural) trazemuma promessa genuiacutena estatildeo diretamente relacionados com as nossas ideias de liberdade e felicidade(Rosa H Unfuumlgbarkeit Wien 2018 pp 46) Mas porque eacute que este modo surge como atraente para amaioria dos sujeitos modernos A resposta que Rosa oferece eacute seguinte porque a loacutegica de incrementoda ldquoestabilizaccedilatildeo dinacircmicardquo anda de matildeos dadas com a promessa de alargar cada vez mais o alcance e oacircmbito de accedilatildeo tanto individual quanto coletivamente Tal conduz agravequilo que o filoacutesofo chama o projetode expansatildeo mundial (Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p704 Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien2018 p 40) Uma vez que segundo Rosa as sociedades modernas soacute conseguem estabilizar-se no modode incremento (ou seja dinamicamente) elas satildeo estrutural e institucionalmente forccediladas adisponibilizar cada vez mais do ldquomundordquo para o colocar teacutecnica econoacutemica e politicamente ao seualcance tornar as mateacuterias-primas utilizaacuteveis abrir mercados ativar potenciais sociais e psicoloacutegicosaumentar as possibilidades teacutecnicas aprofundar a base de conhecimentos melhorar as possibilidades decontrolo e monitorizaccedilatildeo etc (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 12) Tal tambeacutem incluicertamente muitos aspetos positivos mas Rosa natildeo se concentra neles Segundo Rosa o estar-no-mundoe o agir-no-mundo modernos estatildeo assim orientados para tornar o mundo quantitativa e qualitativamentemais e mais disponiacutevel controlaacutevel e acessiacutevel (claro que este argumento estaacute intelectualmente muitoproacuteximo das ideias da primeira geraccedilatildeo da Teoria Criacutetica especialmente do conceito de Adorno eHorkheimer da razatildeo instrumental (Horkheimer M Adorno T W Dialektik der AufklaumlrungPhilosophische Fragmente Frankfurt a M 1984) e da mentalidade prometeica do homem moderno(Marcuse H Triebstruktur und Gesellschaft Ein philosophischer Beitrag zu Sigmund Freud) Frankfurt

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Zygmunt Bauman Postmodernity and its Discontents

Antes de entrarmos na exposiccedilatildeo e no comentaacuterio do pensamento de Hartmut

Rosa importaria aqui delinear ainda que de modo breve as principais conceccedilotildees que

estruturam as reflexotildees criacuteticas de Zygmundt Bauman relativas agrave modernidade Com

efeito no acircmbito do quadro semacircntico que os termos evocam Zygmunt Bauman recorre

aos termos liquidez260 e volatilidade como metaacuteforas para descrever o novo decorrer da

Modernidade e para separar este tardio estaacutegio liacutequido dos estaacutegios iniciais dominados

por uma maior solidez Ao contraacuterio do que eacute soacutelido o que eacute liacutequido altera

continuamente a sua forma natildeo eacute permitido o repouso e por isso eacute sensiacutevel agrave passagem

do tempo261 Aquilo que eacute liacutequido eacute extraordinariamente moacutevel e estaacute portanto

associado agrave mobilidade flexibilidade liberdade e agrave ligeireza ndash traccedilos que Bauman

atribui agrave nossa era presente A ordem social atual caracteriza-se pelo desconjuntar dos

viacutenculos sociais daqueles que com ou sem razatildeo se assumiam como modos de

restriccedilatildeo da liberdade de escolha e da liberdade de accedilatildeo262 Para Bauman as

caracteriacutesticas imperativas das mudanccedilas radicais atuais consistem na dissociaccedilatildeo do

poder da poliacutetica na progressiva individualizaccedilatildeo e na renegaccedilatildeo da comunidade263

bem como no fim do planear pensar e agir a longo prazo e na crescente

responsabilidade do indiviacuteduo pelo seu proacuteprio modo de viver influenciado pelas

circunstacircncias volaacuteteis e em constante mutaccedilatildeo264 De acordo com o filoacutesofo esta nova

forma de Modernidade eacute igualmente marcada pela efemeridade das formas sociais na

sua estrutura ndash estas encontram-se usando os termos de Bauman derretidas265 Neste

a M 1977)) Tal aplica-se agrave ciecircncia (tornando o mundo reconheciacutevel previsiacutevel e disponiacutevel) bem comoagrave prosperidade econoacutemica (quanto mais ricos formos ndash individualmente eou coletivamente ndash maisdisponiacutevel controlaacutevel e acessiacutevel eacute o mundo) De facto segundo Rosa a ldquoexpansatildeo do alcance domundo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) tambeacutem explica a atratividade da tecnologia especialmente naaacuterea da mobilidade e da comunicaccedilatildeo (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 48) Neste sentido aexpansatildeo do alcance do mundo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) pode referir -se por um lado a umaacessibilidade ou disponibilidade (fiacutesica ou comunicativa) e por outro lado a uma controlabilidade oudomiacutenio (poliacutetico e teacutecnico) e ainda a uma ldquoutilizaccedilatildeo do mundordquo (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien2018 p21)260 bdquohellipliquids unlike solids cannot easily hold their shape Fluids so to speak neither fix space norbind time While solids have clear spatial dimensions but neutralize the impact and thus downgrade thesignificance of timehellip fluids do not keep to any shape for long and are constantly ready (and prone) tochange itldquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2261 Ibid pp 2 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2262Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p7263 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p71264 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 Bauman Z LiquidFear Cambridge 2006 265Bauman define formas sociais como estruturas que limitam a margem de manobra para tomadas dedecisatildeo e tambeacutem como instituiccedilotildees que monitorizam a repetecircncia de processos rotineiros e padrotildees de

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contexto Bauman questiona quais os efeitos que estas mudanccedilas radicais exercem sobre

as condiccedilotildees de vida do sujeito na Modernidade liacutequida

Os profundos processos de transformaccedilatildeo socioeconoacutemica a abdicaccedilatildeo de

sistemas de ordens centrais que asseguravam a sua coesatildeo e regularidade e a

inconsistecircncia a eles associada tecircm um efeito decisivo no modo de vida do individuo

Que no mundo da Modernidade tardia ainda nem tudo se tenha liquefeito e que existam

forccedilas poderosas que intentem limitar um fluxo livre eacute amplamente ignorado por

Bauman Ritzer e Murphy266 argumentam que a observaccedilatildeo ndash natildeo exclusiva de Bauman

ndash de que a Modernidade tardia eacute marcada por uma liquefaccedilatildeo crescente eacute de facto

certeira mas que diversos bloqueios e limitaccedilotildees tecircm de ser tidos em conta

Como caracteriacutestica saliente do conceito multifacetado e complexo de

Modernidade Bauman invoca a relaccedilatildeo modificada entre espaccedilo e tempo267 O espaccedilo e

o tempo evadem-se da Modernidade O tempo pela sua funccedilatildeo em expansatildeo torna-se

histoacuterico e emancipa-se do espaccedilo268 A era da Modernidade eacute no fundo aquela em que

o tempo estaacute no centro de tudo Em contraste com o elemento estaacutevel (o espaccedilo) o

tempo afigura-se superior devido agrave sua natureza ativa e dinacircmica permitindo-se

manipular e alterar269 Atraveacutes das novas tecnologias torna-se possiacutevel atravessar o

espaccedilo de uma forma cada vez mais raacutepida e acelerada em muito menos tempo do que

anteriormente Tendo presente a nova flexibilidade e o desejo de expansatildeo Bauman

concebe a Modernidade como sendo originalmente um empreendimento de ldquosubmissatildeo

do espaccedilordquo270 Mas a submissatildeo do espaccedilo constituiu com efeito um dos principais

objetivos da ldquoModernidade pesadardquo progresso que neste contexto significava

crescimento e extensatildeo espacial Assim o tempo teria de permanecer maleaacutevel e pela

sua natureza encolher continuamente271 Tal processo provocou o desenvolvimento de

um novo imediatismo que marcaria o fim da designada Modernidade soacutelida O iniacutecio e

o fim dos intervalos de tempo aproximar-se-iam cada vez mais e disso resultariam

apenas momentos e natildeo desenvolvimentos temporais abrangentes A rapidez de

movimento tornou-se um valor essencial ndash ou segundo Bauman um meio fundamental

comportamento geralmente aceites (Bauman Z Liquid Times Living in na Age of UncertaintyCambridge 2007 p42) 266 Ritzer GMurphy J Festigkeit in einer Welt der Fluumlssigkeit Wiesbaden 2007 p53267Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p8268 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p134269 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p132270Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p132271Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p136

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ao serviccedilo do poder e da dominaccedilatildeo O poder tornou-se extraterritorial devido agrave

velocidade dos sinais eletroacutenicos tornando o espaccedilo insignificante272 O novo desafio eacute

portanto ser-se capaz de um deslocamento suficientemente raacutepido para se alcanccedilar de

modo mais ceacutelere possiacutevel a instantaneidade ndash soacute assim se obteraacute poder movendo-se

lentamente eacute-se dominado Somente aquele que eacute ceacutelere a adaptar-se a novas situaccedilotildees

e a renunciar ao longo prazo pode na ldquoera do imediatismordquo assumir uma posiccedilatildeo de

topo273

the collapse of long-term thinking planning and acting and the disappearance or

weakening of social structures in which thinking planning and acting could be inscribed

for a long time to come leads to a splicing of both political history and individual lives

into a series of short-term projects and episodes which are in principle infinite and do not

combine into the kinds of sequences to which concepts like lsquodevelopmentrsquo lsquomaturationrsquo

lsquocareerrsquo or lsquoprogressrsquo (all suggesting a preordained order of succession) could be

meaningfully applied A life so fragmented stimulates lsquolateralrsquo rather than lsquoverticalrsquo

orientations Each next step needs to be a response to a different set of opportunities and a

different distribution of odds and so it calls for a different set of skills and a different

arrangement of assets Past successes do not necessarily increase the probability of future

victories let alone guarantee them while means successfully tested in the past need to be

constantly inspected and revised since they may prove useless or downright

counterproductive once circumstances change A swift and thorough forgetting of outdated

information and fast ageing habits can be more important for the next success than the

memorization of past moves and the building of strategies on a foundation laid by previous

learning274

A durabilidade assim como tudo o que impede o movimento constitui um

fardo podendo eventualmente conduzir a uma derrota na proacutexima jogada da

aceleraccedilatildeo275

As forccedilas de liquefaccedilatildeo descritas por Bauman natildeo afetam apenas o niacutevel macro

mas tambeacutem a liquefaccedilatildeo da realidade da vida da imagem de si mesmo e da interaccedilatildeo

ao niacutevel micro276 Os processos profundos de mudanccedila da Modernidade encontram

tambeacutem equivalecircncias ao niacutevel do sujeito numa forma de viver igualmente definida

272 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p136273 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p150274Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p3Sobre o problema ldquoverticalidaderdquo versus ldquohorizontalidaderdquo na modernidade tardia consultar SloterdijkP Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014275Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p152276 Ritzer GMurphy J Festigkeit in einer Welt der Fluumlssigkeit Wiesbaden 2007 p57

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pelas forccedilas da liquefaccedilatildeo Bauman observa que ao abdicar dos comiteacutes centrais de

organizaccedilatildeo o mundo apresenta-se hoje como uma aglomeraccedilatildeo ilimitada de

possibilidades e tudo se resume ao niacutevel do indiviacuteduo que sozinho pode ndash e deve ndash

decidir que opccedilotildees escolher277

the responsibility for resolving the quandaries generated by vexingly volatile and

constantly changing circumstances is shifted onto the shoulders of individuals ndash who are

now expected to be lsquofree choosersrsquo and to bear in full the consequences of their choices

The risks involved in every choice may be produced by forces which transcend the

comprehension and capacity to act of the individual but it is the individualrsquos lot and duty

to pay their price because there are no authoritatively endorsed recipes which would allow

errors to be avoided if they were properly learned and dutifully followed or which could

be blamed in the case of failure278

A privatizaccedilatildeo e a individuaccedilatildeo satildeo para Bauman elementos distintivos da

Modernidade liacutequida A ldquoevaporaccedilatildeordquo das vaacuterias determinantes que antes ofereciam

diretrizes de accedilatildeo relativamente bem ancoradas ldquodesamarrourdquo personalidades

colocando-as perante a ldquoagonia da escolhardquo279 Mediante a liquefaccedilatildeo de formas sociais

as quais na Modernidade soacutelida ainda ofereciam um quadro referencial para estrateacutegias

de vida pensadas a longo prazo e que no entanto hoje ainda preservam

passageiramente a sua forma torna-se mais difiacutecil desenvolver um plano de vida

consistente e coerente Eacute neste contexto que Bauman enquadra a sua anaacutelise das forccedilas

de subjetivaccedilatildeo e as suas reflexotildees sobre os estilos de vida na Modernidade tardia280

Como supramencionado Bauman considera os fenoacutemenos da Modernidade

liacutequida como intimamente relacionados com a transformaccedilatildeo da sociedade do tipo

capitalista Bauman baseia por conseguinte o seu conceito de sujeito na ideia de partida

de ldquouma transformaccedilatildeo epocalrdquo da sociedade do tipo capitalista desde o capitalismo da

produccedilatildeo ao capitalismo do consumo os quais influem e determinam perpetuamente

toda a sociedade e os seus indiviacuteduos281 Bauman concebe o ldquotrabalhordquo como o

mecanismo central na Modernidade soacutelida da inclusatildeo social como elemento que une

a sociedade relacionando entre si os diferentes mundos de vida (Lebenswelt)

individuais agrave racionalidade do sistema Na Modernidade liacutequida tal situaccedilatildeo afigura- se

277 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p76278Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p4279 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p15280 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p7281 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p41

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transposta para a realidade do ldquoconsumordquo ndash o que determinou significativamente a

rutura epocal entre a Modernidade soacutelida e a liacutequida tal como entre os novos projetos

de identidade e os estilos de vida282 Bauman propotildee que os membros da Modernidade

liacutequida diferem dos da Modernidade soacutelida no sentido em que jaacute natildeo satildeo mais

produtores mas sim consumidores283 A vida no papel do produtor em tempos da

Modernidade soacutelida e do capitalismo austero no qual o homem eacute procurado como forccedila

de trabalho284 ainda estava claramente definida por normas Segundo tal quadro limites

socialmente aceites estabeleciam uma margem de manobra para a avidez e o desejo

bem como um miacutenimo para as condiccedilotildees de vida a palavra de ordem consistira em

aderir a uma vida numa posiccedilatildeo segura entre o miacutenimo para subsistecircncia por um lado e

o limite do luxo pelo outro285 No capitalismo claacutessico de produccedilatildeo assim entendido

por Bauman os indiviacuteduos detinham uma posiccedilatildeo mais ou menos clara e as condiccedilotildees

de trabalho e de vida encontravam-se definidas de forma clara Disciplina asceacutetica de

trabalho e constacircncia bem como uma ligaccedilatildeo a um lugar e a um tempo delineam os

contornos desta fase Com a liquefaccedilatildeo das estruturas sociais e o concomitante

desmantelamento desenfreado e sempre progressivo do abarcador sistema de regulaccedilatildeo

normativa a vida do produtor encaminhou-se crescentemente na direccedilatildeo da do

consumidor Com a desregulamentaccedilatildeo a liberalizaccedilatildeo e a privatizaccedilatildeo as estruturas

fixas do capitalismo da produccedilatildeo liquefizeram-se e o indiviacuteduo nas suas demandas e

interesses tornou-se progressivamente o centro de toda a realidade O formar-se-a-si-

mesmo e a resultante responsabilizaccedilatildeo pessoal tornaram-se preceito as condiccedilotildees de

vida jaacute natildeo satildeo definidas por meios coletivos e sociais pois encontram-se

desinstitucionalizadas tornando-se viaacutevel que natildeo advenham senatildeo de esforccedilos

individuais Bauman refere-se assim aos pensamentos de Pierre Bourdieu

argumentando que a coerccedilatildeo social fora substituiacuteda por incentivos no lugar dos

modelos de comportamento violentos e obrigatoacuterios encontramo-nos perante a seduccedilatildeo

da criaccedilatildeo de novas necessidades e desejos286 O princiacutepio do desejo tomou o lugar da

necessidade sendo rapidamente substituiacutedo pelo querer oscilante pelo ldquoultimato do

282 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p90283 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p89 Bauman Z Liquid life Cambridge 2005p28284 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007p 182285 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p93286 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p182

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princiacutepio de prazerrdquo287 Os meios de comunicaccedilatildeo de massas obtecircm neste caso um

novo e tremendo poder para gerar imaginaccedilotildees e fantasias individuais e coletivas288

Devido agrave falta de padrotildees normativos de orientaccedilatildeo carece-se de diretrizes para uma

ldquoconformidaderdquo substituiacuteda pela ldquoadequaccedilatildeo situacionalrdquo289 Eacute importante estar-se

preparado a todo o momento para aproveitar novas oportunidades e em particular

desenvolver novos desejos que faccedilam manter o movimento

No ato de consumir eacute tentada uma evasatildeo da inseguranccedila geral no miacutenimo pelo

momento290 O valor capital o movimento em si eacute aqui expresso ndash estar sempre um

passo agrave frente sempre em corrida (dada a inexistecircncia de destinos reais a corrida em si

preenche essa lacuna) ndash no ldquoarqueacutetipordquo do passeio para compras do shopping no qual

todos os membros da sociedade de consumo participam Bauman considera que o

comportamento do consumidor que olha observa toca pesa compra para de imediato

devolver eacute representativo do comportamento do sujeito na era atual291 Para Bauman a

eterna busca de novas e melhores ofertas concretiza-se no siacutembolo da Modernidade

liacutequida com a sua igualmente eterna ponderaccedilatildeo de opccedilotildees e desejo de possibilidades

alternativas No ato de consumo no ato de apropriaccedilatildeo poder-se-ia escapar pelo menos

por breves momentos agrave incerteza agrave inseguranccedila e ao vazio que surgiram com o

desmantelamento de todas as estruturas soacutelidas durante a Modernidade liacutequida No

entanto tanto produtos como estruturas sociais tecircm um prazo de validade o ato da

compra tem de ser repetido constantemente Mesmo que o consumo fizesse parte da

sociedade moderna desde sempre ele teraacute evoluiacutedo atraveacutes dos processos de

transformaccedilatildeo da Modernidade liacutequida de uma componente para um modo de viver e

atraveacutes disto tambeacutem para um imperativo do presente292

Para Bauman a individualizaccedilatildeo caracteriza de modo indeleacutevel a Modernidade

Com a substituiccedilatildeo da determinaccedilatildeo heteroacutenoma da ordem ldquoestamentalrdquo por uma

(ldquoobrigatoacuteriardquo) autodeterminaccedilatildeo o indiviacuteduo da Modernidade liacutequida encontra-se

287 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p92288 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p102289 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p93290 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p98291 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p88292 Blackshaw T Zygmunt Baumann Routledge London amp New York 2005 p114

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numa certa forma de liberdade apresentando-se igualmente como o responsaacutevel pela

configuraccedilatildeo da sua vida e da sua identidade Neste ponto Bauman sustenta a tese de

que a individuaccedilatildeo significa de jure uma garantia da autonomia ndash dado que o ser

singular na Modernidade liacutequida pela libertaccedilatildeo das estruturas sociais soacutelidas se torna

de jure num indiviacuteduo ndash mas coloca em causa o facto de esta autonomia existir de

facto293 Bauman acrescenta o seu entendimento de autonomia (no que diz respeito ao

debate sobre a autonomia individual) agrave possibilidade de uma autodeterminaccedilatildeo agrave

margem de manobra dada agrave escolha e accedilatildeo em estreita relaccedilatildeo com a constituiccedilatildeo de si

mesmo e da sua vida em geral Esta foi concedida de modo gradual ou no miacutenimo

superficialmente aos indiviacuteduos ldquolibertadosrdquo atraveacutes dos processos acelerados de

liquefaccedilatildeo Com base nas suas reflexotildees presentes em ldquoFreedomrdquo livro publicado em

1988 Bauman aponta para que atraveacutes da libertaccedilatildeo de estruturas sociais soacutelidas os

indiviacuteduos tenham mais liberdade e autonomia na formaccedilatildeo da sua identidade e do seu

modo de viver do que alguma vez tiveram Como jaacute foi referido o sujeito da

Modernidade liacutequida tem agrave sua disposiccedilatildeo vaacuterios estilos de vida A figura do

consumidor eacute o autoacutenomo ator de consumo pois tem liberdade de escolha Poreacutem ao

incremento da liberdade opotildee-se simultaneamente o facto de que natildeo existe a opccedilatildeo de

natildeo participar no ldquojogordquo da liberdade de escolha individual ndash tendo em conta a

influecircncia de mecanismos sobre os quais o ser singular natildeo possui controlo A

individuaccedilatildeo enquanto destino natildeo constitui uma escolha livre e assim

concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de liberdade adveacutem uma tendecircncia agrave imposiccedilatildeo e agrave

orientaccedilatildeo independentes num mundo sem marcos de referecircncia fixos294 Eacute nestes

moldes que Bauman desenvolve as suas reflexotildees sobre a ambivalecircncia da autonomia

do sujeito na Modernidade liacutequida

Segundo Bauman a libertaccedilatildeo estaacute no topo da hierarquia dos valores da

humanidade moderna O objetivo central da Modernidade consiste em desenvolver uma

vida autoacutenoma e autodeterminada295 Bauman partindo das posiccedilotildees de Eacutemile

Durkheim observa que natildeo eacute possiacutevel obter liberdade lutando continuamente contra a

sociedade mas sim e de uma certa forma submetendo-se a ela296 Neste sentido

293 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p43294 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p45295 Libertar-se com o objetivo de se autodeterminar em combinaccedilatildeo com a possibilidade de poderescolher uma identidade livremente ter a liberdade de agir e ser capaz de definir o proacuteprio modo de vivereacute neste contexto posto em paralelo com a busca pela autonomia (cf Bauman Z Freedom MiltonKeynes 2003 p25)296 Kron TReddig M Der Zwang zur Moral und die Dimension moralischer Autonomie beiDurkheim Wiesbaden 2003 p180

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Bauman considera que o abrigo dado pela sociedade pode ajudar a encontrar a

libertaccedilatildeo nesta dependecircncia referindo-se a Durkheim297 Como jaacute foi esclarecido antes

a autonomia consiste para se autoconceber sempre de forma relativa pois o ser singular

nunca poderaacute estar consumadamente livre do seu contexto histoacuterico e social A

autonomia neste ponto vista soacute pode ser adquirida em toda a sua completude no quadro

do contexto social numa certa forma de ldquosubmissatildeordquo e ao abrigo da sociedade Como

resultado dos processos de liquefaccedilatildeo e das consequentes individuaccedilotildees privatizaccedilotildees e

fragmentaccedilotildees o ser humano separou-se da sociedade constata Bauman298 O ser

singular conquistou todas as liberdades concebiacuteveis ndash no entanto a tarefa de se libertar

foi cumprida somente porque ocorrera no contexto do grande todo social299 A partir

disto formou-se um abismo entre a individualidade como destino e a individualidade

praacutetica e real como autoafirmaccedilatildeo300 Bauman prossegue declarando que a capacidade

de autoafirmaccedilatildeo dos seres humanos individualizados raramente eacute suficiente para uma

autoconstituiccedilatildeo o que ao mesmo tempo implica a liberdade ilimitada a par com uma

ldquoimpotecircnciardquo do ser singular perante ela301 Passou o tempo em que a esfera do puacuteblico

se submetia agrave do privado O poder agora publicamente exposto e a liberdade

condicionada do indiviacuteduo ameaccedilam com a presente dominaccedilatildeo do privado sobre o

puacuteblico a impotecircncia praacutetica da liberdade que se alcanccedilou Apesar de o poder puacuteblico

ter perdido muito das suas qualidades negativas tambeacutem desapareceram dele as suas

ldquoforccedilas criadoras positivasrdquo302 Assim segundo Bauman o ldquogrande abismo entre o

direito agrave autodeterminaccedilatildeo e a possibilidade de controlar as condiccedilotildees sociais que

permitem ou impedem essa autodeterminaccedilatildeordquo representa a ldquoprincipal contradiccedilatildeo da

Modernidade liacutequidardquo303 Esta ambivalecircncia da autonomia passou como muitas outras

coisas da esfera puacuteblica para a esfera privada e deve ser digerida individualmente ndash

todavia assinala Bauman os indiviacuteduos natildeo estatildeo ainda agrave altura desta tarefa304

there is a wide and growing gap between the condition of individuals de jure and their

chances to become individuals de facto ndash that is to gain control over their fate and make

297 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p29298Neste contexto Bauman tambeacutem se refere agrave ldquouacutenica formardquo remanescente de comunitarizaccedilatildeo aseparaccedilatildeo conjunta daquilo que eacute estranho as inquietaccedilotildees e medos comuns ou o oacutedio compartilhado(Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p49)299 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p32300 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p46301 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p46302 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p65303Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p50304 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p50

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the choices they truly desire305

O sujeito da Modernidade liacutequida dispotildee apenas de uma autonomia de jure

Como natildeo possui ldquorecursos suficientesrdquo para se autoafirmar a autonomia de facto

permanece por atingir Bauman classifica a autonomia individual nos tempos da

Modernidade liacutequida como ambivalente Esta ambivalecircncia alimenta-se da diversidade

de opccedilotildees oferecidas pela Modernidade liacutequida com o incremento excessivo de

possibilidades tambeacutem crescem as possibilidades de decisatildeo a clareza torna-se

obsolescente e os pontos de referecircncia fixos ndash os paracircmetros que poderiam avaliar uma

decisatildeo como ldquoboardquo ou ldquocertardquo escasseiam A consciecircncia de que se poderia ter decidido

e escolhido de um modo diferente torna-se mais aguda e faz com que se concretize o

perigo de fragmentaccedilatildeo306 A identificaccedilatildeo de si mesmo agora uma tarefa individual

abarca efeitos colaterais disruptivos permanecendo contudo inevitaacutevel pois o

incremento na liberdade natildeo a isenta da agonia da escolha e da responsabilidade307 O

sujeito libertado da Modernidade liacutequida enfrenta por um lado um enorme incremento

de autonomia atraveacutes do ganho de liberdade de escolha individual mas por outro lado

o mesmo sujeito encontra-se exposto agrave inescapaacutevel compulsatildeo dos mecanismos de

volatilizaccedilatildeo social A estes processos o perder das certezas tradicionais e a emergecircncia

do medo e da desorientaccedilatildeo reagiu-se procurando incansaacutevel e coercivamente o

consumo e o prazer308 Na busca de um novo sentido num mundo em que nada eacute mais

predeterminado o mercado do consumo eacute o novo ldquomercado de significadordquo Face agrave

sobrecarga do mundo desregulamentado os indiviacuteduos entregam-se ao mercado do

consumo como poder heteroacutenomo que mina permanentemente o exerciacutecio da autonomia

e impede os seres humanos de controlarem as suas proacuteprias vidas309 A liberdade reduz-

se por conseguinte agrave liberdade de consumir os indiviacuteduos aparentemente libertados

estatildeo sujeitos agraves restriccedilotildees do consumo e do mercado Relativamente a tal Bauman

escreve

the mobility and the flexibility of identification which characterize the lsquoshopping aroundrsquo

type of life are not so much vehicles of emancipation as the instruments of the

redistribution of freedoms They are for that reason mixed blessings ndash enticing and desired

as much as repelling and feared and arousing most contradictory sentiments They are

305 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p39306 Junge M Ambivalente Autonomie Muumlnster 2004 p143307 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p185308 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p186309 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p44

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highly ambivalent values which tend to generate incoherent and quasi-neurotic

reactions310

O leque de possibilidades criado pela liquefaccedilatildeo dos viacutenculos tradicionais eacute

assim integrado diretamente em mecanismos de mercado e deste modo novamente

empregue por um poder estranho311 Perante a autonomia ambivalente do sujeito da

Modernidade liacutequida Bauman sublinha o papel da teoria criacutetica para a real e ateacute entatildeo

inatingida libertaccedilatildeo do indiviacuteduo312 Como jaacute foi mencionado Bauman concebe o

caminho para a libertaccedilatildeo do homem mediante a imagem de uma ldquoponte sobre o abismo

entre a realidade do indiviacuteduo de jure e as perspetivas para uma individualidade de

factordquo313 o que pode ser alcanccedilado pela ressuscitaccedilatildeo da existecircncia enquanto cidadatildeo

Mostrar este abismo e revelar como se constroacutei sobre ele uma ponte que garanta ldquoa

reapropriaccedilatildeo coletiva de um projeto privatizado e utoacutepico de lsquolife-politicsrsquo

individualizadasrdquo314 constitui para Bauman a tarefa da teoria criacutetica Atraveacutes da

demissatildeo da poliacutetica como instrumento regulador controlador e de exerciacutecio de poder

os problemas resultantes das tentativas de desenvolver indiviacuteduos de facto cresceram

de um modo geral315

If the old objective of critical theory ndash human emancipation ndash means anything today it

means to reconnect the two edges of the abyss which has opened between the reality of the

individual de jure and the prospects of the individual de facto And individuals who

relearned forgotten citizen skills and reappropriated lost citizen tools are the only builders

up to the task of this particular bridge building316

310 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p90311 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p45312 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 pp50 248313 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p54314 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p65315 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 pp53 64316 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p41bdquoThe need in thinking is what makes us think said Adorno His Negative Dialectics that long andtortuous exploration of the ways of being human in a world inhospitable to humanity ends with thisbiting yet ultimately empty phrase after hundreds of pages nothing has been explained no mysterycracked no reassurance given The secret of being human remains as impenetrable as it had been at thebeginning of the journey Thinking makes us human but it is being human that makes us think Thinkingcannot be explained but it needs no explanation Thinking needs no justification but it would not bejustified even if one tried This predicament is Adorno would tell us again and again neither a sign of thethoughtrsquos weakness nor the badge of the thinking personrsquos shame If anything the opposite is true UnderAdornorsquos pen the grim necessity turns into a privilege The less a thought can be explained in termsfamiliar and making sense to the men and women immersed in their daily pursuit of survival the nearer itcomes to the standards of humanity the less it can be justified in terms of tangible gains and uses or theprice-tag attached to it in the superstore or at stock-exchange the higher is its humanizing worth It is theactive search for market value and the urge for immediate consumption that threaten the genuine valueof thought lsquoNo thought is immunersquo writes Adorno against communication and to utter it in the wrongplace and in wrong agreement is enough to undermine its truth hellip For the intellectual inviolableisolation is now the only way of showing some measure of solidarityhellip The detached observer is as

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much entangled as the active participant the only advantage of the former is insight into hisentanglement and the infinitesimal freedom that lies in knowledge as such It will become clear that theinsight is the beginning of freedom once we remember that lsquoto a subject that acts naiumlvely hellip its ownconditioning is nontransparentrsquo and that the non-transparency of conditioning is itself the warrant forperpetual naiumlvety Just as the thought needs nothing but itself to self-perpetuate so the naiumlvety is self-sufficient as long as it is not disturbed by insight it will keep its own conditioning intact lsquoNotdisturbedrsquo indeed the entry of insight is hardly ever welcomed by those who have grown used to livingwithout it as the sweet prospect of liberation The innocence of naiumlvety makes even the most turbulentand treacherous condition look familiar and therefore secure and any insight into its precariousscaffolding is the portent of non-confidence doubt and insecurity which few people would greet withjoyful anticipation It seems that for Adorno that widespread resentment to insight is for the betterthough it does not augur an easy ride The unfreedom of the naiumlve is the freedom of the thinking person Itmakes the lsquoinviolable isolationrsquo that much easierldquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000p42

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24 | O pensamento filosoacutefico-social de Hartmut Rosa o conceito de

aceleraccedilatildeo

A quem perguntar pelo movens da tiacutepica aceleraccedilatildeo da Modernidade seraacute chamado aatenccedilatildeo para o mecanismo do acoplamento por reaccedilatildeo que o socioacutelogo americano RobertMerton apoiando-se numa passagem conhecida do Novo Testamento propocircs que seformulasse como ldquoefeito Mateusrdquo Nas palavras de Jesus ndash ldquo(hellip) a quem tem mais seraacute dadoe teraacute em grande quantidade Mas a quem natildeo tem ateacute o que tem lhe seraacute tiradordquo (Mateus2529) ndash eacute antecipada de uma maneira intuitiva a loacutegica do campo de atividade doacoplamento por reaccedilatildeo numa maneira auto-amplificada Efeitos deste tipo imprimem nastiacutepicas modernizaccedilotildees a forma do circulus virtuosus [hellip] Podem observar-se processosanaacutelogos no campo de accedilatildeo dos acoplamentos por reaccedilatildeo positivas normalmentedenominado ldquoeconomiardquo Tambeacutem nele se ativou a partir dos seacuteculos XIV e XV um circulusvirtuosus poderoso A este se deve que da uniatildeo do creacutedito ao talento ndash este uacuteltimoentendido num sentido moderno ndash surgissem grandes fortunas e que a partir de modestoscapitais iniciais crescessem empresas de alcance mundial Certamente tambeacutem nesta partedo mundo tal como na China claacutessica a dinacircmica autopotenciadora da arte econoacutemica dadireccedilatildeo de empresas teria estagnado num niacutevel de uma economia manufatureiradesenvolvida se natildeo tivesse no virar do seacuteculo XVII para o XVIII ligado com uma dimensatildeoimpulsionado adicional de processos autopotenciadores Estamos habituados a designar estaesfera com nomes sumaacuterios como ldquoconstruccedilatildeo de maacutequinasrdquo ou ldquoengenhariardquo e quem sequiser manter neste assunto irrefletidamente pode chamar-lhe apenas ldquotecnologiardquo Aestreita alianccedila entre o segundo e o terceiro circulus virtuosus isto eacute entre a economiaimpelida pelos juros e a construccedilatildeo de maacutequinas impelida pela inovaccedilatildeo resultou nomonstro dinacircmico que devido a uma preguiccedila de espiacuterito praticada desde o seacuteculo XIX aindase designa com o termo ldquocapitalismordquo - embora se se tivesse tratado de nominalizaccedilotildeesverdadeiras deveria ter-se chamado desde o princiacutepio ldquocreditismordquo ou ldquointervencionismordquoSchumpeter referiu este monstro que se gera a si mesmo ao escrever em 1912 uma fraseaparentemente inofensiva mas na verdade abismal ldquoO desenvolvimento gera sempre maisdesenvolvimento

Peter Sloterdijk O que aconteceu no seacutec XX

Prevecirc-se haacute muito tempo que a linha da frente das futuras lutas culturais nos Estadosindustrializados ocidentais se estenderaacute entre os aceleradores do capitalismo digital e os seusdesaceleradores Natildeo eacute necessaacuterio ser-se profeta para ver que os aceleradores estatildeofavorecidos Eles aliam-se agrave dinacircmica tecnoloacutegica e aos princiacutepios baacutesicos da vida econoacutemicao Homo technicus e o Homo oeconomicus mantecircm-se predominantes

Ruumldiger Safranski Tempo

O ponto de partida das reflexotildees de Hartmut Rosa consiste na experiecircncia do

tempo na Modernidade Segundo Rosa a aceleraccedilatildeo enquanto tal natildeo traduz

propriamente algo de novo tal realidade poderaacute ser apreciada como uma parte

constituinte das sociedades modernas317 Com efeito Rosa pretende debruccedilar-se sobre

aquilo que eacute essencialmente novo na modernidade tardia a saber ldquoa sensaccedilatildeo ou

317 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p39

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melhor a convicccedilatildeo (hellip) de que foi o proacuteprio tempo que se desfezrdquo318 Segundo Rosa eacute

distintivo da Modernidade que as estruturas temporais se alterem e que tal tenha

consequecircncias de longo alcance no acircmbito de todo o ldquoprojeto da Modernidaderdquo e do

seu objetivo central de configuraccedilatildeo de uma vida autoacutenoma Uma carateriacutestica

determinante da experiecircncia baacutesica da modernidade tardia consiste no facto de diversas

realidades se encontrarem sob efeito da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo o que por

conseguinte conduz a que as experiecircncias do passado e as experiecircncias do presente jaacute

natildeo sejam indicadores fiaacuteveis de um futuro que assim se torna cada vez mais

imprevisiacutevel319 Segundo Rosa torna-se como que impercetiacutevel devido aos elevados

niacuteveis de aceleraccedilatildeo e de mudanccedila o delineamento de uma direccedilatildeo de um movimento

orientado320 Aleacutem disso a experiecircncia contraditoacuteria do tempo moderno encontra

expressatildeo na vaga perceccedilatildeo de que o tempo se estaacute a tornar cada vez mais escasso

apesar de nos encontrarmos continuamente a desenvolver cada vez mais teacutecnicas de o

economizar321

Segundo Rosa as sociedades modernas necessitam de mudanccedila crescimento

aceleraccedilatildeo ldquoincrementordquo322 (Steigerung) jaacute que existem apenas dentro de um certo

dinamismo323 De acordo com o filoacutesofo tais sociedades soacute se podem estabilizar

dinamicamente sofrendo estruturalmente um ldquoincrementordquo (Steigerung) contiacutenuo por

meio de aceleraccedilatildeo do crescimento e de intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo324 Tal situaccedilatildeo

318 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p39319 Segundo Koselleck ldquoO moderno eacute por outro lado a mudanccedila que cria uma nova experiecircncia dotempo modificando tudo muito mais rapidamente do que ateacute entatildeo teria sido vivido Atraveacutes de intervalosde tempo mais curtos entra no quotidiano dos afetados uma componente de estranheza natildeo dedutiacutevel dequalquer anterior vivecircncia isto distingue a experiecircncia da aceleraccedilatildeosatildeo articulados ritmos eandamentos de tempo que jaacute natildeo podem ser derivados de tempo natural ou ordem geracionalrdquo KoselleckR Fortschritt und Beschleunigung Zur Utopie der Aufklaumlrung In Der Traum der Vernunft Vom Elendder Aufklaumlrung Darmstadt Neuwied 1985 p78320 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p40321Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p43322 Steigerung ldquoIncremento de quantidaderdquo323Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 pp4471324 ldquoNo meu livro sobre a aceleraccedilatildeo tentei mostrar que as tendecircncias das mudanccedilas identificadas ecaracterizadas se reuacutenem sistematicamente e sem contestaccedilatildeo sob um uacutenico conceito o da aceleraccedilatildeosocial sendo que o acircmago da Modernidade ou da ldquomodernizaccedilatildeordquo pode consistir num processoprolongado de dinamizaccedilatildeo (ou de ldquomovimentaccedilatildeo cada vez mais velozrdquo (ldquoschneller-in-Bewegung-Setzensrdquo) das relaccedilotildees materiais sociais e mentais (geistig) De importacircncia crucial no entanto eacute que aloacutegica intriacutenseca da dinamizaccedilatildeo ndash diferente da foacutermula proposta pelo projeto da Modernidade - se tornouela proacutepria uma compulsatildeo estrutural As sociedades modernas satildeo caracterizadas por soacute ser capazes deestabilizar e reproduzir as suas partes integrantes e a sua estrutura social de forma dinacircmica ganhamestabilidade no e atraveacutes do movimento e este pode ser mais precisamente encarado como um

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produz natildeo apenas uma tendecircncia galopante temporal espacial tecnoloacutegica e

econoacutemica mas tambeacutem conduz a que a energia cineacutetica325 e ou a ldquoenergia de

transformaccedilatildeordquo da sociedade se mantenha a um niacutevel muito alto326 Natildeo obstante a

aceleraccedilatildeo e o ldquoincrementordquo tornam-se problemaacuteticos quando atingem um ritmo cujos

efeitos satildeo de natureza dessincroacutenica Se houver aceleraccedilatildeo dentro das partes

integrantes da sociedade os correspondentes incrementos de ritmo tambeacutem deveratildeo ser

aplicados noutras aacutereas ndash em caso contraacuterio ocorreraacute uma dessincronizaccedilatildeo deste

modo os processos os sistemas ou os indiviacuteduos natildeo acompanham este passo

acelerado327 Eacute precisamente neste limiar do arrebatamento da capacidade de adaptaccedilatildeo

pelas taxas de aceleraccedilatildeo e incremento da mobilizaccedilatildeo que Rosa encontra a rutura no

desenvolvimento da Modernidade entre a Modernidade claacutessica e a tardia328Tambeacutem

outros autores entre os quais Zygmunt Bauman reconhecem esta mudanccedila social na

Modernidade que poderaacute promover segundo Keupp uma desconstruccedilatildeo do tipo ideal

(Idealtyp) positivo do ser humano autoacutenomo e moderno e do ambiente onde vive329

Rosa procura o cerne destes fenoacutemenos da Modernidade tardia encontrando-os na roda

da aceleraccedilatildeo desta era na velocidade que o indiviacuteduo e os Estados-naccedilatildeo jaacute quase natildeo

conseguem acompanhar330 A conjetura de Rosa sobre a rutura epocal postulada dentro

ldquoincrementordquo (Steigerungrdquo) De um ponto de vista estrutural uma sociedade pode chamar-se ldquomodernardquose (e apenas) se deixar estabilizar de forma dinacircmica se ela depende portanto sistematicamente docrescimento do intensificccedilatildeo da inovaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo para manter e reproduzir a sua estruturaCompreende-se esta triacuteade constituiacuteda pela aceleraccedilatildeo pelo crescimento e pela intensificaccedilatildeo dainovaccedilatildeo como um processo de dinamizaccedilatildeo uacutenico que por sua vez se traduz em ldquoincrementordquo (dequantidade) por unidade de tempo Esta definiccedilatildeo de aceleraccedilatildeo eacute a base da minha teoria da aceleraccedilatildeordquo(Rosa H Ressonanz Berlin 2016 pp673-674)325 Segundo Peter Sloterdijk o ldquoprojeto da Modernidaderdquo poderia fundar-se numa ldquoutopia cineacuteticardquo cujoconceito baacutesico eacute o ldquoprogressordquo diz respeito agrave extensatildeo e dissoluccedilatildeo do movimento humano (cfSloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002)326 ldquoExiste a crenccedila de que a maneira como o sujeito moderno experiencia o mundo e se movimenta neleeacute ditada essencialmente pela loacutegica de ldquoincrementordquo da sociedade moderna A caracteriacutestica destasociedade eacute o facto de que se deixa apenas estabilizar de forma dinacircmica o que significa que ela natildeo soacutedepende (em situaccedilotildees especiais) contingente mas tambeacutem estrutural e prolongadamente do crescimentoda intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo para preservar e reproduzir as suas condiccedilotildees estruturaisIsto leva a uma dinacircmica perpeacutetua (e portanto ao mesmo tempo uma des-ontologizaccedilatildeo) das relaccedilotildeesmodernas com o mundo a relaccedilatildeo do sujeito moderno com o mundo das coisas o mundo social e consigomesmo eacute determinado por o facto que estes munos encontram se numa mudanccedila constante e numaaceleraccedilatildeo semore mais veloz O sistema econoacutemico dominante da Modernidade eacute sem qualquer duacutevidade importacircncia elementar para as forccedilas de dinamizaccedilatildeo e intensificaccedilatildeo que penetram as formas e esferasdos relacionamentos modernos s com o mundo Natildeo soacute Karl Marx mas tambeacutem o seu antiacutepodasocioloacutegico Max Weber chamou a atenccedilatildeo para este facto helliprdquo (Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 pp13-14)327 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p44328 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p44329 Keupp H Identitaumltskonstruktionen Reinbeck 2006 p 17330Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p48 Rosa HStrecker D Streckmann A Soziologische Theorien Konstanz 2007 p221

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de uma construccedilatildeo teoricamente fundamentada empiricamente compatiacutevel e

diacronicamente diferenciada dita ldquoque a aceleraccedilatildeo social inerente agrave Modernidade

supera na Modernidade tardia um ponto criacutetico aleacutem do qual a reivindicaccedilatildeo por

sincronizaccedilatildeo e integraccedilatildeo sociais jaacute natildeo se manteacutemrdquo331

Rosa define a aceleraccedilatildeo tal como modificada pela fiacutesica newtoniana como

ldquoum incremento de quantidade por unidade de tempordquo332 ou noutras palavras como a

ldquoreduccedilatildeo do quantum de tempo por quantum fixo de quantidaderdquo333 Para Rosa o termo

ldquoquantidaderdquo apresenta-se usado numa infinidade de aacutereas e processos diferentes por

exemplo na distacircncia percorrida no nuacutemero de caracteres comunicados nos bens

produzidos e tambeacutem na troca de parceiros no nuacutemero de locais de trabalho e nos

ldquoepisoacutedios da accedilatildeo por unidade de tempordquo334 Quanto mais se comunicar produzir ou

viver por unidade de tempo tanto maior seraacute por consequecircncia a aceleraccedilatildeo335

Segundo Rosa a aceleraccedilatildeo social divide-se por sua vez em aacutereas analiticamente

independentes em dimensotildees que na sua interaccedilatildeo justificam a progressiva

dinamizaccedilatildeo da Modernidade ldquoA forma mais oacutebvia e importante da aceleraccedilatildeo

modernardquo eacute a dimensatildeo da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica que visa a aceleraccedilatildeo de processos

em vista de fins336

A forma mais visiacutevel e consequente de aceleraccedilatildeo moderna consiste na

aceleraccedilatildeo teacutecnica intencional e sobretudo na aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica (ie mecacircnica)

dos processos com vista a fins Paradigmaacuteticos satildeo entatildeo os processos do transporte

da comunicaccedilatildeo e da produccedilatildeo (de bens e serviccedilos) Este tipo de aceleraccedilatildeo eacute a mais

faacutecil de medir e de demonstrar A histoacuteria da aceleraccedilatildeo da velocidade do movimento ndash

desde a sociedade preacute-moderna e preacute-industrial ateacute ao presente portanto desde a

jornada a peacute depois a cavalo a barco a vapor a comboio a automoacutevel e finalmente de

aviatildeo e ateacute agrave nave espacial ndash eacute a todos familiar e estaacute bem documentada337 sendo jaacute

331Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p49332 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115333 Rosa H Dynamisierung und Erstarrung in der modernen Gesellschaft Berlin 2010 p285334 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115335Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115336 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p11337 Sobre a histoacuteria da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica consultar Virilio P Geschwindigkeit und Politik Berlin1980 Virilio P Military Space In Derian J D (ed) The Virilio Reader Oxford 1998

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tratada por Virilio Contudo Rosa critica a abordagem de Virilio pelo facto de esta

conceber a aceleraccedilatildeo como uma aceleraccedilatildeo de pendor predominantemente

tecnoloacutegico338 natildeo considerando outros aspetos analiticamente independentes tais como

o da ldquoaceleraccedilatildeo da mudanccedila socialrdquo e da ldquoaceleraccedilatildeo do ritmo individual de vidardquo para

aleacutem de natildeo explorar suficientemente a base econoacutemica (capitalista) da temaacutetica da

aceleraccedilatildeo339

O sistema da economia capitalista une a aceleraccedilatildeo e o incremento quantitativo

(ou a aceleraccedilatildeo ao serviccedilo do ldquoincrementordquo) e combina-os segundo Rosa numa loacutegica

de accedilatildeo conjunta340 Ao dissolver o viacutenculo claacutessico e ldquonaturalrdquo entre a produccedilatildeo e a

satisfaccedilatildeo de necessidades (ou da procura) reconfigurando a economia numa loacutegica de

utilizaccedilatildeo de capital ou entatildeo na produccedilatildeo de mais-valias ndash isto eacute ao libertar a

produccedilatildeo da procura (tradicionalmente determinada) ndash eacute colocada em movimento uma

dinacircmica que supera todas as barreiras e obstaacuteculos de uma economia focando a

satisfaccedilatildeo de necessidades (ou da procura) Esta dinacircmica faz com que o aumento de

produccedilatildeo e de produtividade bem como a demanda de vantagens e eficiecircncia temporais

se tornem princiacutepios imperativos inevitaacuteveis de uma produccedilatildeo autonomizada que fabrica

ldquonecessidadesrdquo respetivas em simultacircneo341 O conceito de tempo utilizado na sociedade

moderna eacute segundo Rosa formulado e moldado decisivamente pela ldquocoisificaccedilatildeordquo do

tempo (caracterizada pelo processo de produccedilatildeo capitalista) isto eacute pela sua

transformaccedilatildeo num bem racionaacutevel e escasso no que concerne agrave sua eficiecircncia o que

338 Como Virilio tambeacutem Maurizio Ferraris vecirc uma conexatildeo entre a guerra e a tecnologizaccedilatildeomobilizada moderna na aacuterea das meios de comunicaccedilatildeo ldquoPara realizar a mobilizaccedilatildeo total natildeo eacutenecessaacuterio (como ateacute eacute tecnicamente possiacutevel) dispor de apps que digam onde estaacutes basta simplesmente acombinaccedilatildeo de um sistema de trabalhos flexiacuteveis com um aparato de responsabilizaccedilatildeo que te alcanccedila emtoda a parte atribuindo-te as tarefas E de um sistema de obrigaccedilotildees que se tornam perentoacuterias apenas pelofacto de serem tecnicamente possiacuteveis O imperativo teacutecnico vira assim ao contraacuterio o moral ldquose podesdevesrdquo A radicalizaccedilatildeo militar dos tempos do trabalho (em particular a solicitaccedilatildeo de disponibilidade aqualquer hora que faz desaparecer o caraacuteter proacuteprio da vida civil) pode ser pensada somente agrave luz danova responsabilidade da chamada Estamos todos em movimento seguimos todos as ordens natildeo haacutedistinccedilatildeo entre vida privada e vida puacuteblica entre vida civil e vida militar Aquilo que queria sugerir eacute que(geralmente) natildeo estamos em guerra mas estamos militarizados e que isto eacute o caraacuteter originalintroduzido pela chamadardquo Ferraris M Mobilizaccedilatildeo Total Trad Alberto Romele Joatildeo RebaldeLisboa 2018 p55339 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p103340 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p257341 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p262

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origina que o tempo seja experienciado como uma entidade linear sem qualidade e

abstrata342

Segundo Rosa a economia capitalista baseia-se constitutivamente entre outras

coisas na aquisiccedilatildeo e na exploraccedilatildeo da vantagem temporal343 de tal modo que no

interior deste sistema econoacutemico o dito de Marx de que ldquotoda a economia eacute uma

economia de tempordquo344 se afigura concretizado de uma maneira muito especiacutefica

Seguindo a anaacutelise sugerida por Marx o tempo de trabalho em primeiro lugar constitui

imediatamente um fator de produccedilatildeo decisivo isto eacute um fator de produccedilatildeo de valor

pois transforma tempo em valor atraveacutes do trabalho345 Na medida em que o valor de

troca de mercadorias eacute estipulado pelo tempo de trabalho o tempo que se poupa a

produzir pode ser diretamente traduzido em lucro (relativo) aqueles que satildeo capazes de

produzir em menos tempo ou seja permanecer abaixo do tempo meacutedio de trabalho

necessaacuterio para a produccedilatildeo de uma mercadoria geram lucros potencialmente maiores e

aumentam assim a ldquomais-valiardquo do trabalho (ou seja a proporccedilatildeo entre trabalho

ldquonecessaacuteriordquo ndash e assim trabalho pago ndash e ldquotrabalho mais-valiosordquo tomados no acircmbito

de um dia de trabalho muda em favor do uacuteltimo)346 O incremento da produtividade

diretamente definiacutevel por aumento de produccedilatildeo de output por unidade de tempo (por

hora de trabalho) ou por aceleraccedilatildeo cria vantagens competitivas ndash contudo apenas ateacute

a concorrecircncia copiar o processo e reduzir as horas de trabalho necessaacuterias para um

novo niacutevel iniciando assim uma espiral de aceleraccedilatildeo potencialmente infinita347 A

aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo ndash por exemplo atraveacutes da intensificaccedilatildeo ou ldquocondensaccedilatildeordquo do

trabalho ndash torna-se assim enquanto consequecircncia do princiacutepio da competiccedilatildeo um

elemento fundamental da economia capitalista Tal tambeacutem significa que o

desenvolvimento e a exploraccedilatildeo de vantagens temporais na introduccedilatildeo de novas

tecnologias de produccedilatildeo ou de novos produtos satildeo de importacircncia fundamental na luta

competitiva (de sobrevivecircncia no mercado) do fabrico de ldquolucros-extrardquo ou seja na

possibilidade de vender produtos num curto espaccedilo de tempo a um preccedilo

342Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p263343 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p259344 Marx K Grundrisse der Kritik der politischen Oumlkonomie In Marx KEngels F Werke vol42Berlin 1983 p105 apud Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in derModerne Frankfurt a M 2005 p265345 Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p66346 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p260347Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p66

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significativamente mais alto do que os custos de produccedilatildeo ou de os produzir abaixo do

valor de mercado antes que a concorrecircncia ganhe terreno novamente A aceleraccedilatildeo dos

ldquociclos de inovaccedilatildeordquo e do progresso tecnoloacutegico bem como o encurtamento dos ldquociclos

de vida dos produtosrdquo estatildeo de acordo com Rosa enraizadas no sistema348

Significativo para o viacutenculo entre a economia capitalista e a dinacircmica de

aceleraccedilatildeo da Modernidade eacute a circunstacircncia de que a aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo resultante

da economia do tempo capitalista exige uma aceleraccedilatildeo simultacircnea da distribuiccedilatildeo (pelo

menos se a possibilidade de abrir novos mercados estaacute esgotada) e do ato de consumo

De facto o ritmo do processo da utilizaccedilatildeo de capital depende decisivamente da

velocidade da sua circulaccedilatildeo isto eacute especialmente do transporte do armazenamento da

distribuiccedilatildeo e venda de bens e da aquisiccedilatildeo de mateacuterias-primas como neste caso natildeo se

cria qualquer valor atrasa-se a concretizaccedilatildeo de mais-valias e o tempo de circulaccedilatildeo

traduz-se de acordo com Marx num ldquotempo de desvalorizaccedilatildeordquo349 ndash a compulsatildeo para

acelerar constitui-se como uma nova premecircncia De particular interesse para a evoluccedilatildeo

da dinacircmica moderna de aceleraccedilatildeo eacute o facto de que do ponto de vista histoacuterico a

aceleraccedilatildeo impulsionada pela loacutegica da utilizaccedilatildeo de capital natildeo comeccedilou no setor da

produccedilatildeo mas no setor da distribuiccedilatildeo ou no da circulaccedilatildeo a partir do seacuteculo XVII o

transporte e a comunicaccedilatildeo aceleraram-se notavelmente muito antes das grandes

inovaccedilotildees tecnoloacutegicas que culminaram na aceleraccedilatildeo dos processos de produccedilatildeo A

principal razatildeo para tal situaccedilatildeo deve-se ao facto de que nos seacuteculos XVI e XVII o

capital se acumulara primeiro nas aacutereas do comeacutercio e nas da circulaccedilatildeo supondo um

aumento na rotatividade dos produtos pois a subsistecircncia e o corporativismo no setor de

produccedilatildeo impediam inicialmente tal desenvolvimento350 A aceleraccedilatildeo do comeacutercio e do

transporte foi portanto historicamente precedida pela aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo que

atingiu um cliacutemax dramaacutetico na Revoluccedilatildeo Industrial351

O incremento da aceleraccedilatildeo de capital e de mercadorias por unidade de tempo

tem como correlativo economicamente irrefutaacutevel um aumento na taxa de consumo por

unidade de tempo correspondente a um aumento na taxa de produccedilatildeo pois eacute somente

no ato de consumo que a mais-valia eacute concretizada A economia capitalista do tempo

348 Garhammer M Wie Europaumler ihre Zeit nutzen Berlin 1999 p79349 Marx K Das Kapital Stuttgart 1957 p458 apud Rosa H Beschleunigung Frankfurt aM 2005p 262 Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p72350Richter G Die lineare Zeit Hamburg 1991 p27351 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p260

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impotildee um aumento na intensidade de consumo correspondente ao processo de

produccedilatildeo e segundo Rosa pode ldquodesmascararrdquo o aumento do ritmo de vida definido

por um aumento do nuacutemero de episoacutedios de accedilatildeo ou de experiecircncia por unidade de

tempo como uma ldquonecessidade econoacutemicardquo352 Eacute significativo do ponto de vista

econoacutemico que um dos problemas de base de uma economia capitalista natildeo seja apenas

um problema de distribuiccedilatildeo mas antes da manutenccedilatildeo da circulaccedilatildeo acelerada e

dinamizada353 Naturalmente esta necessidade sisteacutemica natildeo pode explicar a

intensificaccedilatildeo correspondente do ritmo de vida na esfera do consumo ningueacutem eacute

forccedilado por razotildees econoacutemicas a aumentar o ldquonuacutemero de accedilotildees de satisfaccedilatildeo de

necessidades por unidade de tempordquo354 e com isto a ldquoaveriguar qual o valor do tempo

proacuteprio nos escalotildees do incrementordquo Que o sujeito na sociedade moderna tenda a

valorizar assim o tempo natildeo eacute nem antropologicamente predeterminado como Linder

assume355 nem tatildeo simplesmente proveniente da necessidade econoacutemica como Scharf

sugere356 torna-se necessaacuteria uma outra explicaccedilatildeo segundo Rosa acerca de uma

reconstruccedilatildeo dos fundamentos culturais das orientaccedilotildees das accedilotildees individuais

caracteriacutesticas da Modernidade

No curso da industrializaccedilatildeo a compulsatildeo de usar os recursos do tempo ndash

resultantes de uma economia capitalista do tempo ndash teve um impacto maciccedilo e

generalizado na forma e na substacircncia das praacuteticas perceccedilotildees e orientaccedilotildees do tempo

predominantes entre a populaccedilatildeo trabalhadora Essa mudanccedila foi acompanhada por

duras lutas sociais e muitas das vezes levadas a cabo por todos os meios de pressatildeo

externa357

O tempo usado no trabalho assalariado passou a medir-se pelo trabalhar do

reloacutegio mecacircnico e desligou-se dos ritmos da natureza estruturais da vida social dos

anteriores seacuteculos senatildeo dos mileacutenios anteriores Os dias as estaccedilotildees ou as condiccedilotildees

climaacuteticas jaacute natildeo desempenham praticamente nenhum papel na produccedilatildeo industrial De

uma maneira particularmente draacutestica esta dissociaccedilatildeo manifesta-se no trabalho por

turnos Eacute sublinha Marx uma consequecircncia natural do facto de o tempo linear no

352 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p262353 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p263354 Scharf G Zeit und Kapitalismus Frankfurt aM 1988 p157355 Linder S The Harried Leisure Class New York 1970 p77356 Scharf G Zeit und Kapitalismus Frankfurt aM 1988 p168357Thompson E Zeit Arbeitsdisziplin und Industriekapitalismus Frankfurt aM 1980

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acircmbito da economia capitalista moderna permanecer sem qualidade progredindo dia e

noite no veratildeo e no inverno de forma linear e na mesma proporccedilatildeo ndash segundo tal

conceccedilatildeo poder-se-ia afirmar que uma hora durante qual as maacutequinas estatildeo paradas e

natildeo se trabalha nem se transporta nem se vende equivale a ldquouma hora economicamente

perdidardquo358 O processo ateacute hoje em progressatildeo da dissoluccedilatildeo dos primeiros ritmos

naturais e mais tarde dos novos ritmos sociais coletivos adquiridos tanto de produccedilatildeo

como de circulaccedilatildeo e consumo em prol de um tempo simultacircneo sem qualidade e

indiscriminado possui tambeacutem um cerne econoacutemico segundo Hartmut Rosa359

Ao mesmo tempo com a industrializaccedilatildeo desenvolveu-se uma separaccedilatildeo

temporal e espacial estrita e quase completa entre trabalho e tempo livre com largas

consequecircncias na experiecircncia e no planeamento do tempo por parte do indiviacuteduo e nas

estruturas temporais da sociedade moderna Foi somente atraveacutes desta separaccedilatildeo que

emergiram as instituiccedilotildees caracteriacutesticas da Modernidade de ldquotempo livrerdquo e das

ldquohoras de trabalhordquo que estruturam fundamentalmente os modos de viver do sujeito e

tambeacutem as formas com as quais este tenta conciliar as horas do quotidiano com o tempo

da vida e o tempo da histoacuteria A separaccedilatildeo espacial e temporal entre trabalho e a vida

privada produziu consequecircncias poliacuteticas que se manifestam na Modernidade

especialmente na demarcaccedilatildeo especiacutefica entre o puacuteblico e o privado360 Finalmente o

tempo de trabalho separou-se do seu objeto ou seja foi estipulado de acordo com uma

duraccedilatildeo abstrata de calendaacuterio e reloacutegio natildeo dependendo mais de tarefas ou eventos

(que estruturam ou estruturavam as atividades de sociedades tradicionais

particularmente as agraacuterias) A partir deste momento o iniacutecio e o fim do horaacuterio de

trabalho passaram a ser marcados por uma sirene de faacutebrica por um reloacutegio de ponto ou

pelo computador menos pelos requisitos relativos ao conteuacutedo das tarefas do trabalho

O ldquotempo de eventordquo tradicional que estipulava a duraccedilatildeo e o ritmo das atividades e dos

eventos atraveacutes do seu caraacuteter natural e histoacuterico ndash ou seja atraveacutes do seu ldquotempo

proacutepriordquo361 do oacutecio sujeito a flutuaccedilotildees ndash foi substituiacutedo por uma rede de tempo linear e

abstrata

por meio da qual o quadro temporal de atividades e eventos eacute determinado

358 Marx K Das Kapital Stuttgart 1957 p271 apud Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungender Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p263359 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p204360 Cf Giddens A Time and social organisation Stanford 1987 p151361 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995 p46

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precedentemente estabelece preacute-requisitos de previsibilidade de manipulaccedilatildeo de tempo e

consequentemente de aceleraccedilatildeo de processos sociais Com ela o foco de atenccedilatildeo

temporal mudou-se das tarefas ou eventos para uma orientaccedilatildeo de tempo abstrata A era do

capitalismo industrial que eacute marcada por um lado pela economia do capitalismo e por

outro pela loacutegica tecnoloacutegica e especiacutefica da produccedilatildeo industrial apresenta-se como um

tempo abstrato linear e simultaneamente como as lutas em torno das horas de trabalho

tornam claro polarizado362

Para a interiorizaccedilatildeo do novo conceito de tempo (como uma compulsatildeo

imediata) revelam-se de importante eficaacutecia todas aquelas instituiccedilotildees da sociedade

moderna nas quais as respetivas orientaccedilotildees e praacuteticas satildeo habitualmente exercidas por

exemplo (para aleacutem das faacutebricas e empresas) hospitais prisotildees quarteacuteis jardins de

infacircncia e escolas363 A observaccedilatildeo da rigorosa disciplina do tempo desempenha um

papel preponderante em todas as instituiccedilotildees cujos padrotildees de atividade assentam num

esquema temporal geralmente muito riacutegido e abstrato (poder-se-aacute pensar nos intervalos

de tempo dos horaacuterios das sentenccedilas de prisatildeo etc) delineado como um objetivo

disciplinador central Os reloacutegios representam assim por excelecircncia instrumentos de

vigilacircncia porque quebram os ldquoritmosrdquo e os ldquotempos proacutepriosrdquo364 dos seres humanos

definidos pela natureza ou pelo haacutebito

A disciplina no uso do tempo que se regista no corpo consiste principalmente na

capacidade de orientar as proacuteprias accedilotildees conforme um esquema temporal abstrato isto eacute

consiste em ser pontual em adiar a satisfaccedilatildeo de necessidades (por exemplo as do sono

da fome ou da vontade de ir agrave casa de banho) em prol do que estaacute estipulado no dito

esquema temporal reprimir os impulsos confinar picos de desempenho e fases de

recuperaccedilatildeo a momentos especiacuteficos etc365

Segundo Rosa somente o desenvolvimento de tal disciplina do tempo

juntamente com as revoluccedilotildees tecnoloacutegicas da Modernidade se afiguram capaz de

provocar uma aceleraccedilatildeo (temporal e economicamente eficiente) e um incremento tatildeo

dinacircmicos 366 Tal revela-se especialmente na aacuterea do trabalho

362Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p309363O tempo poderia assim ser um dos instrumentos da sociedade disciplinar analisada por MichelFoucault364Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995365 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p267366 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p269

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O filoacutesofo contrasta pois o conceito de alienaccedilatildeo ndash tomado como uma

patologia da modernidade criada entre outros pela aceleraccedilatildeo ndash com o conceito de

ressonacircncia aqui apresentado como o epiacutetome de uma vida natildeo-alienada367 (Rosa

utiliza aqui o conceito de alienaccedilatildeo natildeo somente no sentido de trabalho mas tambeacutem

no acircmbito de outros contextos da vida na modernidade tardia) Tal como Rahel Jaeggi

em Alienaccedilatildeo - Sobre a actualidade de um problema da filosoacutefico-social (Entfremdung

ndash Zur Aktualitaumlt eines sozialphilosophischen Problems)368 Rosa delineia uma

redefiniccedilatildeo do conceito de alienaccedilatildeo Para Rosa a alienaccedilatildeo eacute uma forma especiacutefica de

relaccedilatildeo com o mundo na qual sujeito e mundo se enfrentam de uma forma indiferente

ou hostil-repulsiva (relaccedilatildeo de natildeo-relaccedilatildeo) A alienaccedilatildeo define assim um estado no

qual o mundo aparece frio riacutegido mudo e que natildeo oferece resposta369 Por contraste a

ressonacircncia eacute um modo de relaccedilatildeo (triacuteade do corpo mente e mundo)370 As experiecircncias

de ressonacircncia poderatildeo ser por exemplo experiecircncias de reconhecimento Natildeo

obstante existem experiecircncias de ressonacircncia que vatildeo aleacutem das relaccedilotildees

intersubjectivas os sujeitos modernos tambeacutem procuram e podem entrar numa relaccedilatildeo

de ressonacircncia na natureza na religiatildeo na arte no trabalho

Entre plantas e jardineiros entre livros e estudiosos entre taacutebuas e carpinteiros massas e

padeiros violinos e violinistas podem surgir verdadeiras relaccedilotildees de resposta no sentido

caracteriacutestico das relaccedilotildees ressonantes (Sennett) De facto qualquer pessoa que jaacute tenha

aprendido ou melhor adquirido uma certa teacutecnica de processamento de material uma

habilidade manual conhece o sentimento especiacutefico que surge quando o material parece

encontrar-se ou responder ao trabalhador quando se estabelece uma relaccedilatildeo entre material

ferramenta e matildeo e esta relaccedilatildeo concorda Sennett pode tambeacutem desenvolver-se entre

homem e maacutequina por exemplo entre condutor e motocicleta e tambeacutem num triacircngulo de

ressonacircncia entre homem maacutequina e o material a ser trabalhado - ou entre homem e texto

por exemplo quando comeccedilamos a compreender uma liacutengua estrangeira [hellip] Segundo o

conceito de ressonacircncia a ideia do material que responde implica sempre a possibilidade e

a ocorrecircncia de resistecircncia de imprevisto e de surpresas A massa a moto mas tambeacutem o

texto que tento escrever todos eles falam com a sua proacutepria voz por vezes revelam-se

materiais resistentes e talvez nunca possam ser completamente controlados calculados e

367 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p147368 Jaeggi R Entfremdung ndash Zur Aktualitaumlt eines sozialphilosophischen Problems Frankfurt am Main2005369 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p316370 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p298

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previstos Se o fizerem a relaccedilatildeo deixa de ser uma relaccedilatildeo ressonante torna-se entatildeo

puramente rotineira371

E mais

a oferta de trabalho no sentido de trabalho assalariado pode transformar a relaccedilatildeo de

ressonacircncia numa relaccedilatildeo alienada A intuiccedilatildeo baacutesica por detraacutes desta suposiccedilatildeo que estaacute

impregnada de tradiccedilatildeo e criacutetica do capitalismo eacute tatildeo simples quanto plausiacutevel ao oferecer

o seu trabalho o trabalhador assalariado eacute obrigado a assumir uma relaccedilatildeo instrumental com

ele com o material e com meios de trabalho processados Aleacutem disso o trabalhador natildeo

experimenta qualquer auto-eficaacutecia proacutepria porque realiza as especificaccedilotildees da faacutebrica (ou

da bolsa de valores) produto e material natildeo lhe respondem a si mas em uacuteltima instacircncia ao

capital que se tornou o objecto do processo de produccedilatildeo Deste ponto de vista o problema

na verdade a patologia do capitalismo acelerado consiste no facto de destruir um terreno de

ressonacircncia central da vida humana com esta coisificaccedilatildeo na area do trabalho372

Rosa defende assim que a esfera de ressonacircncia do trabalho tal como a esfera

de ressonacircncia da famiacutelia deve ser concebida como um oaacutesis de ressonacircncia373

Como jaacute dissemos anteriormente a teoria da ressonacircncia de Rosa foi recebida e

discutida de forma controversa374 Com efeito a derivaccedilatildeo abrangente do conceito de

ressonacircncia a partir de uma variedade de perspetivas e contextos foi alvo de profunda

condenaccedilatildeo por parte de diversos leitores que invocaram por seu turno o facto de o

conceito de ressonacircncia supostamente parecer arbitraacuterio como que carecendo de

precisatildeo e de realidade e em uacuteltima anaacutelise afigurar-se inadequado enquanto conceito

soacutecio-filosoacutefico baacutesico375 tal como Rosa o pretenderia inicialmente sustentar Rosa

inicia a sua definiccedilatildeo de ressonacircncia atraveacutes da elucidaccedilatildeo do significado fiacutesico-musical

da ressonacircncia que o filoacutesofo procurar diferenciar metaforicamente em diferentes

direcccedilotildees A determinaccedilatildeo da ressonacircncia por Rosa eacute assim concebida de tal forma que

lhe seja possiacutevel integrar a antiacutetese absoluta do significado fiacutesico autonomia diferenccedila

e contradiccedilatildeo reflectida devem ser constitutivas nas relaccedilotildees de ressonacircncia Nas

371 Ibid372 Ibid373 Ibid374 Brumlik M Resonanz oder Das Ende der kritischen Theorie In Blaumltter fuumlr deutsche undinternationale Politik Mai 2016 Berlin 2016 p 120ndash123 Peters C-H- Schulz P Resonanzen undDissonanzen Hartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 Wils J-P ResonanzIm interdisziplinaumlren Gespraumlch mit Hartmut Rosa Baden-Baden 2018375 HartmannM Im Resonanzhafen bekommt die Welt ein anderes Gesicht In Frankfurter AllgemeineZeitung 5 April Frankfurt 2016

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leituras de Rosa o conceito de ressonacircncia funciona de acordo com a loacutegica de um

equivalente geral para o qual os conceitos teoacutericos mais heterogeacuteneos podem ser

transferidos A mimese de Adorno376 (53) a aura de Benjamin377 (555) a comunicaccedilatildeo

de Habermas378 (587) a antropologia simeacutetrica de Latour379 (384) a intensidade de

Masumi380 (288) a assimilaccedilatildeo de Simmel381 (561) o carisma de Weber382 (554) entre

outros satildeo todos reformulados em termos de teoria da ressonacircncia Neste sentido Rosa

procura combinar distintos teorias e autores aqui evocados para sustentar a sua teoria da

ressonacircncia

A abrangecircncia quase ilimitada que envolve a definiccedilatildeo de ressonacircncia tal

como Rosa a elabora e que se estende a vaacuterios niacuteveis de anaacutelise e de determinaccedilotildees

funcionais teoacutericas provocara a possibilidade de perspetivaccedilotildees relativas a diversos

equiacutevocos e contradiccedilotildees Na fronteira entre a antropologia e a filosofia social por

exemplo surge a objeccedilatildeo de que Rosa no seu recurso agrave neurologia e agrave pesquisa infantil

define a ressonacircncia como uma relaccedilatildeo global primaacuteria preacute-reflexiva383 todavia e por

outro lado o filoacutesofo acaba por postular a autonomia como uma condiccedilatildeo preacutevia da

ressonacircncia384 Na transiccedilatildeo do niacutevel social para o niacutevel das relaccedilotildees entre objectos

coloca-se a questatildeo de saber em que sentido os objectos podem falar com a sua proacutepria

voz e iniciar relaccedilotildees que integrem a possibilidade de resposta ao humano e que se

estabeleccedilam como efetivamente transformadoras Na interface entre as dimensotildees

descritiva e normativa eacute questionaacutevel se natildeo deveria haver algo como uma ressonacircncia

negativa Rosa nega-o e vota a favor de uma disposiccedilatildeo positiva385 que se revela

incompatiacutevel com a sua reivindicaccedilatildeo de criacutetica agraves relaccedilotildees de ressonacircncia Rosa ignora

pois as contradiccedilotildees do seu conceito O que os indiviacuteduos experimentam ou descrevem

subjectivamente como uma relaccedilatildeo ressonante com o mundo pode aparecer ao niacutevel da

anaacutelise como emoccedilatildeo sentimental relaccedilatildeo de eco puro ou como uma reacccedilatildeo

376 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p53 377 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p555378 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p587379 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p384380 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p288381 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p561382 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p554383 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p110384 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p650385 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p744

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compensatoacuteria Um outro ponto de criacutetica diz respeito ao suposto recurso de Rosa ao

universo intelectual do Romantismo (condenaccedilatildeo essa apontada por Charles Taylor)386

386 Taylor C Resonanz und die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und DissonanzenHartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249-270 Taylor considerarelevante fazer inscrever o conceito de ressonacircncia no Romantismo pois segundo o filoacutesofo eacute nesteperiacuteodo filosoacutefico-cultural que o conceito desenvolvido por Rosa tem a sua origem (Taylor C Resonanzund die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und Dissonanzen Hartmut Rosas kritischeTheorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249) Taylor concorda com Rosa que uma boa vida seriaimpossiacutevel sem relaccedilotildees de ressonacircncia entre o eu e o mundo no entanto Taylor considera difiacutecil que aorigem romacircntica que envolve o conceito de ressonacircncia tal como tratado por Rosa possa pareceraceitaacutevel para muitos leitores modernos pois a perspetiva romacircntica inclui uma metafiacutesica e uma visatildeo danatureza que natildeo se compatibiliza com a visatildeo das ciecircncias naturais modernas (Taylor C Resonanz unddie Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und Dissonanzen Hartmut Rosas kritischeTheorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp253)

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PARTE II

___

Para uma proposta de apreciaccedilatildeo de oacutecio enquanto

conceito eminentemente criacutetico

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Capiacutetulo 1

O oacutecio

Delimitaccedilatildeo de um conceito filosoacutefico

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11 | Primeiros delineamentos

Se a teacutecnica eacute o completo domiacutenio do movimento tudo o que nos resta agora eacute uma funccedilatildeo progressiva travagem

Peter Sloterdijk Exageros selecionados

No ensaio A Sociedade do Cansaccedilo Byun Chul Han387 diagnostica aquilo que

designa convocando o pensamento hegeliano de perda de negatividade no acircmbito da

atual sociedade definida por seu turno agrave luz de um incessante incremento do

desempenho A possibilidade de negaccedilatildeo dialeacutetica que em uacuteltima anaacutelise traduz

movimento dinamismo desenvolvimento afigura-se no contexto da nossa sociedade

atual ndash a sociedade do desempenho ndash suspensa De acordo com Han a sociedade atual

perdera os seus mecanismos de paragem o excesso de positividade ndash e a anulaccedilatildeo da

emergecircncia de quaisquer modos de negatividade ndash conduz a uma situaccedilatildeo que poderia

ser descrita em analogia com um complexo mecacircnico a incessante e muacuteltipla

positividade em contiacutenuo e ininterrupto movimento provoca o sobreaquecimento do

mecanismo e em uacuteltima instacircncia a sua gripagem e consequente inutilizaccedilatildeo O

trabalho e o desempenho constituem pois os imperativos que determinam a sociedade

na modernidade tardia ilustrada por Han como um ser humano que sem

constrangimentos externos e na pretensa consciecircncia da sua liberdade apenas trabalha

trabalha e trabalha natildeo sendo mais capaz de desenvolver uma experiecircncia de oacutecio ou de

imersatildeo contemplativa ndash ateacute ao seu colapso fiacutesico e psicoloacutegico Neste sentido segundo

a perspetivaccedilatildeo de Han a sociedade da modernidade tardia conhece somente ndash como se

tais se constituiacutessem como as suas uacutenicas realidades constitutivas ndash a produtividade

incrementada e o crescimento acelerado permanente

As poliacuteticas neoliberais tecircm destruiacutedo todas as formas de tempo que natildeo estatildeo no caminho

da loacutegica da eficiecircncia e do capital Isto adoece e destroacutei a alma Portanto precisamos de

um outro tipo de tempo o tempo como um presente A aceleraccedilatildeo nomeia a crise do

tempo presente Tudo se torna mais raacutepido sem ser capaz de travar A crise em tempo real

poreacutem eacute que perdemos aqueles tempos que natildeo permitem a aceleraccedilatildeo tempos que

permitem uma experiecircncia de duraccedilatildeo em presenccedila Hoje o tempo de trabalho foi

totalizado para o uacutenico tempo por excelecircncia nessa eacutepoca Eacute o tempo que pode ser

387 Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014

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acelerado e explorado388

Todavia importaria recordar que tudo tinha comeccedilado de forma muito diferente

no berccedilo da nossa civilizaccedilatildeo europeia Tenhamos presente a seguinte passagem de

Eacutetica a Nicoacutemaco de Aristoacuteteles noacutes ocupamos o tempo a trabalhar para podermos

gozar de tempo livre do mesmo modo que fazemos a guerra para poder viver em

paz389 Segundo Josef Pieper esta uacuteltima passagem deveria ser lida como Estamos no

natildeo-oacutecio para ter oacutecio390 pois no grego antigo natildeo existia conceito linguiacutestico que

traduzisse a realidade do trabalho para o cidadatildeo (como sabemos o trabalho enquanto

satisfaccedilatildeo de necessidades fora reservado para contexto do ambiente domeacutestico a casa

o oikos cumprido por escravos e mulheres) Com efeito no iniacutecio da reflexatildeo sobre o

oacutecio na antiguidade grega impunha-se a questatildeo acerca de uma vida boa (e feliz)391 Na

Eacutetica a Nicoacutemaco Aristoacuteteles apresenta as suas consideraccedilotildees sobre o oacutecio (scholeacute) agrave

luz da consideraccedilatildeo de um ideal relativo a um estilo de vida boa conducente agrave

felicidade perfeita (eudaimoniacutea) do ser humano Importaria a este propoacutesito

compreender a derivaccedilatildeo argumentativa de tal afirmaccedilatildeo pois em verdade Aristoacuteteles

integra nas suas posiccedilotildees determinados atributos ou singularidades do oacutecio que ainda

persistem no contexto da modernidade Primeiramente o filoacutesofo assinala

repetidamente que a eudaimonia soacute pode consistir na theoria isto eacute na atividade de

uma natureza teoacuterica ou ldquocontemplativa392 o modo teoacuterico de vida permite ao ser

humano dedicar-se inteiramente agrave reflexatildeo do mundo e aumentar o seu conhecimento a

respeito deste Recorde-se pois que a accedilatildeo praacutetica inclusivamente na sua determinaccedilatildeo

moral e virtuosa (Aristoacuteteles cita como exemplo o serviccedilo em funccedilatildeo do estado e o

serviccedilo militar) apresenta-se subordinada agrave teoria393 Aristoacuteteles justifica a primazia da

teoria com o facto de tal constituir a atividade mais poderosa mais contiacutenua no

tempo e mais agradaacutevel394 Trata-se pois da atividade que natildeo carece de nada

388 Han B-C Die Zeit 13 Juni 2013 Nr 252013 Hamburg 2013389 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b5390 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p49391 Uma visatildeo mais detalhada do antigo ideal de um estilo de vida teoacuterico e das suas implicaccedilotildees ateacute osdias atuais poderaacute ser consultada em Juumlrgasch TKeiling T (ed) Anthropologie der TheorieTuumlbingen 2017392 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a15393 Sobre a hierarquizaccedilatildeo de bios theoretikos e bios praktikos consultar Huber G Bios theoretikosund bios praktikos bei Aristoteles und Platon In Vickers B (ed) Arbeit Muszlige MeditationBetrachtungen zur Vita activa und Vita contemplativa Zuumlrich 1985 pp 21-33394 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a

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basta-se a si proacutepria395 A contemplaccedilatildeo teoacuterica em contraste com a accedilatildeo praacutetica natildeo

persegue nenhum outro propoacutesito que lhe seja externo

Demais esta actividade parece ser a uacutenica que eacute querida por si proacutepria porque dela natildeo se

produz mais nenhuma consequecircncia para aleacutem do proacuteprio olhar contemplativo enquanto a

partir das actividades praacuteticas ainda conseguimos obter um resultado melhor ou pior para

aleacutem da proacutepria acccedilatildeo396

Somente apoacutes a apresentaccedilatildeo de tais reflexotildees sobre a teoria eacute que Aristoacuteteles

introduz o scholeacute enquanto condiccedilatildeo de bem-aventuranccedila O calmo e imperturbaacutevel

scholeacute designa o estado propiciador agrave emergecircncia da atividade contemplativa liberta de

restriccedilotildees de objetos externos o scholeacute eacute em verdade a condiccedilatildeo preacutevia da teoria397

Platatildeo jaacute estabelecera tal conexatildeo anteriormente398 Platatildeo designa no Teeteto os

filoacutesofos como aqueles que natildeo se importam se os outros falam muito ou pouco pois

eles os filoacutesofos cumprem apenas certo399 e que como tal se apresentam como

aqueles homens que foram verdadeiramente criados em liberdade e oacutecio400 A

caracterizaccedilatildeo elitista de Platatildeo acerca do filoacutesofo que debate e discute numa situaccedilatildeo

privilegiada de oacutecio revela-se particularmente aguda ou incisiva tendo em conta o modo

como o estatuto do filoacutesofo se distingue do estatuto das ditas pessoas pragmaticamente

atuantes (como por exemplo os falantes do tribunal) que foram educadas como

servas401 Importaria ainda sublinhar que tanto Aristoacuteteles quanto Platatildeo atribuem ao

oacutecio natildeo apenas uma funccedilatildeo episteacutemica pois em verdade as posiccedilotildees sobre o oacutecio

sustentadas por ambos os filoacutesofos integram a consideraccedilatildeo da possibilidade de

conhecimento do mundo desenvolvida de acordo com a fruiccedilatildeo de uma atividade que

conduz agrave felicidade Segundo Aristoacuteteles eacute o prazer da teoria que intensifica a

atividade libertando forccedilas particularmente produtivas402 Especialmente no acircmbito da

definiccedilatildeo aristoteacutelica de teoria encontramo-nos perante a combinaccedilatildeo de diversos

conceitos que se revelam afins tais como contemplaccedilatildeo felicidade atividade e

395 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1176b6-7396 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b1397 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 19ndash37398 Huber G Bios theoretikos und bios praktikos bei Aristoteles und Platon In Vickers B (ed)Arbeit Muszlige Meditation Betrachtungen zur Vita activa und Vita contemplativa Zuumlrich 1985 pp26ndash30Telo H bdquoThe freedom of θεωρία and σχολή in Platoldquo In Juumlrgasch T Keiling T (ed) Anthropologieder Theorie Tuumlbingen 2017 pp 11ndash27399 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p168400 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p172401 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p168402 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b

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autossuficiecircncia Inclusivamente a relaccedilatildeo entre oacutecio e reclusatildeo ou solidatildeo individuais

que se tornaraacute relevante no contexto cultural moderna jaacute constitui uma condiccedilatildeo

perspetivada por Aristoacuteteles que constata O saacutebio eacute capaz de criar uma situaccedilatildeo

contemplativa sozinho a partir de si proacuteprio e em si proacuteprio e quanto mais saacutebio for

mais facilmente o consegue fazer403

Embora Aristoacuteteles caracterize a atividade teoacuterica de modo enaltecedor em

contraste com trabalho praacutetico natildeo se afigura suficiente compreender de um modo

definitivo os dois conceitos somente agrave luz de uma oposiccedilatildeo ou contraposiccedilatildeo Na visatildeo

de Aristoacuteteles a teoria e a praacutetica encontram-se numa relaccedilatildeo complexa que se

expressa de um modo mais manifesto nas sua teses poliacuteticas numa sociedade em que a

liberdade pessoal se determina como uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a participaccedilatildeo

poliacutetica o privileacutegio final de tal liberdade ndash o oacutecio ndash adquire uma funccedilatildeo poliacutetica

imediata Como Soeffner observa em Aristoacuteteles o oacutecio foi considerado um requisito

para uma accedilatildeo poliacutetica bem-sucedida a esfera do oacutecio conscientemente separada da

praacutetica no tempo e no espaccedilo mas no entanto orientada para esta servira para desenhar

cenaacuterios e estrateacutegias opcionais antes da accedilatildeo404 Esta figura de pensamento apresenta-

se amplamente reconhecida nos tempos modernos a accedilatildeo praacutetica deve ser precedida de

uma reflexatildeo teoacuterica para que seja bem-sucedida Cumpriria a este propoacutesito chamar a

atenccedilatildeo para o notaacutevel facto de tanto na cultura grega como na romana as definiccedilotildees de

oacutecio apresentarem uma certa prioridade e positividade conceptual sobre os seus

opostos405 assim assinala Riedl Trabalho eacute apenas a definiccedilatildeo negativa de oacutecio tanto

em grego como em latim scholē eacute o termo que a ascholia nega Em latim o negotium eacute

o contra-conceito do otium406 Se em latim o par de opostos otiumnegotium toma o

lugar da distinccedilatildeo aristoteacutelica entre teoria e praacutetica tal jaacute parece traduzir

etimologicamente a avaliaccedilatildeo contrastante entre o oacutecio livre e privilegiado e a ndashnas

palavras de Platatildeo ndash laboriosa atividade do servo407 Manfred Fuhrmann esclareceu tal

conexatildeo

As palavras otium e negotium pertencem aos pares de opostos cujo negativo eacute formado

403 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a35404 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p 37405 Fuest L Poetik des Nicht(s)tuns Verweigerungsstrategien in der Literatur seit 1800 Paderborn2008 p18406 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 22407 Burke P The invention of leisure in early modern Europe In Past amp Present 146 (1995) 139

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pelo nec com negatium se designou todas as atividades empreendidas para a

autopreservaccedilatildeo para aumentar a riqueza ou para aumentar o prestiacutegio social Abrangia

assim tudo o que sempre tinha constituiacutedo o conteuacutedo da vida romana Qualquer

ocupaccedilatildeo por outro lado que natildeo atendesse diretamente a um dos objetivos acima

mencionados era o otium Isto incluiacutea em particular o que foi transmitido aos romanos

pelos gregos Estudo e educaccedilatildeo arte ciecircncia e literatura teoria e filosofia408

Eacute significativo que inclusivamente o filoacutelogo claacutessico Fuhrmann no seu

esclarecimento do termo natildeo pudera evitar comeccedilar por invocar o ne-gotium ativo de

modo a ndash e ao contraacuterio da explicaccedilatildeo etimoloacutegica que o mesmo Fuhrmann expusera

anteriormente ndash delimitar o otium como um conceito negativo Repare-se que no

acircmbito de tais explicitaccedilotildees Fuhrmann revela porventura de um modo natildeo intencional

o facto de a prioridade original do otium natildeo se encontrar preservada no atual ou

moderno conceito de oacutecio ndash pois agrave luz deste moderno sentido o oacutecio constitui-se como

um conceito derivado porque negativo do trabalho conceptualizado como digamos

ldquoum estado normalrdquo Apesar das sobreposiccedilotildees entre as tradiccedilotildees grega e romana a

transiccedilatildeo para a cultura latina constitui uma mudanccedila significativa no discurso acerca do

oacutecio409 Mesmo nos tempos preacute-ciceroacutenicos o conceito de oacutecio jaacute havia perdido o

elemento da reflexatildeo teoacuterica e do bem viver que tinha sido central em Aristoacuteteles como

podemos constatar nas observaccedilotildees de Fuhrmann

Para a aristocracia romana cujo propoacutesito na vida era a eficaacutecia poliacutetica o otium

significava a esfera privada Natildeo fazia diferenccedila quais as atividades ou ocupaccedilotildees em que

esta se encontrava envolvida ou se por exemplo Scipio reunira conchas no litoral ou

conversara com os seus amigos sobre as fundaccedilotildees do estado romano ndash natildeo fazia

diferenccedila Aleacutem disso natildeo importava o tempo ou as ocasiotildees em que algueacutem se afastava

do Foacuterum e da Cuacuteria as horas de oacutecio as feacuterias e a reforma constituiacuteam de igual maneira

otium410

Assim esvaziado e dissociado do conceito grego de scholeacute o conceito de oacutecio

poderia assumir novos significados e ser adaptado agraves condiccedilotildees da cultura romana Na

eacutepoca de Ciacutecero o uso do oacutecio jaacute havia se estendido muito aleacutem da dimensatildeo privada

408 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488409 Uma histoacuteria conceptual detalhada e abrangente do oacutecio desde as suas origens na Antiguidade Antigapoderaacute ser lida em Andreacute J-M Lrsquootium dans la vie morale et intellectuelle romaine des origines agravelrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966410 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488

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inscrevendo-se progressivamente no acircmbito da esfera poliacutetica411 Nos textos romanos

do seacuteculo I aC o discurso poliacutetico-moral sobre o oacutecio ganhara cada vez mais

predominacircncia a importacircncia do oacutecio para a comunidade e para o Estado passara a ser

reconhecida e com efeito exigida

A foacutermula de cum dignitate otium de Ciacutecero apresenta-se porventura como a

manifestaccedilatildeo mais reconhecida deste novo ideal poliacutetico de oacutecio412 Em Sestiana Ciacutecero

afirma que cum dignitate otium constitui a meta maacutexima da res publica Neste sentido e

tal como elucida Fuhrmann o oacutecio eacute doravante usado na linguagem poliacutetica como um

termo para um estado de relaccedilotildees puacuteblicas [] e significava o funcionamento sem

perturbaccedilotildees de uma certa constituiccedilatildeo constituinte-poliacutetica413 A dignitas como

segunda parte da foacutermula refere-se agrave distinccedilatildeo e agrave soberania do Estado romano bem

como dos seus representantes poliacuteticos em relaccedilatildeo a outros Estados e igualmente em

relaccedilatildeo aos cidadatildeos romanos comuns a dignitas tinha um caraacutecter estaacutetico e

designava uma categoria social que ia aleacutem do meacuterito individual para aleacutem da liberdade

condicional do cargo anual individual414 Ciacutecero assinala expressamente que os dois

componentes da foacutermula devem manter-se numa relaccedilatildeo equilibrada porque na

poliacutetica natildeo se deve deixar levar pela dignitas a ponto de natildeo se preocupar com o otium

nem se agarrar a um otium que contradiz a dignitas415

Importaria pois assinalar que o conceito poliacutetico original de cum dignitate

otium natildeo pode ser prontamente identificado com um conceito moderno de oacutecio

imensamente distante em termos conceptuais e culturais da foacutermula ciceroacutenica

nomeadamente no que concerne agrave sua definiccedilatildeo de oacutecio digno considerado em

afinidade com a possibilidade de expressatildeo da situaccedilatildeo biograacutefica e das realizaccedilotildees

pessoais de um ser humano Para se aproximar de uma possiacutevel conceccedilatildeo moderna do

termo o oacutecio teve de regressar da esfera poliacutetica agrave esfera privada Mais uma vez foi

Ciacutecero quem lanccedilou as bases para esta mudanccedila de sentido Fuhrmann esclarece que

411 Sobre o conceito e a praacutetica do oacutecio na eacutepoca ciceroniana consultar Andreacute J-M Lrsquootium dans lavie morale et intellectuelle romaine des origines agrave lrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966 p205412 Sobre a criacutetica do termo otium cum dignitate consultar Andreacute J-M Lrsquootium dans la vie morale etintellectuelle romaine des origines agrave lrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966 p295413 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 489414 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488415 No original [hellip] neque enim rerum gerendarum dignitate homines ecferri ita convenit ut otio nonprospiciant neque ullum amplexari otium quod abhorreat a dignitateldquo Cicero MT Rede fuumlr P Sestius[Pro P Sestio] In Die politischen Reden Fuhrmann M(ed) Vol2 Darmstadt 1993 p18

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Ciacutecero aplica a sua foacutermula cum dignitate otium num duplo sentido tanto para o Estado

como para os liacutederes poliacuteticos a razatildeo poderaacute ser prontamente compreendida pois

comenta Fuhrmann ldquoCiacutecero identificou constantemente as duas esferasrdquo416

Consequentemente um niacutevel pessoal jaacute se encontrava implicado no conceito de cum

dignitate otium Quando Ciacutecero no final de sua vida transferiu completamente o otium

para o acircmbito da vida individual tal deveu-se agrave experiecircncia autobiograacutefica de uma

situaccedilatildeo de emergecircncia concreta Apoacutes a morte de Ceacutesar e no decurso da luta pelo poder

daiacute resultante o nome de Ciacutecero integrava a lista de proscriccedilatildeo de Antonius sendo

entatildeo forccedilado a fugir de Roma para a sua propriedade rural em Tusculum Assim o

rhetor livre dos seus ofiacutecios teve que renunciar ao seu ideal de atividade poliacutetica natildeo

mais podendo continuar a ver num negatium realizado a justificaccedilatildeo de um otium

igualmente cumpridordquo417

Impossibilitado de cumprir a sua proacutepria exigecircncia de cum dignitate otium

Ciacutecero sentiu-se envolvido num confronto completamente novo com as formas positivas

e negativas do otium Esta mudanccedila de terminologia manifesta-se em particular na

introduccedilatildeo ao terceiro livro de De officiis que constitui uma doutrina de virtudes

dedicada ao seu filho que Ciacutecero escrevera no seu exiacutelio rural O facto de Ciacutecero ter

inicialmente aderido agrave ideia de um otium poliacutetico desejaacutevel torna-se evidente a partir do

momento em que declara Scipio Africanus como modelo perspetivando o poliacutetico

romano que segundo as palavras de Ciacutecero utilizara as suas horas de oacutecio privado para

o bem da res publica418 Para Ciacutecero tal oacutecio cumprido ao serviccedilo do cargo puacuteblico e da

comunidade representa o caso ideal que no entanto de modo algum toda a forma

possiacutevel de otium redime Assim sob circunstacircncias que conduziriam outras pessoas

ao enfraquecimento mantiveram o espiacuterito [de Scipio Africanus] despertas inatividade

e solidatildeo419 No mesmo tom Ciacutecero distingue de modo claro o oacutecio positivo e

legiacutetimo do estadista puacuteblico do oacutecio natildeo realizado improdutivo e privado que para ele

mesmo constitui uma ameaccedila no seu exiacutelio rural

Porque desde que fomos impedidos de fazer trabalho poliacutetico e negoacutecios no Foacuterum pela

416 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 483417 Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p211418 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1 p211 No original ldquonumquam seminus otio sum esse quam cum otiosus nec minus solum quam cum solus essetrdquo419 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1 p21 No original bdquoIta duae resquae languorem adferunt ceteris illum acuebant otium et solitudoldquo

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violecircncia armada sem Deus nos entregamos agrave inatividade e desde que deixamos a cidade

por esse motivo temos vivido apenas no campo e muitas vezes estamos sozinhos Mas

esta inatividade natildeo pode ser comparada agrave inatividade de Africanus nem esta solidatildeo pode

ser comparada agrave sua solidatildeo Ele descansava das mais belas conquistas para o Estado e de

vez em quando tirava feacuterias e de vez em quando retirava-se da agitaccedilatildeo das pessoas para

a solidatildeo como num porto mas a nossa inatividade tem a sua razatildeo de ser na falta de

campo de atividade e natildeo no desejo de descanso420

Confrontado com a sua proacutepria inatividade Ciacutecero desenvolve uma estrateacutegia

para preencher o seu otium vazio segundo uma forma autodeterminada procurando

tornaacute-lo produtivo Em vez de ficar entediado Ciacutecero recorre agrave escrita de textos

literaacuterios e filosoacuteficos Assim entre outras obras surge o De officiis cuja gecircnese eacute

explicada como consequecircncia do retiro poliacutetico e do oacutecio forccedilado

Mas porque assim ouvimos dos filoacutesofos que eacute preciso natildeo soacute escolher o menor dos males

mas tambeacutem escolher o que haacute de bom neles eu gosto da inatividade [] e tambeacutem natildeo

me deixo afrouxar no isolamento que a coerccedilatildeo e natildeo o livre arbiacutetrio me impocircs [] Mas

noacutes que natildeo temos tanta forccedila que nos distraiacutemos da solidatildeo pelo pensamento sem

palavras pusemos todo o nosso zelo e cuidado nesta atividade literaacuteria Eacute por isso que

escrevemos mais no pouco tempo que decorre apoacutes a queda da Repuacuteblica do que nos

muitos anos em que a revelaccedilatildeo ainda existia421

Como observou Lefegravevre [Ciacutecero] sente-se repelido e volta-se para a filosofia

como um substituto422 Nos escritos deste periacuteodo torna-se claro que para Ciacutecero a

atividade literaacuteria tivera como propoacutesito enfrentar a vida Uma consequecircncia notaacutevel

de tal desenvolvimento eacute a (re)privatizaccedilatildeo do conceito de oacutecio repare-se pois que

Ciacutecero natildeo perspetivara no De officiis o otium enquanto um estado desenvolvido no

acircmbito das esferas puacuteblicas referindo-se por contraste e como que exclusivamente agrave

420 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1-2 p211 No original ldquoNam et a republica forensibusque negotiis armis impi is vique prohibiti otium persequimur et ob eam causam urberelicta rura peragrantes saepe soli sumus Sed nec hoc otium cum Africani otio nec haec solitudo cum illacomparanda est Ille enim requiescens a rei publicae pulcherrimis muneribus otium sibi sumebataliquando et coetu hominum frequentiaque interdum tamquam in portum se in solitudinem recipiebatnostrum autem otium negotii inopia non requiescendi studio constitutum estrdquo421 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 3ndash4 pp211ndash213 No original ldquoSedquia sic ab hominibus doctis accepimus non solum ex malis eligere minima oportere sed etiam excerpereex his ipsis si quid inesset boni propterea et otio fruor [hellip] nec eam solitudinem languere patior quammihi adfert necessitas non voluntas [hellip] nos autem qui non tantum roboris habemus ut cogitationetacita a solitu dine abstrahamur ad hanc scribendi operam omne studium curamque convertimus Itaqueplura brevi tempore eversa quam multis annis stante re publica scripsimusrdquo422 Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p198

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esfera privadardquo423 O pensamento de Ciacutecero pode portanto ser apreciado agrave luz de

vaacuterios aspetos como um discurso precursor de um novo paradigma no discurso acerca

do oacutecio A sua distinccedilatildeo entre um oacutecio realizado e legiacutetimo por um lado e um oacutecio natildeo

realizado e repreensiacutevel por outro assume a possibilidade de o indiviacuteduo se tornar

responsaacutevel pela apropriaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo dos tempos livres destinados ao oacutecio Para

Ciacutecero o otium requer uma legitimaccedilatildeo moral que se entrecruza com a sua dimensatildeo

poliacutetica ndash e quanto mais a atividade desenvolvida no acircmbito do oacutecio se afigurar

orientada para o bem comum mais eminente e elevada tal atividade deveraacute ser

considerada no acircmbito poliacutetico-moral Uma atividade filosoacutefica e literaacuteria tambeacutem

poderaacute satisfazer tal criteacuterio Na decorrecircncia da sua retirada solitaacuteria (ainda que

involuntaacuteria) da esfera puacuteblica Ciacutecero estabelece um topos particularmente poderoso

sobre os quais os autores posteriores se orientaram Nos Essais Montaigne referiu-se

assim ao modelo de Ciacutecero laquo que dit vouloir employer sa solitude et sejour des affaires

publiques agrave sen acquerir par ses escris une vie immortelle raquo424

No contexto de tais posiccedilotildees Aristoacuteteles e Ciacutecero merecem amplas referecircncias e

citaccedilotildees ndash a convocaccedilatildeo dos seus pensamentos permite-nos responder a diversas

interrogaccedilotildees aqui delineadas tais como que tipo de atividade poderaacute ser desenvolvida

no acircmbito do oacutecio Cumpriria ter presente que o termo ldquooacuteciordquo natildeo significa

necessariamente natildeo-fazer-nada Em alematildeo a palavra significa originalmente

oportunidade ou possibilidade de fazer algo ou natildeo fazer nadardquo Com efeito o oacutecio no

sentido platoacutenico apresenta-se como uma atividade intelectual da mais alta prontidatildeo

para possibilidade de ocorrecircnca da theoria A teoria no seu sentido original de

contemplaccedilatildeo da verdade constitui-se como uma atividade intensamente intelectual

que natildeo obstante se desenvolve segundo uma imobilidade externa425

Uma filosofia moderna do oacutecio natildeo se caracteriza pela pretensatildeo de descrever

uma forma programaacutetica de oacutecio Se apreciarmos os distintos autores que em

determinado momento e ainda que de modo parco contribuiacuteram para uma filosofia do

oacutecio seremos levados a questionar a possibilidade de identificar ou delimitar quebras

epocais que correspondam a diferentes discursos acerca da mateacuteria Com efeito as teses

e os padrotildees de argumentaccedilatildeo elaborados pela filosofia antiga satildeo prolongados e

423Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p198424 de Montaigne ME De la solitude In Essais Rat M (ed) Paris 1962 p275425 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p283

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porventura ligeiramente modificados mas em princiacutepio mantidos como referecircncia

primordial

Poder-se-ia com certa pertinecircncia afirmar que o motivo de alteraccedilatildeo mais

visiacutevel consiste em verdade na motivaccedilatildeo da reflexatildeo filosoacutefica sobre o oacutecio Neste

sentido cumpriria atentar que no acircmbito da modernidade o quadro de pensamento

cultural que envolve o oacutecio poderaacute ser descrito agrave luz de uma nova postura que procura

definir tal termo agrave luz de um outro conceito o conceito de trabalho o oacutecio deveacutem

portanto uma realidade conceptualmente secundaacuteria decorrente derivada o oacutecio eacute

assim avaliado o contraconceito do conceito de trabalho segundo as novas formas da

organizaccedilatildeo social da modernidade

Esta mudanccedila de perspetivaccedilatildeo do oacutecio deveraacute ser apreciada menos como uma

mudanccedila de pontos de vista estritamente filosoacuteficos que se proporiam refutar ou superar

programaticamente os discursos da antiguidade do que como uma reaccedilatildeo aos fenoacutemenos

da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo que caracterizam a modernidade tardia Como tal as

novas filosoacuteficas do oacutecio deveratildeo ser compreendidas como filosofias

preponderantemente criacuteticas relativamente agraves novas realidades sociais desenvolvidas no

acircmbito da modernidade tardia ndash o conceito de oacutecio ele mesmo constitui-se como um

conceito criacutetico envolto num quadro de reflexatildeo social e de criacutetica cultural

Poder-se-ia a este respeito mencionar Nietzsche e Schopenhauer que

contribuiacuteram de certa forma para uma filosofia de oacutecio nos tempos modernos se em

Schopenhauer o oacutecio se constitui como possibilidade de autorrealizaccedilatildeo do ser humano

as observaccedilotildees de Nietzsche sobre o oacutecio entrecruzam-se de modo intenso com a sua

criacutetica cultural acerca dos tempos modernos426 Especialmente no caso de Nietzsche natildeo

426 No pensamento de Nietzsche encontramos um elogio ao oacutecio e correlativamente uma criacutetica aotrabalho ndash ambos os conceitos afiguram-se com efeito tratados de um modo intiacutemo Tal poderaacute serperspetivado como uma criacutetica agrave Modernidade no seu todo uma vez que Nietzsche a concebera assim oavanccedila Heidegger como uma revalorizaccedilatildeo de todos os valoresrdquo (Heidegger M Nietzsche IGesamtausgabe vol61 Schillbach B (ed) Frankfurt a M 1996 pp 66ndash91) Dispersas ao longo daobra de Nietzsche surgem diversas poleacutemicas contra aquilo que desgina como a era do trabalho(Nietzsche F Goumltzendaumlmmerung Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol6 Colli GMontinari M (ed) Muumlnchen 1988 p130) Em Humano demasiado humano existem alguns fragmentosque celebram o oacutecio antigo como uma praacutetica alternativa agrave hegemonia da eacutetica do trabalho na sociedadeburguesa Tais afirmaccedilotildees satildeo ndash especialmente no acircmbito do pensamento tardio de Nietzsche ndashapresentadas de modo particularmente enfaacutetico A este respeito Nietzsche debruccedila-se sobre a tradicionaldistinccedilatildeo entre bom e mau trabalho Este uacuteltimo o trabalho mau eacute concebido como o tormento damaldiccedilatildeo biacuteblica que nunca encontra termo e que exige constantemente a labuta (labor) ndash trata-se poisde um trabalho mau que em uacuteltima anaacutelise permanece improdutivo Ao contraacuterio o trabalho dito bomcorresponde ao trabalho que produz ao trabalho de criaccedilatildeo (opus) esta forma de trabalho tem sido desdeo seacuteculo XVII crescentemente elevada ao estatudo de ideal nos discursos e nas praacuteticas correspondentesLeiamos Arendt a tal respeito bdquoO trabalho liberto eacute pensado de acordo com o princiacutepio da arte eacute pessoal

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se afigura oacutebvio todavia que as suas observaccedilotildees filosoacuteficas ofereccedilam uma posiccedilatildeo

sistemaacutetica proacutepria no discurso da filosofia do oacutecio427

Uma das constantes na reflexatildeo teoacuterica sobre o oacutecio consiste na consideraccedilatildeo da

sua demarcaccedilatildeo relativa a todos os modos de trabalho especialmente de uma

atividade funcional Em alguns textos programaacuteticos e cientiacuteficos explica-se que o

oacutecio permite um distanciamento das preocupaccedilotildees da vida quotidiana em particular

e criativo Constitutivamente continua a natildeo ser claro se a obra deve ser libertada para si proacutepria ou de siproacuteprialdquo (Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p125) No final do seacuteculoXIX Nietzsche radicalizou tal discurso dotando-o de uma tonalidade poleacutemica Os pontos histoacutericos dereferecircncia para Nietzsche satildeo por um lado o trabalho fabril e por outro a tremenda aceleraccedilatildeo da vidaldquo(Nietzsche F Menschliches Allzumenschliches Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol2Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p231) subjacente ao trabalho do mundo industrializadoperspetivado por Nietzsche agrave luz a omnipresente pressa das pessoas sem descanso (Ibid p231) Perantea nova barbaacuterie (Ibid p232) na qual Nietzsche vislumbrara a falta de descanso (Ibid p232) natildeo setrataria somente de elaborar um diagnoacutestico pessimista dos tempos o foco de atenccedilatildeo de Nietzscheconsiste com efeito em problematizar a diferenccedila tradicional entre o trabalho mau e interminaacutevel comolabuta (labor) e a actividade boa e produtiva Importaria a este respeito ter presente que Nietzsche natildeosomente nega a individualidade agravequeles que satildeo activos nas suas profissotildees como tambeacutem (ao estilo deSchlegel) a despreza bdquoAos que satildeo activos falta geralmente a actividade superior refiro-me agrave actividadeindividual Satildeo [] activos [] mas natildeo como indiviacuteduos especiacuteficos e uacutenicos seres humanos a esterespeito satildeo preguiccedilososldquo (Ibid p231) Numa palavra o trabalhador eacute preguiccediloso (Ibid p232) poissegundo Nietzsche nada produz limitando-se a repetir os processos de trabalho ditados pela suaespecializaccedilatildeo O trabalho fabril torna-se portanto uma forma metafoacuterica de escravatura como todas asoutras profissotildees Segundo Nietzsche a escravatura reside nas estruturas e dinacircmicas de uma formaccedilatildeocultural que se tornou omnipresente que se estendeu para aleacutem da faacutebrica alcanccedilando a cultura dostrabalhadores desenvolvida apoacutes a industrializaccedilatildeo bem como o trabalho dos que procuram conhecimentoe a constituiccedilatildeo do sujeito em geral De acordo com o filoacutesofo aqui se encontra configurada amoralidade escravaldquo (Nietzsche F Zur Genealogie der Moral Saumlmtliche Werke KritischeStudienausgabe vol2 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p270) que deve ser combatida e quese ancorou no mais iacutentimo dos seus suacutebditos Ao inveacutes de trabalhar para si proacuteprio cada ser humanotrabalho por dinheiro ou para o dono da faacutebrica ou incluisvamente para Deus Sob o termo trabalhoNietzsche concebe praacuteticas de alienaccedilatildeo e natildeo praacuteticas de autodeterminaccedilatildeo A elaboraccedilatildeo porNietzsche de um contraconceito de trabalho decorre da cultura antiga do natildeo-trabalho dos cidadatildeoslivres (ou proprietaacuterios de escravos) de Atenas bem como do natildeo-trabalho das desistecircncias romacircnticas Acoisa nobre do oacutecio de que o filoacutesofo tratar em Humano demasiado humano deve portantodistinguir-se da preguiccedila num sentido regressivo e heteroacutenomo Natildeo obstante a arte constitui-se comoum modelo para Nietzsche ndash jaacute natildeo a tatildeo admirada arte de Wagner que se situa agora do lado da ineacuterciada preguiccedila e da improdutividade Assim numa das poleacutemicas posteriores contra Wagner Nietzscheafirma bdquoO trabalhador cansado e de respiraccedilatildeo lenta que olha bondosamente que deixa as coisas andarcomo estatildeo esta figura tiacutepica que se encontra agora na era do trabalho [] em todas as classes dasociedade hoje encontra-se na arte [] Wagner compreendeu istoldquo (Nietzsche F GoumltzendaumlmmerungSaumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol6 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p130)Em contraste Nietzsche em A Gaia Ciecircncia estabelece uma arte diferente nomeadamente uma artede viver que natildeo se refere a obras de arte mas agrave proacutepria vida como uma obra de arte bdquoNoacutes no entantoqueremos tornar-nos naquilo que somos ndash os novos os uacutenicos os incomparaacuteveis os autolegislativos osautocriadoresldquo (Nietzsche F Die froumlhliche Wissenschaft Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabevol3 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p422) bdquoApenas como criadores (Ibid p422) e tambeacutemapenas para os artistas (Ibid p351) o trabalho pode consequentemente ser libertado de si mesmo erealizado como arte Tal realizaccedilatildeo jaacute natildeo se refere agrave produccedilatildeo de obras de arte mas agrave proacutepria formaccedilatildeodo sujeito bdquoQueremos ser os poetas da nossa vida e nas coisas mais pequenas e quotidianas primeiroldquo(Ibid p538) 427 Gerhardt V ldquoDer freie Geist und die Muszlige Zur Anthropologie der Theorie bei Nietzscherdquo InJuumlrgasch TKeiling T (ed) Anthropologie der Theorie Tuumlbingen 2017 pp225-246 Schaumlfer MJ

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das atividades de aquisiccedilatildeo e de negoacutecio (negotium) regularmente praticadas428 Ao

contraacuterio dessas atividades as praacuteticas de oacutecio poderiam permitir um gozo

particularmente puro e determinado sem perseguir qualquer objetivo429 Tais praacuteticas

caracterizam-se sobretudo pelo facto de natildeo possuiacuterem uma finalidade exterior a si

mesmas o oacutecio natildeo eacute uma accedilatildeo intencional e racional430 e natildeo pode sob nenhuma

circunstacircncia ser integrado na conveniecircncia de uma orientaccedilatildeo futura431 No entanto

segundo vaacuterios autores tal natildeo significa que a oacutecio seja um fenoacutemeno infundado ou

supeacuterfluo Pelo contraacuterio a sua caracteriacutestica mais importante consiste no facto de o

oacutecio se constituir como uma realidade que encontra a sua finalidade em si mesma laquoLe

temps de lotium a sa finaliteacute en soi mecircmeraquo432

Com efeito tambeacutem estas caracterizaccedilotildees modernas de oacutecio podem ser traccediladas

desde Aristoacuteteles Nesta tradiccedilatildeo o conceito de oacutecio (e os seus correlatos em outras

liacutenguas) apresenta-se utilizado agrave luz de um intenso sentido de continuidade histoacuterica de

modo a traduzir uma atitude e um modo de vida que se desviam do modo de

funcionamento dominante do trabalho organizado no interior de uma sociedade O oacutecio

encontra-se assim em oposiccedilatildeo ao trabalho e a atividades quotidianas que devem ser

desenvolvidos tendo em vista a sobrevivecircncia e a continuidade da comunidade ndash assim

perspetivado o oacutecio poderaacute ser perspetivado como uma realidade que integra uma

funccedilatildeo determinada no interior da respetiva sociedade a saber a funccedilatildeo de relaxamento

e de recuperaccedilatildeo das forccedilas e das energias dos trabalhadores A avaliaccedilatildeo de que a

legitimaccedilatildeo do oacutecio decorre do processo de atribuiccedilatildeo e de estabelecimento da sua

funccedilatildeo no interior de uma sociedade e da sua forma de organizaccedilatildeo do trabalho constitui

objeto de estudo por vaacuterios autores que procuraram justamente num sentido teoacuterico e

socialmente criacutetico libertaacute-lo de tais processos ndash como eacute o caso de Gert Mattenklott por

exemplo

O oacutecio natildeo se afasta realmente deste princiacutepio [de uso racional] quando eacute obrigado a

Die Gewalt der Muszlige Wechselverhaumlltnisse von Arbeit Nichtarbeit Aumlsthetik ZuumlrichBerlin 2013Schaumlfer MJ Muumlssiggang eines Gottes Schreibarbeit nach Nietzsche In Karschnia A Kohns OKreuzer S Spies C (ed) Zum Zeitvertreib Strategien ndash Institutionen ndash Lektuumlren ndash BilderBielefeld 2005 pp175-186428 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p9429Hessel F Von der schwierigen Kunst spazieren zu gehen [1932] In In Ermunterung zum GenussKleine Prosa Berlin 1981 p46430 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p11431 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p10432 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p73

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prestar contas do ldquotempo vaziordquo quando permanece subordinado agrave pretensatildeo de provar o

seu significado no quadro da racionalidade interior-cultural433

Uma revisatildeo histoacuterica pode revelar que as funccedilotildees do oacutecio podem variar de

acordo com o contexto histoacuterico-social434 seja como condiccedilatildeo para a contemplaccedilatildeo

filosoacutefica do mundo (Aristoacuteteles) da dignidade poliacutetica (Ciacutecero) da transferecircncia

didaacutetica do conhecimento (Seacuteneca) da contemplaccedilatildeo cristatilde de Deus (Agostinho) da

autoria criativa (Montaigne) da formaccedilatildeo do caraacuteter individual (Goethe Schopenhauer)

ou como ponto de criacutetica contra uma modernidade acelerada (Nietzsche) No mundo

moderno e contemporacircneo a funcionalizaccedilatildeo do oacutecio poderia para aleacutem de constituir

uma possibilidade de travagem e de equiliacutebrio da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo do

trabalho ser dirigida entre outras coisas para a autorreflexatildeo e autorrealizaccedilatildeo do ser

humano Em vez de contemplar Deus ou a natureza do mundo o indiviacuteduo moderno

coloca-se no centro da sua perceccedilatildeo o oacutecio poderia assim traduzir aquele estado

extraordinaacuterio em que o indiviacuteduo reflete sobre si mesmo e estaacute consigo mesmo - le

temps ougrave lon est aupregraves de soi435 Portanto de acordo com Schopenhauer ldquoo oacutecio livre

de cada um dando-lhe o livre gozo da sua consciecircncia e da sua individualidade eacute o

fruto e o rendimento de toda a sua existecircncialdquo436 A metaacutefora do fruto e rendimento

integra a esperanccedila associada agrave emergecircncia de um determinado resultado do oacutecio de

uma vantagem produtiva ndash trata-se pois de uma expectativa que se sustenta na

discriminaccedilatildeo moral entre oacutecio cumprido e oacutecio natildeo cumprido entre otium e

otiositas entre oacutecio e ociosidade Schopenhauer formula tal criteacuterio de benefiacutecio nos

seus Aforismos para a sabedoria de vida

Mas o que rende o oacutecio livre para a maioria das pessoas Aborrecimento e teacutedio se natildeo

houver prazeres sensuais ou tolices para preenchecirc-lo Como o oacutecio eacute completamente

inuacutetil mostra-se pela forma como as pessoas o usam eacute quase sempre apenas o entediante

oacutecio dos tolos As pessoas comuns soacute pensam em gastar este tempo quem tem algum

talento - para usaacute-lo437

433 Mattenklott G Faulheit In Blindgaumlnger Physiognomische Essais Frankfurt a M 1986 p69434 Sobre a possibilidade de relaccedilatildeo entre o oacutecio e o respetivo contexto social consultar Dobler GRiedl PP bdquoEinleitungldquo In Dobler GRiedl PP (ed) Muszlige und Gesellschaft Tuumlbingen 2017 pp1-17435 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p74436 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p 29437 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p 29

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A distinccedilatildeo de Schopenhauer ndash entre um oacutecio usado de uma maneira razoaacutevel

por alguns indiviacuteduos excelsos e o ldquooacutecio entedianterdquo ldquogastadordquo pelos tolosrdquo ndash ilustra

revelando o facto de o discurso puacuteblico da eacutepoca apenas reconhecer certas

funcionalizaccedilotildees do oacutecio Para Schopenhauer tais funccedilotildees satildeo sobretudo a realizaccedilatildeo

do proacuteprio talento ndash em outras palavras a autorrealizaccedilatildeo autoacutenoma No contexto do

seacuteculo XIX se um indiviacuteduo pode fazer uso do oacutecio e alcanccedilar um resultado que valha

a pena tal determina-se como um criteacuterio de distinccedilatildeo da elite econoacutemica intelectual e

artiacutestica ndash que de acordo com Thorstein Veblen pode ser descrita como a leisure

class438 por contraste com o proletariado439 Schopenhauer assim o confirma de forma

exemplar segundo o filoacutesofo uma bem-sucedida autoconstituiccedilatildeo cumprida no oacutecio

natildeo constitui uma capacidade humana geral mas o privileacutegio de uma pequena elite440

Como jaacute se disse o oacutecio livre eacute a flor ou melhor o fruto da existecircncia de cada indiviacuteduo

na medida em que soacute ele o coloca na posse do seu proacuteprio eu aqueles que entatildeo tambeacutem

438 Veblen T The Theory of the leisure class An economic study of institutions New York 1934439 Sobre exemplos relevantes no mundo anglo-americano consultar Fludernik M Muszlige als sozialeDistinktion In Dobler G Riedl PP (ed) Muszlige und Gesellschaft Tuumlbingen 2017 pp163-177440 O oacutecio da leisure class segundo Veblen (18991934) (Veblen T The Theory of the leisure class Aneconomic study of institutions New York 1934) possui uma funccedilatildeo de demarcaccedilatildeo social a leisure classdistingue-se da populaccedilatildeo trabalhadora por exibir ostensivamente as suas atividades nos tempos livresNeste aspeto os membros da leisure class imitam o conceito elitista de oacutecio da sociedade grega embora oproacuteprio oacutecio experimentado seja provavelmente diferente do de Atenas Enquanto o antigo σχολήenfatizava a autocontemplaccedilatildeo filosoacutefica e a troca intelectual (o banquete constitui-se com efeito comoum cenaacuterio do oacutecio concebido como um assunto puramente masculino) uma mudanccedila dos bensintelectuais para a concentraccedilatildeo da riqueza pode ser observada entre os ricos por exemplo na sociedadeamericana no final do seacuteculo XIX Como Rashmi Jain observa no seu estudo socioloacutegico uma cultura deconsumo do oacutecio estaacute a desenvolver-se no Ocidente (o conceito de leisure afigura-se como oacutecio somenteem casos excecionais ou seja otiose leisure) Tal significa que o tempo livre se encontra preenchido comatividades de consumo que conduzem a uma exibiccedilatildeo cada vez mais enfaacutetica dos altos custos desteconsumo ldquoVeblen predicted that conspicuous consumption would eventually replace conspicuous leisureas the primary means of displaying pecuniary strength In modern societies it is difficult to display aconspicuous waste of time The leisure class resorts to conspicuous consumption of consumer goodsrdquo(Jain R Access to Leisure Impact of Forces of Liberalisation Privatisation and Glo- balisation onSocially Disadvantaged Groups in India In World Leisure Journal 491 (2007) 15-23) Quando falamosde lazer como distinccedilatildeo social soacute podemos falar de caracteriacutesticas de lazer que se referem a dois aspetosnomeadamente a disponibilidade de tempo livre (o tempo livre como condiccedilatildeo baacutesica do oacutecio) e vaacuteriaspraacuteticas de oacutecio que podem ser de natureza elitista ou socialmente distinta Assim para considerar oprimeiro aspeto eacute razoavelmente claro que o tempo livre soacute se torna mais amplamente disponiacutevel commaior prosperidade porque a pobreza natildeo soacute restringe severamente o orccedilamento de tempo (as classessociais mais baixas tecircm frequentemente vaacuterios empregos mal pagos ao mesmo tempo e portantopraticamente nenhum tempo livre) mas tambeacutem os receios existenciais dos pobres dificultam-lhes opleno aproveitamento do tempo que tecircm disponiacutevel (por exemplo no tempo de desemprego) No entantoo tempo livre disponiacutevel tambeacutem parece diminuir na outra ponta da escala social entre os ricos de modoque o alto volume de trabalho natildeo pode ser compensado pelo tempo de oacutecio mas apenas financeiramentee de facto segundo Veblen tal situaccedilatildeo conduz a uma orientaccedilatildeo intensiva do consumo com oreconhecido resultado de que aquele que tem um jardim grande e bonito por exemplo quase nunca podedesfrutar dele por falta de tempo Ateacute ao seacuteculo XIX a definiccedilatildeo de gentleman consistia na ausecircncia danecessidade de trabalhar ou seja na posse de bens ou rendimentos correspondentes Apesar doPuritanismo o ideal do proprietaacuterio de terras ou rendas permaneceu o mesmo ateacute o seacuteculo XIX O oacuteciodas classes altas era constitutivo para o seu estatuto

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recebem algo de bom por si mesmos devem ser elogiados alegremente enquanto o oacutecio

livre natildeo daacute nada agrave grande maioria das pessoas como acontece com no sentimento de um

indiviacuteduo que estaacute terrivelmente aborrecido que se vecirc como um fardo para si mesmo441

As notas de Schopenhauer apresentadas nos Aforismos da sabedoria de vida

confirmam com efeito a reorientaccedilatildeo moderna do oacutecio para o acircmbito do sujeito

individual A autoconstituiccedilatildeo do indiviacuteduo revela-se a funccedilatildeo mais importante do oacutecio

moderno ndash e a narraccedilatildeo afigura-se progressivamente como uma das suas teacutecnicas mais

importantes442 Mediante a narraccedilatildeo o ser humano pode dar sentido agrave sua existecircncia

construindo uma identiteacute narrative para si mesmo443 Tal ideia manifesta-se de modo

concreto no geacutenero literaacuterio da autobiografia emergente a partir dos finais do seacuteculo

XVIII O claacutessico autobioacutegrafo eacute caracterizado pela sua capacidade de integrar os

acontecimentos heterogeacuteneos da sua vida numa narrativa holiacutestica Na narraccedilatildeo o

narrador cria-se a si mesmo de facto tal propoacutesito da narraccedilatildeo autobiograacutefica jaacute era

conhecido dos primeiros teoacutericos da autobiografia como demonstram as observaccedilotildees de

Wilhelm Dilthey

Olhando para traacutes na memoacuteria compreendemos a conexatildeo dos elementos decorrentes do

curso de vida sob a categoria do seu significado Quando vivemos no presente repleto de

diferentes realidades sentimos o seu valor positivo ou negativo e agrave medida que

avanccedilamos em direccedilatildeo ao futuro a categoria de propoacutesito surge deste comportamento444

Assim o oacutecio poderaacute igualmente constituir-se como condiccedilatildeo preacutevia da

reflexatildeo e da narraccedilatildeo autobiograacutefica e portanto como condiccedilatildeo da autoconstituiccedilatildeo

bem-sucedida do indiviacuteduo Com efeito tal perspetivaccedilatildeo integra o ideaacuterio da cultura

quotidiana entrecruzando-se com a nova exigecircncia de que o ser humano necessita de

mais oacutecio para poder encontrar-se a si mesmo445 No contexto moderno a nova funccedilatildeo

do oacutecio parece decorrer da nova filosofia da subjetividade se o oacutecio natildeo se determina

como realidade externamente configurada poder-se-ia num sentido contraacuterio concebe-

lo como uma realidade que se desenvolve agrave luz da interioridade subjetiva que aspira ao

delineamento da sua autoidentidade Com efeito natildeo seria supeacuterfluo afirmar que o

discurso moderno acerca do oacutecio permite sobretudo desenvolver perspetivaccedilotildees e

441 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p31

442 Klinkert T Muszlige und Erzaumlhlen ein poetologischer Zusammenhang Vom Roman de la Rose biszu Jorge Sempruacuten (Otium) Tuumlbingen 2016443 Ricœur P Lrsquoidentiteacute narrative In Esprit 12 (1988) 295ndash304444 Dilthey W Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften GesammelteSchriften vol7 Groethuysen B (ed) LeipzigBerlin 1942 p201445 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p12

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conclusotildees sobre o conceito moderno de sujeito Pois o paradigma individualista

implica a existecircncia de um lugar e de um tempo que permitam ao indiviacuteduo ser

completamente ele mesmo e assim realizar-se O conceito de oacutecio poderia assim

servir para nomear aquela estrutura espaacutecio-temporal utoacutepica na qual que as conceccedilotildees

modernas de individualidade autoacutenoma e o anseio de autorrealizaccedilatildeo se tornam

possiacuteveis Mattenklott assim esclarece

o oacutecio eacute parte de um programa de vida e eacute [] cercado pelas mais altas exigecircncias um

tempo de reflexatildeo sobre o sentido metafiacutesico da vida para uns um tempo de autecircntico

desenvolvimento da personalidade para outros []446

A ideia de Mattenklott de que o oacutecio como parte de um programa de vida

poderia ter duas funccedilotildees essenciais nomeadamente dar sentido e desenvolvimento

autecircntico da personalidade eacute com feito uma ideia assaz moderna No trabalho tal

como Mattenklott o afirma esta funcionalizaccedilatildeo surge como uma constante

antropoloacutegica embora pressuponha um conceito moderno do indiviacuteduo O indiviacuteduo

moderno necessita do oacutecio para refletir e desenvolver-se ndash neste ponto a definiccedilatildeo

aristoteacutelica acerca do oacutecio enquanto realidade pautada pela autorreferencialidade

adquire uma tonalidade nova moderna Mas como tal desenvolvimento do oacutecio poderaacute

cumprir-se no acircmbito da modernidade tardia ndash tal parece constituir a interrogaccedilatildeo mais

premente A este respeito poder-se-ia convocar Marx e a sua conceccedilatildeo acerca de uma

sociedade natildeo capitalista no contexto da qual a autorrealizaccedilatildeo do ser humano poderia

ter lugar no seio do desenvolvimento de um trabalho natildeo alienado em verdade segundo

Marx poder-se-ia perspetivar inclusivamente uma continuidade entre trabalho

diversatildeo e oacutecio

Pois assim que o trabalho comeccedila a ser distribuiacutedo todos tecircm um certo ciacuterculo exclusivo

de atividade que lhe eacute imposto do qual natildeo pode sair ele eacute um caccedilador pescador ou

pastor ou criacutetico e deve permanecer assim se natildeo quiser perder os meios de vida ndash

enquanto que na sociedade comunista onde ningueacutem tecircm um ciacuterculo exclusivo de

atividade mas pode ser formado em qualquer aacuterea a sociedade regula a produccedilatildeo geral e

assim me permite fazer isso hoje amanhatilde uma coisa diferente caccedilar de manhatilde pescar agrave

tarde criar gado agrave noite e criticar depois do jantar como eu quiser447

446 Mattenklott G Faulheit In Blindgaumlnger Physiognomische Essais Frankfurt a M 1986 p44 447 Marx KEngels F Die deutsche Ideologie [1846] Die Marx-Engels-Werke vol3 Berlin 1969p33

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Distintamente de autores anteriores tanto Pieper448 quanto Russel449 escreveram

textos que expotildeem o conceito de oacutecio nos seus tiacutetulos permitindo-se assim ser

tomados como contribuiccedilotildees programaacuteticas com reivindicaccedilotildees sociopoliacuteticas Pieper

concebe a sua filosofia do oacutecio explicitamente como um caso exemplar de uma

atualizaccedilatildeo do paradigma aristoteacutelico na modernidade Ao contraacuterio de Aristoacuteteles natildeo

obstante Pieper e Russell procurar compreender o oacutecio a partir do seu oposto

conceptual ndash o trabalho O contraste entre oacutecio e ldquonatildeo oacuteciordquo (ascholiacutea) segundo a

contraposiccedilatildeo moderna entre oacutecio e ldquotrabalhordquo natildeo substitui a descriccedilatildeo acerca daquilo

que se faz no oacutecio A observaccedilatildeo de que as liacutenguas antigas concebem o ldquotrabalhordquo como

a-scholiacutea ou neg-otium ndash isto eacute como negaccedilatildeo do oacutecio (scholeacute otium) ndash enquanto que

na modernidade eacute o oposto que se verifica pois eacute o oacutecio que eacute concebido como uma

negaccedilatildeo do trabalho revela-se verdadeira Mas tal observaccedilatildeo natildeo justifica a

consequecircncia de que a determinaccedilatildeo de uma atividade de oacutecio seja irrelevante na loacutegica

das descriccedilotildees e legalizaccedilotildees modernas do oacutecio sendo substituiacuteda pela justaposiccedilatildeo com

o trabalho O delineamento de uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio a partir de uma conceccedilatildeo

dominante de trabalho poderaacute pois ser avaliada como problemaacutetica como constatam

Pieper e Russel com efeito segundo uma perspetivaccedilatildeo mais aprofundada ambos

Pieper e Russel rejeitam como insuficiente a ideia de que a definiccedilatildeo de oacutecio deveraacute ser

simplesmente desenvolvida agrave luz da predominacircncia do conceito de trabalho

Segundo as elucidaccedilotildees de Pieper a ascolia foi concebida pelos gregos como

uma escola de formaccedilatildeo da alma deste modo tal como Pieper o avanccedila o oacutecio

deveria ser traduzido preferencialmente agrave luz do conceito de educaccedilatildeo no sentido de

Humboldt enquanto desenvolvimento integral de todas as habilidades humanas Esta

vita contemplativa natildeo se trata necessariamente de um solipsismo retirado do indiviacuteduo

isolado que tem de recuperar do seu trabalho extenuante mas segundo Pieper da

perfeiccedilatildeo do indiviacuteduo que eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da comunidade humana

Pieper inicia o ensaio Muszlige und Kult com a objeccedilatildeo de que o periacuteodo imediato

do poacutes-guerra natildeo eacute o momento certo para falar de oacutecio450 Esta objeccedilatildeo eacute refutada

pela consideraccedilatildeo de que eacute precisamente o novo fundamento da cultura que torna

necessaacuteria uma defesa do oacutecio Se a nova construccedilatildeo da cultura alematilde foi planeada

segundo o espiacuterito ocidental deveria ser decidida hoje E segundo Pieper a

448 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999449 Russel B In Praise of Idleness and Other Essays London 2004 [1935]450 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p2

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premecircncia da discussatildeo acerca do oacutecio decorre justamente do conhecimento de tal

fenoacutemeno como um dos fundamentos da cultura ocidental451

Afigura-se caracteriacutestico do ensaio de Pieper o salto abrupto para a filosofia

aristoteacutelica que integra a ideia de que o oacutecio determina todas as conquistas culturais A

palavra grega que poderaacute ser traduzida como escola no original scholeacute deveria ser

assim sustenta Piepr a primeira indicaccedilatildeo da validade geral desta consideraccedilatildeo452 Para

Pieper tal consideraccedilatildeo natildeo soacute fornece uma primeira orientaccedilatildeo mas forma

igualmente a base da sua proacutepria reflexatildeo Tal postura teoacuterica de Pieper manifesta-se

cumprira salientar no facto de a traduccedilatildeo inglesa de Muszlige und Kult surgida em 1952

apresentar como tiacutetulo Leisure the base of culture453 A combinaccedilatildeo entre teoria cultural

sistemaacutetica e diagnoacutestico de crise define a perspetiva de Pieper sobre a situaccedilatildeo

histoacuterica apoacutes a Segunda Guerra Mundial Pieper aborda a recente rutura com a

civilizaccedilatildeo tal como ocorrida no fascismo como um momento de total irrupccedilatildeo do

contrafenoacutemeno do oacutecio ndash a saber o trabalho Pieper natildeo considera tal rutura com a

civilizaccedilatildeo como uma narrativa alternativa de continuidade histoacuterica mas sim como

uma visatildeo original e inalteradamente vaacutelida em relaccedilatildeo agrave qual Aristoacuteteles tambeacutem se

posicionara num outro contexto histoacuterico454

Segundo Pieper a justaposiccedilatildeo de entre oacutecio e trabalho natildeo se constitui como

uma realizaccedilatildeo histoacuterica recente mas traduz sim uma caracteriacutestica da modernidade

enquanto um todo no acircmbito da qual a posiccedilatildeo hieraacuterquica dos conceitos de oacutecio e de

trabalho fora profundamente invertida Sem se referir agrave Segunda Guerra Mundial que

terminara trecircs anos antes Pieper escreve que o conceito original de oacutecio tornou-se

completamente irreconheciacutevel no cansaccedilo programaacutetico do mundo total do trabalho455

Este diagnoacutestico eacute seguido por uma proposta terapecircutica dirigida a uma comunidade

mas que exige igualmente consideraccedilatildeo individual Segundo Pipier eacute imperioso

451 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p2452 P PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3453 Pieper J Leisure the basis of culture London 1952 Esta traduccedilatildeo foi iniciada por T S Eliot quetambeacutem escreveu uma introduccedilatildeo Eliot concebe a filosofia de Pieper como uma resposta aoentendimento filosoacutefico do positivismo loacutegico Em contraste com esta uacuteltima Pieper combinou filosofia eteologia combinaccedilatildeo essa que Eliot considera essencial para uma compreensatildeo adequada da proacutepriafilosofia Segundo Eliot tambeacutem Pieper se opotildee agrave bdquoillusion of a progress of philosophyldquo (Pieper JLeisure the basis of culture London 1952 p72)454 Este pressuposto de continuidade corresponde agrave filosofia da histoacuteria de Pieper Consultar Pieper JHoffnung und Geschichte Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp375ndash440 Godfrey JThe Future of Pieperrsquos Hope and History In Schumacher B (ed) The Cosmopolitan HermitWashington DC 2009 pp 141ndash170455 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3

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vencer a nossa proacutepria resistecircncia que decorre da sobrevalorizaccedilatildeo do mundo do

trabalho456 Pieper concebe a sobrevalorizaccedilatildeo do trabalho como um dos principais

motes culturais do seu tempo Convocando diversas conceccedilotildees tais como ldquoespiacuterito do

capitalismordquo segundo Max Weber a terceira figura imperial segundo Ernst Niekisch e

o ldquotrabalhadorrdquo formulada por Ernst Juumlnger457 Pieper conclui que a ideia relativa de que

autoimagem que o mundo do trabalho oferece ao indiviacuteduo se afigura como

profundamente decisiva no acircmbito do pensamento moderno Tal autoconceccedilatildeo estaacute

presente no conceito de ldquotrabalhadorrdquo por exemplo o qual natildeo significa uma posiccedilatildeo

social ou ambiente ou uma afiliaccedilatildeo de classe mas traduz um ldquosentido

antropoloacutegicordquo uma ldquoimagem humana geralrdquo A crise da sociedade moderna eacute

portanto segundo Pieper uma crise antropoloacutegica caracterizada por

uma opiniatildeo alterada sobre a natureza do homem em geral e uma interpretaccedilatildeo alterada da

existecircncia humana (menschlichen Dasein) em geral que se manifesta na nova

reivindicaccedilatildeo do conceito de trabalho e de trabalhador458

O objetivo de Pieper natildeo eacute de natureza historiograacutefica mas terapecircutica natildeo se

trata de traccedilar o caminho histoacuterico de tal mudanccedila na autocompreensatildeo humana mas

investigar a causa raiz de uma doutrina filosoacutefica do homem459 Nesse sentido Pieper

perspetiva o oacutecio como um contraconceito descritivo e normativo de trabalho indo aleacutem

dos teoacutericos jaacute mencionados Ao definir o ldquotrabalhadorrdquo como sintoma de uma crise

antropoloacutegica o diagnoacutestico de modernidade de Pieper comeccedila no domiacutenio do

paradigma aristoteacutelico com a questatildeo da realizaccedilatildeo da vida humana Com efeito no

primeiro capiacutetulo do ensaio Muszlige und Kult Pieper avanccedila a tese de que o ldquotrabalhordquo

natildeo se constitui como a realidade promotora da realizaccedilatildeo humana sustentando jaacute no

contexto do segundo capiacutetulo da sua obra a preocupaccedilatildeo em reabilitar a theoria como

atividade antropologicamente privilegiada Em verdade Pieper condena a conceccedilatildeo

acerca da filosofia enquanto trabalho intelectual460 enquanto atividade tambeacutem ela

caracterizada agrave luz do conceito de trabalho

456 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3457 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp3-5 Chad Lakiespropotildee a atualizaccedilatildeo deste diagnoacutestico de Pieper atraveacutes do pensamento de Charles Taylorperspetivando o trabalho como social imaginary Consultar Lakies C Challenging the CulturalImaginary Pieper on How Life might live In New Blackfriars 91 (2010) 499-510458 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p5459 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p6460 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p6

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Segundo Pieper Kant afigura-se como o responsaacutevel por tal mal-entendido

relativamente a si mesmo enquanto filoacutesofo e relativamente agrave sua proacutepria atividade

filosoacutefica Recorde-se que no ensaio intitulado Sobre um recentemente enaltecido tom

de distinccedilatildeo na Filosofia Kant descreve o pensar filosoacutefico agrave luz de uma lei da razatildeo

para adquirir posses atraveacutes do trabalho461 Pieper aponta as condiccedilotildees histoacutericas deste

comentaacuterio de Kant dirigido contra os filoacutesofos romacircnticos mas avalia-o como parte de

um autoengano eficaz conquanto assaz compreensiacutevel A conceccedilatildeo de Kant tal como

Pieper a comenta descreve o esforccedilo desenvolvido tendo em vista a aquisiccedilatildeo do

conhecimento como condiccedilatildeo suficiente da sua realizaccedilatildeo mas segundo as elucidaccedilotildees

de Piepier tal esforccedilo traduz inexoravelmente uma caracteriacutestica do trabalho dando

origem agrave postulaccedilatildeo da elevaccedilatildeo do ldquoesforccedilo de conhecerrdquo a criteacuterio de verdade Neste

sentido concluir-se-ia o trabalho parece ser a forma decisiva de desenvolvimento da

filosofia462

Tal posiccedilatildeo kantiana apresenta-se acompanhada como prontamente podemos

compreender pelo facto de o conhecimento filosoacutefico ser entendido como discursivo

natildeo intuitivo o que Pieper identifica como a primeira caracteriacutestica da obra

intelectual Esta compreensatildeo limitada da cogniccedilatildeo mental sublinha Pieper conduz ao

facto de a forma mais elevada de cogniccedilatildeo ndash a ideia que surge com a ldquorapidez do

relacircmpagordquo a ldquocontemplaccedilatildeo real ndash se assumir excluiacuteda enquanto possibilidade de

cogniccedilatildeo natildeo porque se apresente vazia de conteuacutedo mas porque eacute cumprida sem

esforccedilo463 A rejeiccedilatildeo de uma compreensatildeo do conhecimento como acontecimento

passivo ao inveacutes de accedilatildeo ativa determina-se como a segunda caracteriacutestica do trabalho

mental464 A conceccedilatildeo de filosofia enquanto trabalho apresenta consequecircncias no

acircmbito da organizaccedilatildeo social sublinha Pieper os processos de organizaccedilatildeo social tal

como os processos cognitivos devem estar sujeitas a um forte controlo social e a uma

profunda racionalizaccedilatildeo

No seguimento do que se enuncia a perspetivaccedilatildeo da filosofia como uma arte

livre (ars libera) apresenta-se ameaccedilada encontrando-se pois sujeita ou subordinada

461 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p7462 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p15463 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p14464 Neste contexto Pieper cita as palavras de Adolf Hitler as quais embora natildeo se refiram agrave atividade dereconhecimento descrevem aos olhos de Pieper em extrema radicalidade o autoentendimento dotrabalho que Pieper rejeita Toda a accedilatildeo eacute significativa ateacute mesmo um crime toda a passividade natildeotem sentido (PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p11) Pieperavalia esta afirmaccedilatildeo como uma frase terriacutevel (Ibid p14)

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ao ldquodever do cumprimento da funccedilatildeo de tal modo que o reconhecimento filosoacutefico se

afigura neste contexto como um serviccedilo social 465 De acordo com as posiccedilotildees de

Pieper seremos conduzidos agrave seguinte conclusatildeo se o desempenho criacutetico da filosofia

se relaciona de algum modo possiacutevel com a liberdade humana entatildeo poder-se-ia

argumentar que a definiccedilatildeo kantiana de filosofia enquanto de trabalho entra em conflito

com sua proacutepria ecircnfase no valor da liberdade A definiccedilatildeo kantiana de filosofia assim

apreciada parece contrariar a reivindicaccedilatildeo ndash tambeacutem profundamente kantiana ndash da

autonomia dos sujeitos livres que agem de modo autodeterminado Rejeitando o quadro

filosoacutefico kantiano Pieper recupera o paradigma aristoteacutelico de liberdade para

perspetivar uma possiacutevel definiccedilatildeo de filosofia ldquoA ldquoliberdaderdquo das ldquoartes liberaisrdquo

reside no fato de que elas natildeo precisam se legitimar a partir de sua funccedilatildeo socialrdquo466

O quarto capiacutetulo de Muszlige und Kult manifesta a recusa de Pieper em

perspetivar modos de estruturaccedilatildeo social e de distribuiccedilatildeo do privileacutegio do oacutecio entre

grupos sociais no contexto de uma alternativa organizaccedilatildeo social do trabalho Com

efeito a argumentaccedilatildeo de Pieper concentra-se nas consequecircncias antropoloacutegicas que o

mundo totalitaacuterio do trabalho produz O Excurso sobre o proletarianismo e a

desproletarizaccedilatildeo que constitui a maior parte do quarto capiacutetulo eacute significativo a este

respeito pois o mencionado excurso visa transpor o conceito de proletariado de uma

descriccedilatildeo de diferenciaccedilatildeo social para uma avaliaccedilatildeo do mal-entendido antropoloacutegico jaacute

analisado sob a palavra-chave trabalhador De acordo com a tese de Pieper

proletariado significa basicamente nada mais que estar preso ao processo de

trabalho Uma verdadeira desproletarizaccedilatildeo poderia ser alcanccedilada tornando

acessiacutevel ao trabalhador uma aacuterea de atividade significativa que natildeo eacute trabalho ndash em

outras palavras possibilitando-lhe a abertura do domiacutenio do verdadeiro oacutecio467 Pieper

modifica assim a distinccedilatildeo entre trabalho e oacutecio relativamente ao jaacute proposto ao longo

das suas observaccedilotildees anteriores A partir da descriccedilatildeo e da avaliaccedilatildeo da organizaccedilatildeo

social tal distinccedilatildeo constitui um contraste de formas de vida entre as quais os

indiviacuteduos aparentemente mudam Pieper descreve-o como algo inevitaacutevel tendo em

vista a possibilidade de provocar uma expansatildeo econoacutemica atraveacutes de medidas

poliacuteticas do espaccedilo vital que estaacute disponiacutevel para o oacutecio Tal significaria uma

465 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p16466 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p17467 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp35-36

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capacitaccedilatildeo externa do oacutecio uma mudanccedila na organizaccedilatildeo social468 Para Pieper esta

mudanccedila afigura-se necessaacuteria mas natildeo suficiente A coisa decisiva natildeo diz respeito agrave

organizaccedilatildeo social mas ao indiviacuteduo como representante do humano

Uma possibilidade puramente externa de oacutecio natildeo eacute suficiente soacute pode entatildeo florescer

para frutificar quando o homem se tornou capaz de fazer efeito de oacutecio por si mesmo

(esta eacute a expressatildeo grega - scholegraven aacutegein)469

Assim a descriccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo do oacutecio eacute transposta da acircmbito da filosofia

social para a esfera do questionamento acerca da determinaccedilatildeo da accedilatildeo que ocorre no

oacutecio ou eacute proacutepria do oacutecio como Pieper o apresenta com referecircncia a Aristoacuteteles Esta

consideraccedilatildeo implica poreacutem que a consideraccedilatildeo de que a justaposiccedilatildeo entre trabalho e

oacutecio ndash por mais relevante que se afigure atualmente ndash natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise

suficiente para desenvolver uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio Pieper permanece dentro

das orientaccedilotildees do paradigma aristoteacutelico quando remete a questatildeo da organizaccedilatildeo

social do trabalho e do oacutecio para a antropologia na qual somente uma determinaccedilatildeo

positiva do que significa agir no oacutecio pode ser dada O diagnoacutestico criacutetico moderno

com a sua reivindicaccedilatildeo sociopoliacutetica torna-se uma questatildeo de accedilatildeo individual Tal eacute

particularmente evidente no facto de Pieper na terceira secccedilatildeo do seu ensaio

determinar o oacutecio natildeo em relaccedilatildeo ao trabalho mas em relaccedilatildeo agrave ineacutercia (acedia) Aquele

que eacute dito preguiccediloso natildeo trabalha mais do que algueacutem que fazer efeito de oacutecio470

Este fenoacutemeno presta-se portanto a uma diferenciaccedilatildeo mais precisa dentro do natildeo-

trabalho No acircmbito do pensamento de Pieper o contraste entre oacutecio e trabalho

especifica-se agrave luz do contraste entre oacutecio e ineacutercia Referindo-se a Tomaacutes de Aquino

Pieper escreve que o contraconceito de acedia natildeo representa o espiacuterito de trabalho

da vida quotidiana mas a afirmaccedilatildeo e a concordacircncia altamente presumidas do

homem com o seu proacuteprio ser com o mundo como um todo com Deus ndash isto eacute com o

amor471

Torna-se claro a este respeito o modo como Pieper convoca o padratildeo

antropoloacutegico do paradigma aristoteacutelico segundo um olhar cristatildeo tendo em vista a

elaboraccedilatildeo de uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio Soacute pode haver oacutecio se o homem for uno

468 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p36 Sobre a filosofiasocial de Pieper consultar Wald B Der ldquolinke Pieperrdquo und das Dritte Reich In FechtrupHSchulze F Sternberg T (ed) Wissen und Weisheit Zwei Symposien zu Ehren von Josef Pieper Muumlnster 2005 pp 38-82469 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p36470 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p21471 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p22

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consigo mesmo se concordar com o seu ser real472 Este criteacuterio esclarece por que

razatildeo o oacutecio natildeo deve ser reduzido agrave sua possibilidade externa no contexto de formas

sociais a concordacircncia consigo mesmo eacute como a superaccedilatildeo do pecado da aciacutedia uma

questatildeo individual e interna A incorporaccedilatildeo social soacute pode dificultar ou tornar mais

favoraacutevel mas natildeo garantir tal cumprimento No decorrer do seu ensaio Pieper

desenvolve a sua anaacutelise da modernidade agrave luz espiritualidade cristatilde que se torna

assim o centro da sua argumentaccedilatildeo

O oacutecio eacute como uma atitude mental (este facto evidente deve ser registado o oacutecio ainda

natildeo eacute dado com os factos externos de pausa no trabalho tempos livres fim de semana

feacuterias O oacutecio eacute um estado da alma) - o oacutecio eacute precisamente a contraposiccedilatildeo do ideal do

ldquotrabalhadorrdquo473

Poder-se-ia lendo cuidadosamente a citaccedilatildeo de Pieper concluir que a definiccedilatildeo

de oacutecio enquanto atitude mental se distancia por um lado do paradigma aristoteacutelico

jaacute que nada corresponde diretamente a esta atitude na filosofia aristoteacutelica474 Todavia

poder-se-ia por outro lado assinalar pontos comuns entre a sentenccedila de Pieper e a

filosofia aristoteacutelica pois tal atitude mental soacute poderaacute ser concretizada em formas

especiacuteficas de ser ativo que se caracterizam por tal concentraccedilatildeo na perspetiva

interior do ser humana Assim propondo uma inversatildeo da conceccedilatildeo de trabalhador

Pieper descreve o oacutecio como a atitude de natildeo atividade de descanso de deixar as

coisas acontecerem de silecircncio Enquanto atitude de escuta recetiva o oacutecio eacute ao

mesmo tempo atitude de imersatildeo contemplativa no existente475 Assim definido o

oacutecio constitui-se como uma disposiccedilatildeo que se realiza enquanto atividade

especificamente teoacuterica que natildeo eacute discursiva nem reflexiva ndash natildeo eacute ldquotrabalhordquo ndash mas

sim eminentemente intuitiva

De acordo com Pieper o oacutecio eacute a atitude de contemplaccedilatildeo solene que natildeo se

define como atividade de cogniccedilatildeo laboriosa mas sim como experiecircncia de

concordacircncia com a verdadeira essecircncia de si mesmo e igualmente como experiecircncia

de estar de acordo com o sentido do mundo476 No seguimento de tais posiccedilotildees Pieper

472 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p22473 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p23474 Tal diz respeito acima de tudo agrave qualificaccedilatildeo desta atitude como mental Para Aristoacutetelescertamente que existe uma atitude ou disposiccedilatildeo (heacutexis) para a conduta virtuosa e isto natildeo exclui atheoria que traduz a virtude ou areteacute da faculdade mental (nous) do ser humano Consultar AristoacutetelesEacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a475 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p24476 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p25

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descreve a celebraccedilatildeo de uma festa como fenoacutemeno exemplar como a mais alta forma

de afirmaccedilatildeo pois eacute na celebraccedilatildeo da festa que se experiencia um acordo intenso entre

si proacuteprio e o mundo a celebraccedilatildeo da festa eacute pois o momento exemplar do oacutecio ldquoa

origem interior e inata do oacutecio Eacute o caraacuteter celebrativo atraveacutes do qual o oacutecio natildeo eacute

apenas sem esforccedilo mas o oposto de esforccedilo477 Eacute apenas na celebraccedilatildeo que o natildeo-

trabalho adquire um significado entendido por Pieper como acordo e acordo com o

mundo de que tanto o trabalho como a ineacutercia carecem478

Tambeacutem o ensaio de Russell intitulado In Praise of Idleness procura esclarecer o

paradigma aristoteacutelico a partir da relaccedilatildeo entre a accedilatildeo autopropositiva e a

autodeterminaccedilatildeo autoacutenoma No entanto Russell natildeo parece conseguir cumprir tal

tarefa ao inveacutes de resolver o problema Russel descreve-o somente como resultado da

tensatildeo entre uma autoimagem modernaliberal e o paradigma aristoteacutelico479 Russell

assinala com efeito a existecircncia de um problema de distribuiccedilatildeo justa do oacutecio que

reclama de modo urgente uma organizaccedilatildeo mais justa do trabalho Tambeacutem Pieper

admite natildeo obstante a toacutenica na dimensatildeo espiritual da accedilatildeo no oacutecio a capacitaccedilatildeo

externa do oacutecio enquanto representaccedilatildeo de um valor Apesar das diferentes ecircnfases as

477 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p26478 Com base neste criteacuterio acerca de um acordo intenso e pleno de cumprimento tal como ilustradono exemplo do festival podemos compreender as posiccedilotildees de Pieper sobre o oacutecio O caso exemplar deoacutecio natildeo eacute somente o filosofar mas a accedilatildeo culta A ideia de que as celebraccedilotildees satildeo momentosexemplares de oacutecio visa uma consequecircncia muito especiacutefica que jaacute havia sido sugerida na reinterpretaccedilatildeode uma questatildeo social como questatildeo antropoloacutegica e finalmente como questatildeo espiritual Se poreacutem acelebraccedilatildeo eacute o nuacutecleo do oacutecio entatildeo o oacutecio recebe desta a sua capacitaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo interiores eassim a festa e a celebraccedilatildeo recebem o seu significado e a sua capacitaccedilatildeo interior Mas este eacute o culto(PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p38) A atividade de culto eacuteportanto a atividade paradigmaacutetica de oacutecio Culto eacute a perfeiccedilatildeo da celebraccedilatildeo como aquela accedilatildeoinabitual agrave qual se deve dar prioridade mesmo antes do trabalho O culto por sua vez eacute a celebraccedilatildeomais festiva Deste ideal surge tambeacutem um criteacuterio para as formas corretas e incorretas de celebraccedilatildeo Afesta genuiacutena soacute ocorre onde a relaccedilatildeo com o culto ainda estaacute viva (PieperJ Muszlige und Kult Werkein acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p41) Pieper sublinha que natildeo se trata apenas de umaexigecircncia mas tambeacutem de uma afirmaccedilatildeo de que o criteacuterio normativo de autenticidade nofenoacutemeno da proacutepria celebraccedilatildeo deva ser determinado de forma descritiva Separado do culto o oacuteciotorna-se acedia ou seja ocioso e sem uma base no culto o trabalho torna-se desumano (PieperJMuszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p42) Somente na accedilatildeo culta haacuteportanto aquela realizaccedilatildeo da natureza humana que nem a ineacutercia nem o trabalho oferecem mas que eacute auacutenica promessa de felicidade Na pequena introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo inglesa Pieper enfatiza que a defesa doculto eacute uma defesa da liberdade bdquoSuppress that last sphere of freedom and freedom itself and all ourliberties will in the end vanish into thin airldquo (Pieper J Leisure the basis of culture London 1952p20) Tambeacutem a experiecircncia da liberdade do oacutecio eacute portanto condicionada pela liberdade do cultobdquoleisure in its turn is free because of its relation to worship to the cultusldquo (Pieper J Leisure the basisof culture London 1952 p21)479 Um outro autor que se confronta com este problema eacute Hans Blumenberg Para Blumenberg oproblema de como a antropologia antiga (e a sua identificaccedilatildeo de eudaimonia com theoria) pode serassociado agrave descriccedilatildeo kantiana da razatildeo humana Consultar Keiling T The pleasure of the non-conceptual Theory leisure and happiness in Blumenbergrsquos anthropology In SATS NorthernEuropean Journal of Philosophy 17 (2016) pp 81ndash113

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sociedades modernas enfrentam a questatildeo de uma distribuiccedilatildeo justa do oacutecio que natildeo eacute

levada em conta no acircmbito do paradigma aristoteacutelico Pieper e Russell dedicam-se de

facto a descrever um possiacutevel processo de aprendizagem de atividades de oacutecio480 e

ambos situam tal processo no contexto das instituiccedilotildees educacionais Neste sentido

Russel sustenta que natildeo se trata de perspetivar o tempo livre como soluccedilatildeo mas the

wise use of leisure como a product of civilisation and education481 Se o oacutecio

representa um valor social entatildeo torna-se imperioso problematizar natildeo soacute a distribuiccedilatildeo

do trabalho e do tempo de oacutecio que tem de ser proporcionado mas tambeacutem o acesso

aos espaccedilos de oacutecio Uma sociedade necessita de (devido agrave digitalizaccedilatildeo teoricamente

cada vez menos) trabalho para garantir a produccedilatildeo e reproduccedilatildeo do seu material mas

tambeacutem precisa de oacutecio para o seu desenvolvimento eacutetico espiritual e cultural

480 Annette Holba apresentou uma teoria do transformative leisure que se concentra no significado dooacutecio nos processos individuais e sociais de autoentendimento Apesar de Holba seguir Pieper Holbaapresenta as suas criacuteticas Pieper ldquodoes not make explicitly clear the relationship between leisure and thecommunicative structure that organizes and propels our livesrdquo (Holba A Transformative Leisure APhilosophy of Communication Milwaukee 2013 p14)481 Russel B In Praise of Idleness and Other Essays London 2004 [1935] p8

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12 | A dicotomia histoacuterico-cultural entre oacutecio e trabalho

hellipdeclara-se que todos os Imperadores de qualquer Impeacuterio declarado Santo pela vontade osinteresses e os apetites dos homens devem ceder seu trono agraves caracteriacutesticas infantis deatenccedilatildeo contiacutenua agrave vida de existecircncia total no presente de ignoracircncia de coacutedigos manuais efronteiras de integraccedilatildeo no sonho de valorizaccedilatildeo do jogo sobre o trabalho de simpatia pelacigarra que logo a nossa escola substitui pelo aplauso agrave formiga jaacute que (a primeira) conveacutemagrave alegria apenas e a outra ao lucro

Agostinho da Silva Educaccedilatildeo de Portugal

Aceleraccedilatildeo intensificaccedilatildeo do trabalho e de todos os modos de produccedilatildeo laboral

intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica e outros fenoacutemenos de ldquoincrementordquo482

encontram-se entre os principais temas que definem e caracterizam o nosso tempo Os

seus efeitos alteram o mundo em que vivemos e as relaccedilotildees que com ele mantemos bem

como a visatildeo ou a imagem que dele elaboramos e formamos ndash e anunciam a inquietaccedilatildeo

como o signo da modernidade tardia Tomando tal cenaacuterio como pano de fundo das

nossas reflexotildees um dos propoacutesitos centrais do trabalho que aqui apresentamos consiste

em sustentar que num sentido contraacuterio ao sentido corrente o oacutecio ndash um dos conceitos

que se tornaraacute estruturante no interior da presente tese acadeacutemica ndash natildeo se tornou uma

categoria historicamente obsoleta mas ao inveacutes adquiriu um novo significado pessoal

e social Como tal a definiccedilatildeo de oacutecio proposta e utilizada neste trabalho acadeacutemico

remete para a consideraccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de liberdade de ausecircncia de restriccedilotildees

temporais associadas agrave ausecircncia de uma expectativa imediata (e limitadora do tempo)

de desempenho e objetivo o oacutecio e a sua fruiccedilatildeo reclama liberdade das imposiccedilotildees de

restriccedilotildees de tempo e a produtividade de uma nova accedilatildeo pode crescer a partir da

liberdade de natildeo fazer Todavia o oacutecio permanece aqui indeterminaacutevel nas suas

finalidades diretas

Oacutecio e modernidade comportam uma relaccedilatildeo tensa Tal poderaacute ser verificado

atraveacutes da anaacutelise histoacuterica mas tambeacutem a partir da atenta consideraccedilatildeo da nossa

presente modernidade tardia As revoluccedilotildees industriais ndash desde a intensificaccedilatildeo da

482 O termo alematildeo Steigerung (que aqui traduzimos por ldquoincrementordquo) natildeo possui uma palavracorrespondente em liacutengua portuguesa Poderia significar ldquofazer maisrdquo num sentido quantitativo outambeacutem qualitativo Linguisticamente significa ldquoa comparaccedilatildeo de um adjetivordquo podendo tambeacutemsignificar o melhoramento do desempenho crescimento intensificaccedilatildeo aprimoramento expansatildeo eincremento

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mecanizaccedilatildeo por volta de 1800 ateacute agrave eletrificaccedilatildeo ocorrida a partir de

aproximadamente 1900 desde a automaccedilatildeo no seacuteculo XX ateacute agrave digitalizaccedilatildeo contiacutenua ndash

alteraram aceleraram e incrementaram de modo draacutestico e inexoraacutevel dimensotildees

significativas do mundo e da nossa relaccedilatildeo com ele ndash em especial o designado mundo

do trabalho483 A luz artificial dissolve o dia na noite o trabalho e o consumo tornam-se

possiacuteveis e exequiacuteveis a qualquer momento ao contraacuterio do sono que deixa de ser um

resiacuteduo fixo de repouso e de recuperaccedilatildeo fiacutesica e mental484 Os dados as informaccedilotildees

satildeo permanentemente transmitidos por todo o planeta e o capitalismo estabelece-se

mundialmente como a ordem econoacutemica e social dominante natildeo obstante a irrupccedilatildeo de

crises econoacutemicas e financeiras Na viragem do seacuteculo XX para o seacuteculo XXI os seres

humanos definidos nas suas potencialidades laborais e produtivas transformam-se em

trabalhadores independentes e em precaacuterios criativos

Otimizaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo natildeo satildeo apenas maacuteximas propagadas no mundo

externo mas tambeacutem internalizadas como nos revela a figura do eu-empreendedor485

perspetivado por alguns filoacutesofos sociais tais como Byung-Chul Han na sua obra A

Sociedade do Cansaccedilo Neste sentido o oacutecio parece ter-se tornado um conceito obsoleto

ou anacroacutenico conquanto nunca tenha desaparecido completamente Tal poderaacute ser

constatado por exemplo na tradiccedilatildeo da Bohegraveme cujos representantes no seacuteculo XIX e

iniacutecios do seacuteculo XX buscaram uma vida livre artisticamente inspirada para aleacutem das

convenccedilotildees sociais e morais e dos mecanismos de mercado486 Dandy e Flacircneur satildeo

figuras sociais proeminentes que se inscrevem natildeo obstante na cultura moderna aqui

adquirindo os seus contornos eminentemente esteacuteticos recordando-nos das

possibilidades quase esquecidas da vida ociosa no contexto da modernidade urbana em

raacutepida mutaccedilatildeo487

483 Schivelbusch W Geschichte der Eisenbahnreise Zur Industrialisierung von Zeit und Raum im 19Jahrhundert Muumlnchen 1977484 Crary J 247 Late capitalism and the ends of sleep London 2014485 Broumlckling U Das unternehmerische Selbst Soziologie einer Subjektivierungsform Frankfurt a M2007 E tambeacutem Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014486 Kreuzer H Die Boheme Analyse und Dokumentation der intellektuellen Subkultur vom 19Jahrhundert bis zur Gegenwart Stuttgart 1971 Meyer A-R Jenseits der Norm Aspekte der Bohegraveme-Darstellung in der franzoumlsischen und deutschen Literatur 1830ndash1910 Bielefeld 2001487 Krause R bdquoDem muumlszligigen Flaneur den angenehmsten Zeitvertreib gewaumlhrenrdquo Figurationendes Muumlszligiggangs in Heines sbquoBriefen aus Berlinlsquo und sbquoLutezialsquo In Unger TLillge CWeyand B(ed) Arbeit und Muumlszligiggang in der Romantik Paderborn 2017 pp171ndash182 Krause R bdquoDandysmeZu einem Motiv aus Nietzsches Baudelaire-Exzerptenldquo In Graumltz KKaufmann S (ed) Nietzscheals Dichter Lyrik ndash Poetologie ndash Rezeption Berlin Boston 2017 pp 401ndash420

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Que significa pois oacutecio ndash e como tal conceito se desenvolvera ao longo dos

tempos No final do seacuteculo XVIII o dicionaacuterio de Adelung definia o oacutecio na sua

demarcaccedilatildeo relativamente a neg-oacutecio como

o tempo restante do emprego regular de transaccedilotildees profissionais do negoacutecio profissional

ou tempo livre isenccedilatildeo do negoacutecio regular ] Aleacutem disso a completa liberdade de todas

as ocupaccedilotildees obrigatoacuterias488

De acordo com esta definiccedilatildeo oacutecio natildeo significa inatividade per se mas sim a

possibilidade de poder escolher livremente entre inatividade e atividade sem no

entanto estar obrigado agrave atividade escolhida ou a qualquer outra atividade no tempo

disponiacutevel Com efeito desde a Antiguidade grega o conceito de oacutecio tem sido definido

segundo uma conotaccedilatildeo positiva neste sentido Platatildeo considerara o oacutecio uma condiccedilatildeo

social necessaacuteria para filosofar489 Nos tempos modernos e particularmente desde o

seacuteculo XVIII a posiccedilatildeo privilegiada do oacutecio como modo de vida que seria propiacutecio agrave

arte agrave filosofia e agrave ciecircncia encontra-se em regressatildeo e os seus campos de atividade

apresentam-se crescentemente incluiacutedos no conceito de trabalho490 a este respeito a

definiccedilatildeo de Adelung que perspetiva o oacutecio como possibilidade de transaccedilotildees

profissionais de tempo livre ou restante consiste numa definiccedilatildeo que jaacute natildeo se afigura

passiacutevel de integrar uma compreensatildeo do conceito de oacutecio sem uma referecircncia ao

conceito de trabalho

Curiosamente a preguiccedila por sua vez define-a Adelung como a omissatildeo

inativa do trabalho obediente e no sentido estrito da palavra a habilidade dessa

omissatildeo491 Neste sentido nos iniacutecios do seacuteculo XVIII a preguiccedila eacute concebida como

uma situaccedilatildeo de natildeo-trabalho ndash embora se deva realmente trabalhar Assim definido o

conceito de preguiccedila pressupotildee uma certa obrigaccedilatildeo de trabalhar E a referecircncia agrave

omissatildeo do trabalho parece evocar ndash advertindo para ndash o perigo de desenvolver um

estilo de vida indolente marcado pelo gosto pela negligecircncia do dever de trabalhar492

488 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p626489 Martin N Muszlige In Historisches Woumlrterbuch der Philosophie (Vol6) Ritter JGruumlnder K (ed)Darmstadt 1984 Vol 6 p 257-260490 Martin N Muszlige In Historisches Woumlrterbuch der Philosophie (vol6) Ritter JGruumlnder K (ed)Darmstadt 1984 p 258491 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p628492 Consultar muumlszligig In Duden Das groszlige Woumlrterbuch der deutschen Sprache in zehn Baumlden WissRat der Dudenredaktion Mannheim 1999 vol 6 p2665

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O conceito de trabalho tambeacutem requer pois uma definiccedilatildeo que neste

contexto poderaacute ser inicialmente orientada para o uso contemporacircneo do termo no

iniacutecio da modernidade por volta do ano 1800493 No seu artigo de dicionaacuterio Adelung

descreve o uso da palavra trabalho segundo dois aspetos por um lado para a

performance e por outro para o trabalho a ser produzido ou produzido pela atividade

O artigo apresenta algumas passagens essenciais para a compreensatildeo do conceito de

trabalho

O trabalho plur -os um substantivo usado para descrever tanto a aplicaccedilatildeo

das forccedilas do corpo e da alma como o objeto desta aplicaccedilatildeo Portanto

significa

I A aplicaccedilatildeo dos seus poderes [] nomeadamente

1 no significado verdadeiro a aplicaccedilatildeo de forccedilas fiacutesicas principalmente para

adquirir propriedade temporal com ela [] Especialmente os artesatildeos fizeram

desta palavra a sua proacutepria para imprimir toda a gama de ocupaccedilotildees

pertencentes aos seus ofiacutecios

2 em sentido mais amplo a aplicaccedilatildeo obrigatoacuteria das forccedilas da alma em que o

significado da maioria das expressotildees mencionadas acima pelos trabalhos

manuais tambeacutem eacute comum Por isso tambeacutem se diz aqui ldquofazer o trabalhordquo ldquoir

trabalharrdquo ldquoir para o trabalhordquo e assim por diante

3 figurativo (1) O movimento interno dos corpos inanimados especialmente

aquele produzido pela fermentaccedilatildeo [] (2) esforccedilo dificuldade Em tempos

passados este significado se estendia ainda mais e era muito comum para

irritaccedilatildeo dores perseguiccedilatildeo etc [] No Alto Alematildeo este significado jaacute natildeo eacute

mais usual exceto que agraves vezes ainda eacute comum usar a palavra trabalho para o

esforccedilo

493 Consultar Conze W Arbeit In Geschichtliche Grundbegriffe Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland Brunner OConzeWKoselleck R (ed) Stuttgart 1972 vol 1 pp154-215 Fuumlllsack M Arbeit Wien 2009

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II o objeto do trabalho nomeadamente

1 O que deve ser produzido pelo trabalho Para dar um trabalhordquo ldquoEle tem

muitos trabalhos estaacute sobrecarregado com trabalho [hellip]

2 o que foi produzido pelo trabalho Este eacute o trabalho das suas matildeos ou seja

ele conseguiu fazer isso [hellip]494

O artigo de Adelung aponta revelando alguns desenvolvimentos que poderatildeo

ser descritos como porventura virulentos ocorridos no contexto do trabalho no

momento da viragem do seacuteculo XVIII para o seacuteculo XIX e que se refletiram

inclusivamente no uso da liacutengua alematilde em primeiro lugar o significado figurativo de

trabalho como esforccedilo e dificuldade que fora central para o uso da liacutengua do Alto

Alematildeo Meacutedio495 natildeo mais se apresenta considerado no Alto Alematildeo (I3(2)) ou seja a

conotaccedilatildeo negativa da palavra outrora dominante recuou consideravelmente496 Em

segundo lugar no acircmbito exterior ao da aplicaccedilatildeo de forccedilas fiacutesicas ndash para a qual eacute

sublinhada a utilizaccedilatildeo do termo pelos artesatildeos ndash a aplicaccedilatildeo obrigatoacuteria de forccedilas

mentais ou seja a atividade intelectual passa tambeacutem a ser descrita como trabalho

(I2) Em terceiro lugar no entanto o objetivo do trabalho continua a ser considerado de

um modo redutor e pouco claro (I1) Jaacute Joachim Heinrich Campe (1746-1818) que no

seu artigo de dicionaacuterio escrito em 1807 seguira de modo evidente Adelung

concebera o propoacutesito do trabalho de um modo mais amplo Trabalho [] eacute a aplicaccedilatildeo

esforccedilada de forccedilas fiacutesicas ou mentais para alcanccedilar uma finalidaderdquo497

As atividades que natildeo se destinam a um fim satildeo aqui por conseguinte excluiacutedas

do termo trabalho Algumas deacutecadas mais tarde foram formuladas consideraccedilotildees

494 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p634495 De acordo com M Lexer o termo Arbeit (trabalho) ndash e tambeacutem erbeit em alematildeo meacutedio-altoque traduz aquilo que eacute produzido pelo trabalho isto eacute a obra ndash significa esforccedilo custo arduidademiseacuteria que se sofre involuntaacuteria ou voluntariamente bem como inclusivamente puniccedilatildeo ConsultarLexer M Arbeit Arbeit In Ders Middle High German Dictionary Leipzig 1872 vol1 p88496 Antes do Iluminismo a Reforma contribuiu para uma valorizaccedilatildeo do trabalho quase como caridadepraticada e portanto como forma de culto cristatilde Entre os escritos da Reforma consultar Luther M Anden christlichen Adel deutscher Nation Stuttgart1990 [1520] pp17 44 Sobre os desenvolvimentosmodernos acerca da compreensatildeo do trabalho consultar Vontobel K Das Arbeitsethos des deutschenProtestantismus Das Arbeitsethos des deutschen Protestantismus Von der nachreformatori- schen Zeitbis zur Aufklaumlrung Bern 1946497 Consultar Die Arbeit In Woumlrterbuch der Deutschen Sprache Campe JH (ed) Braunschweig1807 Vol 1 p200

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muito mais precisas sobre o objetivo do trabalho humano A definiccedilatildeo de Karl Marx de

1844 relativa ao ser humano verdadeiro porque real como resultado do seu proacuteprio

trabalho498 constitui provavelmente o ponto culminante do significado antropoloacutegico

de trabalho

No entanto a definiccedilatildeo duacuteplice de Adelung ilustra de modo claro a finalidade

da produccedilatildeo da atividade (agraves vezes custosa) como forma de assegurar o proacuteprio sustento

(Adelung escreve para a aquisiccedilatildeo de propriedade) por um lado e como forma de

criaccedilatildeo de valor a produccedilatildeo de bens por outro lado sublinhando a complementaridade

destes dois aspetos do trabalho Na sua apresentaccedilatildeo da histoacuteria econoacutemica Andrea

Komlosy elucida-nos que estas duas dimensotildees do trabalho a partir do grego πόνοccedil

(poacutenos) para trabalho laborioso e uργον (eacutergon) para trabalho criativo (respetivamente

labor e molestia bem como opus em latim) podem ser encontradas em quase todas as

liacutenguas indo-europeias modernas do Arbeit e Werk em alematildeo ao trabalho e obra em

portuguecircs ateacute robocircta e dzieło em polaco499 Com efeito nos iniacutecios do seacuteculo XIX estes

dois aspetos da definiccedilatildeo de trabalho encontram-se profundamente interligados o

trabalho decorrente da forccedila manual humana e o trabalho enquanto opus

intelectualartiacutestico ndash tambeacutem este segundo aspeto saliente-se se afigura concebido

como algo que integra a proacutepria definiccedilatildeo de trabalho natildeo mais como uma produccedilatildeo

decorrente do oacutecio Hannah Arendt500 na sua obra A Condiccedilatildeo Humana clarificou tal

diferenciaccedilatildeo na sua anaacutelise do conceito moderno de trabalho agrave luz da formulaccedilatildeo dos

conceitos de trabalhar e de produzir salientando no acircmbito da definiccedilatildeo de trabalho a

inscriccedilatildeo do elemento da repeticcedilatildeo o que ainda natildeo ocorre na definiccedilatildeo de Adelung

Em contraste com a produccedilatildeo que termina quando o objeto tem a sua forma adequada e

agora pode ser inserido como uma coisa acabada do mundo das coisas existentes o

trabalho nunca estaacute acabado mas gira em repeticcedilatildeo infinita no ciacuterculo recorrente

prescrito pelo processo bioloacutegico da vida e cujo esforccedilo e praga soacute termina com a morte

498 Marx K Nationaloumlkonomie und Philosophie [1844] In Die Fruumlhschriften Landshut S (ed)Stuttgart 1971 p269499 Consultar Komlosy A Arbeit Eine globalhistorische Perspektive Wien 2014 pp36-40 Komlosyincorpora as liacutenguas modernas alematildeo inglecircs francecircs italiano espanhol portuguecircs russo polaco eseacutervio na sua investigaccedilatildeo sobre o conceito de trabalho desenvolvendo uma anaacutelise do atual sentido dotermo trabalho no domiacutenio das palavras assim perspetivando correspondecircncias ou natildeo conformidadeentre este e a liacutengua chinesa (consultar Komlosy A Arbeit Eine globalhistorische Perspektive Wien2014 pp44-52)500 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981

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do respetivo organismo501

Hoje o conceito afigura-se ainda mais complexo na medida em que o terceiro

domiacutenio da atividade humana discutido em Arendt a accedilatildeo e especialmente a accedilatildeo no

sistema social da poliacutetica apresenta-se tambeacutem avaliado como trabalho segundo a

linguagem comum ou corrente Arendt introduz a accedilatildeo e o falar como as duas formas de

atividades definidoras da identidade de seres humanos502 Na antiguidade agir na polis

constituiacutea uma tarefa dos homens livres sendo estritamente distinguida da esfera do

trabalho Rainer Hank entre outros autores diagnosticou um efeito oposto no final do

seacuteculo XX

O facto de que o compromisso com a poliacutetica ainda atrai pessoas soacute poderia ser bem-

sucedido por meio de um truque A poliacutetica tambeacutem pode ser entendida como uma

profissatildeo A poliacutetica eacute entatildeo trabalho jaacute natildeo brigas indisciplinadas mas responsaacutevel sobre

os assuntos da comunidade como nos tempos de Atenas503

No que respeita ao seacuteculo XX Hank poderia pois retomar a formulaccedilatildeo do

tiacutetulo da palestra de Max Weber sobre a poliacutetica como profissatildeo de 1917504 No iniacutecio

do seacuteculo XIX todavia provavelmente ainda natildeo era este o caso Mas a anaacutelise das

entradas do dicionaacuterio de Adelung mostra-nos que a subordinaccedilatildeo de partes cada vez

maiores da vita ativa agrave categoria de trabalho jaacute se havia configurado como uma situaccedilatildeo

que obtivera uma progressatildeo significativa no final do seacuteculo XVIII O periacuteodo de

meados do seacuteculo XVIII a meados do seacuteculo XIX eacute de extraordinaacuteria relevacircncia para o

desenvolvimento do conceito moderno de trabalho A literatura e as artes do

romantismo contribuem com estiacutemulos especiacuteficos para este processo pois as suas

posiccedilotildees esteacuteticas implicam uma contradiccedilatildeo da justaposiccedilatildeo estabelecida pelo

Iluminismo relativamente a trabalho positivamente valorizado e a ociosidade

negativamente valorizada no entanto poder-se-ia afirmar que os romacircnticos incorrem

na mera sobrevalorizaccedilatildeo do outro da vida ativa (para aleacutem da ociosidade tambeacutem o

sono o oacutecio e a preguiccedila) Num extremo do espectro de tais afirmaccedilotildees estaacute Friedrich

Schlegel por exemplo que em 1799 descrevera o ethos de trabalho burguecircs

501 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p90 502 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 pp164-174503 Hank R Arbeit ndash Die Religion des 20 Jahrhunderts Auf dem Weg in die Gesellschaft derSelbstaumlndigen Frankfurt a M 1995 p10 No que respeita agraves teorizaccedilotildees sobre o conceito de trabalhoprovindas da linguiacutestica anglo-saxoacutenica consultar Sennet R Handwerk Berlin 2008 de Botton AFreuden und Muumlhen der Arbeit Frankfurt a M 2014504 Consultar Weber M Politik als Beruf Berlin 2010 [1919]

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contemporacircneo segundo a personagem Juacutelio caracterizada segundo uma vazia

inquieta agitaccedilatildeo detentora de maus haacutebitos noacuterdicos a quem se opotildee a imagem

iluminada de Prometeu como um Heacutercules cujo objetivo final em todas as suas tarefas

hercuacuteleas sempre permaneceu um nobre oacutecio505 No outro extremo do espectro

localiza-se Georg Buumlchner que como saacutetiro trecircs deacutecadas e meia mais tarde em Leonce

e Lena trata de forma profundamente criacutetica o oacutecio como forma de vida da nobreza506

O desenvolvimento do emprego assalariado dependente no iniacutecio do seacuteculo XIX

caracterizava-se pelo facto de a esfera do trabalho estar cada vez mais separada espacial

e temporalmente da esfera da famiacutelia ter lugar em empresas ter iniacutecio a uma certa hora

da manhatilde e terminar a uma determinada hora da noite Nos tempos da modernidade

tardia deparamo-nos com o desenvolvimento inverso no escritoacuterio domeacutestico moderno

natildeo eacute apenas o espaccedilo de trabalho que dificilmente eacute separado do espaccedilo privado da

famiacutelia e do tempo livre ndash as duas esferas estatildeo tambeacutem profundamente interpenetradas

na modernidade Byung-Chul Han interpreta o contexto descrito como uma mudanccedila de

qualidade na experiecircncia do tempo com um efeito patoloacutegico

A sociedade moderna de desempenho acelerado de hoje tranca o tempo Ela amarra-o ao

trabalho O Burnout natildeo eacute uma doenccedila de trabalho mas uma doenccedila de desempenho Natildeo

eacute o trabalho como tal mas a performance esse novo princiacutepio neoliberal que torna a alma

doente A pausa como uma pausa do trabalho natildeo marca outra hora Eacute apenas uma fase do

tempo de trabalho Hoje natildeo temos outro tempo aleacutem do tempo de trabalho Haacute muito

tempo perdemos o tempo de celebraccedilatildeo e oacutecio [] Hoje natildeo soacute levamos o nosso tempo de

trabalho connosco de feacuterias mas tambeacutem de dormir [] O descanso eacute tambeacutem apenas um

modo de trabalho numa vida incrementada na medida em que serve principalmente para

regenerar a matildeo-de-obra507

No seguimento de tais consideraccedilotildees uma interrogaccedilatildeo impotildee-se como

enquadrar o oacutecio no contexto da modernidade Com efeito a modernidade tem sido

desde haacute muito um campo sui generis508 de investigaccedilatildeo no domiacutenio do conhecimento e

eacute frequentemente entendida como uma macro-epoch que poderia comeccedilar com a

filosofia literatura e induacutestria europeias por volta de 1800 A modernidade revela ser

505 Schlegel F Lucinde Polheim KK (ed) Stuttgart 1963 [1799] pp34 37 Dischner G FriedrichSchlegels Lucinde und Materialien zu einer Theorie des Muumlszligiggangs Hildesheim 1980506 Buumlchner G Dantons Tod In Ders Werke und Briefe Muumlnchen 1980 pp7-68507 Han B-C Alles eilt Wie wir die Zeit erleben In DIE ZEIT Sonderheft bdquoPhilosophieldquo 25 (2016)p42508 Consultar BeckerKiesel (ed)Moderne Begriff und Phaumlnomen Frankfurt aM 2013

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um conceito de diferenccedila O moderno eacute o que estaacute em contraste com o antigo509 A

modernidade define-se menos como uma eacutepoca claramente dataacutevel do que como uma

fissura510 como uma rutura forccedilada na sua diversidade e na sua incapacidade de

desenvolver-se segundo um princiacutepio de completude e agrave luz da elaboraccedilatildeo de um

conceito de sujeito que natildeo pode ser por princiacutepio finalizado ldquoA modernidade eacute a

idade que menos se manteve igual a si mesma observou Walter Benjamin jaacute em

193839511 Juumlrgen Habermas designou-a de um projeto inacabado512

Neste sentido a reavaliaccedilatildeo e a alteraccedilatildeo dos contornos esteacuteticos do oacutecio podem

ser consideradas como consequecircncias ou inclusivamente caracteriacutesticas constitutivas

na modernidade Neste contexto poder-se-ia apontar a relevacircncia do flacircneur concebido

como uma das principais figuras da modernidade urbana por conseguinte poder-se-ia

avaliar o oacutecio como uma categoria antropoloacutegica que assume uma forma histoacuterica

especiacutefica na sociedade moderna do trabalho uma categoria que se apresenta

esteticamente afim de uma compreensatildeo moderna da subjetividade individual agrave luz de

novas figuras como a do flacircneur

Segundo este uacuteltimo ponto de vista o oacutecio poderaacute ser geralmente considerado

como uma experiecircncia de pendor individual Todavia poder-se-ia tambeacutem afirmar que

as respetivas condiccedilotildees sociais desempenham um papel essencial na configuraccedilatildeo das

possibilidades e dos limites do oacutecio As restriccedilotildees de tempo e as expectativas concretas

de desempenho que limitam ou impedem o oacutecio decorrem de um modo preponderante

de estruturas sociais e econoacutemicas nas quais o homem estaacute integrado enquanto ser

social

509 Figal G bdquoKrise der Aufklaumlrung ndash Freiheitsphilosophie und Nihilismus als geschichtlicheVoraussetzungen der Moderneldquo In Vietta SKemper D (ed) Aumlsthetische Moderne in EuropaGrundzuumlge und Problemzusammenhaumlnge seit der Romantik Tuumlbingen 1997 p57Importaria a este respeito ler Sloterdijk ldquoNesta nossa parte do mundo comeccedilou uma rebeliatildeo contra atirania do real uma revolta que eacute apresentada por uma seacuterie de nomes escritos com letras mais ou menosdesgastadas revoluccedilatildeo industrial iluminismo ldquomodernizaccedilatildeordquo Aquele que usa tais expressotildees regrageral natildeo tem em conta que estas apenas fazem sentido enquanto componentes de uma revoluccedilatildeoontoloacutegica Mencionam aspetos da rebeliatildeo daquela eacutepoca contra a caracteriacutestica de carga esmagadoraque a realidade de outros tempos apresentava Quem quer ser moderno trabalha sempre mais raacutepido nosentido de fazer com que uma realidade que existiu ateacute ao presente se torne uma realidade que jaacute natildeoexisterdquo Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 p89510 Consultar Frick W bdquoAvantgarde und longue dureacutee Uumlberlegungen zum Traditionsverbrauch derklassischen Moderneldquo In BeckerKiesel (ed) Literarische Moderne Berlin 2007 pp 97ndash112511 Benjamin W bdquoCharles Baudelaire Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalis- musldquo GesammelteSchriften Tiedemann RSchweppenhaumluser H (ed) vol I2 Frankfurt a M 1974 p593512 Habermas J bdquoDie Moderne ndash ein unvollendetes Projektldquo In Habermas J Kleine philosophischeSchriften (IndashIV) Frankfurt a M 1981 p446

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A referecircncia a um sujeito do oacutecio natildeo significa natildeo obstante que o oacutecio soacute

possa ser vivenciado e experimentado na solidatildeo Pelo contraacuterio o oacutecio deve ser

concebido e com total justeza como um fenoacutemeno eminentemente social Desde a

antiguidade o oacutecio foi considerado repetidamente como uma condiccedilatildeo sine qua non

para a sociabilidade nas suas vaacuterias formas Interessantemente no final do seacuteculo

XVIII o filoacutesofo Christian Garve postulara que o oacutecio era uma conditio sine qua non

para a sociabilidade segundo tal perspetiva a sociabilidade constitui um ideal eacutetico da

vida decorrente entre outros da teoria da simpatia desenvolvida pela filosofia moral

escocesa

A relevacircncia social do oacutecio no entanto natildeo se limita agrave sua importacircncia para as

teorias e praacuteticas da sociabilidade Diversos estudos atribuem ao oacutecio um importante

valor social e poliacutetico que examinam criticamente a natureza da nossa economia e

juntamente com ela os nossos paradigmas econoacutemicos e sociopoliacuteticos Um exemplo

relevante desta atitude eacute a obra de Robert e Edward Skidelsky How Much is Enough

The Love of Money and the Case for the Good Life O ponto de partida central das

reflexotildees dos autores eacute uma palestra apresentada por John Maynard Keynes em 1928 e

publicada dois anos mais tarde de forma ampliada e atualizada no contexto da

devastadora crise econoacutemica mundial e que se intitula Economic Possibilities for our

Grandchildren De acordo com o que Keynes sustenta neste ensaio utoacutepico em cerca de

100 anos (por volta de 2030) o tempo de trabalho semanal seria de 15 horas Deste

modo o crescimento do capital e o progresso teacutecnico permitiriam o amanhecer de uma

nova era a era do oacutecio e da abundacircncia ndash ldquothe age of leisure and of abundancerdquo Com a

satisfaccedilatildeo de todas as necessidades materiais natildeo seria necessaacuterio mais crescimento

econoacutemico Keynes predisse pois que a idade futura do oacutecio seria uma idade da arte de

viver

Assim neste contexto o oacutecio constitui-se como um desafio eacutetico fundamental

Nesta questatildeo mas natildeo no prognoacutestico utoacutepico Robert Skidelsky segue Keynes Com

base na sua anaacutelise criacutetica do presente e no recurso a noccedilotildees eacuteticas de uma vida boa ndash

sustentadas em Aristoacuteteles ndash os autores de How Much is Enough The Love of Money

and the Case for the Good Life elaboram uma perspetiva poacutes-material para o futuro no

acircmbito da qual atribuem um papel importante ao oacutecio Robert e Edward Skidelsky

perspetivam o oacutecio como um ndash basic good ndash incluindo-o num cataacutelogo de demandas

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poliacuteticas com uma reivindicaccedilatildeo universal Os autores declaram que o oacutecio consiste

num valor baacutesico democraacutetico indispensaacutevel para uma sociedade que deve tratar os seus

proacuteprios recursos bem como os recursos do planeta com cuidado e justiccedila social

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Capiacutetulo 2

Espaccedilos e tempos do oacutecio

Uma leitura cultural

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21 | Do oacutecio como categoria espacial e temporal

La forme dune ville change plus vite heacutelas que le coeur dun mortel

Charles Baudelaire Le cygne

Vous pouvez eacutevidemment alleacuteguer que Sisyphe est paresseuxMais quoi ce sont les paresseux qui remuent le monde Les autres nrsquoont pas le temps

Albert Camus Carta a Francis Ponge de 27 de janeiro de 1943

Natildeo tenho pressa Pressa de queNatildeo tem pressa o sol e a lua estatildeo certosTer pressa eacute crer que a gente passa adiante das pernasOu que dando um pulo salta por cima da sombraNatildeo natildeo sei ter pressaSe estendo o braccedilo chega exactamente aonde o meu braccedilo chega ndash Nem um centiacutemetro mais longe

Alberto Caeiro Poemas inconjunctos

O oacutecio possui uma dimensatildeo espacial tal como toda a experiecircncia fiacutesica e

corporal o oacutecio desenvolve-se em espaccedilos especialmente concebidos diferindo estes

de forma frequente de outros espaccedilos tais como os espaccedilos de trabalho Academias

bibliotecas museus hoteacuteis casas de campo casas de chaacute banhos jardins ou parques

sanatoacuterios mosteiros (ou outros retreats) destacam-se amiuacutede da arquitetura normal da

vida e do trabalho destinando-se a um tipo de vida diferente apresentando-se distintos

dos edifiacutecios em que habitualmente se permanece Estes espaccedilos satildeo diferentes pois satildeo

lugares de ldquooacutecio-permitidordquo porventura de ldquooacutecio-promovidordquo Certamente o oacutecio natildeo eacute

apenas possiacutevel em lugares como aqueles aqui mencionados se natildeo todos os lugares

muitos lugares podem tornar-se e constituir-se como lugares de oacutecio

Mas quais satildeo as caracteriacutesticas dos lugares ou espaccedilos de oacutecio tais como

aqueles acima mencionados O que eacute que um mosteiro tem em comum com um hotel de

spa o que eacute que uma biblioteca tem em comum com um banho termal ou uma casa no

campo A primeira coisa comum e que subjaz aos lugares e espaccedilos de oacutecio consiste

num limite determinado mais ou menos demarcaacutevel Visitamo-los especificamente e a

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experiecircncia que se desenvolve no seu interior eacute de uma outra categoria que escapa agrave

normalidade da vida que lhe eacute exterior digamo-lo assim O limiar que se atravessa ao

entrar neles eacute o limiar entre o ruiacutedo e o silecircncio entre a azaacutefama e a tranquilidade Os

meios de comunicaccedilatildeo que transcendem o espaccedilo normalmente natildeo tecircm lugar em

espaccedilos de oacutecio embora o oacutecio possa ter uma dimensatildeo social e comunicativa Eis a sua

caracteriacutestica comum por muito diferentes que tais espaccedilos se afigurem entre si ndash mas o

oacutecio natildeo eacute o mesmo que tempo livre Tais lugares de oacutecio promovem a emergecircncia de

um tipo muito especial de atenccedilatildeo ndash uma atenccedilatildeo que natildeo tem de ser ganha e preservada

especificamente mas que surge por sua proacutepria iniciativa Sente-se aqui a vontade de

uma forma especial No oacutecio estamos envolvidos com possibilidades desfrutamos

delas Tal situaccedilatildeo alarga o campo de visatildeo do nosso olhar ndash natildeo se trata propriamente

da visatildeo concentrada na contemplaccedilatildeo de um quadro de um museu mas distintamente

da possibilidade de o nosso olhar extravasar o direcionamento o foco especiacutefico da

nossa visatildeo

O oacutecio ao que parece requer uma des-centraccedilatildeo especial um olhar natildeo fixo a

vontade de ser surpreendido Nesta prontidatildeo a liberdade desempenha um papel

especial mas um tipo especial de liberdade A liberdade eacute numa aceccedilatildeo corrente

concebida como a possibilidade de levar a cabo algo que se tenha decidido fazer sem

obstaacuteculos assim como num outro sentido a possibilidade de controlar o que acontece

em cada fase do ato para que nada possa simplesmente acontecer sem que seja previsto

ou pretendido Esta possibilidade de controlo eacute uma caracteriacutestica essencial do que se

chama vontade o controlo quanto a fazer algo segundo uma intenccedilatildeo preacute-estabelecida ndash

uma previsatildeo acerca de como algo deve acontecer antes de estar laacute tomando existecircncia

de acordo com aquilo que a imaginaccedilatildeo formulara previamente Em contraste a

liberdade de ser surpreendido natildeo eacute a liberdade de vontade mas a liberdade da vontade

Espaccedilos des-focados como um museu ou uma biblioteca que desperta o desejo

de ler encorajam ou permitem o oacutecio Estes espaccedilos promovem uma realizaccedilatildeo

particular que natildeo se traduz por sua vez numa realidade contiacutenua abrindo por

contraste um horizonte de possibilidades Do possiacutevel da fulguraccedilatildeo da possibilidade

resulta uma tranquilidade especial que estaacute intimamente ligada ao oacutecio Trata-se de uma

atividade pode ser formativa ou realizadora se realizada no oacutecio tal atividade

desenvolve-se sem forccedilar uma soluccedilatildeo No oacutecio deixa-se sempre acontecer o que se

estaacute ocupado com As soluccedilotildees podem permanecer abertas podem estar no contexto de

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outras possibilidades e tambeacutem do imprevisto ndash ou por outras palavras o natildeo previsiacutevel

desde o iniacutecio Desta forma a obra em que um artista trabalhou em oacutecio pode

surpreender o proacuteprio artista pois no oacutecio nada tem de ser decidido sob determinada

pressatildeo e uma tarefa poderaacute ser levada a cabo na plenitude das suas possibilidades Um

exemplo de tal situaccedilatildeo poderia ser a ocupaccedilatildeo de uma obra de arte que estaacute sempre

presente enquanto ela proacutepria na justaposiccedilatildeo das possibilidades da sua aparecircncia e tais

possibilidades sob vaacuterios pontos de vista da sua acessibilidade poderatildeo ser exploradas

Ainda que apenas possamos perceber ou entrever uma das suas acessibilidades as

outras encontram-se tambeacutem elas presentes

A espacialidade da vida eacute tanto mais esquecida quanto mais a accedilatildeo eacute orientada

para objetivos e assim empurrada para a estreiteza do canal do tempo Concebido agrave luz

da direccedilatildeo do objetivo tudo estaacute sujeito agrave compulsatildeo da sucessatildeo Tal natildeo eacute passiacutevel de

ser alterado ou resolvido com a mera mudanccedila do fazer para o natildeo fazer O natildeo fazer

poderaacute traduzir-se numa anoacutedina pausa tambeacutem ela subordinada ao fazer Eacute certo que a

pausa poderaacute ter o sentido de uma reflexatildeo faz-se uma pausa olha-se em redor e

pensa-se em como continuar No entanto a compulsatildeo da sucessatildeo permanece vigente

continuando a tratar-se de uma questatildeo de antes e depois de ainda natildeo e jaacute natildeo eacute Para

que isto se altere efetivamente a atitude deve mudar promovendo o afastamento de

uma orientaccedilatildeo para um objetivo de uma accedilatildeo para as possibilidades de experimentar

existecircncia de um forma des-centrada no espaccedilo Soacute desta forma a perceccedilatildeo e o

pensamento se tornaratildeo livres podendo envolver-se com o que existe Deste modo o

fazer natildeo para mas adquire um significado diferente No oacutecio estamos perante a

potencialidade de esquecimento da pausa enquanto momento permitido de suspensatildeo do

trabalho ndash trata-se justamente do esquecimento de que nos encontramos num momento

que nos eacute autorizada a interrupccedilatildeo do trabalho No oacutecio entrevemos as simples

possibilidades de existecircncia vecirc-se e aceita-se

A permanecircncia numa praccedila urbana o flanar a contemplaccedilatildeo do jogo de luzes e

nuvens na praia inclusivamente o passeio na natureza revelam um caraacutecter ocioso O

oacutecio natildeo exclui movimento mas tudo o que eacute observado por mais que possa alterar-se

nos seus pormenores deve pertencer a um todo calmo Observar ociosamente uma praccedila

urbana permite-nos dirigir o olhar para o quadro geral alargando o nosso campo de

visatildeo para laacute do movimento do ir e vir ndash eacute-nos aberta a possibilidade de contemplar tudo

no espaccedilo no jogo da distacircncia e da proximidade na pertenccedila conjunta do que eacute

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exterior ao outro no espaccedilo livre do grande horizonte no qual algo se pode mostrar

Este espaccedilo livre permite que tudo o que estaacute nele ou entra nele seja simultacircneo O que

muda com o tempo soacute pode confirmar esta simultaneidade e pertence aos

acontecimentos nesta praccedila nesta praia A observaccedilatildeo natildeo tem de ser limitada a uma

posiccedilatildeo e a um ponto de vista O perambular e a mudanccedila de perspetiva a ele associada

desbloqueia a totalidade espacial a ser observada Uma praccedila urbana pode ser vista a

partir de um determinado local numa perspetiva constante tal como um palco ou um

ecratilde de cinema Mas eacute apenas o perambular que iraacute revelar os seus vaacuterios aspetos Aqui

mostra-se como o observado tambeacutem pode incluir o observador Assim a praccedila pode

transformar-se num espaccedilo onde haacute calma uma calma que vem da simultaneidade do

que eacute visto e experimentado pelo observador Flanar passear ociosamente por aiacute

envolver-se com esta calma demorar-se nela Demorar eacute uma existecircncia temporal mas

que eacute retirada do seu caraacutecter temporal Eacute a pausa no tempo como uma presenccedila

ilimitada Este estado natildeo pode permanecer de modo duradouro eacute sabido mas tal natildeo

tem qualquer importacircncia enquanto nele nos demoramos Neste estado natildeo haacute um fim

e portanto tambeacutem natildeo haacute um depois Trata-se de estar temporalmente no espaccedilo

Tendo presente o amplo espectro filosoacutefico dedicado agrave avaliaccedilatildeo e agrave criacutetica da

mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo ndash novos conceitos filosoacuteficos aqui emergentes ndash no

contexto da modernidade tardia poder-se-ia com certa razoabilidade admitir que

perante tal situaccedilatildeo justificar-se-ia a existecircncia de uma certa necessidade crescente de

experiecircncias de fruiccedilatildeo do oacutecio tomadas como situaccedilotildees contrapostas ao estado de

coisas existente O oacutecio ele mesmo poderia neste sentido ser perspetivado como um

contra-conceito relativamente agraves matrizes de condiccedilotildees especiacuteficas da experiecircncia

espacial e temporal

O oacutecio poderia ser definido agrave partida como um fenoacutemeno passiacutevel de

contiacutenua alteraccedilatildeo segundo as condiccedilotildees culturais e sociais a que se encontra

intimamente relacionado ndash especialmente no que concerne ao conceito dominante de

trabalho Tendo em vista uma definiccedilatildeo mais fina vaacuterias diferenciaccedilotildees foram

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elaboradas de modo a conceptualizar o oacutecio513 Primeiramente uma importante distinccedilatildeo

deve ser estabelecida entre o oacutecio e o tempo livre Natildeo se trata de conceitos idecircnticos ndash

e tal diferenciaccedilatildeo deveraacute merecer especial atenccedilatildeo Com efeito na sociedade industrial

ocidental moderna as formas da realizaccedilatildeo do tempo livre emergiram natildeo raro como o

reverso do trabalho remunerado delineando-se e configurando-se o tempo dedicado ao

oacutecio como uma situaccedilatildeo ou uma realidade dependentes conquanto contrapostas do

trabalho (concretamente por exemplo na funccedilatildeo de reproduzir ou recuperar a forccedila de

trabalho ou comprar e consumir os bens produzidos) Todavia importaria elucidar que o

conceito de oacutecio remonta a raiacutezes mais antigas A origem do conceito de oacutecio pode ser

encontrada entre outras na antiga conexatildeo entre teoria e scholeacute sobre a qual

Aristoacuteteles se dedica na Eacutetica a Nicoacutemaco E na Poliacutetica o filoacutesofo distingue o oacutecio

enquanto atividade com um propoacutesito autossuficiente natildeo exclusivamente destinada agrave

recuperaccedilatildeo das forccedilas destinadas ao trabalho514 Portanto o oacutecio natildeo se configura como

mera inatividade mas sim atividade livre (praxis) que por sua vez se distingue das

atividades de manufatura que possuem o seu propoacutesito fora de si (poiesis)515 tal como

nos eacute dito na Eacutetica a Nicoacutemaco Paradigmaacutetico de uma accedilatildeo que serve a si proacutepria

poreacutem natildeo eacute a vida poliacutetica (praxis) mas a contemplaccedilatildeo (teoria) agrave qual a antiguidade

tardia e a Idade Meacutedia se referem repetidamente como fonte de felicidade

Com a institucionalizaccedilatildeo do trabalho na modernidade o quadro de referecircncia

mudou de tal modo que o designado tempo livre passou a corresponder no contexto do

seacuteculo XX ao contra-conceito de trabalho ndash e correlativamente o conceito de oacutecio

noccedilatildeo considerada como eticamente eminente no acircmbito da Antiguidade tornou-se

progressivamente a expressatildeo conceptual de uma situaccedilatildeo ou de uma realidade

moralmente reprovaacuteveis sofrendo os desenvolvimentos de uma conotaccedilatildeo

profundamente negativa em termos eacuteticos como ociosidade516 Prosaicamente o

lamento sobre a dissoluccedilatildeo ou a reduccedilatildeo da vida inteira ao trabalho se entrecortado com

a breve alegria que decorre da perspetiva do descanso ou da pausa parece tornar

possiacutevel a antiga promessa da felicidade no oacutecio novamente entrevista No entanto a

aceleraccedilatildeo e o incremento da vida quotidiana constituem elementos considerados como

passiacuteveis de neutralizar dificultar ou porventura aniquilar as possibilidades de

513 Gimmel JKeiling T Konzepte der Muszlige Tuumlbingen 2016514 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a1515 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1094a 1ndash25516 Henning C Gluumlck in Arbeit und Muszlige Stuttgart 2011 pp34-37

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realizaccedilatildeo do oacutecio ndash motivo pelo qual assistimos hoje a uma crescente demanda pelas

possibilidades de criaccedilatildeo de espaccedilos livres nas nossas sociedades de modo a que a

experiecircncia especiacutefica do oacutecio possa ocorrer enquanto experiecircncia de fruiccedilatildeo

Curiosamente o termo espaccedilo livre refere-se a um momento espacial de oacutecio que se

combina com efeito com a determinaccedilatildeo temporal do mesmo ndash e ambas as dimensotildees

espacial e temporal parecem estar ameaccediladas por desenvolvimentos sociais que podem

ser associados agrave modernidade Como seraacute apresentado seguidamente recorrendo agrave

anaacutelise de Georg Simmel relativa agrave sociedade moderna as experiecircncias do espaccedilo e do

tempo satildeo historicamente variaacuteveis e as mudanccedilas ocorridas nestas experiecircncias

afetam tambeacutem as condiccedilotildees baacutesicas do oacutecio

O iniacutecio da tendecircncia de aceleraccedilatildeo ndash que torna mais difiacutecil o acesso a

experiecircncias de oacutecio hoje tal como procuraremos sustentar ao longo desta tese de

doutoramento ndash eacute muitas vezes localizada nos tempos modernos no acircmbito do qual se

acrescentam com os seus efeitos e consequecircncias as mudanccedilas na experiecircncia do

espaccedilo e do tempo De facto uma das caracteriacutesticas genuiacutenas do modo de vida

moderno eacute a experiecircncia alterada do tempo tal como ilustra a notaacutevel definiccedilatildeo de

Baudelaire acerca do moderno como experiecircncia do transitoacuterio e do fugidio517 O gosto

pela velocidade por um lado e o lamento sobre o ritmo acelerado da vida por outro

constituem um certo modo de mundiviecircncia coletiva que conduziu alcanccedilando o seu

acme ao triunfo de novos meios de transporte e teacutecnicas de comunicaccedilatildeo no iniacutecio do

seacuteculo XX518 A sensaccedilatildeo de que a sociedade estaria a sofrer alteraccedilotildees a um ritmo

demasiado ceacutelere jaacute havia sido formulada no iniacutecio da modernidade519 configurando-se

como uma experiecircncia dominante agrave luz da crescente industrializaccedilatildeo do iniacutecio do seacuteculo

XIX Tal experiecircncia da modernidade como um tempo acelerado ndash desde o seacuteculo XIX

ndash eacute acompanhada pela tese de um crescente afastamento do espaccedilo que deveria

culminar no desaparecimento do espaccedilo520 A experiecircncia da maior celeridade de

circulaccedilatildeo entre longas distacircncias primeiramente tornada possiacutevel com o caminho-de-

ferro reduz o significado global do espaccedilo ndash como que evocando a sentenccedila de que ldquoo

517 ldquoLa moderniteacute crsquoest le transitoire le fugitif le contingent la moitieacute de lrsquoart dont lrsquoautre moitieacute estlrsquoeacuteternel et lrsquoimmuable ldquo Baudelaire C Curiositeacutes estheacutetiques Paris 1971 p467518 Sobre os efeitos do traacutefego acelerado consultar Schivelbusch W Geschichte der EisenbahnreiseZur Industrialisierung von Zeit und Raum im 19 Jahrhundert Muumlnchen 1977519 Koselleck R bdquoGibt es eine Beschleunigung in der Geschichteldquo In Koselleck R ZeitschichtenStudien zur Historik Frankfurt a M 2000 p153520 Schroer M bdquoBringing space back in Zur Relevanz des Raums als soziologischer Kategorieldquo InDoumlring JThielmann T (ed) Das Raumparadigma Zur Standortbestimmung des Spatial turnBielefeld 2008 pp 125ndash148

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espaccedilo eacute morto escrita por Heinrich Heine521 tendo em vista os novos meios de

transporte O designado desaparecimento do espaccedilo eacute pois uma noccedilatildeo que estaacute hoje

novamente presente especialmente com o desenvolvimento da Internet e da economia

globalizada (global village)522 A este respeito David Harvey perspetivando a

experiecircncia da mobilidade num mundo globalmente conectado cunhou o termo

compressatildeo espaccedilo-tempordquo referindo-se agrave aceleraccedilatildeo da velocidade de viagem523 Paul

Virilio constata o desaparecimento do espaccedilo524 e Hartmut Rosa considera a

emancipaccedilatildeo do tempo do espaccedilo como o nascimento da modernidade525 Note-se

no entanto que paralelamente ao lamento sobre o desaparecimento do espaccedilo na

filosofia e nas ciecircncias sociais emerge ainda que de um modo aparentemente

paradoxal o regresso do espaccedilo ou de um discurso sobre o espaccedilo que em

retrospetiva coincide com o iniacutecio de uma eacutepoca habitualmente designada por

modernidade tardia ou poacutes-modernismo Com efeito natildeo soacute Foucault proclamou a era

do espaccedilo jaacute no final dos anos 60 como tambeacutem Fredric Jameson se debruccedilou sobre o

facto de que a nossa vida quotidiana as nossas experiecircncias psiacutequicas e as linguagens

da nossa cultura atual ndash em contraste com a eacutepoca precedente da Alta Modernidade ndash

se apresentam determinadas mais pelas categorias do espaccedilo do que pelas do tempo526

Tais constataccedilotildees contraditoacuterias ndash por um lado o estiolamento por outro lado o retorno

do espaccedilo ndash sugerem uma definiccedilatildeo pouco clara do termo espaccedilo como Markus Schroer

avisadamente observa527 chamando a atenccedilatildeo para a equivocidade da noccedilatildeo de espaccedilo

que se encontra envolvida em determinadas discussotildees e discursos Importa portanto

examinar se se pode falar de um desaparecimento do espaccedilo ou se a situaccedilatildeo a avaliar se

configura eventualmente como uma transformaccedilatildeo da experiecircncia do espaccedilo que se

confunde com uma tendecircncia de aceleraccedilatildeo temporal Se todavia eacute caracteriacutestico do

oacutecio que as experiecircncias do espaccedilo e do tempo mudem conforme o estado do proacuteprio

521 Heine H Lutezia Historisch-kritische Gesamtausgabe der Werke (Duumlsseldorfer Ausgabe)Windfuhr M (ed) Bd 141 Hamburg 1990 p58522 Consultar Berger P bdquoAnwesenheit und Abwesenheit Raumbezuumlge sozialen Handelnsldquo InBerliner Journal fuumlr Soziologie 1 (1995) pp99ndash111523 H Harvey D The Condition of Postmodernity An Enquiry into the Origins of Cultural ChangeMalden MAOxford 1990 pp 201ndash323524 Virilio P bdquoDas dritte Intervall Ein kritischer Uumlbergangldquo In Decker EWeibel P (ed) VomVerschwinden der Ferne Telekommunikation und Kunst Koumlln 1990 pp 335ndash346525 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p61526 Jameson F bdquoPostmoderne Zur Logik der Kultur im Spaumltkapitalismusldquo In Huyssen AScherpeKR (ed) Postmoderne Zeichen eines kulturellen Wandels Hamburg 1986 p60527Schroer M bdquoBringing space back in Zur Relevanz des Raums als soziologischer Kategorieldquo InDoumlring JThielmann T (ed) Das Raumparadigma Zur Standortbestimmung des Spatial turnBielefeld 2008 p132

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oacutecio528 se o oacutecio como fenoacutemeno pode ser caracterizado pela sua especificidade de

espaccedilo-temporalidade entatildeo tornar-se-aacute razoaacutevel ponderar as possibilidades de as

mudanccedilas histoacutericas ocorridas na experiecircncia do espaccedilo e do tempo tambeacutem

apresentarem os seus efeitos nas possibilidades de experimentar o oacutecio Neste sentido

tornar-se-ia pertinente voltar aos claacutessicos das teorias da modernidade ndash como Hartmut

Rosa sugere529 ndash e aiacute encontrar reflexotildees sobre uma experiecircncia de espaccedilo e tempo que

se alterou significativamente As posiccedilotildees de Georg Simmel satildeo merecedoras de estudo

para aleacutem das relevantes abordagens desenvolvidas para uma filosofia social do espaccedilo

importaria sublinhar como notaacutevel o diagnoacutestico da sociedade delineado por Simmel

especialmente na atenccedilatildeo dedicada agrave experiecircncia quotidiana do homem moderno agrave luz

de uma singular perspetivaccedilatildeo de que a modernidade como um todo se apresenta

caracterizada segundo um tipo especial de experiecircncia530 ndash e neste ponto a abordagem

de Simmel natildeo se encontra muito distante do diagnoacutestico de Hartmut Rosa acerca do

tempo como procuraremos sustentar oportunamente nesta tese de doutoramento

Em Filosofia do Dinheiro obra publicada em 1900 comummente interpretada

como uma teoria da cultura moderna Simmel trata natildeo somente do princiacutepio e da

funccedilatildeo da economia monetaacuteria mas tambeacutem dos efeitos da cultura moderna moldada

pela economia monetaacuteria na atitude do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida A este respeito os

conceitos espaccedilo-temporais desempenham um papel central no acircmbito da atitude do

indiviacuteduo relativamente agrave vida pois Simmel perspetiva o estilo de vida moderno como

caracterizado pela distacircncia pela velocidade e pelo ritmo No uacuteltimo capiacutetulo da

Filosofia do Dinheiro que trata especificamente do estilo de vida Simmel fornece um

diagnoacutestico do tempo da cultura moderna um diagnoacutestico delineado agrave luz do conceito

de dinheiro concebido como forccedila motriz e como siacutembolo Eacute com efeito notaacutevel o

modo como na descriccedilatildeo da atitude moderna em relaccedilatildeo agrave vida Simmel se refere

repetidamente a caracterizaccedilotildees espaciais e temporais Neste sentido o estilo de vida

moderna desdobra-se em trecircs aspetos que Simmel define em termos de tempo e espaccedilo

distacircncia ritmo e tempo

528 Figal GHubert HW Klinkert T bdquoEinleitungldquo In Figal GHubert HW Klinkert T (ed)Die Raumzeitlichkeit der Muszlige Tuumlbingen 2016 p1529 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 pp89ndash105530 A teoria da modernidade de Simmel natildeo assume a forma de uma anaacutelise histoacuterica mas representaum relatoacuterio sobre as experiecircncias da realidade social na modernidade Frisby D Fragmente derModerne Georg Simmel - Siegfried Kracauer - Walter Benjamin Rheda-Wiedenbruumlck 1989 p68

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Atentemos primeiramente sobre as ldquoexpressotildees espaciaisrdquo usadas por Simmel

Distacircncia eacute um termo de significativa importacircncia para a perspetivaccedilatildeo de Simmel

acerca dos processos culturais como um todo Para a formaccedilatildeo do valor econoacutemico e

esteacutetico por exemplo o distanciamento dos objetos constitui um preacute-requisito pois uma

certa distacircncia deve ser assumida para que se possa relacionar com algo de uma forma

desejaacutevel531 Aleacutem de uma dialeacutetica geral de proximidade e de distacircncia que por

princiacutepio desempenha um papel relevante na formaccedilatildeo do valor no processo cultural

Simmel constata igualmente uma mudanccedila histoacuterica na distacircncia entre sujeito e objeto

que o filoacutesofo atribui ao efeito do dinheiro assim caracterizada

A distacircncia que afastou o subjetivo e o objetivo da sua unidade original tornou-se por

assim dizer corporal no dinheiro - enquanto que por outro lado seu significado eacute fiel agrave

correlaccedilatildeo de distacircncia e proximidade discutida acima aproximar de noacutes o que de outra

forma seria inatingiacutevel532

A consideraccedilatildeo de determinados paradoxos ou contradiccedilotildees compotildee de um

modo incisivo as posiccedilotildees de Simmel Assim se por um lado agrave medida que a

economia monetaacuteria cresce aumenta tambeacutem a distacircncia entre os sujeitos e os objetos

por outro lado a economia monetaacuteria facilita o comeacutercio e disponibiliza oferecendo

muito mais objetos ao sujeito do que antes ndash o que anteriormente pareceria inalcanccedilaacutevel

eacute agora acessiacutevel atraveacutes da economia monetaacuteria cada vez mais global Tiacutepico da

sociedade moderna eacute por conseguinte a situaccedilatildeo paradoxal em que o indiviacuteduo tem agrave

sua disposiccedilatildeo cada vez mais produtos que lhe satildeo cada vez mais facilmente acessiacuteveis

natildeo conseguindo poreacutem estabelecer uma verdadeira relaccedilatildeo com os objetos

individuais pois tudo concebe e perspetiva atraveacutes das lentes do dinheiro

A racionalizaccedilatildeo e a quantificaccedilatildeo modernas do espaccedilo constituem igualmente

um foco de atenccedilatildeo de Simmel O filoacutesofo refere-se por diversas vezes em Filosofia do

Dinheiro ao traacutefego associando o uso do espaccedilo que eacute cultivado na construccedilatildeo de

estradas modernas a uma tendecircncia que se orienta natildeo somente no sentido de um

domiacutenio do espaccedilo mas inclusivamente na direccedilatildeo de uma necessidade de economizar

tempo

531 bdquoDistacircncia e aproximaccedilatildeo satildeo tambeacutem na praacutetica termos de mudanccedila cada um pressupondo ooutro e ambos formando os lados da relaccedilatildeo com as coisas que noacutes subjetivamente chamamos onosso desejo objetivamente o seu valorrdquo Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p49532 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p136

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O alongamento de estradas tortuosas a criaccedilatildeo de novos caminhos diagonais todo o

sistema moderno de simetria e sistemaacutetica retangular eacute de facto uma economia direta de

espaccedilo mas para o tracircnsito eacute sobretudo uma economia de tempo como exige o

racionalismo da vida533

A economia de tempo surge neste acircmbito como um imperativo para o qual a

construccedilatildeo da convivecircncia humana deve ser orientada Tal conduz-nos aos aspetos do

estilo de vida moderno que natildeo satildeo descritos por uma analogia espacial como

distacircncia mas por uma analogia temporal534 nomeadamente ritmo e tempo

Em vez de um movimento ondulatoacuterio regular que determina os processos

naturais tais como o curso das estaccedilotildees do ano e as estaccedilotildees de acasalamento nos

animais existe jaacute nas primeiras culturas humanas uma uniformidade do curso do tempo

que natildeo se encontra nos animais e que eacute intensificada no mundo moderno A dissoluccedilatildeo

da sequecircncia natural de tensatildeo e relaxamento eacute tambeacutem evidente no fluxo de trabalho agrave

medida que o desenvolvimento cultural progride As maacutequinas com os seus processos

fixos impotildeem o seu ritmo ao trabalhador moderno natildeo seguindo as necessidades

fisioloacutegicas deste A vida cultural moderna sob a influecircncia da economia monetaacuteria eacute

finalmente

dominada por uma uniformidade contiacutenua uma vez que se pode comprar tudo por dinheiro

a qualquer momento e portanto as emoccedilotildees e irritaccedilotildees do indiviacuteduo jaacute natildeo precisam de

aderir a um ritmo que a partir da possibilidade da sua satisfaccedilatildeo o sujeitaria a uma

periodicidade transindividual535

No entanto no que concerne ao ritmo Simmel considera igualmente um

desenvolvimento contraacuterio que provoca a um distanciamento de toda a uniformidade e

que o filoacutesofo associa ao individualismo moderno Neste contexto o dinheiro atua como

catalisador destes desenvolvimentos Por um lado e de acordo com Simmel o dinheiro

proacuteprio eacute o mais radical porque por si soacute eacute o meio completamente indiferente para

uma transformaccedilatildeo de um ritmo de condiccedilotildees de vida forccedilado supra-individual que nos

obriga a um equiliacutebrio e desnivelamento do si mesmo536 O dinheiro eacute indiferente agrave

533 Simmel G Soziologie Untersuchungen uumlber die Formen der Vergesellschaftung Gesamtausgabevol11 von Otthein Rammstedt O (ed) Frankfurt a M 2006 p712534 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p676535 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p680536 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p691

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pessoa e natildeo estaacute sujeito a qualquer ciclo natural portanto tende a ter um efeito

equalizador e nivelador quando domina as relaccedilotildees intersubjetivas Por outro lado o

dinheiro liberta o indiviacuteduo de laccedilos pessoais e objetuais facilitando-lhe assim o

desenvolvimento da sua personalidade e a definiccedilatildeo dos seus proacuteprios objetivos

interesses que se podem revelar numa forma mais livre no seu proacuteprio ritmo de vida O

dinheiro eacute natildeo soacute responsaacutevel pela distacircncia e pelo ritmo mas tambeacutem afeta o ritmo de

vida que Simmel descreve da seguinte forma O que percebemos como ritmo de vida eacute

o produto da soma e da profundidade de suas mudanccedilasrdquo537 Correlativamente o

impacto psicoloacutegico das significativas mudanccedilas sociais provocadas pelo triunfo da

economia monetaacuteria constitui um relevante aspeto a que Simmel concede atenccedilatildeo

Avaliando a situaccedilatildeo de aumento da moeda disponiacutevel e o seu efeito de aceleraccedilatildeo dos

processos econoacutemicos Simmel enfatiza as consequecircncias psicoloacutegicas de um aumento

da quantidade de dinheiro

Enquanto a nova adaptaccedilatildeo natildeo for concluiacuteda o aumento constante do dinheiro daraacute

origem a contiacutenuos sentimentos de diferenccedila e choques psiacutequicos [hellip] e assim ao

acelerar do ritmo da vida Aumentos na produtividade de um paiacutes e aumentos salariais

associados levam ao aumento da mobilidade social que tambeacutem eacute percebida como um

aumento no ritmo de vida538

Enquanto a ldquonecessidade exagerada de atenccedilatildeo e de prestiacutegiordquo (Blasiertheit)

atuava como contrapartida psicoloacutegica do distanciamento moderno a alteraccedilatildeo do ritmo

de vida a niacutevel psicoloacutegico provoca um aumento da vida nervosa resultante da

alternacircncia raacutepida e ininterrupta das impressotildees externas e internas539 Nas raacutepidas

537 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p696538 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989539 Para Simmel modernidade significa uma transformaccedilatildeo da estrutura da personalidade dos indiviacuteduosque reagem agraves imposiccedilotildees da aceleraccedilatildeo e do incremento da modernidade com uma modificaccedilatildeo da suagestatildeo dos sentimentos da sua estrutura emocional da sua vida nervosa e da relaccedilatildeo entre emoccedilotildees eintelecto Esta eacute a base para a definiccedilatildeo de Simmel sobre a essecircncia da modernidade tal como exposta noseu ensaio sobre a arte de Rodin no qual escreve ldquoEacute que a essecircncia da modernidade se eacute que haacute algumaeacute psicologismo a experimentaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo de acordo com as reaccedilotildees do nosso interior ede facto de um mundo interior a dissoluccedilatildeo de conteuacutedos soacutelidos no elemento liacutequido da alma da qualtoda a substacircncia eacute libertada e cujas formas satildeo apenas formas de movimentos (Simmel G Philosophiedes Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p714) Daiacuteque Simmel entenda o processo de modernizaccedilatildeo como uma mudanccedila no equiliacutebrio entre os princiacutepiosuniversais de movimento e ineacutercia em favor do primeiro e portanto como a dissoluccedilatildeo de ritmos fixos afavor de uma permanecircncia da mudanccedila (Simmel G Die Bedeutung des Geldes fuumlr das Tempo desLebensrdquo Frankfurt am Main 1897 p230 e Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p711) Por seu turno os indiviacuteduos reagem a talmudanccedila com indiferenccedila para com os conteuacutedos do mundo segundo uma certa mudanccedila dialeacuteticaverificada em permanente sobre-estimulaccedilatildeo com a obsessatildeo de experiecircncias sempre novas e cada vez

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mudanccedilas da moda Simmel perspetiva uma marca de Modernidade classificada pelo

filoacutesofo como uma era nervosa

A mudanccedila de moda indica o grau em que os estiacutemulos nervosos podem ser atenuados

quanto mais nervosa for a idade mais raacutepida seraacute a mudanccedila de moda pois a necessidade

de estiacutemulos diferenciais um dos portadores essenciais de toda a moda eacute ligado ao

afrouxamento das energias nervosas540

Simmel menciona o ritmo especificamente impaciente da vida moderna541

que conduz a uma ecircnfase no presente A desintegraccedilatildeo das tradiccedilotildees cada vez mais

rapidamente tornadas obsoletas favoreceria segundo o filoacutesofo os elementos

volaacuteteisfugazes e mutaacuteveis da vida542 A tensatildeo nervosa descrita por Simmel ndash como

que evocando o quadro cliacutenico da neurastenia tornado ceacutelebre no tempo de vida do

proacuteprio filoacutesofo ndash assume o seu espaccedilo ou lugar de desenvolvimento na metroacutepole

moderna Devido agrave raacutepida mudanccedila de sensaccedilotildees e impressotildees a vida na grande cidade

difere da vida no campo e na pequena cidade pois segundo Simmel no campo e na

mais extremas e estiacutemulos provocativos em suma com todos os sintomas de neurastenia A ausecircnciado definitivo no interior da nossa alma conduziu-nos agrave procura da satisfaccedilatildeo momentacircnea em estiacutemulosextremos sempre novos bem como em sensaccedilotildees e atividades externas Assim tal ausecircncia enredou-nospor sua vez na confusatildeo na falta de estabilidade e de sossego que rapidamente se manifestam notumulto da grande cidade na perseguiccedilatildeo feroz da concorrecircncia na infidelidade especificamente modernanos domiacutenios do gosto dos estilos das atitudes dos relacionamentos (Ibid p714) O filoacutesofo francecircsTristan Garcia escreve a este respeito bdquoLa socieacuteteacute moderne ne promet plus aux individus une autre vie lagloire de lacuteau-delaacute mais seulement ce que nous sommes deacutejagrave ndash plus et mieux hellip Eh bien ce qui nous estoffert de meilleur cacuteest une augmentation de nos corps une intensification de nos plaisirs de nos amoursde nos eacutemotionshelliprdquo (Garcia T La vie intense Une obsession moderne Paris 2016 p11) Namodernidade tardia isto eacute onde ldquonormalmente nenhuma transcendecircncia acena para a maioria doshomensrdquo natildeo haacute senatildeo a vida breve seria consequentemente necessaacuterio tentar intensificaacute-lacontinuamente por exemplo invocando ldquoa sua eletricidade interiorrdquo Garcia reconhece na feacutee eacutelectriciteacute aimagem emblemaacutetica da procura de tensatildeo num mundo que perdeu o encanto (Max Weber) Garciaanalisa o sentimento de mediocridade e de rotina quando a tensatildeo da vida se aproxima de zero e nadaresta senatildeo o vazio como por exemplo no caso de um esgotamento Para Garcia a busca de intensidadee a exaustatildeo bem como a depressatildeo estatildeo de matildeos dadas enquanto momentos dialeacuteticos Mas quando avida consiste apenas em saltos de adrenalina estes tornam-se rotina e anulam-se a si proacuteprios Nesteparadoxo Garcia descobre o problema de fundo da ldquovida intensardquo Tous autant que nous sommes noussentons bien deacutesormais que lintensiteacute geacuteneacuteraliseacutee noffre dautre perspective une fois eacuteleveacutee au rang deprincipe de vie que notre eacutepuisement ineacuteluctable presque meacutecanique Elle entraicircne tout organismeindividuel ou collectif qui sy livre sans reacuteserve dans une vague deacutepression une lente diminution delexcitation une annulation fatale mais qui ne trouve jamais vraiment son terme agrave moins duneffondrement (Ibid p174) Interessante eacute o facto de que no seu ensaio ldquoLa vie intenserdquo Garcia quaseesgota a filosofia francesa do seacuteculo XX incluindo entre outros Bataille Lacan Klossowski e Lyotardque trataram a questatildeo das intensidades por vezes de forma intensiva e supostamente em nome deuma revolta contra ldquoa vida alienadardquo ou a mistificaccedilatildeo capitalista dos desejos Curiosamente o primeirovolume do coloacutequio sobre Nietzsche de 1972 em Cerisy-la-Salle tinha o tiacutetulo ldquoIntensiteacutesrdquo (Nietzscheaujourdhui colloque de Cerisy Volume 1 Intensiteacutes Paris 2011)540 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p194541 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p197542 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p198

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pequena cidade a alma beneficia de um ritmo de vida uniforme e equilibrado passiacutevel

de profunda perturbaccedilatildeo no interior do enorme ritmo de vida nas metroacutepoles que apela

por sua vez e de um modo mais intenso ao intelecto

As observaccedilotildees de Simmel sobre a intelectualizaccedilatildeo e a coisificaccedilatildeo da vida

moderna decorrem de consideraccedilotildees intimamente relacionadas com a economia

monetaacuteria pois de acordo com as palavras esclarecedoras do filoacutesofo a economia

monetaacuteria [] e o domiacutenio intelectual estatildeo na conexatildeo mais profunda543 Nas relaccedilotildees

que definem ambas produzem um nivelamento das diferenccedilas individuais e uma

concentraccedilatildeo em relaccedilotildees objetivas544 A quantificaccedilatildeo ao inveacutes da qualificaccedilatildeo

desempenha um papel crescentemente preponderante na sociedade e na vida mental do

indiviacuteduo tal como o assinala Simmel ldquoA mente moderna tornou-se cada vez mais uma

mente calculista (rechnend)rdquo 545

No ensaio As Metroacutepoles e a Vida Mental bem como em Filosofia do Dinheiro

Simmel debruccedila-se curiosamente sobre a invenccedilatildeo do reloacutegio de bolso como modo de

ilustraccedilatildeo do domiacutenio da quantidade sobre a qualidade da transformaccedilatildeo do tempo em

realidade objetivamente mensuraacutevel e objetivada imposta ao indiviacuteduo em todos os

momentos546 A vida nas grandes cidades afigura-se assim determinada por esta nova

compreensatildeo do tempo mensuravelmente preciso exato uma ordem temporal

quantificada que determina coordena e rege as diversas atividades ndash quantificadamente

moldadas ndash dos seus habitantes547

Em Filosofia do Dinheiro Simmel refere-se igualmente agrave conexatildeo entre esse

novo tempo padronizado e a emergecircncia do capitalismo uma relaccedilatildeo essencial que

merece a atenccedilatildeo do filoacutesofo De acordo com Simmel com a emergecircncia do comeacutercio

mundial e dos primeiros centros financeiros originou-se o conceito moderno de tempo

543 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p118544 bdquoTodas as relaccedilotildees emocionais entre as pessoas satildeo baseadas na sua individualidade enquantoas relaccedilotildees racionais calculam as pessoas como nuacutemeros como elementos indiferentesmanifestando um interesse apenas de acordo com o seu desempenho objetivamente avaliaacutevel rdquoSimmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnke KC(ed) Frankfurt a M 1989 p118545 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p119546 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p119547 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p120

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[] como valor determinado pela utilidade e pela escassez548 Poder-se-ia pois

asseverar que no acircmbito do pensamento de Simmel o conceito de tempo objetivo eacute

com efeito explicitamente avaliado como um conceito historicamente e culturalmente

determinado e desenvolvido encontrando-se na sua geacutenese intimamente relacionado

com o desenvolvimento econoacutemico especialmente com a emergecircncia do capitalismo

Simmel atenta ainda sobre um traccedilo geral do sentimento moderno que o

filoacutesofo associa a uma experiecircncia do tempo definindo-o como uma forma especial de

expectativa Aqui se revela interessantemente a relaccedilatildeo do homem moderno com o

futuro

Nos tempos modernos especialmente ao que parece na fase mais recente dos tempos

modernos haacute um sentimento de tensatildeo expectativa urgecircncia natildeo resolvida como se a

coisa principal o definitivo o ponto central da vida e das coisas ainda estivesse por vir no

futuro549

Continuamente Simmel constata uma inquietaccedilatildeo secreta e uma confusa falta

de estabilidade e da calma550 que envolvem e configuram a vida moderna e que o

filoacutesofo perspetivando o problema da distacircncia entre as pessoas nas cidades grandes

associa aos efeitos da economia monetaacuteria O sentimento de expectativa e adiamento

descrito por Simmel como caracteriacutesticas dos indiviacuteduos das grandes metroacutepoles eacute pois

perspetivado como uma decorrecircncia ou um efeito do incremento econoacutemico e da

implementaccedilatildeo do dinheiro como novo valor cultural e social que parece anular

enquanto novo meio universal a orientaccedilatildeo dos indiviacuteduos para determinados objetivos

ou propoacutesitos de vida natildeo economicamente determinados Acumulando dinheiro natildeo o

gastando constitui um gesto de adiamento da decisatildeo de consumir incessantemente

como que mantendo todas as possibilidades abertas num qualquer futuro A relaccedilatildeo com

o dinheiro eacute assim baseada na expectativa de que ainda teremos um qualquer destino

ou fim para ele no futuro Esta orientaccedilatildeo do dinheiro em direccedilatildeo a um suposto futuro ndash

e natildeo para a satisfaccedilatildeo das necessidades atuais ndash revela-se ainda mais evidente na

548 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p707549 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p669550 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p675

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modernidade tardia especialmente no que concerne ao creacutedito e demais instrumentos do

capitalismo financeiro que hoje conhecemos551

Hartmut Rosa retoma prologando as reflexotildees de Simmel segundo Rosa entre

as distintas criacuteticas claacutessicas da modernidade as posiccedilotildees de Simmel afiguram-se como

aquelas que se destacam pela sua notaacutevel atenccedilatildeo agraves realidades da aceleraccedilatildeo e do

incremento perspetivadas como realidades eminentemente modernistas ndash embora sem

lhe dedicar uma elaboraccedilatildeo teoacuterica independente552 A ecircnfase de Rosa sobre tal

singularidade das posiccedilotildees de Simmel apresenta-se como um elemento merecedor de

estudo no interior do seu proacuteprio pensamento tambeacutem Rosa tal como Simmel

encontra-se especialmente interessado nos efeitos que a sociedade moderna exerce sobre

a atitude e o sentimento da vida dos indiviacuteduos

Por conseguinte no que respeita ao tempo de vida Rosa constata um

incremento de episoacutedios de accedilatildeo eou experienciais por unidade de tempo como

resultado de uma escassez de recursos de tempo553 Neste ponto Rosa evoca o conceito

de Simmel sobre o ritmo de vida partilhando com efeito muitos dos seus

diagnoacutesticos554 Enquanto Simmel se concentra por completo na funccedilatildeo do dinheiro

enquanto causa do incremento do ritmo de vida Rosa oferece um total de trecircs causas

complexas a saber 1 fatores econoacutemicos 2 fatores culturais e 3 fatores soacutecio-

estruturais Todavia poder-se-ia afirmar que a segunda causa (ou seja os fatores

culturais) apontada por Rosa para a transformaccedilatildeo tatildeo manifesta na modernidade das

aspiraccedilotildees de uma vida religiosa (focada no aleacutem-mundo) para as aspiraccedilotildees de uma

551 Consultar Priddat B bdquoWozu Geldldquo In Schlitte A Denzler A Huditz F (ed) Geld Werteund Werte Wuumlrzburg 2017 pp199-209552 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p100553 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p198554 Rosa partilha a opiniatildeo de Simmel de que o ritmo da vida acelerada pode co-induzir patologias Noiniacutecio do seacuteculo XX como Joachim Radkau no seu estudo sobre a Idade do Nervosismo assinalou(Radkau J Das Zeitalter der Nervositaumlt Muumlnchen 1998) o diagnoacutestico de neurastenia como resultadode um ritmo de vida demasiado estimulado foi amplamente difundido (ver tambeacutem Simmel G bdquoDieGroszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt aM 1989 p67) Uma forma muito semelhante de doenccedila da pressa foi tambeacutem descoberta no nossotempo nos EUA com as mesmas causas presumidas (Levine R Eine Landkarte der Zeit Muumlnchen1999 p 152) A este propoacutesito Hartmut Rosa comenta Se se seguir estes indicadores haacute fortespossibilidades de emergecircncia de outra grande aceleraccedilatildeo na transiccedilatildeo do seacuteculo XX para o seacuteculo XXIdesde a doenccedila da pressa ateacute agrave recente e omnipresente ldquoAttention Deficit Syndromerdquo em crianccedilas eadolescentesrdquo (Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der ModerneFrankfurt a M 2005 p437) Algumas formas de depressatildeo tambeacutem podem ser co-causadas pelo ritmoacelerado da vida moderna Alain Ehrenberg concebe pois a depressatildeo como uma reaccedilatildeo induzida pelostress de uma psique dessincronizada perante as exigecircncias de velocidade da vida moderna (EhrenbergA La fatigue decirctre soi deacutepression et socieacuteteacute Paris 1999)

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vida inscrita no mundo jaacute se encontra mencionada por Simmel particularmente na sua

abordagem do dinheiro como um substituto para um objetivo final555 de vida

entretanto perdido na modernidade

Tal como no pensamento de Simmel as mudanccedilas no modo de relacionamento

com o tempo e o espaccedilo resultam no contexto das posiccedilotildees de Rosa numa crise

descrita como alienaccedilatildeo trata-se pois de um estado que poderaacute ser caracterizado como

uma situaccedilatildeo no acircmbito da qual os sujeitos voluntariamente perseguem objetivos que

natildeo satildeo realmente desejados Na sua anaacutelise dedicada a tais fenoacutemenos de alienaccedilatildeo (em

relaccedilatildeo ao espaccedilo ao tempo e ao mundo das coisas) Rosa convoca muacuteltiplos aspetos

que tambeacutem desempenham um papel relevante nas reflexotildees de Simmel pensemos

pois nas posiccedilotildees de Simmel sobre o distanciamento e a quantificaccedilatildeo do espaccedilo que

em Rosa encontram afinidade teoacuterica com o distanciamento e alienaccedilatildeo das coisas556

Todavia importaria elucidar que Simmel permanece ambivalente em algumas das

avaliaccedilotildees centrais da cultura moderna em verdade para o filoacutesofo a objetificaccedilatildeo das

relaccedilotildees humanas encontra-se perspetivada como potencialidade de configuraccedilatildeo de um

ganho de liberdade para o indiviacuteduo que pode assim desligar-se das dependecircncias

pessoais e desenvolver as suas idiossincrasias

Segundo Rosa a tendecircncia de aceleraccedilatildeo e de incremento constitui-se como jaacute

vimos como caracteriacutestica de toda a modernidade A interrogaccedilatildeo sobre se e como eacute

possiacutevel escapar a este processo de aceleraccedilatildeo e incremento ndash a que procuraram

responder Simmel e Rosa ndash merece ser analisada com a devida atenccedilatildeo Enquanto a

teoria da ressonacircncia de Rosa557 se apresenta como uma proposta abrangente no que

concerne a uma eventual resposta ao problema da alienaccedilatildeo558 a abordagem de Simmel

assume-se na melhor das hipoacuteteses como uma proposta de neutralizaccedilatildeo da alienada

perspetivada ao niacutevel do estilo de vida individual que inclui por sua vez formas de

atividade que talvez pudessem ser descritas como oacutecio Tal conduz-nos agrave interrogaccedilatildeo

sobre se Simmel tambeacutem poderia delinear reflexotildees sobre as possibilidades da

experiecircncia de lazer na modernidade consideradas porventura como uma

contraposiccedilatildeo relativamente agraves tendecircncias de alienaccedilatildeo constatadas Com efeito

555 Rosa tambeacutem considera a funccedilatildeo substituta religiosa do dinheiro a este respeito consultarRosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005p285556 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Frankfurt aM 2013 pp125ndash128557 Rosa H Resonanz Berlin 2016558 Rosa H Resonanz Berlin 2016

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importaria elucidar que o oacutecio natildeo constitui um conceito central no trabalho de Simmel

embora o seu diagnoacutestico pareccedila sugerir a constataccedilatildeo acerca de uma necessidade ou

uma premecircncia de experiecircncia de lazer nos tempos modernos No entanto Simmel

justapotildee oacutecio a trabalho econoacutemico entre outras coisas segundo uma observaccedilatildeo

lateral sobre o fenoacutemeno da moda Simmel menciona igualmente as vaacuterias atividades

de lazer do habitante da cidade559 No que diz respeito ao tempo livre o pensamento de

Simmel apresenta uma certa ecircnfase sobre o facto de os tempos livres se encontrarem

inexoravelmente determinados pelo desenvolvimento do trabalho apresentando-se

profundamente configurados segundo a economia monetaacuteria

Como foi dito que a histoacuteria das mulheres tem a peculiaridade de natildeo ser a histoacuteria das

mulheres mas a dos homens pode-se dizer que a histoacuteria do oacutecio dos jogos dos

divertimentos eacute se olharmos mais de perto a histoacuteria do trabalho e da seriedade560

De acordo com Simmel as condiccedilotildees de trabalho tornaram-se tatildeo exigentes sob

a influecircncia da economia monetaacuteria e da correlativa divisatildeo do trabalho que natildeo restaria

praticamente nenhuma energia que os indiviacuteduos poderiam dispensar para as designadas

atividades de oacutecio necessaacuterias para aleacutem do trabalho Se o dia tem esta aparecircncia que

rosto teraacute a noite561 eacute pois uma questatildeo que Simmel levanta no poleacutemico texto

Infelices possidentes de 1893 A resposta a tal interrogaccedilatildeo eacute suficientemente clara as

experiecircncias mudadas dos tempos modernos a inquietaccedilatildeo as experiecircncias de choque

bem como a hiperestesia562 geral conduzem a um esvaziamento das atividades de

oacutecio trata-se de um mero desejo de soacute se quer divertir ndash soacute divertir ndash e esta eacute toda a

miseacuteria do nosso sistema de diversatildeordquo563 Por conseguinte Simmel considera que o

trabalho e o oacutecio nos tempos modernos formam uma totalidade e que os problemas do

mundo do trabalho acelerado e incrementado dominado pelo dinheiro se prolongam

nas atividades de oacutecio O tempo de oacutecio constitui-se meramente e somente como o

lado oposto das horas de trabalho e natildeo como um antiacutedoto para a alienaccedilatildeo moderna ao

que parece

559 Consultar Frisby D bdquoSimmel and Leisureldquo In Rojek C (ed) Leisure for leisure Basingstoke1989 pp 75ndash91560 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295561 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295562 Simmel G Soziologische Aesthetik Gesamtausgabe vol5 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p211563 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295

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A distinccedilatildeo entre fins e meios constitui-se como uma problemaacutetica central na

teoria da cultura Simmel Se o mundo do trabalho assalariado se caracteriza por relaccedilotildees

de propoacutesito e finalidade nas vaacuterias esferas da cultura por sua vez ocorre a

possibilidade de irrupccedilatildeo de momentos nos quais se opera uma rotaccedilatildeo de eixos564

segundo a qual as objeccedilotildees culturais se tornam formas autoacutenomas que jaacute natildeo podem ser

entendidas como meios para um fim Este processo apresenta duas possibilidades a

criaccedilatildeo de um mundo independente que se desprende como contra-imagem positiva de

uma vida quotidiana alienada ou a criaccedilatildeo de um mundo independente que surge ao

indiviacuteduo como estranho e hostil agrave vida e se volta contra ele tal como descrito na

trageacutedia da cultura Enquanto que para Simmel a autonomizaccedilatildeo progressiva da

economia e da tecnologia provoca de um modo mais contundente a configuraccedilatildeo da

segunda destas duas possibilidades expostas a autonomizaccedilatildeo progressiva da arte

afigura-se por sua vez como um domiacutenio de merecido enaltecimento aos olhos do

filoacutesofo natildeo obstante as suas advertecircncias contra formas extremas de lart pour lart

Pois de acordo com o pensamento de Simmel conquanto a arte seja tambeacutem

ela determinada pela loacutegica do dinheiro (tal como por exemplo a exposiccedilatildeo de arte

com a sua curta meia-vida565) este domiacutenio cultural possui ainda ndash assim o afirma o

filoacutesofo ndash um potencial libertador real permitindo a abertura para uma distacircncia

fecunda para as coisas O conceito de arte segundo Simmel ndash e de um modo que eacute

particularmente relevante no acircmbito do seu conceito de filosofia ndash entrecruza-se com as

perspetivaccedilotildees relativas ao conceito de contemplaccedilatildeo a este respeito assim escreve

Simmel a arte e a sua experiecircncia permite-nos mudar o alcance da visatildeo na qual nos

colocamos original e naturalmente em relaccedilatildeo agrave realidade566

As reflexotildees de Simmel sobre grandes personalidades artiacutesticas como Goethe e

Rembrandt revelam igualmente que no acircmbito da produccedilatildeo artiacutestica de obras se torna

possiacutevel a configuraccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o geral a qual por sua vez

natildeo impotildee um distanciamento entre o trabalho e o seu produtor ao contraacuterio do que

acontece com o produto industrial que se baseia pois na divisatildeo do trabalho Tal

atividade a produccedilatildeo artiacutestica poderia ser compreendida com devida justeza como

564 Simmel G Lebensanschauung vier metaphysische Kapitel Gesamtausgabe vol16 Fitzi GRammstedt O (ed) Frankfurt a M 1999 p245565 Simmel G Ueber Kunstausstellungen Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 pp 242ndash250566 Simmel G Soziologische Aesthetik Gesamtausgabe vol5 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p209

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uma atividade natildeo alienada concretizada segundo o talento pessoal e individual

permanecendo por seu turno orientado para a obra como que convocando o conceito

de poiesis Trata-se igualmente de uma experiecircncia especial de tempo que rompe com

a vida quotidiana e nos liberta da ordem temporal objetiva do trabalho natildeo se

apresentando orientada para a produccedilatildeo de um trabalho ndash de acordo com Simmel a

atividade de produccedilatildeo artiacutestica poderia ser perspetivada nas suas potencialidades de

realizaccedilatildeo ou efetuaccedilatildeo da aventura

A caracteriacutestica formal da aventura daacute conta justamente dessa possibilidade de

irrupccedilatildeo de uma situaccedilatildeo que permite ao indiviacuteduo cair da contiguidade da vida567

Ao mesmo tempo a aventura proporciona um sentimento de unidade interior que a

distingue de outros episoacutedios da vida aproximando-a da experiecircncia da obra de arte A

aventura oferece uma liberdade que nem o trabalho nem os prazeres quotidianos

proporcionam e como tal uma interrupccedilatildeo do quotidiano que pode ser perspetivada

como uma situaccedilatildeo afim agrave experiecircncia da festa concebida por sua vez como um

permanente candidato agrave definiccedilatildeo ou agrave exemplificaccedilatildeo de experiecircncias de oacutecio568 Num

outro sentido a aventura partilha ainda a inquietaccedilatildeo e o sensacionalismo com a

experiecircncia moderna do tempo O conceito mais proacuteximo de uma possiacutevel definiccedilatildeo de

uma experiecircncia de oacutecio poderia ser encontrado assim sustentamos na noccedilatildeo

simmeliana de convivecircncia

A convivecircncia eacute segundo Simmel uma forma luacutedica social569 no acircmbito da

qual formas de sociabilidade podem ser exercidas sem que os envolvidos sigam

diretamente interesses concretos Tal poderaacute ser claramente encontrado nos haacutebitos da

conversaccedilatildeo social A conversaccedilatildeo social distingue-se da conversaccedilatildeo diaacuteria pelo facto

de na seriedade da vida as pessoas falarem acerca de conteuacutedos que querem comunicar

ou sobre os quais querem comunicar ndash na convivecircncia poreacutem a conversaccedilatildeo torna-se

um fim em si mesma570 Neste sentido e tal como a perspetivamos a descriccedilatildeo de

convivecircncia no sentido da praxis assim proposta por Simmel traduz com efeito

diversos aspetos que sugerem que tal situaccedilatildeo social ndash a convivecircncia ndash poderia com

567 Simmel G Das Abenteuer Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurta M 1996 p168568 Consultar Pieper J Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999569 Simmel G Soziologie der Geselligkeit Gesamtausgabe vol12 Kramme RRammstedt O (ed)Frankfurt a M 1996 pp177ndash193570 Simmel G Soziologie der Geselligkeit Gesamtausgabe vol12 Kramme RRammstedt O (ed)Frankfurt a M 1996 p187

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devida justeza ser tomada como exemplo de uma experiecircncia de oacutecio na

modernidade571

No discurso popular o termo oacutecio encontra-se frequentemente associado agrave

noccedilatildeo de des-aceleraccedilatildeo Segundo tal aceccedilatildeo o oacutecio representaria o oposto do ritmo

agitado da vida quotidiana podendo ser alcanccedilado e cumprido vivendo conscientemente

o dia mais lento572 Como tal o oacutecio desacelerado poderia ser perspetivado como um

contraprojeto relativamente a uma experiecircncia de modernidade que eacute tatildeo caracteriacutestica

quanto deploraacutevel mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo Perante tal quadro cultural poetas e

escritores tecircm-se ocupado criticamente com as tendecircncias de mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo

como as observaccedilotildees de Goethe sobre o ldquovelocifeacutericordquo573 ou as observaccedilotildees de Musil

sobre o ldquoAcelerismordquo comprovam574 De particular importacircncia apresenta-se a

descoberta formulada por Heinrich Heine em 1843 a propoacutesito da abertura das

primeiras linhas ferroviaacuterias Os conceitos elementares de tempo e espaccedilo tornaram-se

flutuantes No caminho-de-ferro o espaccedilo eacute aniquilado e tudo o que nos resta eacute o

tempordquo575 Uma vez que a aceleraccedilatildeo teacutecnica permite ultrapassar mais rapidamente as

distacircncias geograacuteficas a relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo altera-se a favor deste uacuteltimo por

outras palavras na modernidade emerge uma de-espacializaccedilatildeo e uma

temporalizaccedilatildeo576 Para aqueles que sofrem de aceleraccedilatildeo moderna o oacutecio natildeo

obstante apresenta-se como uma opccedilatildeo que permite o escape a este desenvolvimento

ou pelo menos a sua suspensatildeo conquanto temporaacuteria Pois o oacutecio aparece duplamente

determinado por uma de-temporalizaccedilatildeo por um lado e ndash como se acrescenta no

paraacutegrafo seguinte ndash uma tendecircncia para a espacializaccedilatildeo por outro

Hartmut Rosa com efeito debruccedilou-se sobre as causas do lamento da aceleraccedilatildeo

geral da vida na modernidade em numerosos escritos Segundo o filoacutesofo o progresso

teacutecnico promove uma aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo do transporte e da comunicaccedilatildeo

571 Sobre a sociabilidade no contexto do jogo consultar Schlitte A Das symbolische Spiel bei GeorgSimmel In Kowalewicz MH (ed) Spiel Facetten seiner Ideengeschichte Muumlnster 2013 pp55-71572 Gruumln A Vom Zauber der Muszlige Freiburg 2008 p34573 Goethe JW Brief an G H L Nicolovius November 1825 In Saumlmtliche Werke BriefeTagebuumlcher und Gespraumlche vol10 (37) Die letzten Jahre 1823ndash1828 Fleig H (ed) Frankfurt a M1993 p334574 Musil R Der Mann ohne Eigenschaften Reinbek 1970 p402575 Heine H Lutetia Berichte uumlber Politik Kunst und Volksleben Saumlmtliche Schriften vol5 BrieglebK (ed) Muumlnchen 1975 p449576 Schroer M Raum Zeit und soziale Ordnung In Ernst P Strohmaier A (ed) Raum Konzepte inden Kuumlnsten Kultur- und Naturwissenschaften Baden Baden 2013 p14

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reduzindo em uacuteltima consequecircncia o tempo necessaacuterio por unidade de quantidade577

Neste sentido e de acordo com Rosa a aceleraccedilatildeo teacutecnica liberta recursos de tempo

oferecendo ndash potencialmente ndash ocasiotildees para a eventual desaceleraccedilatildeo da vida humana

Todavia tal determinaccedilatildeo das sociedades modernas natildeo se afigura compatiacutevel com as

potencialidades teoacutericas da aceleraccedilatildeo teacutecnica pois em verdade os recursos de tempo

das nossas sociedades revelam-se cada vez mais escassos apesar da economia de tempo

decorrente do desenvolvimento tecnoloacutegico578

As observaccedilotildees de Rosa sustentam igualmente que a desaceleraccedilatildeo natildeo pode

constituir o princiacutepio formativo temporal do oacutecio Se tal fosse o caso o oacutecio encontrar-

se-ia passiacutevel de ser reduzido a um estado no acircmbito do qual se disponibilizaria mais

tempo para uma determinada atividade ou no acircmbito do qual haveria menos a fazer

num determinado periacuteodo de tempo No entanto e tal como assinala Rosa a

produtividade absoluta natildeo deve ser determinada como o criteacuterio decisivo do oacutecio ndash

pode-se ser muito produtivo e tambeacutem muito improdutivo numa vivecircncia de oacutecio ndash

mas sim a perspetiva do indiviacuteduo experiente em torno deste (natildeo-) fazer Assim se

natildeo eacute o periacuteodo de tempo em que algo eacute feito que caracteriza o oacutecio mas o modo de

fazer-se a si proacuteprio a des-temporizaccedilatildeo oferece-se como um termo promissor para a

descriccedilatildeo temporal do oacutecio Tal caracterizaccedilatildeo coincide com posiccedilotildees teoacutericas que

definem o oacutecio como devaneio do tempo como uma esfera de intemporalidade

leve579 ou como uma intemporalidade limitada580

Para uma compreensatildeo mais precisa acerca do que a destemporalizaccedilatildeo do oacutecio

pode consistir algumas consideraccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre o tempo afiguram-se aqui

pertinentes Em primeiro lugar haacute que fazer uma distinccedilatildeo entre duas noccedilotildees opostas de

temporalidade que estatildeo profundamente enraizadas na histoacuteria cultural europeia Henri

Bergson observou que o tempo eacute perspetivado na maioria das vezes [como] um meio

homogecircneo581 ou seja como uma condiccedilatildeo fiacutesica objetiva determinada pelas leis da

577 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen Theorie spaumltmodernerZeitlichkeit Frankfurt aM 2013578 Rosa H Bewegung und Beharrung in modernen Gesellschaften Eine beschleunigungstheoretischeZeitdiagnose In Kodalle K Rosa H (ed) Rasender Stillstand Beschleunigung desWirklichkeitswandels Konsequenzen und Grenzen Wuumlrzburg 2008 p13579 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p11580 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p45581 Bergson H Zeit und Freiheit Hamburg 1994 p70

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linearidade uniformidade e unidirecionalidade Este tempo cosmoloacutegico progride

contiacutenua e consistentemente transformando irrevogavelmente o futuro no passado De

um modo distinto existe ainda a ideia de um tempo fenomenoloacutegico que soacute emerge na

experiecircncia do proacuteprio indiviacuteduo tal forma subjetiva de tempo eacute caracterizada pela

caracteriacutestica de singularidade para o experimentador e pela qualidade da duraccedilatildeo582

A filosofia desenvolveu termos distintos para designar estas duas formas de

temporalidade A distinccedilatildeo entre tempo cosmoloacutegico e fenomenoloacutegico remonta agrave

teoria narrativa de Paul Ricœur apresentando-se como anaacuteloga da distinccedilatildeo corrente

entre tempo objetivo e subjetivo presente em outras abordagens teoacutericas de

tempo583

Aleacutem destas diferenccedilas terminoloacutegicas as conceccedilotildees dicotoacutemicas acerca do

tempo possuem a sua origem comum na teologia de Agostinho de Hipona que

estabelecera a sua teoria do tempo no Deacutecimo Primeiro Livro de Confessiones

Agostinho natildeo considera o tempo como um mero facto externo pela primeira vez na

histoacuteria da filosofia o tempo eacute perspetivado agrave luz da existecircncia de uma duraccedilatildeo

interna Enquanto o tempo exterior decorre constantemente e pode ser medido e

comparado a sua perceccedilatildeo interior e espiritual atinge uma qualidade completamente

diferente Soacute a alma humana segundo Agostinho conhece a presenccedila do presente

assim como a presenccedila do passado (a memoacuteria) e a presenccedila do futuro (a

expectativa) Pois estes trecircs estatildeo na alma e em outros lugares eu natildeo os vejo584

Segundo Agostinho o tempo espiritual transcende o tempo objetivamente fiacutesico tal

apreciaccedilatildeo do tempo subjetivo eacute com efeito motivada religiosamente encontrando-se

intimamente ligada ao seu interesse pela contemplaccedilatildeo divina ndash Deus criador do tempo

estaacute fora do tempo (isto eacute na eternidade) e o proacuteprio Agostinho se vecirc a si mesmo

como um ser humano finito derretido no tempo Natildeo obstante Agostinho concebe a

simultaneidade do passado do presente e do futuro na alma humana agrave luz da conceccedilatildeo

de uma imagem conquanto fraacutegil da eterna unidade divina agrave qual o ser humano aspira

582 Polkinghorne DE Narrative Psychologie und Geschichtsbewuszligtsein Beziehungen undPerspektiven In Juumlrgen Straub J (ed) Erzaumlhlung Identitaumlt und historisches Bewuszligtsein Diepsychologische Konstruktion von Zeit und Geschichte Frankfurt a M 1998 p35583 Ricœur P Zeit und Erzaumlhlung Muumlnchen 1991 p390 Consultar Roumlmer I Das Zeitdenken beiHusserl Heidegger und Ricœur Dordrecht 2010 pp254ndash275584 Augustinus Confessiones XI 26 (565) No original bdquo[hellip] tempora sunt trira praesens de praeteritispraesens de praesentibus praesens de futuris sunt enim haec in anima tria quaedam et alibi ea non video[hellip]ldquo

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a unir-se atraveacutes da contemplaccedilatildeo585 Assim se o tempo interior permite a uniatildeo do

homem a Deus o tempo exterior por sua vez revela-se insignificante Agostinho

privilegia com efeito o tempo interior pois este relaciona-se intimamente com as

noccedilotildees de contemplaccedilatildeo eternidade divina e intemporalidade

Todavia e como bem sabemos a praacutetica quotidiana moderna afigura-se muitas

vezes orientada para e segundo o tempo objetivo A razatildeo para tal situaccedilatildeo apresenta-se

tatildeo simples quanto pragmaacutetica atraveacutes da objetivaccedilatildeo do tempo mediante a sua

mensurabilidade a comparabilidade e o planeamento requeridos pelo desempenho das

tarefas quotidianas encontram-se possibilitados e cumpridos Na vida quotidiana o

tempo objetivo transfigura-se numa mercadoria utilizaacutevel que eacute consumida para agir e

alcanccedilar determinadas metas como o tempo enquanto recurso natildeo se encontra

disponiacutevel indefinidamente ndash eacute pois um bem escasso ndash constitui-se ele mesmo objeto

de consideraccedilotildees econoacutemicas586 O tempo eacute por conseguinte alocado para determinados

fins administrado em calendaacuterios e planeado de tal forma que o maior benefiacutecio

possiacutevel pode ser derivado dele Tambeacutem o designado tempo livre natildeo se afigura isento

de tais consideraccedilotildees de uso no sentido real uma vez que eacute desejaacutevel e expectaacutevel que o

empregadotrabalhador o utilize tendo em vista a regeneraccedilatildeo da sua forccedila de trabalho

(e tambeacutem o desenvolvimento do consumo de bens) A perceccedilatildeo subjetiva do tempo

natildeo eacute plenamente passiacutevel de ser abolida na vida quotidiana todavia a temporalidade

quotidiana ou normal apresenta-se caracterizada pelo facto de que o tempo subjetivo

natildeo se consiste numa quantidade independente Pelo contraacuterio o tempo subjetivo parece

estar ligado ao tempo objetivo dominante adquirindo significado enquanto objeto de

comparaccedilatildeo a designada pressatildeo do tempo por exemplo parece traduzir um certo

modo de perceccedilatildeo subjetiva vivenciada quando temos pouco tempo objetivo disponiacutevel

para cumprir uma tarefa ndash por outro lado o teacutedio tambeacutem ele um modo de perceccedilatildeo

subjetiva parece indicar uma situaccedilatildeo de excesso de tempo objetivo como que fazendo

correr o reloacutegio muito lentamente

O tempo de oacutecio representa pois a possibilidade de um desvio do tempo

normal diaacuterio pois os caacutelculos de benefiacutecios temporais natildeo desempenham aiacute qualquer

funccedilatildeo Para o indiviacuteduo que vivencia uma experiecircncia de oacutecio o tempo cosmoloacutegico

585 Augustinus Confessiones XI 39 (587) No original bdquo[hellip] donec in te confluam purgatus et liquidusigne amoris tuildquo586 Consultar Safranski R Zeit Was sie mit uns macht und was wir aus ihr machen Muumlnchen 2015pp106ndash130

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natildeo eacute totalmente abolido mas jaacute natildeo se afigura concebido como um recurso escasso e

constantemente mensuraacutevel natildeo se traduzindo pois num objeto de urgecircncia

permanente Hans Blumenberg distinguiu o tempo-de-ter-que-fazer utilitaacuterio (Muss-

Zeit) que designa a parte da vida individual ocupada pelas exigecircncias da

autopreservaccedilatildeo do tempo-de-poder-fazer (Kann-Zeit) definido como um espaccedilo

livre de realizaccedilotildees indefinidas587 No tempo-de-ter-que-fazer o ser vivo reage agraves suas

necessidades existenciais enquanto o tempo-de-poder-fazer apresenta-se libertado de

tais constrangimentos tornando possiacutevel o preenchimento individual do tempo de vida

com algum conteuacutedo significativo

De acordo com Blumenberg poder-se-ia sustentar que enquanto a vida

quotidiana parece estar dominada por um tempo-de-ter-que-fazer as potencialidades

oferecidas pelo tempo-pode-ser-fazer representam por seu turno uma condiccedilatildeo

necessaacuteria para o oacutecio Por conseguinte a temporalidade especiacutefica do oacutecio tambeacutem

poderaacute ser compreendida como o resultado do seu caraacuteter autorreferencial conquanto o

tempo diaacuterio ou o tempo-de-ter-que-fazer se destina agrave execuccedilatildeo de tarefas certas

necessaacuterias e propositadas no tempo-de-poder-fazer proacuteprio do oacutecio natildeo eacute exigida uma

divisatildeo dos recursos de tempo disponiacuteveis em diferentes tarefas decorrentes de

restriccedilotildees externas ndash porque por definiccedilatildeo tais restriccedilotildees natildeo existem Na ausecircncia de

tais exigecircncias o indiviacuteduo moderno pode na experiecircncia de oacutecio colocar-se no centro

da sua reflexatildeo e da sua accedilatildeo autoacutenoma ou autodeterminada considerando que tal

situaccedilatildeo se afigure cumprida agrave luz da possibilidade de natildeo imposiccedilatildeo de um tempo

cosmoloacutegico ou tambeacutem dito objetivo De facto nos comentaacuterios narrativos

autobiograacuteficos por exemplo verifica-se a descriccedilatildeo de experiecircncias de presenccedila e

fenoacutemenos de destemporalizaccedilatildeo no acircmbito dos quais a sucessatildeo do tempo exterior

perde o seu significado Em verdade tal estado um estado elevado de tempo eacute na

maioria dos casos apenas temporaacuterio ndash ateacute que as exigecircncias da vida quotidiana

retornem novamente A experiecircncia do oacutecio constitui-se portanto num estado de

tempo excecional que soacute pode atingir um significado (temporaacuterio) por contraste com o

fundo normal de um tempo quotidiano588 Neste sentido o tempo de oacutecio tambeacutem

pode ser descrito como uma heterocronia

587 Blumenberg H Lebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p291588 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32

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Como compreender tal conceito ndash heterocronia A este respeito poder-nos-

iacuteamos sustentar no conceito jaacute avanccedilado por Michel Foucault de heterotopia589 que

parece integrar uma certa referecircncia agrave temporalidade lrsquoheacuteteacuterotopie [qui] se met agrave

fonctionner agrave plein lorsque les hommes se trouvent dans une sorte de rupture absolue

avec leur temps traditionnelrdquo590 Aparentemente para aleacutem das exigecircncias sistemaacuteticas

o modelo de heterotopia de Foucault inclui de uma certa forma a ideia de uma

conceccedilatildeo especiacutefica do tempo que possui uma designaccedilatildeo anaacuteloga Foucault recorre ao

exemplo do museu e da biblioteca que o filoacutesofo interpreta em termos de uma extensatildeo

de tempo pretendida Os exemplos que rompem com a estruturaccedilatildeo tradicional ou

quotidiana do tempo satildeo segundo Foucault museus e bibliotecas ndash e bem assim

lugares claacutessicos de oacutecio o tempo passado seria neles preservado pois tais lugares

assim perspetivados afiguram-se como que libertos das restriccedilotildees temporais como se

se encontrassem fora do tempo Segundo Foucault uma segunda forma de heterotopia

temporal consiste na heacuteteacuterotopie chronique que o filoacutesofo francecircs exemplifica atraveacutes

de acontecimentos culturais como feiras de divertimento e aldeias de feacuterias Nestes

lugares o tempo natildeo eacute acumulado mas celebrado como algo fugaz ndash laquode plus futile de

plus passager de plus preacutecaireraquo591 Apesar da dicotomia conceptual entre eternidade e

efemeridade ambas as formas de heterotopia do tempo assemelham-se na medida em

que o tempo natildeo estaacute disponiacutevel neles como recurso sendo sim celebrado como um

fenoacutemeno independente Todavia o simples facto de ter tempo de ter tempo livre ndash e

de assim se sugerir a rutura com a temporalidade quotidiana ndash natildeo configura por si

mesmo um criteacuterio suficiente para o oacutecio afinal de contas o tempo natildeo gasto ainda

estaacute disponiacutevel como um recurso para accedilotildees futuras relacionadas com objetivos e pode

assim tornar-se objecto de consideraccedilotildees econoacutemicas592 Tal como adverte Blumenberg

589 Em analogia com Foucault o espaccedilo de oacutecio seria um espace autre de tipo diferente e distinto(proacuteprio) dos espaccedilos habituais bem como excluiacutedo e fechado E o tempo heterocronia designaria algoque natildeo se determina sob o signo do habitual natildeo se apresentando regulamentado segundo o cursoregular das coisas mas experimentando uma determinaccedilatildeo individual e por consequecircncia uma atribuiccedilatildeode significado a heterocronia independentemente de ser prolongada ou restrita encontra-se em estreitaligaccedilatildeo (funcionando como um acto de justificaccedilatildeo) com as instituiccedilotildees cujo significado eacute alimentado poraquela ndash nenhum museu sem eternidade intencional nenhum festival sem limite temporal do qual extrai asua solenidade em primeiro lugar Como a heterocronia o oacutecio tambeacutem segue o seu proacuteprio horaacuterio namedida em que quase nunca abrange uma vida inteira mas apenas uma parte seja de curto ou de longoprazo 590 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p759591 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p760592 Figal G Muszlige als Forschungsgegenstand In Muszlige Ein Magazin 11 (2015)p 19

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a margem de manobra temporal do tempo-de-ter-que-fazer natildeo eacute suficiente para ter

um tempo preenchido593

Qual eacute entatildeo a diferenccedila fundamental que separa o tempo diaacuterio do tempo de

oacutecio A liberdade relativamente agrave pressatildeo externa do tempo constitui de facto uma

condiccedilatildeo necessaacuteria para o oacutecio ndash todavia o elemento decisivo determina-se como o

modo segundo o qual o indiviacuteduo percebe esse espaccedilo livre no tempo Neste sentido

importaria asseverar o tempo de oacutecio eacute portanto determinado pela sua qualidade

fenomenoloacutegica a experiecircncia do oacutecio ocorre ndash e assim poderiacuteamos concluir ndash quando o

sujeito jaacute natildeo se sente compelido a comparar a sua proacutepria perceccedilatildeo do tempo (com o

tempo externo) como que se esquecendo justamente ainda que por momentos de tal

diferenccedila ou dicotomia O tempo de oacutecio eacute pois um tempo proacuteprio594 (Eigen-Zeit no

sentido literal) na experiecircncia de oacutecio apenas o tempo subjetivo adquire significado

enquanto o tempo objetivo natildeo possui qualquer relevacircncia A partir de tais

consideraccedilotildees poder-se-ia explicitar de um modo mais claro o efeito da

destemporalizaccedilatildeo que emerge enquanto desvio heteroacutecrono relativamente ao

tempo quotidiano trata-se pois de perspetivar a possibilidade de uma separabilidade

entre o subjetivo e o objetivo entre o tempo fenomenoloacutegico e o tempo cosmoloacutegico Eacute

precisamente esta possibilidade de separabilidade que determina o tempo de oacutecio

repousado na experiecircncia e natildeo mensuraacutevel595 Ao contraacuterio do caso normal da vida

quotidiana o tempo objetivo natildeo se introduz na experiecircncia do oacutecio como uma

referecircncia para a perceccedilatildeo subjetiva do tempo Na sua experiecircncia de oacutecio o sujeito

pode natildeo obstante sentir a passagem do tempo ndash mas tal situaccedilatildeo natildeo determina a sua

fruiccedilatildeo enquanto tal Ao inveacutes de comparar planear e utilizar intervalos de tempo ndash

situaccedilotildees que configuram a temporalidade objetiva ndash o indiviacuteduo pode concentrar-se

de um modo tanto quanto possiacutevel pleno na atividade que para si mesmo escolheu

realizar Se o tempo fenomenoloacutegico jaacute natildeo eacute comparado com o tempo cosmoloacutegico o

tempo em si mesmo pode ser objeto de olvido por parte do sujeito do oacutecio tal como

elucida Figal assim que se tem tempo para fazer algo o tempo jaacute natildeo desempenha um

papel Certamente o tempo natildeo para mas eacute singularmente suspenso596 Ao sujeito do

oacutecio a singular ldquosuspensatildeordquo do tempo parece sugerir que o tempo (fenomenoloacutegico)

593 Blumenberg H Lebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p291594 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995595 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p45596 Figal G Muszlige als Forschungsgegenstand In Muszlige Ein Magazin 11 (2015) 19

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ficara completamente parado enquanto o tempo (cosmoloacutegico) permanece

despercebido

Para ilustrar tal situaccedilatildeo alguns conceitos filosoacuteficos poderatildeo ser apontados

tendo em vista a elucidaccedilatildeo conceptual da possibilidade da perceccedilatildeo individual do

tempo se determinar para aleacutem da objetividade cosmoloacutegica O termo alematildeo Weile

(ldquopermanecircncia certo espaccedilo de tempordquo) pode ser aplicado aos tempos de oacutecio como um

caso especial de experiecircncia subjetiva do tempo Figal descreve a dimensatildeo temporal do

oacutecio como um periacuteodo de tempo que se estabelece em Weile597 ou atraveacutes da forma

verbal ativa de permanecer (verweilen) oacutecio significar ser capaz (poder) de

permanecer (verweilen) assim tambeacutem elucida Bruumlhweiler598 No mesmo tom o oacutecio

realiza-se num Verweilen (permanecer) livre e significativo no tempo sustenta Riedl599

Entre tais posiccedilotildees as observaccedilotildees de Michael Theunissen sobre o Verweilen

(permanecer) afiguram-se assaz pertinentes pois o filoacutesofo descreve o oacutecio como uma

possibilidade de concentraccedilatildeo no sempre presente600 Somente aqueles que natildeo se

importam com o futuro e tambeacutem natildeo pensam nos seus sofrimentos passados podem

verweilen (permanecer) Concentrando-se no presente a pessoa que verweilt

(permanece) sente portanto como que um aliacutevio601 Aleacutem disso Verweilen

(permanecer) pode significar um certo tipo de felicidade conceccedilatildeo que Theunissen

define na sua iacutentima ligaccedilatildeo com os conceitos aristoteacutelicos de teoria e de eudaimoniacutea

Esta eacute a felicidade que Aristoacuteteles pode atribuir ao comportamento teoacuterico no mundo pois

concebe a teoria como um observar e assim a coloca no mesmo niacutevel de uma

contemplaccedilatildeo esteacutetica602

Theunissen recusa proclamar a existecircncia equivalente ou inclusivamente

independente de um tempo subjetivo face ao tempo objetivo pois o que se faz

independente no tempo-do-ego natildeo eacute em verdade senatildeo uma consumaccedilatildeo do tempo

pelos sujeitos humanos a consumaccedilatildeo de um tempo cosmoloacutegico que natildeo eacute subjetivo

597 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32598 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p11599 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 20600 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291601 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291602 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291

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em si603 Natildeo obstante para Theunissen a possibilidade de uma experiecircncia de

felicidade depende de um modo de perceccedilatildeo que jaacute natildeo presta atenccedilatildeo ao tempo

homogeneamente progressivo

O momento eacute adequado para a irrupccedilatildeo suacutebita Verweilen (permanecer) proporciona

felicidade porque o seu objeto desligado do meu anteprojeto relativamente ao futuro

aparece de repente sob uma luz nova e desconhecida604

Segundo Theunissen a felicidade praacutetica que resulta da sintetizaccedilatildeo dos

tempos605 poderia constituir uma contraparte ao Verweilen (permanecer) concebido

por seu turno como um prolongamento do tempo orientado para a experiecircncia no

presente No acircmbito da experiecircncia da ldquofelicidade praacuteticardquo tal como perspetivada por

Theunissen o sujeito natildeo se dissolve no presente mas medeia o seu passado presente e

futuro numa experiecircncia de continuidade que lhe permite construir uma identidade

supratemporal a qual pode determinar-se como possibilidade de autorrealizaccedilatildeo praacutetica

agrave luz do conceito de autonomia

Neste sentido e ainda de acordo com Theunissen uma conceccedilatildeo linear

acelerada do tempo poderia ser complementada por uma conceccedilatildeo riacutetmica e ciacuteclica do

tempo Tal conceccedilatildeo riacutetmica e ciacuteclica do tempo encontra-se claramente em tensatildeo com

o conceito linear do tempo que hoje conhecemos como dominante O conceito de

tempo linear enfatiza com efeito a continuidade do fluxo irreversiacutevel de

acontecimentos que flui sem pontos inicial e final segundo uma loacutegica sempre mais

acelerada e mais incrementada tal como a reconhecemos no contexto da modernidade

tardia A abertura do tempo a este sentido de infinito afigura-se natildeo obstante tentadora

e desafiadora tal como observa Wendorff ldquoUm mundo tatildeo moderno de tempo linear

natildeo tem pontos fixos em nenhum lugar mas tambeacutem natildeo oferece paz em nenhum

lugarrdquo606

Segundo este quadro cada momento possui a sua existecircncia irrevogavelmente

fugaz sem a possibilidade de um aprofundamento real Em lugar algum o ser humano

pode ancorar-se firmemente na corrente do tempo ndash e o seu sentimento mais premente

consiste em desejar adaptar-se tanto quanto lhe for possiacutevel agrave velocidade do tempo que

lhe foi atribuiacutedo a fim de com ela se tornar sincroacutenico preenchendo-a de significado e

603 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p303604 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p292605 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291606 Wendorff R Der Mensch und die Zeit Opladen 1988 pp34-35

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conteuacutedo Na era da vida acelerada os (cada vez mais) temidos perigos do futuro

determinam o presente o presente encontra-se parcialmente coberto pelo futuro e ao

mesmo tempo o futuro estaacute sobrecarregado com os problemas do presente (repare-se

por exemplo que as sociedades modernas dificilmente podem resolver os seus

problemas ecoloacutegicos de outra forma que natildeo seja sobrecarregando os custos de

eliminar o seu lixo civilizacional no futuro) Por outro lado o constante progresso do

conhecimento torna difiacutecil a adaptaccedilatildeo ao futuro no presente Paradoxalmente quanto

mais raacutepido cresce o nuacutemero de inovaccedilotildees mais difiacutecil se torna prever situaccedilotildees de vida

futuras

Na modernidade tardia e sob a constante interaccedilatildeo entre inovaccedilatildeo e nostalgia a

diferenccedila entre conhecido e desconhecido afigura-se profundamente reduzida O

exoacutetico ou o novo natildeo se apresentam mais estranhos ao sujeito moderno do que o antigo

ou o familiar Com efeito no acircmbito da modernidade temporalmente acelerada cujo

curso se desdobra ao longo de experiecircncias cada vez mais fugazes dos tempos presentes

o anteriormente ldquonovordquo torna-se pronta e rapidamente obsoleto velho Dir-se-ia com

efeito que o original o claacutessico e o perene possuem a vantagem de dificilmente

envelhecerem no sentido histoacuterico ndash mas o novo ao inveacutes ameaccedila transfigurar-se

segundo uma celeridade inexoraacutevel em velho

Contra tais tendecircncias um tempo qualitativo perspetivado como ldquotempo-

proacutepriordquo607 desenvolvido no acircmbito de uma vivecircncia de oacutecio permitiria a abertura de

horizontes humanos da experiecircncia ndash desde logo a experiecircncia-de-si A hegemonia de

uma conceccedilatildeo linear do tempo conduz-nos ao esquecimento de que nos encontramos

inseridos numa complexidade de ritmos temporais e de mareacutes de realidade Distintas

situaccedilotildees naturais e relacionamentos humanos exigem tempos proacuteprios de

desenvolvimento e de amadurecimento A agricultura por exemplo eacute

predominantemente orientada segundo ciclos naturais mas a distribuiccedilatildeo dos seus

produtos eacute determinada por padrotildees de tempo lineares Atraveacutes da mecanizaccedilatildeo e da

transformaccedilatildeo quiacutemica da produccedilatildeo de alimentos estruturas temporais cada vez mais

lineares penetram no reino ciacuteclico da natureza e no reino agriacutecola O sujeito da

modernidade tardia por sua vez sofre a perda do sentido dos ritmos naturais608 tal

607 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995608 Benz E Akzeleration der Zeit Mainz 1977 Consultar Luumlbbe H Der verkuumlrzte Aufenthalt in derGegenwart In Kemper P (ed) bdquoPostmodemeldquo Frankfurt 1988 pp145-164

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como assinala Benz ndash conquanto estes possam ainda ser parcialmente experienciados no

espaccedilo do idiacutelio A este respeito leiamos Hans-Georg Gadamer

Eacute uma unilateralidade voluntaacuteria da modernidade que a coisa mais importante aqui eacute

poder-fazer poder-controlar Mas tambeacutem vemos que isto natildeo eacute tudo haacute tambeacutem a

hora da morte e a hora do nascimento Eacute precisamente aqui que nos chega tambeacutem a

incontrolabilidade do tempo das coisas que natildeo podemos-fazer Inclusivamente coisas

que acontecem naturalmente e ritmicamente Haacute um esquema baacutesico de experiecircncia

riacutetmica do tempo em que o fim estaacute ligado ao iniacutecio Olhamos para o reloacutegio quando

queremos ver como estatildeo as coisas com o tempo O reloacutegio eacute algo que liga constantemente

o fim com o iniacutecio nomeadamente atraveacutes do movimento circular E assim tudo no nosso

mundo estaacute entrelaccedilado com o movimento de autorrenovaccedilatildeo todos noacutes conhecemos o

ritmo do acordar e do dormir ou aquele momento particular em que a respiraccedilatildeo se

transforma em exalaccedilatildeo de que Paul Celan falou609

E continuamente

E assim se pode ver em toda a parte este padratildeo baacutesico do riacutetmico no qual noacutes mesmos

estamos inseridos como seres vivos E talvez toda a literacia real consista em natildeo

desaprender esta reconexatildeo riacutetmica e experimentaacute-la no oacutecio em tudo o que absorvemos

no mundo e na experiecircncia610

A formulaccedilatildeo moderna dos distintos conceitos de trabalhordquo e de oacutecio ndash bem

como as relaccedilotildees entre as diferentes realidades que designam ndash constitui a possibilidade

da determinaccedilatildeo e da regulaccedilatildeo do tempo como tempo de trabalho e tempo de natildeo-

trabalho Este uacuteltimo o tempo de natildeo-trabalho ndash definido tal como a sua designaccedilatildeo o

ilustra em relaccedilatildeo contraposta ao conceito de trabalho ndash diz respeito pois ao periacuteodo

do dia ou da noite que sucede ao periacuteodo laboral bem como ao domingo e ainda agraves

feacuterias (recorde-se que o periacuteodo de feacuterias concedido ao trabalhador constituiu uma

conquista histoacuterico-social que ainda natildeo se plenamente encontrava efetivada e regulada

nos iniacutecios do seacuteculo XIX) Importaria igualmente tomar em linha de conta os periacuteodos

de doenccedila enquanto parte integrante do tempo de natildeo-trabalho tal como ndash se bem

609 Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weise Maszlig (CD)Penzberg 1989 A este respeito assim escreve Gadamar Mas tambeacutem enquanto acordamos e dormimosEm alematildeo uso o termo Entschlafenen[algueacutem que natildeo mais acorda] Muito proacuteximos um do outroencontram-se o sono e a morte como o disse Heraacuteclito de modo inolvidaacutevel Poderiacuteamos ainda falar deuma das grandes particularidades dos deuses gregos pois o divino nunca dorme aqui mas estaacutepermanentemente desperto o divino natildeo conhece o ato de despertar mas este o despertar eacute de algumaforma um milagrerdquo (Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weiseMaszlig (CD) Penzberg 1989)610 Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weise Maszlig (CD)Penzberg 1989

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pretendermos tomar o ponto de vista da biografia do indiviacuteduo trabalhador ndash os anos da

infacircncia e da velhice Este quadro assim exposto assume com efeito a consideraccedilatildeo dos

complexos contornos que envolvem a relaccedilatildeo entre trabalhonatildeo-trabalho e tempo trata-

se pois de uma perspetivaccedilatildeo acerca das implicaccedilotildees entre trabalho e temporalidade

Analogamente cumpriria tomar em atenta anaacutelise a interseccedilatildeo entre

trabalhonatildeo-trabalho e o conceito de espaccedilo Em verdade a espacialidade ndash a

configuraccedilatildeo de conceccedilotildees espaciais especiais ndash determina e estabelece distintamente

os espaccedilos de trabalho (a oficina domeacutestica do artesatildeo o campo do agricultor as

primeiras faacutebricas etc) e os espaccedilos de oacutecio (o jardim e o parque o teatro o museu o

salatildeo o quarto o prado verde o barco sobre o lago etc) Assim a apreciaccedilatildeo da

oposiccedilatildeo entre trabalho por um lado e ldquotempo livrerdquo e ldquooacuteciordquo por outro exige a

consideraccedilatildeo da demarcaccedilatildeo entre espaccedilos de trabalho e espaccedilos privados uma

demarcaccedilatildeo que traduz igualmente uma envolvecircncia histoacuterico-social (conquanto nem

sempre passiacutevel de exata diferenciaccedilatildeo ndash um exemplo a evocar poderia ser o trabalho

em casa a tecelagem entre outros especialmente desempenhado por mulheres) A este

respeito o periacuteodo em torno de 1800 poderaacute apresentar-se como um momento de

transiccedilatildeo no acircmbito do qual a contraposiccedilatildeo acentuada entre espaccedilos de trabalho e

espaccedilos privados comeccedilara a implementar-se como uma nova realidade crescente

particularmente com a industrializaccedilatildeo e a proliferaccedilatildeo das faacutebricas A distinccedilatildeo entre

espaccedilos de trabalho e espaccedilos de oacutecio poderaacute ainda ser lida agrave luz de uma outra

interessante oposiccedilatildeo que se afigura elaborada segundo um certo desenvolvimento

semacircntico das noccedilotildees de cidade e de campo

Desde os tempos antigos a histoacuteria cultural tem conhecido uma infinidade de

lugares e de configuraccedilotildees espaciais que se destinam a permitir ao indiviacuteduo iniciar o

desenvolvimento da fruiccedilatildeo do oacutecio podendo em alguns casos traduzir-se como

efetivas expressotildees de uma disposiccedilatildeo individual para o oacutecio Enquanto os aristocratas

romanos por exemplo se retiravam para suas propriedades os priacutencipes modernos

encenavam o lugar da sua experiecircncia do oacutecio atraveacutes da construccedilatildeo de residecircncias

proacuteprias para tal fim geralmente integrando amplos jardins A construccedilatildeo destes

uacuteltimos tambeacutem considerados como lugares propiacutecios agrave contemplaccedilatildeo traduz uma

interessante continuidade histoacuterica que se prolonga no tempo desde a construccedilatildeo dos

jardins do mosteiro dos monges bem como dos parques da cidade nos quais os flacircneurs

burgueses do seacuteculo XIX procuravam a paz por contraste com o ruiacutedo das ruas mais

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agitadas de uma nova modernidade urbana ndash no caso de natildeo desejarem o escape da

floresta mais exoacutetica ou misteriosa ou a fuga para as paisagens arcaacutedicas da Itaacutelia O

conceito de paisagem belardquo ilustra o facto de nem todos os locais de oacutecio terem de ser

construiacutedos de raiz como tal ndash de um modo distinto certas praacuteticas espaacutecio-temporais

tais como os passeios a peacute ou as caminhadas podem transformar um qualquer local

indiferenciado num lugar de oacutecio Com efeito a cultura espacial do oacutecio manifesta-se

de forma muito variada e estaacute presente em numerosos locais o Jardim de Agostinho a

Biblioteca de Montaigne a Ilha de Rousseau e a Itaacutelia de Goethe encontram-se entre os

topoi mais culturalmente evocados do oacutecio

Tendo presente tal quadro teoacuterico alguns estudiosos do oacutecio tecircm-se dedicado agraves

suas condiccedilotildees e manifestaccedilotildees espaciais ndash o que talvez aconteccedila devido a um certo

gosto pela fenomenologia da espacialidade Vaacuterias abordagens acerca da espacialidade

do oacutecio podem aqui ser mencionadas e distinguidas tendo em conta diferentes

meacutetodos de anaacutelise dos aspetos de tal realidade e diferentes niacuteveis da sua descriccedilatildeo

Assim alguns estudos satildeo dedicados agrave descriccedilatildeo detalhada de espaccedilos concretos de

oacutecio particularmente configuraccedilotildees arquitetoacutenicas ou naturais que em virtude das suas

caracteriacutesticas se apresentam adequados para permitir ao indiviacuteduo o desenvolvimento

de situaccedilotildees de oacutecio Esta abordagem sustenta-se no pressuposto de que os espaccedilos de

oacutecio satildeo com efeito espaccedilos artificialmente construiacutedos ou produzidos de acordo com a

possibilidade de efetuaccedilatildeo de tal experiecircncia ndash satildeo pois espaccedilos criados segundo o

propoacutesito da promoccedilatildeo do favorecimento da fruiccedilatildeo do oacutecio Guumlnter Figal chama a

atenccedilatildeo para tal afinidade da experiecircncia do oacutecio com certos locais que lhe satildeo neste

sentido conformes O oacutecio procura e encontra os seus lugares e espaccedilos611

Tal observaccedilatildeo sugere vaacuterias interrogaccedilotildees quais as caracteriacutesticas que

predestinam um determinado espaccedilo como espaccedilo de oacutecio tais caracteriacutesticas revelam

modos de continuidade antropoloacutegica no acircmbito de diferentes tempos e contextos ou

ao inveacutes cada eacutepoca produz para si mesma os seus proacuteprios espaccedilos especiacuteficos Tal

como Figal esclarece o facto de um certo gosto pela construccedilatildeo de jardins banhos

museus e outros locais de oacutecio percorrer a histoacuteria cultural europeia parece constituir

uma indicaccedilatildeo de que existe uma consciecircncia histoacuterica do efeito favoraacutevel de certos

611 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p26

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enquadramentos espaciais do oacutecio Por sua vez uma outra abordagem relativa ao

estudo da espacialidade do oacutecio consiste natildeo em examinar os espaccedilos de oacutecio mas em

descrever o proacuteprio oacutecio metaforicamente como um espaccedilo de acordo com tal postura

de anaacutelise Maeumll Renouard define o oacutecio como um espaccedilo propiacutecio agrave reflexatildeo ldquoLe

recueillement promis par lrsquootium concerne les conditions de la penseacutee Il est lrsquoespace ougrave

elle est possiblerdquo612 A vantagem argumentativa de tal posiccedilatildeo revela-se clara se

tomarmos o oacutecio como uma unidade espacial podemos delimitaacute-lo por contraste com

outros espaccedilos sociais tais como o espaccedilo de trabalho da economia ou da poliacutetica A

dicotomia estrutural entre o oacutecio e o mundo quotidiano pode ser mais facilmente

conceptualizada como uma oposiccedilatildeo espacial ndash o oacutecio apresenta-se descrito como uma

realidade aleacutem do trabalho e aleacutem do tempo livre613

Nesse sentido Peter Philipp Riedl identifica o oacutecio com os espaccedilos livres que

permitem o afastamento de todos os mecanismos coercitivos sociais e poliacuteticos da

modernidade614 Assim o oacutecio assume-se compreendido como um domiacutenio da vida

humana que se determina por seu turno como uma condiccedilatildeo possibilitadora de certos

processos cognitivos ou praacuteticos no oacutecio o homem pode pensar sobre si mesmo

realizar-se Por fim uma terceira abordagem integra ainda os estudos acerca da

espacialidade do oacutecio segundo esta uacuteltima postura de anaacutelise o oacutecio perspetivado sob

o tiacutetulo da espacialidade anuncia-se como a experiecircncia de um sujeito que se

caracteriza pela perceccedilatildeo intensificada do espaccedilo circundante trata-se pois de uma

perspetiva de pendor fenomenoloacutegico que compreende o oacutecio como a possibilidade de

experiecircncia de uma existecircncia espacial [desenvolvida pelo sujeito] que estaacute no mundo

e ao mesmo tempo perante o mundo615 O individuo ao dirigir o seu olhar para o seu

ambiente envolvente ndash aqui apresentam-se novamente evocados os velhos conceitos de

theoria e de contemplatio ndash desenvolve a experiecircncia do espaccedilo que se anuncia

inteiramente como o foco da sua atenccedilatildeo e assim se transfigura o espaccedilo assim

contemplado em espaccedilo de oacutecio A caracteriacutestica especial do olhar que o individuo

612 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p73613 Reinhard W Die fruumlhneuzeitliche Wende Von der sbquoVita contemplativalsquo zur sbquoVita activalsquo In WulfCJorg Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p9614 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 26615 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32

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dirige ao espaccedilo (de oacutecio) reside justamente na abstraccedilatildeo dos processos temporais e na

integraccedilatildeo de vaacuterias impressotildees num todo espacial

A observaccedilatildeo contemplativa desenvolvida numa experiecircncia de oacutecio de uma praccedila

urbana deteacutem-se menos no ir-e-vir do que o panorama geral e no movimento da proacutepria

observaccedilatildeo Assim se pode ver como acontece em todas as observaccedilotildees contemplativas

desenvolvidas no oacutecio tudo no espaccedilo ndash no jogo da distacircncia e da proximidade na

pertenccedila conjunta do que eacute exterior no espaccedilo livre do grande horizonte em que algo se

pode mostrar Este espaccedilo livre permite que tudo aquilo que estaacute dentro de si ou tudo

aquilo que em si entre se afigure pois simultacircneo616

Importaria elucidar que de acordo com esta uacuteltima abordagem acerca da

espacialidade do oacutecio ndash uma abordagem marcada por um cariz eminentemente

fenomenoloacutegico ndash o conceito de tempo poder-se-ia constituir igualmente como uma

determinaccedilatildeo integrante No acircmbito de tal abordagem fenomenoloacutegica cumpre

perspetivar a experiecircncia do espaccedilo enquanto experiecircncia do oacutecio agrave luz de uma

possibilidade de relaccedilatildeo ndash ou de modo rigoroso contrarrelaccedilatildeo ndash face ao ldquocaso

normalrdquo ou seja o contexto da vida quotidiana distante da fruiccedilatildeo do oacutecio Se a

experiecircncia do oacutecio eacute caracterizada por um estado de tempo excecional que rompe

com a administraccedilatildeo diaacuteria e a mediccedilatildeo do tempo como um recurso econoacutemico escasso

entatildeo tal experiecircncia do oacutecio poderaacute com justeza ser perspetivada como uma exceccedilatildeo

ou desvio dos modos de perceccedilatildeo usual do espaccedilo De acordo com a premissa

fenomenoloacutegica quem experimenta o oacutecio natildeo perceciona um mero espaccedilo limitado que

pode ser utilizado e preenchido com objetos quotidianos em vez disso no acircmbito do

espaccedilo do oacutecio emergem as qualidades do proacuteprio espaccedilo perante o qual o sujeito se

coloca numa relaccedilatildeo individual Na histoacuteria da cultura existem muacuteltiplos exemplos de

tal fruiccedilatildeo do oacutecio num contexto espacial ao inveacutes de temer a floresta ou de evitaacute-la

enquanto fonte de perigo atravessando-a pelo caminho mais raacutepido a burguesia do

seacuteculo XVIII passara a procurar a floresta para tomaacute-la como o lugar das suas

caminhadas sem rumo e sem destino definidos agrave partida O mesmo se pode dizer das

montanhas que neste mesmo periacuteodo cultural deixaram de ser consideradas como um

lugar de terra incognita para serem perspetivadas como um lugar de autoconhecimento

Natildeo se trata pois de possibilidades de alteraccedilatildeo ou de mudanccedila constitutivas do espaccedilo

enquanto tal mas sobretudo da perceccedilatildeo do espaccedilo que passara a ser apreciado como

616 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p30

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adequado para praacuteticas de movimento em oacutecio e em contemplaccedilatildeo Tais espaccedilos natildeo

satildeo pois procurados por razotildees econoacutemicas ou sociais mas sim como novos lugares

propiacutecios agrave experiecircncia e agrave aventura

Tal como a dimensatildeo temporal do oacutecio pode ser compreendida agrave luz da noccedilatildeo de

destemporalizaccedilatildeordquo assim a espacializaccedilatildeo oferece-se neste ponto como uma

expressatildeo conceptual passiacutevel de descrever a mudanccedila de perceccedilatildeo que promove a

atenccedilatildeo dedicada agraves qualidades do espaccedilo617 A perceccedilatildeo do espaccedilo quanto experiecircncia

de oacutecio apresenta-se por conseguinte baseada num processo semacircntico num contexto

de experiecircncia do oacutecio o espaccedilo deixa de ser tomado como um facto fiacutesico ou

geograacutefico para ser concebido como um lugar significativo A semantizaccedilatildeo do espaccedilo

pode com efeito decorrer de processos coletivos bem como de criaccedilotildees individuais

ou em muitos casos de ambas as situaccedilotildees Ao atribuir significado a um espaccedilo

indefinido o indiviacuteduo pode tomar esse mesmo espaccedilo (objetivo) transfigurando-o e

determinando-o subjetivamente e assim tornaacute-lo um lugar de oacutecio A utilizaccedilatildeo

diferenciada dos termos espaccedilo e lugar cujas definiccedilotildees e relaccedilotildees natildeo satildeo

consensualmente perspetivadas na teoria do espaccedilo618 desenvolvida ateacute ao momento

pretende dar conta da seguinte distinccedilatildeo enquanto o espaccedilo representa uma estrutura e

uma disposiccedilatildeo a priori os lugares constituem-se somente atraveacutes da diferenciaccedilatildeo de

espaccedilos diferentes do estabelecimento de fronteiras e sobretudo da atribuiccedilatildeo de

significado a uma determinada estrutura topograacutefica topoloacutegica ou social

A passagem do espaccedilo para o lugar ndash a configuraccedilatildeo da experiecircncia do oacutecio ndash

natildeo se apresenta inteiramente anaacuteloga agrave passagem da perceccedilatildeo objetiva para a perceccedilatildeo

subjetiva do tempo conquanto tal relaccedilatildeo se afigure pelo menos estruturalmente

semelhante pois enquanto o espaccedilo se constitui como uma realidade mais ou menos

divisiacutevel e mensuraacutevel em termos objetivos jaacute a conexatildeo do lugar com um eu que

estaacute aqui e tambeacutem designa esse ser aqui eacute de importacircncia excecional619 Segundo

Jacques Derrida o lugar pode ser compreendido como um lugar ocupadoequipado

617 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p31618 Sobre os termos espaccedilo e lugar e as suas diferentes relaccedilotildees no curso da histoacuteria da filosofiaconsultar Waldenfels B Ortsverschiebungen Zeitverschiebungen Modi leibhaftiger ErfahrungFrankfurt a M 2009 p31 Guumlnzel S Raumkehren In Guumlnzel S (ed) Raum Ein interdisziplinaumlresHandbuch StuttgartWeimar 2010 pp 77ndash120619 Waldenfels B Ortsverschiebungen Zeitverschiebungen Modi leibhaftiger Erfahrung Frankfurt aM 2009 p32

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(lieu investi) por contraste com o espaccedilo abstrato620 A fonte na floresta soacute se torna um

lugar quando se distingue conceptualmente do espaccedilo circundante e ndash tal como locus

amoenus na literatura por exemplo ndash se afigura suscetiacutevel de integrar um significado

cultural Distintamente um espaccedilo arquitetoacutenico tal como uma construccedilatildeo significativa

criada pelo homem jaacute eacute sempre um lugar Com efeito nem todos os lugares se

apresentam de raiz como lugares de oacutecio do mesmo modo a semacircntica que configura

um lugar enquanto tal natildeo se afigura vinculativa para todos os indiviacuteduos de uma

comunidade nem vaacutelida independentemente do contexto ndash trata-se pois de perspetivar

a atitude dos sujeitos em relaccedilatildeo ao espaccedilo atitude passiacutevel de configuraccedilatildeo desse

mesmo espaccedilo em lugar (tenha-se presente pois que o mesmo espaccedilo ndash por exemplo

uma praccedila urbana movimentada ndash pode ser perspetivada por um sujeito como o espaccedilo

do seu negotium e por outro sujeito ndash digamos um flacircneur ndash como o lugar da sua

flacircnerie esteacutetica)

A perceccedilatildeo do espaccedilo constitui-se como a pedra de toque de tais consideraccedilotildees

a percepccedilatildeo do espaccedilo enquanto lugar representa uma situaccedilatildeo ou desvio da atitude

quotidiana perante o espaccedilo Neste sentido e analogamente ao conceito de

heterocronia a espacialidade do oacutecio pode assim ser definida como uma

heterotopia Michel Foucault designa de heacuteteacuterotopies um certo tipo de lugares que

estatildeo inscritos em cada cultura de forma semelhante ao que se passa nas utopias nas

heterotopias os mecanismos de ordem regular de uma sociedade satildeo simultaneamente

representados questionados e invertidos (agrave la fois repreacutesenteacutes contesteacutes et inverseacutes)

Todavia ao contraacuterio das utopias ficcionais as heterotopias estatildeo ligadas a lugares reais

(lieux reacuteels) Enquanto utopias ldquoeffectivement reacutealiseacuteesrdquo as heterotopias possuem um

estatuto paradoxal satildeo ldquodes sortes de lieux qui sont hors de tous les lieux bien que

pourtant ils soient effectivement localisablesrdquo Por outras palavras as heterotopias

formam uma espeacutecie de contra-lugar onde as regras e os processos de uma sociedade

satildeo interrompidos ou invertidos Esta eacute a sua caracteriacutestica saliente eles satildeo

ldquoabsolument autres que tous les emplacements qursquoils reflegravetentrdquo621

A partir da consideraccedilatildeo de tal caracteriacutestica que determina e envolve a

Heterotopia poderemos compreender e descrever tambeacutem o caraacutecter espacial

620 Derrida J Chōra Wien 1990 p42621 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p755

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excecional do oacutecio Algumas heterotopias mencionadas por Foucault ndash tais como jardins

ndash correlacionam-se com os lugares ldquoclaacutessicosrdquo do oacutecio622 Natildeo obstante para aleacutem das

formas concretas de realizaccedilatildeo o oacutecio per se pode ser considerado agrave luz de estruturas

heterotoacutepicas se as compreendermos como desvios do modo funcional normal de uma

sociedade Foucault refere-se explicitamente agrave realidade da oisiveteacute como um

exemplo de tal heterotopia de desvio (heacuteteacuterotopie de deacuteviation) pois dans notre

socieacuteteacute ougrave le loisir est la regravegle loisiveteacute forme une sorte de deacuteviation623 O conceito

tambeacutem oferece pontos de partida relevantes para uma segunda observaccedilatildeo a de que a

alteridade do oacutecio consiste acima de tudo numa perceccedilatildeo alterada e profundamente

subjetiva dos lugares e dos tempos Rainer Warning por seu turno descreveu as

heterotopias como ldquoespaccedilos de experiecircncia esteacutetica e assim elucidou sobre a

possibilidade de determinar o modo especiacutefico de perceccedilatildeo de uma heterotopia literaacuteria

de oacutecio624 Segundo o Warning as heterotopias surgem de uma

[] convergecircncia do sujeito da escrita com um espaccedilo real que pode ser experimentado e

mantido imaginativamente como outro espaccedilo com base em certas caracteriacutesticas de

modo que as ocupaccedilotildees jaacute existentes deste espaccedilo pelo imaginaacuterio social possam

acomodar esta correspondecircncia como eacute o caso da maioria dos exemplos do cataacutelogo de

Foucault conquanto natildeo dependentes de tais especificaccedilotildees625

No espiacuterito de Foucault Warning sustenta assim que natildeo eacute o espaccedilo enquanto

tal que determina o seu estatuto de homotopia (isto eacute de lugar regular) ou de

heterotopia mas sim a atitude do autor ou do narrador relativamente a esse mesmo

espaccedilo No entanto o espaccedilo pode ter caracteriacutesticas que o distinguem de tal forma que

convidam o sujeito a uma interpretaccedilatildeo heterotoacutepica626 Por essas caracteriacutesticas do

espaccedilo Warning compreende certos estiacutemulos do imaginaacuterio que movem o sujeito da

622 Designadas de espaces ou lieux autres as heterotopias segundo Foucault tecircm origem na ideia deum espaccedilo fundamentalmente heterogeacuteneo ao qual tambeacutem devem o seu nome Os espaccedilos no espaccedilo satildeodemarcados do conjunto maior (tais como utilizando um dos exemplos de Foucault os lares de idosos)ou excluiacutedos dele Foucault menciona assim os hospitais psiquiaacutetricos ou as prisotildees como ilustraccedilatildeo detal conceito Independentemente de se tratar de exclusatildeo ou de marginalizaccedilatildeo os espaccedilos de oacuteciorequerem uma demarcaccedilatildeo a fim de os distinguir dos outros espaccedilos e por assim dizer de os protegerdestes pois o oacutecio eacute suscetiacutevel de perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da sua diferenccedilaTraduzido com a versatildeo gratuita do tradutor - wwwDeepLcomTranslator623 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p757624 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009625 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p21626 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p21

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concentraccedilatildeo na realidade para o modo da imaginaccedilatildeo Warning menciona alguns

exemplos que tambeacutem podem ser concebidos como situaccedilotildees de oacutecio

Tal pode ser a solidatildeo a beleza da natureza e a distacircncia da civilizaccedilatildeo para os quais um

sujeito danificado pela civilizaccedilatildeo se sente atraiacutedo Mas tambeacutem pode ser simplesmente

um banco protegido que convida a permanecer na azaacutefama da grande cidade ou mesmo

um barracatildeo de madeira que limita um potencial local de construccedilatildeo um terrain vague

[] As heterotopias literaacuterias constituem-se a partir de tais encontros entre os estiacutemulos

do imaginaacuterio com um sujeito que por eles pode ser influenciado627

Em uacuteltima anaacutelise a forccedila imaginativa do sujeito ndash eventualmente colocada

em movimento atraveacutes de estiacutemulos do espaccedilo ndash decide sobre a transformaccedilatildeo de uma

homotopia em heterotopia Natildeo eacute por acaso que Warning elucida e sustenta as suas teses

recorrendo a exemplos de textos literaacuterios que se afiguram culturalmente centrais para a

compreensatildeo moderna do oacutecio incluindo a quinta promenade de Les Recircveries du

promeneur solitaire de Rousseau No episoacutedio da Icircle Saint Pierre Rousseau introduz as

mais importantes caracteriacutesticas baacutesicas do idiacutelio sobretudo o foco espacial a beleza

da natureza a falta de sujet a sensaccedilatildeo de proteccedilatildeo e seguranccedila a ausecircncia de

conflitos O sujeito pode aqui assim sublinha Warning imergir-se em formas

simples de vida oacutecio para atividades criativas e de prazer em outras palavras um

mundo de fantasia euforicamente afinado como um todo628 No episoacutedio da Icircle Saint

Pierre Rousseau contrasta a heterotopia de oacutecio da ilha com a normalidade agitada da

metroacutepole de Paris Assim Warning conclui com a tese aqui apresentada sobre a

espacializaccedilatildeo e a destemporalizaccedilatildeo da perceccedilatildeo excecional A intensidade espacial

do silecircncio e da solidatildeo na quinta Recircverie de Rousseau corresponde a uma reduccedilatildeo da

intensidade temporal ao ponto da ilusatildeo de um stans nunc privado do tempo []629

Segundo Hermann Luumlbbe a possibilidade de experiecircncia de tal nunc stans ndash

experienciado por Rousseau na mencionada Recircverie como um eminente tempo de oacutecio ndash

encontra-se perniciosamente submetida nas nossas sociedades contemporacircneas a uma

atrofia do presente630 (Gegenwartsschrumpfung) tendo em conta que de acordo com

Luumlbbe a experiecircncia do tempo vivenciada na modernidade tardia se determina por uma

627 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p29628 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p43629 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p37630 Luumlbbe H Gegenwartsschrumpfung In Backhaus KHolger Bonus H (ed) Die Beschleunigungsfalle oder der Triumph der Schildkroumlte Stuttgart 1998 pp263-293

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crescentemente nociva estadia mais curta no presente631 Aqui encontramo-nos pois

no centro das discussotildees contemporacircneas sobre as tendecircncias de aceleraccedilatildeo na

modernidade tardia A este respeito voltemos a Hartmut Rosa

O pressuposto formulado por Luumlbbe de que as sociedades modernas no sentido desta

definiccedilatildeo experimentam um contiacutenuo encolhimento endoacutegeno isto eacute uma atrofia do

presente sistematicamente autogerado em resultado de uma crescente velocidade de

obsolescecircncia ou de uma incessante compressatildeo da inovaccedilatildeo socioculturais assume

agora uma importacircncia decisiva632

Estas satildeo razotildees essenciais para a configuraccedilatildeo de uma experiecircncia de

compressatildeo do tempo sob a qual se tenta processar culturalmente a acumulaccedilatildeo de

inovaccedilatildeo condensada temporalmente O resultado dessa relaccedilatildeo modificada com o

tempo poderaacute ser enunciado por exemplo atraveacutes de um aumento do nuacutemero de

episoacutedios de vida por unidade de tempo De acordo com Rosa a maacutexima cultural da

sociedade moderna tardia eacute a seguinte quantos mais e quanto mais intensos satildeo os

episoacutedios de experiecircncia que podem ser provados de modo a enriquecer a vida interior

em menos tempo mais interessante seraacute a vida dos sujeitos contemporacircneos Saborear e

desfrutar a vida relacionam-se pois com a possibilidade de ter tempo ou por outras

palavras com a possibilidade de se entregar temporariamente ao intemporal Saborear e

desfrutar de algo de modo acelerado resulta em verdade numa contradictio in adjecto

Neste contexto poder-se-ia igualmente referir a hiperatividade da cultura

contemporacircnea Byung Chul Han interpreta a cultura da aceleraccedilatildeo da seguinte forma

Eacute precisamente agrave vida nua radicalmente transitoacuteria que se reage com a hiperatividade

com a histeria do trabalho e da produccedilatildeordquo633

Tal como sublinha Rosa no contexto da modernidade tardia o encurtamento e a

compressatildeo dos episoacutedios da experiecircncia conduzem a uma fragmentaccedilatildeo das estruturas

do tempo bem como a uma alteraccedilatildeo significativa na experiecircncia do tempo e na

perceccedilatildeo do seu raacutepido fluxo634 As vaacuterias accedilotildees individuais afiguram-se diacutespares

profundamente acompanhadas pelo sentimento de cumprir um dever e satildeo

percecionados como realizaccedilotildees insatisfatoacuterias incompletas privadas de qualquer

631 Luumlbbe H Im Zug der Zeit Verkuumlrzter Aufenthalt in der Gegenwart Heidelberg 1994632 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt a M 2012 p192633 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p37634 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p203

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sentido de plenitude Tal explica-se agrave luz do facto de que a soma de tais accedilotildees e

episoacutedios natildeo resultar numa experiecircncia concebida como uma totalidade significativa

natildeo constituindo uma narrativa mas sim consistir na justaposiccedilatildeo de vivecircncias natildeo

mediadas fragmentadas natildeo promovendo uma experiecircncia efetiva e subjetivamente

satisfatoacuteria Na sua ausecircncia de contextualidade e de espacializaccedilatildeo as experiecircncias e

accedilotildees individuais natildeo adquirem a qualidade de memoacuterias enriquecidas com qualidades e

componentes sensuais A ldquoatrofia do presenterdquo (Gegenwartsschrumpfung) tal como

descrita por Luumlbbe e perspetivada segundo a consideraccedilatildeo das atuais tendecircncias de

aceleraccedilatildeo da modernidade tardia poderia ser contrariada por um ldquoaumento do

presenterdquo (Gegenwartsvergroumlszligerung) de acordo com o qual se possibilitaria que no

acircmbito de uma determinada experiecircncia de oacutecio o tempo presente fosse efetivamente

vivenciado como um nunc permanens A este respeito poder-se-ia evocar

Schopenhauer e a sua formulaccedilatildeo da primeira e mais importante regra da sua

Eudemonologia ldquoNatildeo deve ser tolo ter sempre a certeza de que se aprecia o presente

tanto quanto possiacutevel uma vez que a vida como um todo eacute apenas um pedaccedilo maior do

presenterdquo635

635 Schopenhauer A Die Kunst gluumlcklich zu sein Muumlnchen 2018 p11

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22 | Pierre Hadot sobre Goethe da vivecircncia do presente como exerciacutecio

espiritual

Natildeo cuida a alma de futuro nem passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte e fado

Goethe Faust II

Um dos mais belos livros dedicados agrave questatildeo do tempo de um ponto de vista

eminentemente eacutetico eacute Natildeo te esqueccedilas de viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios

Espirituais (2008) de Pierre Hadot O livro de Hadot cujo capiacutetulo I se debruccedila sobre a

questatildeo da vivecircncia plena do tempo presente a partir do pensamento de Goethe introduz

a temaacutetica filosoacutefico-eacutetica do ldquoexerciacutecio espiritualrdquo enquanto Bildung enquanto

formaccedilatildeo-de-si e em uacuteltima instacircncia enquanto praacutetica-de-si

A expressatildeo ldquoexerciacutecio espiritualrdquo que foi utilizada por um certo nuacutemero de historiadores

do pensamento como Louis Gernet e Jean-Pierre Vernant ou autores como Georges

Friedmann natildeo tem uma conotaccedilatildeo religiosa apesar do que pensam alguns criacuteticos A

expressatildeo estaacute relacionada com actos do intelecto ou da imaginaccedilatildeo ou mesmo da

vontade que se caracterizam pela sua finalidade graccedilas a eles o indiviacuteduo esforccedila-se por

transformar a sua maneira de ver o mundo com o objectivo de se transformar a si proacuteprio

Natildeo tem que ver com o informar-se mas com o formar-se636

Tal como nos elucida Hadot no prefaacutecio que apresenta o seu livro o tiacutetulo da

obra em questatildeo ndash Natildeo te esqueccedilas de viver ndash constitui a evocaccedilatildeo de uma maacutexima

goethiana assumindo-se como a luz orientadora do delineamento das teorizaccedilotildees

propostas pelo historiador da filosofia particularmente no que concerne agrave apreciaccedilatildeo do

exerciacutecio espiritual tatildeo caro a Goethe de concentraccedilatildeo absoluta no instante presente de

vivecircncia plena do momento presente num sentido eacutetico que convoca as mais eminentes

perspetivaccedilotildees relativas agrave temporalidade desenvolvidas no acircmbito do estoicismo e do

epicurismo A sugestatildeo de uma alianccedila entre as posiccedilotildees de Goethe e a praacutetica antiga

dos exerciacutecios espirituais como modos de formaccedilatildeo-de-si e de constituiccedilatildeo de um

636 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p11

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sentido de afinidade harmoniosa entre o indiviacuteduo e a totalidade do ser traduz com

efeito um dos eixos filosoacuteficos que orienta a referida obra de Hadot

ldquoNatildeo cuida a alma de futuro nem passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte

e fadordquo637 trata-se dos ceacutelebres versos de Fausto II que marcam o momento da uniatildeo

entre os dois amantes Fausto e Helena e aos quais Hadot vai conceder as suas melhores

atenccedilotildees Tais versos que traduzem a uniatildeo de dois tempos duas culturas duas

metafiacutesicas ndash Fausto o protoacutetipo do homem moderno e Helena a figura que evoca a

beleza antiga ndash constituiu-se como um diaacutelogo amoroso desdobrando-se nos seus

versos rimados (eacute o momento da aprendizagem por Helena e atraveacutes da matildeo de Fausto

a arte da rima) que ilustra o momento de intenso e pleno presente como que isento de

passado e de futuro no qual dois amantes desfrutam da presenccedila absoluta um do outro

sem nada mais desejar ou aspirar Tal como esclarece Hadot tais versos ecoam outros

tantos os da Elegia de Marienbad ldquoNatildeo te restou esperanccedila acircnsia desejo Era esta a

meta do mais iacutentimo anelordquo638 O desvanecimento do passado ou do futuro concertado

com a fruiccedilatildeo total da felicidade no instante presente anuncia-se como expressatildeo do

encontro entre dois amantes a que tambeacutem Fausto e Helena deram corpo representando

poeticamente a uniatildeo entre o moderno e o antigo num ponto temporal que eacute o da arte

Todavia tal como elucida Hadot os ceacutelebres versos que compotildee o diaacutelogo amoroso

entre Fausto e Helena poderatildeo ser lidos a partir de um outro niacutevel de interpretaccedilatildeo

trata-se com efeito da ilustraccedilatildeo do momento em que Fausto se depara com a sageza

antiga com a antiga arte de viver que reclama um outro sentido de temporalidade que

Fausto ateacute entatildeo desconhecia por completo ndash a dedicaccedilatildeo absoluta ao instante presente

Assim escreve Hadot

De facto para Goethe era precisamente essa a caracteriacutestica da vida e da arte antigas

saber viver no presente conhecer aquilo a que ele chamava como veremos a ldquosauacutede do

momentordquo Como afirma Siegfried Morenz ldquoEssa natureza particular da Greacutecia ningueacutem

a caracterizou melhor do que Goethe [hellip] no diaacutelogo entre Fausto e Helena quando o

alematildeo ensina agrave heroiacutena grega a arte da rima Entatildeo ldquoNatildeo cuida a alma de futuro nem de

passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte e fadordquo [hellip] Ao Fausto niilista que apostou

com Mefistoacutefeles que nunca diria ao instante ldquoSuspende-te tu que eacutes tatildeo belordquo a antiga e

nobre Helena depois da inocente Margarida revela o esplendor do ser isto eacute do instante

637 Goethe JW Fausto II Ato III vv9382-9384 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe ea Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p15638 Goethe JW Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p18

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presente e convida-o a dizer sim ao instante ao mundo e a ele proacuteprio639

Como compreender a expressatildeo goethiana ldquosauacutede do momentordquo Segundo

Hadot tal expressatildeo constitui-se como uma formulaccedilatildeo que Goethe desenvolvera num

acircmbito esteacutetico especialmente no contexto de uma reflexatildeo a propoacutesito das pinturas

murais de Herculano e de Pompeia e que conduzira o poeta ao delineamento de uma

perspetivaccedilatildeo de pendor eminentemente eacutetico o exerciacutecio espiritual de absoluta

concentraccedilatildeo no presente tatildeo caro aos homens antigos e do qual os modernos pouco ou

nada sabem pois estes afiguram-se perdidos de um sentido de temporalidade plena

dispersando-se entre a nostalgia do passado e acircnsia do futuro O escrito evocado por

Hadot eacute uma carta a Zelter datada de outubro de 1829 na qual Goethe desenvolve a sua

visatildeo acerca de duas noccedilotildees afins a de presente e a de presenccedila correspondentemente

atualidade temporal e proximidade especial ambas expressas atraveacutes da mesma palavra

Gegenwart Leiamos a passagem em questatildeo

A presenccedila tem realmente qualquer coisa de absurdo imaginamos que eacute assim vemos

sentimo-nos Confiamos nisso Mas natildeo temos consciecircncia do benefiacutecio que podemos tirar

desses instantes Queremos dizer o seguinte O ausente eacute uma pessoa ideal enquanto as

pessoas que estatildeo aiacute presentes aparecem aos olhos umas das outras como triviais Eacute de

facto muito estranho que devido agrave realidade da presenccedila o ideal desapareccedila quase por

completo Seraacute provavelmente por essa razatildeo que para os Modernos o ideal apenas se

manifesta como nostalgia640

A passagem afigura-se interessantemente pertinente quando lida do ponto de

vista da contraposiccedilatildeo entre Goethe e os romacircnticos seus contemporacircneos em verdade

de acordo com Goethe a postura filosoacutefica romacircntica de aspiraccedilatildeo incessante do ideal

constitui-se como uma postura a depreciar Recorde-se a este respeito a relevante

dicotomia apresentada por Schiller entre poesia ingeacutenua e poesia sentimental natildeo eacute em

verdade a poesia sentimental ndash a poesia moderna romacircntica ndash definida agrave luz do conceito

de ideal A impossibilidade romacircntica de afirmaccedilatildeo do instante pleno e da presenccedila

viva do ser a favor da postulaccedilatildeo de modos de nostalgia pelo passado ou de formas de

aspiraccedilatildeo de entidades ou determinaccedilotildees ideais natildeo passiacuteveis de cumprimento ou

realizaccedilatildeo efetivas assume-se como uma das caracteriacutesticas que revelam a falecircncia do

639 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p19640 Goethe JW Carta a Zelter de 19 de outubro de 1829 Goethes Briefe HA vol4 P346 ApudHadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p20

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homem moderno em dedicar-se de modo total ao instante presente A evasatildeo

romacircntica relativamente ao momento presente anuncia-se pois como alvo de rejeiccedilatildeo e

de condenaccedilatildeo por parte de Goethe trata-se neste sentido de censurar aos romacircnticos a

sua incapacidade de perspetivar o instante presente como prenhe de intensidade de

experiecircncia e de sentido e agrave luz do qual a existecircncia humana pode nas palavras de

Hadot ldquoreencontrar dignidade e nobrezardquo641 O sentido eacutetico da dedicaccedilatildeo total ao

momento presente ndash jaacute entrevisto e desenvolvido pelos homens da antiguidade ndash

constitui-se como o fundo das posiccedilotildees de Goethe a este respeito

Por conseguinte a adesatildeo ao instante presente e agrave presenccedila viva do ser afirma-

se pois como a postura eacutetica representativa da designaccedilatildeo goethiana ldquoa sauacutede do

momentordquo Tenhamos presente a seguinte passagem da jaacute mencionada carta a Zelter

desta feita a propoacutesito das pinturas de Herculano e de Pompeia

Aiacute se encontra o que haacute de mais maravilhoso na Antiguidade para quem pode ver ver

com os seus proacuteprios olhos a sauacutede do momento [die Gesundheit des Moments] e todo o

seu valor Porque essas pinturas desaparecidas devido a uma cataacutestrofe atroz continuam a

ter a mesma frescura depois de quase dois mil anos a ser tatildeo belas tatildeo agradaacuteveis como

no momento de felicidade e de bem-estar que precedeu o seu terriacutevel desaparecimento Se

nos interrogarmos sobre o que representam ficaremos talvez embaraccedilados com a resposta

Por ora direi o seguinte essas figuras transmitem esse sentir o instante deve estar prenhe

bastando-se a si proacuteprio para que possa vir a ser uma cesura digna no tempo e na

eternidade642

A reflexatildeo esteacutetica traccedilada por Goethe a respeito das pinturas de Herculano e de

Pompeia desenvolve-se sob uma tonalidade eminentemente eacutetica permitindo ao poeta o

contacto e o conhecimento com uma singular sageza que afirma a adesatildeo incondicional

ao instante prenhe de sentido ndash aquilo a que os gregos chamavam o kairoacutes ndash e a

correlativa comunhatildeo do indiviacuteduo com a presenccedila viva dos seres e das coisas

Importaria a este respeito chamar a atenccedilatildeo para o caraacutecter problemaacutetico ou

inclusivamente controverso da idealizaccedilatildeo do homem antigo que subjaz agraves visotildees de

Goethe ndash assim como como bem sabemos das posturas eacuteticas e esteacuteticas das geraccedilotildees

culturais dos seacuteculos XVIII e XIX (pense-se em Schiller ou em Houmllderlin por

exemplo) Tal idealizaccedilatildeo Greacutecia e do espiacuterito grego assume-se pois como resultado

641 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p22642 Goethe JW Carta a Zelter de 19 de outubro de 1829 Goethes Briefe HA vol4 Pp346-347Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p22

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das influentes teorizaccedilotildees esteacuteticas de Winckelmann especialmente no que concerne agrave

perspetivaccedilatildeo da escultura claacutessica grega enquanto modo mais elevado de realizaccedilatildeo

artiacutestica humana Interessantemente de acordo com o estudioso francecircs Roger Ayrault

autor do estudo La Geacutenese du romantisme allemand (1961-1976) a leitura intensa de

Winckelmann pelas geraccedilotildees posteriores contribuiacutera para a irrupccedilatildeo de uma ldquocrise

esteacuteticardquo no contexto cultural germacircnico agrave luz da qual se poderaacute compreender a origem

do sentimento de melancolia romacircntica associado agrave consciecircncia de impossibilidade de

realizaccedilatildeo de objetos artiacutesticos que se encontrariam em plena comunhatildeo com a arte da

antiguidade a mais elevada que a humanidade alguma vez produzira tal como

Winckelmann afirmara

Natildeo obstante o caraacutecter problemaacutetico ou controverso da idealizaccedilatildeo do espiacuterito

grego num acircmbito germacircnico ndash viveriam de facto os antigos gregos segundo a ldquosauacutede

do momentordquo tal como crera Goethe ndash cumpriria assim sustenta Hadot atentar com

devido rigor sobre a vontade filosoacutefica tal como mantida pelos gregos de ldquoencontrar a

paz da alma atraveacutes da transformaccedilatildeo de si e do modo de olhar o mundordquo643 Natildeo se

trata pois de postular de modo decisivo a existecircncia de uma serenidade inata como

que inconsciente por parte do homem grego e que estaria na origem do seu modo de

saber viver aderindo incondicionalmente ao instante presente Talvez tal serenidade se

afigurasse como uma serenidade conquistada ndash e tal esforccedilo da vontade desenvolvida

pelo homem grego natildeo deveraacute constituir objeto de suspeiccedilatildeo teoacuterica

Tal vontade filosoacutefica esclarece Hadot poderaacute em verdade ser vislumbrada jaacute

no periacuteodo arcaico Quando um dos Sete Saacutebios Piacutetaco escreve que a melhor coisa eacute

ldquofazer bem o presenterdquo644 ou seja concentrar-se na accedilatildeo presente sem se deixar

perturbar pelas preocupaccedilotildees em relaccedilatildeo ao futuro e pelas anguacutestias experienciadas no

passado tal constitui um conselho que se postula como uma norma eacutetica Do mesmo

modo no seacuteculo V no contexto do movimento sofista tambeacutem Antifonte censura os

seus contemporacircneos por natildeo praticarem um modo de existecircncia centrado no presente

permitindo que o tempo se desvaneccedila sem ter sido efetivamente vivido

Haacute pessoas que natildeo vivem a vida presente eacute como se estivessem a preparar-se

concentrando toda a sua energia para viver uma outra vida que natildeo esta e enquanto fazem

643 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p31644 Laeacutercio D Vies et doctrines des philosophes illustres I 17 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas deViver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p31

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isso o tempo passa e esvai-se645

Segundo Hadot as posiccedilotildees epicurista e estoica natildeo obstante as suas profundas

diferenccedilas em diversas mateacuterias integram conceccedilotildees anaacutelogas acerca da experiecircncia ndash

eacutetica ndash de vivenciar o tempo presente A alianccedila entre eacutetica e temporalidade presente

anuncia-se com efeito como uma das caracteriacutesticas filosoacuteficas que aproximam

epicurismo e estoicismo Neste sentido ambas as correntes filosoacuteficas convergem na

afirmaccedilatildeo da superioridade da postura saacutebia de dedicaccedilatildeo plena ao momento presente

ausente de dispersatildeo no passado ou no futuro a definiccedilatildeo de felicidade agrave luz de uma

conceccedilatildeo de adesatildeo incondicional do saacutebio ao instante presente ndash e que a felicidade que

o instante presente proporciona eacute uma felicidade equivalente agrave felicidade eterna

podendo ser alcanccedilada e experienciada no imediato no aqui e agora ndash determina-se

como uma das traves-mestras do epicurismo e do estoicismo Poder-se-ia com justeza

sustentar que o exerciacutecio espiritual ndash recorrendo ao termo de Hadot ndash de dedicaccedilatildeo

absoluta ao momento presente tal como verificado no epicurismo e no estoicismo

implica o delineamento de uma singular postura filosoacutefica acerca da (ou perante a)

temporalidade que se encontra por sua vez na origem da postulaccedilatildeo eacutetica O

desenvolvimento de um ldquosaber que ensina a tranquilidaderdquo que propotildee a anulaccedilatildeo da

inquietaccedilatildeo constitui-se como a possibilidade de cumprir uma ldquotransformaccedilatildeo total da

vidardquo ndash e no acircmbito do qual um dos elementos mais relevantes ldquoeacute a mudanccedila de atitude

em relaccedilatildeo ao tempordquo646

A transformaccedilatildeo radical da atitude humana relativamente ao tempo ou agrave

temporalidade anuncia-se assim como condiccedilatildeo de possibilidade de alcance da

felicidade pelo saacutebio segundo o epicurismo A concentraccedilatildeo no momento presente do

qual se pode retirar toda a felicidade que eacute possiacutevel ao homem isenta de imersatildeo na

anguacutestia no medo ou na ansiedade decorrentes da perturbaccedilatildeo dos tempos passados ou

dos tempos futuros apresenta-se como uma norma do saber-viver O prazer mais

intenso ou a felicidade mais desejaacutevel definem-se agrave luz da ausecircncia de temores de

inquietaccedilotildees e de incertezas condiccedilatildeo indispensaacutevel do alcance da paz da alma

Inscrever os desejos humanos num horizonte de expetativas futuras anuncia-se como

causa de sofrimento tal como explicita Hadot no acircmbito do epicurismo importa

645 Les Preacutesocratiques Ed P Dumont Paris 1988 P1112 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de ViverGoethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p31646 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p33

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determinar quais os ldquodesejos naturais e necessaacuteriosrdquo concebidos como desejos

essenciais para a preservaccedilatildeo da existecircncia ndash estes desejos assim entendidos ldquopodem

ser facilmente satisfeitos sem nos entregarmos agrave incerteza e agrave inquietaccedilatildeo de um longa

demandardquo647 Continuemos a ler Hadot a tal respeito

ldquoDecircmos graccedilas agrave bem-aventurada Naturezardquo diz uma maacutexima epicurista ldquoque fez como

que seja faacutecil chegar agraves coisas necessaacuterias e que as coisas difiacuteceis de atingir natildeo sejam

necessaacuteriasrdquo Tudo o que faz parte da doenccedila da alma ndash paixatildeo humana desejo de riqueza

de poder ou de depravaccedilatildeo ndash eacute que obriga a pensar no passado e no futuro Mas o prazer

mais puro talvez o mais intenso pode ser atingido facilmente no presente Natildeo eacute apenas

da quantidade de desejos satisfeitos que o prazer natildeo depende ele sobretudo natildeo depende

da duraccedilatildeo Natildeo eacute necessaacuterio ser longo para ser absolutamente perfeito ldquoUm tempo

infinito natildeo nos faz experimentar um prazer maior do que aquele que experimentamos

num tempo que vemos como limitadordquo648

A felicidade epicurista ndash ou a sabedoria epicurista ndash apresenta-se traccedilada

segundo a recusa da construccedilatildeo de uma expetativa delineada sob a noccedilatildeo de futuro o

apercebimento da vacuidade dos desejos situados no futuro e a dedicaccedilatildeo ao instante

enquanto uacutenico (e autecircntico) momento capaz de despertar a felicidade e a alegria

afiguram-se como postulados eacuteticos que traduzem de modo concreto a alianccedila entre

sabedoria e fina perspetivaccedilatildeo acerca do tempo A este respeito a maacutexima de Horaacutecio

natildeo poderia ser mais ilustrativa ldquoQue a alma feliz com o presente odeie preocupar-se

com o futurordquo649

No acircmbito do estoicismo e convocando o pensamento de Marco Aureacutelio ndash a que

Hadot dedicou a obra La citadelle inteacuterieure Introduction aux Penseacutees de Marc Auregravele

(1992) ndash importaria no mesmo tom compreender a possibilidade de realizaccedilatildeo do

exerciacutecio espiritual de concentraccedilatildeo no momento presente o momento que nos basta e

o presente basta-nos num duplo sentido com ele podemos ocupar-nos por completo

natildeo necessitando de pensar em outra coisa e aleacutem disso ele concede-nos a felicidade

plena natildeo sendo necessaacuterio dele sairmos em busca de qualquer outra realidade ou

situaccedilatildeo que resultariam invariavelmente vatildes Segundo Marco Aureacutelio o presente eacute

tudo aquilo quanto basta agrave nossa felicidade ndash e esta somente poderaacute ser alcanccedilada na

647 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p34648 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p34649 Horaacutecio Odes Livro II XVI v25 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p35

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medida em que sabemos reconhecer e distinguir aquilo que depende de noacutes daquilo que

natildeo depende de noacutes A este respeito assim escreve Hadot

O passado jaacute natildeo depende de noacutes porque estaacute definitivamente arrumado o futuro natildeo

depende de noacutes porque ainda natildeo existe Soacute o presente depende de noacutes Portanto eacute a uacutenica

coisa que pode ser boa ou maacute uma vez que eacute a uacutenica que depende da nossa vontade O

passado e o futuro porque natildeo dependem de noacutes porque natildeo satildeo da ordem do mal ou do

bem moral devem portanto ser-nos indiferentes Eacute inuacutetil preocuparmo-nos com o que jaacute

natildeo existe ou com o que talvez nunca venha a existir650

No seguimento de tais observaccedilotildees Hadot cita Marco Aureacutelio e Seacuteneca

Se expulsas de ti mesmo quero dizer do teu pensamento [hellip[ tudo o que por tua vez

fizeste ou disseste tudo o que com apreensotildees de futuro te atormenta [hellip] se expulsas

[hellip] aquilo que estaacute por vir bem como o que jaacute laacute vai [hellip] se te aplicas a viver somente o

momento que passa quero dizer o presente poderaacutes passar o tempo que te for dado ateacute agrave

morte com calma benevolecircncia e reconhecimento ao teu bom geacutenio651

Haacute portanto dois sentimentos que devemos eliminar decididamente o medo do futuro e a

recordaccedilatildeo da desgraccedila jaacute passada esta jaacute natildeo me diz respeito aquele ainda natildeo me diz

respeito652

O saacutebio goza o presente sem depender do futuro liberto das pesadas inquietaccedilotildees que

atormentam a alma ele natildeo espera nada natildeo deseja nada e natildeo se lanccedila no incerto porque

se contenta com o que tem [isto eacute o presente a uacutenica coisa que nos pertence] E natildeo se

pense que se contenta com pouco porque aquilo que ele tem [o presente] eacute todas as

coisas653

Segundo Hadot a analogia mais fulgurante entre o epicurismo e o estoicismo

poderaacute ser compreendida agrave luz da proposta do exerciacutecio espiritual de transformaccedilatildeo

radical da apreciaccedilatildeo humana do tempo concretizada de acordo com o postulado de

absoluta concentraccedilatildeo no instante presente doador de toda a felicidade possiacutevel O

saber relativo ao momento presente como realidade prenhe de sentido e o

reconhecimento acerca da vacuidade ou da futilidade das anguacutestias introduzidas por

tempos estranhos ndash o passado ou o futuro fontes de toda a perturbaccedilatildeo da alma ndash

650 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p38651 Marco Aureacutelio Pensamentos Livro XII 3 3-4 p144 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de ViverGoethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 pp38-39652 Seacuteneca Cartas a Luciacutelio Carta 78 sect14 p333 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe ea Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p39653 Seacuteneca Des Bienfaits VIII 2 4-5 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p39

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traduzem um elemento de afinidade essencial entre ambas as correntes filosoacuteficas A

tais observaccedilotildees cumpriria ainda acrescentar a conceccedilatildeo estoica acerca da adesatildeo

incondicional ao tempo presente ndash concebido como exerciacutecio espiritual por Hadot ndash com

a possibilidade de plena uniatildeo com a totalidade do ser A adesatildeo ao instante constitui-se

neste sentido como possibilidade de integraccedilatildeo no movimento ou no devir do ser ou do

mundo ou segundo os termos especificamente estoicos da Razatildeo universal A

dimensatildeo miacutestica de tal praacutetica natildeo deve ser descurada o assentimento agrave ou com a

totalidade do ser a fusatildeo ou a uniatildeo decorrentes de um sentimento de iacutentima

identificaccedilatildeo com o mundo e o seu devir traduzem a praacutetica eacutetica do saacutebio ndash para quem

o instante presente oferece contendo a totalidade do ser Sobre tais conceccedilotildees Hadot

esclarece recorrendo a Marco Aureacutelio e a Seacuteneca uma vez mais

O instante presente eacute fugidio minuacutesculo ndash Marco Aureacutelio insiste bastante neste ponto ndash

mas nesse vislumbre como diz Seacuteneca podemos exclamar em uniacutessono com Deus Tudo

me pertencerdquo [hellip] Para compreender isto eacute preciso lembrar o que representa para o

estoico a acccedilatildeo moral a virtude ou a sabedoria O bem moral uacutenico bem para o estoico

tem uma dimensatildeo coacutesmica eacute a concordacircncia da razatildeo que estaacute em noacutes com a Razatildeo que

preside ao cosmos que produz o encadeamento do destino A cada momento eacute o nosso

juiacutezo a nossa acccedilatildeo os nossos desejos que devem entrar em concordacircncia com a Razatildeo

universal Principalmente eacute necessaacuterio acolher com alegria a conjunccedilatildeo de acontecimentos

que resulta do curso da Natureza Eacute portanto necessaacuterio a cada instante ressituarmo-nos

na perspectiva da Razatildeo universal de modo que a cada instante se o homem viver de

acordo com a Razatildeo universal a sua consciecircncia espraia-se na infinitude do cosmos o

cosmos aparece-lhe na sua totalidade Isto eacute possiacutevel porque para os estoicos haacute uma

fusatildeo total uma implicaccedilatildeo reciacuteproca de todas as coisas em todas as coisas Criacutesipo falava

da gota de vinho que se funde com a totalidade do mar e se estende a todo o mundo654

Voltemos a Goethe Em verdade a determinaccedilatildeo da influecircncia direta do

epicurismo ou no estoicismo no pensamento ou na obra goethianos constitui tarefa

irrelevante As teses principais de tais correntes filosoacuteficas perpassaram a tradiccedilatildeo

cultural e literaacuteria europeia desde Montaigne ateacute Rosseau e agraves suas Les Recircveries du

promeneur solitaire ndash recorde-se a este respeito na quinta promenade a seguinte frase

ldquoEacute necessaacuterio que o coraccedilatildeo esteja em paz e que nenhuma paixatildeo venha perturbar a sua

calmardquo655 Curiosamente e tal como aponta Hadot importaria ter presente um poema de

654Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 pp 40-41655 Rousseau JJ Os Devaneios do Caminhante Solitaacuterio Lisboa 1989 p77 Apud Hadot P Natildeo TeEsqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa2019 p44

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Andreas Gryphius muito ceacutelebre num acircmbito germacircnico e que parece incorporar de

modo mais ou menos declarado o conselho eacutetico de dedicaccedilatildeo ao presente como praacutetica

de uma vida boa

Natildeo satildeo meus os anos que o tempo me levou

Nem meus satildeo ainda os anos que o futuro reservou

Soacute o instante eacute meu se lhe der atenccedilatildeo

Meu eacute tambeacutem o que anos e eternidades satildeo656

Tal como considera W Schadewaldt657 no acircmbito do pensamento goethiano a

noccedilatildeo de Gegenwart integra o sentido de ldquopresenccedilardquo no sentido de apariccedilatildeo de

manifestaccedilatildeo viva ndash trata-se com efeito de uma noccedilatildeo afim de Dasein ldquoestar-aiacuterdquo por

conseguinte somente existe presenccedila manifestaccedilatildeo viva ldquoestar aiacuterdquo no instante presente

ndash ou para usar o termo de Goethe Augenblick ldquopiscar de olhosrdquo tatildeo repentino quatildeo

efeacutemero e natildeo obstante prenhe de significado denso de sentido suscetiacutevel de irrupccedilatildeo

na consciecircncia de quem o vivencia de um sentimento de uniatildeo ou de fusatildeo com o devir

do mundo Evoquemos novamente a Elegia de Marienbad ldquoOlha o instante

[Augenblick] de frente [nos olhos] Augenrdquo658 A disposiccedilatildeo do indiviacuteduo para entregar-

se ao instante presente apreciando-o na sua densidade de sentido e na sua intensidade

temporal como que concentrando e fundindo na sua efemeridade passado e presente

apresenta-se para Goethe como um saber viver ndash e um exerciacutecio espiritual ndash proacuteprio do

homem grego Trata-se recorrendo agrave expressatildeo do poeta da ldquosauacutede do momentordquo

conquanto esta visatildeo relativa agrave mundividecircncia grega possa ser discutiacutevel devido agrave sua

eventual ausecircncia de rigor histoacuterico importaria no entanto tomar a posiccedilatildeo goethiana

como uma avaliaccedilatildeo acerca da impossibilidade de desenvolver tal exerciacutecio espiritual de

absoluta dedicaccedilatildeo ao instante presente por parte dos homens modernos Tal como

salienta Hadot Egmont parece constituir um temperamento excecional pela sua alegria

de viver ldquoHei-de deixar de saborear o momento presente para poder estar certo do

momento que estaacute para vir E voltar a consumir o momento seguinte em temores e

656 Gryphius A Gedichte Eine Auswahl Org Adalbert Elschenbroich Estugarda 1968 Apud HadotP Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria EtelvinaSantos Lisboa 2019 p43657 Schadewalt W Goethestudien p476 n103 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e aTradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p45658 Goethe JW Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p45

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preocupaccedilotildeesrdquo659 Curiosamente e no mesmo sentido eacute o proacuteprio Goethe quem numa

conversa com o chanceler Von Muumlller afirma em tom de lamento ldquoPorque os homens

natildeo foram capazes de reconhecer o valor do presente e de lhe dar vida suspiraram por

um futuro melhor e interpretaram o pensamento sobre o passado com uma apaixonada

nostalgiardquo660 De modo igualmente ilustrativo importaria ainda ter presente as

palavras de Goethe numa das conversas com Eckermann ldquoAgarra-te com firmeza ao

presente Qualquer circunstacircncia qualquer instante tem um valor infinito pois eacute ele o

representante de toda a eternidaderdquo661 E no acircmbito de um poema intitulado

Lebensregel poder-se-ia ler uma vez mais a convocaccedilatildeo de tais posiccedilotildees proacuteprias da

sabedoria antiga acerca da concentraccedilatildeo plena no instante presente

Se na vida quiseres passar um bom bocado

Natildeo tens de te preocupar com o passado

Aborrece-te o menos que puderes

Aproveita o presente o melhor que souberes

Ignora o oacutedio a outros e aos teus

E deixa o futuro nas matildeos de Deus662

Por fim e tal como interessantemente elucida Hadot cada instante anuncia-se

para Goethe como ldquosiacutembolordquo do ser se aceitarmos a definiccedilatildeo de siacutembolo como ldquoa

relaccedilatildeo viva e instantacircnea do insondaacutevelrdquo663 tal como formulada pelo proacuteprio poeta Em

que consiste o insondaacutevel segundo Goethe De acordo com os esclarecimentos de

Hadot o insondaacutevel representa ldquoo misteacuterio indiziacutevel que estaacute no seio da Natureza e de

toda a realidaderdquo664 o instante presente e a dedicaccedilatildeo a ele permitem a anunciaccedilatildeo e a

659 Goethe JW Egmont Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dosExerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p52660 Goethe JW Entretiens avec le chancelier F de Muumlller de 7 de setembro de 1827 Apud GoetheElegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos ExerciacuteciosEspirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p52661 Conversations de Goethe avec Eckermann de 3 novembro de 1823 Apud Goethe Elegia deMarienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios EspirituaisTrad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p53662 Goethes JW Lebensregel Apud Goethe Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilasde Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019p52663 Goethe JW Maacuteximas e Reflexotildees Apud Goethe Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo TeEsqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa2019 p57664 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p57

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abertura ao misteacuterio do ser que se apresenta pois natildeo obstante a efemeridade do

momento na sua eterna presenccedila A concentraccedilatildeo absoluta no instante presente afigura-

se neste sentido como possibilidade de absoluta imersatildeo no devir do ser acompanhada

de sentimentos de participaccedilatildeo coacutesmica e de totalidade ontoloacutegica O exerciacutecio

espiritual de dedicaccedilatildeo plena ao instante presente eacute a sua propedecircutica ndash assim os

antigos nos ensinaram

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23 | Rousseau e a autonarrativa

Oacutecio e ociosidade As pessoas jaacute se comeccedilam a envergonhar do descanso as longasreflexotildees quase fazem remorsos Pensa-se com o reloacutegio na matildeo enquanto se almoccedila o olhono jornal da Bolsa vive-se como algueacutem que continuamente ldquopudesse perderrdquo algo ldquoMelhorfazer qualquer coisa do que nadardquo ndash esta maacutexima eacute tambeacutem uma corda para estrangulartoda a cultura e todo o gosto mais elevado E do mesmo modo que a expressatildeo individual seafunda visivelmente nesta pressa dos trabalhadores assim acontece tambeacutem com o sentidoda expressatildeo individual com os olhos e os ouvidos para a melodia dos movimentos A provaestaacute na rude clareza que se exige agora por todo o lado presente em todas as situaccedilotildees emque os seres humanos queiram alguma vez ser honestos uns com os outros no conviacutevio comamigos mulheres parentes crianccedilas professores alunos chefes e priacutencipes ndash jaacute natildeo haacutetempo nem forccedilas para cerimoacutenias para a cortesia com rodeios para todo o esprit naconversaccedilatildeo e sequer para algum otium Pois a vida agrave caccedila dos ganhos materiais obrigacontinuamente a despender o espiacuterito ateacute agrave exaustatildeo fingindo sempre defraudando ouantecipando-se aos outros a virtude propriamente dita eacute agora fazer qualquer coisa emmenos tempo do que qualquer outro E assim eacute raro haver horas de honestidade permitidanestas poreacutem estaacute-se cansado e uma pessoa gostaria natildeo soacute de se ldquodeixar ficarrdquo como ateacutede se estender rudemente ao comprimento e agrave largura De acordo com esta tendecircnciaescrevem as pessoas agora as suas cartas e o estilo e o espiacuterito das cartas seraacute sempre overdadeiro ldquosinal dos temposrdquo Se ainda houver algum prazer na sociedade e nas artes seraacuteo que conseguem os escravos exaustos do trabalho Oh como a nossa gente culta e incultagoza tatildeo pouco a ldquoalegriardquo E como cresce a suspeita em relaccedilatildeo a toda a alegria Otrabalho ganha cada vez mais a boa consciecircncia para o seu lado o pendor para a alegriachama-se jaacute ldquonecessidade de descansordquo e comeccedila a envergonhar-se de si proacuteprio ldquoDevemosisto agrave nossa sauacutederdquo assim falam quando satildeo apanhados num passeio ao campo Simpoderiacuteamos em breve chegar ao ponto de natildeo nos entregarmos a um pendor para a vitacontemplativa (isto eacute a dar passeios com ideias e amigos) sem autodesprezo e maacuteconsciecircncia

Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia

A narraccedilatildeo constitui uma das teacutecnicas crucias da autoestruturaccedilatildeo e da

autoconstituiccedilatildeo humanas atraveacutes da narraccedilatildeo o ser humano permite-se dar sentido agrave

sua vida construindo segundo as palavras de Ricœur uma identiteacute narrative para si

proacuteprio665 Tal como Ricœur propotildee no seu ensaio Lrsquoidentiteacute narrative (1988) ndash um

escrito que recupera e desenvolve tal conceito que lhe daacute tiacutetulo previamente formulado

em Temps et reacutecit III ndash a funccedilatildeo narrativa (fonction narrative) determina-se como um

modo de acesso mediaccedilatildeo e configuraccedilatildeo da identidade de um ser humano Se de

acordo com o filoacutesofo o conhecimento-de-si se constitui inexoravelmente como

interpretaccedilatildeo ndash porventura como escrita-de-si e como leitura-de-si ndash natildeo seraacute

supeacuterfluo perspetivar as possibilidades de determinaccedilatildeo de uma identidade atraveacutes da

fusatildeo entre histoacuteria (ou conjunto de factos) e ficccedilatildeo tendo presente que a identidade

poderaacute determinar-se agrave luz das narrativas que ela mesma desenvolve para si proacutepria

sobre si proacutepria Neste sentido segundo Ricœur a ficccedilatildeo e a funccedilatildeo narrativa

665 Ricœur P Lrsquoidentiteacute narrative In Esprit 12 (1988) pp 295-304

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determina-se como uma mediaccedilatildeo privilegiada da escrita da identidade de um ser

humano no mesmo tom o filoacutesofo atenta sobre um certo caraacutecter epistemoloacutegico da

autobiografia (a narraccedilatildeo-de-si) concebido como geacutenero literaacuterio passiacutevel de tal

mediaccedilatildeo privilegiada que compotildee o conhecimento-de-si Trata-se pois de perspetivar

o ser humano nunca considerado enquanto um sujeito que se determina como uma

entidade puramente formal como um escritor-de-si como um leitor-de-si cuja

identidade integra as possibilidades da ficccedilatildeo e da narraccedilatildeo enquanto modos de

autoestruturaratildeo e autoconstituiccedilatildeo

Atente-se que do ponto de vista dos estudos literaacuterios e de acordo com Martin

Kreiswirth a intensificaccedilatildeo da emergecircncia da narraccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas conhecera a

formulaccedilatildeo de uma expressatildeo conceptual profundamente ilustrativa narrativist turn666

Com efeito importaria chamar a atenccedilatildeo sobre o facto de numerosas obras filosoacuteficas

fornecerem um espectro consideraacutevel de distinccedilotildees ou variaccedilotildees conceptuais relativas agrave

temaacutetica da narraccedilatildeo o que torna o fenoacutemeno de contar histoacuterias narrativamente cada

vez mais tangiacutevel relevante presente Talvez o ponto basilar de todas estas

consideraccedilotildees consista em desenvolver as narrativas em contraposiccedilatildeo agraves regras e

princiacutepios gerais e abstratos normalmente usados na ciecircncia para compreender os

fenoacutemenos667 Quem tenta explicar uma situaccedilatildeo por meio de algumas regras gerais

dedica a sua atenccedilatildeo a somente uma parte das informaccedilotildees abstratas disponiacuteveis Em

contraste ao transmitir um facto atraveacutes de uma narrativa o foco natildeo estaacute na

abstraccedilatildeo e na reduccedilatildeo mas no detalhe concreto De acordo com os representantes das

abordagens narrativas tal riqueza de informaccedilatildeo e tal densidade de pormenorizaccedilatildeo

traduzem o caraacutecter eminente da narraccedilatildeo Aleacutem disso o gesto de contar narrativas

permite igualmente a formulaccedilatildeo de modos de possibilidade de expressar algo sobre

quem somos ndash para noacutes mesmos e para os outros ndash e que exigecircncias e expectativas

podem ser colocadas sobre noacutes Estas satildeo as abordagens que podem ser descritas como

autoconceito narrativo O ponto de partida da teoria da identidade narrativa em

666 Consultar Kreiswirth M Trusting the Tale The Narrativist Turn in the Human Science In NewLiterary History 23 (1992) 629-657 Nash C (ed) Narrative in Culture The Use of Storytelling in theSciences Philosophy and Literature LondonNew York 1990 Hinchman LHinchman S (ed)Memory Identity Community The Idea of Narrative in the Human Sciences Albany 1997 Haker HbdquoNarrative und moralische Identitaumltldquo In Mieth D (ed) Erzaumlhlen und Moral Narrativitaumlt imSpannungsfeld von Ethik und Aumlsthetik Tuumlbingen 2000 pp37-65 Kraus W bdquoDas narrative Selbst unddie Virulenz des Nicht-Erzaumlhltenldquo In Joisten K (ed) Narrative Ethik Das Gute and das Boumlse erzaumlhlenMuumlnchen 2007 pp25-43667 Arras J D Narrative Ethics In Routledge Encyclopedia LondonNew York 1998 pp 1201-1205

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Ricoeur eacute a ideia de que a identidade dos seres humanos natildeo pode ser explicada apenas

pela identidade numeacuterica a categoria da mesmidade (a identidade como mesmidade)

constitui pois uma determinaccedilatildeo natildeo particularmente relevante aos olhos do filoacutesofo

que propotildee por sua vez uma elaboraccedilatildeo de pendor profundamente eacutetico relativo agrave

categoria da ipseidade (a identidade como si-mesmo) a categoria que elege como modo

de perspetivaccedilatildeo da identidade narrativa Ricoeur critica o facto de a discussatildeo analiacutetica

se centrar predominantemente nas caracteriacutesticas mentais e fiacutesicas como criteacuterios

definidores de identidade dos seres humanos ndash em verdade o filoacutesofo francecircs procura

recusar a corrente analiacutetica elaborada por Derek Parfit que sustenta a intencional

limitaccedilatildeo do conceito de identidade pessoal de tal modo que em uacuteltima o mencionado

conceito de identidade pessoal se reduza a uma vazio e a impessoalidade se afirme

como noccedilatildeo privilegiada Ora para Ricoeur pelo contraacuterio eacute justamente a experiecircncia

individual e pessoal ordenada narrativamente que forma a base da identidade de

algueacutem

Todavia segundo Byun-Chul Han desenvolver e organizar narrativamente a

experiecircncia pessoal no contexto da modernidade tardia constitui uma tarefa difiacutecil

periclitante A perspetivaccedilatildeo de uma ldquocrise temporalrdquo inserta no contexto da

modernidade tardia constitui um dos elementos centrais da argumentaccedilatildeo do filoacutesofo a

este propoacutesito ndash uma ldquocrise temporalrdquo caracterizada tanto por uma forte aceleraccedilatildeo

quanto por uma paralisaccedilatildeo e sobretudo avaliada na sua ausecircncia de uma estrutura de

um ritmo668 Tal situaccedilatildeo assim considerada conduz a uma de-temporalizaccedilatildeo

(Entzeitlichung)

A des-temporalizaccedilatildeo (Entzeitlichung) generalizada implica o desaparecimento dos cortes

temporais e das conclusotildees dos limiares e das transiccedilotildees que satildeo constitutivos do sentido

A falta de uma articulaccedilatildeo forte do tempo daacute lugar agrave sensaccedilatildeo de que este corre mais

rapidamente do que antes Esta sensaccedilatildeo intensifica-se porque os acontecimentos

desprendem-se com crescente celeridade uns dos outros sem deixarem marca profunda

sem chegarem a tornar-se uma experiecircncia A falta da gravitaccedilatildeo faz com que todas as

coisas soacute superficialmente se aflorem Nada importa Nada eacute decisivo Nada eacute definitivo

Natildeo haacute qualquer corte Quando deixa de ser possiacutevel determinar o que tem importacircncia

tudo perde importacircncia O excesso de possibilidades de conexatildeo equivalentes ndash quer dizer

de direccedilotildees potenciais ndash poucas vezes conduz a uma conclusatildeo O concluir pressupotildee um

tempo articulado669

668 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p38669 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p38

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E mais adiante

A destemporalizaccedilatildeo natildeo permite lugar a qualquer progresso narrativo O narrador

demora-se nos acontecimentos mais pequenos e insignificantes porque natildeo sabe distinguir

o que eacute do que natildeo eacute importante A narrativa implica diferenccedilas e escolhashellipA falta da

trajetoacuteria narrativa que funciona de maneira seletiva faz com que o narrador natildeo possa

escolher o que eacute significativo hellip A destemporalizaccedilatildeo faz com que toda a tensatildeo narrativa

desapareccedila O tempo narrado decompotildee-se numa cronologia vazia de acontecimentos

Deveriacuteamos falar de uma enumeraccedilatildeo mais do que uma narrativa Os acontecimentos natildeo

se imprimem numa imagem coerente Esta incapacidade de siacutentese narrativa e tambeacutem

temporal gera uma crise de identidade O narrador jaacute natildeo eacute capaz de reunir os

acontecimentos em seu redor670

A narratividade no entanto natildeo soacute estrutura as experiecircncias que satildeo feitas na

vida mas tambeacutem na sua forma literaacuteria forma a base sobre a qual podemos aprender

algo sobre a identidade de algueacutem Tenha-se presente que atraveacutes do recurso agrave

autobiografia a histoacuteria cultural europeia pocircde produzir um tipo de escrita

profundamente orientada para a construccedilatildeo de identidades narrativas permitindo o

desenvolvimento de processos de autoconstituiccedilatildeo de um determinado sujeito que se

escreve a si mesmo e que se afigura transparente ao seu leitor ou perante o seu leitor

Importaria assinalar a este respeito que a emergecircncia das narrativas autobiograacuteficas

tem lugar num momento cultural em que o conceito moderno de sujeito se encontra a

tomar forma e configuraccedilatildeo proacuteprias ndash um momento cultural em que a autoconstituiccedilatildeo

se determina para uma funccedilatildeo de oacutecio nomeadamente no final do seacuteculo XVIII671 Com

efeito a configuraccedilatildeo de uma ideia de individualidade humana entrecruza-se com a

possibilidade de emergecircncia da narrativa literaacuteria No entanto se a narrativa

autobiograacutefica eacute uma forma de autoconstituiccedilatildeo e se a ideia de autoconstituiccedilatildeo estaacute

conceptualmente ligada ao oacutecio entatildeo eacute razoaacutevel assumir que nas autobiografias

modernas as situaccedilotildees de oacutecio satildeo frequentemente encenadas

Tomemos um exemplo profundamente ilustrativo Les recircveries du promeneur

solitaire de Jean-Jacques Rousseau Este escrito tardio de Rousseau uma das obras

autobiograacuteficas mais influentes do final do seacuteculo XVIII revela a ecircnfase no oacutecio como a

670 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p40671 Sill O Zerbrochene Spiegel Studien zur Theorie und Praxis modernen auto- biographischenErzaumlhlens BerlinNew York 1991 p53 Stuumlssel K bdquoAutorschaft und Autobiographik im kultur- undmediengeschichtlichen Wandelldquo In Breuer USandberg B (ed) Grenzen der Identitaumlt und derFiktionalitaumlt (Autobiographisches Schreiben in der deutschsprachigen Gegenwartsliteratur vol1)Muumlnchen 2006 pp19-33

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mais indispensaacutevel das condiccedilotildees para a autorreflexatildeo Na quinta promenade das

Recircveries du promeneur solitaire o ego narrativo daacute por si mesmo vivenciando um

dolce far niente

Le preacutecieux far niente fut la premiegravere et la principale de ces jouissances que je voulus sa-

vorer dans toute sa douceur et tout ce que je fis [] ne fut en effet que loccupation

dlicieuse et neacutecessaire dun homme qui est deacutevoueacute agrave loisiveteacute672

Rousseau estiliza o oacutecio como um modo ideal de existecircncia que permite ao

narrador autobiograacutefico uma experiecircncia-de-si feliz Enquanto se demora no oacutecio as

restriccedilotildees e as necessidades externas entram em segundo plano O sujeito de Rousseau

pode colocar-se no centro da sua contemplaccedilatildeo como que experienciando um estado de

autossuficiecircncia divina

De quoi jouait-on dans une pareille situation The rien dexteacuterieur agrave soi the rien sinon de

soi-mecircme et de sa propre existence tant que cet eacutetat dure on seine suffit agrave soi-mecircme

comme Dieu673

Interessantemente a respeito da emergecircncia da subjetividade moderna e da sua

autoproibiccedilatildeo de cumprimento do oacutecio Peter Sloterdijk elucida

O big bang no desenvolvimento do conceito subjetivo europeu de liberdade de que

estou a falar aqui eacute abordado mais de dois mil anos depois em solo suiacuteccedilo nomeadamente

no Outono de 1765 Atraveacutes da sua uacutenica testemunha que ao mesmo tempo representa o

protagonista dos acontecimentos temos um conhecimento relativamente detalhado sobre

tal conceito Naquela eacutepoca a Suiacuteccedila tinha um papel fundamental na histoacuteria da ideia da

liberdade republicana renovada mas como pode ser visto imediatamente esta ideia

deveria tambeacutem desempenhar um papel importante na histoacuteria da subjetividade moderna

que naquela eacutepoca estava a ganhar velocidade O heroacutei da histoacuteria natildeo eacute Jean-Jacques

Rousseau nascido em Genebra cinquenta e trecircs anos de idade naquele ano um homem

em fuga Em alguns dias ensolarados de outono o autor perseguido agora em repouso e

encantado pelo charme da ilha tranquila havia sido levado para o lago num barco a remos

Num lugar distante deixara os remos afundarem e deitou-se de costas no fundo do barco

para se dedicar a uma atividade movimentada Deixou-se conduzir por uma viagem

interior que o autor descreveu com o termo recircverie Devo portanto retomar o termo Big

Bang jaacute que na realidade natildeo era um acontecimento explosivo mas quase impercetiacutevel e

de caraacuteter implosivo ou contemplativo Neste momento o termo liberdade assume

672 Rousseau J-J Les recircveries du promeneur solitaire Œuvres complegravetes Vol 1 Gagnebin B (ed)Paris 1959 [1776ndash1778] p1042 673 Rousseau J-J Les recircveries du promeneur solitaire Œuvres complegravetes Vol 1 Gagnebin B (ed)Paris 1959 [1776ndash1778] p1047

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involuntariamente um novo significado Descreve o estado de uma inutilidade requintada

em que o indiviacuteduo estaacute completamente consigo mesmo Deste modo a liberdade no

sentido atual experimenta-a quem descobre um desemprego sublime no seu interior ndash sem

contactar imediatamente uma agecircncia de empregos674

E mais adiante

Uma vez que a subjetividade tinha sido posta em movimento desta maneira eram

necessaacuterios meios para lidar com o perigo colocado pela inutilidade divina do sujeito-da-

recircverie que se contemplava e perdia em si mesmo Estes meios soacute seriam fornecidos por

sujeitos-controladores pensantes Eles foram inicialmente recrutados a partir da filosofia

alematilde da geraccedilatildeo apoacutes Rousseau por volta de 1800 Os seus protagonistas compreenderam

intuitivamente que o novo sujeito-da-recircverie era socialmente inaceitaacutevel Isto soacute poderia

acontecer de tal forma que o novo sujeito autoacutenomo do sonho-acordado ndash ao contraacuterio da

sua proacutepria tendecircncia ndash fosse agora associado ao mundo do desempenho Kant

primeiramente conseguiu fazecirc-lo desenvolvendo a transiccedilatildeo para o sujeito atraveacutes da

filosofia transcendental mas apenas para usar o sujeito em todo este campo de tarefas das

atividades de reconhecimento e de julgamento A partir desse momento acabou o seu feliz

desemprego Kant retirou o sonhador do barco e recrutou-o para um emprego no serviccedilo

puacuteblico Ningueacutem iria escapar ao campo de trabalho da sociedade no futuro Assim o

fundador do positivismo Auguste Comte pronunciou-se deste modo numa conferecircncia

por volta de 1850 Ningueacutem tem direito algum a natildeo ser o de cumprir sempre o seu

dever Natildeo eacute aqui que se deve difundir toda a histoacuteria da disciplina da socializaccedilatildeo

forccedilada e finalmente da caluacutenia da negaccedilatildeo e da submissatildeo do sujeito ao

desenvolvimento cultural dos seacuteculos XIX e XX O resultado seria o romance da

modernidade que tem medo da sua mais importante descoberta Contentar-me-ei em

salientar que a Inquisiccedilatildeo contra o sujeito autoacutenomo parece ter entrado numa fase final nas

uacuteltimas deacutecadas675

Um outro fenoacutemeno das Recircveries apresenta-se particularmente sintomaacutetico da

narrativa autobiograacutefica moderna trata-se do locus da autorreflexatildeo ociosa ndash com

efeito esta encontra-se intimamente ligada a determinados lugares tranquilos676 Na

quinta promenade eacute pois a Ilha de Satildeo Pedro no Lago Biel para onde Rousseau foge

dos seus perseguidores Neste seu exiacutelio Rousseau passa seis semanas que preenche

com passeios ao longo da ilha Na outra obra autobiograacutefica de Rousseau as

674 Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 pp44-45675 Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 p45 676 Sobre o caraacutecter espacial do oacutecio em geral consultar Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige InHasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellen Wandel Semantisierungen AumlhnlichkeitenUmbesetzungen Berlin 2014 pp26-33

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Confessions eacute a floresta de Montmorency ao norte de Paris para onde o autor se retira

para caminhar e escrever na pura solidatildeo677 A perspetivaccedilatildeo de um locus proacuteprio agrave

autorreflexatildeo natildeo constitui no entanto uma inovaccedilatildeo de Rousseau encontrando-se

presente em verdade nos primoacuterdios da autobiografia A cena-chave das Confessiones

de Agostinho eacute bem conhecida num jardim isolado em Milatildeo as duacutevidas de Agostinho

sobre a sua proacutepria vida atingem o seu acme e inspiradas pela leitura das cartas de

Paulo conduzem-no agrave conversatildeo ao cristianismo678 As claacutessicas autobiografias

demonstram quatildeo decisiva eacute a posiccedilatildeo espacial do ego autobiograacutefico para a sua

autoexploraccedilatildeo e para a autonarrativa

677 Consultar Rousseau J-J Les confessions Œuvres completes Vol 1 Gagnebin B (ed) Paris1959 [1782ndash1789] p404678 Augustinus A Confessiones Flasch KMojsisch B (ed) Stuttgart 2009 [397-401 AD] p386

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24 | O enquadramento do oacutecio

Quanto mais o trabalho intelectual se assimilava agrave violenta atividade industrial sem gostonem tradiccedilatildeo e quanto mais a ciecircncia e a escola se esforccedilavam diligentemente para nosprivarem da liberdade e da personalidade e por nos forccedilarem desde a mais terna idade aviver forccedilados e esbaforidos numa situaccedilatildeo dita ideal de azaacutefama tanto mais a arte do oacutecioentrou em decadecircncia desuso e descreacutedito junto das outras artes jaacute obsoletas Como se emalgum momento tiveacutessemos sido mestres nela Pelos tempos fora no ocidente a preguiccedilaconvertida em arte foi praticada apenas por inofensivos diletanteshellipNatildeo tenho a menor intenccedilatildeo de aconselhar a maquinaccedilatildeo devoradora de personalidades danossa induacutestria e da nossa ciecircncia Se a induacutestria e a ciecircncia natildeo sentem mais a necessidadede uma personalidade entatildeo que prescindam dela Mas noacutes os artistas que no meio dagrande bancarrota cultural habitamos uma ilha com recursos de vida ainda suportaacuteveisdevemos reger-nos por outras leis como sempre o fizemoshellipChegou o momento em que sinto a falta da arte do preguiccedilar fortalecida e refinada por umasoacutelida tradiccedilatildeo e no qual o meu outrora imaculado espiacuterito germacircnico direciona o seu olharcom inveja e nostalgia para a Aacutesia maternal onde uma praacutetica antiga amestrou um ritmoestruturador e enobrecedor ao aparentemente informe estado de presenccedila e inaccedilatildeo

Hermann Hesse A arte do oacutecio

Especialmente sob certas condiccedilotildees externas a reflexatildeo sobre a proacutepria vida

assume-se possiacutevel legiacutetima e promissora A praacutetica literaacuteria que consiste em mostrar o

eu que recorda e que narra inserido numa situaccedilatildeo de oacutecio e num lugar

preferencialmente natural e isolado encontra a sua possibilidade no discurso teoacuterico

sobre a autobiografia enquanto geacutenero no curso da modernidade679 Pode-se portanto

perspetivar os ldquoenquadramentos do oacuteciordquo como espaciais mas tambeacutem como soacutecio-

histoacutericos ou temporais680 Na sua anaacutelise de enquadramento Goffman elucida que

circundamos situaccedilotildees sociais com enquadramentos de modo a poder reconhececirc-las

no seu caraacutecter individual e assim distingui-las de outras situaccedilotildees681 Com estes atos

de enquadramento os parceiros de interaccedilatildeo indicam mutuamente como definem a

situaccedilatildeo social especiacutefica em que se encontram que regras de interaccedilatildeo nela se aplicam

e que acento da realidade682 atribuem a esta situaccedilatildeo especiacutefica

679 Desta forma o acoplamento da reflexatildeo autobiograacutefica e do oacutecio adquire um caraacutecter toacutepico o oacuteciodo autobioacutegrafo estaacute ligado a certos lugares de autorreflexatildeo que se estabeleceram no decurso da histoacuteriacultural e desenvolveram a sua influecircncia atraveacutes dos limites epocais680 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 pp43-45681 Goffman E Frame Analysis An Essay on the Organization of Experience Havard 1974682 Schuumltz ALuckmann T Strukturen der Lebenswelt Konstanz 2003

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A fruiccedilatildeo do oacutecio a criaccedilatildeo de seus espaccedilos e tempos segue um regulamento

social que pode ser exemplarmente apreciado no Decamerone de Boccaccio683 A

condiccedilatildeo que permite que sete senhoras e trecircs senhores narrem uma centena de novelas

uns aos outros durante dez dias eacute o enquadramento espacial e temporal que tecircm de

criar de antematildeo Este enquadramento afigura-se intimamente relacionado com a

necessidade e com a ameaccedila pois a praga grassa em Florenccedila Aleacutem do perigo real que

representa a praga constitui um siacutembolo que evoca um mundo caoacutetico e um destino

incontrolaacutevel Escapar deste perigo em direccedilatildeo a uma propriedade rural fora de Florenccedila

eacute mais do que verosiacutemil ou compreensiacutevel traduzindo uma reaccedilatildeo convincente Entra-

se assim num enclave espacial na paisagem de uma quinta e num tempo para si

proacuteprio dez dias cada um deles decorrendo segundo uma rotina diaacuteria fixa Este

conjunto de atos de enquadramento apresenta-se projetado segundo a finalidade de criar

uma atmosfera serena e aberta na qual os temas contraditoacuterios e os distintos geacuteneros

narrativos possam coexistir farsa romance e drama erotismo religiatildeo engano golpes

do destino intriga amor amizade etc Em Decamerone Boccaccio revela

paradigmaticamente o que ndash sempre jaacute ndash tem de ser criado e desenvolvido

estruturalmente em termos de tempo e espaccedilo para que o oacutecio possa desenvolver-se

por um lado o afastamento da vita ativa do quotidiano dos seus objetivos e da

consequente compulsatildeo para agir e tomar decisotildees e por outro lado a adoccedilatildeo de uma

postura dirigida para as possibilidades de uma abertura extraordinaacuteria do tempo e do

espaccedilo mediante a rutura com a perceccedilatildeo orientada para objetivos jaacute definidos de

antematildeo

Curiosamente importaria assinalar de um ponto de vista do desenvolvimento

histoacuterico e social os distintos modos de criaccedilatildeo dos espaccedilos e dos tempos do oacutecio

segundo diferentes classes sociais ndash pois tambeacutem a criaccedilatildeo de tais espaccedilos e tempos se

afigura determinada inicialmente segundo diferentes padrotildees de comportamento social

A aristocracia prefere a quinta rural (por exemplo o Tusculum de Cicero) ou o castelo

de prazer e de caccedila O clero que com seus mosteiros criara um mundo dentro do mundo

e portanto a sua proacutepria ordem simboacutelica de espaccedilo e tempo enquadra molda

configura os seus lugares e tempos dedicados ao oacutecio e agrave meditaccedilatildeo dentro desse mesmo

mundo religioso Neste sentido o clero desenvolve um paradoxo que lhe eacute especiacutefico o

oacutecio proposital na meditaccedilatildeo a abertura para tudo o que eacute divino combinado com a

683 Soumlffner J Das Decamerone und sein Rahmen des Unlesbaren Heidelberg 2005

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exclusatildeo de tudo o que eacute mundano ou mais do que isso diaboacutelico A burguesia por

sua vez encontra os seus enclaves de oacutecio espacial e temporal para aleacutem do seu mundo

profissional no conviacutevio do salatildeo e na sala tranquila da biblioteca ou na sala de estudo

Se a aristocracia se abre agrave natureza atraveacutes da caccedila o cidadatildeo dedica-se ao passeio

urbano684 e igualmente agrave natureza e ao ar livre E os trabalhadores (qualificados) e os

pequenos empregados constroem as suas casas de jardim Ateacute hoje sob a forma de

finas diferenccedilas685 as vaacuterias formas de espaccedilos de oacutecio foram preservadas

dependendo dos seus contextos sociais Por muito diferentes que sejam os respetivos

enquadramentos do oacutecio todos eles revelam caracteriacutesticas em comum

Todos os regulamentos do oacutecio satildeo destinados agrave criaccedilatildeo de pequenos mundos

autoacutenomos no mundo governados de acordo com as suas proacuteprias leis Neles se

permitem e se concretizam as possibilidades do tempo experimentado contra o tempo

medido segundo um propoacutesito de suspensatildeo do tempo dito normal do tempo padratildeo de

trabalho e das rotinas diaacuterias procurando-se assim estabelecer uma outra loacutegica em

contraposiccedilatildeo agrave cronologia Os espaccedilos e os tempos exteriores possibilitam a abertura

da perceccedilatildeo e do sentimento humano para a interaccedilatildeo de todos os sentidos ndash com efeito

o oacutecio cria a oportunidade de uma sinestesia liberada experienciaacutevel Assim este

enquadramento espacial e temporal do oacutecio potencia o contraste com a realidade

quotidiana o pano de fundo do qual o oacutecio emerge e vive O afastamento deliberado de

um mundo no qual por um lado nos movemos em trecircs quartos das nossas accedilotildees como

autoacutematos686 e por outro lado se configura como um mundo de perspetiva

unidimensional orientado pelo interesse e condenado agrave compulsatildeo de agir e tomar

decisotildees pode conduzir agrave emergecircncia de paradoxos produtivos inclusivamente a

atividade de enquadramento poderaacute ser perspetivada como uma atividade intencional

para a produccedilatildeo de uma certa liberdade deliberada o espaccedilo para interesses

livremente flutuantes Desta forma o oposto de trabalho como esforccedilo deveria tornar-

se possiacutevel trata-se igualmente de criar o paradoxo do trabalho prazeroso um

trabalho que natildeo estaacute orientado para um fim exterior a si proacuteprio nem orientado para

assegurar a sua existecircncia nem para auferir dinheiro decorrente de um suposto contrato

de trabalho O enquadramento espacial e temporal do oacutecio promove com efeito tal

contraste paradoxal A separaccedilatildeo e o encerramento dos espaccedilos do oacutecio relativamente

684 Woumllfel K Spaziergaumlnge Zuumlrich 2009685 Bourdieu P La distinction Critique sociale du jugement Paris 1979686 Bourdieu P La distinction Critique sociale du jugement Paris 1979 p740

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aos espaccedilos do quotidiano neg-oacutecio potenciam a abertura de um espaccedilo de imaginaccedilatildeo

para aleacutem do mensuraacutevel

Trata-se de uma intemporalidade de que os artistas por exemplo necessitam ou

agrave qual aspiram uma intemporalidade no interior da qual se pode sonhar sem ter de

adormecer (Nietzsche por exemplo descreve o artista como o noctacircmbulo do dia687)

O mesmo se aplica ao tempo ocioso que natildeo se pode ser medido pois repousa na

experiecircncia Com a sua proacutepria extensatildeo variaacutevel este tempo natildeo soacute se opotildee ao curso

padratildeo diaacuterio do tempo mas produz tambeacutem um paradoxo de intemporalidade

temporaacuteria atraveacutes do seu enquadramento (e do estatuto de enclave que eacute assim

criado)688

Assim apesar da sua funccedilatildeo excludente e do caraacutecter exclusivo de lazer o

enquadramento potencia uma exclusatildeo das influecircncias externas do mundo Mas o

enclave do oacutecio natildeo eacute absorvido por ele Natildeo gera uma atenccedilatildeo dirigida mas ndash

metaforicamente ndash como que cria por um lado uma moldura de imagem fechada para o

exterior e por outro lado uma superfiacutecie de projeccedilatildeo que se abre e na qual tudo pode

ser potencialmente pintado Movimentar-se num espaccedilo de opccedilotildees que reivindica todos

os sentidos significa entrar nesse humor extraordinaacuterio permitindo-nos aqui prever ou

reconhecer porventura a reflexatildeo de uma vida tatildeo deliciosa quatildeo improvaacutevel no reino

da liberdade autoacutenoma

687 Nietzsche F Die froumlhliche Wissenschaft Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol3 ColliG Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p79688 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p36

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25 | O enquadramento do idiacutelico

Eu nunca guardei rebanhosMas eacute como se os guardasseMinha alma eacute como um pastorConhece o vento e o solE anda pela matildeo das EstacotildeesA seguir e a olharToda a paz da Natureza sem genteVem sentar-se a meu lado

Alberto Caeiro O guardador de rebanhos

O homem natildeo deve viver numa pobreza de espiacuterito idiacutelica ndash deve trabalhar689

O veredicto de Hegel a propoacutesito do idiacutelio ilustra e sintetiza um debate que tivera o seu

iniacutecio nos finais do seacuteculo XVIII especialmente nas geraccedilotildees anteriores agrave de Hegel as

geraccedilotildees de Kant e de Schiller ndash e que em traccedilos gerais se caracteriza por uma

crescente postura de subordinaccedilatildeo do conceito de oacutecio ao conceito-chave de trabalho

Com efeito quando Hegel formula a propoacutesito do idiacutelio o sentimento de falta dos

impulsos mais elevados do ser humano impulsos que o incitam agrave atividade

proporcionando-lhe o sentimento de forccedila interior e do qual os interesses mais

profundos se podem desenvolver690 o filoacutesofo propotildee-se delinear em verdade um

conceito de trabalho que se afigura caracterizado como uma potecircncia histoacuterica e humana

que o idiacutelio natildeo pode satisfazer De acordo com a noccedilatildeo de idiacutelio ndash noccedilatildeo aqui

contraposta ao conceito de trabalho ndash a natureza satisfaz [] ao homem toda a

necessidade que nele possa surgir e este contenta-se no seu estado de inocecircncia []

com o que o prado a floresta as manadas um pequeno jardim a sua cabana podem

oferecer-lhe em comida habitaccedilatildeo e outras comodidades de modo que todas as paixotildees

de ambiccedilatildeo ou de cobiccedila []permanecem ainda em silecircnciordquo691

689 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p336690 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p336691 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p335

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Joseph Vogl atentou sobre tais posiccedilotildees de Hegel relativas ao conceito de

trabalho ndash lidas agrave luz da foacutermula hegeliana de desejo inibido692 contrastando-as com

uma certa interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo iluminista (anterior portanto) de tal conceito de

acordo com Vogl o conceito de trabalho tal como compreendido na Aufklaumlrung

traduzia toda atividade que natildeo se interrompe com a satisfaccedilatildeo de uma

necessidade693 Debruccedilando-se sobre Fausto II de Goethe Vogl elabora uma nova

economia do trabalho na modernidade [] cujo ponto central estaacute na impossibilidade

de terminar as accedilotildees (e do ldquofazerrdquo) e numa certa emergecircncia da ldquofutilidaderdquo como

caracteriacutestica que envolve todas as produccedilotildees694 No contexto de Fausto II um texto

literaacuterio que curiosamente evoca um tratamento tatildeo interessante quatildeo problemaacutetico do

idiacutelio Vogl comenta a propoacutesito da abertura do Quinto Ato a apresentaccedilatildeo do idiacutelio na

sua realidade espacial descrita agrave luz da existecircncia harmoniosa de cabanas de Filemom

e Baucis cuja pura existecircncia atrai o impulso inquieto de Fausto para a expansatildeo695

Com efeito o confronto entre o idiacutelio e a modernidade caracterizada agrave luz da irrupccedilatildeo

do conceito do trabalho tal como encarnado no projeto de exploraccedilatildeo de terras de

Fausto constitui uma realidade filosoficamente considerada reconhecida e perspetivada

jaacute nos iniacutecios de 1800 Neste acircmbito o idiacutelico configura-se como algo mais do que um

espaccedilo dramatuacutergico ou narrativo de contraste Trata-se da evocaccedilatildeo de uma vida de

oacutecio uma contraimagem com qual a literatura e a filosofia passaram a trabalhar a

partir de iniacutecios do seacuteculo XIX

Cerca de cinquenta anos antes das referecircncias de Goethe e Hegel ao idiacutelio jaacute

Kant havia tratado em Ideia de uma histoacuteria universal de um ponto de vista

cosmopolita a questatildeo do progresso da humanidade agrave luz da designada qualidade em si

natildeo realmente amaacutevel do egoiacutesmo da ambiccedilatildeo do desejo de poder ou de ganacircncia

perspetivada em contraposiccedilatildeo a uma vida de pastor arcaacutedico desenvolvida com

perfeita harmonia contentamento e amor agrave mudanccedila e na qual todos os talentos

permanecem escondidos no seu germe para sempre696 Segundo Kant e a sua proposta

relativa a uma comparaccedilatildeo ou analogia entre o oacutecio e um tempo vazio perante o qual

692 Hegel GWF Phaumlnomenologie des Geistes Werke vol3 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p153693 Vogl J Kalkuumll und Leidenschaft Poetik des oumlkonomischen Menschen Muumlnchen 2002 p339694 Vogl J Kalkuumll und Leidenschaft Poetik des oumlkonomischen Menschen Muumlnchen 2002 p336695 Goethe JW Faust Frankfurter Ausgabe vol 71 Schoumlne A (ed) Frankfurt a M 2005p434696 Kant I bdquoIdee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbuumlrgerlicher Absichtldquo Werke vol9Weischedel W (ed) Darmstadt 1983 p38

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o acircnimo humano sente desgosto descontentamento nojo697 a ideia de um estado no

acircmbito do qual apenas canccedilotildees arcaacutedicas seriam cantadas e a beleza da natureza seria

observadardquo698 constitui uma metaacutefora do fracasso de destino humano tanto em termos

de psicologia individual quanto em termos de histoacuteria da humanidade Neste sentido o

uso metafoacuterico do idiacutelio poderaacute ser tomado como uma indicaccedilatildeo ilustrativa dos modos

de tratamento filosoacuteficos de determinadas formas de oacutecio e do oacutecio em geral em iniacutecios

do seacuteculo XIX

Em Sobre a poesia ingeacutenua e sentimental Schiller formulou o mais decisivo e

abrangente reflexo da problematizaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do idiacutelio no domiacutenio da

esteacutetica A sua tentativa de redefinir o idiacutelio como uma forma que conduz o ser

humano que natildeo pode mais retornar agrave Arcaacutedia ao Eliacutesio699 apresenta-se distinta do

tradicional (sentimental) idiacutelio dos pastores700 na medida em que o primeiro

representa um estado antes do iniacutecio da cultura que proporciona por sua vez muito

pouco para o espirito Assim escreve Schiller portanto soacute podemos amaacute-la e buscaacute-la

quando temos necessidade de descanso natildeo quando as nossas forccedilas aspiram ao

movimento e a atividaderdquo701 Por outro lado no idiacutelio eacute necessaacuterio apresentar um

estado de harmonia e paz consigo mesmo como o objetivo uacuteltimo702 da cultura que

absorve o momento ativo da civilizaccedilatildeo

Assim o descanso seria a impressatildeo dominante deste tipo de poesia mas um descanso da

perfeiccedilatildeo natildeo da ineacutercia um descanso que flui do equiliacutebrio natildeo da paralisaccedilatildeo das

forccedilas que flui da abundacircncia natildeo da vacuidade e eacute acompanhado pelo sentimento de

uma capacidade infinita703

Como antecipaccedilatildeo de um futuro utoacutepico o idiacutelio espacialmente limitado de

Schiller participa na temporalizaccedilatildeo da utopia que segundo a observaccedilatildeo de Reinhart

Koselleck comeccedilou na segunda metade do seacuteculo XVIII704 Ao mesmo tempo no

697 Kant I Eine Vorlesung Kants uumlber Ethik Menzer P (ed) Berlin 1924 p201 Sobre o problemado tempo em Kant consultar Seel M Rhythmen des Lebens Kant uumlber erfuumlllte und leere Zeit InKersting W Langbehn C (ed) Kritik der Lebenskunst Frankfurt a M 2007 pp 181ndash200698 Kant I Uumlber Paumldagogik Werke vol10 Weischedel W (ed) Darmstadt 1983 p730699 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 p730 700 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 pp747-748701702 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 pp746 751703704 Koselleck R Die Verzeitlichung der Utopie Frankfurt a M 2003 pp131ndash149

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acircmbito das posiccedilotildees de Schiller encontramo-nos perante uma postura que pretende

suavizar a dureza da loacutegica da filosofia histoacuterica tornando possiacutevel no jogo esteacutetico

aquilo que natildeo pode ser experimentado na atividade da vida comum Neste sentido em

Cartas sobre a educaccedilatildeo esteacutetica Schiller contrasta o trabalho escravo dos indiviacuteduos

contemporacircneos e o oacutecio feliz das geraccedilotildees posteriores formadas segundo a educaccedilatildeo

da natureza humana705 Como tal o tratamento filosoacutefico do oacutecio tal como

desenvolvido por Schiller natildeo se afigura propriamente perspetivado num sentido

utoacutepico706 todavia poder-se-ia asseverar que a este respeito encontramo-nos perante

uma postura schilleriana de enfatizaccedilatildeo da discrepacircncia entre as reivindicaccedilotildees

fracassadas do indiviacuteduo e a perfeiccedilatildeo adiada do geacutenero Se o oacutecio constitui um modo

de situaccedilatildeo contraposta ao trabalho doloroso produtivo o idiacutelio por sua vez e tal como

Schiller o avalia filosoficamente apresenta-se definido e caracterizado atraveacutes de uma

nova formulaccedilatildeo do proacuteprio conceito de oacutecio agora relacionada com a possibilidade de

uma interseccedilatildeo com a experiecircncia esteacutetica o idiacutelio consiste pois numa fenomenal e

estrutural ligaccedilatildeo entre o oacutecio e a experiecircncia esteacutetica707 o surgimento do ideal na

realidade deve assim poder ser desfrutado Atraveacutes do abandono de uma definiccedilatildeo

sentimental de idiacutelio ndash o idiacutelio bucoacutelico e arcaacutedico do pastor ndash e da ecircnfase sobre a

atividade enquanto elemento integrante da definiccedilatildeo proposta o conceito de idiacutelio

segundo Schiller consiste natildeo meramente num reflexo criacutetico do triunfo histoacuterico da

vita ativa no mundo prometeico da modernidade708 mas principalmente e

inclusivamente numa nova perspetivaccedilatildeo acerca da consequecircncia desse mesmo

desenvolvimento na realidade do idiacutelio Com efeito de acordo com Schiller jaacute por volta

de 1800 os termos arcaacutedia e pastor bucoacutelico constituem referecircncias idiacutelicas que se

assumem como obsoletas709

Perante a proclamaccedilatildeo da a crise do oacutecio aquando da emergecircncia da sociedade

burguesa de trabalho atraveacutes da perspetivaccedilatildeo acerca de uma cisatildeo contundente entre

705 Schiller F Uumlber die aumlsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen SaumlmtlicheWerke vol5 Alt P-A- Maier ARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 p588706 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 25707 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 26708 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 26709 Consultar Kaiser G Wandrer und Idylle Goethe und die Phaumlnomenologie der Natur in derdeutschen Dichtung von Geszligner bis Gottfried Keller Goumlttingen 1977 p101

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trabalho produtivo e fuga para a para a ociosidade sonhadora710 (a ociosidade

caracterizada na sua tendecircncia agressiva agrave recusa impotildee-se pois enquanto novo

conceito que implica uma interpretaccedilatildeo profundamente depreciativa porque

moralmente e socialmente condenaacutevel da realidade do oacutecio) e a proclamaccedilatildeo da

impossibilidade de configuraccedilatildeo de mais estados idiacutelicos711 a nossa tese de

doutoramento procuraraacute discutir tais problemaacuteticas segundo uma argumentaccedilatildeo distinta

e apresentando conclusotildees que divergem das posiccedilotildees anteriormente tratadas Com

efeito a rejeiccedilatildeo da oposiccedilatildeo aceacuterrima entre oacutecioidiacutelio e trabalho ndash uma tese

continuamente formulada no contexto dos debates dedicados agrave mateacuteria ndash constitui a

pedra de toque deste trabalho acadeacutemico

No acircmbito da situaccedilatildeo designada como bucoacutelica concebida como uma preacute-

configuraccedilatildeo do idiacutelico tal como desenvolvido no seacuteculo XVIII712 o oacutecio encontra-se

relacionado com a figura do pastor pois a sua atividade proporcionava-lhe ocasiotildees

bastantes para o oacutecio e portanto para o canto713 Eacute bem sabido que natildeo se tratava de

uma representaccedilatildeo realista dos estilos de vida rurais714 Ao separar o pastoreio do seu

campo de atividade original e ao encenaacute-lo como uma mimese da poesia715 o bucoacutelico

tradicional orientou a vida do pastor para uma zona de oacutecio Desde o iniacutecio do

Iluminismo tal artificialidade poeacutetica que envolve a atividade dos pastores tornara-se

cada vez mais problemaacutetica ou pelo menos sujeita a uma exigecircncia de justificaccedilatildeo716

Conquanto o problema da representaccedilatildeo do oacutecio pastoral face agraves condiccedilotildees

rurais caracterizadas por um trabalho aacuterduo e pouco reconhecido do ponto de vista

social constitua um relevante tema de discussatildeo o bucoacutelico do seacuteculo XVIII natildeo foi

criticado somente pela sua inverosimilhanccedila pela sua ausecircncia de realidade tal como

710 Forte L Lob der Faulheit Muszlige und Muumlszligiggang im 19 Jahrhundertldquo In Huber M FeilchenfeldtK (ed) Bildung und Konfession Politik Religion und literarische Identitaumltsbildung 1850ndash1918Tuumlbingen 1996 p80711 Fuest L Poetik des Nicht(s)tuns Verweigerungsstrategien in der Literatur seit 1800 Paderborn2008 p21712 Haumlntzschel G Idylle In Reallexikon der deutschen Literaturwissenschaft vol2 Weimar KFricke H (ed) Berlin 1997 p123 Garber K Bukolik In Fricke HGrubmuumlller K (ed) Reallexikonder deutschen Literaturwissenschaf VolI BerlinNew York 2007 p288 Heller JC Masken derNatur Zur Transformation des Hirtengedichts im 18 Jahrhundert Paderborn 2018713 Scaliger JC Poetices libri septem (Faks-Neudr d Ausg Leipzig von Lyon 1561) Stuttgart BadCannstatt 1987 p6714 Mix Y-G Idyllik Anti-Idyllik Aufklaumlrung und Selbstaufklaumlrung Zur aumlsthetischen undphilosophischen Kritik des Arkadien-Topos In Birkner NMix Y-G (ed) Idyllik im Kontext vonAntike und Moderne Tradition und Transformation eines europaumlischen Topos Berlin 2015 p207715 Iser W Das Fiktive und das Imaginaumlre Perspektiven literarischer Anthropologie Frankfurt a M1993 p70716 Gottsched JC Versuch einer Critischen Dichtkunst 4 Aufl Leipzig 1751 (Darmstadt 1962)p582

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adverte Mix717 O problema realista configurou apenas um aspeto de uma mudanccedila

geral na poeacutetica do idiacutelio no seacuteculo XVIII Esta intensificou-se especialmente a partir de

1800 e neste novo contexto as situaccedilotildees de oacutecio passaram a ser relacionadas com

outras profissotildees ou atividades profissionais nos finais do seacuteculo XVIII por exemplo a

escolha de pescadores em vez de pastores como figuras do idiacutelio podia ser justificada

pelo facto de estes serem demasiado ociosos pois descanso e oacutecio [] sem diligencia

natildeo eram traccedilos de verdadeira felicidade718

A crescente rejeiccedilatildeo cultural e poeacutetica do pastor enquanto figura do idiacutelio par

excellence foi acompanhada por uma extensatildeo do idiacutelio a uma aacuterea de representaccedilatildeo

predominantemente rural Deste modo o idiacutelio passara assim a ser descrito num

sentido mais moderno como um conglomerado natildeo soacute de poesia de pastor mas tambeacutem

de poesia de vida rural719 Em verdade a representaccedilatildeo do trabalho como parte

integrante da ruralidade sempre encontrou o seu lugar na poesia da vida rural720

conquanto na oposiccedilatildeo toacutepica do campo e da cidade a vida rural tambeacutem figure aqui

como a opccedilatildeo menos atarefada Neste contexto a integraccedilatildeo das obras rurais no idiacutelio

do final do seacuteculo XVIII pode ser descrita natildeo soacute como a substituiccedilatildeo da categoria

fundamental do geacutenero do oacutecio pelo trabalho721 mas principalmente como a

transformaccedilatildeo de conceitos idiacutelicos de oacutecio

A vida no campo (Das Landleben) de 1768 de Christian Cay Lorenz Hirschfeld

revela de modo ilustrativo a relaccedilatildeo entre oacutecio vida no campo e trabalho fiacutesico Escrito

num periacuteodo cultural e social anterior agraves turbulecircncias ocorridas a partir de 1800 a

referida obra de Hirschfeld sobre a vida no campo definida como um idiacutelio

pitoresco722 oferece propondo muacuteltiplas evocaccedilotildees e referecircncias relativas ao artigo A

vida do campo (Landleben) na Oeconomischer Encyclopaedie723 da autoria de

Johann Georg Kruumlnitz Contra o desprezo pelo trabalho rural o texto estabelece para

717 Mix Y-G Idyllik Anti-Idyllik Aufklaumlrung und Selbstaufklaumlrung Zur aumlsthetischen undphilosophischen Kritik des Arkadien-Topos In Birkner NMix Y-G (ed) Idyllik im Kontext vonAntike und Moderne Tradition und Transformation eines europaumlischen Topos Berlin 2015 p208718 Bronner FX Neue Fischergedichte und Erzaumlhlungen Zuumlrich 1794 p8719 Boumlschenstein-Schaumlfer R Idylle Stuttgart 1977 pp4 6 p 74720 Garber K Der Locus amoenus und der Locus terribilis Bild und Funktion der Natur in derdeutschen Schaumlfer- und Landlebendichtung des 17 Jahrhunderts Koumlln 1974 p83721 Boumlschenstein-Schaumlfer R Arbeit und Muszlige in der Idyllendichtung des 18 Jahrhunderts InHoffmeister G (ed) Goethezeit Studien zur Erkenntnis und Rezeption Goethes und seiner ZeitgenossenFestschrift fuumlr Stuart Atkins Bern 1981 p27722 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p23723 Consultar bdquoLandlebenldquo In Kruumlnitz JG (ed) Oeconomische Encyclopaumldie oder allgemeinesSystem der Land- Haus- und Staats-Wirthschaft in alphabetischer Ordnung vol 60 Berlin 1773ndash1858pp318ndash358

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aleacutem da referecircncia aos benefiacutecios da agricultura que a sua contemplaccedilatildeo (das

atividades do trabalho rural) recordando-nos as penas dos nossos vizinhos anima

tambeacutem o nosso sentimento de paz e de conforto724 Por outro lado a obra de

Hirschfeld procura tambeacutem avaliar um determinando tipo de indiviacuteduos os designados

distintos ociosos725 para os quais o tempo livre no campo constitui um mero pretexto

para nada fazer pois apesar de contemplarem cem cenas de trabalho de manhatilde cedo ateacute

agrave tarde tais indiviacuteduos natildeo exercem qualquer ocupaccedilatildeo uacutetil agrave sociedade humana nem

entretecircm o espiacuterito com qualquer consideraccedilatildeo adequada agrave dignidade da vida rural726

Assim segundo Hirschfeld por um lado o apreciador do oacutecio natildeo desempenha

qualquer trabalho fiacutesico no campo por outro lado a contemplaccedilatildeo do trabalho fiacutesico

deve destinar-se a evitar que o seu oacutecio se transfigure numa mera situaccedilatildeo de

ociosidade

O significado das perceccedilotildees idiacutelicas insertas num contexto de trabalho agriacutecola

para a definiccedilatildeo e o tratamento filosoacutefico dos conceitos de oacutecio tal como desenvolvidos

a partir de 1800 poderaacute tambeacutem ser relevantemente avaliado no ensaio de Christian

Garve ldquoSobre o oacuteciordquo (Uumlber die Muszlige) De acordo com a tradiccedilatildeo europeia que remonta

agrave antiguidade Garve define o campo como um local privilegiado de oacutecio

Quem poderia falar de oacutecio sem comemorar a vida rural e as ciecircncias Natildeo haacute lugar onde

o oacutecio seja tatildeo desejado como no campo nenhum objeto pode preenchecirc-lo de tal forma

que o cultivo das Ciecircncias727

A demarcaccedilatildeo toacutepica entre o campo e a cidade ndash esta concebida como local de

trabalho comercial [] negoacutecios governamentais e distraccedilotildees728 ndash corresponde agrave

dupla demarcaccedilatildeo entre por um lado o oacutecio e o trabalho (enquanto atividade

heteroacutenoma) e por outro lado entre oacutecio e ociosidade A uacuteltima a ociosidade eacute a

inatividade mas o oacutecio eacute a possibilidade externa de uma atividade voluntaacuteria

autoescolhida portanto a atividade mais nobre729 A caracterizaccedilatildeo do oacutecio como

atividade como ldquooacutecio ativordquo730 eacute pois central para Garve que propotildee inclusivamente

724 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p38725 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p112726 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p114727 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p237728 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p237729 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p234

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a designaccedilatildeo das atividades exercidas no oacutecio como trabalho731 desde que estas sejam

determinadas de uma forma autoacutenoma (como tal e segundo tal perspetivaccedilatildeo nem

todas as atividades satildeo portanto adequadas para o oacutecio)

Garve caracteriza o oacutecio como uma atividade mental relacionando-a natildeo

obstante com o trabalho fiacutesico no campo Tal conceccedilatildeo encontra-se interessantemente

manifesta tambeacutem em termos linguiacutesticos o discurso acerca do cultivo das ciecircncias

em associaccedilatildeo direta com o imaginaacuterio do campo assume-se assim apresentado pois

de acordo com as palavras de Garve a capacidade de desfrutar da vida rural eacute atribuiacuteda

agravequeles que ou cultivam a proacutepria terra que habitam ou cultivam o campo da ciecircncia e

da literatura732 A perspetivaccedilatildeo sobre o ldquocultivordquo da literatura e da ciecircncia ou dos

campos embora mantendo a diferenccedila entre os campos de atividade intelectual e

agriacutecola integra inclusivamente a surpreendente consideraccedilatildeo do oacutecio como metaacutefora

para trabalho O pensamento e a escrita diferem da agricultura no que diz respeito ao

seu campo de atividade mas correspondem-lhe no seu caraacutecter de atividade na medida

em que podem ocupar o seu lugar Enquanto na poesia bucoacutelica o pastor servia como

representante ou equivalente ficcional do oacutecio do poeta aqui jaacute natildeo eacute o oacutecio mas o

trabalho da populaccedilatildeo rural que interveacutem para definir e descrever o acircmbito do oacutecio

como uma atividade diferente mas homoacuteloga sobretudo em distinccedilatildeo agrave ociosidade A

divisatildeo eficaz do trabalho num espetaacuteculo idiacutelico para o ator do oacutecio por um lado e um

trabalho esforccedilado externalizado pela divisatildeo social do trabalho por outro devem-se

tambeacutem a uma mudanccedila funcional da literatura rural no decurso da modernidade

econoacutemica

Muitas das fontes literaacuterias do tempo dizem-nos que falar de vida rural significa cada vez

menos a praacutetica da produccedilatildeo agriacutecola e da sua atividade de mercado mas antes um

conceito de reflexatildeo que expressa estados de espiacuterito e de alma no espelho de uma certa

experiecircncia de existecircncia733

Com a racionalizaccedilatildeo da agricultura e a separaccedilatildeo do trabalho a imagem da vida

rural fora progressivamente substituiacuteda pela da literatura econoacutemica A incorporaccedilatildeo de

730 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p236731 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p239732 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p239733 Fruumlhsorge G Die Kunst des Landlebens Vom Landschloss zum Campingplatz EineKulturgeschichte Muumlnchen 1993 p29

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passagens do livro de Hirschfeld na Enciclopeacutedia Oeconomica revela tratar-se ainda de

um testemunho desta ligaccedilatildeo anterior e igualmente da ligaccedilatildeo entre a perceccedilatildeo esteacutetica

e a reforma econoacutemica ateacute ao momento em que finalmente se prescindira

completamente da idealizaccedilatildeo A este respeito Fruumlhsorge assinala a total ausecircncia de

verbetes dedicados agrave vida rural nas enciclopeacutedias ulteriores734

Tais transformaccedilotildees ocorridas nos modos de representaccedilatildeo da literatura de vida

rural tal como verificadas por volta de 1800 deveratildeo ser entendidas agrave luz da

possibilidade de uma transferecircncia parcial de padrotildees de representaccedilatildeo bucoacutelicos para o

campo da vida rural bem como uma extensatildeo da gama temaacutetica da poesia pastoril Natildeo

eacute mais a figura do pastor mas a ideia de uma existecircncia feliz no campo que representa

uma forma de vida artificialmente estilizada aberta agrave irrupccedilatildeo de determinadas

possibilidades que natildeo tecircm lugar ou efetividade na vida social na cidade A combinaccedilatildeo

de diferentes estrateacutegias de representaccedilatildeo dos respetivos geacuteneros eacute acompanhada de

uma hibridaccedilatildeo dos valores tradicionalmente associados O oacutecio mediado pelos

pastores deveacutem assim um oacutecio ativo conquanto estilizado mas profundamente

relacionado com um modo de vida concreto da vida rural

A partir daqui (e acompanhando este desenvolvimento na poeacutetica idiacutelica do

seacuteculo XVIII) eacute possiacutevel uma abstraccedilatildeo ou formalizaccedilatildeo do idiacutelio que tambeacutem pode

destacar-se de definiccedilotildees temaacuteticas relacionadas com o conteuacutedo como a vida rural

Herder em Adrastea define o idiacutelio como a representaccedilatildeo ou narrativa de um modo

de vida humano de acordo com o seu estado de natureza com a sua elevaccedilatildeo a um ideal

de felicidade e desgraccedila735 Em vez do desenho de uma vida feliz numa aacuterea delimitada

ndash o oacutecio no campo ndash que engloba no seu interior uma outra aacuterea ndash o trabalho agriacutecola

justamente ndash e no qual o oacutecio se reflete encontramo-nos perante o alargamento do

conceito de idiacutelio relativamente a representaccedilotildees de um modo de vida inteira A funccedilatildeo

medial do trabalho agriacutecola como ainda se podia observar em Hirschfeld ou Garve

diminui com efeito a favor da produccedilatildeo ativa do estado idiacutelico tal como jaacute verificado

na uniatildeo do oacutecio e do trabalho rural

Brotando dos nossos coraccedilotildees as nossas mentes devem criar este idiacutelio da vida atraveacutes da

arte completar este claustro da vida atraveacutes da seleccedilatildeo O idiacutelio do vazio as descriccedilotildees da

734 Fruumlhsorge G Landleben Vom Paradies-Bericht zum Natur-Erlebnis Entwicklungsphasenliterarisierter Lebenspraxis In Barner W (ed) Tradition Norm Innovation Soziales und literarischesTraditionsverhalten in der Fruumlhzeit der deutschen Aufklaumlrung Muumlnchen 1989 p165735 Herder JG Idyll In Adrastea (Werke vol10) Arnold G (ed) Frankfurt a M 2000 p281

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natureza os pastores que natildeo existem em nenhum lugar desaparecem nele como

galantarias fugitivas desaparece todo o material de um mundo de imagens alheias a noacutes

de que a nossa imaginaccedilatildeo sabe tatildeo pouco como a nossa sensaccedilatildeo Por outro lado o nosso

mundo em todos os sentidos e costumes entra no belo esplendor de uma nova criaccedilatildeo

espiacuterito e coraccedilatildeo amor generosidade diligecircncia coragem doccedilura criam uma Arcaacutedia no

seu mundo no seu estado ordenando-o desfrutando-o utilizando-o736

O idiacutelio do pastor tradicional eacute aqui evocado pela uacuteltima vez A peculiaridade e a

singularidade das formas individuais de vida deveratildeo concretizar-se tal como Herder as

perspetiva agrave luz das possibilidades de transformaccedilatildeo deste mundo estrangeiro de

imagens mediante a atividade produtiva de criaccedilatildeo do respetivo estado737 que garanta o

idiacutelico para si proacuteprio

Importaria assinalar o modo como no texto de Herder o niacutevel de representaccedilatildeo

esteacutetica se interseta com o idiacutelico enquanto imagem Tal como o idiacutelio da vida deve

ser criado atraveacutes da arte assim tambeacutem estes mesmo domiacutenios vida e arte criam

uma Arcaacutedia no seu mundo Enquanto segundo Iser o bucoacutelico tematiza o

fingimento e assim permite visualizar a ficcionalidade literaacuteria738 no conceito de

idiacutelico de Herder encontramo-nos por sua vez perante um princiacutepio de produtividade

que eacute igualmente eficaz na poesia e na vida combinando a diferenccedila entre os dois

domiacutenios

Esta ecircnfase na dimensatildeo de produtividade afigura-se profundamente distinta das

perspetivaccedilotildees sobre o oacutecio e o idiacutelio anteriormente apresentadas como representativas

do conceito moderno de trabalho No contexto do capitalismo inicial as referecircncias a

gozar e usar exigem uma forma de produccedilatildeo que seja cumprida segundo a satisfaccedilatildeo

das necessidades e correlativamente que seja orientada mais para o valor de utilidade

do que para o valor de troca Se se entende o oacutecio como accedilatildeo autoacutenoma fundada sobre

si mesma que enquanto tal se encontra de certa forma relacionada negativamente

com o trabalho739 importaria concluir pois que o designado trabalho idiacutelicordquo somente

poderaacute tratar-se de um conceito obsoleto pretensamente referido a uma situaccedilatildeo de

736 Herder JG Idyll In Adrastea (Werke vol10) Arnold G (ed) Frankfurt a M 2000 p282737 Para o mestre dos heteroacutenimos de Pessoa o pastor poeacutetico Alberto Caeiro este estado constituiacutea oestado de ldquoum mestre Budista Zen iluminado que vive no aqui e agora concentrando-se no mundoimediato da perceccedilatildeo que dissolve o pensamento (especialmente o pensamento abstrato)738 Iser W Das Fiktive und das Imaginaumlre Perspektiven literarischer Anthropologie Frankfurt a M1993 p60739 Schuumlrmann V Muszlige Bielefeld 2001 p28

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impossiacutevel ou contraditoacuteria realidade ou efetividade e portanto de uma certa forma

relacionado negativamente com o conceito moderno de trabalho

Todavia no contexto da modernidade do mundo da vida e do trabalho no seacuteculo

XIX o idiacutelico natildeo desaparece A compreensatildeo da complexidade de associaccedilotildees

referidas ao idiacutelico na era Biedermeier natildeo obstante a crescente dissoluccedilatildeo de tal

situaccedilatildeo ou realidade ao longo do curso do mencionado seacuteculo740 (como Schneider jaacute

constata no pensamento tardio de Herder) deveraacute tender para a apreciaccedilatildeo da

possibilidade de tal estado conduzir o sujeito do mundo moderno acelerado para o

mais calmo simples e natural e assim criar uma relaccedilatildeo complementar funcional

que se contraponha a uma experiecircncia de uma modernidade aceleradardquo741

740 Schneider HJ Einleitung Antike und Aufklaumlrung Tuumlbingen 1988 p63741 Seeber HU Einleitung In Seeber HU Klussmann PG (ed) Idylle und Modernisierung inder europaumlischen Literatur des 19 Jahrhunderts Bonn 1986 p7

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Capiacutetulo 3

Sobre a possibilidade de inscriccedilatildeo do oacutecio no acircmbito da

modernidade tardia

Um ensaio

Nunca tive dinheiro para poder ter teacutedio agrave vontade

Bernardo Soares Livro do Desassossego

Segundo as conceccedilotildees de Aristoacuteteles expressas na Poliacutetica742 a alianccedila entre o

trabalho e o cultivo do oacutecio com dignidade constitui uma das determinaccedilotildees essenciais

da vida boa O cultivo e a fruiccedilatildeo do oacutecio afiguram-se para o filoacutesofo antigo como

condiccedilotildees propiciadoras do desenvolvimento da educaccedilatildeo do ser humano ndash e o trabalho

por sua vez constitui somente o seu outro lado necessaacuterio Com efeito a sociedade

industrial e o capitalismo nunca aceitaram uma relaccedilatildeo tatildeo equilibrada e

interdependente entre trabalho e oacutecio ndash pelo contraacuterio o trabalho constituiacutera neste

742 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b

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contexto o conceito e a realidade merecedores de todos os enaltecimentos culturais o

oacutecio por sua vez fora parcialmente desacreditado e identificado com preguiccedila e a

sua temporalidade proacutepria possibilidade de realizaccedilatildeo da sua experiecircncia e fruiccedilatildeo fora

reduzida ao acircmbito do ldquotempo livrerdquo Tais transformaccedilotildees tiverem como propoacutesito

como sabemos a reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho destituiacuteda de valor proacuteprio Neste

sentido se a realidade institucionalizada do trabalho procurara controlar o fator

subjetivo e impor aos empregados o espartilho do ldquotu devesrdquo a moderna

ldquosubjetivaccedilatildeo do trabalhordquo743 consiste na configuraccedilatildeo de um incitante ldquotu podesrdquo que

no fundo oculta no seu iacutentimo um ldquoNatildeo podes natildeo quererrdquo Os meacutetodos modernos de

gestatildeo do trabalho procuram capturar a ldquopessoa inteirardquo com todas as suas emoccedilotildees

motivaccedilotildees paixotildees e entusiasmos e assim integraacute-la na totalidade da sua existecircncia

na realidade do trabalho Todas as forccedilas subjetivas devem assim ser direcionadas para

os objetivos da empresa a fim de incrementar a eficiecircncia e o lucro o autocontrolo

voluntaacuterio deve segundo tal loacutegica substituir a dominaccedilatildeo externa Por conseguinte

de acordo com os princiacutepios da loacutegica moderna do trabalho tais exigecircncias ou

submissotildees apresentam-se de modo ocluso como pretensos motivos para o

desenvolvimento pessoal dos trabalhadores Perante tal quadro Foucault designara estes

novos meacutetodos de controlo dos seres humanos segundo o conceito de

governabilidade744 o qual traduz o processo de interiorizar o poder tornando-o

invisiacutevel e insuscetiacutevel de ser confrontado ou destituiacutedo

Privada da fruiccedilatildeo do oacutecio a sociedade natildeo possui cultura num sentido enfaacutetico

ndash apenas induacutestrias culturais destinadas a promover o entretenimento e assim a

diversatildeo e as distraccedilotildees mais inoacutecuas Natildeo obstante se desejarmos dotar com plena

justeza a experiecircncia de oacutecio de um significado social importaria perspetivaacute-lo

tambeacutem agrave luz do conceito do trabalho ndash neste sentido uma ldquovida boardquo deveria integrar

a dimensatildeo do ldquotrabalho bomrdquo tal como escreve Seel745 Que significaria tal realidade a

do ldquotrabalho bomrdquo No reino da liberdade no acircmbito do qual o desenvolvimento

humano constitui um fim em si mesmo a reduccedilatildeo da jornada de trabalho anuncia-se ndash

evoque-se Marx ndash como a condiccedilatildeo baacutesica746 Para Marx o tempo ganho eacute tanto o

743 Moldaschl M Das Subjekt als Objekt der Begierde ndash Die Perspektive der bdquoSubjektivierung vonArbeitldquo Heidelberg 2002744 Foucault M Die Gouvernementalitaumlt In Broumlckling U Krasmann S Lemke T (ed)Gouvernementalitaumlt der Gegenwart Studien zur Oumlkonomisierung des Sozialen Frankfurt a M 2000pp41-60745 Seel M Versuch uumlber die Form des Gluumlcks Frankfurt a M 1999 p142

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tempo de lazer como o tempo destinado a atividades superiores747 Um primeiro passo

para a libertaccedilatildeo da omnipotente obrigaccedilatildeo de trabalhar poderia ser apresentado

segundo a consideraccedilatildeo seacuteria e consequente de um Rendimento Baacutesico Incondicional

(RBI)748 perspetivado como projeto social cujas potencialidades consistiriam na

libertaccedilatildeo das maiores preocupaccedilotildees com o proacuteprio sustento garantindo ao indiviacuteduo

uma certa forma da autonomia749

Libertaccedilatildeo do trabalho e libertaccedilatildeo no trabalho satildeo portanto duas faces da

mesma moeda e que devem representar uma nova premecircncia social no acircmbito de uma

comunidade que deseja efetivar as condiccedilotildees de desenvolvimento da experiecircncia de

fruiccedilatildeo do oacutecio Em primeiro lugar tornar-se-ia necessaacuterio religar o trabalho agraves

necessidades humanas e sociais ao inveacutes de o manter capturado no interior de uma

loacutegica de crescimento econoacutemico A este propoacutesito importaria saber distinguir do

ponto de vista das possibilidades de realizaccedilatildeo digna do ser humano a especificidade de

uma efetiva necessidade social ndash que possa cumprir-se no acircmbito do consumo dos bens

baacutesicos coletivos da sustentabilidade ecoloacutegica e da justiccedila do social ndash de uma

necessidade que visa natildeo mais do que o incremento permanente do crescimento e de

novas possibilidades de utilizaccedilatildeo de capital750 A economia deveria seguir a efetiva

necessidade e natildeo ndash como Luhmann afirma ndash a necessidade da economia751

As necessidades de uma sociedade boa e justa datildeo lugar agrave configuraccedilatildeo das

prestaccedilotildees indispensaacuteveis para alcanccedilar tal propoacutesito Estas prestaccedilotildees devem poder ser

diferenciadas daquelas que apenas conduzem agrave produccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser

vendido ndash forccediladamente pelo marketing e pela publicidade ndash sem considerar

746 Marx K Das Kapital Kritik der politischen Oumlkonomie Die Marx-Engels-Werke vol24 Berlin1976 p828747 Marx K Grundrisse der Kritik der politischen Oumlkonomie In Marx KEngels F Werke vol42Berlin 1983 p599748 A este respeito importaria mencionar a recente publicaccedilatildeo em Portugal de um estudo filosoacuteficoseacuterio e competente acerca de tal mateacuteria Referimo-nos agrave obra intitulada Rendimento BaacutesicoIncondicional Uma Defesa da Liberdade da autoria de Roberto Merrill Sara Bizarro Gonccedilalo Marceloe Jorge Pinto publicada em 2019 (Merril RBizarro SMarcelo GPinto J Rendimento BaacutesicoIncondicional Uma Defesa da Liberdade Lisboa 2009)749 Vanderborght Y van Parijs P Ein Grundeinkommen fuumlr alle Geschichte und Zukunft einesradikalen Vorschlags Frankfurt a M 2005 Arlt H-J Erwerbsarbeit und soziale Existenz Leitbildervon gestern und Werte fuumlr morgen Karlsruhe 2012

750 Neste contexto deve ser claramente enfatizado que nem todas as formas de crescimento econoacutemicosatildeo geralmente rejeitadas aqui (tal como Rosa tambeacutem o considera) Haacute naturalmente muitos paiacuteses (porexemplo no Terceiro Mundo) que dependem urgentemente do crescimento econoacutemico o que natildeo podeser por exemplo o caso dos paiacuteses industrializados do Norte da Europa A criacutetica eacute dirigida contra umaideologia de incremento aceleraccedilatildeo e crescimento por sua proacutepria causa751 Luhmann N Wirtschaft als soziales System Opladen 1974 p208

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consequecircncias a longo prazo Desde que o desempenho do trabalho seja interpretado e

tratado como um fator de custo (Kostenfaktor) as condiccedilotildees de trabalho soacute podem ser

restritivas e onerosas Natildeo obstante importaria reconhecer que o desempenho do

trabalho constitui igualmente uma atividade humana e que como tal deveria ser

avaliada tomando em linha de conta o bem-estar fiacutesico psicoloacutegico e social dos

trabalhadores

Somente no uso eacute que o significado do trabalho se torna real O uso deveria

permanecer intimamente vinculado agrave necessidade real a fim de evitar consumos inuacuteteis

supeacuterfluos ou inclusivamente prejudiciais Mas no contexto da sociedade capitalista

natildeo basta que a necessidade se apresente realmente satisfeita ndash cumpre sim manter os

consumidores num estado de perpeacutetua insatisfaccedilatildeo perniciosamente favoraacutevel agrave venda

incessante de mais produtos pois a pedra de toque da produccedilatildeo capitalista consiste com

efeito em identificar os consumidores estimular os seus desejos criando assim

necessidades artificiais

Juntamente com uma nova e distinta conceccedilatildeo de trabalho que permitiria avaliaacute-

lo na sua possibilidade de libertaccedilatildeo do domiacutenio capitalista a experiecircncia de fruiccedilatildeo do

oacutecio poderia alcanccedilar o seu valor e significados sociais natildeo mais como um privileacutegio

elitista de uns poucos indiviacuteduos mas como um modo de vida coletivo destinado a

produzir e representar o humanum sob a forma de educaccedilatildeo e de cultura A capacidade

de desenvolvimento da experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio deveraacute neste sentido ser passiacutevel

de ser cumprida como uma capacidade individual merecedora de exerciacutecio e de

aperfeiccediloamento que teria como cerne a potencialidade de realizaccedilatildeo de uma certa

forma de desprendimento serena no presente Com o recurso ao termo desprendimento

procuramos caracterizar um determinado estado que livre de constrangimentos e

fixaccedilotildees possa abrir-se agrave ocupaccedilatildeo autoacutenoma e sem propoacutesitos exteriores com as

questotildees espirituais do ser humano no mundo Sem estar compulsivamente focalizado

num determinado resultado o ser humano permitir-se-ia em estado contemplativo

desenvolver uma experiecircncia de fruiccedilatildeo de oacutecio que poderia mas natildeo necessariamente

adquirir os contornos de uma situaccedilatildeo de exerciacutecio do filosofar Com efeito o oacutecio

tambeacutem poderia ser descrito como uma forma paradoxal de passividade ativa ou

atividade passiva assim perspetivado a experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio poderaacute ser

caracterizada pela assunccedilatildeo de um alto niacutevel de alerta mental e por conseguinte como

uma disposiccedilatildeo ou prontidatildeo para receber conhecimento

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Importaria tambeacutem conceber a experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio agrave luz das

potencialidades de configuraccedilatildeo da capacidade que consideramos eminente de

perceccedilatildeo plena do presente Segundo tal estado percetivo encontrar-nos-iacuteamos natildeo

propriamente no acircmbito de uma atividade de aquisiccedilatildeo de conhecimento intelectual

mas no contexto de um modo singular de abertura agrave receccedilatildeo de ideias (a theoria no

sentido grego) repare-se a este propoacutesito que na liacutengua alematilde o termo ideia pode ser

expresso recorrendo agrave palavra Einfall ndash que significa entre outros conceitos ldquoinvasatildeordquo

Tal soa-nos profundamente ilustrativo trata-se da experiecircncia de um certo

autoconhecimento ndash e um conhecimento do mundo que nos invade (einfallen) que nos

encontra e que a noacutes se dirige O momento feacutertil verificado durante este processo

ldquoexiste muitas vezes precisamente onde natildeo se suspeitava e natildeo se procurava752

Atraveacutes da experiecircncia aqui descrita o momento de desprendimento de pensamentos ou

de imagens ndash que deveraacute seguir-se a um intenso e complexo fluxo mental ndash afigura-se

como momento de formulaccedilatildeo ou de descoberta de ideias que em bom rigor como que

nos ldquoinvademrdquo

O exerciacutecio e o desenvolvimento de tal experiecircncia poderiam ser ensinados no

sistema educacional dos nossos estados mas lamentavelmente no atual desenho do

sistema de ensino o oacutecio (acadeacutemico) encontra-se excluiacutedo O que pretenderiacuteamos

referir a este respeito consiste naquilo a que os gregos designaram de aretecirc a

excelecircncia ndash uma atitude e uma atividade (ethos) que ilustram a condiccedilatildeo para o

exerciacutecio de uma vida boa numa sociedade justa Deste modo a experiecircncia de fruiccedilatildeo

do oacutecio tal como a concebemos encontra-se relacionada com a formaccedilatildeo do humanum

tanto no que concerne ao indiviacuteduo quanto no que respeita agrave vida comunitaacuteria Em

tempos mais recentes Gadamer reativou tal perspetivaccedilatildeo de educaccedilatildeo753 convocando

os pensamentos de Herder e de Hegel Gadamer considera a educaccedilatildeo como um dever

que o indiviacuteduo deve manter consigo mesmo destinado agrave aspiraccedilatildeo do ensino superior

para a humanidade num mundo comunitaacuterio A experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio torna-se

agrave luz deste quadro indispensaacutevel para a possibilidade de emergecircncia de tal situaccedilatildeo

formativa do indiviacuteduo Que o exerciacutecio e o desenvolvimento da capacidade de fruir

oacutecio se constitui como um elemento integrante da formaccedilatildeo dos indiviacuteduos e que a sua

752 Kaumlmpf-Jansen H Aumlsthetische Forschung Wege durch Alltag Kunst und Wissenschaft Zu eineminnovativen Konzept aumlsthetischer Bildung Koumlln 2002 p128753 Gadamer H-G Hermeneutik I Wahrheit und Methode Grundzuumlge einer philosophischenHermeneutik Gesammelte Werke vol 1 Tuumlbingen 1990 p15

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promoccedilatildeo se determina como uma tarefa essencial dos Estados o pensamento de

Aristoacuteteles jaacute o contemplava de forma eminente754

Ora a felicidade eacute um fim em si proacuteprio pois todos julgam que natildeo surge acompanhada de

dor mas de prazer No entanto as opiniotildees divergem quando se trata de definir que prazer eacute

esse pois cada qual o determina de acordo com a sua disposiccedilatildeo Uma coisa eacute certa o

melhor prazer eacute o do melhor homem e o que proveacutem das fontes mais excelentes Torna-se

claro portanto que devem ser aprendidas e ensinadas coisas em funccedilatildeo da diagogia e que

esses ensinos e aprendizagens devem ser uacuteteis em si mesmos ao passo que as mateacuterias que

se referem ao trabalho satildeo necessaacuterias e uacuteteis em funccedilatildeo de outras coisas755

No entanto as sociedades da nossa modernidade tardia parecem desenvolver-se

na direccedilatildeo oposta seguindo a pressatildeo da economia a educaccedilatildeo escolar e os estudos

universitaacuterios estatildeo a transformar-se de modo progressivo e como que inexoraacutevel

numa temporada formativa que tem como objetivo a preparaccedilatildeo imediata e exclusiva

para o exerciacutecio de uma profissatildeo Com efeito as nossas organizaccedilotildees educacionais

parecem encontrar-se submetidas aos ditames da usabilidade econoacutemica ndash a pergunta

pela utilidade econoacutemica dos cursos e dos curricula universitaacuterios afirma-se sobre todas

as outras Mas a verdadeira educaccedilatildeo ndash aliada agrave possibilidade de experiecircncia eminente

do oacutecio ndash natildeo possui utilidade exterior a si mesmo natildeo servindo nenhum propoacutesito

externo Lamentavelmente os aspetos educacionais concentrados no desenvolvimento

de uma visatildeo clara e sofisticada do mundo em todas as suas dimensotildees racional-

espiritual e sensual-esteacutetica encontram-se profundamente descurados negligenciados

depreciados

Agrave luz da capability approach756 de Amartya Sen natildeo se trata apenas de chamar

as pessoas a desenvolverem a sua capacidade individual de fruiccedilatildeo de oacutecio a sociedade

e as suas instituiccedilotildees poliacuteticas devem tambeacutem ser impelidas a providenciar as

condiccedilotildees estruturais para tal Natildeo seria portanto absurdo ou destituiacutedo de

razoabilidade ndash como o adverte Bahr ndash exigir uma legislaccedilatildeo que teria de proporcionar

uma educaccedilatildeo geral que reintroduzisse o oacutecio757

754Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b755 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a5-10756 Sen A Capability and well-being In Nussbaum M Sen A (ed) The quality of life Oxford 1993pp30-53757 Bahr H-D Fragment uumlber Muszlige Landsberg 2007 p26

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Recorde-se que Bertrand Russell em 1935 se posicionara a favor da

proclamaccedilatildeo de que a tarefa de uma educaccedilatildeo e ou formaccedilatildeo mais avanccediladas consistiria

em superar a ideologia interiorizada do trabalho e permitir que as pessoas usassem

sabiamente os seus tempos de oacutecio758 Se o oacutecio eacute essencial para o desenvolvimento da

civilizaccedilatildeo759 e o resultado do oacutecio consiste num desenvolvimento abrangente e

completo do homem entatildeo o lado artiacutestico e esteacutetico teraacute de desempenhar igualmente

um papel mais relevante nos processos de aprendizagem escolar que assim merecem o

nome de uma verdadeira ldquoeducaccedilatildeordquo Todavia o caminho de abertura agrave revalorizaccedilatildeo

do oacutecio como parte integrante da formaccedilatildeo do indiviacuteduo deve desenvolver-se se acordo

com a proposta de uma nova conceccedilatildeo de trabalho

Detenhamo-nos neste ponto sobre o conceito de trabalho segundo Marx Com

efeito de acordo com o conceito marxiano de trabalho tal noccedilatildeo deveraacute ser concebida

no seu fundamento como metabolismo com a natureza760 como a praacutetica de

fabricaccedilatildeo da Lebenswelt O trabalho definido por Marx corresponde tanto ao meio

central da exploraccedilatildeo e da alienaccedilatildeo humanas quanto agrave potencialidade de o ser humano

se constituir enquanto tal libertando-se da sua alienaccedilatildeo subjugante761 Em oposiccedilatildeo a

Adam Smith Marx sustenta

Que esta superaccedilatildeo de obstaacuteculos eacute em si mesma uma atividade de liberdade e que para

aleacutem disso os fins externos recebem a aparecircncia de necessidade meramente externa da

natureza despojada sendo definidos como fins que o proacuteprio indiviacuteduo estabelece (assim

como a autorrealizaccedilatildeo a objetivaccedilatildeo do sujeito portanto a liberdade real cuja accedilatildeo eacute o

trabalho)hellip de tal A Smith natildeo suspeita762

Recorde-se pois que o complexo conceito de trabalho de Marx se baseia numa

estrutura antropoloacutegico-utoacutepica Assim escreve Marx nos Manuscritos Econoacutemico-

Filosoacuteficos

O objeto do trabalho eacute portanto a objetivaccedilatildeo da vida do homem na medida em que este

ndash natildeo soacute de um ponto de vista intelectualmente consciente mas tambeacutem em termos de

produccedilatildeo laboral ndash se dobra sobre si proacuteprio olhando-se deparando-se consigo mesmo

758 Russell B Lob des Muumlszligiggangs Muumlnchen 2002 p85759 Russell B Lob des Muumlszligiggangs Muumlnchen 2002 p75760 Marx K Das Kapital Kritik der politischen Oumlkonomie Die Marx-Engels-Werke vol24 Berlin1976 p192761 Consultar Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40Berlin 1983 p510762 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p512

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atraveacutes de um mundo por si criado763

Tal posiccedilatildeo marxiana deve ser perspetivada de um ponto de vista eminentemente

antropoloacutegico o ser humano na sua relaccedilatildeo laboriosa com a natureza ndash avaliada por

Marx como o corpo inorgacircnicordquo764 do humano ndash produz-se a si mesmo enquanto ser

humano justamente e em contraste com o animal Assim esta autogeraccedilatildeo do humano

mediante o trabalho constitui o modo de determinaccedilatildeo da sua proacutepria essecircncia da

essecircncia do seu ser enquanto humano eacute justamente atraveacutes do trabalho que potencia a

configuraccedilatildeo de um ambiente de vida que o humano se constitui enquanto tal O

trabalho enquanto potencialidade de autorrealizaccedilatildeo do homem afigura-se com efeito

como a determinaccedilatildeo antropoloacutegica do ser humano765 De acordo com tal visatildeo

marxiana o ser do humano apresenta-se compreendido agrave luz da noccedilatildeo de projeto ndash o ser

do humano constitui-se como algo que se produz segundo um processo um vir-a-ser

que se desenvolve atraveacutes da atividade do trabalho natildeo se determinando como uma

invariaacutevel ontologicamente configurada como uma essecircncia A produccedilatildeo-de-si mediante

o trabalho afirma-se pois como o ser do ser humano Esta dimensatildeo dinacircmica que

envolve a ideia de autodesenvolvimento do ser humano tal como sustentada por Marx

traduz a sua influecircncia de Hegel Assim se conclui que o desenvolvimento da essecircncia

do ser humano na sua proacutepria humanidade se determina como uma tarefa histoacuterico-

material Esta eacute tambeacutem a visatildeo de Kofler

Mas o homem em virtude da sua capacidade de pensar e agir com consciecircncia (isto eacute de

estar sujeito) alcanccedila formas sempre mais elevadas de liberdade e assim permanece o

verdadeiro sujeito da histoacuteria A histoacuteria aparece aqui como a autorrealizaccedilatildeo do homem

no caminho da realizaccedilatildeo de niacuteveis sempre mais elevados de liberdade Com tal Hegel

fundou o conceito histoacuterico de progresso que Marx adotou766

Do ponto de vista marxiano o sentido de autorrealizaccedilatildeo humana que envolve a

definiccedilatildeo de trabalho natildeo se encontra ainda historicamente alcanccedilado nem

materialmente realizado e cumprido Tal deveraacute ocorrer sobretudo no decurso do

progresso da sociedade como um todo e como seu elemento essencial Todavia e ao

inveacutes das aspiraccedilotildees marxianas a histoacuteria da humanidade tal como a conhecemos tem

763 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p517764 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p517765 Gimmel J Konstellationen negativ-utopischen Denkens Ein Beitrag zu Adornos aporetischemVerfahren Freiburg Muumlnchen 2015 p165766 Kofler L Zur Kritik buumlrgerlicher Freiheit Hamburg 2000 p84

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sido fundamentalmente determinada pelo trabalho alienado que priva as pessoas da sua

essecircncia fazendo-as recuar agrave condiccedilatildeo de animal Tal trabalho alienado poderaacute ser

exemplificado pois como trabalho assalariado em condiccedilotildees capitalistas

Importaria ainda esclarecer que o conceito de oacutecio que aqui tratamos avaliado

como um espaccedilo de acontecimentos da autorrealizaccedilatildeo humana deve ser

fundamentalmente distinguido de um conceito de tempo livre trabalho e tempo livre satildeo

geralmente concebidos como conceitos opostos na medida em que o tempo livre eacute

definido e determinado por natildeo ter de trabalhar ndash uma suspensatildeo do trabalho

justamente Como tal trabalho e tempo livre significam princiacutepios complementares

profundamente interligados de ordem da rotina diaacuteria Em verdade o conceito de

tempo livre eacute um conceito secundaacuterio porque decorrente do conceito de trabalho Em

termos da histoacuteria das ideias ndash e isto eacute especialmente verificaacutevel quando se trata de

fenoacutemenos de oacutecio ndash o conceito de tempo livre estaacute normalmente subordinado ao

campo do trabalho O tempo livre eacute concebido como uma funccedilatildeo do trabalho que serve

ele mesmo para a reproduccedilatildeo do trabalho Na Poliacutetica Aristoacuteteles referia-se a estas

questotildees num tom muito similar a propoacutesito do descanso e da diversatildeo

Com efeito se o trabalho e o oacutecio satildeo indispensaacuteveis para (embora o oacutecio seja preferiacutevel

ao trabalho e ateacute agrave finalidade deste) pesquisemos como deve ser usado o tempo de lazer

Natildeo certamente a jogar porque entatildeo o jogo constituiria forccedilosamente a finalidade da

vida o que eacute impossiacutevel (eacute aliaacutes durante a labuta quotidiana que os jogos satildeo melhor

empregues pois o trabalho aacuterduo exige pausas e os jogos satildeo proacuteprios para dar descanso

sendo que o trabalho implica cansaccedilo e esforccedilo) Nesse sentido importa fomentar os

jogos mas sempre acautelando o momento oportuno da sua utilizaccedilatildeo e aplicando-os

como se de uma terapecircutica se tratasse porquanto o movimento da alma que deles resulta

produz relaxamento e o prazer que deles se retira facilita o descanso767

De acordo com o pensamento de Aristoacuteteles o tempo livre perspetivado como

possibilidade de descanso e de diversatildeo torna-se natildeo exclusivamente a antiacutetese do

trabalho mas sim o seu elemento complementar O tempo livre serve pois o trabalho

e portanto assim o tem como finalidade Todavia segundo Aristoacuteteles o conceito

autenticamente contraacuterio do conceito de trabalho eacute pois o conceito de oacutecio ndash natildeo o

tempo livre ou porventura o descanso ou a diversatildeo Assim clarifica Aristoacuteteles ldquo[] o

767 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b30-40

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oacutecio parece conter em si mesmo prazer felicidade e ventura Os que trabalham natildeo

podem fruir disto mas apenas os que se entregam ao oacuteciordquo768

Neste sentido e enquanto conceito contrastante relativamente ao conceito de

trabalho o oacutecio traduz natildeo um princiacutepio organizador do tempo mas a caracteriacutestica

central da diferenciaccedilatildeo social alguns homens desenvolvem uma vida de e no trabalho

enquanto que os homens livres cumprem uma vida isenta da compulsatildeo do trabalho No

contexto do pensamento de Marx eacute precisamente esta diferenciaccedilatildeo social que ilustra a

relaccedilatildeo de exploraccedilatildeo em funccedilatildeo das aacutereas de trabalho recreaccedilatildeo (tempo livre) e oacutecio

Se na antiguidade (e nas suas sociedades esclavagistas) a exploraccedilatildeo do trabalho

escravo proporcionava uma mais-valia que permitiria uma vida em liberdade para os

seus cidadatildeos no capitalismo por seu turno eacute a exploraccedilatildeo da forccedila de trabalho

proletaacuteria que proporciona lucro ao capitalista Neste contexto o conceito de tempo

livre significa um elemento potenciador da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho dos

explorados que se encontra sujeito a uma loacutegica de eficiecircncia da qual resulta o ritmo da

jornada de trabalho de acordo com os padrotildees de maacuteximo lucro agregado o tempo de

tempo livre deve pois ser limitado ao miacutenimo de modo a que natildeo se reduza o

desempenho no trabalho A este propoacutesito Marx classificara ironicamente esta

estrateacutegia na sua obra-maior O Capital sob o capiacutetulo jornada de trabalho como

pequenos furtos de capital nas refeiccedilotildees e tempos de recuperaccedilatildeo dos

trabalhadores769 Assim a diferenciaccedilatildeo entre trabalho e tempo livre aplica-se apenas

ao assalariado perspetivado como o sucessor do antigo escravo Note-se que Aristoacuteteles

definira a vida do homem livre agrave luz da ausecircncia da necessidade de trabalhar Eacute a

imposiccedilatildeo externa do trabalho que obriga os escravos ou os trabalhadores assalariados

modernos ao descanso e ao tempo livre neste sentido a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles

poderia ser traduzida de forma mais incisiva aqueles que natildeo precisam de tempo livre

satildeo livres770

768 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a1-5769 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p257770 Marx tambeacutem aborda esta circunstacircncia Depois de criticar o conceito de trabalho de Smith Marxnatildeo obstante admite No entanto ele [Smith] estaacute certo de que nas formas histoacutericas do trabalho comotrabalho escravo trabalho fronteiriccedilo e trabalho assalariado o trabalho sempre parece repulsivo semprecomo trabalho forccedilado extremo e o natildeo-trabalho como liberdade e felicidade por relaccedilatildeo com aquele(Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin 1983p512)

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Poder-se-ia na limitaccedilatildeo radical do tempo de trabalho efetuado no acircmbito da

sociedade da modernidade tardia discernir um momento que potenciaria a fuga ao

caraacutecter viciante das formas de produccedilatildeo capitalista Com efeito a demanda por uma

forma de abstinecircncia que recoloca a relaccedilatildeo entre a satisfaccedilatildeo da necessidade e o

desempenho no trabalho num contexto significativo poderia ser assim avaliada

Giorgio Agamben perspetiva na possibilidade de abstenccedilatildeo (o natildeo-fazer ou natildeo-

participar) o proprium do homem ndash trata-se pois segundo o filoacutesofo italiano de uma

faculdade essencial extraordinaacuteria do ser humano que o diferencia de todos os outros

seres vivos Para Agamben o ser humano eacute essencialmente um ser de possibilidade

um ser cuja vida consiste em ser livre isto eacute em cumprir as oportunidades ou

abandonaacute-las Convocando a filosofia de Aristoacuteteles Agamben sustenta que a potecircncia

de fazer algo (ou ser algo) eacute igualmente e desde sempre a potecircncia de natildeo fazer (ou

natildeo ser) o filoacutesofo italiano procura neste sentido pensar a potecircncia como potecircncia isto

eacute pensar a possibilidade como possibilidade

O que [] [Aristoacuteteles] procura pensar no livro theta da Metafiacutesica eacute por outras palavras

natildeo a potecircncia como pura possibilidade mas os modos efetivos da sua existecircncia Portanto

ndash e porque natildeo se evapora de uma soacute vez e diretamente na accedilatildeo mas possui a sua proacutepria

existecircncia ndash a potecircncia natildeo tem necessariamente de poder passar a ato o natildeo ter que ser

(ou o natildeo ter que fazer) eacute tambeacutem e de modo constitutivo potecircncia []771

A potecircncia genuinamente humana para se abster ou para ser inativo a

possibilidade de natildeo transferir uma possibilidade para o ato a potencialidade de natildeo

realizar uma possibilidade ndash eis pois o que segundo Agambem deve ser preservado

para que o homem seja livre podendo cumprir-se como ser humano Ao contraacuterio se o

ser humano tivesse de cumprir em ato todas as suas potecircncias de tal modo que todas

as suas possibilidades tivessem de ser transformadas em realidade entatildeo o ser humano

encontrar-se-ia privado de liberdade ndash pois de acordo com Agambem a liberdade

humana consiste justamente no facto de que o que se pode fazer pode igualmente ser

recusado ser feito Agamben formula tal pensamento no seu livro Laperto Luomo e

lanimale (2002) no qual define a inatividade e o fazer-nada como a forma mais alta

da vida e principalmente no epiacutelogo da obra La communitagrave che viene (1990) onde

faz alusatildeo a especulaccedilotildees teoloacutegicas judaicas

No Saacutebado abster-nos-emos [] de qualquer trabalho produtivo [] Uma atividade

771 Agamben G Das Offene Der Mensch und das Tier Frankfurt aM 2002 p55

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puramente destrutiva ou natildeo criativa [] a qual decorresse do oacutecio sabaacutetico natildeo seria no

entanto proibida Natildeo o trabalho mas a inatividade e a discriccedilatildeo satildeo o paradigma da

poliacutetica vindoura [] A salvaccedilatildeo [] que eacute o assunto deste livro natildeo eacute uma obra mas um

certo tipo de vazio sabaacutetico [] Portanto este livro natildeo trata da questatildeo o que fazer mas

da questatildeo como fazer Inatividade natildeo significa ineacutercia mas [] uma operaccedilatildeo em que o

como substitui o quecirc [hellip]772

Aqui Agamben convoca um pensamento de Adorno exposto em Minima

Moralia (1951) sobre a forma da sociedade utoacutepica justa de acordo com o filoacutesofo

alematildeo o fim da produtividade anuncia-se como a caracteriacutestica essencial da sociedade

justa (vindoura) cuja diferenccedila constitutiva relativamente ao capitalismo (e ao estado de

coisas existente) consiste na sua possibilidade de configurar-se como uma alteridade

pouco percetiacutevel um discreto outro ser-como da atividade

A casa agrave crianccedila que regressa das feacuterias parece-lhe nova fresca festiva Mas

nada nela mudou desde que a deixara O simples facto de esquecer o dever [hellip] restitui

agrave casa a sua paz sabaacutetica [hellip] Natildeo de outro modo surgiraacute o mundo ndash quase sem

mudanccedila ndash agrave perpeacutetua luz da sua festividade quando jaacute natildeo se encontrar sob a lei do

trabalho e para quem regressa a casa o dever eacute tatildeo faacutecil como o jogo nas feacuterias 773

A este respeito importaria sublinhar que Agamben e Adorno natildeo identificam a

redenccedilatildeo da alienaccedilatildeo e da dominaccedilatildeo com a cessaccedilatildeo completa de toda a produtividade

e de toda a accedilatildeo (posiccedilatildeo que de certa forma se apresenta em conformidade com as

visotildees de Hegel e de Marx acerca do trabalho como determinaccedilatildeo essencial do ser

humano) ndash de modo distinto os dois filoacutesofos propotildeem uma interpretaccedilatildeo do conceito

de trabalho agrave luz da possibilidade de exerciacutecio da produccedilatildeo como um ldquojogo de

autorrealizaccedilatildeordquo potenciando no acircmbito da sociedade justa liberta de todo o designado

ldquotrabalho alienanterdquo sustentado numa loacutegica inexoraacutevel que conduz ao incremento sem

rumo e sem propoacutesito da produccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo de tal estado assim descrito e proposto Agamben evoca a

ceacutelebre maacutexima do Escrivatildeo de Melville Bartleby774 I would prefer not to ndash Eu

preferiria natildeo fazer Tal maacutexima como sabemos constitui a foacutermula com a qual

Bartleby o funcionaacuterio de um escritoacuterio de advocacia de Nova Iorque em Wall Street

escapa furtando-se a qualquer atividade O propoacutesito de Agambem evocando o escrito

772 Agamben G La communitagrave che viene Torino 2001 p92773 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 sect72774 Agamben G Bartleby oder die Kontingenz Berlin 1998 p37

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de Melville consiste em perspetivar a sentenccedila de Bartleby como a foacutermula de uma

resistecircncia poacutes-utopia para aleacutem do carrossel poliacutetico-potencial de dominaccedilatildeo e

servidatildeo em que as posiccedilotildees de mestre e servo podem ser alteradas mas a dominaccedilatildeo

enquanto tal permanece intocada ndash pois Bartleby natildeo concordando com as solicitaccedilotildees

que lhe satildeo impostas natildeo recusa mera e simplesmente e nada estaacute mais longe dele do

que o heroico pathos da negaccedilatildeo775 como sublinha Agamben Atraveacutes do recurso agraves

expressotildees serenidade e abandono Agamben procura designar o estado utoacutepico de

redenccedilatildeo sabaacutetica Neste ponto Agamben parece referir-se uma vez mais a Adorno

que descreve o estado de salvaccedilatildeo no qual o homem pode abster-se de agir e assim

olhar pacificamente para o ceacuteu como um animal (e como Rousseau ao longo das suas

promenades)

Talvez a verdadeira sociedade se canse do desenvolvimento e deixe por liberdade sem

aproveitar possibilidades em vez de tomar de assalto com compulsatildeo maniacuteaca estrelas

desconhecidas Para uma humanidade que jaacute natildeo conheccedila a miseacuteria amanhece algo do

deliacuterio da infrutuosidade de todas as accedilotildees ateacute entatildeo realizadas para fugir agrave miseacuteria e que

reproduziam engrandecida a miseacuteria juntamente com a riqueza [hellip] Rien faire comme

une becircte deitado sobre a aacutegua e olhar tranquilamente para o ceacuteu ser nada mais sem

outra determinaccedilatildeo ou cumprimento poderia substituir o processo o fazer o cumprir

[hellip]776

Tal consistiria pois numa vida de oacutecio que dificilmente atribuiremos ao

empresaacuterio ocupado dos tempos modernos A diferenccedila conceptual entre as formas

antigas e as formas modernas de interpretaccedilatildeo do conceito de trabalho poderaacute ser

clarificada agrave luz da anaacutelise do entendimento do conceito de oacutecio no acircmbito de uma

perspetivaccedilatildeo moderna encontramo-nos com efeito perante o cada-vez-mais e nunca-

suficiente que tende a tornar infinito o processo de produccedilatildeo e a intensificar a demanda

por desempenho Neste sentido e tendo presente os quadros antigos e modernos de

perspetivaccedilatildeo do trabalho propomos compreender e descrever o oacutecio como uma

situaccedilatildeo em que as pessoas satildeo libertadas da compulsatildeo de trabalharem aleacutem dos seus

limites impostos pela necessidade ou por inquietaccedilotildees interiores no acircmbito de uma

sociedade desenhada na modernidade tardia ndash uma sociedade que segundo Byun Chul

Han operou a mudanccedila de paradigma de uma configuraccedilatildeo disciplinar no sentido de

775 Agamben G Bartleby oder die Kontingenz Berlin 1998 p38776 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 sect100

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Foucault para uma sociedade de desempenho777 tal mudanccedila de paradigma tal como

Byun Chul Han constitui com efeito uma continuidade e natildeo propriamente uma

qualquer rutura

O inconsciente social tem evidentemente a aspiraccedilatildeo de maximizar a produccedilatildeo Atingido

um determinado niacutevel de produtividade a teacutecnica disciplinar isto eacute o esquema negativo

da proibiccedilatildeo rapidamente atinge os seus limites Devido ao incremento da produccedilatildeo o

paradigma da disciplina eacute substituiacutedo pelo paradigma de desempenho isto eacute pelo esquema

positivo do verbo ldquopoderrdquo (koumlnnenrdquo) pois a partir de um determinado niacutevel de produccedilatildeo

a negatividade de proibiccedilatildeo bloqueia e impede um novo incremento A positividade do

ldquopoderrdquo eacute muito mais eficaz do que a negatividade do ldquodeverrdquo Como tal o inconsciente

social altera-se do ldquodeverrdquo para o ldquopoderrdquo O sujeito do desempenho eacute mais raacutepido e mais

produtivo do que o sujeito disciplinar O ldquopoderrdquo natildeo anula poreacutem o ldquodeverrdquo O sujeito

do desempenho continua a ser disciplinado uma vez que jaacute passou pelo estaacutedio da

disciplina O ldquopoderrdquo aumenta o niacutevel de produtividade778

No que concerne agrave situaccedilatildeo psicoloacutegica dos indiviacuteduos da modernidade tardia

Han refere-se agraves posiccedilotildees de Alain Ehrenberg

Alain Ehrenberg situa a depressatildeo no momento de transiccedilatildeo da sociedade disciplinar para

a sociedade de desempenho ldquoA carreira da depressatildeo comeccedila no momento em que o

modelo disciplinar de controlo comportamental modelo que atribuiacutea de modelo

autoritaacuterio e reprimido um determinado papel a cada classe social e a cada um dos sexos

eacute substituiacutedo por uma norma que induz cada indiviacuteduo agrave iniciativa pessoal obrigando-o a

tornar-se a ele mesmo (hellip) O homem deprimidohellip estaacute cansado de esforccedilar-se de tornar-

se ele mesmohellip Natildeo deixa de ser controverso que Alain Ehrenberg trate a depressatildeo

apenas de um ponto de vista da economia do lsquoeu mesmorsquo (Selbst) Para o socioacutelogo

francecircs a depressatildeo decorre do imperativo social de ser o lsquoeu mesmorsquo a depressatildeo

traduziria assim a expressatildeo patoloacutegica do fracasso do indiviacuteduo em ser ele mesmo na

modernidade tardia hellip Ehrenberg natildeo aborda a violecircncia sisteacutemica inerente agrave sociedade de

empenho que provoca enfartes psiacutequicos A depressatildeo provocada por esgotamento natildeo

tem como origem o imperativo de estar entregue apenas a si mesmo mas sim de acordo

com Ehrenberg a pressatildeo por um maior desempenho779

777 Lamentavelmente o tradutor da ediccedilatildeo portuguesa do livro de Byun-Chul HanMuumldigkeitsgesellschaft (Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa2014) traduziu o termo alematildeo ldquoLeistungsgesellschaftrdquo por sociedade de produccedilatildeo o que natildeo eacutecompletamente correto neste contexto Seria preferiacutevel o recurso agrave traduccedilatildeo sociedade de empenho Aleacutemdisso o termo psicoloacutegicosocioloacutegico inconsciente social foi traduzido como o sujeito sem consciecircnciasocial o que tambeacutem nos soa inapropriado778 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 pp20-21779 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 pp21-22

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Continuamente

Alain Ehrenberg compara de modo erroacuteneo o tipo de homem da atualidade com o homem

soberano de Nietzsche ldquoO homem soberano semelhante a si mesmo e anunciado por

Nietzsche estaacute a ponto de se tornar realidade massificada Nada haacute acima dele que lhe

possa impor diretrizes ou prescriccedilotildees jaacute que se julga o uacutenico senhor de si mesmordquo Seria

precisamente Nietzsche o primeiro a dizer que o tipo de homem que se encontra a ponto de

se tornar realidade massificada natildeo corresponderia ao super-homem soberano mas sim

ao uacuteltimo homem que apenas trabalhahellipO homem depressivo eacute o animal laborans que se

explora a si mesmo780

Segundo a conceccedilatildeo aristoteacutelica de felicidade e de vida virtuosa tal quadro

traduziria uma apropriaccedilatildeo indevida da possibilidade fundamental inerente agrave perfeiccedilatildeo

humana a qual deve sim ser cumprida agrave luz do conceito de ergon de autopropoacutesito

consistindo a perfeiccedilatildeo humana na realizaccedilatildeo de um tipo de accedilatildeo que se exerce dentro

dos seus proacuteprios limites sem expansatildeo ou incremento externos Recorde-se pois que

de acordo com Aristoacuteteles a realizaccedilatildeo das accedilotildees humanas determinada segundo o

saber eacutetico da justa medida constitui a caracteriacutestica essencial da perfeiccedilatildeo e da

felicidade Correlativamente e tendo presente que o oacutecio poderia significar em traccedilos

essenciais uma situaccedilatildeo em que as pessoas poderiam ser libertadas da obrigaccedilatildeo de

ultrapassar as suas fronteiras internas seja por necessidade interior ou imposiccedilatildeo

externa a analogia do oacutecio com a paz tambeacutem poderia ser aqui pertinentemente

proposta Paz e oacutecio poderiam traduzir espaccedilos livres de possibilidades nos quais a

plenitude harmoniosa ndash no sentido de autossuficiecircncia e autossatisfaccedilatildeo ndash permite a

possibilidade de conduccedilatildeo a determinados sentidos de perfeiccedilatildeo perspetivada por sua

vez agrave luz de ideais antigos de vida praacutetica tomados como contramodelos do progresso e

do crescimento ilimitados que envolvem a nossa modernidade tardia Natildeo se trata com

efeito de proclamar mediante a proposta de um conceito de oacutecio enquanto conceito

criacutetico a aceacuterrima oposiccedilatildeo relativamente ao trabalho e agrave produccedilatildeo laboral ndash mas sim

de perspetivar o oacutecio enquanto espectro de possibilidades que permitem a libertaccedilatildeo dos

sujeitos perante a coaccedilatildeo da expansatildeo e do incremento sem fim e sem finalidade do

trabalho A liberdade do oacutecio relativamente agrave coaccedilatildeo do trabalho ndash e oacutecio neste ponto

natildeo deve ser confundido com o mero tempo livre como recreaccedilatildeo ndash constitui a liberdade

de possibilitaccedilatildeo de modos de vida boa que possua o seu fim em si mesma e que se

realiza em atividades como a arte a sociabilidade livre a contemplaccedilatildeo espiritual e a

780 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p23

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teoria781 A vida boa encontra a sua realizaccedilatildeo em si mesma sem ser orientada para

qualquer propoacutesito externo A vida boa natildeo traduz um mero tempo livre supostamente

isento de trabalho coagido ndash ela natildeo constitui uma pausa numa qualquer tarefa

exteriormente imposta ao contraacuterio a vida boa natildeo eacute uma tarefa ndash eacute um saber viver eacute

um ethos

Num contexto moderno como bem sabemos e tal como Marx o formulara a

ordem econoacutemica capitalista eacute determinada por uma loacutegica interna que obriga e

condiciona igualmente o explorador do trabalho assalariado natildeo se trata da coaccedilatildeo a

trabalhar (no sentido de trabalho assalariado) mas da coaccedilatildeo agrave acumulaccedilatildeo eterna de

capital782 Eacute necessaacuterio acumular mais-valias para vencer no sistema competitivo do

mercado Segundo Marx o capitalista afigura-se dependente da expansatildeo infinita Neste

sentido importaria elucidar a diferenccedila constitutiva entre o capitalista e o cidadatildeo livre

da polis o capitalista ele proacuteprio encontra-se sujeito a uma coaccedilatildeo a um viacutecio isto eacute o

de expandir a sua riqueza incessantemente inexoravelmente O capitalista natildeo conhece

pois verdadeiramente o oacutecio Concluir-se-ia a partir de tal posiccedilatildeo que o oacutecio ndash no

sentido eminente que decorre das formulaccedilotildees de Aristoacuteteles ndash natildeo tem lugar ou

presenccedila na modernidade capitalista O trabalho ndash que configura de modo tatildeo

dominante quatildeo inexoraacutevel o nosso mundo atual ndash natildeo decorre de uma necessidade

real natildeo conduz agrave satisfaccedilatildeo real das necessidades e natildeo traduz uma demanda por uma

produccedilatildeo significativa de bens com uma destinaccedilatildeo efetiva trata-se de um modo

distinto de um processo que visa a destruiccedilatildeo uacuteltima dos bens produzidos e vendidos de

modo a que estes sejam substituiacutedos por outros bens sempre novos ndash a loacutegica do

781 Peter Sloterdijk sobre teoria na Modernidade ldquoQuero dar a um poeta a uacuteltima palavra para articular afelicidade e a miseacuteria da vida de teoria De facto nos tempos modernos satildeo os poetas e natildeo os filoacutesofosque conseguem expressar a Dasein na epocheacute involuntaacuteria do homem melancoacutelico e a descriccedilatildeovoluntaacuteria do observador excecircntrico Deixamos o mundo muitas vezes confinado e confinante dasdisciplinas cientiacuteficas e entramos na esfera da marginalidade soberana quando lemos no Livro doDesassossego de composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboabdquoe do alto da majestade de todos os sonhos ajudante de guarda-livros na cidade de LisboaMas o contraste natildeo me esmaga ndash liberta-me e a ironia que haacute nele eacute sangue meu O que deverahumilhar-me eacute a minha bandeira que desfraldo e o riso com que deveria rir de mim eacute um clarim comque sauacutedo e gero uma alvorada em que me faccediloA gloacuteria nocturna de ser grande natildeo sendo nada A majestade sombria de esplendor desconhecido Esinto de repente o sublime do monge no ermo e do eremita no retiro inteirado da substacircncia do Cristonas pedras e nas cavernas do afastamento do mundoE na mesa do meu quarto absurdo reles empregado e anoacutenimo escrevo palavras como a salvaccedilatildeo daalma e douro-medo poente impossiacutevel de montes altos vastos e longiacutenquos da minha estaacutetua recebida porprazeres e do anel de renuacutencia em meu dedo evangeacutelico joacuteia parada do meu desdeacutem extaacuteticordquoSloterdijkP Scheintod im Denken Von Philosophie und Wissenschaft als Uumlbung Berlin 2010 pp146-147782 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 23 capiacutetulo VII

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consumo infinito encontra-se aqui a sua justificaccedilatildeo Segundo tal quadro o trabalho

tende a tornar-se um processo sem sentido vatildeo fuacutetil e inesperadamente mais proacuteximo

de acontecimentos de diversatildeo pautado por estrutura viciante e por uma loacutegica de

produccedilatildeo econoacutemica no sentido convencional Hannah Arendt descreveu este fenoacutemeno

em Vita activa da seguinte forma

O milagre econoacutemico alematildeo poderia ser um exemplo claacutessico do facto de nas condiccedilotildees

modernas a destruiccedilatildeo da propriedade privada a destruiccedilatildeo do mundo dos objetos e o

esmagamento de cidades natildeo produzirem pobreza mas sim riqueza que estes processos

de destruiccedilatildeo se transformem natildeo numa reconstruccedilatildeo dos destruiacutedos mas antes num

processo de acumulaccedilatildeo incomparavelmente mais raacutepido e mais eficaz traduz a uacutenica

condiccedilatildeo para que um determinado paiacutes seja suficientemente moderno permitindo-se

assim reagir a tal destruiccedilatildeo com um incremento da produccedilatildeo783

Nesta descriccedilatildeo de uma processualidade que atinge incrementos exponenciais de

produccedilatildeo recorrendo a formas de aniquilaccedilatildeo Hannah Arendt concebe o proacuteprio

caraacutecter distintivo da modernidade como alienaccedilatildeo radical do mundo devido a uma

totalizaccedilatildeo do conceito de trabalho784 As posiccedilotildees de Arendt ndash como que convocando

Marx ndash propotildeem a necessidade de configuraccedilatildeo de uma alternativa mais humana

nomeadamente atraveacutes da reformulaccedilatildeo da noccedilatildeo de verdadeira riqueza Eis o que

Marx escrevera sobre tal questatildeo

a verdadeira riqueza [] eacute o tempo que natildeo eacute absorvido pelo trabalho diretamente

produtivo mas pelo prazer pelo oacutecio para que decirc lugar agrave livre atividade e

desenvolvimento785

E seguidamente

Mas o tempo livre o tempo disponiacutevel eacute a proacutepria riqueza em parte destinado ao gozo dos

produtos em parte dirigida agrave livre atividade que natildeo eacute como o trabalho determinada pela

coaccedilatildeo de um propoacutesito externo que deve ser cumprido e cujo cumprimento eacute uma

necessidade natural ou um dever social786

Na sociedade ideal comunista tal como Marx a concebera a verdadeira

riqueza resultaria da potencialidade de o trabalho efetivamente necessaacuterio ser

783 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p323784 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p367785 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p252786 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p253

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minimizado ao ponto de um maacuteximo de tempo livre se tornar possiacutevel Tal significaria

uma emancipaccedilatildeo social dos indiviacuteduos com vista agrave sua proacutepria liberdade que Ernst

Bloch na sua obra Das Prinzip Hoffnung (1954) descrevera agrave luz da expressatildeo

atividade no oacutecio787 perspetivando a utopia comunista como um oacutecio ativo em todos

os campos788 A loacutegica da exploraccedilatildeo social alterar-se-ia ndash pois a limitaccedilatildeo da riqueza

material agrave satisfaccedilatildeo das necessidades efetivamente necessaacuterias conduziria agrave abdicaccedilatildeo

do tempo livre enquanto mera funccedilatildeo do trabalho e agrave fruiccedilatildeo do oacutecio na sua

determinaccedilatildeo mais eminente O oacutecio assim compreendido significaria a realizaccedilatildeo de

atividades livres de imposiccedilatildeo externa ndash tratar-se-ia enfim do cumprimento de

atividades livres e desenvolvidas segundo finalidades proacuteprias De acordo com tal visatildeo

utoacutepica da sociedade comunista o tempo livre e o oacutecio convergem no contexto de uma

minimizaccedilatildeo do trabalho necessaacuterio (Tempo livre e o oacutecio natildeo significam o mesmo O

tempo livro eacute condiccedilatildeo para o oacutecio mas natildeo suficiente) Simultaneamente o contraste

claacutessico entre trabalho e oacutecio torna-se difuso na medida em que o trabalho jaacute natildeo teria

de ser considerado essencialmente como alienado mas poderia ser entendido num

sentido profundamente emancipatoacuterio como autorrealizaccedilatildeo

Com Marx um novo conceito de oacutecio poderia assim ser associado ao conceito

de trabalho ndash pois de acordo com os dois filoacutesofos trabalho significa em verdade a

atividade humana de autorrealizaccedilatildeo cumprida segundo propoacutesitos internos e

autoacutenomos (natildeo heteroacutenomos) desvinculada da obrigaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo de objetivos

externos e livre de coerccedilatildeo externa O trabalho assim definido integra todas as

determinaccedilotildees centrais do oacutecio ndash interessantemente tal conceito de trabalho traduziria

em uacuteltima consequecircncia uma descriccedilatildeo das atividades que as pessoas fazem quando

estatildeo livres da coerccedilatildeo para trabalhar no duplo sentido de estar livre da coerccedilatildeo da

dependecircncia e da necessidade de trabalhar Mas seraacute que tal conceito de trabalho pode

realmente ser estabelecido Natildeo faraacute mais sentido sustentar abertamente que natildeo soacute o

trabalho no sentido da sociedade do desempenho merece reconhecimento social mas

tambeacutem uma vida de oacutecio sem as coaccedilotildees de produtividade que se verificam no domiacutenio

do trabalho Haacute nos dias de hoje uma tendecircncia a conceber cada vez mais aacutereas da

vida como aacutereas de trabalho a fim de poder conferir-lhes verdadeiro reconhecimento789

787 Bloch E Das Prinzip Hoffnung Frankfurt a M 1982 p1083788 Bloch E Das Prinzip Hoffnung Frankfurt a M 1982 p1080789 Krebs A Arbeit und Liebe Die philosophischen Grundlagen sozialer Gerechtigkeit Frankfurt a M2002 A autora combina aqui o conceito de reconhecimento social com o de trabalho refletindo sobre oconceito especiacutefico de um trabalho socialmente relevante O conceito de oacutecio que natildeo tem de definir oreconhecimento social por uma produccedilatildeo externa poderia ser oposto ao conceito de trabalho aqui jaacute

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ldquoTrabalho de relacionamentordquo ldquotrabalho de cuidadordquo ldquotrabalho de almardquo etc satildeo

exemplos de um desejaacutevel alargamento do conceito de trabalho com vista agrave integraccedilatildeo

dos domiacutenios das relaccedilotildees interpessoais ou da autorreferecircncia que tambeacutem merecem

reconhecimento enquanto trabalho para aleacutem das questotildees de eficiecircncia necessidade e

benefiacutecio social Atraveacutes da reformulaccedilatildeo criacutetica do conceito de oacutecio proporiacuteamos a

possibilidade de contrariar uma expansatildeo inflacionaacuteria da retoacuterica do desempenho e do

trabalho coercivo independentemente de se ter de afirmar que o proacuteprio modelo antigo

de oacutecio se baseou numa ideologia de exclusatildeo social servidatildeo e exploraccedilatildeo790

Cumpriria assim levantar a questatildeo acerca do modo como as mudanccedilas nas

formas contemporacircneas de trabalho afetam a relaccedilatildeo entre trabalho e tempo livre

Fenoacutemenos como a flexibilizaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho o trabalho de home office e o

falso autoemprego indicam que o trabalho assalariado claacutessico e por conseguinte o

horaacuterio rigoroso de trabalho e de oacutecio estatildeo a perder a sua importacircncia Ainda temos

tempo livre quando nos tornamos empresaacuterios de noacutes mesmo Byan Chul Han

responde

A sociedade do seacuteculo XXI jaacute natildeo eacute uma sociedade disciplinar mas uma sociedade de

desempenho Tambeacutem os seus habitantes natildeo satildeo nomeados ldquosujeitos de obediecircnciardquo mas

sujeitos de desempenho Satildeo empresaacuterios de si proacuteprios791

Continuamente

Reage-se a esta vida nua (e convertida em algo radicalmente efeacutemero) com a

hiperatividade e a histeria do trabalho e da produccedilatildeo A aceleraccedilatildeo atual tem tambeacutem

muito que ver com esta carecircncia de ser A sociedade de trabalho e de desempenho natildeo eacute

uma sociedade livre pois ela produz novas coaccedilotildees A dialeacutetica do senhor e do escravo

natildeo desemboca afinal numa sociedade em que cada homem eacute um ser livre passiacutevel de se

entregar ao oacutecio Ela conduz ao inveacutes a uma sociedade de trabalho em que o proacuteprio

senhor se tornou escravo do trabalho Nesta sociedade coerciva cada homem transporta

consigo o seu proacuteprio campo de trabalho forccedilado A particularidade deste campo de

trabalho forccedilado consiste no facto de cada um ser ao mesmo tempo prisioneiro e capataz

viacutetima e agressor Desta forma cada um explora-se a si mesmo792

No acircmbito de profissotildees que permitem a organizaccedilatildeo do proacuteprio tempo de

trabalho como as profissotildees artiacutesticas ou cientiacuteficas sabe-se que eacute difiacutecil traccedilar a linha

alargado790 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 p241791 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p19792 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p37

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estrita entre tempo livre e trabalho ou igualmente desenvolver um esforccedilo para impor

a si mesmo um plano de trabalho e de recuperaccedilatildeo consistente A pergunta eacute oacutebvia

podemos afirmar que tais formas de trabalho tornam o oacutecio parte integrante do proacuteprio

trabalho na medida em que permitem a isenccedilatildeo perante a coaccedilatildeo externa de trabalhar

num determinado momento ndash ou pelo contraacuterio seraacute que tais formas de trabalho

conduzem de um modo tatildeo inesperado quatildeo pernicioso agrave minimizaccedilatildeo do oacutecio de uma

forma tatildeo eficiente e tatildeo desejaacutevel no acircmbito da sociedade capitalista Talvez a resposta

mais apropriada a tal questatildeo consista natildeo obstante em formular a interrogaccedilatildeo tratar-

se-ia ainda de estar-se sujeito agrave coaccedilatildeo de trabalhar Com efeito se a coaccedilatildeo agrave

produtividade externa permanecer intacta a transferecircncia para a proacutepria organizaccedilatildeo do

dia tende a tornar-se a maximizaccedilatildeo da (auto)exploraccedilatildeo Um trabalho com oacutecio seria

somente concebiacutevel sem a coaccedilatildeo de trabalhar Entatildeo o tempo livre natildeo mais seria

necessaacuterio pois seriacuteamos soberanos do proacuteprio tempo Neste contexto a relaccedilatildeo entre

o oacutecio e a demanda sociopoliacutetica por um rendimento baacutesico incondicional793 que se

refere precisamente agrave possibilidade de circunstacircncias pautadas por uma produtividade

livre de coerccedilatildeo (para trabalhar) teria de ser considerada e elucidada A tendecircncia para

dissolver a distinccedilatildeo entre trabalho e tempo livre no entanto apresenta uma outra

faceta O tempo livre natildeo constitui apenas uma funccedilatildeo do trabalho supostamente

regeneradora da matildeo-de-obra ndash o tempo livre torna efetivos a existecircncia e o

desenvolvimento de um mercado de consumo dos produtos do trabalho Neste sentido

os tempos de recreaccedilatildeo diversatildeo prazer e relaxamento encontram-se tambeacutem eles

sujeitos a uma crescente economizaccedilatildeo nos tempos livres consome-se e compra-se o

que foi produzido no trabalho Como eacute sabido os niacuteveis de consumo verificados no

designado tempo livre aumentaram enormemente nas uacuteltimas deacutecadas Dificilmente

poder-se-ia imaginar um tempo livre sem meios eletroacutenicos de comunicaccedilatildeo e de

entretenimento sempre novos sempre mais acelerados e sempre mais capazes ou

passiacuteveis de desenvolvimento de dependecircncia nos seus utilizadores dificilmente poder-

se-ia imaginar uma (induacutestria de) cultura que natildeo esteja sujeita agraves leis das empresas

793 Curiosamente Franzmann concebe a introduccedilatildeo de um rendimento baacutesico incondicional como umademocratizaccedilatildeo do oacutecio (Franzmann M Einleitung Kulturelle Abwehrformationen gegen die Kriseder Arbeitsgesellschaft und ihre Loumlsung In Franzmann M (Ed) Bedingungsloses Grundeinkommen alsAntwort auf die Krise der Arbeitsgesellschaft Weilerswist 2010 pp 11ndash103) Com efeito Franzmannrefere-se a uma democratizaccedilatildeo pois segundo o socioacutelogo a disponibilidade estrutural do oacutecioencontra-se distribuiacuteda de forma profundamente desigual na sociedade (Franzmann M EinleitungKulturelle Abwehrformationen gegen die Krise der Arbeitsgesellschaft und ihre Loumlsung In FranzmannM (Ed) Bedingungsloses Grundeinkommen als Antwort auf die Krise der ArbeitsgesellschaftWeilerswist 2010 p37)

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rentaacuteveis de entretenimento Com a crescente pressatildeo para criar novos mercados (de

consumo) incluindo a expansatildeo da induacutestria do tempo livre a relaccedilatildeo entre trabalho e

tempo livre estaacute a ser reequilibrada nas sociedades ocidentais a relaccedilatildeo entre trabalho e

tempo livre natildeo traduz somente o resultado da lei da minimizaccedilatildeo do tempo livre (ateacute ao

limite da perda de eficiecircncia do desempenho laboral) pois neste preciso contexto o

tempo livre constitui igualmente uma variaacutevel profundamente necessaacuteria para

aumentar as vendas dos bens produzidos os assalariados precisam do tempo livre

suficiente natildeo somente para continuar a trabalhar recuperando forccedilas mas

inclusivamente para gastar os seus salaacuterios no mercado O consumo revela-se uma

segunda forma de complementaridade do trabalho aleacutem da recreaccedilatildeo

O que se encontra em causa seria pois a apreciaccedilatildeo da possibilidade de

configuraccedilatildeo de um tempo utoacutepico que possibilitaria que todos os indiviacuteduos pudessem

ter tempo disponiacutevel Tratar-se-ia pois de poder dispor do seu proacuteprio tempo

quotidiano e do seu proacuteprio tempo da vida de poder dividir o seu orccedilamento de acordo

com o tempo para si mesmo ndash dentro dos limites necessaacuterios para assegurar a produccedilatildeo

social e independentemente da separaccedilatildeo entre tempo de trabalho e tempo livre de

poder desenvolver um tempo proacuteprio e inclusivamente um tempo socialmente

dividido dependendo da situaccedilatildeo e da fase da vida Tal regime de tempo utoacutepico

permitiria a configuraccedilatildeo de modos de ldquotempo-soberanordquo de ldquotempo-autoacutenomordquo A este

respeito o conceito de oacutecio revela-se adequado para contrariar enquanto corretivo

conceptual o conceito de trabalho coercivo O conceito de trabalho poderia entatildeo ser

enriquecido (atraveacutes da exigecircncia de oacutecio e de um aumento da soberania sobre o tempo

e portanto da sua proacutepria autorrealizaccedilatildeo) precisamente no sentido da emancipaccedilatildeo

humana Estamos com efeito a usar um conceito de trabalho que estaacute muito distante de

qualquer caacutelculo de utilidade e que natildeo pode ser medido com base no reconhecimento

econoacutemico atraveacutes da remuneraccedilatildeo ou do lucro ndash um conceito de trabalho que natildeo

corresponde ao trabalho desenvolvido na sociedade da modernidade tardia no acircmbito

da qual a gestatildeo da carecircncia de tempo se exerce sob criteacuterios de eficiecircncia Neste

sentido no acircmbito da sociedade da modernidade tardia o oacutecio poderaacute ndash deveraacute ndash

constituir-se como um conceito normativo-criacutetico de particular importacircncia e soacute poderaacute

cumprir-se enquanto realidade para aleacutem de um trabalho orientado para a eficiecircncia e

para um fim racional inscrito numa loacutegica econoacutemico-social de mobilizaccedilatildeo e de

aceleraccedilatildeo

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Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007

| 281 |

Errata

Paacutegina Onde se lecirc Deve ler-se

Paacutegina 20 linha 14 Hartmut Rosa e o trabalho de

Sloterdijk

Hartmut Rosa o trabalho de

Sloterdijk

Paacutegina 25 linha 11 como um conceito eminentemente

critico

como um conceito critico

Paacutegina 142 linha 29como experiecircncia de concordacircncia

com a verdadeira essecircncia de si

mesmo e igualmente como

experiecircncia de estar de acordo com

o sentido do mundo

como experiecircncia de concordacircncia

com a verdadeira essecircncia de si

mesmo

Paacutegina 176 linha 22por uma de-temporalizaccedilatildeo por uma de-temporalizaccedilatildeo do

ldquotempo cosmoloacutegicordquo

Paacutegina 177 linha 18des-temporizaccedilatildeo de-temporalizaccedilatildeo

Paacutegina 180 linha 13tempo-pode-ser-fazer tempo-de-poder-fazer

Paacutegina 211 linha 22de-temporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo (ldquoqualitativordquo)

Paacutegina 211 linha 23des-temporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 212 linha 3 destemporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 212 linha 7 destemporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 193

nota rodapeacute

perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da

sua diferenccedila Traduzido com a

versatildeo gratis do tradutor

perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da

sua diferenccedila

Paacutegina 213 linha 29 O heroacutei da histoacuteria natildeo eacute

Jean-Jacques Rousseau

O heroacutei da histoacuteria eacute Jean-

Jacques Rousseau

| 282 |

  • Klinkert T Muszlige und Erzaumlhlen ein poetologischer Zusammenhang Vom Roman de la Rose bis zu Jorge Sempruacuten (Otium) Tuumlbingen 2016
  • | Sumaacuterio
  • | Declaraccedilatildeo de honra
  • | Agradecimentos
  • | Resumo
  • | Abstract
  • | Nota sobre traduccedilotildees
  • | Referecircncias bibliograacuteficas
Page 2: Mobilização e Aceleração no contexto da Modernidade Tardia

| 2 |

Dirk Michael Schmidt

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Tese realizada no acircmbito do Programa Doutoral em Filosofia

orientada pela Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2021

| 3 |

Dirk Michael Schmidt

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Tese realizada no acircmbito do Programa Doutoral em Filosofia

orientada pela Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira

Membros do Juacuteri Presidente

Doutora Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens Travis Professora Catedraacutetica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Vogais

Doutor Joatildeo Manuel Cardoso Rosas Professor Associado da Universidade do Minho

Doutora Magda Eugeacutenia Pinheiro Brandatildeo Costa Carvalho Teixeira Professora Auxiliar da Universidade dos Accedilores

Doutor Joseacute Francisco Preto Meirinhos Professor Catedraacutetico da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Maria Joatildeo Couto Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade

do Porto

| 4 |

| Sumaacuterio

| Declaraccedilatildeo de honra 7

| Agradecimentos 8

| Resumo 9

| Abstract 10

| Nota sobre traduccedilotildees 11

| Introduccedilatildeo 12

PARTE I DIAGNOacuteSTICOS FILOSOacuteFICOS E APRECIACcedilOtildeES CRIacuteTICAS

OS CONCEITOS DE MOBILIZACcedilAtildeO E DE ACELERACcedilAtildeO e do

trabalhador

26

| Capiacutetulo 1 Sob o signo da velocidade 27

11| O ldquovelocifeacutericordquo de Goethe 28

12| Da aceleraccedilatildeo como fenoacutemeno cultural e esteacutetico 42

13| ldquoA Mobilizaccedilatildeo Totalrdquo e ldquoO Trabalhadorrdquo aproximaccedilotildees ao pensamento

de Ernst Juumlnger

49

| Capiacutetulo 2 Em torno do conceito de modernidade tardia Posturas filosoacutefico-criacuteticas 73

21| A Teoria Criacutetica e a Modernidade 74

22| A modernidade como fenoacutemeno contraditoacuterio 84

23| Zygmunt Bauman e o conceito de modernidade liacutequida 94

| 5 |

24| O pensamento filosoacutefico-social de Hartmut Rosa o conceito de aceleraccedilatildeo 105

PARTE II PARA UMA PROPOSTA DE APRECIACcedilAtildeO DO OacuteCIO ENQUANTO

CONCEITO EMINENTEMENTE CRIacuteTICO

119

| Capiacutetulo 1 O oacutecio Delimitaccedilatildeo de um conceito filosoacutefico 120

11| Primeiros delineamentos 121

12| A dicotomia histoacuterico-cultural entre trabalho e oacutecio 146

| Capiacutetulo 2 Espaccedilos e tempos do oacutecio Uma leitura cultural 157

21| Do oacutecio como categoria espacial e temporal 158

22| Pierre Hadot sobre Goethe da vivecircncia do presente como exerciacutecio

espiritual

198

23| Rousseau e a autonarrativa 210

24| O enquadramento do oacutecio 217

25| O enquadramento do idiacutelico 221

| Capiacutetulo 3 Sobre a possibilidade de inscriccedilatildeo do oacutecio no acircmbito da modernidade

tardia Um ensaio

232

| Referecircncias bibliograacuteficas 254

I Errata 282

| 6 |

| Declaraccedilatildeo de honra

Declaro que a presente tese eacute de minha autoria e natildeo foi utilizada previamente

noutro curso ou unidade curricular desta ou de outra instituiccedilatildeo As referecircncias a outros

autores (afirmaccedilotildees ideias pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da

atribuiccedilatildeo e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referecircncias

bibliograacuteficas de acordo com as normas de referenciaccedilatildeo Tenho consciecircncia de que a

praacutetica de plaacutegio e autoplaacutegio constitui um iliacutecito acadeacutemico

Porto 06 de abril de 2021

Dirk Michael Schmidt

| 7 |

| Agradecimentos

| 8 |

| Resumo

A analise dos conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo concebidos como

modos filosoacuteficos de considerar e de descrever a designada Modernidade Tardia

constitui a temaacutetica principal desta tese de doutoramento Eacute nosso propoacutesito fornecer

um estudo abrangente e detalhado das vaacuterias posiccedilotildees sobre mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo

desenvolvidas por filoacutesofos alematildees contemporacircneos tais como Peter Sloterdijk

Hartmut Rosa e Byung-Chul Han Atraveacutes da exposiccedilatildeo das perspetivas sobre o assunto

avanccediladas por Sloterdijk Rosa e Han ndash que compotildee o nuacutecleo da ldquoParte Irdquo desta tese de

doutoramento ndash pretendemos apresentar de modo criacutetico o mais recente (ou poder-se-

ia dizer o mais urgente) toacutepico de discussatildeo filosoacutefica no contexto cultural alematildeo e

europeu Juntamente com tal diagnoacutestico filosoacutefico relativo aos aspetos centrais da

denominada Modernidade Tardia pretenderemos desenvolver um estudo cuidado sobre

o conceito de oacutecio tomado como um conceito eminentemente criacutetico ndash este seraacute o foco

da ldquoParte IIrdquo da nossa tese de doutoramento A ausecircncia de tal conceito de oacutecio (e o seu

contraste cultural com o hegemoacutenico e omnipresente conceito de trabalho) no acircmbito da

Modernidade Tardia tal como a consideraccedilatildeo das causas de tal ausecircncia formam um

relevante toacutepico de anaacutelise nesta tese de doutoramento Este trabalho acadeacutemico destina-

se a constituir um modesto contributo para o estudo filosoacutefico da Modernidade Tardia o

nosso tempo presente a uacuteltima e definitiva palavra sobre o assunto natildeo seraacute

seguramente escrita por noacutes

Palavras-chave Mobilizaccedilatildeo Aceleraccedilatildeo Oacutecio Trabalho Modernidade Tardia

| 9 |

| Abstract

The analysis of the concepts of mobilisation and acceleration regarded as

philosophical modes of considering and describing the so-called Late Modernity is the

chief subject of this PhD thesis It is our purpose to offer a comprehensive and detailed

study concerning the several positions on mobilisation and acceleration developed by

contemporary German philosophers such as Peter Sloterdijk Hartmut Rosa and Byung-

Chul Han By expounded the perspectives on the subject advanced by Sloterdijk Rosa

and Han ndash which forms the heart of ldquoPart 1rdquo of this doctoral thesis ndash we intend to

present in a critical way the most recent (or one may say the most urgent)

philosophical topic of discussion within the German and European cultural context

Along with such a philosophical diagnosis regarding the central aspects of the so-called

Late Modernity our PhD thesis is also concerned with proposing a critical perspective

on the subject accordingly we intend to develop a thorough study devoted to the

concept of leisure taken as a pre-eminently critical concept ndash this is the focus of ldquoPart

IIrdquo of our doctoral thesis The absence of such a concept of leisure (and its cultural

contrast to the hegemonic and omnipresent concept of labour) within Late Modernity

and the consideration of the causes of this absence forms a relevant topic of analysis in

this PhD thesis This academic work is intended to constitute a modest contribution to

the philosophical study of Late Modernity our present time the last and definitive word

on the subject will certainly not be written by us

Keywords Mobilisation Acceleration Leisure Labour Late Modernity

| 10 |

| Nota sobre traduccedilotildees

As citaccedilotildees em inglecircs e francecircs permanecem na liacutengua original Salvo indicaccedilatildeo

em contraacuterio todas as traduccedilotildees das citaccedilotildees de obras originalmente escritas em liacutengua

alematilde apresentadas ao longo da presente tese satildeo da nossa autoria As exceccedilotildees a tal

procedimento devidamente assinaladas neste trabalho acadeacutemico constituem as

traduccedilotildees portuguesas de algumas obras de Peter Sloterdijk e de Byung-Chul Han

publicadas pela editora Reloacutegio drsquoAacutegua

| 11 |

Introduccedilatildeo

| 12 |

Em direccedilatildeo a oeste a movimentaccedilatildeo moderna torna-se cada vez maior de modo que paraos Americanos os habitantes da Europa na sua totalidade se apresentam como seres quegostam do sossego e dele usufruem quando estes mesmos no entanto voam em confusatildeocomo abelhas e vespas Esta movimentaccedilatildeo torna-se tatildeo grande que a cultura superior jaacutenatildeo pode madurar os seus frutos eacute como se as estaccedilotildees do ano se seguissem umas agraves outrasdemasiado depressa Por falta de sossego a nossa civilizaccedilatildeo vai dar a uma nova barbaacuterieEm nenhuma eacutepoca os ativos ou seja os irrequietos foram tatildeo considerados Reforccedilar emgrande medida o elemento contemplativo faz parte por conseguinte das necessaacuteriascorreccedilotildees que se tem de efetuar no caraacuteter da humanidade No entanto desde jaacute cadaindiviacuteduo que seja calmo e constante de coraccedilatildeo e de cabeccedila tem o direito de crer quepossui natildeo soacute um bom temperamento mas tambeacutem uma virtude de utilidade geral e que aoconservar essa atitude ateacute cumpre uma missatildeo superior

Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano

A ldquomobilidade propriamenterdquo uma ldquomobilidade aceleradardquo agrave maacutexima potecircncia natildeo eacute senatildeoo fenoacutemeno que noacutes proacuteprios apelidamos de sempre-mais-sempre-mais-para-sempre-mais oqual realmente eacute como que o englobante (mas imanente) dos vaacuterios aspetos que temosvindo a explicitar como tiacutepicos da atual era tecnoloacutegica A proacutepria loacutegica do atual poder e dosatuais fluxos comunicacionais eacute aquele fenoacutemeno que procura elevar agrave extremaexponenciaccedilatildeo Para quecirc ndash perguntar-se-aacute A resposta imediata eacute oacutebvia mas uma respostamenos imediata uma resposta de tipo ontoloacutegico talvez deva consistir em dizer que paranada

Adeacutelio Melo O bloqueio do espiacuterito na actual era tecnoloacutegica

Degraves que nous avons compris le programme de lhistoire remarque Baudrillard nous allonsplus loin quelle par lesprit ldquoEt cette mutation est due agrave une acceacuteleacuteration on essaie dallerde plus en plus vite si bien quen fait on est deacutejagrave arriveacutes agrave la fin Virtuellement Mais on y estquand mecircmerdquo Cette ruse moderniste les theacuteories de la singulariteacute aussi bien que lemouvement acceacuteleacuterationniste de Nick Srnicek et Alex Williams la reprennent agrave leur compteLa vitesse moderne qui charmait les poegravetes nest plus suffisante et les vieilles automobilessemblent bien lentes un demi-siegravecle plus tard On peut ecirctre exciteacute par la rapiditeacute des voituresactuelles dont on devine pourtant quelles sont plus lentes que celles de demain Il ne fautpas sarrecircter en chemin il faut aller encore plus vite que le mouvement actuel Ainsi lasingulariteacute technologique est-elle la repreacutesentation de lacceacuteleacuteration du progregravestechnologique jusquagrave un point au-delagrave duquel une machine supra- intelligente supplanteralintelligence humaine Le Manifeste acceacuteleacuterationniste de 2013 rejette quant agrave lui la critiquefrileuse du neacuteolibeacuteraiisme et du progregraves des techniques par la vieille gauche pour defendreson acceacuteleacuteration par la penseacutee progressiste leacutemancipation ne consiste pas agrave ralentirlintensiteacute du progregraves mais agrave aller encore plus vite que lui par la penseacutee et agrave imaginer denouveau ldquoun avenir plus modernerdquo Pour le rendre de nouveau sensible il faut surencheacuterir sursa repreacutesentation devenue trop familiegravere Il ne faut pas accepter les fatigues de lespritconservateur mais inventer plus et eacutemanci- per mieux Continuer agrave progresser comme avantcest deacutejagrave faire du surplace et bientocirct reacutegresser donc devenir reacuteactionnaire ll faut presser lepas et aller plus vite que la musique On ne progresse quagrave ce prix ldquoacceacuteleacuterer toujours leprocessus deacutevolution technologiquerdquo Bien sucircr le plaisir de lacuteacceacuteleacuteration relegraveve de la logiquede laddiction il en va de lideacutee de progregraves comme de limpression de satisfaction augmenteacuteepar la morphine

Tristan Garcia La vie intense

| 13 |

ldquoAinda eacute compreensiacutevel para os seres humanos o moderno curso do mundo

desencadeado pelos homensrdquo1 ndash a interrogaccedilatildeo envolta num tom tatildeo melancoacutelico quatildeo

iroacutenico proacuteprio de quem natildeo possui esperanccedilas de obter uma resposta satisfatoacuteria eacute

avanccedilada por Peter Sloterdijk na sua obra A Mobilizaccedilatildeo Infinita publicada em 1989

Natildeo seria supeacuterfluo a este respeito chamar a atenccedilatildeo para um pequeno fait

divers editorial agrave partida filosoficamente irrelevante que envolve o tiacutetulo de tal obra de

Sloterdijk com efeito aquando da publicaccedilatildeo do livro em questatildeo o tiacutetulo inicialmente

previsto seria Eurotaoismus ndash Zur Kritik der politischen Kinetik tendo o filoacutesofo

alematildeo decidido de um modo inopinado proceder agrave sua alteraccedilatildeo a favor do seguinte

tiacutetulo (que a traduccedilatildeo portuguesa existente datada de 2002 jaacute contempla) A

Mobilizaccedilatildeo Infinita A desconcertante introduccedilatildeo do termo Eurotaoiacutesmo de pendor

porventura demasiado obscuro ou esoteacuterico no tiacutetulo de uma obra de filosofia ocidental

poderia constituir a justificaccedilatildeo da postura de recuo ou de correccedilatildeo de Sloterdijk ndash e em

verdade o prefaacutecio de tal obra escrito pelo proacuteprio oferece diversas consideraccedilotildees

acerca do desconforto com que a Academia alematilde recebera tal livro assim intitulado

No entanto do nosso ponto de vista importaria atentar de um modo mais avisado

sobre o novo tiacutetulo que se impotildee e natildeo propriamente sobre o tiacutetulo preterido a

preferecircncia por A Mobilizaccedilatildeo Infinita ndash tiacutetulo que convoca de modo aberto e

declarado um outro tiacutetulo A Mobilizaccedilatildeo Total ensaio de Ernst Juumlnger ndash poderia ser

compreendida agrave luz de uma certa premecircncia manifesta no interior do pensamento de

Sloterdijk em voltar a pensar a modernidade Justamente a premecircncia em pensar

ainda a modernidade ndash tal poderaacute ser apreciado da nossa perspetiva como uma das

posturas filosoacuteficas que marcam o pensamento de Sloterdijk e em especial os eixos

teoacutericos que estruturam as posiccedilotildees avanccediladas em A Mobilizaccedilatildeo Infinita

Uma das principais linhas de pensamento que compotildeem A Mobilizaccedilatildeo Infinita

consiste na sustentaccedilatildeo de uma afinidade essencial entre modernidade e movimento Tal

afinidade essencial poderia com justeza ser concebida como passiacutevel de configuraccedilatildeo

de uma singular definiccedilatildeo de modernidade ndash agrave luz do conceito de movimento do seu

conceito de movimento Eis o conceito que se assume como proacuteprio da modernidade

como o seu conceito definidor Sloterdijk natildeo se dispotildee a perspetivar a ceacutelebre

dicotomia antigos vs modernos que percorrera o pensamento filosoacutefico alematildeo dos

1 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p23

| 14 |

seacuteculos XVIII e XIX de Winckelmann e Lessing a Schiller e Hegel e que procurara

determinar os princiacutepios culturais constitutivos do moderno a partir de um fundo de

contraste relativamente ao mundo antigo natildeo obstante poder-se-ia a este respeito

evocar o par de oposto repouso vs movimento como ilustrativo de tal dicotomia tenha-

se presente pois a eminente relevacircncia filosoacutefica do conceito de repouso no acircmbito do

pensamento antigo culminando com a metafiacutesica de Aristoacuteteles e a sua conceccedilatildeo de ser

perfeito definido pois como motor que influencia o movimento dos seres inferiores

mas determinado na sua perfetibilidade ontoloacutegica pela sua proacutepria imobilidade ndash pelo

seu repouso O sentido lacunar do movimento e da entidade que se move em direccedilatildeo a

algo que natildeo possui ou encontra em si mesma traduz uma perspetivaccedilatildeo proacutepria da

filosofia grega que natildeo encontra continuaccedilatildeo ou aprofundamento no acircmbito metafiacutesico

moderno Do mesmo modo a apreciaccedilatildeo grega do conceito de limite concebido

segundo a sua possibilidade de inteligibilidade racional e perspetivado por

conseguinte agrave luz das noccedilotildees de determinaccedilatildeo de nuacutemero e de proporccedilatildeo natildeo poderaacute

ser plenamente transposta para o pensamento moderno especialmente se tivermos em

atenccedilatildeo o enaltecimento filosoacutefico mecacircnico-fiacutesico e esteacutetico do conceito contrastante

de infinito desde Descartes ateacute Kant e aos idealistas alematildees

Tais consideraccedilotildees que natildeo consideramos fuacuteteis permitem-nos recorrendo agrave

postura filosoacutefica alematilde que animou os debates filosoacuteficos dos seacuteculos XVIII e XIX

acerca da dicotomia antigos vs modernos avaliar a possibilidade de definiccedilatildeo da

modernidade procurando vislumbrar os seus princiacutepios e eixos teoacutericos proacuteprios e

constitutivos Em A Mobilizaccedilatildeo Infinita Sloterdijk propotildee-se desenvolver esta mesma

tarefa filosoacutefica pensar a modernidade e o que a define

De acordo com a posiccedilatildeo-chave sustentada por Sloterdijk em A Mobilizaccedilatildeo

Infinita ndash a saber a alianccedila indissociaacutevel entre modernidade e movimento ndash o projeto

moderno funda-se numa singular utopia cineacutetica2 nunca antes enunciada enquanto tal

Pensar tal impensado da modernidade e desvelaacute-lo criticamente enquanto sua

determinaccedilatildeo essencial e definidora constitui o propoacutesito de Sloterdijk nesta obra

Neste sentido de acordo com o filoacutesofo a eacutepoca denominada moderna poderaacute ser

caracterizada como um momento histoacuterico-cultural desenvolvido segundo um quadro de

pensamento que integra no seu nuacutecleo uma teoria do movimento civilizador no acircmbito

da qual o curso do mundo e a accedilatildeo da humanidade se anunciam como a mesma

2 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p24

| 15 |

realidade confluente Eis o projeto da modernidade a aspiraccedilatildeo tomada como passiacutevel

de realizaccedilatildeo da identidade ou da conciliaccedilatildeo ou justaposiccedilatildeo entre o movimento do

mundo e o movimento das accedilotildees da humanidade afirmada como subjetividade livre

Leia-se a este respeito Sloterdijk

[hellip] todo o movimento do mundo deve passar a ser a realizaccedilatildeo do plano que noacutes temos

dele Os nossos proacuteprios movimentos vitais passam a ser progressivamente idecircnticos ao

proacuteprio movimento do mundo o processo mundial no seu todo coincide

progressivamente com a nossa manifestaccedilatildeo de vida as coisas acontecem conforme se

pensa porque aquilo que acontece cada vez mais se realiza por noacutes o fazermos3

O projeto da modernidade assente na emergecircncia e na configuraccedilatildeo exultantes

de uma humanidade que se reconhece a si mesma como subjetividade ativa movente

livre e autoacutenoma capaz de criar o curso do mundo e da sua histoacuteria permite-nos a

proclamaccedilatildeo da modernidade como ldquopuro ser-para-o-movimentordquo4 Tal como elucida

Sloterdijk se a modernidade se anuncia como a nova eacutepoca que reuacutene as condiccedilotildees de

possibilidade de emancipaccedilatildeo do ser humano da sua situaccedilatildeo de menoridade e como

tal como novo tempo que permite cumprir o movimento de autolibertaccedilatildeo da

humanidade importaria concluir que nos encontramos com efeito perante um processo

que ldquonoacutes pura e simplesmente natildeo podemos natildeo querer e de um movimento que nos eacute

impossiacutevel natildeo fazermosrdquo5

A transposiccedilatildeo do conceito fiacutesico-mecacircnico de movimento para o acircmbito

filosoacutefico-cultural ndash elevado a princiacutepio ou primado definidores dos novos tempos

modernos ndash constituiacutera assinala Sloterdijk um gesto ilustre eminentemente eacutetico Tal

como nos elucida o filoacutesofo a cineacutetica eacute a eacutetica da modernidade ndash de que forma Tenha-

se presente a este propoacutesito a interseccedilatildeo entre o projeto eacutetico da modernidade ndash a

proclamaccedilatildeo da saiacuteda da humanidade da sua situaccedilatildeo de menoridade mediante a

afirmaccedilatildeo da sua liberdade ndash e a cineacutetica ndash a assunccedilatildeo de um conceito de subjetividade

que se carateriza pelas suas potencialidades de atividade e de produccedilatildeo do mundo e da

sua histoacuteria enquanto espaccedilo de liberdade Em verdade a modernidade definira-se

desde o seu iniacutecio como ldquoprogressiva e progressistardquo6 na sua forma de execuccedilatildeo e

cumprimento de si a noccedilatildeo de progresso um dos elementos mais estruturantes do

ideaacuterio da modernidade assinala a dimensatildeo eacutetica da cineacutetica trata-se pois da

3 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p24-254 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p335 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p346 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p31

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possibilidade de realizaccedilatildeo concreta do automovimento da subjetividade na sua

atividade e na sua liberdade constitutivas Assim a curiosa fusatildeo entre moralidade e

fiacutesica-mecacircnica caracteriacutestica da modernidade resulta numa unidade de accedilotildees que se

designa por subjetividade ndash perspetivada por seu turno como ldquomisteriosa forccedila de

iniciativa que se manifesta como a capacidade de pocircr em marcha novas seacuteries de

movimento intituladas accedilotildeesrdquo7 No mesmo tom esclarece Sloterdijk

A experiecircncia de um progresso real ensina-nos que uma iniciativa humana prenhe de

valores sai lsquopara fora de sirsquo rebenta com os antigos limites da sua mobilidade alarga o seu

campo de accedilatildeo e se impotildee com boa consciecircncia frente a entraves internos e a resistecircncias

externas8

A argumentaccedilatildeo de Sloterdijk assume de um modo crescente uma tonalidade

luacutegubre mas nem por isso menos incisiva agrave medida que a sua critica da utopia cineacutetica

da modernidade se delineia e se aprofunda Convocando uma metaacutefora de Novalis

apresentada em Cristandade e a Europa de 1799 Sloterdijk perspetiva tal subjetividade

em movimento como o moleiro no moinho que se moacutei a si mesmo dos tempos modernos

tal como o esclarece Sloterdijk a metaacutefora de Novalis que servira para designar o novo

princiacutepio de funcionamento do complexo homem-maacutequina-natureza ldquoque fora posto em

marcha por meros Eus-empresaacuterios prosaicamente automovidos por protestantes

Britacircnicos Prussianos e professoresrdquo9 constitui a primeira formulaccedilatildeo filosoacutefica do

conceito de utopia cineacutetica que define a modernidade a imagem do moinho no seu

perpetuum mobile ldquoque eacute movido pela corrente do acaso e vai flutuando sobre elardquo10

ilustra uma mobilidade ldquoem que o elemento dinacircmico eacute ao mesmo tempo o

desconsolador uma deriva propulsionada pelo Eu em direccedilatildeo ao que eacute insensato

catastroacutefico desenfreado mortalrdquo11 Segundo Sloterdijk a metaacutefora de Novalis repleta

de teor diagnoacutestico soacute hoje poderaacute ser compreendida em todo o seu alcance No

contexto da modernidade tardia que nos envolve eacute-nos permitido sob a forma de

lamento tomar consciecircncia daquilo que a subjetividade ldquoconsegue fazer na sua

maacutequinardquo12 no acircmbito do seu automovimento infinito agrave sombra de um progresso que se

revela natildeo mais do que curso decadente movimento vazio para mais movimento vazio

7 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p328 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p329 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3510 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3511 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3512 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p36

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imposto por uma capacidade de movimento cada vez mais acelerada e incrementada e

reconhecida tanto como fuacutetil quanto como desastrosa

A postura filosoficamente exultante dos iniacutecios do projeto da modernidade ndash o

seu projeto eticamente eminente pois assente na aspiraccedilatildeo de cumprimento de

emancipaccedilatildeo da humanidade na sua atividade e na sua liberdade ndash afigura-se no acircmbito

da modernidade tardia em que vivemos como um sentimento perdido A perspetivaccedilatildeo

do curso do movimento do mundo e da humanidade confluindo na mesma realidade ndash e

concebido agrave luz da ilustre conceccedilatildeo de progresso ndash adquire os contornos de um mal-

estar tatildeo imprevisto quatildeo inexoraacutevel Leia-se Sloterdijk a este respeito

As consequecircncias do moderno processo mundial que caminham por si proacuteprias ndash eacute o que

noacutes vemos com crescente mal-estar ndash apoderam-se dos projetos controlados e da parte

essencial do empreendimento da Modernidade da consciecircncia do automatismo espontacircneo

e guiado pela razatildeo irrompe um fatal movimento estranho que nos escapa em todas as

direccedilotildees Aquilo que parecia uma saiacuteda controlada para a liberdade revela-se agora como

um resvalar para uma incontrolaacutevel heteromobilidade catastroacutefica13

Segundo Sloterdijk tal sentimento de indeleacutevel mal-estar traduz uma situaccedilatildeo de

nova e inesperada passividade da subjetividade que agora se reconhece a si mesma

como viacutetima porque produtora do controlo perdido do movimento do mundo ndash

transformado num mero automatismo cineacutetico ndash que resulta tambeacutem ser o movimento-

de-si-mesma Tal passividade da subjetividade que se verifica no ldquomundo

historicamente movimentadordquo14 poderaacute ser descrita agrave luz de uma nova e inusitada

situaccedilatildeo de perda de autonomia o movimento do mundo conquanto produzido no

decurso do movimento proacuteprio da subjetividade enquanto tal afigura-se todavia como

uma entidade outra estranha opressora ndash numa palavra uma entidade heteroacutenoma

relativamente agrave subjetividade Neste acircmbito procurando delinear modos de anaacutelise de

tal sentimento de mal-estar perante o curso do mundo subjetivamente produzido

marcado por uma opressiva mobilidade indelevelmente acelerada e incrementada

Sloterdijk introduz o termo mobilizaccedilatildeo [Mobilmachung] evocando de modo expliacutecito

a noccedilatildeo avanccedilada por Ernst Juumlnger

A referecircncia aberta a Juumlnger tal como a apresenta Sloterdijk afigura-se envolta

de subtis cuidados justificativos que traduzem e reforccedilam em verdade a pertinecircncia da

13 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 pp25-2614 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p28

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menccedilatildeo a obra de Juumlnger perspetivada pela tradiccedilatildeo cultural que lhe eacute posterior como

maldita suspeita de preconizadora de fascismo e como tal mais odiada do que

rigorosamente lida e discutida pela intelligentsia ndash assim o assume Sloterdijk ndash conteacutem

as bases seminais da anaacutelise seacuteria e filosoficamente delineada acerca do fenoacutemeno da

mobilizaccedilatildeo enquanto realidade inscrita na totalidade do processo social natildeo obstante a

sua origem beacutelica e militar Trata-se justamente do ensaio A Mobilizaccedilatildeo Total de

1930 (e na sequecircncia desta obra O Tabalhador) Tal como elucida Sloterdijk as

anaacutelises de Juumlnger datando da deacutecada de 1930 constituem um espetro de

perspetivaccedilotildees suscetiacuteveis de compreensatildeo do fenoacutemeno da mobilizaccedilatildeo como realidade

moderna devendo merecer as melhores atenccedilotildees dos filoacutesofos do nosso tempo ndash ainda

que tais pontos de vista natildeo sejam compatiacuteveis com o ldquosono dos justos no projeto da

Modernidaderdquo

A convocaccedilatildeo do mal-afamado pensamento de Ernst Juumlnger no que respeita agrave

questatildeo da avaliaccedilatildeo da utopia cineacutetica da modernidade ndash e natildeo se transformam todas as

utopias em distopias ndash poderaacute ser tomado como um modo de afirmaccedilatildeo de uma certa

excentricidade teoacuterica de Sloterdijk Todavia para o filoacutesofo alematildeo a criacutetica

contemporacircnea da modernidade deveraacute desenvolver-se em torno da problemaacutetica da

mobilizaccedilatildeo perspetivada como ldquoprocesso autoacutegeno da Modernidaderdquo15 impelindo ao

delineamento de criacutetica alternativa da modernidade enquanto criacutetica da falsa

mobilidade Tal consiste com efeito num dos projetos mais relevantes da filosofia de

Sloterdijk a configuraccedilatildeo de uma nova teoria criacutetica que no caso singular de A

Mobilizaccedilatildeo Infinita se assume como teoria criacutetica do movimento no momento da

modernidade tardia isto eacute no momento do autorreconhecimento da modernidade ldquono

seu lado sofridordquo16 A este respeito leia-se Sloterdijk esclarecendo o seu proacuteprio projeto

filosoacutefico

Assim a criacutetica da sociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se apoacutes a

derrocada do marxismo e depois do ambiacuteguo ensurdecimento das escolas de Frankfurt

ainda pode haver uma terceira versatildeo de teoria criacutetica de um tipo exigente entatildeo com

certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica do movimento17

15 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p4116 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p4217 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p41

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A tese de doutoramento que aqui apresentamos intitulada Mobilizaccedilatildeo e

Aceleraccedilatildeo no contexto da Modernidade Tardia integra a aspiraccedilatildeo de constituir-se

como o ensaio ou a tentativa de delineamento de resposta ao apelo ou ao repto de

Sloterdijk Eacute pois nosso propoacutesito pensar a modernidade tardia agrave luz das categorias de

mobilizaccedilatildeo [Mobilmachung] e de aceleraccedilatildeo [Beschleunigung] ndash aqui tomadas como

conceitos filosoficamente definidores e estruturantes dos tempos que vivemos ndash

partindo de um ponto de vista que convoca as mais recentes posiccedilotildees avanccediladas pela

filosofia poliacutetica e social Com efeito a perspetivaccedilatildeo criacutetica das omnipresentes e

volaacuteteis mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo da modernidade tardia constitui uma das temaacuteticas

culturais mais prementes dos nossos dias configurando-se como uma nova e intensa

problemaacutetica de discussatildeo em torno da qual um singular panorama filosoacutefico tatildeo

complexo quatildeo vasto e abrangente se impotildee e se delineia poder-se-ia a este respeito

nomear a teoria dromoloacutegica de Virilio18 o trabalho de Lipovetsky19 e Garcia20 na

Franccedila a teoria da aceleraccedilatildeo de Hartmut Rosa21 e o trabalho de Sloterdijk22 e Byun

Chul Han23 na Alemanha as posiccedilotildees de Baumann24 em Inglaterra e de Ferraris25 em

Itaacutelia

O especto de teorizaccedilotildees que compotildee o nosso quadro de pensamento poderaacute ser

traccedilado desde Ernst Juumlnger e Peter Sloterdijk ndash cujas perspetivaccedilotildees acerca do conceito

de mobilizaccedilatildeo concentraratildeo as nossas melhores atenccedilotildees ndash ateacute aos filoacutesofos alematildees

contemporacircneos Hartmut Rosa e Byun-Chul Han ndash cujas posiccedilotildees acerca da temaacutetica da

aceleraccedilatildeo considerada como conceito filosoacutefico receberaacute da nossa parte uma anaacutelise

que se pretende cuidada e exaustiva Os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo

criticamente avaliados do ponto de vista filosoacutefico permitir-nos-atildeo o desenho dos eixos

18 Virilio P Vitesse et Politique essai de dromologie Paris 1977 Virilio P Dromologie logiquede la course Paris 199119 Lipovetsky G Le Bonheur paradoxal essai sur la socieacuteteacute dhyperconsommation Paris 2006Lipovetsky G LrsquoEmpire de leacutepheacutemegravere la mode et son destin dans les socieacuteteacutes modernes Paris 1987Lipovetsky G LEgravere du vide Paris 1983 Lipovetsky G Les Temps hypermodernes Paris 2004 20 Garcia T La vie intense Une obsession moderne Paris 201621 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 Rosa H RessonanzBerlin 2016 Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 201822 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 23 Han B-C A Sociedade de Transparecircncia Lisboa 2014 Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo TradGilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014 Han B-C O Aroma do tempo Lisboa 2016 Han B-CPsicopolitica Lisboa 201524 Bauman Z Liquid Fear Cambridge 2006 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 200725 Ferraris M Mobilizaccedilatildeo Total Lisboa 2018

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culturais que determinam o periacuteodo histoacuterico que nos envolve e sobre o qual

ensaiaremos pensar a modernidade tardia

Segundo Rosa a tendecircncia de aceleraccedilatildeo constitui-se como caracteriacutestica de toda

a modernidade todavia importaria distinguir no que concerne ao conceito de

modernidade a designada modernidade tardia ndash eacutepoca sobre a qual nos deteremos de

um ponto de vista filosoacutefico-criacutetico ndash da modernidade dita claacutessica A expectativa

acerca de um futuro melhor ndash uma das facetas do progresso da modernidade ndash que

marcara o periacuteodo anterior agraves deacutecadas de 1960 e 1970 acabou por desmoronar-se a tal

ponto que a experiecircncia do progresso linear se tornara nas uacuteltimas deacutecadas ndash assim

sublinha Rosa ndash a experiecircncia de uma celeridade sem sentido

Tanto no aspeto individual quanto no aspeto coletivo trata-se pois da transiccedilatildeo de um

movimento experimentado por uma dinamizaccedilatildeo sem direccedilatildeo que evoca por sua vez a

sensaccedilatildeo de paralisaccedilatildeo apesar de ndash ou justamente devido a ndash uma dinacircmica de aumento

dos acontecimentos26

A pergunta sobre a causa e o modo como lidar com este processo de aceleraccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo ndash pergunta agrave qual os trabalhos de Rosa procuram responder e que mereceraacute

no acircmbito da presente tese a nossa atenccedilatildeo ndash deveraacute ser analisada com o devido

cuidado Tomando esta pergunta como ponto de partida Rosa retoma a proposta de

Peter Sloterdijk acerca da necessidade de desenvolver a teoria criacutetica agrave luz desta mesma

orientaccedilatildeo ndash ou seja a do questionamento criacutetico acerca da aceleraccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo

(ou nas palavras de Sloterdijk a cineacutetica) enquanto eixo definidor da modernidade

Ten years ago an analogous idea was advanced byhellip Peter Sloterdijk who attempted to

develop a new critical theory of ldquopolitical kineticsldquo conceived as a third version of critical

theory after Marx and the Frankfurt School In Sloterdijkacutes view both earlier versions of

critical theory ultimately failed because they misunderstood and uncritically supported the

kinetic forces of modernity which set everything in motion until they ultimately achieve a

state of bdquototal mobilizationldquo (bdquototale Mobilmachungldquo) a warlike state where everything is

determined by the logic of speed [hellip] Nonetheless we believe that something useful can

be retrieved from his otherwise highly problematic reformulation of critical theory27

Detendo-se sobre a proposta de Sloterdijk Rosa delineara o seu ensaio

Aceleraccedilatildeo e Alienaccedilatildeo Esboccedilo de uma teoria criacutetica da temporalidade na

26 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p43727 Rosa HScheuerman W High-Speed Society Social Acceleration Power and ModernityPennsylvania University Park 2009 p15

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modernidade tardia (Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen

Theorie spaumltmoderner Zeitlichkeit) 28 no qual apresenta uma teoria da modernidade que

procura ligar e dar continuidade agrave teoria criacutetica A concordacircncia com a visatildeo de Axel

Honneth de que a identificaccedilatildeo de patologias sociais constitui um objetivo central natildeo

soacute da teoria criacutetica enquanto tal mas tambeacutem da filosofia social29 poderaacute ser assinalado

como um dos pontos teoacutericos centrais do ensaio de Rosa30 O filoacutesofo contrasta pois o

conceito de alienaccedilatildeo ndash tomado como uma patologia da modernidade criada pela

aceleraccedilatildeo ndash com o conceito de ressonacircncia aqui apresentado como o epiacutetome de uma

28 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen Theorie spaumltmodernerZeitlichkeit Frankfurt aM 201329 Enquanto subdisciplina da filosofia praacutetica a filosofia social interroga sobre o modo como as pessoasvivem e agem e como devem viver e agir A filosofia social natildeo considera as pessoas como indiviacuteduosisolados mas como membros de um mundo social que dependem de formas bem-sucedidas decoexistecircncia sob um modo que natildeo eacute apenas instrumental ndash isto eacute enquanto zoon politikon A filosofiasocial aborda assim a forma adequada das nossas instituiccedilotildees e praacuteticas sociais indagando ateacute que pontoestas podem promover ou minar as possibilidades de os indiviacuteduos de desenvolverem uma boa vidaPois se soacute pode ser indiviacuteduo em sociedade entatildeo enquanto ser genuinamente social o indiviacuteduodesenvolve sempre em conjunto os preacute-requisitos supra-individuais das suas accedilotildees individuais (Jaeggi RCelikates R Sozialphilosophie Eine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017 p11) A filosofia social surge destemodo como que focada numa tese exigente O social ndash praacuteticas sociais instituiccedilotildees e relaccedilotildees ndash deveser entendido como uma condiccedilatildeo constitutiva de individualidade e de liberdade Natildeo obstante a suaproximidade agrave sociologia a filosofia social difere desta por desenvolver uma reflexatildeo normativamenteorientada sobre o funcionamento das instituiccedilotildees sociais bem como sobre as patologias sociais ou sejaos desenvolvimentos mal orientados e as crises (Jaeggi R Celikates R Sozialphilosophie EineEinfuumlhrung Muumlnchen 2017 p11) Aleacutem disso a filosofia social coloca questotildees metodoloacutegicas esocioloacutegicas fundamentais o que em alguns aspectos a torna uma instacircncia de metarreflexatildeo da teoria-social da sociolologia e das ciecircncias sociais (HollisM Soziales Handeln Berlin 1995 Risjord MPhilosophy of Social Science London 2014) Num contexto alematildeo a filosofia social em contraste como contexto anglo-americano distingue-se da filosofia poliacutetica (apesar de todas as sobreposiccedilotildees) natildeo soacutepelo seu enfoque mais amplo nos fenoacutemenos sociais (em oposiccedilatildeo aos fenoacutemenos poliacutetico-institucionais)mas tambeacutem pelo facto de se esforccedilar por uma anaacutelise soacutecio-teoacuterica e soacutecio-ontoloacutegica da estrutura e dadinacircmica das relaccedilotildees sociais Deste modo a filosofia social estende-se tambeacutem para aleacutem da filosofiapraacutetica no sentido mais restrito devido ao seu interesse numa classificaccedilatildeo avaliativa dos fenoacutemenossociais a filosofia social natildeo se preocupa apenas com o significado normativo das praacuteticas e instituiccedilotildeessociais mais do que uma teoria puramente normativa a filosofia social interessa-se pela descriccedilatildeoempiacuterica e pela penetraccedilatildeo conceptual do mundo social com as suas situaccedilotildees problemaacuteticas especiacuteficas(Dewey J Syllabus Social Institutions and the Study of Morals (1923) Em Middle Works Vol 15Carbondale 1983 p 230-373 Ferrara A The Idea of a Social Philosophy Em Constellations 9 (2002)3 p 419-435 Pollmann A Integritaumlt Aufnahme einer sozialphilosophischen Personalie Bielefeld2005) A filosofia social eacute assim definida tanto por uma determinada aacuterea temaacutetica como por umadeterminada abordagem Em parte concentra-se em fenoacutemenos que natildeo satildeo tidos em conta por outrasdisciplinas a configuraccedilatildeo das instituiccedilotildees e praacuteticas sociais bem como os problemas sociais que surgemna interface entre o indiviacuteduo e a sociedade Por outra parte a filosofia social analisa os mesmosfenoacutemenos ndash tais como os problemas no trabalho e de comercializaccedilatildeo ndash sob uma perspetiva diferenteDeste modo mesmo conceitos centrais como liberdade ou poder afiguram-se compreendidos deforma muito diferente em filosofia social do que em filosofia poliacutetica se atentarmos especialmente sobreo contexto alematildeo (Jaeggi R Celikates R Sozialphilosophie Eine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017p11)Por contraste a filosofia social no contexto anglo-saxoacutenico eacute frequentemente equiparada agrave filosofiapoliacutetica Segundo Rahel Jaeggi uma das representantes da quarta geraccedilatildeo da Escola de Frankfurt a ideiade uma espeacutecie de divisatildeo de trabalho entre filosofia poliacutetica e filosofia social tambeacutem poderia serenganadora pois natildeo eacute faacutecil distinguir entre fenoacutemenos de vida social que tambeacutem incluem aacutereas como afamiacutelia situados abaixo das instituiccedilotildees de coexistecircncia politicamente constituiacutedas e a aacuterea maisestreita dos fenoacutemenos das instituiccedilotildees poliacuteticas ou estatais (Jaeggi R Celikates R SozialphilosophieEine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017p13)

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vida natildeo-alienada31 (Rosa utiliza o conceito de alienaccedilatildeo natildeo somente no contexto do

trabalho mas tambeacutem no acircmbito de outros contextos da vida na modernidade tardia

mobilizada e acelerada)

A teoria da ressonacircncia de Rosa foi recebida e discutida de forma controversa32

Com efeito a derivaccedilatildeo abrangente do conceito de ressonacircncia a partir de uma

variedade de perspetivas e contextos foi alvo de profunda condenaccedilatildeo por parte de

diversos leitores que invocaram por seu turno o facto de o conceito de ressonacircncia

supostamente parecer arbitraacuterio como que carecendo de precisatildeo e de realidade e em

uacuteltima anaacutelise afigurar-se inadequado enquanto conceito soacutecio-filosoacutefico baacutesico33 tal

como Rosa o pretenderia inicialmente sustentar Um outro ponto de criacutetica diz respeito

ao suposto recurso de Rosa ao universo intelectual do Romantismo34 Natildeo obstante

cumpria esclarecer que embora Rosa se refira em muitos casos agrave sensibilidade

ressonancial do Romantismo (em contradiccedilatildeo deliberada com conceitos racionalistas) o

filoacutesofo adverte tambeacutem que de acordo com a mundividecircncia do Romantismo a

prevalecircncia eacute concedida agrave emoccedilatildeo puramente subjetiva e interior ao inveacutes da

ressonacircncia com o mundo exterior35 Poder-se-ia com justeza e rigor afirmar que na

teoria da ressonacircncia de Rosa a relaccedilatildeo ou a convocaccedilatildeo do Romantismo natildeo se traduz

numa postura de sustentaccedilatildeo ou propagaccedilatildeo de um retorno aos ideias ou agrave

mundividecircncia de tal periacuteodo cultural mas sim numa descriccedilatildeo seacuteria e destituiacuteda de

qualquer bizarra exultaccedilatildeo do efeito continuado dos conceitos romacircnticos de

ressonacircncia na modernidade36

A abordagem de Rosa assume um papel especial em relaccedilatildeo a outras tentativas

proeminentes de atualizaccedilatildeo da teoria criacutetica Honneth e Jaeggi poderiam sem

dificuldade concordar sobre um meta-criteacuterio que determinaria qual a melhor teoria

30 HonnethA Pathologierı des Sozialen Frankfurt aM1994 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 p27031 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p14732 Brumlik M Resonanz oder Das Ende der kritischen Theorie In Blaumltter fuumlr deutsche undinternationale Politik Mai 2016 Berlin 2016 p 120ndash123 Peters C-H- Schulz P Resonanzen undDissonanzen Hartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 Wils J-P ResonanzIm interdisziplinaumlren Gespraumlch mit Hartmut Rosa Baden-Baden 201833 HartmannM Im Resonanzhafen bekommt die Welt ein anderes Gesicht In Frankfurter AllgemeineZeitung 5 April Frankfurt 201634 Taylor C Resonanz und die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und DissonanzenHartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249-27035 Hartmut Rosa Resonanz Berlin 2016 p 47936 Hartmut Rosa Resonanz Berlin 2016 p 600

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criacutetica da sociedade nomeadamente no que concerne ao seu grau de reflexividade37

Para Rosa de modo distinto o criteacuterio apropriado parece avaliar quatildeo bem uma teoria

consegue descrever condiccedilotildees que contradizem uma necessidade baacutesica da natureza

humana (considerando no entanto que a natureza humana natildeo deveraacute ser entendida

de forma substancialista38) Aleacutem disso Rosa propotildee aprofundar a visatildeo da filosofia

social no que respeita agraves experiecircncias da proacutepria existecircncia corporal e corpoacuterea

enfatizando este seu desiderato em contraste com o paradigma intersubjectivista de

reconhecimento de Honneth39

Neste ponto um conceito moderno de autonomia poderia ser especificado de

vaacuterias maneiras e Rosa salienta uma caracteriacutestica da conceptualizaccedilatildeo acerca da

autonomia no acircmbito de filosofia social40 nomeadamente a privatizaccedilatildeo da questatildeo da

boa vida41 Daqui decorreria que ldquoo imperativo normativo se mede pela distribuiccedilatildeo

dos recursos [] ndash e eacute sempre melhor ter mais do que ter menosrdquo42 Se a proacutepria

normatividade da filosofia social exige um mero mais quantitativo de recursos entatildeo

tal como Rosa assinala a filosofia social parece encontrar-se na ausecircncia de uma

postura de questionamento criacutetico dos processos abrangentes de aceleraccedilatildeo ndash pois em

uacuteltima instacircncia e paradoxalmente parece que ela mesmo os coproduz ou pelo menos

os corrobora Ao inveacutes de medir a qualidade de vida com base em recursos e opccedilotildees o

foco da filosofia social deveraacute ser segundo Rosa a relaccedilatildeo com o mundo a

renovaccedilatildeo da teoria criacutetica tal como Rosa a propotildee deveraacute orientar-se e desenvolver-se

agrave luz da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoSe a aceleraccedilatildeo eacute o problema entatildeo a ressonacircncia eacute talvez

a soluccedilatildeordquo43

No acircmbito da presente tese de doutoramento a pergunta formulada por Rosa ndash o

modo como eacute possiacutevel lidar com este processo de aceleraccedilatildeo ndash e a que ele procurara

responder delineando a sua teoria da ressonacircncia como uma teoria ldquoabrangenterdquo44

constituiraacute igualmente um dos eixos teoacutericos definidores ou estruturantes Todavia

este nosso trabalho acadeacutemico proporaacute uma outra tentativa de resposta agrave mesma

37 Honneth A Gerechtigkeit und kommunikative Freiheit Uumlberlegungen im Anschluss an Hegel InSubjektivitaumlt und Anerkennung Paderborn 2004pp 213ndash227 Jaeggi R Kritik von LebensformenBerlin 201438 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p30139 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p33340 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p4941 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p1742 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p4943 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p3944 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p21

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interrogaccedilatildeo convocando desde um ponto de vista filosoacutefico outras teorias que talvez

possamos designar como ldquoclaacutessicasrdquo e que se desenvolveram na antiguidade ndash

referimo-nos pois ao conceito de oacutecio que sob o nosso olhar se apresentaraacute como um

conceito eminentemente criacutetico

Relativamente agrave estrutura interna da presente tese importaria esclarecer que a

mesma integra duas partes temaacuteticas a primeira parte seraacute dedicada ao diagnoacutestico

filosoacutefico dos conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo bem como agrave anaacutelise de distintas

posturas filosoacutefico-criacuteticas acerca da modernidade tardia ndash conceito este que tambeacutem

seraacute objeto de atenta consideraccedilatildeo e a segunda parte a mais longa constituiraacute a

tentativa de proposta de elaboraccedilatildeo do conceito de oacutecio ndash filosoficamente determinado

- como conceito eminentemente criacutetico perspetivado agrave luz da possibilidade da sua

inserccedilatildeo no acircmbito de uma teorizaccedilatildeo criacutetica acerca da modernidade tardia A

contraposiccedilatildeo cultural entre os conceitos de oacutecio e de trabalho seraacute igualmente um

elemento de cuidada discussatildeo O momento final da tese que aqui se apresenta

integraraacute pois um ensaio de indagaccedilatildeo de eventuais soluccedilotildees criacuteticas para as

problemaacuteticas de filosofia social e poliacutetica analisadas no acircmbito deste trabalho

acadeacutemico

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PARTE I

___

Diagnoacutesticos filosoacuteficos e apreciaccedilotildees criacuteticas

Os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo

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Capiacutetulo 1

Sob o signo da velocidade

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11 | O ldquovelocifeacutericordquo de Goethe

Poreacutem tudo meu caro amigo eacute hoje ultra45 tudo transcende ininterruptamente tanto nopensamento como na accedilatildeo Jaacute ningueacutem se conhece ningueacutem percebe o elemento no qualflutua e reage ou a mateacuteria com a qual trabalha Os jovens vecircem-se afligidos demasiadocedo e depois integrados no ceacutelere voacutertice do tempo riqueza e velocidade satildeo aquilo que omundo mais admira e deseja o mundo instruiacutedo conta com caminhos de ferro correioexpresso barcos a vapor e todas as possiacuteveis comodidades de comunicaccedilatildeo para se superarhellip

JW von Goethe ldquoCarta a Zelterrdquo 1825

Com o enorme aceleramento da vida o espiacuterito e o olhar acostumam-se a ver e ajulgar parcial ou erradamente e cada qual se assemelha ao viajante que conheceterras e povos pela janela do comboio

Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano

Ateacute que ponto e de que modo os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo (ou

eventualmente de incremento)46 quando considerados do seu ponto de vista filosoacutefico

e assim desenvolvidos no acircmbito de uma filosofia poliacutetica e social ndash poderatildeo ser

compreendidos agrave luz da sua inserccedilatildeo no contexto da modernidade tardia Poderatildeo tais

conceitos e as realidades que referem ser perspetivados como traccedilos definidores ou

caracteriacutesticos da histoacuteria cultural da modernidade tardia ndash se sim de que modo

Segundo Marshall Berman a modernidade alcanccedila a sua primeira expressatildeo artiacutestica no

Fausto de Goethe47 O episoacutedio de Fileacutemon e Baucis eacute evocado como exemplar o

destino das duas figuras simboacutelicas do mundo antigo pautado pela perenidade eacute

desafiado pelo espiacuterito inquieto e movente de Fausto Com este episoacutedio integrado na

segunda parte de Fausto Goethe como que propotildee a conclusatildeo de que dos

comportamentos precipitados resultam de modo inexoraacutevel o erro e a violecircncia48

Fausto erra porque se precipita porque eacute incapaz devido agrave sua impaciecircncia inquieta de

45 Sobre a influecircncia linguiacutestica crescente do prefixo ldquoultrardquo num contexto alematildeo consultar Dewitz H-G Briefwechsel zwischen Goethe und Zelter in den Jahren 1799 bis 1832 Muumlnchen 1998 p67346A palavra Steigerung (que poderiacuteamos traduzir por ldquoincrementordquo) ndash proposta por Hartmut Rosa parapensar a modernidade tardia ndash natildeo possui com efeito uma palavra correspondente em portuguecircs Poderiasignificar ldquofazer maisrdquo num sentido quantitativo ou tambeacutem num sentido qualitativo Linguisticamente otermo significa ldquoa comparaccedilatildeo de um adjetivordquo podendo tambeacutem significar o melhoramento dodesempenho crescimento intensificaccedilatildeo aprimoramento expansatildeo e incremento47 Berman M All That Is Solid Melts Into Air The Experience of Modernity New York 1988 Marianne Gronemeyer tambeacutem concebe a tiacutepica expressatildeo do ideal de vida moderno segundo a ausecircnciapermanente de descanso e de tranquilidade a partir de Fausto Gronemeyer M Das Leben als letzteGelegenheit Darmstadt 1996 p122

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ser perspicaz no momento certo Fausto parece servir-se sempre ndash com a ajuda de

Mefistoacutefeles ndash das perversidades da violecircncia49 Jaacute a elas havia recorrido na primeira

parte da trageacutedia no que concerne ao assassinato do irmatildeo de Margarida Agora na

segunda parte apoacutes a morte de Fileacutemon e Baucis Fausto apercebe-se ndash tarde demais ndash

da consequecircncia fatal da sua precipitaccedilatildeo ldquoFoi lesta a ordem mais lesto o fimrdquo50 Na

recusa do presente por um futuro antecipado e velocifeacuterico51 de Fausto Goethe prevecirc

igualmente outro fenoacutemeno da precipitaccedilatildeo que Heidegger retrata em ldquoSer e Tempordquo a

preocupaccedilatildeo [Sorge] A preocupaccedilatildeo como personificaccedilatildeo de uma consciecircncia

exacerbada e voltada para o futuro Apenas a preocupaccedilatildeo exagerada possibilita

finalmente o cenaacuterio apocaliacuteptico do ldquovelocifeacutericordquo Fausto ocupa-se jaacute cego com

visotildees ldquomodernasrdquo e voltadas para o futuro com projetos de grande escala influenciado

pela precipitaccedilatildeo ldquoApresso-me a dar corpo ao que penseirdquo52 Aqui se sela o seu decliacutenio

sob o signo da cegueira e da ilusatildeo

48Safranski R Goethe Kunstwerk des Lebens Frankfurt 2015 Venzke A Goethe und des PudelsKern Wuumlrzburg 2006 Bollmann S Warum ein Leben ohne Goethe sinnlos ist Muumlnchen 201649 Diz um proveacuterbio turco que foi o diabo quem inventou a pressa Dahl J Die Eile hat der Teufelerfunden In Scheidewege Jahresschrift fuumlr skeptisches Denken Jahrgang 19 198990 p171 Nomesmo tom Hans Blumenberg afirma que a estreiteza do tempo eacute a raiz do malrdquo Blumenberg HLebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p71 Sob o pretexto de que o humanamente possiacutevelapenas se realiza pela pressa o diabo Mefistoacutefeles quer tentar Fausto a natildeo ser tatildeo preciso na suaexploraccedilatildeo do mundo Quer atordoaacute-lo com vatildes distraccedilotildees embriagaacute-lo com prazeres sensaborotildees lanccedilaacute-lo em tumultos e atraiacute-lo com selvagens libertinagens para garantir que se esvazia interiormente e pascenos seus desejos natildeo realizados Mefistoacutefeles dita para Fausto um fracassar diferente daquele que esteantecipa para si mesmo Mefistoacutefeles espera seduzi-lo agrave banalidade tornaacute-lo inconsciente com o alvoroccedilodo mundo e colocaacute-lo numa satisfaccedilatildeo ilusoacuteria Mefistoacutefeles quer livrar-se da sua viacutetima com umasuperficialidade friacutevola pois natildeo eacute soacute o demoniacuteaco como tambeacutem a vulgaridade e a irreflexatildeo que podemdar corpo ao mal segundo Hannah Arendt Arendt H Vom Leben des Geistes Band 1 Das DenkenMuumlnchenZuumlrich 1979 p14) O ldquodiabo tem portanto um interesse vital em minar o pensamento e oincorruptiacutevel desejo por experiecircncia ele ldquoinventou a pressardquo para afianccedilar que o questionar e o pensaraprofundadamente fossem reprimidos e mesmo sem a presenccedila miacutetica de um diabo resta concluir que aaceleraccedilatildeo origina uma trivialidade e um superficialismo nas experiecircncias nas relaccedilotildees e no contacto50 Goethe JW Fausto Trad Joatildeo Barrento Lisboa 1999 v11382 p53451 Para grande infortuacutenio da nossa eacutepoca que natildeo permite que coisa alguma amadureccedila devoreconhecer que devoramos jaacute no proacuteximo instante aquele que acabou de transcorrer desperdiccedilando o diano proacuteprio dia vivendo apenas de preocupaccedilotildees imediatas sem nos determos demoradamente em nadaPois se jaacute haacute mesmo jornais para cada uma das fases do dia Uma boa cabeccedila poderia provavelmenteinterpolar uma coisa e outra Com isso tudo o que se faz o que se empreende o que se compotildee oumesmo o que se planeia eacute logo arrastado para a cena puacuteblica Ningueacutem pode estar triste ou alegre sem queisso sirva de passatempo aos outros e isso se estenda de casa em casa de cidade em cidade de paiacutes empaiacutes e por fim de continente em continente tudo velocifeacutericordquo Goethe JW Briefe vol4 Briefe derJahre 1821 -1832 Muumlnchen 1988 p159 A palavra ldquovelocifeacutericordquo criada por Goethe combina avelocidade (ldquovelocitasrdquo) com o diaboacutelico (do ldquoLuacuteciferrdquo) Manfred Osten coloca tal neologismo nocontexto da totalidade da obra de Goethe Alles veloziferisch [Tudo (eacute) velocifeacuterico] ou a descoberta dalentidatildeo por Goetherdquo Osten M Zur Modernitaumlt eines Klassikers im 21Jahrhundert Frankfurt a M2003 p3352 Goethe JW Fausto Trad Joatildeo Barrento Lisboa 1999 v11501 p541

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Com a morte de Fileacutemon e Baucis rompe-se com a ideia de cultura baseada na

lei da continuidade O oacutedio de Fausto ao passado a recusa de qualquer cultura

sustentada na memoacuteria ou na evocaccedilatildeo da recordaccedilatildeo antecipa aqui o elogio da rutura

o gosto pela descontinuidade caracteristicamente modernos Goethe que no seu

romance Willhelm Meister adverte que natildeo se deve perder de vista o antigo

(perspetivado pois como uma salutar e desejaacutevel contraposiccedilatildeo agravequilo que no mundo

moderno tatildeo rapidamente se altera e se transfigura) procurara no mesmo sentido

alertar que a postura mais razoaacutevel a adotar deveria consistir em inibir repetidas vezes

os passos para a modernidade ritmadamente acelerada e correlativamente observar a

situaccedilatildeo em quietude Na eacutepoca de Goethe foi sobretudo Napoleatildeo quem determinou

exemplarmente o novo ritmo Napoleatildeo foi natildeo somente o primeiro a praticar a

moderna guerra de movimento (ldquoLEmpereur a trouveacute une nouvelle meacutethode de faire la

guerre il ne se sert que de nos jambes et pas de nos baiumlonnettesrdquo53) como tambeacutem

introduziu enquanto poliacutetico um ritmo ateacute entatildeo desconhecido Napoleatildeo impocircs agrave

Europa a velocidade (eacutelan et vitesse) ndash o segredo pessoal do seu sucesso como um

sentido de viver ldquomodernordquo

No pensamento de Nietzsche a figura do energeacutetico e dinacircmico Uumlbermensch

parece contrapor-se agrave visatildeo desenvolvida pelo filoacutesofo de que a falta de quietude eacute

uma das marcas de uma civilizaccedilatildeo que entrou numa nova barbaacuterie54 Nietzsche

sustenta nas Consideraccedilotildees Intempestivas que a aceleraccedilatildeo inquieta que a

volatilizaccedilatildeo e a dissoluccedilatildeo de circunstacircncias e crenccedilas estabelecidas que ldquoo hiper-

raacutepido e impensado estilhaccedilamento e o definhar de todo os fundamentos e a sua

dissoluccedilatildeo num vir-a-ser que sempre estaacute a fluir e a dissolver-se que o desfiar e a

historizaccedilatildeo incansaacutevel de tudo o que chegou a ser atraveacutes do homem moderno helliprdquo

(Das rasend-unbedachte Zersplittern und Zerfasern aller Fundamente ihre Aufloumlsung

in ein immer flieszligendes und zerflieszligendes Werden das unermuumldliche Zerspinnen und

Historisieren alles Gewordenen durch den modernen Menschenhellip)55constituem os

53 Lormier D Fiers de notre Histoire Paris 201354 Nietzsche F Menschliches Allzumenschliches Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol2Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p 232 A secccedilatildeo nordm285 da Primeira Parte da obra apresenta oilustrativo tiacutetulo O moderno desassossego55 Nietzsche F Unzeitgemaumlszlige Betrachtungen Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol1Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 239 p313A traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova (cf Nietzsche F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva TradMarco Antonio Casanova Rio de Janeiro 2003) natildeo transmite o sentido original dado por Nietzsche ldquobdquooraivoso e impensado estilhaccedilamento e o desmantelamento de todos os fundamentos sua dissoluccedilatildeo emum vir a ser que sempre se dilui o desfiar e a historizaccedilatildeo incansaacutevel de tudo o que veio a ser atraveacutes do

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princiacutepios baacutesicos da cultura moderna (Europeu super-orgulhoso do seacuteculo XIX tu

andas hiper-raacutepido (Uumlberstolzer Europaumler des neunzehnten Jahrhunderts du

rasest)rdquo56 Neste desenvolvimento Nietzsche acredita ter reconhecido a origem da

degradaccedilatildeo e da decadecircncia quando o filoacutesofo ldquopensa na pressa geral e na crescente

velocidade da queda na suspensatildeo de toda contemplatividaderdquo eacute ldquocomo se percebesse

os sintomas de uma total erradicaccedilatildeo e desenraizamento da culturardquo57

Curiosamente a avaliaccedilatildeo de alteraccedilotildees e mudanccedilas cada vez mais aceleradas no

contexto da modernidade manifesta-se desde logo no interior de debates culturais

sobre qualquer modo de inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Jaacute em 1877 W G Greg contemporacircneo

de Nietzsche formulara

Sem duacutevida a caracteriacutestica mais saliente da vida nesta segunda metade do seacuteculo XIX eacute a

rapidez ndash [hellip] a velocidade com que nos movemos a enorme pressatildeo a que estamos

submetidos ndash e haacute que pensar numa primeira questatildeo se esta alta velocidade eacute em si uma

coisa boa e numa segunda se vale o preccedilo que pagamos ndash um preccedilo que soacute calculamos e

apenas com dificuldade sabemos estabelecer fielmente58

A questatildeo da teacutecnica e da tecnologia constitui-se pois como uma das dimensotildees

que acompanha a reflexatildeo cultural sobre os fenoacutemenos da aceleraccedilatildeo e do incremento

modernos ndash e desde logo a partir do seacuteculo XIX Com efeito e tal nos esclarece

Hartmut Rosa em Beschleunigung (2005) diversas inovaccedilotildees teacutecnicas de

incrementaccedilatildeo de aceleraccedilatildeo promoveram aquando da sua criaccedilatildeo e introduccedilatildeo uma

forma de luta dentro da cultura na qual os ardentes defensores das novas tecnologias

que elogiavam a abertura a novas possibilidades e promessas enfrentavam adversaacuterios

igualmente determinados que advertiam por sua vez para a perda da dimensatildeo e da

homem modernohellip Tambeacutem a ediccedilatildeo mais recente de Andreacute Itaparica (cf Nietzsche F Sobre autilidade e a desvantagem da histoacuteria para a vida Segunda consideraccedilatildeo intempestiva Trad AndreacuteItaparica Satildeo Paulo 2017) natildeo transmite o sentido original dado por Nietzsche ldquoSeu dilaceramento edesfibramento coleacuterico de todo fundamento sua dissoluccedilatildeo em um devir derretido e fluido o incansaacuteveldestecer e historiar tudo o que deveio atraveacutes do homem modernordquo56 Nietzsche F Unzeitgemaumlszlige Betrachtungen Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol1Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 239 p313A traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova (cf Nietzsche F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva TradMarco Antonio Casanova Rio de Janeiro 2003) natildeo transmite o sentido original de Nietzsche ldquoEuropeusuper-orgulhoso do seacuteculo XIX tu estaacutes fora de tirdquo Tambeacutem a ediccedilatildeo mais recente de Andreacute Itaparica(cf Nietzsche F Sobre a utilidade e a desvantagem da histoacuteria para a vida Segunda consideraccedilatildeointempestiva Trad Andreacute Itaparica Satildeo Paulo 2017) natildeo transmite sentido original de NietzscheldquoEuropeu orgulhoso do seacuteculo vocecirc estaacute perdendo o juiacutezordquo57 Nietzsche F Schopenhauer como educador Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo 1999p29258 Citado Levine R Eine Landkarte der Zeit Wie Kulturen mit Zeit umgehen Muumlnchen 1999 p206

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medida humanas e para a emergecircncia de um ambiente passiacutevel de ser controlado bem

como para as consequecircncias fiacutesica e psicologicamente nocivas da nova tecnologia59 Os

processos de aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica natildeo decorrem natildeo obstante de modo uniforme e

linear mas muitas vezes irregularmente enfrentando obstaacuteculos resistecircncia e

contramovimentos que podem ser motivo ou causa de eventuais atrasos na sua

implementaccedilatildeo desencadeando porventura a sua interrupccedilatildeo ou inclusivamente a sua

inversatildeo temporaacuteria Aleacutem disso um determinado impulso de aceleraccedilatildeo teacutecnica eacute por

vezes seguido por um discurso cultural de desaceleraccedilatildeo conquanto e por regra o

entusiasmo pelos frutos do ritmo acelerado se sobreponha60 apesar da criacutetica por parte

dos ldquodesaceleradoresrdquo a maioria destas lutas terminaram com a vitoacuteria dos

ldquoaceleradoresrdquo ndash assim elucida Hartmut Rosa para quem a aceleraccedilatildeo e ldquoincrementordquo se

afiguram como realidades necessaacuterias para manter a estabilidade do capitalismo na

modernidade tardia

O dever de uma justificaccedilatildeo eacute por assim dizer posposto do movimento para a

perseveranccedila ldquoDoravante natildeo satildeo os agentes de mudanccedila que na cultura se tecircm de

justificar mas aqueles que se querem agarrar ao existenterdquo61

Haacute mais de cem anos Max Weber formulou na sua nota preliminar aos ensaios

sobre sociologia da religiatildeo (portanto no contexto da sua investigaccedilatildeo sobre a eacutetica

protestante) que o capitalismo eacute ldquoo mais fatiacutedico da nossa vida modernardquo62 Com o

termo vida moderna Weber referia-se acima de tudo ao estilo de vida individual e

coletiva o foco principal do seu trabalho63 De acordo com as posiccedilotildees de Weber o

capitalismo enquanto forma especiacutefica da atividade econoacutemica influencia molda e

determina de um modo intenso e maciccedilo as formas do estilo de vida individual ou

coletiva As consequecircncias da influecircncia do capitalismo e da crescente burocratizaccedilatildeo

da vida no acircmbito das sociedades modernas constituem como sabemos temas centrais

dos estudos de Max Weber de acordo com as posiccedilotildees weberianas as sociedades

59 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p8060 Os defensores da desaceleraccedilatildeo a favor da quietude tentavam por vezes conferir uma expressatildeooriginal ao seu protesto contra a velocidade - eg nos moldes da moda parisiense de 1840 observada porWalter Benjamin no seu ensaio sobre o flacircneur segundo o qual em passeios flanam tartarugasBenjamin W bdquoDer Flaneurldquo In Benjamin W Gesammelte Schriften Rolf TiedemannHermannSchweppenhaumluser volV Frankfurt aM 1982 p53261 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p8362 Weber M Vorbemerkungen In Die Protestantische Ethik Eine Aufstzsammlung Winkemann J(ed) Guumltersloh 1991 p1863 Hennis W Max Webers Fragestellung Tuumlbingen 1987

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modernas poderatildeo ser compreendidas agrave luz de uma curiosa metaacutefora ndash a metaacutefora de

uma caixa dura como o accedilo da qual o espiacuterito teraacute fugido e no interior da qual nos eacute

imposto um estilo de vida que tende a transformar-nos em hedonistas sem coraccedilatildeo e

saacutebios sem espiacuterito ldquoO capitalismo que conseguiu nos nossos dias o domiacutenio da vida

econoacutemica cria e educa []os sujeitos econoacutemicos [] de que necessitardquo64

O capitalismo impotildee de acordo com o olhar de Weber um estilo de vida

especiacutefico ndash que lhe eacute mais do que afim ou conforme uacutetil na era do capitalismo tardio

tal estilo de vida desenvolve-se no sentido da constituiccedilatildeo da figura e do

comportamento do designado consumidor ndash condiccedilatildeo necessaacuteria para a configuraccedilatildeo e a

manutenccedilatildeo de tal sistema econoacutemico Esta estreita fundamental e determinante

conexatildeo entre capitalismo e estilo de vida problemaacutetica tratada de modo profundo em

Weber afigura-se como uma questatildeo indevidamente desconsiderada ou negligenciada

assim aponta Hartmut Rosa em Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung

(2012) no acircmbito da discussatildeo filosoacutefica contemporacircnea65 apesar de a penetraccedilatildeo

capitalista em todas as esferas da vida ter aumentado significativamente desde as

primeiras deacutecadas do seacuteculo XX momento histoacuterico do qual datam os estudos de

Weber

Com efeito o liberalismo poliacutetico subjacente ao capitalismo proclama que

dentro de certos limites se trata de uma questatildeo exclusiva dos proacuteprios indiviacuteduos

determinarem a forma e o conteuacutedo de uma vida boa66 Tal implica que a resposta a esta

questatildeo central uma problemaacutetica relevante no interior do pensamento de Weber mas

tambeacutem no de Kant ndash a questatildeo sobre como devemos viver ndash deve ser reservada

apenas e soacute aos indiviacuteduos Estes devem descobrir e decidir de forma tatildeo autoacutenoma e

genuiacutena quanto possiacutevel o que segundo as palavras de Herder eacute a sua proacutepria

medida ou o seu modo de vida proacuteprio A ideia de que soacute o podem alancar na

comunicaccedilatildeo e no diaacutelogo ou seja de que soacute atraveacutes da interaccedilatildeo com outros sujeitos

64 Weber M A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Ana Falcatildeo Bastos e Luiacutes LeitatildeoLisboa 2018 p 4365 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15266 Aqui uso o termo aristoteacutelico ldquoεὖ ζῆνldquo que poderaacute ser traduzido por bdquovida boaldquo Aristoacuteteles afirma queeacute geralmente aceite que o fim de todo o comportamento humano eacute a eudaimonia viver bem (εὖ ζῆν) eacuteagir bem (εὖ πράττειν) com a finalidade de atingir a eudaimonia (consultar Aristoacuteteles Eacutetica aNicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1095a15-20) εὖ ζῆν deve portanto sertraduzido como ldquovida boardquo (natildeo confundir com ldquoboa vidardquo) No latim era usada a traduccedilatildeo beata vita pormeio do qual na liacutengua portuguesa se tornou comum o termo ldquovida felizrdquo (tambeacutem na liacutengua alematilde se usao termo aristoteacutelico ldquogutes lebenrdquo (vida boa) e natildeo o termo ldquogluumlckliches Lebenrdquo (vida feliz))

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podem desenvolver uma identidade e uma conceccedilatildeo proacutepria de vida boa natildeo se opotildee agrave

ideia da autonomia eacutetica individual67 A sociedade como um todo deveraacute disponibilizar

aos indiviacuteduos um espectro amplo e ilimitado de opccedilotildees e oportunidades de vida e ao

mesmo tempo segundo uma posiccedilatildeo eminentemente liberal natildeo julgar decisotildees

individuais Todavia e tal como sublinha Hartmut Rosa hoje inuacutemeros problemas ou

fenoacutemenos sociais satildeo atraveacutes das estrateacutegias de privatizaccedilatildeo e da desregulamentaccedilatildeo

poliacutetico-econoacutemica transferidas do campo da poliacutetica para outras esferas da sociedade ndash

inclusivamente as questotildees eacuteticas aquelas que se relacionam com a definiccedilatildeo de uma

vida boa De acordo com as proclamaccedilotildees do liberalismo poliacutetico que subjaz ao

capitalismo para que todos os indiviacuteduos tenham a oportunidade de encontrar de modo

livre a sua proacutepria e autecircntica forma de viver a sociedade deve definir e garantir uma

estrutura formal que garanta os direitos e as liberdades defendidos pelo liberalismo no

acircmbito dos quais os conceitos de bem e de vida boa sejam considerados do modo mais

neutro possiacutevel a fim de salvaguardar a liberdade e a igualdade de oportunidades

Correlativamente a liberdade individual deve incluir na sua definiccedilatildeo a procura de um

plano de vida proacuteprio que a liberdade econoacutemica ndash devido agrave eficiecircncia da economia de

livre mercado ndash parece satisfazer apesentando os preacute-requisitos econoacutemicos que

proporcionem a maior diversidade possiacutevel de opccedilotildees quanto agrave escolha de um plano de

vida proacuteprio Como pressuposto baacutesico do liberalismo poliacutetico ndash que se transfigura ele

mesmo em liberalismo econoacutemico ndash assume-se que ldquoos mercadosrdquo se comportam de

maneira neutra em relaccedilatildeo agraves conceccedilotildees de vida boa pois fornecem quer qualitativa

quer quantitativamente somente os serviccedilos e bens que os participantes individuais do

mercado (com base nas suas preferecircncias) desejam

Asseverar-se-ia que a doutrina do liberalismo poliacutetico se afigura pois

insuscetiacutevel de ser completamente separada da tendecircncia atual de desregulamentaccedilatildeo

poliacutetico-econoacutemica que coloca cada vez mais aacutereas da vida individual e coletiva agrave

mercecirc do jogo do mercado livre No entanto daqui resulta a seguinte contradiccedilatildeo para

as sociedades ocidentais contemporacircneas por um lado encontramo-nos perante o

supostamente salutar ideal do liberalismo poliacutetico que consiste na possibilidade de

constituiccedilatildeo de imagem pluralista e individualista das mais diversas e heterogeacuteneas

ldquoconceccedilotildeesrdquo de vida boa e por outro lado deparamo-nos com a exigecircncia dos sistemas

67 Cooke M Authenticity and Autonomy Taylor Habermas and the Politics of Recognition InPolitical Theory 25 (1997) pp 258

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capitalistas que afirma a imposiccedilatildeo de que pelo menos a maioria dos indiviacuteduos deve

desenvolver identidades que coloquem a produccedilatildeo a carreira e o consumo no topo da

sua lista de prioridades Por conseguinte os indiviacuteduos das sociedades modernas devem

estar dispostos a adaptarem-se natildeo apenas agraves exigecircncias fiacutesicas e psicoloacutegicas de um

sistema capitalista cuja essecircncia eacute uma mudanccedila permanente e aceleradaincrementada

em quase todas as aacutereas da vida mas tambeacutem e de certo modo a reconhececirc-las como

componentes indispensaacuteveis de uma vida boa Neste sentido a visatildeo acerca de uma

conceccedilatildeo de vida boa que eventualmente se basearia na continuidade durabilidade e

permanecircncia das condiccedilotildees de vida tradicionais tem no acircmbito das condiccedilotildees externas

das sociedades modernas tendecircncia a ser frustrada tal como elucida para aleacutem de

Hartmut Rosa tambeacutem Richard Sennett em The Corrosion of Character The Personal

Consequences Of Work In the New Capitalism68 Como tal e seguindo Sennet e Rosa

importaria questionar a proclamada possibilidade de a sociedade capitalista fornecer um

efetivo fundamento garantidamente neutro que permita que todos os estilos de vida

possam ser livremente ou autonomamente cumpridos e realizados seratildeo os sujeitos da

modernidade tardia efetivamente livres e autoacutenomos no que respeita a definir o seu

estilo de vida individual e numa dimensatildeo coletiva uma ldquosociedade boardquo tal como

autenticamente desejam

Voltemos a Weber O sistema capitalista parece estar exposto a uma bizarra

compulsatildeo trata-se da exigecircncia de desvalorizar segundo um ciclo incessante novos

produtos teacutecnicas e estilos de vida que acabam de ser inventados pois a compulsatildeo

vazia e sem propoacutesito pelo novo deveraacute sempre digamos recomeccedilar do iniacutecio69

Todavia haacute um cenaacuterio que se afigura e com o qual nos deparamos a visatildeo liberal

acerca da responsabilidade individual pelas definiccedilotildees (plurais) de vida boa combinada

com a realidade socioeconoacutemica das sociedades capitalistas liberais da modernidade

tardia parece conduzir-nos em uacuteltima instacircncia e de um modo como que inexoraacutevel agrave

ldquocaixa de accedilo e mecanizadardquo a metaacutefora formulada por Max Weber da qual ldquotodo o

espiacuterito escapourdquo Citemos Max Weber aludindo ao ldquoUacuteltimo Homemrdquo em Nietzsche

Onde o capitalismo se mostra mais forte nos Estados Unidos a procura da riqueza

despida do seu sentido eacutetico-religioso tende hoje a associar-se a paixotildees puramente

68 Sennet R The Corrosion of Character The Personal Consequences Of Work In the New CapitalismNew York 1998 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p16069 Gamm G Das metaphorische Selbst Tuumlbingen 1992 p81

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agoniacutesticas o que natildeo raramente lhe confere um caraacuteter de ldquodesportordquo Ainda ningueacutem

sabe quem no futuro habitaraacute a jaula e se no fim deste desenvolvimento brutal novos

profetas viratildeo ou renasceratildeo com toda potecircncia dos antigos pensamentos e ideais ou

ainda ndash caso nada disso aconteccedila ndash se se instalaraacute uma petrificaccedilatildeo mecacircnica coroada por

uma espeacutecie de presunccedilatildeo convulsiva Nesse caso para ldquoos uacuteltimos homensrdquo dessa fase da

civilizaccedilatildeo tornar-se-atildeo verdade as seguintes palavras ldquoespecialistas sem espiacuterito

hedonistas sem coraccedilatildeo ndash estes natildeo imaginam ter subido um degrau da Humanidade nunca

antes atingido70

Considerando tais problemaacuteticas Hartmut Rosa levanta a questatildeo acerca do

porquecirc das conceccedilotildees individuais de vida boa (que de acordo com a doutrina liberal

devem ser escolhidas o mais plural e livremente quanto possiacutevel) nos conduzem natildeo

somente a ambicionar ser ldquobons produtoresrdquo ndash o que significa segundo Rosa o desejo

de alcanccedilar um alto niacutevel na hierarquia dos produtores (e respetivamente na carreira

profissional) ndash mas tambeacutem e num sentido inverso nos incitam agrave aquisiccedilatildeo dos

produtos por noacutes produzidos Encontramo-nos portanto perante uma situaccedilatildeo

caracterizada por ciclos de consumo incessante crescente e sem limites ndash que definem

ldquoo ethos do consumidorrdquo sendo eventualmente condiccedilatildeo sine qua non da determinaccedilatildeo

de um estilo de vida A questatildeo para a qual Hartmut Rosa chama a atenccedilatildeo eacute pois a

seguinte porque eacute que os ideais ldquoautecircnticosrdquo e individuais de vida boa encaixam tatildeo

perfeitamente nas necessidades sisteacutemicas da economia capitalista orientada para o

crescimento para uma constante aceleraccedilatildeo e incremento da produccedilatildeo e do consumo71

Gerhard Gamm por sua vez propotildee uma resposta em Das metaphorische Selbst (1992)

As prestaccedilotildees da adaptaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo psicoloacutegica e fiacutesica das pessoas agrave diretriz do

sistema satildeo tomadas como garantidas [hellip] As sociedades da modernidade tardia estatildeo

acima de tudo interessadas em adquirir os recursos necessaacuterios ao sistema que a niacutevel da

produccedilatildeo e do consumo incidem sobre a capacidade de transformaccedilatildeo e incremento do

comportamento humano72

A posiccedilatildeo de Gerhard Gamm apresenta-se afim das posiccedilotildees de Weber

anteriormente mencionadas acerca da capacidade de o capitalismo criar e desenvolver

os seus proacuteprios (e a si mesmo necessaacuterios e uacuteteis) sujeitos econoacutemicos No

seguimento de tais posiccedilotildees assim comenta Hartmut Rosa

70 Weber M A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Ana Falcatildeo Bastos e Luiacutes LeitatildeoLisboa 2018p 16571 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15672 Gamm G Das metaphorische Selbst Tuumlbingen 1992 p80

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Para uma sociedade capitalista orientada para o crescimento econoacutemico e para o

incremento eacute indispensaacutevel que os seus membros natildeo escolham uma conceccedilatildeo de ldquovida

boardquo qualquer mas uma muito especiacutefica nomeadamente a ldquodoutrina abrangenterdquo

(comprehensive doctrine) do paradigma consumidorprodutor que faz com que a sua

atenccedilatildeo e energia sejam canalizadas numa determinada direccedilatildeo e natildeo na direccedilatildeo da

contemplaccedilatildeo meditaccedilatildeo ascetismo encaixe social desenvolvimento e crescimento

criativo ou algo semelhante73

Tal como Hartmut Rosa observa eventuais mudanccedilas neste padratildeo de orientaccedilatildeo

capitalista comportariam o possiacutevel perigo de decliacutenio econoacutemico e social de tal

sociedade74 Natildeo obstante e tal como enfatizara claramente Max Weber este natildeo eacute o

uacutenico padratildeo de orientaccedilatildeo possiacutevel nem o mais ldquoracionalrdquo ou o mais ldquonaturalrdquo A

definiccedilatildeo de vida boa subjacente ao capitalismo deve a sua existecircncia a uma constelaccedilatildeo

uacutenica profundamente especiacutefica de vaacuterios fatores culturais ndash por exemplo uma religiatildeo

(cristatilde) que rejeita tendencialmente o mundo mas que ao mesmo tempo aposta num

envolvimento ativo com o mundo e que pode recorrer a bases poliacuteticas juriacutedicas e

econoacutemicas determinadas A este respeito Hartmann Tyrell escreve o seguinte

introduzindo a reflexatildeo sobre o relevante conceito de pleonexia como aspeto

determinante do capitalismo

O espiacuterito do capitalismo portanto o espiacuterito dirigido metodologicamente ndash calculado pela

pleonexia resiste a toda a moralidade social (e econoacutemica) convencional e mostra-se

como um complexo de comportamentos estranho ofensivo irracional e ldquosem sentidordquo

isto se o colocarmos agrave luz de outros pontos de vista de valores (eacuteticos religioso-

metafiacutesicos esteacuteticos ou aristocraacutetico-nobres)75

Na sua Eacutetica a Nicoacutemaco Aristoacuteteles define a pleonexia (πλεονεξία) como um

ldquosempre-querer-ter-maisrdquo (relacionado com a ganacircncia e a avareza) caracterizando tal

conceito como uma das trecircs formas da injusticcedila Para Aristoacuteteles ndash e mais tarde para

Epicuro e para o estoicismo ndash a pleonexia representa um enorme mal76 O facto de o

conceito de pleonexia ter sido avaliado negativamente manifesta-se natildeo soacute em

Aristoacuteteles mas em toda a historiografia e filosofia antigas em Heroacutedoto e em

Tuciacutedides o termo era usado de forma pejorativa assim como em Xenofonte e em

73 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15674 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15675 Tyrell H ldquoWorum geht es in der Protestantischen Ethik Ein Versuch zum besseren Vestaumlndnis MaxWebers In Saeculum 41 2 (1990) 13176 MacphersonCB Die politische Theorie des Besitzindividualismus Frankfurt a M 1967 pp 74

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Platatildeo entre outros77 H Busche define o conceito a partir de um contexto aristoteacutelico

da seguinte forma ldquopleonexia o (querer)-ter-mais (πλεονεξία do latim avaritia) eacute um

termo que se compotildee por ldquomaisrdquo (pleon) e ldquoterrdquo (echein) Se de Heroacutedoto a Platatildeo

pleonexia significa a aspiraccedilatildeo injusta do ter mais do que seria justo em Aristoacuteteles por

seu turno o termo natildeo denota subjetivamente a atitude injusta mas objetivamente a

injusticcedila no ldquoexcesso de bensrdquo78 Com efeito em Aristoacuteteles a pleonexia o querer-ter-

mais constitui um conceito que se insere no domiacutenio da injusticcedila Recorde-se que a

justiccedila eacute para Aristoacuteteles a mais alta de todas as virtudes caracterizada como essencial

para o harmonioso e regulado conviver como criteacuterios de justiccedila aplicam-se o legal e o

igual e as leis devem garantir que a todos seja atribuiacuteda a sua devida parte daqui se

conclui que a igualdade entre os cidadatildeos eacute um criteacuterio essencial de justiccedila Aristoacuteteles

define pois a igualdade agrave luz do conceito de justa medida que eacute comum a todas as

virtudes eacuteticas

Uma vez que o injusto eacute iniacutequo e a injusticcedila iniquidade eacute evidente que haacute um meio termo

entre [os extremos da] iniquidade a saber a igualdade Em toda e qualquer espeacutecie de

acccedilatildeo haacute um mais e um menos haacute tambeacutem um igual Ora se a justiccedila eacute iniquidade entatildeo a

justiccedila eacute igualdade coisa que eacute aceite por todos sem ser necessaacuteria demonstraccedilatildeo79

Se a justiccedila eacute a mais elevada das virtudes ndash e se a pleonexia eacute o seu conceito

contraposto ndash entatildeo a pleonexia natildeo poderaacute ser considerada como um viacutecio entre os

demais de acordo com a eacutetica aristoteacutelica a pleonexia eacute ldquonatildeo uma parte da perversatildeo

mas antes a mais completa perversatildeordquo80 A pleonexia natildeo eacute um viacutecio exclusivamente

puacuteblico trata-se de um viacutecio que torna igualmente impossiacutevel a correta forma de vida

individual uma vez que aqueles que ldquodistribuem por si a maior parte do dinheirordquo81

violam a prudecircncia Recorde-se pois e a partir de tais consideraccedilotildees que a filosofia

eacutetica de Aristoacuteteles se apresentada determinada pelas noccedilotildees de justa medida e de

ordem racional perspetivados como modos de efetividade da convivecircncia entre os

homens Como de acordo com Aristoacuteteles o ser humano eacute por natureza um ser

poliacutetico que soacute pode ser considerado realizado na relaccedilatildeo com outros a pleonexia

enquanto transgressatildeo da justa medida constitui uma maldade fundamental pois

77 Consultar Delling G πλεονέκτης In Friedrich G (ed) Theologisches Woumlrterbuch zum neuenTestament Stuttgart 1959 pp 226-248 Reiner H Geiz In Ritter J (ed) Historisches Woumlrterbuchder Philosophie BaselStuttgart 1974 pp217-21978 Houmlffe O (ed) Aristoteles-Lexikon Stuttgart 2005 p 45679 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1131a1080 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1130a1081 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1168b16

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assume-me como causa que impossibilita a vida boa individual no mesmo sentido e em

termos coletivos o querer-ter-mais afigura-se como elemento que coloca em perigo a

comunidade poliacutetica dos cidadatildeos baseada por sua vez na igualdade como valor

fundamental

Muitos incluindo ateacute aqueles que pretendem estabelecer regimes aristocraacuteticos cometem

o erro de natildeo soacute favorecerem os ricos como de ludibriarem as expectativas do povo

Todavia o certo eacute que acaba por chegar a hora em que dos falsos bens nasce

inevitavelmente um verdadeiro mal pois os excessos cometidos pelos ricos constituem um

factor mais dissolvente dos regimes do que os cometidos pela massa popular82

A pleonexia eacute ndash como jaacute foi dito ndash o maior dos viacutecios pois dificulta a

coexistecircncia dos cidadatildeos na polis impossibilitando-a em casos extremos Ora para

Aristoacuteteles a polis eacute a forma mais elevada de comunidade pois assegura a autarquia dos

cidadatildeos Tal autarquia natildeo existe apenas na independecircncia econoacutemica (que

corresponderia ao nosso entendimento atual) mas eacute o requisito baacutesico para a realizaccedilatildeo

e para o cumprimento da vida boa conforme descrito na Eacutetica a Nicoacutemaco Recorde-se

que para Aristoacuteteles uma entidade pode ser dita autaacuterquica quando aspira a algo por

motivaccedilatildeo proacutepria e natildeo por motivaccedilatildeo alheia O mesmo se aplica agrave principal finalidade

humana a eudaimonia Segundo o pensamento aristoteacutelico somente na polis eacute possiacutevel

ao ser humano realizar o seu proacuteprio teacutelos ndash a eudaimonia justamente

A cidade enfim eacute uma comunidade completa formada a partir de vaacuterias aldeias e que por

assim dizer atinge o maacuteximo de auto-suficiecircncia Formada a princiacutepio para preservar a

vida a cidade subsiste para assegurar a vida boa83

Por conseguinte poder-se-ia a este respeito concluir que para Aristoacuteteles o

objetivo da vida humana consiste em desenvolver uma vida boa e que esta soacute na polis

pode ser alcanccedilada realizada cumprida ndash e vivida Aquele que aspira a ter mais e mais

ndash aquele que pratica pois o mais grave dos viacutecios a pleonexia ndash coloca em perigo

atraveacutes da sua extrema ambiccedilatildeo dirigida a coisas externas a comunidade que em

Aristoacuteteles eacute considerada digna per se Deste modo o quer-ter-mais age como que

82 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981297a5-1583 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981252b25

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contra a natureza do ser humano tornando periclitante o objetivo fundamental pelo

qual os humanos se juntam em comunidade a vida boa

De modo distinto no acircmbito do pensamento de Thomas Hobbes a pleonexia eacute a

principal causa ou motivaccedilatildeo das accedilotildees socias que segundo o filoacutesofo natildeo satildeo

eticamente nem moralmente questionaacuteveis ou demonizaacuteveis (a menos que conduzam a

certas situaccedilotildees com previsiacuteveis consequecircncias negativas reclamando entatildeo por parte

do estado ndash o Leviatatilde ndash uma intervenccedilatildeo) Atendendo a tal definiccedilatildeo de pleonexia

importaria pois chamar a atenccedilatildeo para o facto de a antropologia hobbesiana diferir

essencialmente no seu fundamento da antropologia aristoteacutelica O projeto hobbesiano

de estado baseia-se na premissa de que o querer-ter-mais (a pleonexia aristoteacutelica)

constitui o principal motor das accedilotildees humanas como que expressando uma desejaacutevel

atitude de conservaccedilatildeo e de manutenccedilatildeo da proacutepria existecircncia e de proteccedilatildeo de si-

proacuteprio contra danos externos84 Por conseguinte poder-se-ia afirmar e de um modo

natildeo especialmente controverso que de acordo com Hobbes o homem eacute profundamente

determinado pela pleonexia e que de certa forma tal viacutecio aristoteacutelico se traduz num

relevante virtude social ndash o mesmo quadro de pensamento poderia certamente ser

aplicado a Bernard Mandeville que concebera os mais moralmente condenaacuteveis viacutecios

humanos como causas indispensaacuteveis da prosperidade econoacutemica de uma sociedade

Neste sentido os viacutecios humanos avaliados pelos pensadores antigos como elementos

corrosivos da vida social apresentam-se perspetivados como potenciais elementos

positivos ndash de acordo com os novos ritmos e movimentaccedilotildees sociais e econoacutemicos ndash no

contexto dos alvores da modernidade e do capitalismo Interessantemente o proacuteprio

Hobbes um dos principais teorizadores da filosofia poliacutetica moderna concebera a sua

proacutepria filosofia como uma rutura contra a tradiccedilatildeo apresentando o seu proacuteprio

pensamento poliacutetico como um novo e desejaacutevel comeccedilo que de um modo inaugural

permitiria a verdadeira compreensatildeo sobre a necessidade e a geacutenese de um estado A

este respeito assim escreve Adorno sobre Hobbes

O esclarecimento comprometera-se com o liberalismo Se todos os afetos se valem a

autoconservaccedilatildeo ndash que domina de qualquer modo a figura do sistema ndash parece constituir a

fonte mais provaacutevel das maacuteximas de accedilatildeo Eacute ela que viria a ser liberada no mercado livre

Os escritores sombrios dos primoacuterdios da burguesia como Hobbes [] que foram os porta-

vozes do egoiacutesmo do eu reconhecem por isso mesmo a sociedade como o princiacutepio

84 Hobbes T Leviathan Fetscher I (ed) Frankfurt aM 1966 p95

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destruidor e denunciam a harmoniahellip Com o desenvolvimento do sistema econoacutemico no

qual o domiacutenio do aparelho econoacutemico por grupos privados divide os homens a

autoconservaccedilatildeo confirmada pela razatildeo que eacute o instinto objetualizado do indiviacuteduo

burguecircs revelou-se como um poder destrutivo da natureza inseparaacutevel da

autodestruiccedilatildeo85

85 Adorno TW Horkheimer M Dialeacutetica do esclarecimento Trad Guido Antonio de Almeida Riode Janeiro 1985 p89

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12 | Da aceleraccedilatildeo como fenoacutemeno cultural e esteacutetico

Agrave dolorosa luz das grandes lacircmpadas eleacutectricas da faacutebrica Tenho febre e escrevo Escrevo rangendo os dentes fera para a beleza disto Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Oacute rodas oacute engrenagens r-r-r-r-r-r-r eterno Forte espasmo retido dos maquinismos em fuacuteria Em fuacuteria fora e dentro de mim Por todos os meus nervos dissecados fora Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto Tenho os laacutebios secos oacute grandes ruiacutedos modernos De vos ouvir demasiadamente de perto E arde-me a cabeccedila de vos querer cantar com um excesso De expressatildeo de todas as minhas sensaccedilotildees Com um excesso contemporacircneo de voacutes oacute maacutequinas ()

Fraternidade com todas as dinacircmicasPromiacutescua fuacuteria de ser parte-agenteDo rodar feacuterreo e cosmopolitaDos comboios estreacutenuosDa faina transportadora-de-cargas dos naviosDo giro luacutebrico e lento dos guindastesDo tumulto disciplinado das faacutebricasE do quase-silecircncio ciciante e monoacutetono das correias de transmissatildeo

Aacutelvaro de Campos Ode triunfal

Lhomme intense du libertinage ou du romantisme se mue bientocirct en homme exalteacute desmouvements davant-garde du_surreacutealisme du futurisme du constructivisme porteur duprojet dune humaniteacute nouvelle Il espegravere ldquotenir le pas gagneacuterdquo selon le mot de Rimbaud Degeacuteneacuteration en geacuteneacuteration il appelle de ses vœux une avanceacutee une perceacutee deacutecisive dans ledomaine de la poeacutesie de la penseacutee des arts visuels de la politique ou des mœurs En avantCe qui acceacutelegravere sans cesse agrave la vitesse fulgurante des automobiles des trains des avionsnous emporte loin du monde preacutehistorique et mythique ougrave la reacutepeacutetition eacutetait la valeursupeacuterieure de la culture Les poegravetes Apollinaire Marinetti ou Pessoa quand ils se montrentlas du monde ancien espegraverent que la vie moderne augmentera nos perceptions pour nousarracher agrave lordinaire des vieilles ideacutees et des ouvrages clas- siques Le modernisme de cepoint de vue est la plus puissante des drogues de lesprit il promet une surexcitationinimaginable de toute notre humaniteacute arracheacutee agrave la banaliteacute Bien sucircr on saccoutume agravecette drogue Ce nest pas grave il faut en augmenter les doses et acceacuteleacuterer encore lemouvement par la penseacutee

Tristan Garcia La vie intense

No dia 20 de fevereiro de 1909 o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti

publicou o texto ldquoFundaccedilatildeo e Manifesto Futuristardquo no jornal francecircs Le Figaro Natildeo

se trata nem do manifesto de uma organizaccedilatildeo concreta nem de uma visatildeo puramente

profeacutetica do futuro De um modo distinto o texto reclama um novo estilo artiacutestico que

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represente uma experiecircncia da vida proacutexima da realidade86 Marinetti declara de modo

tatildeo veemente quatildeo incisivo a obsolescecircncia da arte claacutessica de acordo com o italiano o

olhar claacutessico procura desde sempre os elementos da estabilidade da harmonia da

eternidade etc tomados por Marinetti como valores esteacuteticos obsoletos regressivos

referentes a um passado ndash e como tal sem lugar na vida moderna Voltar costas ao

passado e encaminhar-se para o futuro a verdadeira direccedilatildeo do desenvolvimento

progressista ldquoQuerem vocecircs pois desperdiccedilar todas as vossas melhores forccedilas nesta

eterna e inuacutetil admiraccedilatildeo pelo passado da qual soacute poderatildeo sair fatalmente exaustos

diminuiacutedos e vencidosrdquo87

Segundo Marinetti o que determina o ser humano na sociedade moderna eacute a

mudanccedila a insurreiccedilatildeo o dinamismo e acima de tudo a velocidade Dever-se-ia

esquecer o passado e procurar experienciar o elemento mais relevante da sociedade

moderna a velocidade justamente

Afirmamos que a magnificecircncia do mundo se enriqueceu de uma beleza nova a beleza da

velocidade (hellip) O tempo e o espaccedilo morreram ontem Agora vivemos no absoluto porque

jaacute criamos a velocidade eterna e omnipresente88

De certa forma a singularidade do futurismo consiste menos na reinvenccedilatildeo da

arte ou no apelo a um novo sentido esteacutetico (subjetivo ou objetivo) do que no

abandono de todas as tradiccedilotildees a fim de apresentar uma experiecircncia contemporacircnea de

beleza ndash e a velocidade estaacute no acircmago de tal posiccedilatildeo Quando o manifesto foi publicado

em 1909 o futurismo alastrou-se rapidamente para os domiacutenios esteacuteticos da pintura

literatura escultura muacutesica arquitetura entre outros em muacuteltiplos paiacuteses Para

acentuar a importacircncia da velocidade ie a fim de fundar e expandir uma consciecircncia

social da velocidade os futuristas tentaram representar a experiecircncia da velocidade

atraveacutes de diferentes formas de arte e de vaacuterias teacutecnicas artiacutesticas ldquoTudo se move tudo

flui tudo acontece com a maacutexima velocidade Uma figura nunca paira imoacutevel diante de

noacutes mas aparece e desaparece incessantementerdquo89

86 Apollonio U Der Futurismus In Apollonio U (ed) Der Futurismus Manifest und Dokumenteeiner kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln 1972 p1087 Marinetti FT Gruumlndung und Manifest des Futurismus In Apollonio U (ed) Der FuturismusManifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1909]) p3588 Marinetti FT Gruumlndung und Manifest des Futurismus In Apollonio U (ed) Der FuturismusManifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1909]) p3389 Boccioni U et al Die futuristischen Malerei ndash Technisches Manifest In Apollonio U DerFuturismus Manifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1910])

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A erosatildeo da materialidade soacutelida causada pela velocidade apresenta-se como

uma caracteriacutestica central da pintura futurista A representaccedilatildeo da velocidade pura

constitui-se com efeito como uma das expressotildees de tal movimento esteacutetico

Inclusivamente a escultura e a arquitetura futuristas distinguem-se pelo desprezo

relativamente agrave imobilidade e agrave harmonia perspetivadas como caracteriacutesticas de

condiccedilotildees do passado de acordo com a intenccedilatildeo de proclamar uma consciecircncia da

velocidade A destruiccedilatildeo do soacutelido como teacutecnica de representaccedilatildeo da velocidade eacute pois

significativa para as artes plaacutesticas ndash do mesmo modo no acircmbito da arquitetura os

futuristas procuraram preconizar uma correspondecircncia com a realidade da vida

moderna

O problema da arquitetura futurista (hellip) reside na urgecircncia de construir a casa futurista do

zero usando todas as ferramentas da ciecircncia e tecnologia no atentar de todas as

reivindicaccedilotildees dos nossos costumes e dos nossos espiacuteritos pelo mais nobre no esmagar de

tudo o que eacute grotesco e dissidente de noacutes (tradiccedilatildeo estilo esteacutetica proporccedilatildeo) (hellip)

Perdemos o sentido para o monumental o pesado o estaacutetico e enriquecemos o gosto pelo

ligeiro o praacutetico o efeacutemero e o veloz90

O Futurismo proclamando a iminecircncia da velocidade apresenta-se dotado

desde o seu surgimento de um potencial criacutetico e revolucionaacuterio Devido ao desejo de

experiecircncia da velocidade extremas alguns futuristas ansiaram pela guerra Tenha-se

presente pois a este respeito o lamento de Antonio Gramsci relativamente ao facto de

alguns futuristas se terem voltado para a guerra e para o fascismo glorificante da

violecircncia91 Assim escreve Walter Benjamin sobre a mateacuteria

p4090 SantacuteElia A Die futuristische Architektur In Apollonio U (ed) Der Futurismus Manifest undDokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1910]) p21391 Gramsci A A Letter to Leon Trotsky on Futurism Revolutionary History 7 (2) 1999 pp118-120A relaccedilatildeo entre Futurismo e Fascismo Italiano eacute profundamente complexa e natildeo pode ser aqui explicadade forma exaustiva Apontemos natildeo obstante alguns elementos que deveratildeo ser tomados comorelevantes para a compreensatildeo de tais relaccedilotildees Comecemos pela anaacutelise das posturas poliacuteticas assumidaspelos artistas futurista italianos com efeito os Futuristas italianos publicaram um programa poliacutetico (comcontornos ideoloacutegicos expliacutecitos) apoacutes o fim da guerra em 1918 o designado Manifesto del partitopoliacutetico futurista que se seguiu ao seu programa esteacutetico de 1913 (Hesse E Die Achse Avantgarde ndashFaschismus Zuumlrich 1992 p282) Os objectivos aiacute formulados representaram uma nova orientaccedilatildeo nodesenvolvimento do Futurismo e a proclamaccedilatildeo do programa poliacutetico de 1918 significou um corte entreo (dito) Futurismo poliacutetico e o Futurismo artiacutestico (Schmidt-Bergmann H-G Futurismus Reinbek1993 p151) A partir daiacute Marinetti procurara diferenciar o movimento artiacutestico do Futurismo que ()permaneceu um movimento muitas vezes mal compreendido e de vanguarda () que () a maioria natildeoconsegue compreender() e o () Partido do Futurismo Italiano() que () deveria ter em containtuitivamente as necessidades mais agudas () do povo italiano (citado por Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p151) Apesar desta separaccedilatildeo o objetivo final do Futurismo italianopermaneceu esteacutetico consistindo na proclamaccedilatildeo da possibilidade de criaccedilatildeo da artecrazia (umaexpressatildeo para a ideia futurista de uma forma de governo em que os artistas guiariam o destino da naccedilatildeo

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Somente a guerra possibilita mobilizar a totalidade dos meios teacutecnicos da atualidade

sob o auspiacutecio das relaccedilotildees de posse Eacute evidente que a apoteose da guerra no fascismo natildeo

se serve desses argumentos Apesar disso eacute instrutivo notaacute-los No manifesto de Marinetti

em favor da guerra colonial na Etioacutepia lecirc-se lsquoHaacute 27 anos noacutes futuristas opomo-nos agrave

caracterizaccedilatildeo da guerra como antiesteacutetica () De acordo com tal determinamos () a

guerra eacute bela porque fundamenta graccedilas agraves maacutescaras de gaacutes aos assustadores megafones

aos lanccedila-chamas e aos pequenos tanques o domiacutenio da humanidade sobre a maacutequina

subjugada A guerra eacute bela porque inaugura a tatildeo sonhada metalizaccedilatildeo do corpo humano

A guerra eacute bela porque enriquece um campo florido com as orquiacutedeas iacutegneas das

metralhadoras A guerra eacute bela porque unifica os tiros de fuzil os balaccedilos de canhatildeo os

cessar-fogos os perfumes e odores putrefatos numa sinfonia A guerra eacute bela porque cria

novas arquiteturas como a dos grandes tanques dos geomeacutetricos esquadrotildees aeacutereos das

espirais de fumaccedila sobre aldeias em chamas e muitas outras () Poetas e artistas do

futurismo () lembrai-vos destes princiacutepios para uma esteacutetica da guerra para que vossa

luta por uma nova poesia e uma nova plaacutestica () seja por eles iluminadarsquo Esse manifesto

tem a vantagem da nitidez O seu questionamento merece ser retomado pelo dialeacutetico Para

este a esteacutetica da guerra dos dias de hoje apresenta-se do seguinte modo se o uso natural

das forccedilas produtivas eacute bloqueado pela distribuiccedilatildeo da propriedade a elevaccedilatildeo dos meios

teacutecnicos em termos de ritmo de fontes de energia pressiona em direccedilatildeo a uma utilizaccedilatildeo

antinatural dessas forccedilas92

(Ver Baumgarth C Geschichte des Futurismus Reinbek 1966 pp 118) Em marccedilo de 1919 omovimento poliacutetico do Futurismo decidiu unir forccedilas com a Fasci di combattimento fundada porBenito Mussolini (Chiantera-Stutte P Von der Avantgarde zum Traditionalismus Frankfurt aM 2002p53) Marinetti e Mussolini que jaacute se tinham encontrado em comiacutecios em 1915 (Hesse E Die AchseAvantgarde ndash Faschismus Zuumlrich 1992 p284) entraram nas eleiccedilotildees parlamentares italianas de finais de1919 numa lista comum natildeo alcanccedilando no entanto a vitoacuteria Mussolini retirou as suas conclusotildees desteresultado eleitoral pressupondo que tal fraco desempenho se devera a alguns dos pontos de vista dosFuturistas os quais poderiam ter conduzido agrave perda de votos entre a burguesia (Hesse E Die AchseAvantgarde ndash Faschismus Zuumlrich 1992 p284) Seguidamente Mussolini desenvolveu com o seufasci uma mudanccedila ideoloacutegica no sentido de uma poliacutetica mais conservadora a fim de alcanccedilar umeleitorado mais amplo nas aacutereas do clero dos ricos e dos industriais (Aragno P Futurismus undFaschismus In Grimm R Hermand J Faschismus und Avantgarde Koumlnigstein 1980 p86) A ruturatemporaacuteria entre Marinetti e Mussolini ocorreu no Segundo Congresso do Partido dos Fascistas em maiode 1920 quando Mussolini anunciou publicamente a sua nova vontade de compromisso com os gruposconservadores tendo o liacuteder futurista e a maioria dos seus seguidores deixado o partido em protesto(Chiantera-Stutte P Von der Avantgarde zum Traditionalismus Frankfurt aM 2002 p57) Com a suaretirada do partido fascista em 1920 o desenvolvimento poliacutetico do Futurismo chega ao fim doravante asua influecircncia far-se-ia sentir somente no acircmbito das poliacutetcas culturais (Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p151) Todavia em 1924 Marinetti procurou a reconciliaccedilatildeo com ofascismo publicando a antologia Futurismo e Fascismo dedicada ao seu grande e querido amigoMussolini E em verdade Marinetti permaneceu ligado a Mussolini pelo menos pessoalmente ateacute agrave suamorte E a arte futurista sobreviveu ao fascismo especialmente na arquitetura (Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p169-171) Sobre este assunto ver tambeacutem Strobel-Koop R Geschichteund Theorie des italienischen Futurismus ndash Literatur Kunst und Faschismus Saarbruumlcken 2008 GentileE The Struggle for Modernity Nationalism Futurism and Fascism New York 2003 Hans HbdquoSchoumlnheit gibt es nur im Kampfldquo Zum Verhaumlltnis von Gewalt und Aumlsthetik im italienischen FuturismusGoumlttingen 2015

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Na Primeira Guerra Mundial figuras maacuteximas da arte futurista como Umberto

Boccioni e Antonio SantElia por exemplo natildeo sobreviveram os campos de batalha

europeus Ainda assim persistiu o entusiasmo antes vivenciado93 e com a Segunda

Guerra Mundial o futurismo sucumbiu parcialmente ao fascismo Com efeito segundo

Peter Sloterdijk em Os Filhos Terriacuteveis dos Tempos Modernos (2014) o fascismo

possui tambeacutem raiacutezes neste tipo de pensamento marcado pela negaccedilatildeo da

desmobilizaccedilatildeo

Natildeo se deve ver no fascismo um mero partido ou uma ideologia convencional No seu

gesto elementar ele emergiu de um militantismo mobilizado de poliacutetica de rua este como

espiacuterito da negaccedilatildeo da desmobilizaccedilatildeo [] alicerccedila-se na [] crenccedila de ter iniciado a

guerra sem um depois em vista [] comunicando com Oswald Spengler O fascismo eacute a

postura de pessoas que confundem a mobilizaccedilatildeo com a vitoacuteria94

No mesmo sentido Peter Sloterdijk caracteriza a modernidade tardia do iniacutecio

do seacuteculo XXI como um deslizar e precipitar num Futurismo generalizado95 Assim

escreve Sloterdijk

A fissura ontoloacutegica na qual estranhamente o mundo moderno se encontra em casa torna-

se inteligiacutevel em observaccedilotildees de pequena escala atraveacutes de declaraccedilotildees sobre

92 Benjamin W Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit GesammelteSchriften Tiedemann RSchweppenhaumluser H (ed) volI 2 Frankfurt aM 1980 p46893Segundo a compreensatildeo futurista a velocidade afigurar-se-ia como um elemento em constantemutaccedilatildeo no que toca a todas as formas de vida como uma caracteriacutestica inerente da sociedade modernaUsando exemplos das formas diversas ndash as operaccedilotildees mecacircnicas e tecnoloacutegicas o movimento da luz adestruiccedilatildeo de corpos o catildeo em movimento etc ndash os futuristas ilustram uma relevacircncia latente dofenoacutemeno da velocidade para aleacutem das dimensotildees puramente fiacutesicas 94Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p146Importaria ainda ter presente as seguintes consideraccedilotildees de Sloterdijk O discurso de Heidegger sobre oser-para-a-morte articula o sentimento de que a mobilizaccedilatildeo-para-a-morte do sujeito apoacutes 1918 natildeoreconhece qualquer acalmia A impossibilidade de uma desmobilizaccedilatildeo cunhou o estado de espiacuteritoexistencial das pessoas que fizeram parte do evento da Guerra Mundial - incluindo aqueles que apoacutes aguerra se precipitaram para aquilo que encaravam como entretenimento Como a mobilizaccedilatildeo para aguerra das guerras acabou por se provar irreversiacutevel para muitos dos combatentes o Dasein ulteriorrepresenta-se apenas por um militar contiacutenuo e por um deslizar de guerra para guerra - especialmenteentre aqueles que como os marxistas os darwinistas poliacuteticos e os decisionistas querem acreditar naconstacircncia da luta e da inimizade A siacutendrome que assomou imediatamente a seguir da Guerra Mundialcom o nome de fascismo baseada no movimento de uniatildeo e de luta desfilante em camisas negrasesquerdo-nacionalista de Mussolini influenciou numerosas formaccedilotildees poliacuteticas militares e culturais queapoacutes os anos de 1917 e 1918 sentiram exigiram glorificaram e praticaram a transiccedilatildeo de uma guerrapara a outra ndash nos Freikorps nas associaccedilotildees a favor da guerra civil nas tropas de assalto dos partidosparlamentares nos quadros revolucionaacuterios da esquerda e em algumas secccedilotildees da remexida arteEncontra-se o impulso fascista ndash a vontade de continuar a lutar apoacutes a guerra das guerras ndash em muitoslugares tambeacutem naqueles em que ele natildeo se chama assimrdquo Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder derNeuzeit Frankfurt aM 2014 p14695 Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p85

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desproporccedilotildees anteriores e posteriores O principal teorema civilizacionalmente dinacircmico

prescreve que no processo do mundo poacutes-hiato mais energias satildeo libertadas do que

podem ser contidas em formas de civilizaccedilatildeo transmissiacuteveis Isto significa que o excesso

croacutenico das mobilizaccedilotildees de atividades e a libertaccedilatildeo progressiva de fluxos de eventos pela

accedilatildeo movidos que se repercutem em reliacutequias objetivas propulsionam tanto a relaccedilatildeo com

o mundo como a experiecircncia da realidade na modernidade para crescentes e constantes

assimetrias96

Segundo Sloterdijk a exaustatildeo do presente deve-se ao facto de a accedilatildeo sensata

dos sujeitos ter sido substitutiacuteda pela sensaccedilatildeo de que se eacute impulsionado de forma

externa e infligida Os indiviacuteduos nas sociedades ocidentais apesar da prosperidade

material lamentam-se de depressatildeo e sobrecarga de tarefas O indiviacuteduo encontraria

aliacutevio em tudo o que natildeo tem de fundar ou inventar em tudo o que jaacute existia antes de

vir ao mundo e estaacute para existir quando do mundo partir Em tudo enfim que eacute

herdado tanto no material como nas regras e valores morais ndash e em relaccedilatildeo ao qual se

pode reivindicar uma validade objetiva mesmo que com a mesma natildeo se esteja

inteiramente satisfeito A este respeito Sloterdijk perspetiva os gestos do poder como

justificaccedilatildeo para tal quadro cultural apontado atraveacutes do recurso ao termo hiato a

ausecircncia de qualquer tipo de viacutenculo ou de modos de continuidade entre as novas

geraccedilotildees e as geraccedilotildees anteriores trata-se de acordo com o filoacutesofo da consideraccedilatildeo de

formas lacunares insertas no tempo de modos de rutura entre o antes e o depois A

capacidade de sobrevivecircncia de uma cultura traduz a sua potencialidade de se repetir

com sucesso apenas quando o herdado conta mais do que o novo apenas quando o

vigente natildeo ultrapassa o legiacutetimo haacute mais estabilidade do que erosatildeo Tal de acordo

com a anaacutelise de Sloterdijk correra razoavelmente bem ateacute ao Renascimento a eacutepoca

em que mercadores descobridores e artistas abandonaram os guetos das guildas e

assumiram posiccedilotildees influentes e prestigiadas Foi com a Revoluccedilatildeo Francesa que

segundo Sloterdijk a reviravolta futurista finalmente se estabeleceu ndash um imparaacutevel e

dinacircmico processo

96 Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p84

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13 | ldquoA mobilizaccedilatildeo totalrdquo e ldquoO trabalhadorrdquo aproximaccedilotildees ao pensamento

de Ernst Juumlnger

Os trabalhadores funcionam de acordo com leis semelhantes agraves das componentes de uma maacutequina

FW Taylor The Principles of Scientific Management

No ensaio A Mobilizaccedilatildeo Total97 de 1930 Ernst Juumlnger refere-se agrave Primeira

Guerra Mundial descrevendo- a como o acontecimento histoacuterico-beacutelico no qual o geacutenio

da guerra se embrenhou pela primeira vez com o geacutenio do progresso98 A mobilizaccedilatildeo

experienciada durante a Guerra natildeo soacute pelos exeacutercitos mas por toda a sociedade

constitui aos olhos de Juumlnger um princiacutepio estrutural da modernidade Tal como Juumlnger

salienta para que a vitoacuteria na guerra pudesse torna-se possiacutevel assistiu-se a uma

colossal pressatildeo nas universidades nos laboratoacuterios de pesquisa e nas faacutebricas para

desenvolver inovaccedilotildees tecnoloacutegicas cada vez mais raacutepidas as quais foram conduzidas

de modo imensamente acelerado agrave maturidade da sua produccedilatildeo Juumlnger traccedilou tal

princiacutepio estrutural agrave luz de uma crescente conversatildeo da vida em energia ndash o que de

acordo com o escritor alematildeo se traduziu como uma realizada materializada natildeo apenas

nos tempos de guerra mas tambeacutem nos tempos de paz Com a mobilizaccedilatildeo total

sustenta Juumlnger esbateu-se a diferenccedila entre guerra e paz ndash pois agora a guerra

avaliada como permanente corrida ao armamento prolonga-se em tempos da paz

Segundo Juumlnger a mobilizaccedilatildeo ocultar-se-ia atraacutes de uma maacutescara de razatildeo natildeo

sendo todavia racionalmente controlaacutevel e obedecendo somente agraves suas proacuteprias leis99

97 Walter Benjamin escreveu sobre este ensaio O que surge aqui sob disfarce de voluntaacuterio na PrimeiraGuerra Mundial posteriormente de mercenaacuterio no poacutes-guerra eacute na verdade o confiaacutevel e fascistaguerreiro das classesldquo Benjamin W Society GS III Berlin pp238-250 citado por Kiesel H ErnstJuumlnger Muumlnchen 2007 p378 Helmuth Kiesel por outro lado avalia o ensaio da seguinte formaldquoJuumlnger natildeo foi nem o inaugurador nem o difusor irrefletido da mobilizaccedilatildeo total mas quem lhe fez odiagnoacutesticordquo Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2007 p374 A respeito de Walter Benjamin e de ErnstJuumlnger eacute curioso que Theodor W Adorno numa entrevista em fevereiro de 1951 com o filoacutesofo ehistoriador judeu e amigo de Benjamin Gershom Scholem relacionou Ernst Juumlnger que fazia parte doEstado-Maior alematildeo em Paris com uma operaccedilatildeo de resgate e de salvaccedilatildeo de Walter Benjamin nocontexto da qual seria suposto Benjamin usar o disfarce que o salvaria de enfermeira num hospitalmilitar (Juumldische Allgemeine de 04062009) Veja tambeacutem a correspondecircncia entre Scholem e Juumlngerem ScholemG Ernst Juumlnger und Gershom Scholem Briefwechsel 1975-1981 em Weichelt M KraumlmerG (Ed) Sinn und Form (32009) Berlin 2009 p29398 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p 24599 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p240

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Num outro livro O Trabalhador100 (1932) que funcionaraacute como complemento de A

Mobilizaccedilatildeo Total Ernst Juumlnger procura transcender a sua experiecircncia da guerra e

iniciar um diagnoacutestico universal da modernidade Em verdade O Trabalhador retrata

a figura do ldquotrabalhadorrdquo como poder elementar passiacutevel de destruir a sociedade

burguesa Nele Juumlnger revela a emergecircncia de uma nova eacutepoca caracterizada pelo

ldquocaraacutecter total de trabalhordquo que destroacutei os valores do mundo burguecircs ndash a apreciaccedilatildeo do

indiviacuteduo o liberalismo democraacutetico o contrato social ndash contrapondo-lhes conceccedilotildees

de ldquotipordquo e proclamando noccedilotildees de ldquoestado operaacuteriordquo e de ldquoplano de trabalhordquo como

factos objetivos A visatildeo geral de Juumlnger sobre as diferentes eacutepocas culturais natildeo eacute

fundamentada com uma teoria rigorosa Juumlnger prefere referir-se as distintas formas do

ldquotrabalhadorrdquo a partir de diferentes perspetivas Deste modo Juumlnger dissocia tais

formas das condiccedilotildees sociais e concebe-as agrave luz de um poder elementar Este invade o

mundo burguecircs e remodela-o ateacute desaparecer definitivamente Como as formas natildeo satildeo

fenoacutemenos transitoacuterios de configuraccedilotildees espontaneamente concebidas mas antes

intemporais as suas intervenccedilotildees fortalecidas na modernidade tornam-se parte de um

processo inevitaacutevel Na segunda parte do livro Juumlnger oferece um rico panorama de

observaccedilotildees sobre a ascensatildeo da figura do ldquotrabalhadorrdquo que vai desde o vestiaacuterio o

comportamento das massas nos seus tempos livres o culto do corpo a rejeiccedilatildeo do teatro

a favor do cinema o comportamento dos moradores das cidades etc Central aqui eacute a

substituiccedilatildeo do indiviacuteduo pelo ldquotrabalhadorrdquo enquanto tipo A isto estaacute associada uma

uniformidade do mundo civilizado (visiacutevel tambeacutem na similaridade entre aacutereas diacutespares

como as da publicidade da estatiacutestica etc) que ocasionalmente se converte num tipo de

crueldade Mais tarde no final da deacutecada de 1930 o proacuteprio Juumlnger abandonaria esta

sua perspetivaccedilatildeo Como alternativa o escritor alematildeo procurou avaliar possibilidades

que permitissem ao indiviacuteduo escapar ao funcionalismo do mundo total do trabalho

segundo as quais o ser humano pudesse sobreviver agrave succcedilatildeo niilista quando

confrontado com a aniquilaccedilatildeordquo Considerando que de acordo com o conceito de

mobilizaccedilatildeo total o ldquosistemardquo se afigura capaz de integrar qualquer resistecircncia ativa

Juumlnger contrapotildee-lhe um momento de resistecircncia do ldquodisfuncionalrdquo101

Embora O Trabalhador soacute possa ser varialmente interpretado como um

diagnoacutestico de um sistema ora totalitaacuterio fascista ora comunista-estalinista ou

100 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934101 Citado por Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p253

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porventura capitalista o livro foi tomado por muitos criacuteticos como uma antecipaccedilatildeo da

realidade do fascismo no Terceiro Reich102 Agrave estrutura da obra subjaz como jaacute

mencionado a hipoacutetese formulada por Juumlnger de que as suas observaccedilotildees e conclusotildees

sobre a postura do ser humano na Primeira Guerra Mundial tambeacutem pertencem ao

mundo da paz Entre outras coisas estaacute presente a ideia de libertar todas as forccedilas

produtivas A base para o seu diagnoacutestico eacute o reconhecimento da aceleraccedilatildeo como parte

do caraacutecter da modernidade Juumlnger declara neste sentido que o ser humano vive

numa eacutepoca de grande consumo cujo uacutenico efeito eacute o movimento acelerado das

rodas103 Embora O Trabalhador revele traccedilos antiliberais e anti-burgueses o livro foi

rejeitado pela imprensa nacional-socialista104

As obras O Trabalhador e A Mobilizaccedilatildeo Total contecircm elementos de pendor

diagnoacutestico apesar da afinidade com pensamentos militaristas e antiliberais a ambos os

textos estatildeo subjacentes o discernimento sobre o processo de desdobramento dialeacutetico

da Aufklaumlrung e a natureza dupla do uso natildeo restrito da razatildeo instrumental Salientar-se-

ia tambeacutem a afirmaccedilatildeo de que a tecnologia ascendera ao escalatildeo de sujeito histoacuterico

Assim resultam frutiacuteferos pontos de ligaccedilatildeo com a filosofia criacutetica da tecnologia

emergente durante e apoacutes a Segunda Guerra Mundial e ndash tenha-se presente ndash

desenvolvida pela primeira vez pelo irmatildeo de Ernst Juumlnger Friedrich Georg amigo

proacuteximo de Martin Heidegger De facto Heidegeer conhecia tanto A Mobilizaccedilatildeo

Total e O Trabalhador como ldquoA Perfeiccedilatildeo da Tecnologiardquo de Friedrich Georg

Juumlnger105 Com efeito para Heidegger Ernst Juumlnger afigurava-se como um dos mais

importantes representantes contemporacircneos da filosofia de Nietzsche106

102 Consultar Sombart N Ernst Juumlnger Der Arbeiter Zur Neuauflage 1964 In Nachdenkenuumlber Deutschland Vom Historismus zur Psychoanalyse Muumlnchen 1987 p147103 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p171104 A recensatildeo de Thilo von Trotha no Voumllkischer Beobachter apresenta de forma precisa as diferenccedilasideoloacutegicas entre Ernst Juumlnger e os nacional-socialistas as especulaccedilotildees Ernst Juumlnger sobre a tecnologiaa sua visatildeo planetaacuteria a sua declinaccedilatildeo de fundaccedilotildees racial-eacutetnicas a sua distinccedilatildeo categoacuterica entreburgueses e trabalhadores separam-no de forma muito clara da doutrina do Blut und Boden ancoradano nazismo Von Trotha T Das endlose dialektische Gespraumlch In Voumllkischer Beobachter Bayern-Ausgabe 45 Nr 296 vom 22 Oktober Muumlnchen 1932 p23 Peter Koslowski conclui bdquoOTrabalhadorldquo natildeo era compatiacutevel com a ideologia Blut und Boden (ldquosangue e terrardquo) do nazismoporque o seu trabalhador-tipo eacute tatildeo transnacional como eacute transsocialista e transcapitalistaldquo Koslowski PDer Mythos der Moderne Die dichterische Philosophie Ernst Juumlngers Muumlnchen 1991 p69 105 Juumlnger GF Die Perfektion der Technik Frankfurt a M 1946106 Heidegger M Zu Ernst Juumlnger Gesamtausgabe vol90 Frankfurt aM 2004Em janeiro de 1940 Heidegger convocou um pequeno ciacuterculo de colegas da Universidade de Freiburgpara um Debate sobre Juumlnger Desta assembleia resultam textos nos quais Heidegger expotildeedetalhadamente o seu juiacutezo sobre as visotildees de Juumlnger acerca do caraacutecter do tempo e da compreensatildeo daeacutepoca marcada pela vontade de poder e pela tecnologia Estes e outros materiais elaborados entre 1934e 1954 sobre Ernst Juumlnger que constituem em verdade reflexotildees sobre o contexto histoacuterico do

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O grau de destruiccedilatildeo humana cultural e civilizacional da Primeira Guerra

Mundial foi sentido pela maioria dos contemporacircneos como uma verdadeira rutura

Como resultado o quadro tradicional de referecircncias em que se inseriam o pensamento e

accedilatildeo foi profundamente abalado e questionado Com efeito Ernst Juumlnger em A

Mobilizaccedilatildeo Total acolheu a ideia da mobilizaccedilatildeo ldquoagrave maneira Nietzscheanardquo enquanto

libertaccedilatildeo do empedernimento civilizacional e da decadecircncia na sociedade tendo

acabado poreacutem por se distanciar por completo de tais posiccedilotildees ainda na deacutecada de

1930 A este respeito Peter Sloterdijk retoma em A Mobilizaccedilatildeo Infinita o conceito

de mobilizaccedilatildeo (total) de Ernst Juumlnger107 um conceito libertado do seu significado

militar especiacutefico e aplicado agrave sociedade moderna ndash como observa Sloterdijk De acordo

com Sloterdijk a liberdade de movimento constitui desde o Iluminismo a base fiacutesica

da autonomia Independentemente da forma como fora interpretada a mobilizaccedilatildeo fora-

o de algum modo positivamente pois muitas vezes se negligenciaram os aspetos

problemaacuteticos da sua dinacircmica

Este corre de tal maneira que noacutes empregamos com franqueza o conceito de mobilizaccedilatildeo

como expressatildeo principal para descrever e explicar o processo fundamental da

Modernidade [hellip] trata-se apenas por agora de corroborar a evidecircncia as

modernizaccedilotildees para noacutes apresentam sempre do ponto de vista cineacutetico o caraacutecter de

comunismo do nacional-socialismo e da guerra preenchem todo o volume 90 da ediccedilatildeo completa deobras de Heidegger O longo contacto amigaacutevel iniciado em 1942 e que durara mais de trinta anos comFriedrich Georg Juumlnger irmatildeo de Ernst inluenciou o pensamento de Heidegger de maneira marcanteDepois de 1945 a palestra A questatildeo da Tecnica datada de 1949 forma juntamente com Das Gestell(1955) o acircmago de pensamento de Heidegger acerca de tal questatildeo Inicialmente Heidegger tendera arelacionar a visatildeo de Juumlnger com o nacional-socialismo que nivelara as antigas fronteiras de classecriando uma nova grande vontade do Estado Gradualmente a partir de 193435 a perspetiva deHeidegger mudara A URSS e os Estados Unidos satildeo pensados pelo filoacutesofo jaacute em 1935 como expressatildeode o mesmo sombrio frenesim da tecnologia desenfreada e da organizaccedilatildeo sem fundamento de povos(Heidegger M Einfuumlhrung in die Metaphysik (Sommersemester 1935) Jaeger P (Ed) Frankfurt a M1983 p40) Se o nacional-socialismo fora tomado por Heidegger como uma alternativa poliacutetica agravemodernidade economizada e tecnologizada mais tarde o filoacutesofo alematildeo natildeo poderia continuar a ignoraruma realidade mais profunda ldquopois noacutes tambeacutem aumentamos o armamento em termos de tecnologia eorganizaccedilatildeo (numa palavra aumentamos o armamento para a ldquoMachenschaftrdquo(ldquomanipulativedominationrdquordquodominaccedilatildeo manipuladorardquo) Heit H Heideggers Revolution In Sezession (44) Steigra2015 p 22107 A controveacutersia em torno de Ernst Juumlnger do homem e da sua biografia revela complexidades deenorme monta A visatildeo convencional de Juumlnger como um entusiasta nacional-socialista constitui umaspeto que merece um atento esclarecimento ndash a este respeito Hannah Arendt manifesta-se sobre oescritor alematildeo rejeitando as posturas correntes de condenaccedilatildeo simplista Os diaacuterios de guerra de ErnstJuumlnger fornecem talvez a melhor e mais honesta prova das dificuldades enfrentadas pelo indiviacuteduoquando este quer manter inquebrantaacuteveis as proacuteprias conceccedilotildees de valor e o proacuteprio conceito de verdadenuma situaccedilatildeo no qual a moralidade e a verdade natildeo existem mais Apesar da influecircncia inegaacutevel da obrainicial de Juumlnger em certos membros da intelligentsia nazi ele era um ativo oponente ao nazismo doprimeiro ao uacuteltimo dia do regime provando que o conceito de honra um tanto antiquado uma vezcorrente no corpo de oficiais prussiano era completamente suficiente para uma resistecircncia individualArendt H Besuch in Deutschland Berlin 1993 p73

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mobilizaccediloumles [hellip] Que se multiplica o nuacutemero dos milionaacuterios nos negoacutecios que as

borboletas da nossa infacircncia jaacute natildeo existem que as curvas do turismo em paiacuteses distantes e

das despesas com o armamento mostram uma significativa tendecircncia para subirhellip [hellip]

Muito para aleacutem das intenccedilotildees de Juumlnger a categoria da mobilizaccedilatildeo pode facultar pontos

de vista que natildeo satildeo compatiacuteveis com o sono dos justos no projecto da Modernidade A

foacutermula ominosa da ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo prepara-nos para o reconhecimento que continua

sendo escandaloso ateacute quase insuportaacutevel de que haacute no mundo moderno um processo

fundamental poliacutetico-cineacutetico que tende a neutralizar de facto a diferenccedila moralmente

importante entre guerra e trabalho e anula cada vez mais a antiga distinccedilatildeo entre a

situaccedilatildeo de reserva e a entrada em acccedilatildeo Eacute esse precisamente o fatiacutedico processo de

mobilizaccedilatildeo que encaminha para a ldquofrenterdquo tudo quanto seja reserva de forccedilas e impele

para a realizaccedilatildeo tudo quanto seja potencial Dos exerciacutecios duvidosos de Juumlnger - o

homem mau que seraacute citado a grande distacircncia embora nunca sem respeito pela sua

capacidade de percepccedilatildeo - no sentido do diagnostico da eacutepoca resultou por fim a

definiccedilatildeo hellip como a ldquomobilizaccedilatildeo do planeta pela figura do trabalhadorrdquo108

A combinaccedilatildeo do entusiasmo de Juumlnger relativamente agrave tecnologia enquanto

desmascaramento e as posiccedilotildees de Heidegger quanto agrave essecircncia da tecnologia na

forma de Gestell serve a Sloterdijk como guia para a interpretaccedilatildeo da

mobilizaccedilatildeo enquanto processo fundamental autoacutegeno da Modernidade leva a pocircr agrave

disposiccedilatildeo potenciais de movimento sempre crescentes para manter posiccedilotildees que

precisamente devido agraves condiccedilotildees preacutevias e agraves consequecircncias desses estados de prontidatildeo

se tornam impossiacuteveis come posiccedilotildees e impelem para o insustentaacutevel 109

Com efeito de acordo com Sloterdijk a nova ldquoteoria criacuteticardquo deve desenvolver-

se segundo a possibilidade de integraccedilatildeo de uma investigaccedilatildeo em torno dos fenoacutemenos

da mobilizaccedilatildeo concebidos como eixos definidores da modernidade tardia procurando

soluccedilotildees de pendor criacutetico para tal realidade110

108 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p47109 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p52110 bdquoAbre-se aqui para uma criacutetica alternativa da Modernidade o vasto campo dos paradoxos cineacuteticosDeste modo a criacutetica da sociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se apoacutes a derrocada do marxismoe depois do ambiacuteguo ensurdecimento das escolas de Francoforte ainda pode haver uma terceira versatildeo deteoria criacutetica de um tipo exigente entatildeo com certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica domovimento O seu criteacuterio terapecircutico consistiria na diferenciaccedilatildeo caso esta se possa conseguir comexactidatildeo entre autecircntica mobilidade e falsa mobilizaccedilatildeo A sua ofensiva exigecircncia de verdade basear-se-ia no reconhecimento de que haacute em questotildees cineacuteticas um espectro que se estende desde o fisioloacutegico ateacuteao poliacutetico Graccedilas a uma teoria criacutetica da mobilizaccedilatildeo lanccedilar-se-ia uma ponte sobre o abismo existenteentre o processo mental e o acontecer real no plano dos conceitos fundamentaishellip Se ela for possiacutevelentatildeo concretizar-se-ia desde o princiacutepio como escola preparatoacuteria da desmobilizaccedilatildeo Somente comotranquila teoria do movimento somente como silenciosa teoria da ruidosa mobilizaccedilatildeo eacute que uma criacuteticada Modernidade ainda pode ser diferente do objecto criticadohellipA questatildeo da possibilidade de uma

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Poder-se-ia com justeza afirmar que o ensaio de Ernst Juumlnger com o tiacutetulo A

Mobilizaccedilatildeo Total publicado em 1930 se afigura delineado segundo um certo sentido

de afinidade teoacuterica e conceptual com o universo de pensamento de O Trabalhador

constituindo com efeito como que uma introduccedilatildeo agraves temaacuteticas avanccediladas pelo filoacutesofo

nesta uacuteltima obra publicada dois anos depois em 1932111 Mediante a elaboraccedilatildeo do

conceito de ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo de contornos teoacutericos declaradamente beacutelicos Juumlnger

procurara perspetivar a emergecircncia de novos modos de preparaccedilatildeo e de conduccedilatildeo da

guerra cuja caracteriacutestica essencial consistiria no uso de todos os recursos disponiacuteveis

de um Estado bem como de todas as suas forccedilas civis e econoacutemicas com vista agrave

construccedilatildeo de um colossal processo de trabalho beacutelico ndash um exeacutercito de trabalho112

justamente Segundo a metafiacutesica de Juumlnger ndash se nos eacute permitido usar tal expressatildeo ndash a

designada ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo apresenta-se passiacutevel de ser realizada somente por si

mesma como que segundo uma certa autopoieses natildeo se afigurando suscetiacutevel de ser

desenvolvida por uma subjetividade que lhe seja exterior Tal como avanccedila Juumlnger a

ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo poderaacute ser concebida agrave luz do princiacutepio que criou as cidades

tecnologizadas e com as quais o ser humano se encontra profundamente

comprometido113 Segundo as posiccedilotildees expressas por Juumlnger em O Trabalhador poder-

se-aacute compreender que a mobilizaccedilatildeo total visa em verdade a dominaccedilatildeo para laacute da

guerra ndash todavia se pensarmos aqueacutem da esfera beacutelica importa pois conceber a

possibilidade de na era das massas e das maacutequinas cada indiviacuteduo se apresentar

impelido a transformar-se num trabalhador114

ldquoterceirardquo teoria criacutetica essencialmente diferente vai assim desembocar no enigma claacutessico como eacutepossiacutevel a calma na tempestade para seres do princiacutepio ao fim condenados agrave acccedilatildeoldquo Sloterdijk P AMobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p52Hartmut Rosa retomou tal posiccedilatildeo aprofundando-a bdquoTen years ago an analogous idea was advanced bythe hellipGerman philosopher Peter Sloterdijk who attempted to develop a new critical theory of ldquopoliticalkineticsrdquo conceived as a third version of critical theory after Marx and the Frankfurt School InSloterdijkrsquos view both earlier versions of critical theory ultimately failed because they misunderstood anduncritically supported the kinetic forces of modernity which set everything in motion until theyultimately achieve a state of ldquototal mobilizationrdquo (ldquototale Mobilmachungrdquo) a warlike state whereeverything is determined by the logic of speed Unfortunately Sloterdijkrsquos own approach was overlyspeculative unsystematic hellip Nonetheless we believe that something useful can be retrieved from hisotherwise highly problematic reformulation of critical theory In our view temporal structures provide aspecial point of access to the necessary connection between systemic macro- and individual microlevelperspectives on social experience There is no question that structural social transformations (for examplethe emergence of industrial capitalism) yield corresponding changes in individual self-understandings andorientations towards actionrdquo Rosa HScheuerman W High-Speed Society Social Acceleration Powerand Modernity Pennsylvania University Park 2009 p16111 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p97112 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p125113 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128114 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128

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Os sinais que traduzem tal realidade poderatildeo ser assinalados historicamente nos

uacuteltimos anos da Primeira Guerra Mundial assim os perspetiva Juumlnger de acordo com o

filoacutesofo a derrota dos alematildees deveraacute ser compreendida mediante a invocaccedilatildeo da falta

de adaptaccedilatildeo do povo alematildeo ao espiacuterito de progresso115 Como conceber tal posiccedilatildeo

de Juumlnger Com efeito segundo o filoacutesofo o progresso constitui a possibilidade de

configuraccedilatildeo de um ajuste ou de uma equalizaccedilatildeo das condiccedilotildees de vida dos povos

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave emergecircncia de uma ldquomobilizaccedilatildeo superiorrdquo dos recursos e das

forccedilas o que conduz por sua vez agrave desejada destruiccedilatildeo das caracteriacutesticas e das

tradiccedilotildees culturais e ao consequente desgaste da ldquomaacutescara humanitaacuteriardquo Neste sentido

tal como Juumlnger subtilmente o analisa o espiacuterito humanista do progresso como que

provoca paradoxalmente um inusitado novo curso do mundo natildeo antevisto pelos seus

preconizadores nas suas intenccedilotildees o niilismo completo o resultado inopinado do

progresso tal como Juumlnger o avalia constitui uma das temaacuteticas filosoacuteficas mais

relevantes de O Trabalhador ndash pois de acordo com o filoacutesofo o desejo do alcance de

um ldquoponto zero civilizacionalrdquo e num sentido dialeacutetico a inversatildeo de tal movimento na

sua direccedilatildeo oposta apresenta-se como a uacutenica possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a emergecircncia de uma nova realidade a realidade da ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo

A possibilidade de redenccedilatildeo ou de salvaccedilatildeo do niilismo a que o progresso

burguecircs no conduzira afigura-se aos olhos de Juumlnger como decorrecircncia de um poder

que se revela como mobilizaccedilatildeo total Importaria a este respeito ter presente que tal

conceito de Juumlnger o conceito de mobilizaccedilatildeo total se apresenta como uma expressatildeo

que representa uma realidade mais abrangente do que a sua envolvecircncia beacutelica ou

militar parece fazer crer Trata-se em verdade de um conceito que traduz um elemento

essencialmente utoacutepico e fantaacutestico da ideia de civilizaccedilatildeo elaborada por Juumlnger

Conquanto a origem de tal conceito resida na avaliaccedilatildeo teoacuterica da experiecircncia da guerra

que culmina com o ensaio que integra o proacuteprio conceito no seu tiacutetulo A Mobilizaccedilatildeo

Total apresentar-se teoricamente insuficiente ou porventura conceptualmente

equiacutevoco definir a noccedilatildeo em questatildeo mediante a consideraccedilatildeo de modos de incremento

intensificaccedilatildeo ou expansatildeo radical de tal realidade representada O conceito de

mobilizaccedilatildeo total constitui-se como um dos elementos centrais do pensamento de

Juumlnger ndash e sua envolvecircncia filosoacutefica na qual se integra uma certa conceccedilatildeo relativa agrave

sua determinaccedilatildeo fatiacutedica como que historicamente necessaacuteria e repleta de sentido

115 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 pp129 136

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metafiacutesico natildeo deveraacute ser desprezada nem depreciada Tal como a define Juumlnger a

mobilizaccedilatildeo total eacute

muito menos realizada do que ela proacutepria realiza se por ela proacutepria eacute na guerra e na paz a

expressatildeo das misteriosas e convincentes exigecircncias a que esta vida na era das massas e

das maacutequinas nos submete116

Curiosamente e tal natildeo deixa de ser surpreendente no seu ensaio A Mobilizaccedilatildeo

Total Juumlnger parece minimizar a temaacutetica da primazia da tecnologia no acircmbito da sua

definiccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo total embora tal conceccedilatildeo se afigure central no contexto da

sua utopia tecnoloacutegica ndash como compreender tal posiccedilatildeo Poder-se-ia a este propoacutesito

evocar uma certa postura proacutepria de Juumlnger que natildeo raro se deseja afirmar pelos seus

contornos eminentemente metafiacutesicos como que corrigindo a impressatildeo de

materialismo frio Atente-se sobre a seguinte citaccedilatildeo

O lado teacutecnico da Mobilizaccedilatildeo Total natildeo eacute no entanto o decisivo Pelo contraacuterio a sua

condiccedilatildeo preacutevia como a condiccedilatildeo preacutevia de qualquer tecnologia eacute mais profunda

queremos abordaacute-la aqui como a prontidatildeo para a mobilizaccedilatildeo117

Natildeo obstante o seu caraacutecter metafisicamente natildeo necessaacuterio o desenvolvimento

teacutecnico natildeo eacute definido por Juumlnger como arbitraacuterio com efeito o filoacutesofo analisa a sua

proacutepria geraccedilatildeo na sua eufoacuterica disposiccedilatildeo para a submissatildeo exultante aos ditames

daquilo que eacute tecnicamente possiacutevel

A simultaneidade de certos meios com uma certa forma da humanidade natildeo depende do

acaso mas eacute enquadrada no quadro de uma necessidade superior A unidade do homem

com os seus meios eacute portanto a expressatildeo de uma unidade de tipo superior118

A instacircncia metafiacutesica que supostamente deveria promover tal unidade

perspetivada por Juumlnger a unidade do homem com os seus meios eacute avanccedilada pelo

filoacutesofo mediante a invocaccedilatildeo do conceito de espiacuterito do mundo (Weltgeist) Assim o

apresenta Juumlnger ldquoEacute um grande e terriacutevel espetaacuteculo ver os movimentos das massas

cada vez mais uniformemente formadas agraves quais o espiacuterito do mundo coloca as suas

armadilhasrdquo119

116 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128117 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128118 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p240119 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p141

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Interessantemente tal quadro filosoacutefico traccedilado por Juumlnger parece desenvolver-

se segundo uma afinidade conceptual com o pensamento de Hegel em especial com a

sua conceccedilatildeo de espiacuterito do mundo A consideraccedilatildeo da introduccedilatildeo de certas referecircncias

histoacuterico-intelectuais natildeo nos permitem concluir uma influecircncia direta do sistema

hegeliano no pensamento de Juumlnger bem entendido em todo o caso poder-se-ia evocar

a existecircncia de relevantes analogias entre a importacircncia central do princiacutepio do trabalho

em Juumlnger e a ideia de Hegel relativa ao ldquoespiacuterito do mundo que se realiza no trabalhordquo

ndash ambas as conceccedilotildees parecem traduzir com uma consonacircncia comum o quadro

civilizacional da modernidade A este respeito o filoacutesofo Peter Koslowski afirma no

seu livro sobre o pensamento de Ernst Juumlnger com o tiacutetulo O Mito da Modernidade que

os sistemas totalitaacuterios de pendor comunista e fascista do seacuteculo XX continham nos

seus ideaacuterios entre outras coisas elementos de um exagero patoloacutegico do caraacuteter de

trabalho da modernidade O conceito de trabalho de Hegel120 bem como a sua

conceccedilatildeo de espiacuterito do mundo constituem elementos definidores da modernidade e

todos os seus erros podem ser rastreados ateacute ele

Apenas Hegel [] transferiu a ideia de que o sujeito se constitui unicamente atraveacutes do

120 No que respeita agraves relaccedilotildees entre as posiccedilotildees de Hegel e de Juumlnger sobre o conceito de trabalhoimportaria tomar em atenccedilatildeo as seguintes elucidaccedilotildees o lsquotrabalhadorrsquo de Juumlnger aponta com efeito parauma universalidade enquanto Gestalt provando que a categoria econoacutemica marxista do lsquotrabalhadorenquanto proletariadorsquo eacute insuficiente e e natildeo corresponde agrave ubiquidade do lsquocaraacutecter trabalhistarsquo namodernidade A 24 de setembro de 1978 numa carta a Henri Plard Juumlnger escreve ldquoNa altura natildeoconseguia prever o risco que estava a correr com a conceccedilatildeo Marx perspetiva o sistema do trabalhadormas natildeo o compreende totalmente Algo semelhante poderia ser determinado sobre a sua relaccedilatildeo comHegel Suspeito que Hegel estaria mais de acordo com a Gestalt do trabalhador do que com a reduccedilatildeomarxista de pendor econoacutemico A Gestalt representa o lsquoespiacuterito do mundorsquo para uma determinada eacutepocaincluindo no que diz respeito agrave economia O problema baacutesico eacute o poder este lsquodetermina o detalhersquordquo(Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 390) Tal como afirma Juumlnger o trabalhadorpoderia assim ser interpretado como a Gestalt que o espiacuterito do mundo assume no auge damodernidade e as interpretaccedilotildees hegeliano-idealista e marxista-materialista da figura do trabalhador satildeoapenas dois lados do mesmo fenoacutemeno Porque Por detraacutes da representaccedilatildeo do espiacuterito do mundo estaacute amateacuteria natildeo a ideia A teoria natildeo determina como Hegel frequentemente e decididamente enfatiza arealidade mas eacute a realidade que daacute origem a ideias a partir de si mesma Inclusivamente a invenccedilatildeoteacutecnica segue a sua compulsatildeo Natildeo eacute nem ficcional nem acidental em uacuteltima instacircncia Tal correspondea uma compreensatildeo da mateacuteria que nos conduz de regresso a Platatildeo ndash natildeo eacute materialista mas material(Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 390) Segundo Juumlnger a interpretaccedilatildeoeconoacutemica do trabalhador implica apenas um segmento da mobilizaccedilatildeo total da modernidade O facto deas avaliaccedilotildees econoacutemicas poderem ser alargadas em grande medida [hellip] pode ser explicado pelo facto deque o trabalho tambeacutem pode ser interpretado economicamente mas natildeo pelo facto de que o trabalho eacutesinoacutenimo de economia Pelo contraacuterio o trabalho eleva-se acima de tudo o que eacute econoacutemicordquo (Juumlnger ESaumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 94) Atraveacutes da mobilizaccedilatildeo na modernidade o ser humanotorna-se segundo Juumlnger um trabalhador total ideal para quem o mundo eacute apenas o material daapropriaccedilatildeo teacutecnica e do controlo De acordo com Juumlnger tal mobilizaccedilatildeo possui o seu iniacutecio na teoria deHegel sobre o espiacuterito do mundo a entidade que dentro da atividade do espiacuterito subjetivo (do serhumano) impulsiona o processo da histoacuteria mundial Do mesmo modo Hegel natildeo reconhece qualquerdiferenccedila real entre o desenvolvimento do trabalho humano e o desenvolvimento do mundo o mundoapresenta-se completamente entregue agraves matildeos do homem e do seu trabalho

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trabalho [] para Deus e assim deu uma consagraccedilatildeo quase religiosa ao caraacuteter de trabalho

do mundo ] O eu moderno sobrecarrega-se a si mesmo atraveacutes da sobrecarga de

trabalho que para o trabalhador da modernidade torna-se o uacutenico princiacutepio constitutivo da

sua subjetividade de facto o uacutenico princiacutepio para a criaccedilatildeo de sentido121

Tal como pertinentemente avalia Koslowski o passo filosoacutefico de Juumlnger

constitui-se como uma decorrecircncia concebida como culminante das posiccedilotildees de Hegel

acerca do trabalho como elemento definidor da subjetividade e do mundo modernos

atraveacutes do ensaio O Trabalhador Juumlnger ndash como que sem o entrever ndash contribuiacutea para a

possibilidade de revelaccedilatildeo de tais traccedilos patoloacutegicos do pensamento progressista e da

eacutetica do trabalho que caracterizam a modernidade promovendo mediante o culto do

trabalho o exacerbamento radical envolto num tom celebrativo de tal princiacutepio

constitutivo dos tempos modernos

No contexto da mobilizaccedilatildeo industrial moderna configurada agrave luz do progresso

teacutecnico anuncia-se uma caracteriacutestica relevantemente definidora do novo ldquotipordquo de

trabalhador trata-se da autoconsciecircncia (ou do reconhecimento) da sua capacidade de

domiacutenio das possibilidades que o raacutepido desenvolvimento dos meios teacutecnicos produz no

mundo e no ser humano A legitimaccedilatildeo da pretensatildeo do trabalhador a tal poder de

domiacutenio decorre do facto de aquele o trabalhador se afigurar de modo consciente

capaz de enfrentar os desafios da tecnologia de um modo soberano ndash pois

contrariamente ao bourgeois que manteacutem uma relaccedilatildeo secundaacuteria ou derivada com os

meios teacutecnicos o trabalhador desenvolve relativamente a estes uma ldquorelaccedilatildeo

substancialrdquo Esta eacute pois uma das linhas de pensamento mais estruturantes de O

Trabalhador

Na histoacuteria das descobertas geograacuteficas e cosmograacuteficas naquelas invenccedilotildees cujo sentido

mais secreto se revela uma vontade irada de omnipotecircncia omnipresenccedila e omnisciecircncia

[] o espiacuterito por assim dizer correu para aleacutem de si mesmo para acumular um material

que aguarda ordem e penetraccedilatildeo de poder Esse caos de factos meios de poder e

possibilidades de movimento surgira pronto para ser usado como uma ferramenta para

governar em grande escala122

121 Koslowski P Der Mythos der Moderne Die dichterische Philosophie Ernst Juumlngers Muumlnchen1991 p211122 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p71

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Tal como Juumlnger o analisa no contexto do seacuteculo XX o domiacutenio dos meios

teacutecnicos revela-se crescentemente como uma tarefa que a burguesia parece enfrentar

com a impotecircncia do aprendiz de feiticeiro do poema de Goethe A utilizaccedilatildeo parcial

orientada para o lucro dos meios teacutecnicos pela ordem econoacutemica burguesa constitui

apenas uma fraccedilatildeo do seu potencial desenvolvendo como que uma dinacircmica ou um

movimento sem direccedilatildeo ou orientaccedilatildeo determinaacuteveis que soacute poderatildeo revelar-se

destrutivos Por conseguinte o domiacutenio da tecnologia pelo trabalhador tal como

possibilitado no acircmbito da mobilizaccedilatildeo total eacute afirma-o Juumlnger da maior importacircncia

para o mundo123 Tal como avalia Juumlnger somente o trabalhador possui a soberania do

controlo do vasto arsenal de meios teacutecnico-industriais que no acircmbito do seacuteculo XX

adquiriram a forma de agentes destruidores totais ndash pois somente ele o trabalhador

manteacutem uma relaccedilatildeo direta com as forccedilas elementares e vitais apresentando-se a si

proacuteprio como o protagonista da mobilizaccedilatildeo teacutecnica Repare-se a este propoacutesito que

de acordo com o filoacutesofo a emancipaccedilatildeo moderna relativamente agrave esfera do natural e do

elementar tal como empreendida pelas elites burguesas promovera uma distanciaccedilatildeo da

vida (o que potenciara a equiacutevoca afirmaccedilatildeo de que a direccedilatildeo do progresso permitiria

um contiacutenuo e crescente desenvolvimento da prosperidade e da seguranccedila fiacutesica e

material) e em uacuteltima instacircncia a ausecircncia de contacto com as designadas ldquoforccedilas

elementaresrdquo configurando um estilo de vida burguecircs que se desenvolve segundo

relaccedilotildees ldquoderivadasrdquo124 com a realidade Inclusivamente no que concerne ao ideal

romacircntico da natureza encarnado num enquadramento burguecircs que desprezaria com

hostilidade o progresso Juumlnger vislumbra natildeo mais do que a expressatildeo de decadecircncia

de uma vida enfraquecida no seu acircmago revelando neste ponto a influecircncia de

Nietzsche

A nossa tarefa natildeo eacute ser as contrapartes mas os jogadores que tudo arriscam [] A

extensatildeo de um caminho que parecia levar ao conforto e agrave seguranccedila conduz agora agrave zona

do perigoso Neste sentido o trabalhador aparece aleacutem do recorte que o progresso lhe

mostrou como o portador da substacircncia baacutesica heroica que determina uma nova vida125

No seguimento de tais posiccedilotildees Juumlnger formula a sua perspetivaccedilatildeo decisiva o

ceacutelere progresso teacutecnico que supostamente deveria permitir agrave humanidade tornar-se

independente da natureza e dominar economicamente os seus recursos promovera uma

123 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p79124 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p46125 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p46

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aceleraccedilatildeo um incremento e uma dinacircmica teacutecnicos inesperados que tornam por sua

vez as forccedilas libertadas incontrolaacuteveis Segundo tal quadro Juumlnger delineia a conceccedilatildeo

de um sentido metafiacutesico que determinara o ser humano alienado no acircmbito no processo

de trabalho moderno como que propondo uma criacutetica ou uma soluccedilatildeo para as suas

visotildees assaz ambivalentes e oscilantes entre o lamento condenatoacuterio e a afirmaccedilatildeo

exultante da tecnologia ldquoA maacutequina roubou-nos muito Tirou o tudo de noacutes e fez de

noacutes especialistas [] Mas temos de reconhecer isto Os movimentos inevitaacuteveis natildeo

podem ser paradosrdquo126

Perante o reconhecimento da impossibilidade de deter o curso do

desenvolvimento tecnoloacutegico Juumlnger proclama a afirmaccedilatildeo da tecnologia

Na grande cidade entre carros e letreiros de neacuteon nas reuniotildees poliacuteticas de massa na

velocidade motora do trabalho e do prazer no meio da azaacutefama da Babilocircnia moderna

seria necessaacuterio parar por um momento como uma pessoa de outro mundo com o espanto

profundo do qual as crianccedilas satildeo capazes e dizer Tudo isto tem o seu significado um

significado profundo que tambeacutem se realiza em mim127

No mesmo tom de proclamaccedilatildeo metafiacutesica Juumlnger procura desenvolver a

afirmaccedilatildeo da tecnologia como que denunciado no seu proacuteprio pensamento uma

inspiraccedilatildeo futurista

E aqui eu senti novamente o que se sente atraacutes do motor do aviatildeo quando o punho empurra

o acelerador para a frente e o terriacutevel rugido da forccedila que quer escapar da terra se eleva ou

quando se corre pelas paisagens cicloacutepicas da regiatildeo do Ruhr num comboio Expresso agrave

noite enquanto as chamas brilhantes dos altos-fornos rasgam a escuridatildeo e no meio do

movimento furioso nenhum aacutetomo parece possiacutevel agrave mente que natildeo estaacute em trabalho128

Neste ponto do pensamento de Juumlnger a tecnologia parece constituir-se como o

siacutembolo do espiacuterito da eacutepoca ndash que por sua vez eacute capturado por um frio olhar que

penetra ateacute aos aacutetomos ldquodo trabalhordquo que seguem uma necessidade maior A partir de

tais conceccedilotildees Juumlnger traccedila uma perspetivaccedilatildeo relativa agraves condiccedilotildees preacutevias para a

designada ldquoGestalt do trabalhadorrdquo Com efeito em O Trabalhador o pensamento de

Juumlnger assume contornos eminentemente metafiacutesicos ndash eacute pois agrave luz de tal envolvecircncia

126 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p160127 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p301128 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p154

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que se deseja metafiacutesica que o conceito de Gestalt desempenha um papel determinante

Tenha-se presente a este respeito a relevacircncia intelectual de tal conceito no contexto de

iniacutecios do seacuteculo XX no acircmbito da Teoria Gestalt fundada por Christian von Ehrenfels

em 1889 a noccedilatildeo de Gestalt concebida segundo as possibilidades de percetibilidade

visual de formas externas apresenta-se transferida para o domiacutenio estrutural de outras

entidades sensoriais psicoloacutegicas ou inclusivamente espirituais Na deacutecada de 1920 o

conceito de Gestalt apresenta-se inserido e desenvolvido no acircmbito da filosofia de vida

(Lebensphilosophie) de Ludwig Klages e das ideias histoacuterico-filosoacuteficas de Theodor

Lessing129 Natildeo obstante os desenvolvimentos mais decisivos para a compreensatildeo de tal

conceito a partir do ponto de vista do pensamento de Juumlnger satildeo as posiccedilotildees elaboradas

por Leibniz Oswald Spengler e Hans Driesch Como definir e compreender tal conceito

a partir de Juumlnger Primeiramente importaria ter presente uma primeira relaccedilatildeo

porventura demasiado pueril mas nem por isso menos ilustrativa descrita por Juumlnge a

relaccedilatildeo entre carimbo (Stempel) ndash a partir do qual o filoacutesofo apresentaraacute o seu

conceito de Gestalt que encarna a categoria da perenidade ndash e estampagem (Praumlgung)

ndash concebida como a atualizaccedilatildeo concreta e temporal130 Leiamos Juumlnger a este respeito

Na Gestalt repousa o todo que compreende mais do que a soma das suas partes e que era

inalcanccedilaacutevel numa era anatoacutemica Eacute o sinal de um tempo que se voltaraacute a ver sentir e agir

sob o feiticcedilo das Gestalten [] Mas da maior importacircncia eacute o facto de que a Gestalt natildeo

estaacute sujeita aos elementos do fogo e da terra e que portanto o homem como Gestalt

pertence agrave eternidade131

O conceito de Gestalt constitui-se assim como um princiacutepio que tal como um

carimbo metafiacutesicordquo concede ao homem concreto ndash bem como a toda uma eacutepoca ndash a

sua forma (interior e exterior) tal forma natildeo estaacute sujeita agrave temporalidade mas repousa

eternamente em si mesma permanecendo para aleacutem do tempo ndash e como tal natildeo se

apresenta suscetiacutevel de ser descoberta mediante a metodologia cientiacutefica A

proximidade intelectual deste conceito com o quadro dualista ideia-aparecircncia tem

conduzido recorrentemente agrave consideraccedilatildeo do pensamento de Juumlnger como um

pensamento de pendor platoacutenico132 Com efeito o proacuteprio Ernst Juumlnger chamara a

129 Bohrer K-H Die Aumlsthetik des Schreckens Die pessimistische Romantik und Ernst JuumlngersFruumlhwerk MuumlnchenWien 1978 p476 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p94130 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p 37131 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p37132 Blumenberg H Der Mann vom Mond Uumlber Ernst Juumlnger Frankfurt a M 2007 p25 Meyer MErnst Juumlnger MuumlnchenWien 1990 p114 Trawny P Die Autoritaumlt des Zeugen Ernst Juumlngerspolitisches Werk Berlin 2009 p25

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atenccedilatildeo para a semelhanccedila da sua conceccedilatildeo de Gestalt com o conceito de Goethe de

planta primordial (Urplanze)133 Como tal enfatizando um certo sentido de

totalidade da natureza Juumlnger professara resolutamente o monismo134

Recorde-se que de acordo com a morfologia de Goethe as formas de

organismos existentes consistem em variaccedilotildees de um fenoacutemeno primordial

(Urphaumlnomen) do respetivo grupo de organismos que pode ser abstraiacutedo e concebido

como realidade perene das formas em mudanccedila Spengler por sua vez aplicara tal

conceito agrave histoacuteria perspetivando uma forma primordial (Urform) metafiacutesica de

cultura que se traduz como o ideal formal subjacente a todas as culturas135 Por sua vez

Juumlnger recorrera ao conceito de Gestalt para representar o surgimento de um novo

princiacutepio que governaria uma nova eacutepoca histoacuterica136 No ensaio Typus Name Gestalt

de 1963 Juumlnger ilustra o seu conceito de Gestalt atraveacutes de um modelo orgacircnico se

uma flor determinada (o aspeto concreto) for identificada com base nas suas

caracteriacutesticas como um liacuterio tal flor determinada pertenceraacute a um certo tipo Este

tipo apresenta-se determinado e produzido pela Gestalt ou seja a planta primordial

O conceito de Gestalt consiste no natildeo especificado137

As ideacuteias de Hans Driesch professor de Juumlnger poderatildeo ser igualmente

convocadas para o delineamento de tal modelo Segundo a bio-teoria de Driesch no

acircmbito da qual o todo eacute mais do que soma das suas partes tipo e totalidade

afiguram-se como palavras-chave de acordo com as posiccedilotildees de Driesch acerca do fator

de controlo da vida os seres vivos possuem um desenvolvimento autorregulador a que

o professor de Juumlnger designa de entelechie seguindo Aristoacuteteles Tendo presente que

este princiacutepio se revela eficaz em todos os organismos importaria compreendecirc-lo como

elo de ligaccedilatildeo dos seres vivos enquanto totalidade Com efeito Driesch estende tais

conceccedilotildees para um acircmbito metafiacutesico concedendo agrave forccedila vital entelequial uma

existecircncia transcendente natildeo submetida ao espaccedilo-tempo138 O proacuteprio Juumlnger refere-se

133 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p390 Consultar Gnoli A VolpiF Ernst Juumlnger Wien 2002 p42134 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p 242135Felken D Oswald Spengler Muumlnchen 1988 p42136 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p13137 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p138138 Loumlffler T Ernst Juumlngers organologische Verwindung der Technik auf dem Hintergrund derBiotheorie seines akademischen Lehrers Hans Driesch Em Titan Technik Ernst und Friedrich GeorgJuumlnger uumlber das technische Zeitalter Wuumlrzburg 2000 p 57

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igualmente agrave afinidade mantida entre o seu conceito de Gestalt e a monadologia de

Leibniz139 fazendo-nos recordar que tambeacutem Leibniz se debruccedilara sobre a ideia de

entelechie A partir da convocaccedilatildeo de diversas influecircncias nem sempre representadas

de um modo filosoficamente rigoroso ou conceptualmente claro Juumlnger crecirc encontrar-se

na posse de um elemento metafiacutesico que lhe permite garantir a unidade na

multiplicidade dos fenoacutemenos e por conseguinte estabelecer uma nova realidade140

com base em analogias

Poder-se-ia afirmar que no acircmbito de O Trabalhador Juumlnger parece

desenvolver ideias previamente elaboradas segundo uma tonalidade teoacuterica que poderaacute

ser descrita como uma fusatildeo de diagnoacutestico prognoacutestico e poleacutemica nesta obra o modo

de determinaccedilatildeo da Gestalt do trabalhador consiste em tornar-se reconheciacutevel

produzindo assim uma nova realidade neste quadro assim apreciado a tecnologia

enquanto siacutembolo desempenha um papel decisivo Ao longo da sua argumentaccedilatildeo

Juumlnger revela-se convicto de que a substituiccedilatildeo da burguesia pela classe trabalhadora se

apresenta como um processo inevitaacutevel trata-se pois de um ldquofactordquo ndash que natildeo merece

qualquer explicitaccedilatildeo por parte de Juumlnger ndash de que o trabalhador se encontra em

contacto com os poderes elementares necessitando de compreender-se a si mesmo

enquanto tal reconhecendo a superioridade metafiacutesica das suas potencialidades de

poder sobre a burguesia No seguimento de tais posiccedilotildees Juumlnger sustenta uma definiccedilatildeo

do conceito de trabalhador natildeo se trata de todo de proletariado mas sim de uma

unidade metafiacutesica Assim definido eacute tarefa do trabalhador cumprir-se enquanto tal

devendo primeiramente desenvolver o reconhecimento de si como expressatildeo de uma

Gestalt141

A visatildeo de Gestalten eacute um ato revolucionaacuterio pois reconhece um ser na plenitude total e

uniforme da vida Eacute a grande superioridade deste processo que se realiza para aleacutem das

avaliaccedilotildees morais e esteacuteticas bem como cientiacuteficas142

Tal como aponta Juumlnger em contraste com a visatildeo racional-positivista do

mundo que se afigura traccedilada segundo fragmentos diacutespares o trabalhador que se

alimenta da dimensatildeo profunda do ser apresenta-se capaz de compreender os siacutembolos

139 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p390140 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p13141 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p45142 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p46

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da unidade integral da vida O alinhamento do homem e da maacutequina acelerada sugerido

neste contexto pode assim ser justificado num mundo onde a velha distinccedilatildeo entre

forccedilas mecacircnicas e orgacircnicas falha143 o trabalhador enquanto entidade funcional

funde-se com os seus instrumentos De modo a traduzir tal fusatildeo Juumlnger elaborara o

termo construccedilatildeo orgacircnica tal processo por sua vez tornar-se-ia visiacutevel agrave luz da

inserccedilatildeo do ser humano numa rede num sistema abrangente de interligaccedilotildees com os

sistemas de transporte e com o sistema monetaacuterio bem como com os sistemas de meios

de comunicaccedilatildeo de massas e os meios de comunicaccedilatildeo144

Segundo as observaccedilotildees de Juumlnger tal fusatildeo entre o trabalhador e a tecnologia

poderaacute ser perspetivada agrave luz de um profundo processo de uniformizaccedilatildeo e de

massificaccedilatildeo do ser humano a fisionomia de cada individuo assume os contornos de

uma maacutescara que todos passam a usar a indumentaacuteria por sua vez assemelha-se a um

uniforme de trabalho a perda da individualidade ou da subjetividade individual torna-se

patente nos novos ideaacuterios das artes plaacutesticas do cinema ou da fotografia ndash evoque-se

pois o futurismo Inclusivamente na nova induacutestria emergente a publicidade torna-se

possiacutevel entrever a dissoluccedilatildeo da individualidade humana mediante a uniformizaccedilatildeo do

uso dos mesmos bens por todos os sujeitos atraveacutes do poder sugestivo e

profundamente influente dos anuacutencios publicitaacuterios elaborados por poucas corporaccedilotildees

Em O Trabalhador Juumlnger faz preceder as suas principais posiccedilotildees de uma

reflexatildeo fundamental acerca das relaccedilotildees entre o ser humano e a tecnologia advertindo

que o primeiro natildeo se afigura relativamente agrave segunda nem como seu criador nem

como sua viacutetima145 Com efeito poder-se-ia asseverar que de acordo com a visatildeo de

Juumlnger a dimensatildeo da teacutecnica ou da tecnologia natildeo se apresenta como elemento

definidor ou constitutivo do ser humano ou da relaccedilatildeo deste com o mundo Natildeo

obstante no contexto da modernidade ndash e em especial a partir do momento histoacuterico

que envolve a Primeira Guera Mundial ndash importaria conceber a tecnologia como

elemento determinante da emergecircncia e da configuraccedilatildeo de novas condiccedilotildees que

143 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p104144 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p124145 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160

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orientam a accedilatildeo humana como que criando uma nova realidade146 e interessantemente

uma nova linguagem vaacutelida no espaccedilo do trabalho que deve ser dominada

Esta linguagem natildeo eacute menos importante natildeo menos profunda do que qualquer outra pois

possui natildeo soacute gramaacutetica mas tambeacutem metafiacutesica Neste contexto a maacutequina desempenha

um papel tatildeo secundaacuterio como o do ser humano eacute apenas um dos oacutergatildeos atraveacutes dos quais

esta linguagem eacute falada147

Na sua qualidade de linguagem a tecnologia apresenta-se compreensiacutevel por

todos ela eacute pois universal ndash e como prova de tal realidade Juumlnger refere a sua raacutepida

difusatildeo mundial Aquele que se relaciona com a tecnologia aquele que fala a sua

linguagem adapta-se agraves possibilidades de um poder que se esconde por detraacutes dos

siacutembolos teacutecnicos148 Estes os siacutembolos teacutecnicos afiguram-se passiacuteveis de introduzir

alteraccedilotildees nos antigos siacutembolos tradicionais promovendo inclusivamente a destruiccedilatildeo

da velha lei da vida Curiosamente tal como Juumlnger a perspetiva a tecnologia revela-se

em uacuteltima instacircncia anticristatilde149 e correlativamente niilista a tecnologia promove a

anarquia anunciando-se como um meio de revoluccedilatildeo total150 Natildeo obstante

importaria elucidar tal como Juumlnger o faz que o poder destrutivo da tecnologia se

afigura passiacutevel de ser consumado apenas pela burguesia ndash natildeo pelo trabalhador

Repara-se que segundo Juumlnger apenas o representante da ldquoGestalt do trabalhadorrdquo o

trabalhador enquanto ldquotipordquo manteacutem uma relaccedilatildeo elementar com a tecnologia151

sabendo-se a si mesmo capaz de compreender a combinaccedilatildeo entre a vontade humana e

o poder tecnoloacutegico tendo em vista a mobilizaccedilatildeo total Homem e maacutequina ndash

trabalhador e tecnologia ndash constituem uma construccedilatildeo orgacircnica A tecnologia eacute a forma

pela qual a Gestalt do trabalhador mobiliza o mundo152

A este respeito o trabalhador desenvolve toda uma seacuterie de mutaccedilotildees de diversa

ordem provocada pela tecnologia153 O caraacutecter da tecnologia como siacutembolo

146 Figal G Der metaphysische Charakter der Moderne Ernst Juumlngers Schrift Uumlber die Linie (1950)und Martin Heideggers Kritik Uumlber bdquoDie Linieldquo (1955) em Ernst Juumlnger im 20 Jahrhundert Muumlller H(Ed) Muumlnchen 1995 P 186147 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160148 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp169172149 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p164150 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p173151 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160152 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160153 Fiorentino F Mythographie einer zersplitterten Welt Ernst Juumlngers konservativ- revolutionaumlreAntwort auf die Moderne Em Prognosen Figal G e Knapp G (Ed) Tuumlbingen 2001 P 69

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destrutivo introduzida por Juumlnger em A Mobilizaccedilatildeo Total e repetida vaacuterias vezes e

gradualmente descrita em O Trabalhador aponta para uma preocupaccedilatildeo central do

autor natildeo restaratildeo duacutevidas de que a tecnologia eacute por sua proacutepria natureza um puro

meio de poder ausente de qualquer relaccedilatildeo com os ideais humanitaacuterios de progresso

seguranccedila fiacutesica ou material e inclusivamente de conforto A tecnologia permite com

efeito a satisfaccedilatildeo das exigecircncias do trabalhador especialmente no acircmbito da fase da

sua perfeiccedilatildeo mas o seu propoacutesito determinante consiste na possibilidade de alcance de

um estado de domiacutenio total O seu uacutenico escopo eacute a preparaccedilatildeo da unidade imperial154

Uma vez atingido este objetivo o desenvolvimento da teacutecnica perde o seu sentido

De modo a ilustrar as vantagens do impeacuterio prometido Juumlnger delineia o quadro

de um presente caoacutetico sujeito a mudanccedilas constantes no contexto do qual a guerra se

apresenta travada em tempo de paz devido a aspiraccedilotildees de pendor econoacutemico Tal

como Juumlnger o avalia a concorrecircncia excessivamente incrementada conduz agrave

destruiccedilatildeo de vastas somas de dinheiro que tecircm de ser gastas a fim de criar necessidades

natildeo naturais no consumidor e tornaacute-lo por seu turno dependente da conveniecircncia A

matildeo-de-obra empregue na produccedilatildeo de bens deve portanto ser constantemente

incrementada155 No entanto no acircmbito de O Trabalhador a economia estaacute sujeita a um

controlo rigoroso e a uma constacircncia de meios

Somente a constacircncia incondicional de meios natildeo importa como esses meios satildeo sempre

constituiacutedos eacute capaz de reduzir a competiccedilatildeo excessiva e imprevisiacutevel a uma competiccedilatildeo

como pode ser observada dentro dos reinos da natureza ou dentro das condiccedilotildees sociais

que se tornaram histoacutericas156

A constacircncia dos meios segundo Juumlnger soacute se afigura possiacutevel num espaccedilo

estaacutetico altamente ordenado no qual a mobilizaccedilatildeo total jaacute se encontra realizada Este

espaccedilo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da perfeiccedilatildeo da tecnologia condiccedilatildeo da sua possibilidade

de domiacutenio total157 Tal quadro revela justamente a visatildeo fulcral de Juumlnger acerca da

tecnologia esta representa uma espeacutecie de veiacuteculo metafiacutesico que deveria conduzir no

futuro a humanidade de regresso a uma era dourada Natildeo obstante de acordo com as

posiccedilotildees de Juumlnger a tecnologia encontra-se ainda numa fase de transiccedilatildeo e o uso dos

154 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp178 180155 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p184156 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p190157 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp182 190 194

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meios teacutecnicos de energia ainda possui um caraacutecter de oficina158 Revela-se neste

sentido imperioso ndash e tal consiste no apelo de Juumlnger dirigido a uma nova elite jaacute

presente em O Coraccedilatildeo Aventuroso (Das abenteuerliche Herz) de 1929 ndash ldquoincrementar

a forccedila e a velocidade dos processos Embora Juumlnger descreva a tecnologia a partir de

noccedilotildees como ferramenta meios e instrumentos o filoacutesofo natildeo a considera (de

acordo com uma definiccedilatildeo tradicional) como um meio neutro159 De acordo com Juumlnger

existem certas ordens ou comandos que se encontram entelechialmente incluiacutedos na

tecnologia possuindo uma autonomia proacutepria o que a dota por sua vez de um caraacuteter

demoniacuteaco Tal autonomiadaemonia pode ser concebida do ponto de vista do ser

humano como fator promotor de alienaccedilatildeo Em resposta a tal possibilidade Juumlnger

propotildee-se desenvolver contra-estrateacutegias segundo uma postura que poderaacute assemelhar-

se a determinadas posiccedilotildees marxistas ou tecnocratas Juumlnger esforccedila-se por desenvolver

uma re-instrumentalizaccedilatildeo da tecnologia

O modo como se processa a configuraccedilatildeo e a realizaccedilatildeo do Estado do

ldquotrabalhadorrdquo num sentido eminentemente poliacutetico permanece uma temaacutetica equiacutevoca

e pouco clara no interior do pensamento de Juumlnger Natildeo obstante a retoacuterica marcial

proacutepria de Juumlnger permite-nos compreender que a determinaccedilatildeo de tal estado natildeo

poderaacute concretizar-se sem o recurso agrave violecircncia Repare-se partindo de um outro ponto

de vista que tambeacutem a arte se constitui aos olhos de Juumlnger como um meio de

mudanccedila apta ao delineamento das condiccedilotildees de configuraccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo total

uma vez que a arte tambeacutem ela deve representar o ldquoGestalt do trabalhadorrdquo o seu

objeto principal eacute pois o trabalho o objetivo e a tarefa da arte satildeo o desenho espacial

uniforme que resulta na revalorizaccedilatildeo da escultura da arquitetura e do planeamento

urbano160 Tal como avanccedila Juumlnger o Estado deve assegurar o controlo das fontes de

mateacuterias-primas proclamando e decretando o dever de serviccedilo de trabalho para toda a

populaccedilatildeo161 O Parlamento por sua vez deveraacute ser transformado de oacutergatildeo da sociedade

num oacutergatildeo estatal determinando-se como uma entidade de trabalho O Estado no

contexto das poliacuteticas de educaccedilatildeo ndash que se anunciam como um quadro cultural

relevantiacutessimo ndash assume-se como responsaacutevel pela educaccedilatildeo dos afetos de uma raccedila

de pessoas desenvolvida em escolas especiais tendo em vista a criaccedilatildeo de uma nova

158 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp194 203159 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p170160 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p218161 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p293

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elite funcional que suporta todas as caracteriacutesticas de uma ordem162 A constituiccedilatildeo do

Estado eacute substituiacuteda pelo plano de trabalho ndash neste ponto como prontamente nos eacute

sugerido as posiccedilotildees de Juumlnger parecem evocar as poliacuteticas econoacutemicas sovieacuteticas

relativas aos planos quinquenais163

O poder do Estado eacute pois de acordo com Juumlnger determinado pela metafiacutesica

do mundo do trabalho e tal eacute decisivo ao ponto de o Gestalt do trabalhador se expressar

nas forccedilas responsaacuteveis164 A democracia do trabalho descrita por Juumlnger natildeo se

afigura declaradamente nacionalista (pois apresenta-se envolta por uma perspetiva

planetaacuteria global) nem nacional-socialista (natildeo estamos perante a ideologia de sangue

e solo) mas possui sim as caracteriacutesticas gerais de um sistema totalitaacuterio natildeo se

poderaacute portanto falar de uma utopia positiva A caracteriacutestica especial da sua

configuraccedilatildeo eacute com efeito a sua envolvecircncia metafiacutesica Assim de acordo com Ernst

Juumlnger o Estado do trabalhador possui por um lado as caracteriacutesticas de uma

tecnocracia e por outro os elementos metafiacutesicos cujas intenccedilotildees poderiam ser

reconhecidas por uma futura elite funcional (que Juumlnger designa de ordem)165

162 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p299163 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p300164 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p273165 Apoacutes a tomada do poder pelos nacional-socialistas Juumlnger refugiou-se numa emigraccedilatildeo interior queculminou numa resistecircncia poeacutetica com a escrita de Sobre as Faleacutesias de Maacutermore (Auf denMarmorklippen) Esta obra publicada em 1939 pouco antes do iniacutecio da Segunda Guerra Mundial natildeofora surpreendentemente banida pelas autoridades de censura Sobre as Faleacutesias de Maacutermore uma dassuas obras mais poleacutemicas poderaacute ser considerada como a pedra de toque da mudanccedila de atitude do autorrelativamente ao Nacional-Socialismo No centro da trama estatildeo o narrador em primeira pessoa emqualquer nome que o identifique e o irmatildeo Otho (a referecircncia aos disciacutepulos Ernst e Friedrich Georgpor detraacutes das personagens poderia natildeo obstante ser enunciada) As personagens vivem junto agraves faleacutesiasde maacutermore no Rautenklause perto de um lago a Grande Marina dedicando-se aiacute agrave botacircnica Satildeoapoiados pelo Padre Lampros interessado em filosofia natural Anteriormente serviram com oscavaleiros de roxo e para cumprir o seu dever de feudo participaram de uma campanha ilegal deconquista natildeo valorizando tal missatildeo como certa ou errada (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15)Stuttgart 1978 - 1983 P 259 294 287) A analogia com a participaccedilatildeo dos irmatildeos Juumlnger na PrimeiraGuerra Mundial e a justificaccedilatildeo de Ernst Juumlnger para a guerra revelam-se evidentes No passado osirmatildeos haviam sido membros da Ordem dos Mauritanos imersos no teacutedio ambos sonhavam compoder e superioridade abandonando a Ordem Os Mauritanos satildeo descritos como intelectuaisorgulhosos e fundamentalmente maus satildeo os velhos conhecedores do poder e veem amanhecer umanova hora para restaurar a tirania que tem vivido nos seus coraccedilotildees desde o iniacutecio (Disciacutepulos E AllWorks (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 Pp 265) Assim os representantes do Novo Nacionalismocom sua luta pelo poder e pela ditadura satildeo adequadamente caracterizados conquanto Juumlnger mencioneos Mauritanos como um siacutembolo intemporal O mauritanismo acredita Juumlnger floresce sempre onde oEstado revela fraqueza Juumlnger admite o seu erro mas ao mesmo tempo relativiza a sua culpa Mais tardeouvi o irmatildeo Otho dizer sobre os nossos tempos na Mauritacircnia que um erro soacute se torna um erro sepersistir nele (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 P265) Um membro dosmauritanos eacute igualmente o chefe dos guardas florestais que domina o Hochwald apostado em alargar oseu poder No iniacutecio soacute se ouvem rumores depois os relatos de violecircncia tornam-se mais frequentesO chefe dos guardas florestais agrega em torno de si a corjardquo promovendo a anarquia com umacombinaccedilatildeo de terror aberto e infiltraccedilatildeo E um decliacutenio dramaacutetico dos valores ocorre no acircmbito do caosprevalecente (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 P 269)

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Natildeo obstante importaria ter presente a oscilaccedilatildeo continuamente presente no

espiacuterito de Juumlnger entre o lamento e a exultaccedilatildeo posiccedilotildees profundamente ambivalentes

relativamente agrave configuraccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo total O filoacutesofo debruccedila-se de facto

sobre o processo de empobrecimento e de deformaccedilatildeo a que o indiviacuteduo se encontra

sujeito no ambiente das grandes cidades e dos distritos industriais A este respeito

Juumlnger menciona a dissoluccedilatildeo da individualidade na massa de transeuntes e o

deambular do flacircneur como uma espeacutecie moribunda pelos meios de transporte

modernos

paisagens urbanas inteiras nas grandes cidades satildeo sobrepostas por um clima de

decadecircncia Aqui encontramos o indiviacuteduo em decliacutenio cujo sofrimento estaacute gravado em

dezenas de milhares de rostos e cuja visatildeo enche o observador de uma sensaccedilatildeo de

enfraquecimento de uma falta de um sentido 166

Tais observaccedilotildees veemente ilustrativas impelem-nos agrave convocaccedilatildeo das visotildees

expressionistas dos pintores desta eacutepoca todavia em contraste com tais artistas como

George Grosz (Metropolis) ou LS Lowry cuja visatildeo pouco generosa da atrofia da

individualidade ganha acuidade sobretudo pelo sofrimento imposto pelos sintomas da

modernidade teacutecnico-industrial Juumlnger natildeo condena tal desenvolvimento concebendo-

o neutralmente como um processo de transiccedilatildeo para novas formas de existecircncia que

deve por sua vez ser desejado incrementado e acelerado Tal como aponta Claudia

Gerhards no acircmbito do pensamento de Juumlnger estamos perante a seguinte posiccedilatildeo

a estrutura do movimento ascendente constante inscrito na ideia de progresso eacute

radicalizada [] em favor de uma mudanccedila abrupta de deficiecircncia extrema para

abundacircncia absoluta167

Considerando as perspetivaccedilotildees de Juumlnger sobre o domiacutenio do trabalhador a

partir do ponto de vista de um discurso apocaliacuteptico tal como Gerhards o empreende

tornam-se patentes as diversas caracteriacutesticas que identificam este ensaio como uma

contribuiccedilatildeo para o apocaliticismo da modernidade Em verdade Juumlnger interpreta a

modernidade como uma fase transitoacuteria na qual os fenoacutemenos de fragmentaccedilatildeo

Importaria ter presente que a obra O Trabalhador fora discutida de forma controversa na imprensa em1932 no Voumllkischer Beobachter surge uma criacutetica extremamente negativa a rejeiccedilatildeo de Juumlnger doconceito bioloacutegico de raccedila e da perspetiva planetaacuteria global que natildeo conhece nenhuma ideologia desangue e solo eacute pois deplorada pelos editores no jornal (Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2009 pp394)166 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p117 167 Gerhards C Apokalypse und Moderne Wuumlrzburg 1999 P33

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alienaccedilatildeo e destruiccedilatildeo natildeo soacute tecircm de ser suportados como tambeacutem forccedilados e

incrementados Para Juumlnger a Primeira Guerra Mundial constituiu o comeccedilo do decliacutenio

da ordem burguesa que se revelou incapaz de lidar com a dinacircmica da mecanizaccedilatildeo

Somente o trabalhador natildeo se encontra passivamente sujeito aos desenvolvimentos

especiacuteficos da modernidade podendo pois conduzir a sua accedilatildeo como protagonista da

aceleraccedilatildeo do incremento e da radicalizaccedilatildeo da modernidade no momento da

mobilizaccedilatildeo total O processo histoacuterico encontra entatildeo a sua conclusatildeo na perfeiccedilatildeo

da tecnologia na construccedilatildeo orgacircnica que permite ao trabalhador possuir o domiacutenio

absoluto no espaccedilo da dominaccedilatildeo planetaacuteria

Na sua interpretaccedilatildeo da modernidade Juumlnger acabaria por empreender a

paradoxal tentativa de uma re-mistificaccedilatildeo do mundo desencantado pela tecnologia e

pela racionalizaccedilatildeo procurando superar tal processo de empobrecimento atraveacutes de uma

descriccedilatildeo da tecnologia segundo categorias mitoloacutegicas e apocaliacutepticas Neste sentido

Juumlnger parece seguir a loacutegica interna da dialeacutetica do Iluminismo na medida em que a

religiatildeo se encontra secularizada pelo progresso do conhecimento o ser humano

perante a situaccedilatildeo de vazio de valores entatildeo criada reconhece-se a si mesmo nas suas

necessidades metafiacutesicas aspirando a preencher tal situaccedilatildeo com novos valores Como

tal a sacralizaccedilatildeo da tecnologia e a organizaccedilatildeo da poliacutetica transfiguradas em culto

constituem segundo Juumlnger as estrateacutegias mais importantes para superar tal situaccedilatildeo de

vacuidade

Martin Heidegger enfatizou de modo declarado que a leitura de O Trabalhador

lhe proporcionou a elaboraccedilatildeo de ideais fundamentais para suas proacuteprias interrogaccedilotildees

sobre tecnologia168 Por seu lado Ernst Juumlnger refere-se vaacuterias vezes ao longo da sua

obra ao conceito de tecnologia desenvolvido por Heidegger como Gestell169 Depois de

Juumlnger Heidegger assume que o conceito de trabalho alterado expressa uma nova

qualidade ldquoPois o trabalho (cf Ernst Juumlnger Der Arbeiter 1932) atinge agora uma

categoria metafiacutesica da objetificaccedilatildeo incondicional de tudo o que estaacute presente []rdquo170

168 Heidegger M (Briefe 1955) em Ernst Juumlnger ndash Martin Heidegger Briefe 1949 ndash 1975 Stuttgart2008 pp 155169 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p539 Juumlnger E SaumlmtlicheWerke Stuttgart 1978 p564 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p244170 Heidegger M Vortraumlge und Aufsaumltze Pfullingen 1954 p72

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O diaacutelogo entre Heidegger e Juumlnger apresenta-se envolto de relevante

importacircncia filosoacutefica O Walten do Gestell descreve um processo semelhante que

Ernst Juumlnger designou de mobilizaccedilatildeo total ou pensamento teacutecnico Enquanto que

Juumlnger procura sublinhar a existecircncia de um princiacutepio metafiacutesico oculto que integra um

objetivo determinaacutevel na histoacuteria Heidegger propotildee sustentar a emergecircncia da

perniciosa autonomia ou independecircncia do pensamento matemaacutetico-racionalista ndash

decorrente como bem sabemos do pensamento metafiacutesico que Heidegger procura

superar Tais conceccedilotildees de Heidegger e de Juumlnger poderatildeo ser vistas como confluentes

na sua tarefa de superaccedilatildeo do niilismo em Uumlber die Linie (Do outro lado da linha)

Juumlnger aspira a vislumbrar a linha da metafiacutesica cruzada integrando no seu

pensamento uma conceccedilatildeo de vontade de poder (ou a vontade terrena) Heidegger por

outro lado visa uma superaccedilatildeo da metafiacutesica propondo assim o delineamento de um

pensamento para aleacutem da metafiacutesica da vontade O texto de Juumlnger Uumlber die Linie171 eacute

curiosamente publicado pela primeira vez como parte integrante de uma publicaccedilatildeo

comemorativa do 60ordm aniversaacuterio de Martin Heidegger172 Atraveacutes de um foco

existencialista sobre o indiviacuteduo173 Juumlnger neste texto datado de 1950 introduz

algumas alteraccedilotildees na orientaccedilatildeo da sua interrogaccedilatildeo essencial repetidamente

formulada desde 1930 sobre como pode o homem escapar do uso sem sentido do

mundo das maacutequinas e dos autoacutematos174

171Juumlnger E Uumlber die Linie Frankfurt aM 1950 Juumlnger E Uumlber die Linie In Saumlmtliche Werke(Vol7) Stuttgart 1978 ndash 1983172 Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2007 p601173 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p178174 Em ldquoUumlber die Linierdquo partindo da questatildeo do niilismo levantada na obra de Friedrich NietzscheJuumlnger revela-se natildeo obstante otimista de acordo com o filoacutesofo a travessia do ldquoponto zerordquo natildeoconstitui uma realidade ineacutedita ndash tal situaccedilatildeo jaacute fora superada por exemplo na poliacutetica designadamenteno afastamento dos alematildees relativamente aos partidos radicais Embora o niilismo domine os sistemaspoliacutetico-econoacutemicos e a ordem teacutecnica a crescente perda de valores a reduccedilatildeo da vida e a crescenteaceleraccedilatildeo dos processos indicam segundo Juumlnger que se atingiu um cliacutemax que promove por sua vezum contramovimento Todavia uma nova situaccedilatildeo de seguranccedila tal como Juumlnger a considera ainda natildeofora conquistada O cruzamento da linha a passagem do ponto zero divide o espetaacuteculo indica o meiomas natildeo o fim(Juumlnger E Uumlber die Linie In Saumlmtliche Werke (Vol7) Stuttgart 1978 ndash 1983 p261)Se a linha for atravessada uma nova devoccedilatildeo ao ser pode ser esperada (Juumlnger E Uumlber die Linie InSaumlmtliche Werke (Vol7) Stuttgart 1978 - 1983 p267) Interessantemente a reaccedilatildeo de Heidegger agraveconceccedilatildeo de superaccedilatildeo do niilismo proposta por Ernst Juumlnger eacute negativa Heidegger condena o facto deJuumlnger permanecer preso agrave linguagem e ao pensamento da metafiacutesica Como se mesmo a linguagem dametafiacutesica e da proacutepria metafiacutesica seja a do Deus vivo ou morto enquanto metafiacutesica impotildee aquelabarreira que impossibilita a transiccedilatildeo para laacute da linha ou seja a superaccedilatildeo do niilismordquo Heidegger MBriefe 1955 In Heidegger M Briefe 1949 ndash 1975 Stuttgart 2008 p172

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Capiacutetulo 2

Em torno do conceito de modernidade tardia

Posturas filosoacutefico-criacuteticas

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21 | A Teoria Criacutetica e a Modernidade

O nuacutecleo da criacutetica da economia poliacutetica de Marx eacute a necromancia como um heroacutei que desceao reino dos mortos para se bater com as sombras do valor Marx segue mantendo-se deforma inquietante atual no presente O morto-vivo que circula entre os seres humanos naqualidade de valor monetaacuterio e que na de comunicador sorridente subtrai o tempo e a almados vivos governa hoje quase sem subterfuacutegios sobre as sociedades avanccediladas O trabalhoa comunicaccedilatildeo a arte e o amor pertencem aqui por completo agraves eliminatoacuterias finais dodinheiro Formam a substacircncia da era dos media e da experiecircncia Tal como o dinheironecessita de tempo para ser aproveitado a chamada ldquogrande histoacuteriardquo tambeacutem prosseguede forma fantasmagoacuterica Toda a histoacuteria tornou-se tendencialmente uma histoacuteria doaproveitar eacute um jogo em constante prolongamento Contudo essa histoacuteria jaacute natildeo eacute umdiaacutelogo entre vivos e mortos sobre a bonomia do mundo mas antes uma impregnaccedilatildeo dovivo cada vez mais profunda pelo assombro econoacutemico Da subjetividade humana do nossotempo espreita cada vez mais descoberta a alma do dinheiro uma sociedade decompradores comprados e de prostituidores prostituiacutedos instala-se sob condiccedilotildees demercado globalizadas O claacutessico e liberal laissez-faire explicita-se num mamar e deixar-semamar poacutes-moderno

Peter Sloterdijk Temperamentos filosoacuteficos de Platatildeo a Foucault

Quid est beata vita securitas et perpetua tranquillitas

Seneca Epistulae morales ad Lucilium

ldquoNatildeo haacute vida correta na falsardquo175 Esta eacute uma das frases mais conhecidas de

Adorno integrada num aforismo que encerra uma secccedilatildeo de Minima Moralia dedicada

agrave reflexatildeo sobre as severas possibilidades de desenvolver uma vida boa ndash uma vida

correta ndash nos tempos modernos Recorde-se pois que a frase de Adorno proveacutem do

livro redigido nos uacuteltimos anos da Segunda Guerra Mundial ndash Minima Moralia

justamente ndash e publicado em 1951 com o subtiacutetulo assaz expressivo ldquoReflexotildees a partir

de uma vida danificadardquo A ceacutelebre maacutexima de Adorno evoca tal subtiacutetulo apoacutes o

colapso da civilizaccedilatildeo o morticiacutenio industrial organizado pelos nazis as duas

175 Na traduccedilatildeo de Luiz Bicca (Adorno TW Minima Moralia Reflexotildees a partir da vida danificadaTraduccedilatildeo de Luiz Bicca e revisatildeo de Guido de Almeida Satildeo Paulo 1992) lecirc-se ldquonatildeo haacute vida correta nafalsardquo jaacute na de Gabriel Cohn ldquoNatildeo haacute vida certa na falsardquo (Adorno TW Minima Moralia Reflexotildees apartir da vida lesada Trad Gabriel Cohn Rio de Janeiro 2008 p34) No original alematildeo lecirc-se ldquoEs gibtkein richtiges Leben im falschenrdquo (Adorno TW Minima Moralia Reflexionen aus dembeschaumldigten Leben Frankfurt a M 1951 p43) Em alematildeo a questatildeo eacute substancialmente complexa epor isso a sua traduccedilatildeo para o portuguecircs mostra-se difiacutecil Eacute apenas pela contraposiccedilatildeo da palavra alematildebdquorichtigldquo a bdquofalschldquo (bdquofalsaldquo) que esta se torna bdquocorretaldquo num sentido de ldquovida boardquo Sem a contraposiccedilatildeoa palavra e o conceito de bdquorichtigrdquo ligados agrave palavra e ao conceito de bdquoLebenrdquo (vida) teriam antes osignificado de bdquoverdadeiraldquo associado a bdquointensaldquo por exemplo bdquoIch habe nie richtig gelebtldquo deveriaaqui ser traduzido para bdquonunca vivi verdadeiramente (e intensivamente)ldquo O aforismo de Adorno jogaprecisamente com estas variantes de significado

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aterradoras guerras mundiais os totalitarismos de um tumultuoso seacuteculo XX os traumas

e as sistemaacuteticas reificaccedilotildees em que a presenccedila humana na modernidade teve de

incorrer ldquoa vidardquo teria ficado indelevelmente danificada mas natildeo obstante esta mesma

vida prolonga-se como que de um modo igualmente inexoraacutevel na modernidade

tardia176

Eacute aqui que se posicionam os autores da designada ldquoQuarta Geraccedilatildeo da Escola de

Frankfurtrdquo tais como Hartmut Rosa e Rahel Jaeggi que continuaram e prolongaram

durante os uacuteltimos anos o trabalho de desenvolvimento das ideias da teoria criacutetica

Estes desenvolvimentos posteriores da teoria criacutetica tentaram manter-se fieacuteis agraves

abordagens dos ldquofundadoresrdquo Marx Horkheimer Adorno e Marcuse mas tambeacutem de

outros representantes como Walter Benjamin ou Erich Fromm ndash incluindo por fim

Habermas e Honneth ndash sem adotar no entanto qualquer tipo de postura de limitaccedilatildeo ou

restriccedilatildeo a um determinado horizonte teoacuterico177 Pertence pois agraves posiccedilotildees basilares

desta escola teoacuterica a convicccedilatildeo de que as metodologias e as asserccedilotildees sobre a verdade

satildeo sempre historicamente fundamentadas e enquadradas que natildeo existem verdades

sociais supra-histoacutericas ou ahistoricamente vaacutelidas e que todas as formas de trabalho

teoacuterico tecircm de ser adaptadas agraves condiccedilotildees mutaacuteveis da praacutetica social Daqui resulta a

posiccedilatildeo de que novos projetos ou abordagens da teoria criacutetica natildeo devam apenas seguir

cegamente os pressupostos metodoloacutegicos e teoacutericos dos ldquoclaacutessicosrdquo da tradiccedilatildeo mas

adaptaacute-los continuamente ao contexto social em mutaccedilatildeo ndash no nosso caso ao contexto

da modernidade tardia

A este respeito Hartmut Rosa encontra-se em concordacircncia com a visatildeo de Axel

Honneth de que a identificaccedilatildeo de patologias sociais constitui um objetivo central natildeo

soacute da teoria criacutetica enquanto tal mas tambeacutem da filosofia social178 Representantes

desta tradiccedilatildeo de pensamento sempre recorreram a padrotildees normativos de ambas as

176 Natildeo obstante tecircm de ser encontrados espaccedilos nos quais as pessoas possam descobrir apoio efelicidade Para Adorno tal consistiria na arte Adorno reconhecia a grande arte ndash Beethoven SchoumlnbergBeckett ou Kafka ndash como algo que pela sua forma resiste ao inquieto decorrer da vida Em conformidadecom as posiccedilotildees de Adorno encontra-se sobretudo a grande arte que natildeo participava na injusticcedila domundo Pelo contraacuterio a sua existecircncia forccedila e beleza o seu espiacuterito de liberdade contestaram asmentiras nas quais todos parecem ter encontrado paz O iminente definhar da arte ndash a sua segundoAdorno perversa degeneraccedilatildeo em induacutestria da cultura ndash relaciona-se com o facto de cada vez maisartistas terem desistido de compreender a cultura o campo da liberdade que resiste agrave alienaccedilatildeo177 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p269178 HonnethA Pathologierı des Sozialen Frankfurt aM1994 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 p270

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aacutereas Estes padrotildees de valor que podem ser adotados em instituiccedilotildees ou estruturas

sociais e que caraterizam tais ldquopatologiasrdquo natildeo podem segundo Rosa ser deduzidos de

um ponto de vista supra-histoacuterico e supra-social O real sofrimento humano natildeo

constitui o mero ponto de partida normativo teoricamente apropriado mas o elemento

histoacuterico-social que motiva a criacutetica desenvolvida pela teoria criacutetica ndash tal base

normativa se assim a designarmos deveraacute estar caso se acompanhe esta posiccedilatildeo

ancorada no quotidiano e na experiecircncia de vida dos atores sociais

Tal como adverte Rosa sofrimento poreacutem natildeo significa num sentido imediato

uma oposiccedilatildeo consciente179 eacute sempre possiacutevel que os atores sociais sofram no interior

de instituiccedilotildees ou estruturas sem estarem (claramente) cientes de tal situaccedilatildeo e eacute

precisamente aqui que as teorias da falsa consciecircncia e da criacutetica ideoloacutegica ganham

plausibilidade e atratividade180 Tal como Hartmut Rosa expotildee no ensaio ldquoCriacutetica das

circunstacircncias do tempo Aceleraccedilatildeo e alienaccedilatildeo como conceitos-chave da criacutetica

socialrdquo (2009)181 o caminho mais promissor para uma variante contemporacircnea da teoria

criacutetica182 traccedila-se a seu ver (e de Rahel Jaeggi) a partir de uma justaposiccedilatildeo criacutetico-

comparativa entre as conceccedilotildees de ldquovida boardquo perseguidas (consciente ou

inconscienteimplicitamente) pelos atores e pelas praacuteticas sociais que eles de facto

praticam Eacute pois esta a convicccedilatildeo de Hartmut Rosa que desenvolveu em Identitaumlt und

kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor (1998) obra na qual se

confronta com o trabalho de Charles Taylor183 a ideia de que os sujeitos humanos nas

179 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p271180 A este respeito Sloterdijk exige uma nova teoria criacutetica da falsa mobilidade ldquoAssim a criacutetica dasociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se hellip ainda pode haver uma terceira versatildeo de teoriacriacutetica de um tipo exigente entatildeo com certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica do movimento Oseu criteacuterio terapecircutico consistiria na diferenciaccedilatildeo caso esta se possa conseguir com exactidatildeo entreautecircntica mobilidade e falsa mobolisaccedilatildeordquo (Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio deCastro Lisboa 2002 p41181 Consultar Jeaggi RWesche T(ed) Was ist Kritik Frankfurt aM 2009 pp23-54182 A primeira geraccedilatildeo da teoria criacutetica surgiu em termos intelectuais na Repuacuteblica de Weimar os seusseguidores mantinham contacto pessoal entre si Todos se encontravam sob ameaccedila da perseguiccedilatildeofascista e emigraram para fora da Alemanha (representantes TW Adorno M Horkheimer WBenjamin E Fromm H Marcuse Otto Kirchheimer etc) A segunda geraccedilatildeo da teoria criacutetica eracomposta na sua maioria por disciacutepulos de Horkheimer e Adorno cujo pensamento se fez sentir noperiacuteodo do poacutes-guerra contrariamente agrave primeira geraccedilatildeo a interaccedilatildeo destes membros tinha como basecontactos pessoais esporaacutedicos (representantes J Habermas L von Friedeburg A Lorenzer ASchmidt O Negt etc) Como representante principal da terceira geraccedilatildeo eacute frequentemente referido AHonneth (mais 37 candidatos do espaccedilo alematildeo e 32 do espaccedilo anglo-saxoacutenicco - Muharrem Accedilikgoumlzentra na lista com base na literatura avaliada em Acikgoumlz M Die Permanenz der kritischen TheorieMuumlnster 2014 p129) Mais recentemente impulsos inovadores (ldquo4 Geraccedilatildeordquo) chegam-nos de R Forstna temaacutetica da alienaccedilatildeo de R Jaeggie sobretudo de H Rosa183 Rosa H Identitaumlt und kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor Frankfurt aMNew York 1998

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suas accedilotildees e decisotildees retornam sempre a uma ndash consciente e reflexiva ou impliacutecita e

desarticulada ndash noccedilatildeo de ldquovida boardquo na qual encontram orientaccedilatildeo De acordo com

Rosa as pessoas necessitam de saber para onde querem (ou devem) mover-se e do que

seria para si mesmas uma vida realizada a fim de poderem agir184 as condiccedilotildees

sociais que motivam estruturalmente o sujeito a perseguir as ditas conceccedilotildees de uma

vida bem-sucedida e que se perdem nas suas circunstacircncias constituem assim um

ponto de investigaccedilatildeo privilegiado e extremamente relevante para a criacutetica social Por

esta razatildeo os ideais de autodeterminaccedilatildeo (individual e coletiva) tendo em vista o modo

de vida escolhido e a luta pela emancipaccedilatildeo dos obstaacuteculos poliacuteticos estruturais e

institucionais agrave concretizaccedilatildeo da autonomia ndash que sempre foram de importacircncia nuclear

na tradiccedilatildeo teoacuterica da Escola de Frankfurt ndash natildeo se devem guiar por normas universais

a promessa de autonomia e liberdade a convicccedilatildeo de que os indiviacuteduos devem ter o

direito e a oportunidade de encontrar uma vida adequada agraves suas capacidades

necessidades e esperanccedilas e o entendimento de que por essa mesma razatildeo a

comunidade poliacutetica deve organizar-se democraticamente para servir de molde para a

estrutura coletiva satildeo em termos filosoacuteficos o centro da modernidade formando o

coraccedilatildeo daquilo que Juumlrgen Habermas chamou ldquoprojeto da modernidaderdquo185

Consequentemente as condiccedilotildees sociais que estiolam a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo e aniquilam as potencialidades do exerciacutecio da autonomia individual e

coletiva devem ser identificadas e denunciadas sempre que se constituam como um

impedimento sistemaacutetico para um sujeito concretizar a sua ideia de uma vida boa186

Importaria aqui mencionar o criteacuterio de uma ldquotranscendecircncia intramundanardquo conforme

formulado por Axel Honneth187 Segundo este criteacuterio exige-se que os proacuteprios atores

sociais (e natildeo apenas os criacuteticos) tenham em sua posse uma noccedilatildeo acerca daquilo que

poderia configurar uma vida ou uma sociedade melhores e aleacutem disso que manifestem

nas suas praacuteticas diaacuterias uma sensibilidade para as patologias que a teoria criacutetica tenta

identificar formulando especificamente os modos possiacuteveis de superaccedilatildeo dessas

mesmas patologias

184 Rosa H Identitaumlt und kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor Frankfurt aMNew York 1998 p38185 Habermas J Die Moderne ein unvollendetes Projekt Leipzig 1994186 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p272187Honneth A Pathologien der Vernunft Geschichte und Gegenwart der kritischen Theorie FrankfurtaM 2007

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As duas versotildees atualmente mais discutidas da teoria criacutetica (a teoria da

comunicaccedilatildeo de Juumlrgen Habermas e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth)

propotildeem dois princiacutepios distintos para a identificaccedilatildeo da unidade conceptual

fundamental de uma sociedade Segundo Habermas a unidade (synthesis) de uma

sociedade encontra-se nas circunstacircncias de aproximaccedilatildeo e no mundo da vida

construiacutedo com base na comunicaccedilatildeo enquanto que para Honneth satildeo as condiccedilotildees de

reconhecimento que formam a base de uma sociedade188 Importaria natildeo obstante

avanccedilar que Hartmut Rosa por seu turno trabalha com termos como ldquoaceleraccedilatildeordquo e

ldquoincrementordquo(ldquoSteigerungrdquo) todavia e tendo presente que conceitos como

ldquoaceleraccedilatildeordquo189 ou ldquoincrementordquo190 natildeo referem substacircncias mas processos Rosa natildeo

sustenta que a aceleraccedilatildeo eacute a base ou a unidade fundamental (synthesis) da sociedade

moderna ndash de um outro modo Rosa afirma que eacute pois a dynamis a loacutegica moderna do

desenvolvimento e da mudanccedila e que neste sentido a modernidade ndash e a modernidade

tardia em particular ndash seriam ininteligiacuteveis sem um entendimento adequado deste

princiacutepio de dinamizaccedilatildeo191 Hartmut Rosa natildeo questiona a premissa de que as

condiccedilotildees de interaccedilatildeo (que incluem as relaccedilotildees de comunicaccedilatildeo tal como as de

reconhecimento) possam ser concebiacuteveis como base de uma sociedade mas o filoacutesofo

procura sustentar em todo o caso que a modernidade tardia natildeo seraacute adequadamente

analisada e compreendida se natildeo forem tomados adequadamente em consideraccedilatildeo a

dimensatildeo dinacircmica da modernidade o poder transformador da aceleraccedilatildeo e do

incremento da mobilizaccedilatildeo e ainda as ldquocircunstacircncias de ressonacircnciardquo192

De acordo com o conceito de Juumlrgen Habermas desenvolvido na ldquoTeoria da

Accedilatildeo Comunicativardquo as patologias sociais surgem da distorccedilatildeo sistemaacutetica das

condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo193 Segundo Habermas eacute objetivo e missatildeo da teoria criacutetica

identificar as causas estruturais destas distorccedilotildees Eis a sua ideia fundamental as

reivindicaccedilotildees de poder e de conhecimento bem como as de valor e de verdade satildeo

188 Breuer S Kritische Theorie Tuumlbingen 2016 Walter-Busch E Geschichte der Frankfurter SchuleKritische Theorie und Politik Muumlnchen 2010189 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005190 Rosa H Resonanz Berlin 2016191 Gertenbach L Rosa H Kritische Theorie Stuttgart 2009 p 36 Rosa H Weltbeziehungen imZeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p123192 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p56 Rosa HRessonanz Berlin 2016 p113193 Habermas J Theorie des kommunikativen Handelns Frankfurt am Main 1981 Habermas JVorstudien und Ergaumlnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns Frankfurt am Main 1984

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justificadas apenas se forem ou puderem ser reconstruiacutedas como resultado de um

discurso livre de dominaccedilatildeo isto eacute quando emergirem ou pelo menos puderem

emergir de um discurso ao qual todas as posiccedilotildees e argumentos tecircm livre acesso De

acordo com tal visatildeo o processo de formular filtrar deliberar e ponderar coletivo dos

argumentos revela-se um processo moroso Tal como Habermas e os seus seguidores

apologistas de uma conceccedilatildeo de democracia deliberativa tecircm argumentado de forma

convincente o poder poliacutetico na modernidade soacute pode ser justificado se decorrer de um

processo democraacutetico de muacuteltiplas camadas processo este que necessita de um grande

nuacutemero de espaccedilos de discussatildeo e filtros para formular e experimentar argumentos e

reivindicaccedilotildees de validade Natildeo apenas todos os grupos sociais mas tambeacutem em

princiacutepio todo o indiviacuteduo deve ter a oportunidade de formular exigecircncias e ideias e de

as levar agrave praccedila puacuteblica para que sejam subsequente e gradualmente filtradas e

canalizadas pelo processo poliacutetico por meio de deliberaccedilatildeo e representaccedilatildeo ateacute ao ponto

de fazerem parte de decisotildees e leis coletivamente desenvolvidas No entanto mesmo se

considerarmos este conceito de democracia excessivo ou demasiado ambicioso natildeo haacute

duacutevida de que o processo de evoluccedilatildeo de uma vontade democraacutetica e de uma tomada de

decisatildeo satildeo por si soacute morosos Tal pressupotildee a identificaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo de cada

grupo social afetado e requer o desenvolvimento e a formulaccedilatildeo de argumentos e

programas (coletivos) a experiecircncia e a ponderaccedilatildeo deliberativos de posiccedilotildees e

reivindicaccedilotildees e finalmente o estabelecimento e a implementaccedilatildeo constitucional e

institucional de decisotildees e ambiccedilotildees vinculadas coletivamente Sob a condiccedilatildeo da

modernidade tardia se desenvolver agrave luz de um pluralismo poacutes-convencional e de um

aumento das dependecircncias globais este processo consome tendencialmente cada vez

mais tempo mais pessoas e mais grupos satildeo afetados cada vez menos coisas satildeo

inquestionaacuteveis e mais pontos de vista e mais necessidades diversas devem ser

considerados A complexidade das condiccedilotildees e das consequecircncias destas decisotildees

aumenta o que dificulta o planeamento e a previsibilidade das alternativas Em

contrapartida no processo de aceleraccedilatildeo os recursos de tempo disponiacuteveis para as

decisotildees tambeacutem natildeo avultam ndash pelo contraacuterio diminuem Devido agrave elevada taxa de

inovaccedilatildeo tecnoloacutegica agrave velocidade das transaccedilotildees econoacutemicas e ao ritmo da mudanccedila

sociocultural mais decisotildees tecircm de ser tomadas em menos tempo o que forccedila a poliacutetica

a acelerar o andamento das suas deliberaccedilotildees e decisotildees No entanto tal significa que os

horizontes e padrotildees temporais das tomadas de decisatildeo democraacuteticas e deliberativas por

um lado e os desenvolvimentos teacutecnicos econoacutemicos cientiacuteficos e culturais por outro

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divergem dramaticamente Sem negar a teoria da comunicaccedilatildeo de Habermas a longo

prazo natildeo se poderaacute evitar atentar contra os drasticamente alterados e acelerados

padrotildees de comunicaccedilatildeo sociais e privados tal como adverte Hartmut Rosa194

Habermas resume os seus pensamentos sobre a modernidade no notaacutevel ensaio

ldquoModernidade - um projeto inacabadordquo tal como se segue

A questatildeo permanece indecisa teremos que manter-nos com as intenccedilotildees do Iluminismo

apesar de ser corrompido ou pelo contraacuterio haveraacute que dar o projeto da modernidade

como perdido e desejar por exemplo que os potenciais cognitivos - que natildeo desembocam

no progresso teacutecnico no crescimento econoacutemico e na administraccedilatildeo racionalizada - sejam

canalizados de tal maneira que a praacutetica vital remetendo para tradiccedilotildees tornadas cegas

natildeo seja afetada por eles195

Eacute bem sabido que Habermas membro da Escola de Frankfurt apresenta-se

como um pensador que natildeo abdica do recurso ao conceito de Iluminismo a fim de

concretizar o potencial cognitivo e emancipatoacuterio desta linha de pensamento na

sociedade No excerto citado natildeo obstante revela-se tambeacutem a sua criacutetica da

modernidade como um processo de diferenciaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo ndash uma criacutetica baseada

nas teorias das sociedades modernas de Max Weber Durkheim e Simmel Habermas tal

como Simmel concebe o desenvolvimento social moderno como um processo funcional

de diferenciaccedilatildeo196 que conduz a que sociedades deixem de funcionar com base em

relaccedilotildees arcaicas ou feudais de parentesco sendo progressivamente dominadas por

sistemas como o da poliacutetica da economia etc Embora Habermas classifique

positivamente a racionalizaccedilatildeo moderna como um processo de diferenciaccedilatildeo porque

liberta o ser humano da tutela tambeacutem mediada pela tradiccedilatildeo ainda assim o filoacutesofo

refere um outro lado mais pernicioso trata-se do perigo do privileacutegio concedido agrave

ldquoaccedilatildeo racional-finalistardquo (Zweckrationales Handeln de Max Weber) e agrave ldquorazatildeo

Instrumentalrdquo197 (instrumentelle Vernunft de Max Horkheimer) afins ao ldquoprogresso

194 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p206195 Habermas J A Modernidade um projeto inacabado Trad Nuno Ferreira Fonseca 1980 InCriacutetica - Revista do Pensamento Contemporacircneo 2 (1987) p13196 Simmel G Uumlber soziale Differenzierung Leipzig 1890197 Horkheimer M Zur Kritik der instrumentellen Vernunft Gesammelte Schriften vol6 bdquoZur Kritikder instrumentellen Vernunftldquo Frankfurt a M 1991 pp19-186 Segundo Habermas o conceito de razatildeoinstrumental lembra a ldquoracionalidade finaliacutestica alargada agrave totalidaderdquo a razatildeo teraacute assim assimiladopoder e uma distinccedilatildeo entre o que exige validade e o que beneficia de autopreservaccedilatildeordquo (Habermas JDer Diskurs der Moderne Zwoumllf Vorlesungen Frankfurt a M1985 p144) Poreacutem na ldquoDialeacutetica doEsclarecimentordquo Horkheimer e Adorno observaram acima de tudo uma ldquoliga entre razatildeo e soberaniapoder e legitimidaderdquo (Habermas J Der Diskurs der Moderne Zwoumllf Vorlesungen Frankfurt a

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teacutecnico [ao] crescimento econoacutemico e [agrave] administraccedilatildeo racionalizadardquo198 tal situaccedilatildeo

segundo Habermas poderaacute condenar agrave ldquoatrofiardquo199 toda a accedilatildeo comunicativa orientada

para a compreensibilidade (e a razatildeo comunicativa)

As teorias de modernidade ldquoclaacutessicasrdquo enfrentam vaacuterias objeccedilotildees200 Uma delas eacute

que o fenoacutemeno da modernidade eacute por elas interpretado como um desenvolvimento natildeo-

linear e contiacutenuo e que desta forma natildeo tem em conta ou natildeo o tem suficientemente em

conta as descontinuidades heterogeneidades ruturas e mudanccedilas na histoacuteria do mundo

ocidental da modernidade Outra objeccedilatildeo eacute o latente etno ou eurocentrismo das teorias

M1985 p146) Horkheimer distingue na sua criacutetica da razatildeo instrumental por um lado uma ldquorazatildeoobjetivardquo como o sistema abrangente de todos os seres (incluindo os seres humanos e suas finalidades) epor outro uma ldquorazatildeo subjetivardquo como a capacidade de classificar inferir deduzir ou seja o resumo dofuncionamento abstrato do mecanismo do pensamento Natildeo eacute a razoabilidade dos objetivos mas aadequaccedilatildeo dos procedimentos que satildeo objeto delas Nas suas obras especialmente na criacutetica eleapresenta a razatildeo instrumental como a loacutegica do domiacutenio sobre a natureza Esta tambeacutem tem um impactono pensamento e na psique do homem atraveacutes do pensamento abstrato dominaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo satildeointernalizadas Para Horkheimer a razatildeo encontra-se em crise pois hoje uma razatildeo objetiva natildeo eacuteconcebida ou mesmo contestada como ilusatildeo ndash pelo contraacuterio vivemos uma subjetivaccedilatildeo e formalizaccedilatildeoda razatildeo Ele advoga a favor de uma loacutegica de conteuacutedo em prol de uma loacutegica puramente formal Overdadeiro racionalismo seraacute mais do que uma simples forma e deveraacute incluir momentos de conteuacutedo Senatildeo haacute uma teoria social em particular como pano de fundo entatildeo toda a epistemologia permaneceraacuteformalista e abstrata A loacutegica formal (entendida anaacuteloga agrave matemaacutetica) seraacute apenas uma sucessatildeo detautologias sem um significado concreto na realidade histoacuterica Ao separar factos e valores o status quoseraacute sempre legitimado A razatildeo segundo Horkheimer e dentro de uma tradiccedilatildeo hegeliana e marxista eacute acapacidade de compreender as conexotildees dialeacuteticas como uma realidade mais profunda aleacutem de merasaparecircncias Jaacute que a razatildeo significaraacute sempre uma reconciliaccedilatildeo de contradiccedilotildees Horkeimer projeta umareconciliaccedilatildeo entre a razatildeo ldquoobjetivardquo e ldquosubjetivardquoHerbert Marcuse por outro lado descreve a razatildeo da seguinte forma ldquoA razatildeo eacute por essecircnciacontradiccedilatildeo oposiccedilatildeo negaccedilatildeo enquanto a razatildeo ainda natildeo for possiacutevelrdquo (Marcuse H Vernunft undRevolution Berlin 1962 p370) Ele estabelece uma diferenccedila entre o conceito de racionalidade (hojegeralmente uma racionalidade tecnoloacutegica) e o conceito de razatildeo A razatildeo seraacute o ser real dentro do qualestatildeo unidas todas as oposiccedilotildees cruciais (sujeito-objeto essecircncia-aparecircncia pensamento-ser) seraacute aunidade de facticidade e verdade coisa e conceito realidade e ideia existecircncia e essecircncia Mas o ser natildeoeacute racional imediatamente deveraacute antes ser levado agrave razatildeo pois existe na presente sociedade irracionaluma alternativa racional como possibilidade negativa A razatildeo eacute o objetivo desta sociedade (ideal) para acriacutetica da presenteexistente sociedade a razatildeo eacute a norma Marcuse distingue a razatildeo de umaracionalidade cientiacutefica formal ldquotecnoloacutegicardquo (como Horkheimer a razatildeo objetiva da subjetiva) Aciecircncia moderna libertara a natureza de todos os propoacutesitos a mateacuteria de todas as qualidades Emprimeiro plano estaraacute a operabilidade e usabilidade praacutetica A racionalidade cientiacutefica eacute desprovida devalor natildeo tem propoacutesitos eacute-lhes neutra eacute essencialmente uma mera forma que pode ser subjugada aqualquer fim Para Marcuse ldquoum a priori tecnoloacutegicordquo significa ver a natureza apenas como um potencialmeio enquanto mateacuteria controlaacutevel e organizaacutevel Natildeo tem valor eacute meramente mateacuteria mateacuteria-primapara exploraccedilatildeo natildeo lhe eacute imanente sentido plano ou propoacutesito A ldquoracionalidade tecnoloacutegicardquo significaolhar as coisas a natureza e os seres humanos como um meio em si A natureza eacute submetida a esta razatildeotecnoloacutegica e instrumentalista que estaacute adaptada agraves exigecircncias do capitalismo e esta conceccedilatildeo noentanto tambeacutem prevalece no homem na natureza do homem nos impulsos fundamentais em adaptaccedilatildeoagraves exigecircncias do sistema existente O domiacutenio da natureza combinado com o domiacutenio do homem ambosse tornam objetos substituiacuteveis Existe aqui uma analogia com a racionalidade formal de Max Webercomo a racionalidade dos meios empregues para qualquer propoacutesito198 Habermas J A Modernidade um projeto inacabado Trad Nuno Ferreira Fonseca 1980 InCriacutetica - Revista do Pensamento Contemporacircneo 2 (1987) 16199 Para a distinccedilatildeo de diferentes conceitos de razatildeo e soluccedilotildees concernentes a isto com referecircncia aHabermas consultar Vilares A O Percurso Eacutetico do Reconhecimento Porto 2017 p33200 Joas HKnoumlbl W Sozialtheorie Frankfurt aM 2004 p430

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de modernidade acusando-as de projetarem aspetos culturais especiacuteficos das sociedades

ocidentais nos objetivos universais de desenvolvimento Natildeo seraacute de nenhuma maneira

correto assumir que a modernidade na Ameacuterica Latina em Aacutefrica ou no Sudeste

Asiaacutetico teraacute o mesmo rumo ou ateacute os mesmos padrotildees estruturais e culturais que

conhecemos da Europa ou Ameacuterica do Norte Em ambos os casos a criacutetica aponta para

o facto de estas teorias da modernidade negarem a priori a possibilidade de um

pluralismo (histoacuterico eou geograacutefico) da modernidade No entanto natildeo seraacute de

esquecer que teorias ldquopoacutes-modernistasrdquo201 sobre o ldquopluralrdquo ou sobre as ldquomuacuteltiplas

modernidadesrdquo formam muitas vezes um espaccedilo lacunar na medida em que por um

lado justificam razoavelmente as contradiccedilotildees as diferenccedilas e as mudanccedilas da

modernidade ocidental e da heterogeneidade e hibridismo do moderno em diferentes

regiotildees do mundo mas por outro natildeo permitem especificar o que seraacute a ldquomodernidaderdquo

unificadora por detraacutes da multiplicidade de fenoacutemenos na qual a unidade se forma sob

uma pluralidade A dissoluccedilatildeo da ideia de moderno na ideia de pluralidade poderia

anular o conceito de modernidade o discurso sobre as ldquomuacuteltiplas modernidadesrdquo

poderia tornar-se equivalente agrave constataccedilatildeo de que existem diversas formas de vida e

201 Habermas daacute a seguinte sugestatildeo sobre o poacutes-modernismo e do mesmo modo aponta para o perigodesta linha de pensamento que ultimamente tambeacutem foi empregada por neoconservadores (por exemplonos Estados Unidos) para eludir justificaccedilotildees racionais e cientiacuteficas ldquo[] Com estes ldquopoacutesrdquo osprotagonistas querem desfazer-se de um passado agrave atualidade natildeo podem ainda dar um novo nome namedida em que para os reconheciacuteveis problemas do futuro natildeo temos ateacute agora nenhuma respostaFoacutermulas como ldquopoacutes-Iluminismordquo ou ldquopoacutes-histoacuteriardquo desempenham o mesmo papel Gestos de despedidaapressada como estes satildeo adequados aos periacuteodos de transiccedilatildeo Agrave primeira vista os ldquopoacutes-modernistasrdquo dehoje apenas repetem o credo dos assim chamados ldquopoacutes-racionalistasrdquo de ontem [hellip] Mas o prefixo quenos coloca diante de tais designaccedilotildees de estilo e de orientaccedilatildeo natildeo tem sempre o mesmo significado Oque eacute comum aos ldquoismosrdquo que se formam com o prefixo ldquopoacutesrdquo eacute o sentido do tomar distacircncia Elesexpressam uma experiecircncia de descontinuidade poreacutem assumem posiccedilotildees diferentes em relaccedilatildeo aopassado que distanciam Com a palavra ldquopoacutes-industrialrdquo por exemplo os socioacutelogos querem apenas dizerque o capitalismo continuou a desenvolver-se e que os novos setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos seampliaram agrave custa do acircmbito diretamente produtivo Com a palavra ldquopoacutes-empiacutericordquo os filoacutesofos queremdar a entender que determinados conceitos normativos de ciecircncia e de progresso cientiacutefico foramultrapassados pelas novas investigaccedilotildees Os ldquopoacutes-estruturalistasrdquo querem aperfeiccediloar mais do quesuperar (hellip) Inicialmente a expressatildeo ldquopoacutes-modernordquo designava novas variantes no interior do amploespectro da modernidade tardia isto ao ser aplicada nos Estados Unidos durante os anos 50 e 60 agravescorrentes literaacuterias que se queriam diferenciar das obras do modernismo inicial O poacutes-modernismo soacute setransformou em grito de guerra afetivamente carregado e diretamente poliacutetico quando nos anos 70 duasposiccedilotildees contraacuterias ganharam forccedila de expressatildeo de um lado os neoconservadoreshelliprdquo Habermas JArquitetura moderna e poacutes-moderna Trad Carlos Eduardo Jordatildeo Machado 1987 Novos EstudosCEBRAP 18 (1987) pp115-116 Eacute evidente que os vaacuterios aspetos do poacutes-modernismo podem serinterpretados e estruturados de forma diferente Uma sugestatildeo eacute feita por P Pereira ldquoTemos assim aquiloa que podemos chamar duas poacutes-modernidades uma (a que chamamos primeira) que se esboccedila noslimites da proacutepria modernidade que precisou de fragmentar o homem para o re-construir e re-conhecerface ao outro e que tem em conta a singularidade a finitude e a transitividade de todo o pensarremetendo essencialmente para a reconciliaccedilatildeo do pensamento com a vida outra (a segunda) que numaldquocontinuidaderdquo da loacutegica racionalista se configura em torno de uma ldquoestetizaccedilatildeordquo da realidadecaracteriacutestica a mediatizaccedilatildeo e da neo-coisificaccedilatildeo que tem resultado numa cultura poacutes-filosoacuteficardquoPereira P Do sentir e do pensar Porto 2006 p 89 Neste trabalho eacute utilizado o termo ldquomodernidadetardiardquo na tradiccedilatildeo da Escola de Frankfurt

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arranjos sociais que podem entrar em conflito O desafio central poderia ser portanto

descrever a modernidade ou entatildeo o processo de ldquomodernizaccedilatildeordquo ndash se se partilhar a

convicccedilatildeo de que esta comporta um desenvolvimento processual ndash de tal forma que esta

definiccedilatildeo possa absorver as mudanccedilas radicais na histoacuteria do Ocidente moderno bem

como a diversidade cultural das ldquomodernidadesrdquo contemporacircneas

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22 | A modernidade como fenoacutemeno contraditoacuterio

Eacute na faculdade de mentir que caracteriza a maior parte dos homens atuais que se baseia acivilizaccedilatildeo moderna (hellip) Atualmente a mentira chama-se utilitarismo ordem social sensopraacutetico disfarccedilou-se nestes nomes julgando assim passar incoacutegnita A maacutescara deu-lheprestiacutegio tornando-a misteriosa e portanto respeitada De forma que a mentira comoordem social pode praticar impunemente todos os assassinatos como utilitarismo todos osroubos como senso praacutetico todas as tolices e loucuras A mentira reina sobre o mundoQuase todos os homens satildeo suacutebditos desta omnipotente Majestade Derrubaacute-la do tronoarrancar-lhe das matildeos o cetro ensanguentado (hellip)

Teixeira de Pascoaes A Saudade e o Saudosismo

Como eacute que o indiviacuteduo apesar de ser mais autoacutenomo depende cada vez mais da sociedadeComo eacute que este se torna mais pessoal e mais solidaacuterio ao mesmo tempo Pois eacute irrefutaacutevelque estes dois movimentos por mais contraditoacuterios que pareccedilam aconteccedilamparalelamenterdquo

Eacutemile Durkheim Uumlber soziale Arbeitsteilung

Se atentarmos natildeo soacute aos textos ldquoclaacutessicosrdquo sobre a Modernidade mas tambeacutem a

outros tornar-se-aacute claro que a modernidade eacute um fenoacutemeno contraditoacuterio

ambivalente202 ldquoum fenoacutemeno ambiacuteguo incerto e de vaacuterias facesrdquo203 um acontecimento

que natildeo traz apenas algo de bom ou somente de mau mas de ambos oportunidades

mas tambeacutem riscos ganhos mas tambeacutem perdas aspetos positivos mas tambeacutem

negativos Por um lado a modernidade pode significar a libertaccedilatildeo204 libertaccedilatildeo das

ldquodependecircncias primordiaisrdquo205 das ldquolimitaccedilotildees tradicionais e (simplesmente)

202 Bauman Z Modernity and Ambivalence Ithaca NY 1991203 Beck UBeck-Gernsheim E Riskante Chancen Opladen 1990 p15204 Beck (Beck U Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne Frankfurt a M 1986p223) compreende o conceito de individualizaccedilatildeo autoacutenoma na modernidade sob um duplo sentido(positivonegativo) por um lado assistimos agrave separaccedilatildeo de formas e laccedilos sociais historicamentepredeterminados em contextos tradicionais de poder o que nos permite cumprir a dimensatildeo delibertaccedilatildeo da modernidade por outro lado verificamos a perda da seguranccedila no que diz respeito aoconhecimento da accedilatildeo das normas orientadoras do comportamento e da feacute imperando neste sentido adimensatildeo de desencanto (ldquoDimension der Entzauberungrdquo) Uma breve notaccedilatildeo sobre uma questatildeo de traduccedilatildeo a traduccedilatildeo do termo alematildeo Entzauberung eacuteprofundamente complexa A expressatildeo portuguesa desencantamento do mundo carece de um elementoque poderia ser associado a um elemento romacircntico maacutegico e talvez o termo des-enfeiticcedilamentocairia aqui melhor Entzauberung eacute um termo que natildeo pode ser traduzido por uma palavra soacute Comefeito o encantamento do mundo ocorreu principalmente no Romantismo alematildeo e com o processode desencantamento do mundo descrito por Max Weber verificou-se um processo oposto Oencantamento romacircntico poderia ser interpretado no sentido de Novalis quando o poeta descreve omundo a partir do seu conceito de idealismo maacutegico (Brucker M Novalis Leipzig 1992 p11)205 Habermas J Nachmetaphysisches Denken Philosophische Aufsaumltze Frankfurt aM 1989 p234

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monoacutetonasrdquo206 de ldquopressotildees fatiacutedicasrdquo 207 do ldquoespartilho dos papeacuteis normas e caminhos

de vida estanquesrdquo 208 das ldquocorrentes enferrujadas do estatuto e das ordens feudaisrdquo209

de ldquolaccedilos constritivosrdquo210 No entanto a acelerada emancipaccedilatildeo dos contextos

tradicionais tambeacutem se relaciona com uma ldquomagnanimidade em expansatildeordquo da

autonomia individual para planear e configurar a vidardquo 211 O ser humano tem a

oportunidade e a obrigaccedilatildeo ldquode construir biograficamente algo para si mesmo a partir

das perspetivas sugeridas pela sociedade sobre o curso da vidardquo 212 Este ldquoreivindica um

pedaccedilo da sua proacutepria vidardquo213 e pode escolher o seu niacutevel como antes nunca foi

possiacutevel Em todas as aacutereas desde o ldquopiso teacuterreo das mercadoriasrdquo ateacute ao ldquoandar

superiorrdquo onde se ldquoproduz sentidordquo214 existe ldquoriqueza de variedaderdquo215 e ldquovariedade de

opccedilotildeesrdquo216 Se antes apenas um modo de viver poderia ser representado como ldquonormalrdquo

agora muito outros podem concorrer ao mesmo epiacuteteto Uma ldquoficccedilatildeo idealrdquo do ldquoser

humano modernordquo217 eacute superada e substituiacuteda por uma nova compreensatildeo mais aberta

da identidade O Eu tem um horizonte de oportunidade para se libertar natildeo eacute ldquomais um

servo das convenccedilotildees e padronizaccedilotildees sociaisrdquo218 O ser humano tem em seu poder

mais do que nunca a possibilidade de ldquoser diferente sem medordquo segundo Adorno219

Natildeo obstante tal processo tambeacutem pode ser experienciado como uma ldquoperda dos

apoios convencionaisrdquo220 Por conseguinte modernidade tambeacutem pode significar perda

a ldquoperda de uma inclusatildeo social estaacutevelrdquo221 a ldquoperda de valores inquestionavelmente

vaacutelidosrdquo222 a ldquoperda da proteccedilatildeo abrangecircncia ndash coletiva e individual ndash de um abrigo de

significado (Sinn-Dach)rdquo223 a ldquoperda das certezas tradicionais no que diz respeito aos

206 Berger P Individualisierung Statusunsicherheit und Erfahrungsvielfalt Opladen 1996 p279207 Schoumlll A Ich glaube dass ich nicht an Gott glaube Frankfurt aM New York 1995 p227208 Keupp H Ambivalenzen postmoderner Identitaumlt Frankfurt aM 1994 p337209 Gross P Die Multioptionsgesellschaft Frankfurt aM 1994 p37210 Gergen K Das uumlbersaumlttigte Selbst Heidelberg 1996 p282211 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p38httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]212 Boumlhnisch L Sozialpaumldagogik der Lebensalter WeinheimMuumlnchen 1997 p34213 Beck U Jenseits von Stand und Klasse Goumlttingen 1983 p43214 Gross P Die Multioptionsgesellschaft Frankfurt aM 1994 p41215 Gross P Pop-Soziologie Zeitdiagnostik in der Multioptionsgesellschaft Wien 2003 p44216 Schroer M Individualisierte Gesllschaft Muumlnchen 1997 p174217 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p16httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]218 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p16httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]219 AdornoTW Minima Moralia Gesammelte Schriften vol4 Frankfurt aM 1980 p113220 Habermas J Nachmetaphysisches Denken Philosophische Aufsaumltze Frankfurt aM 1989 p234221Barz H Neue Werte ndash Neue Wuumlnsche Future Values DuumlsseldorfBerlinRegensburg 2001 p 41222 Keupp H Bildung zwischen Anpassung und Lebenskunst Salzburg 2006 p6223 Hitzler RHoner A Bastelexistenz Frankfurt aM 1994 p307

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conhecimentos praacuteticos agraves crenccedilas e agraves normas orientadorasrdquo224 a ldquoperda do dado

adquiridordquo225 ldquoA saiacuteda do homem da sua menoridade de que ele proacuteprio eacute culpado eacute ao

mesmo tempo uma saiacuteda veloz do ninho das relaccedilotildees humanas em estruturas fixasrdquo226

O ldquoprojeto da Modernidaderdquo proclamado por Juumlrgen Habermas e outros autores

eacute sobretudo fundamentado na ideia e na promessa da saiacuteda do homem da sua

menoridade de que ele proacuteprio eacute culpado na promessa da autonomia e

autodeterminaccedilatildeo significativa desde o Iluminismo Tal natildeo contradiz contudo o facto

de que o sujeito autoacutenomo se encontra tambeacutem sob certa forma ldquodependenterdquo da ldquorede

de significadosrdquo de relaccedilotildees constitutivas e de comunidades para encontrar um plano

de vida razoaacutevel para si227 Mas esta ideia estaacute entrelaccedilada com a ideia poliacutetica de

participaccedilatildeo democraacutetica e de autodeterminaccedilatildeo pois as macrocondiccedilotildees

socioeconoacutemicas determinantes da accedilatildeo e da vida natildeo podem ser controladas pelos

indiviacuteduos enquanto tal Se estas satildeo mais do que um coincidente resultado da interaccedilatildeo

entre forccedilas sobre as quais natildeo haacute controlo entatildeo deveratildeo ser orientadas por um

processo deliberativo poliacutetico e coletivo A promessa da Modernidade decorre com

efeito do desejo de superar as restriccedilotildees impostas agrave autodeterminaccedilatildeo pela pobreza e a

escassez a doenccedila e a deficiecircncia a ignoracircncia e todas as possiacuteveis circunstacircncias

naturais adversas A este respeito assim escreve Hartmut Rosa

O projeto da modernidade faz-se numa forccedila de persuasatildeo e de atraccedilatildeo com aquilo a que

se poderia chamar a ldquoenergia cineacuteticardquo da sociedade tambeacutem com a introduccedilatildeo de uma

acelerada mudanccedila social De forma semelhante o desenvolvimento de uma economia

capitalista voltada para o crescimento forte e produtiva bem como o progresso

simultaneamente cientiacutefico e tecnoloacutegico produziram os recursos que credibilizaram a

promessa de transformaccedilatildeo poliacutetica da sociedade (por meio de redistribuiccedilatildeo) e de

liberdade de escolha Em suma o processo da aceleraccedilatildeo moderna (social e competitiva) e

o projeto (eacutetico) de autonomia e autodeterminaccedilatildeo tecircm-se pelo menos em princiacutepio

apoiado mutuamente Mas a Modernidade em determinados aspetos nunca cumpriu esta

promessahellip Hoje num seacuteculo XXI ldquoglobalizadordquo a promessa quase perdeu todo o seu

potencial e a pressatildeo ganhou tal magnitude que a ideia (democraacutetica) de autonomia

individual e coletiva se tornou quase anacroacutenica228

224 Beck U Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne Frankfurt aM 1986 p206225 Bolz N Die Sinngesellschaft Berlin 1997 p10226 Dahrendorf R Das Zerbrechen der Ligaturen und die Utopie der Weltbuumlrgergesllschaft FrankfurtaM 1994 p424227 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p113228 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115

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Segundo Hartmut Rosa a promessa de autonomia poliacutetica para organizar a

sociedade para aleacutem das necessidades econoacutemicas eacute ldquodentro de um quadro referente agrave

Modernidade tardia uma lembranccedila teacutenuerdquo229 pois a loacutegica da competiccedilatildeo do

ldquoincrementordquo (Steigerung) do crescimento e da aceleraccedilatildeo natildeo possui limites no seu

interior Isto seria segundo Rosa ldquoum equivalente da heterodeterminaccedilatildeo absoluta da

heteronomia completa e portanto tambeacutem uma negaccedilatildeo total da promessa da

Modernidaderdquo230 Os princiacutepios imperativos da aceleraccedilatildeo inovaccedilatildeo e do ldquoincrementordquo

(Steigerung) ameaccedilam erodir o campo de manobra da poliacutetica e o potencial de liberdade

nos modos individuais de viver231 assunto este com o qual natildeo soacute Hartmut Rosa mas

tambeacutem Zygmunt Bauman se ocupou

Zygmunt Bauman e Hartmut Rosa em particular tecircm-se envolvido

intensamente ao longo dos uacuteltimos anos nos seus respetivos trabalhos com o problema

do incremento da mobilizaccedilatildeo da dinamizaccedilatildeo progressiva e da aceleraccedilatildeo das

circunstacircncias sociais que ambos conceptualizam como caracteriacutesticas capitais da

Modernidade232 Ambos afirmam que em parte o projeto da aceleraccedilatildeo perpeacutetua se

emancipou e atingiu os seus limites naturais no presente tal como constatam que uma

ldquoUm grande nuacutemero de pessoas provavelmente ateacute a maioria nunca desfrutou da possibilidade dedeterminar autonomamente as suas proacuteprias vidas devido agraves pressotildees das condiccedilotildees de trabalhoheteroacutenomas Este argumento aplica-se na minha opiniatildeo natildeo apenas aos trabalhadores assalariados mastambeacutem aos empregadores e gerentes jamais conseguiram controlar as regras do jogo apenasaprenderam a jogaacute-lo com ecircxito E o ldquogrande compromissordquo de aceitar heteronomia no local de trabalhopara garantir autonomia na vida familiar nunca funcionou bem conforme nos apontou Charles Taylor(1988) No entanto o ldquosistema modernordquo de privatizaccedilatildeo eacutetica capitalismo econoacutemico e poliacuteticademocraacutetica conseguiu ldquomanter o sonho vivordquo ateacute agraves uacuteltimas trecircs deacutecadas do seacuteculo XX a promessa deuma ldquoexistecircncia paciacuteficardquo para usar a formulaccedilatildeo de Marcuse parecia crediacutevel pois esperava-se umcrescimento econoacutemico consistente progresso tecnoloacutegico emprego para todos reduccedilatildeo do horaacuterio detrabalho e um Estado social em crescimento A histoacuteria poderia ainda ser entendida como evolutiva se aluta econoacutemica (diaacuteria) a luta pela sobrevivecircncia e a competiccedilatildeo social perdessem o seu poder decisivosobre a forma individual e coletiva de viver No entanto o capitalismo somente valeria como um sistemaeconoacutemico aceitaacutevel culturalmente ao abrigo da firme convicccedilatildeo - propagada e compartilhada pelos seusdefensores de Adam Smith a Milton Friedman - de que o sistema se poderia tornar tatildeo produtivo einquebrantaacutevel que o indiviacuteduo acabaria por se ver em liberdade para pocircr em praacutetica os seus planos devida os seus sonhos valores e objetivos sem a ameaccedila ominosa de pobreza de decliacutenio e de fracasso Aaceleraccedilatildeo e a competitividade poderiam entatildeo ser interpretadas como meios para alcanccedilar o fim daautodeterminaccedilatildeo Como jaacute se deveria ter tornado evidente na argumentaccedilatildeo desenvolvida nos capiacutetulosanteriores sou da opiniatildeo de que na ldquosociedade da aceleraccedilatildeordquo da Modernidade tardia esta promessaperdeu toda a credibilidade A aceleraccedilatildeo jaacute natildeo eacute experienciada como uma forccedila de libertaccedilatildeo mascomo uma forccedila que exerce pressatildeo e opressatildeordquo Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 pp115 sgts229 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p118230 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115231Doumlrre K Lessenich S Rosa H Soziologie Kapitalismus Kritik Frankfurt aM 2009232 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005

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vez ultrapassados esses limites se poderaacute tornar mais difiacutecil manter em accedilatildeo a demanda

pela sincronizaccedilatildeo e integraccedilatildeo sociais Relativamente a este aspeto os autores

reportam a ldquotransiccedilatildeordquo para outra fase da Modernidade233

Numa das suas obras Bauman descreve metaforicamente o estado desta eacutepoca

atual ldquoLiquid Modernityrdquo234 eacute uma das suas obras principais que reuacutene os seus

pensamentos sobre a nova orientaccedilatildeo da Modernidade235 Bauman recorre agrave metaacutefora da

liquidez para compreender as especificidades do presente e da nova fase da histoacuteria da

nossa era236 Em contraste com uma precedente Modernidade soacutelida esta reorientaccedilatildeo

associa-se agrave crescente volatilizaccedilatildeo ldquode tudo que era dos estados (ou ordens sociais) e

estaacutevelrdquo237 e agraves dinacircmicas contiacutenuas de aceleraccedilatildeo238 Neste sentido Bauman afirma que

a ordem atual se apresenta determinada essencialmente pela sua volatilidade pela

inadequaccedilatildeo das estruturas sisteacutemicas pela liquefaccedilatildeo do quotidiano e pela

flexibilizaccedilatildeo especialmente no domiacutenio do trabalho De acordo com o filoacutesofo os

processos de trabalho e de vida temporalmente rotineiros (e espacialmente vinculados)

foram substituiacutedos por padrotildees temporais e espacialmente muito mais flexiacuteveis Estas

condiccedilotildees de vida em mudanccedila tornam-se portanto o centro da investigaccedilatildeo de

Bauman Influenciada pelo pensamento marxista a sua anaacutelise da economia como

ldquobaserdquo da sociedade constitui um ponto de partida fundamental para o estudo que o

filoacutesofo realiza dos processos sociais modernos239 A partir dos mecanismos principais

de integraccedilatildeo social Bauman descreve a transiccedilatildeo da Modernidade soacutelida para a

Modernidade liacutequida desenvolvendo um diagnoacutestico criacutetico do tempo atual cujo toacutepico

principal consiste na avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees atuais de vida No que seguimento de tais

233 Rosa utiliza o termo Modernidade tardia para descrever esta ldquooutra fase da Modernidaderdquoconcordando com aos representantes da Escola de Frankfurt ao passo que Bauman nas suas primeirasobras emprega o de poacutes-Modernidade termo que eacute substituiacutedo posteriormente pelo conceito deModernidade liquida Tendo em vista uma simplificaccedilatildeo seraacute utilizado no presente trabalho aterminologia estabelecida referente agrave ldquoModernidade tardiardquo234 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000235 O livro Liquid Modernityldquo eacute uma das suas obras mais significativas para a dinamizaccedilatildeo dasociedade e por isso uma obra-alicerce para a seguinte anaacutelise das suas teses Com esta terminologiadesliga-se do poacutes-modernismo que ele proacuteprio utilizou em trabalhos anteriores e apoia-se empublicaccedilotildees posteriores nas suas reflexotildees sobre a Modernidade liacutequida Portanto neste debruccedilar sobre asteses de Bauman seraacute usado apenas o conceito de Modernidade liacutequida236 ldquoThese are reasons to consider ldquofluidityrdquo or ldquoliquidityrdquo as fitting metaphors when we wish to graspthe nature of the presentrdquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2237 ldquoTudo o que era dos estados [ou ordens sociais mdash staumlndisch] e estaacutevel se volatilizahelliprdquo (Marx KEngels F Manifesto do Partido Comunista Ed Instituto Joseacute Luis e Rosa Sunderman 2003 p13)238 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p3239 Varcoe IKilminster R Zygmunt Baumanns Sozialkritik Wiesbaden 2007 p28

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consideraccedilotildees Bauman enfatiza o tema da liberdade versus a libertaccedilatildeoautonomia240

(verdadeiras) do sujeito241 que o filoacutesofo nomeia como objetivo primeiro do processo

de ldquomodernizaccedilatildeordquo242 Em oposiccedilatildeo agrave abordagem associativa e fenomenoloacutegica de

Bauman Hartmut Rosa desenvolve por seu turno a anaacutelise da Modernidade atraveacutes de

uma posiccedilatildeo marcadamente estruturalista Rosa ocupa-se igualmente com as estruturas

temporais das sociedades modernas bem como com os correlativos desenvolvimentos e

problemaacuteticas sociais num plano tanto individual como coletivo Para Rosa a categoria

240 Geralmente a autonomia pode ser conceptualizada como autodeterminaccedilatildeo livre de influecircnciasextriacutensecas e rastos de dependecircncia (Junge M Ambivalente Autonomie Muumlnster 2004 p143 PauenM Autonomie Muumlnchen 2011 p 254) Frequentemente em equiparaccedilatildeo com termos como liberdade eautodeterminaccedilatildeo a autonomia caracteriza-se pela capacidade de estabelecer regras para si isto eacute agirconforme as regras para si estabelecidas (Pauen M Autonomie Muumlnchen 2011 pp 254) Em suacontraposiccedilatildeo estaacute heteronomia e anomia heterodeterminaccedilatildeo submissatildeo e tambeacutem alienaccedilatildeo Nafilosofia moral de Kant o termo foi cunhado ateacute aos dias de hoje (consultar Shell S Kant and the limitsof autonomy Cambridge 2009 p2) e natildeo significa neste entendimento uma liberdade sem regras ouarbitrariedade mas uma vinculaccedilatildeo do sujeito autoacutenomo por si mesmo (Pauen M AutonomieMuumlnchen 2011 p255) A autonomia natildeo se refere a accedilotildees individuais mas a uma qualidade que pertencea corporaccedilotildees pessoas ou objetos como um todo e confere-lhes assim uma capacidade para agirindedependentemente de influecircncias extriacutensecas ou da aleatoriedade Uma pessoa pode neste contextoser considerada autoacutenoma quando age nem em pura arbitrariedade nem por induccedilatildeo ou imposiccedilatildeoextriacutensecas mas guiada nas suas decisotildees e accedilotildees por princiacutepios proacuteprios (cf Ibid p257) Asconcetualizaccedilotildees do sujeito moderno satildeo comumente caracterizadas pela reclamaccedilatildeo por parte doIluminismo para que o ser humano se liberte da sua menoridade por culpa proacutepria (Kant) e que persigauma vida autoacutenoma e autodeterminada (Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichenWandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) A autonomia vista como umconceito relativo aponta contudo tambeacutem para a ambiguidade da autonomia individual e deste modotambeacutem para o conceito de sujeito Consequentemente o sujeito moderno natildeo deve ser pensado comopuramente autoacutenomo uma vez que ainda eacute dependente de estruturas e tradiccedilotildees sociais (Ibid p9)Subjectividade e capacidade de agir satildeo aplicadas socialmente as estruturas e relaccedilotildees sociais moldam osujeito moderno (Meiszligner H Jenseits des autonomen Subjekts Bielefeld 2010 p10) Assim asdiferentes concepccedilotildees de sujeito implicam por um lado uma relaccedilatildeo ativa e formativa com o mundo elascolocam-no em relaccedilatildeo com a realidade social e formulam-no natildeo apenas como um produto do seu meio(Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in derSpaumltmoderne Bielefeld 2006 p9) Por outro lado jaacute a semacircntica do termo (subiectum) implica umareivindicaccedilatildeo absoluta de soberania O sujeito estaacute ancorado nas estruturas sociais e tem que incorporarnum mundo dado estrutrado pelo poder (ibid p15) o que necessariamente conduz agrave limitaccedilatildeo daautonomia (cf Ibid) Reckwitz define esta estrutura dupla do sujeito moderno como se seguesubiectum o sujeito tem um duplo sentido eacute o elevado agraves alturas e o subjugado Eacute o centro da accedilatildeoautoacutenoma e do pensamento [] E eacute aquilo que subjaz ao que se sobrepotildee [] Na sua ambiguidade osujeito apresenta-se como dominador subordinado um sujeitado sujeitandoldquo (Reckwitz A Das hybrideSubjekt Goumlttingen 2010 p9)241 O conceito de sujeito representa uma categoria baacutesica no desenvolver de teoria dentro das ciecircnciassociais especialmente no que diz respeito agraves abordagens modernas e poacutes-moderna da Modernidade tardia(Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in derSpaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) pode ser visto como o conceito-chave heuriacutestico das ciecircncias sociaise da cultura no iniacutecio do seacuteculo XXI (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p10) A ideiado sujeito moderno e reflexivo da teoria do conhecimento de Descartes formava um comeccedilo e foi atraveacutesde Hobbes e Kant que se manifestou como um fator decisivo no processo de entendimento (BeerRSievi Y Subjekt oder Subjektivation Wien 2010 p4) No entanto dada a mudanccedila socialatualmente sobre rodas que faz parte da criaccedilatildeo teoacuterica na Modernidade tardia ou no poacutes-modernismo oconceito eacute posto agrave prova natildeo sem controveacutersia desde a morte do sujeito que resultara do teacutermino poacutes-moderno das bdquograndes narrativasldquo sobre o sujeitoldquo (Keupp HHohl J Subjektdiskurse imgesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) ateacute agraveadesatildeo ao conceito de sujeito como base para qualquer perceccedilatildeo e criacutetica de condiccedilotildees sociais o tema

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de anaacutelise ldquotempordquo constitui o fundamento essencial para a sua teoria sobre a

Modernidade uma vez que na sua argumentaccedilatildeo a compreensatildeo das dinacircmicas

modernas de aceleraccedilatildeo deve integrar um conhecimento significativo sobre os processos

atuais de mudanccedila243 O facto de que o tempo e a aceleraccedilatildeo estatildeo diretamente ligados

aos desenvolvimentos sociais da Modernidade configura tambeacutem um elemento basilar

para Bauman e tornou-se entretanto ndash e natildeo apenas nas ciecircncias sociais ndash um tema

amplamente debatido Assim valida-se em grande parte como indiscutiacutevel a afirmaccedilatildeo

de que o tempo eacute uma categoria-chave para uma anaacutelise sociocientiacutefica da

Modernidade244 Desde Durkheim e da sua questatildeo acerca da estabilidade e da ordem

sociais no contexto de uma aceleraccedilatildeo crescente o problema tem vindo a destacar-se

nas teorias modernas da sociedade245 Tambeacutem Anthony Giddens sublinhou em 1984 a

importacircncia do tempo e da sua relaccedilatildeo com o espaccedilo

It [time and space DS] is not a specific type or ldquoareardquo of social science which can be

pursued or discarded at will lt is at the very heart of social theory as interpreted through

the notion of structuration246

estaacute discutido numa maneira controversa Esta discussatildeo prefigura uma fragmentaccedilatildeo que implica quenatildeo existe uma uacutenica conceccedilatildeo abrangente do sujeito poacutes-modernoda modernidade tardia dentro dasciecircncias sociais Capital no decorrer deste trabalho no entanto satildeo as suposiccedilotildees fundamentais nadefiniccedilatildeo geral de termos de que o sujeito moderno eacute objetivo e interface das praacuteticas do discursordquo deque surge do dualismo entre o interior mental e o exterior material e de que deste modo natildeo estaacutesimplesmente disponiacutevel mas sempre resulta num processo de produccedilatildeo cultural permanenterdquoReckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p10) No sujeito estatildeo retratadas natildeo soacute asespecificidades individuais como tambeacutem as de foro social cultural poliacutetico cultural e histoacuterico da suarespetiva eacutepoca Os sujeitos configuram-se sobretudo atraveacutes das diferentes praacuteticas sociais e ordens deconhecimento que o moldam na compreensatildeo de si mesmo nas suas perceccedilotildees e ateacute mesmo nos seusproacuteprios movimentos corporais (Ibid p7) Assim evoluem a compreensatildeo de si mesmo e a suaidentidade agrave luz da respetiva bdquocultura do sujeitoldquo (Keupp HHohl J Subjektdiskurse imgesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p45) SegundoReckwitz em contraste com o conceito de indiviacuteduo o conceito de sujeito trata mais a questiona em quemedida a accedilatildeo do ser singular eacute determinada socialmente e qual eacute a forma que os indiviacuteduos assumem emdeterminados contextos sociais e histoacutericos (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p9) Otermo sujeito pode por conseguinte ser entendido como aquilo que denota toda a forma cultural [] naqual o indiviacuteduo enquanto entidade corpoacutereo-mental-afetiva em determinadas praacuteticas e discursos setorna um ser social (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p17) No cerne das anaacutelises dosujeito edificam-se portanto estruturas especiacuteficas respetivas que compotildeem determinadas formas desubjetividade (Meiszligner H Jenseits des autonomen Subjekts Bielefeld 201 p11)242 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p18243 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24244 Elias N Uumlber die Zeit Frankfurt aM 1984 Giddens A The Constitution of Society Cambridge1984 pp34 110 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der ModerneFrankfurt a M 2005 p20 Scheuerman W Social Theoty of Speed In European Lournal of Sociology47 (2006) 443245Scheuerman W Social Theoty of Speed In European Lournal of Sociology 47 (2006) 443246 Giddens A The Constitution of Society Cambridge 1984 p110

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Tanto a pesquisa existente e as investigaccedilotildees detalhadas como os estudos sobre

o tempo teoricamente orientados carecem aos olhos de Rosa de um viacutenculo metoacutedico

relativamente a uma teoria de base empiacuterica descurando por conseguinte a

identificaccedilatildeo dos aspetos cruciais do tempo e dos atuais desenvolvimentos sociais247

Rosa tenta preencher esta lacuna existente na literatura das ciecircncias sociais delineando

a sua teoria da aceleraccedilatildeo social e do ldquoincrementordquo (Steigerung) Ao contraacuterio de

Bauman cujas observaccedilotildees sobre os processos de aceleraccedilatildeo influenciam fortemente as

suas reflexotildees sobre a Modernidade liacutequida conquanto natildeo formem sistematicamente o

seu centro de atenccedilatildeo Rosa parte para a investigaccedilatildeo da anaacutelise das estruturas temporais

modernas Ao analisar a interaccedilatildeo automotora da aceleraccedilatildeo social e ao integraacute-la numa

teoria da Modernidade Rosa pretende apresentar uma obra que revele o paradoxo do

tempo e a crescente dinamizaccedilatildeo das condiccedilotildees sociais e das suas consequecircncias248 O

objetivo eacute que o trabalho compreenda249 os ldquoatuais desenvolvimentos e problemas

sociais no contexto da Modernidade tardia250 procurando representar o entrelaccedilamento

sistemaacutetico entre as perspetivas do agente e as do sistema251 De acordo com Rosa os

processos sociais podem ser geralmente vistos como micro ou macrossocioloacutegicos

Nos primeiros o foco estaacute no sujeito na sua relaccedilatildeo consigo mesmo nas relaccedilotildees

sociais entre pessoas e grupos e entre o sujeito e o mundo o plano do agente eacute o ponto

de partida para anaacutelises microssocioloacutegicas Por outro lado os ensaios

macrossocioloacutegicos tratam os processos sociais como alteraccedilotildees de estruturas

sisteacutemicas252 nos quais a grande criaccedilatildeo social e a sua estrutura satildeo o acircmago da

investigaccedilatildeo Rosa propotildee-se a desenvolver em conformidade com a teoria

criacuteticaescola de Frankfurt um viacutenculo entre as duas perspetivas (anaacutelises sociais

247 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p22248 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p23249 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p 24 47250 Rosa opta pelo termo Modernidade taacuterdia para poder escrever sobre a mudanccedila social dos tempospresentes atraveacutes de uma perspectiva estrutural (Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p49) O termo poacutes-modernismo a seu verpressupotildee uma perspetiva cultural (cf Busch M Solidaritaumlt im beschleunigten Wandel Berlin 2012p53) A designaccedilatildeo ldquoModernidade tardiardquo tambeacutem se poderaacute referir mais agravequilo que eacute processual aodesenvolvimento per se da Modernidade (Para uma elaboraccedilatildeo mais aprofundada sobre a diferenciaccedilatildeohistoacuterica entre o modernismo claacutessico e a Modernidade tardia entre outros cf Rosa HStrecker DStreckmann A Soziologische Theorien Konstanz 2007251 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24252 Turner B (ed) The Cambridge Dictionary of Sociology Cambridge 2006 pp346383

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sisteacutemico-estruturais e abordagens centradas no sujeito)253 Para aleacutem de tal propoacutesito a

teoria de Rosa tem ainda em vista investigar os equivalentes dos processos

socioculturais na construccedilatildeo de autorrelaccedilotildees subjetivas ou seja analisar a ldquoassimilaccedilatildeo

das loacutegicas dos sistemas e das accedilotildees pessoaisrdquo254

Apesar da enunciaccedilatildeo de tais aspetos negativos da modernidade Hartmut Rosa

considera a ldquoexpansatildeo do alcance do mundordquo255 (Weltreichweitenvergroumlszligerung) como

um elemento moderno que merece enaltecimento filosoacutefico e cultural A loacutegica da

dinamizaccedilatildeo da aceleraccedilatildeo e do incremento (ldquoSteigerungrdquo) da modernidade tem

consequecircncias segundo Rosa no modo como o sujeito eacute colocado no mundo e no tipo

de relaccedilotildees que este pode formar Como resultado a relaccedilatildeo entre sujeito e mundo torna-

se mais dinacircmica256 A ldquoposiccedilatildeo no mundordquo o lugar na ordem que um ser humano

ocupa ou pode ocupar natildeo eacute mais predeterminada mas eacute estabelecida segundo uma

competiccedilatildeo dinacircmica e muitas vezes contingente Na modernidade tardia tal significa

que esta posiccedilatildeo pode nova e constantemente mudar natildeo se encontrando como

acontecia no acircmbito da modernidade claacutessica determinada antes da vida adulta e

consolidada mediante uma carreira ou um percurso profissionais na modernidade

tardia a posiccedilatildeo do indiviacuteduo no mundo carateriza-se bem mais pela inseguranccedila

dinacircmica e tem de ser disputada defendida ou trocada repetidas vezes ao longo do

tempo de vida Tal pressupotildee que o sujeito natildeo ldquose conecte e cresccedila numa maneira

ressonanterdquo257 quando tem de se reposicionar dinacircmica e repetidamente sendo a

obrigado a acertar contiacutenuas tomadas de posiccedilatildeo Ao mesmo tempo contudo o

indiviacuteduo alarga o seu horizonte de alcance relativamente ao mundo torna-o mais

previsiacutevel disponiacutevel e dominaacutevel Eacute neste sentido que a histoacuteria da modernidade pode

ser contada como uma histoacuteria natildeo restrita de progresso

Atraveacutes do crescimento da riqueza econoacutemica e da potecircncia produtiva atraveacutes do domiacutenio

cada vez mais abrangente da natureza atraveacutes do incremento das possibilidades e

disponibilidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas mas tambeacutem como resultado dos processos

sociais de liberalizaccedilatildeo pluralizaccedilatildeo e individuaccedilatildeo bem como em muitos lugares de

democratizaccedilatildeo aumentam as ldquopossibilidades do mundordquo dos indiviacuteduos desde o seacuteculo

253Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24254 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p25255 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p704 H Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 256Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt a M 2012257 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p312

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XVIII 258

Segundo Rosa a tecnologia dos transportes coloca quase toda a superfiacutecie

terrestre ao alcance de um sempre crescente nuacutemero de pessoas em termos de turismo e

da migraccedilatildeo a digitalizaccedilatildeo e a mediatizaccedilatildeo permitem a novas pessoas um mais

elevado alcance comunicativo a comercializaccedilatildeo por sua vez torna disponiacutevel

diariamente um nuacutemero cada vez maior de possibilidades e tudo isto acontece no

momento em que a ciecircncia permite que aspetos do mundo e do corpo se tornem

tecnologicamente manipulaacuteveis e maleaacuteveis Colocar o mundo ao alcance do indiviacuteduo

constitui o motivo da modernidade em geral Com a expressatildeo ldquoexpansatildeo do alcance do

258 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p520

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mundordquo259 resumem-se segundo Rosa o programa estrutural e o projeto cultural da

modernidade

23 Zygmunt Bauman e o conceito de modernidade liacutequida

O ritmo de mudanccedila raacutepido e continuamente acelerado torna verdadeiro seguinte

que o futuro natildeo seraacute como o presente

259 De acordo com Rosa uma caracteriacutestica determinante da sociedade moderna ndash que nos permitecompreender o conceito de ldquoexpansatildeo do alcance do mundordquo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) ndash consisteno facto de esta apenas poder manter a estrutura atraveacutes de formas de incremento e de mobilizaccedilatildeo isto eacuteatraveacutes de crescimento (econoacutemico) de aceleraccedilatildeo (tecnoloacutegica) eou de sequecircncias de inovaccedilotildees cadavez mais raacutepidas (Rosa H Escalation the crisis of dynamic stabilization and the prospect of resonance In Doumlrre K (Ed) Sociology capitalism critique LondonNew York 2015 pp 280ndash305 Rosa HResonanz Berlin 2016 pp 671ndash706 Rosa H et al Appropriation activation and acceleration Theescalatory logics of capitalist modernity and the crisis of dynamic stabilization In Theory Culture andSociety 34 2017 pp 53ndash74) Quando Rosa fala de estabilizaccedilatildeo e de preservaccedilatildeo o filoacutesofo pretendereferir-se em primeiro lugar agrave estabilizaccedilatildeo da ordem institucional baacutesica nomeadamente a economia demercado orientada para a concorrecircncia o sistema cientiacutefico educativo e social o sistema de sauacutede e aordem baacutesica geral poliacutetica e juriacutedica e em segundo lugar agrave loacutegica operacional de acumulaccedilatildeo edistribuiccedilatildeo propriamente dita que define por seu turno o status quo por outras palavras trata-se daloacutegica de incremento da acumulaccedilatildeo de capital ativaccedilatildeo mobilizada crescimento aceleraccedilatildeo e inovaccedilatildeo(Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 29) Mesmo que as instituiccedilotildees poliacuteticas econoacutemicas oueducativas possam mudar ao longo do tempo no que concerne agrave sua aparecircncia ou composiccedilatildeo os seusimperativos sisteacutemicos e compulsotildees internas de incremento e crescimento permanecem (Rosa HUnfuumlgbarkeit Wien 2018 p 63) O ciacuterculo de incremento resultante da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica social eda vida faz da ldquoestabilizaccedilatildeo dinacircmicardquo um processo que se impulsiona a si proacuteprio (ver Rosa HBeschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p 243)Atraveacutes do incremento contiacutenuo da capacidade da produccedilatildeo e da eficiecircncia este processo manteacutem ostatus quo socioeconoacutemico e com ele as instituiccedilotildees da economia de mercado e do estado social bemcomo as da ciecircncia e da educaccedilatildeo Como resultado a loacutegica do incremento permanente e com ela anecessidade de crescimento velocidade e aperfeiccediloamento inscreve-se na subjetividade moderna e na suaestrutura habitual De facto esta loacutegica estaacute segundo Rosa duplamente enraizada no caraacutecter modernopor um lado como o desejo de expandir os nossos recursos e possibilidades por outro lado como o medode perder esses mesmos recursos em competiccedilatildeo (e portanto as condiccedilotildees para uma vida boa) Eacuteinegaacutevel que o crescimento (econoacutemico) a aceleraccedilatildeo (tecnoloacutegica) e a inovaccedilatildeo (sociocultural) trazemuma promessa genuiacutena estatildeo diretamente relacionados com as nossas ideias de liberdade e felicidade(Rosa H Unfuumlgbarkeit Wien 2018 pp 46) Mas porque eacute que este modo surge como atraente para amaioria dos sujeitos modernos A resposta que Rosa oferece eacute seguinte porque a loacutegica de incrementoda ldquoestabilizaccedilatildeo dinacircmicardquo anda de matildeos dadas com a promessa de alargar cada vez mais o alcance e oacircmbito de accedilatildeo tanto individual quanto coletivamente Tal conduz agravequilo que o filoacutesofo chama o projetode expansatildeo mundial (Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p704 Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien2018 p 40) Uma vez que segundo Rosa as sociedades modernas soacute conseguem estabilizar-se no modode incremento (ou seja dinamicamente) elas satildeo estrutural e institucionalmente forccediladas adisponibilizar cada vez mais do ldquomundordquo para o colocar teacutecnica econoacutemica e politicamente ao seualcance tornar as mateacuterias-primas utilizaacuteveis abrir mercados ativar potenciais sociais e psicoloacutegicosaumentar as possibilidades teacutecnicas aprofundar a base de conhecimentos melhorar as possibilidades decontrolo e monitorizaccedilatildeo etc (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 12) Tal tambeacutem incluicertamente muitos aspetos positivos mas Rosa natildeo se concentra neles Segundo Rosa o estar-no-mundoe o agir-no-mundo modernos estatildeo assim orientados para tornar o mundo quantitativa e qualitativamentemais e mais disponiacutevel controlaacutevel e acessiacutevel (claro que este argumento estaacute intelectualmente muitoproacuteximo das ideias da primeira geraccedilatildeo da Teoria Criacutetica especialmente do conceito de Adorno eHorkheimer da razatildeo instrumental (Horkheimer M Adorno T W Dialektik der AufklaumlrungPhilosophische Fragmente Frankfurt a M 1984) e da mentalidade prometeica do homem moderno(Marcuse H Triebstruktur und Gesellschaft Ein philosophischer Beitrag zu Sigmund Freud) Frankfurt

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Zygmunt Bauman Postmodernity and its Discontents

Antes de entrarmos na exposiccedilatildeo e no comentaacuterio do pensamento de Hartmut

Rosa importaria aqui delinear ainda que de modo breve as principais conceccedilotildees que

estruturam as reflexotildees criacuteticas de Zygmundt Bauman relativas agrave modernidade Com

efeito no acircmbito do quadro semacircntico que os termos evocam Zygmunt Bauman recorre

aos termos liquidez260 e volatilidade como metaacuteforas para descrever o novo decorrer da

Modernidade e para separar este tardio estaacutegio liacutequido dos estaacutegios iniciais dominados

por uma maior solidez Ao contraacuterio do que eacute soacutelido o que eacute liacutequido altera

continuamente a sua forma natildeo eacute permitido o repouso e por isso eacute sensiacutevel agrave passagem

do tempo261 Aquilo que eacute liacutequido eacute extraordinariamente moacutevel e estaacute portanto

associado agrave mobilidade flexibilidade liberdade e agrave ligeireza ndash traccedilos que Bauman

atribui agrave nossa era presente A ordem social atual caracteriza-se pelo desconjuntar dos

viacutenculos sociais daqueles que com ou sem razatildeo se assumiam como modos de

restriccedilatildeo da liberdade de escolha e da liberdade de accedilatildeo262 Para Bauman as

caracteriacutesticas imperativas das mudanccedilas radicais atuais consistem na dissociaccedilatildeo do

poder da poliacutetica na progressiva individualizaccedilatildeo e na renegaccedilatildeo da comunidade263

bem como no fim do planear pensar e agir a longo prazo e na crescente

responsabilidade do indiviacuteduo pelo seu proacuteprio modo de viver influenciado pelas

circunstacircncias volaacuteteis e em constante mutaccedilatildeo264 De acordo com o filoacutesofo esta nova

forma de Modernidade eacute igualmente marcada pela efemeridade das formas sociais na

sua estrutura ndash estas encontram-se usando os termos de Bauman derretidas265 Neste

a M 1977)) Tal aplica-se agrave ciecircncia (tornando o mundo reconheciacutevel previsiacutevel e disponiacutevel) bem comoagrave prosperidade econoacutemica (quanto mais ricos formos ndash individualmente eou coletivamente ndash maisdisponiacutevel controlaacutevel e acessiacutevel eacute o mundo) De facto segundo Rosa a ldquoexpansatildeo do alcance domundo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) tambeacutem explica a atratividade da tecnologia especialmente naaacuterea da mobilidade e da comunicaccedilatildeo (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 48) Neste sentido aexpansatildeo do alcance do mundo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) pode referir -se por um lado a umaacessibilidade ou disponibilidade (fiacutesica ou comunicativa) e por outro lado a uma controlabilidade oudomiacutenio (poliacutetico e teacutecnico) e ainda a uma ldquoutilizaccedilatildeo do mundordquo (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien2018 p21)260 bdquohellipliquids unlike solids cannot easily hold their shape Fluids so to speak neither fix space norbind time While solids have clear spatial dimensions but neutralize the impact and thus downgrade thesignificance of timehellip fluids do not keep to any shape for long and are constantly ready (and prone) tochange itldquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2261 Ibid pp 2 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2262Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p7263 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p71264 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 Bauman Z LiquidFear Cambridge 2006 265Bauman define formas sociais como estruturas que limitam a margem de manobra para tomadas dedecisatildeo e tambeacutem como instituiccedilotildees que monitorizam a repetecircncia de processos rotineiros e padrotildees de

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contexto Bauman questiona quais os efeitos que estas mudanccedilas radicais exercem sobre

as condiccedilotildees de vida do sujeito na Modernidade liacutequida

Os profundos processos de transformaccedilatildeo socioeconoacutemica a abdicaccedilatildeo de

sistemas de ordens centrais que asseguravam a sua coesatildeo e regularidade e a

inconsistecircncia a eles associada tecircm um efeito decisivo no modo de vida do individuo

Que no mundo da Modernidade tardia ainda nem tudo se tenha liquefeito e que existam

forccedilas poderosas que intentem limitar um fluxo livre eacute amplamente ignorado por

Bauman Ritzer e Murphy266 argumentam que a observaccedilatildeo ndash natildeo exclusiva de Bauman

ndash de que a Modernidade tardia eacute marcada por uma liquefaccedilatildeo crescente eacute de facto

certeira mas que diversos bloqueios e limitaccedilotildees tecircm de ser tidos em conta

Como caracteriacutestica saliente do conceito multifacetado e complexo de

Modernidade Bauman invoca a relaccedilatildeo modificada entre espaccedilo e tempo267 O espaccedilo e

o tempo evadem-se da Modernidade O tempo pela sua funccedilatildeo em expansatildeo torna-se

histoacuterico e emancipa-se do espaccedilo268 A era da Modernidade eacute no fundo aquela em que

o tempo estaacute no centro de tudo Em contraste com o elemento estaacutevel (o espaccedilo) o

tempo afigura-se superior devido agrave sua natureza ativa e dinacircmica permitindo-se

manipular e alterar269 Atraveacutes das novas tecnologias torna-se possiacutevel atravessar o

espaccedilo de uma forma cada vez mais raacutepida e acelerada em muito menos tempo do que

anteriormente Tendo presente a nova flexibilidade e o desejo de expansatildeo Bauman

concebe a Modernidade como sendo originalmente um empreendimento de ldquosubmissatildeo

do espaccedilordquo270 Mas a submissatildeo do espaccedilo constituiu com efeito um dos principais

objetivos da ldquoModernidade pesadardquo progresso que neste contexto significava

crescimento e extensatildeo espacial Assim o tempo teria de permanecer maleaacutevel e pela

sua natureza encolher continuamente271 Tal processo provocou o desenvolvimento de

um novo imediatismo que marcaria o fim da designada Modernidade soacutelida O iniacutecio e

o fim dos intervalos de tempo aproximar-se-iam cada vez mais e disso resultariam

apenas momentos e natildeo desenvolvimentos temporais abrangentes A rapidez de

movimento tornou-se um valor essencial ndash ou segundo Bauman um meio fundamental

comportamento geralmente aceites (Bauman Z Liquid Times Living in na Age of UncertaintyCambridge 2007 p42) 266 Ritzer GMurphy J Festigkeit in einer Welt der Fluumlssigkeit Wiesbaden 2007 p53267Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p8268 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p134269 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p132270Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p132271Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p136

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ao serviccedilo do poder e da dominaccedilatildeo O poder tornou-se extraterritorial devido agrave

velocidade dos sinais eletroacutenicos tornando o espaccedilo insignificante272 O novo desafio eacute

portanto ser-se capaz de um deslocamento suficientemente raacutepido para se alcanccedilar de

modo mais ceacutelere possiacutevel a instantaneidade ndash soacute assim se obteraacute poder movendo-se

lentamente eacute-se dominado Somente aquele que eacute ceacutelere a adaptar-se a novas situaccedilotildees

e a renunciar ao longo prazo pode na ldquoera do imediatismordquo assumir uma posiccedilatildeo de

topo273

the collapse of long-term thinking planning and acting and the disappearance or

weakening of social structures in which thinking planning and acting could be inscribed

for a long time to come leads to a splicing of both political history and individual lives

into a series of short-term projects and episodes which are in principle infinite and do not

combine into the kinds of sequences to which concepts like lsquodevelopmentrsquo lsquomaturationrsquo

lsquocareerrsquo or lsquoprogressrsquo (all suggesting a preordained order of succession) could be

meaningfully applied A life so fragmented stimulates lsquolateralrsquo rather than lsquoverticalrsquo

orientations Each next step needs to be a response to a different set of opportunities and a

different distribution of odds and so it calls for a different set of skills and a different

arrangement of assets Past successes do not necessarily increase the probability of future

victories let alone guarantee them while means successfully tested in the past need to be

constantly inspected and revised since they may prove useless or downright

counterproductive once circumstances change A swift and thorough forgetting of outdated

information and fast ageing habits can be more important for the next success than the

memorization of past moves and the building of strategies on a foundation laid by previous

learning274

A durabilidade assim como tudo o que impede o movimento constitui um

fardo podendo eventualmente conduzir a uma derrota na proacutexima jogada da

aceleraccedilatildeo275

As forccedilas de liquefaccedilatildeo descritas por Bauman natildeo afetam apenas o niacutevel macro

mas tambeacutem a liquefaccedilatildeo da realidade da vida da imagem de si mesmo e da interaccedilatildeo

ao niacutevel micro276 Os processos profundos de mudanccedila da Modernidade encontram

tambeacutem equivalecircncias ao niacutevel do sujeito numa forma de viver igualmente definida

272 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p136273 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p150274Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p3Sobre o problema ldquoverticalidaderdquo versus ldquohorizontalidaderdquo na modernidade tardia consultar SloterdijkP Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014275Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p152276 Ritzer GMurphy J Festigkeit in einer Welt der Fluumlssigkeit Wiesbaden 2007 p57

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pelas forccedilas da liquefaccedilatildeo Bauman observa que ao abdicar dos comiteacutes centrais de

organizaccedilatildeo o mundo apresenta-se hoje como uma aglomeraccedilatildeo ilimitada de

possibilidades e tudo se resume ao niacutevel do indiviacuteduo que sozinho pode ndash e deve ndash

decidir que opccedilotildees escolher277

the responsibility for resolving the quandaries generated by vexingly volatile and

constantly changing circumstances is shifted onto the shoulders of individuals ndash who are

now expected to be lsquofree choosersrsquo and to bear in full the consequences of their choices

The risks involved in every choice may be produced by forces which transcend the

comprehension and capacity to act of the individual but it is the individualrsquos lot and duty

to pay their price because there are no authoritatively endorsed recipes which would allow

errors to be avoided if they were properly learned and dutifully followed or which could

be blamed in the case of failure278

A privatizaccedilatildeo e a individuaccedilatildeo satildeo para Bauman elementos distintivos da

Modernidade liacutequida A ldquoevaporaccedilatildeordquo das vaacuterias determinantes que antes ofereciam

diretrizes de accedilatildeo relativamente bem ancoradas ldquodesamarrourdquo personalidades

colocando-as perante a ldquoagonia da escolhardquo279 Mediante a liquefaccedilatildeo de formas sociais

as quais na Modernidade soacutelida ainda ofereciam um quadro referencial para estrateacutegias

de vida pensadas a longo prazo e que no entanto hoje ainda preservam

passageiramente a sua forma torna-se mais difiacutecil desenvolver um plano de vida

consistente e coerente Eacute neste contexto que Bauman enquadra a sua anaacutelise das forccedilas

de subjetivaccedilatildeo e as suas reflexotildees sobre os estilos de vida na Modernidade tardia280

Como supramencionado Bauman considera os fenoacutemenos da Modernidade

liacutequida como intimamente relacionados com a transformaccedilatildeo da sociedade do tipo

capitalista Bauman baseia por conseguinte o seu conceito de sujeito na ideia de partida

de ldquouma transformaccedilatildeo epocalrdquo da sociedade do tipo capitalista desde o capitalismo da

produccedilatildeo ao capitalismo do consumo os quais influem e determinam perpetuamente

toda a sociedade e os seus indiviacuteduos281 Bauman concebe o ldquotrabalhordquo como o

mecanismo central na Modernidade soacutelida da inclusatildeo social como elemento que une

a sociedade relacionando entre si os diferentes mundos de vida (Lebenswelt)

individuais agrave racionalidade do sistema Na Modernidade liacutequida tal situaccedilatildeo afigura- se

277 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p76278Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p4279 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p15280 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p7281 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p41

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transposta para a realidade do ldquoconsumordquo ndash o que determinou significativamente a

rutura epocal entre a Modernidade soacutelida e a liacutequida tal como entre os novos projetos

de identidade e os estilos de vida282 Bauman propotildee que os membros da Modernidade

liacutequida diferem dos da Modernidade soacutelida no sentido em que jaacute natildeo satildeo mais

produtores mas sim consumidores283 A vida no papel do produtor em tempos da

Modernidade soacutelida e do capitalismo austero no qual o homem eacute procurado como forccedila

de trabalho284 ainda estava claramente definida por normas Segundo tal quadro limites

socialmente aceites estabeleciam uma margem de manobra para a avidez e o desejo

bem como um miacutenimo para as condiccedilotildees de vida a palavra de ordem consistira em

aderir a uma vida numa posiccedilatildeo segura entre o miacutenimo para subsistecircncia por um lado e

o limite do luxo pelo outro285 No capitalismo claacutessico de produccedilatildeo assim entendido

por Bauman os indiviacuteduos detinham uma posiccedilatildeo mais ou menos clara e as condiccedilotildees

de trabalho e de vida encontravam-se definidas de forma clara Disciplina asceacutetica de

trabalho e constacircncia bem como uma ligaccedilatildeo a um lugar e a um tempo delineam os

contornos desta fase Com a liquefaccedilatildeo das estruturas sociais e o concomitante

desmantelamento desenfreado e sempre progressivo do abarcador sistema de regulaccedilatildeo

normativa a vida do produtor encaminhou-se crescentemente na direccedilatildeo da do

consumidor Com a desregulamentaccedilatildeo a liberalizaccedilatildeo e a privatizaccedilatildeo as estruturas

fixas do capitalismo da produccedilatildeo liquefizeram-se e o indiviacuteduo nas suas demandas e

interesses tornou-se progressivamente o centro de toda a realidade O formar-se-a-si-

mesmo e a resultante responsabilizaccedilatildeo pessoal tornaram-se preceito as condiccedilotildees de

vida jaacute natildeo satildeo definidas por meios coletivos e sociais pois encontram-se

desinstitucionalizadas tornando-se viaacutevel que natildeo advenham senatildeo de esforccedilos

individuais Bauman refere-se assim aos pensamentos de Pierre Bourdieu

argumentando que a coerccedilatildeo social fora substituiacuteda por incentivos no lugar dos

modelos de comportamento violentos e obrigatoacuterios encontramo-nos perante a seduccedilatildeo

da criaccedilatildeo de novas necessidades e desejos286 O princiacutepio do desejo tomou o lugar da

necessidade sendo rapidamente substituiacutedo pelo querer oscilante pelo ldquoultimato do

282 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p90283 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p89 Bauman Z Liquid life Cambridge 2005p28284 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007p 182285 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p93286 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p182

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princiacutepio de prazerrdquo287 Os meios de comunicaccedilatildeo de massas obtecircm neste caso um

novo e tremendo poder para gerar imaginaccedilotildees e fantasias individuais e coletivas288

Devido agrave falta de padrotildees normativos de orientaccedilatildeo carece-se de diretrizes para uma

ldquoconformidaderdquo substituiacuteda pela ldquoadequaccedilatildeo situacionalrdquo289 Eacute importante estar-se

preparado a todo o momento para aproveitar novas oportunidades e em particular

desenvolver novos desejos que faccedilam manter o movimento

No ato de consumir eacute tentada uma evasatildeo da inseguranccedila geral no miacutenimo pelo

momento290 O valor capital o movimento em si eacute aqui expresso ndash estar sempre um

passo agrave frente sempre em corrida (dada a inexistecircncia de destinos reais a corrida em si

preenche essa lacuna) ndash no ldquoarqueacutetipordquo do passeio para compras do shopping no qual

todos os membros da sociedade de consumo participam Bauman considera que o

comportamento do consumidor que olha observa toca pesa compra para de imediato

devolver eacute representativo do comportamento do sujeito na era atual291 Para Bauman a

eterna busca de novas e melhores ofertas concretiza-se no siacutembolo da Modernidade

liacutequida com a sua igualmente eterna ponderaccedilatildeo de opccedilotildees e desejo de possibilidades

alternativas No ato de consumo no ato de apropriaccedilatildeo poder-se-ia escapar pelo menos

por breves momentos agrave incerteza agrave inseguranccedila e ao vazio que surgiram com o

desmantelamento de todas as estruturas soacutelidas durante a Modernidade liacutequida No

entanto tanto produtos como estruturas sociais tecircm um prazo de validade o ato da

compra tem de ser repetido constantemente Mesmo que o consumo fizesse parte da

sociedade moderna desde sempre ele teraacute evoluiacutedo atraveacutes dos processos de

transformaccedilatildeo da Modernidade liacutequida de uma componente para um modo de viver e

atraveacutes disto tambeacutem para um imperativo do presente292

Para Bauman a individualizaccedilatildeo caracteriza de modo indeleacutevel a Modernidade

Com a substituiccedilatildeo da determinaccedilatildeo heteroacutenoma da ordem ldquoestamentalrdquo por uma

(ldquoobrigatoacuteriardquo) autodeterminaccedilatildeo o indiviacuteduo da Modernidade liacutequida encontra-se

287 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p92288 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p102289 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p93290 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p98291 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p88292 Blackshaw T Zygmunt Baumann Routledge London amp New York 2005 p114

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numa certa forma de liberdade apresentando-se igualmente como o responsaacutevel pela

configuraccedilatildeo da sua vida e da sua identidade Neste ponto Bauman sustenta a tese de

que a individuaccedilatildeo significa de jure uma garantia da autonomia ndash dado que o ser

singular na Modernidade liacutequida pela libertaccedilatildeo das estruturas sociais soacutelidas se torna

de jure num indiviacuteduo ndash mas coloca em causa o facto de esta autonomia existir de

facto293 Bauman acrescenta o seu entendimento de autonomia (no que diz respeito ao

debate sobre a autonomia individual) agrave possibilidade de uma autodeterminaccedilatildeo agrave

margem de manobra dada agrave escolha e accedilatildeo em estreita relaccedilatildeo com a constituiccedilatildeo de si

mesmo e da sua vida em geral Esta foi concedida de modo gradual ou no miacutenimo

superficialmente aos indiviacuteduos ldquolibertadosrdquo atraveacutes dos processos acelerados de

liquefaccedilatildeo Com base nas suas reflexotildees presentes em ldquoFreedomrdquo livro publicado em

1988 Bauman aponta para que atraveacutes da libertaccedilatildeo de estruturas sociais soacutelidas os

indiviacuteduos tenham mais liberdade e autonomia na formaccedilatildeo da sua identidade e do seu

modo de viver do que alguma vez tiveram Como jaacute foi referido o sujeito da

Modernidade liacutequida tem agrave sua disposiccedilatildeo vaacuterios estilos de vida A figura do

consumidor eacute o autoacutenomo ator de consumo pois tem liberdade de escolha Poreacutem ao

incremento da liberdade opotildee-se simultaneamente o facto de que natildeo existe a opccedilatildeo de

natildeo participar no ldquojogordquo da liberdade de escolha individual ndash tendo em conta a

influecircncia de mecanismos sobre os quais o ser singular natildeo possui controlo A

individuaccedilatildeo enquanto destino natildeo constitui uma escolha livre e assim

concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de liberdade adveacutem uma tendecircncia agrave imposiccedilatildeo e agrave

orientaccedilatildeo independentes num mundo sem marcos de referecircncia fixos294 Eacute nestes

moldes que Bauman desenvolve as suas reflexotildees sobre a ambivalecircncia da autonomia

do sujeito na Modernidade liacutequida

Segundo Bauman a libertaccedilatildeo estaacute no topo da hierarquia dos valores da

humanidade moderna O objetivo central da Modernidade consiste em desenvolver uma

vida autoacutenoma e autodeterminada295 Bauman partindo das posiccedilotildees de Eacutemile

Durkheim observa que natildeo eacute possiacutevel obter liberdade lutando continuamente contra a

sociedade mas sim e de uma certa forma submetendo-se a ela296 Neste sentido

293 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p43294 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p45295 Libertar-se com o objetivo de se autodeterminar em combinaccedilatildeo com a possibilidade de poderescolher uma identidade livremente ter a liberdade de agir e ser capaz de definir o proacuteprio modo de vivereacute neste contexto posto em paralelo com a busca pela autonomia (cf Bauman Z Freedom MiltonKeynes 2003 p25)296 Kron TReddig M Der Zwang zur Moral und die Dimension moralischer Autonomie beiDurkheim Wiesbaden 2003 p180

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Bauman considera que o abrigo dado pela sociedade pode ajudar a encontrar a

libertaccedilatildeo nesta dependecircncia referindo-se a Durkheim297 Como jaacute foi esclarecido antes

a autonomia consiste para se autoconceber sempre de forma relativa pois o ser singular

nunca poderaacute estar consumadamente livre do seu contexto histoacuterico e social A

autonomia neste ponto vista soacute pode ser adquirida em toda a sua completude no quadro

do contexto social numa certa forma de ldquosubmissatildeordquo e ao abrigo da sociedade Como

resultado dos processos de liquefaccedilatildeo e das consequentes individuaccedilotildees privatizaccedilotildees e

fragmentaccedilotildees o ser humano separou-se da sociedade constata Bauman298 O ser

singular conquistou todas as liberdades concebiacuteveis ndash no entanto a tarefa de se libertar

foi cumprida somente porque ocorrera no contexto do grande todo social299 A partir

disto formou-se um abismo entre a individualidade como destino e a individualidade

praacutetica e real como autoafirmaccedilatildeo300 Bauman prossegue declarando que a capacidade

de autoafirmaccedilatildeo dos seres humanos individualizados raramente eacute suficiente para uma

autoconstituiccedilatildeo o que ao mesmo tempo implica a liberdade ilimitada a par com uma

ldquoimpotecircnciardquo do ser singular perante ela301 Passou o tempo em que a esfera do puacuteblico

se submetia agrave do privado O poder agora publicamente exposto e a liberdade

condicionada do indiviacuteduo ameaccedilam com a presente dominaccedilatildeo do privado sobre o

puacuteblico a impotecircncia praacutetica da liberdade que se alcanccedilou Apesar de o poder puacuteblico

ter perdido muito das suas qualidades negativas tambeacutem desapareceram dele as suas

ldquoforccedilas criadoras positivasrdquo302 Assim segundo Bauman o ldquogrande abismo entre o

direito agrave autodeterminaccedilatildeo e a possibilidade de controlar as condiccedilotildees sociais que

permitem ou impedem essa autodeterminaccedilatildeordquo representa a ldquoprincipal contradiccedilatildeo da

Modernidade liacutequidardquo303 Esta ambivalecircncia da autonomia passou como muitas outras

coisas da esfera puacuteblica para a esfera privada e deve ser digerida individualmente ndash

todavia assinala Bauman os indiviacuteduos natildeo estatildeo ainda agrave altura desta tarefa304

there is a wide and growing gap between the condition of individuals de jure and their

chances to become individuals de facto ndash that is to gain control over their fate and make

297 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p29298Neste contexto Bauman tambeacutem se refere agrave ldquouacutenica formardquo remanescente de comunitarizaccedilatildeo aseparaccedilatildeo conjunta daquilo que eacute estranho as inquietaccedilotildees e medos comuns ou o oacutedio compartilhado(Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p49)299 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p32300 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p46301 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p46302 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p65303Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p50304 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p50

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the choices they truly desire305

O sujeito da Modernidade liacutequida dispotildee apenas de uma autonomia de jure

Como natildeo possui ldquorecursos suficientesrdquo para se autoafirmar a autonomia de facto

permanece por atingir Bauman classifica a autonomia individual nos tempos da

Modernidade liacutequida como ambivalente Esta ambivalecircncia alimenta-se da diversidade

de opccedilotildees oferecidas pela Modernidade liacutequida com o incremento excessivo de

possibilidades tambeacutem crescem as possibilidades de decisatildeo a clareza torna-se

obsolescente e os pontos de referecircncia fixos ndash os paracircmetros que poderiam avaliar uma

decisatildeo como ldquoboardquo ou ldquocertardquo escasseiam A consciecircncia de que se poderia ter decidido

e escolhido de um modo diferente torna-se mais aguda e faz com que se concretize o

perigo de fragmentaccedilatildeo306 A identificaccedilatildeo de si mesmo agora uma tarefa individual

abarca efeitos colaterais disruptivos permanecendo contudo inevitaacutevel pois o

incremento na liberdade natildeo a isenta da agonia da escolha e da responsabilidade307 O

sujeito libertado da Modernidade liacutequida enfrenta por um lado um enorme incremento

de autonomia atraveacutes do ganho de liberdade de escolha individual mas por outro lado

o mesmo sujeito encontra-se exposto agrave inescapaacutevel compulsatildeo dos mecanismos de

volatilizaccedilatildeo social A estes processos o perder das certezas tradicionais e a emergecircncia

do medo e da desorientaccedilatildeo reagiu-se procurando incansaacutevel e coercivamente o

consumo e o prazer308 Na busca de um novo sentido num mundo em que nada eacute mais

predeterminado o mercado do consumo eacute o novo ldquomercado de significadordquo Face agrave

sobrecarga do mundo desregulamentado os indiviacuteduos entregam-se ao mercado do

consumo como poder heteroacutenomo que mina permanentemente o exerciacutecio da autonomia

e impede os seres humanos de controlarem as suas proacuteprias vidas309 A liberdade reduz-

se por conseguinte agrave liberdade de consumir os indiviacuteduos aparentemente libertados

estatildeo sujeitos agraves restriccedilotildees do consumo e do mercado Relativamente a tal Bauman

escreve

the mobility and the flexibility of identification which characterize the lsquoshopping aroundrsquo

type of life are not so much vehicles of emancipation as the instruments of the

redistribution of freedoms They are for that reason mixed blessings ndash enticing and desired

as much as repelling and feared and arousing most contradictory sentiments They are

305 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p39306 Junge M Ambivalente Autonomie Muumlnster 2004 p143307 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p185308 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p186309 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p44

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highly ambivalent values which tend to generate incoherent and quasi-neurotic

reactions310

O leque de possibilidades criado pela liquefaccedilatildeo dos viacutenculos tradicionais eacute

assim integrado diretamente em mecanismos de mercado e deste modo novamente

empregue por um poder estranho311 Perante a autonomia ambivalente do sujeito da

Modernidade liacutequida Bauman sublinha o papel da teoria criacutetica para a real e ateacute entatildeo

inatingida libertaccedilatildeo do indiviacuteduo312 Como jaacute foi mencionado Bauman concebe o

caminho para a libertaccedilatildeo do homem mediante a imagem de uma ldquoponte sobre o abismo

entre a realidade do indiviacuteduo de jure e as perspetivas para uma individualidade de

factordquo313 o que pode ser alcanccedilado pela ressuscitaccedilatildeo da existecircncia enquanto cidadatildeo

Mostrar este abismo e revelar como se constroacutei sobre ele uma ponte que garanta ldquoa

reapropriaccedilatildeo coletiva de um projeto privatizado e utoacutepico de lsquolife-politicsrsquo

individualizadasrdquo314 constitui para Bauman a tarefa da teoria criacutetica Atraveacutes da

demissatildeo da poliacutetica como instrumento regulador controlador e de exerciacutecio de poder

os problemas resultantes das tentativas de desenvolver indiviacuteduos de facto cresceram

de um modo geral315

If the old objective of critical theory ndash human emancipation ndash means anything today it

means to reconnect the two edges of the abyss which has opened between the reality of the

individual de jure and the prospects of the individual de facto And individuals who

relearned forgotten citizen skills and reappropriated lost citizen tools are the only builders

up to the task of this particular bridge building316

310 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p90311 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p45312 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 pp50 248313 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p54314 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p65315 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 pp53 64316 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p41bdquoThe need in thinking is what makes us think said Adorno His Negative Dialectics that long andtortuous exploration of the ways of being human in a world inhospitable to humanity ends with thisbiting yet ultimately empty phrase after hundreds of pages nothing has been explained no mysterycracked no reassurance given The secret of being human remains as impenetrable as it had been at thebeginning of the journey Thinking makes us human but it is being human that makes us think Thinkingcannot be explained but it needs no explanation Thinking needs no justification but it would not bejustified even if one tried This predicament is Adorno would tell us again and again neither a sign of thethoughtrsquos weakness nor the badge of the thinking personrsquos shame If anything the opposite is true UnderAdornorsquos pen the grim necessity turns into a privilege The less a thought can be explained in termsfamiliar and making sense to the men and women immersed in their daily pursuit of survival the nearer itcomes to the standards of humanity the less it can be justified in terms of tangible gains and uses or theprice-tag attached to it in the superstore or at stock-exchange the higher is its humanizing worth It is theactive search for market value and the urge for immediate consumption that threaten the genuine valueof thought lsquoNo thought is immunersquo writes Adorno against communication and to utter it in the wrongplace and in wrong agreement is enough to undermine its truth hellip For the intellectual inviolableisolation is now the only way of showing some measure of solidarityhellip The detached observer is as

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much entangled as the active participant the only advantage of the former is insight into hisentanglement and the infinitesimal freedom that lies in knowledge as such It will become clear that theinsight is the beginning of freedom once we remember that lsquoto a subject that acts naiumlvely hellip its ownconditioning is nontransparentrsquo and that the non-transparency of conditioning is itself the warrant forperpetual naiumlvety Just as the thought needs nothing but itself to self-perpetuate so the naiumlvety is self-sufficient as long as it is not disturbed by insight it will keep its own conditioning intact lsquoNotdisturbedrsquo indeed the entry of insight is hardly ever welcomed by those who have grown used to livingwithout it as the sweet prospect of liberation The innocence of naiumlvety makes even the most turbulentand treacherous condition look familiar and therefore secure and any insight into its precariousscaffolding is the portent of non-confidence doubt and insecurity which few people would greet withjoyful anticipation It seems that for Adorno that widespread resentment to insight is for the betterthough it does not augur an easy ride The unfreedom of the naiumlve is the freedom of the thinking person Itmakes the lsquoinviolable isolationrsquo that much easierldquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000p42

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24 | O pensamento filosoacutefico-social de Hartmut Rosa o conceito de

aceleraccedilatildeo

A quem perguntar pelo movens da tiacutepica aceleraccedilatildeo da Modernidade seraacute chamado aatenccedilatildeo para o mecanismo do acoplamento por reaccedilatildeo que o socioacutelogo americano RobertMerton apoiando-se numa passagem conhecida do Novo Testamento propocircs que seformulasse como ldquoefeito Mateusrdquo Nas palavras de Jesus ndash ldquo(hellip) a quem tem mais seraacute dadoe teraacute em grande quantidade Mas a quem natildeo tem ateacute o que tem lhe seraacute tiradordquo (Mateus2529) ndash eacute antecipada de uma maneira intuitiva a loacutegica do campo de atividade doacoplamento por reaccedilatildeo numa maneira auto-amplificada Efeitos deste tipo imprimem nastiacutepicas modernizaccedilotildees a forma do circulus virtuosus [hellip] Podem observar-se processosanaacutelogos no campo de accedilatildeo dos acoplamentos por reaccedilatildeo positivas normalmentedenominado ldquoeconomiardquo Tambeacutem nele se ativou a partir dos seacuteculos XIV e XV um circulusvirtuosus poderoso A este se deve que da uniatildeo do creacutedito ao talento ndash este uacuteltimoentendido num sentido moderno ndash surgissem grandes fortunas e que a partir de modestoscapitais iniciais crescessem empresas de alcance mundial Certamente tambeacutem nesta partedo mundo tal como na China claacutessica a dinacircmica autopotenciadora da arte econoacutemica dadireccedilatildeo de empresas teria estagnado num niacutevel de uma economia manufatureiradesenvolvida se natildeo tivesse no virar do seacuteculo XVII para o XVIII ligado com uma dimensatildeoimpulsionado adicional de processos autopotenciadores Estamos habituados a designar estaesfera com nomes sumaacuterios como ldquoconstruccedilatildeo de maacutequinasrdquo ou ldquoengenhariardquo e quem sequiser manter neste assunto irrefletidamente pode chamar-lhe apenas ldquotecnologiardquo Aestreita alianccedila entre o segundo e o terceiro circulus virtuosus isto eacute entre a economiaimpelida pelos juros e a construccedilatildeo de maacutequinas impelida pela inovaccedilatildeo resultou nomonstro dinacircmico que devido a uma preguiccedila de espiacuterito praticada desde o seacuteculo XIX aindase designa com o termo ldquocapitalismordquo - embora se se tivesse tratado de nominalizaccedilotildeesverdadeiras deveria ter-se chamado desde o princiacutepio ldquocreditismordquo ou ldquointervencionismordquoSchumpeter referiu este monstro que se gera a si mesmo ao escrever em 1912 uma fraseaparentemente inofensiva mas na verdade abismal ldquoO desenvolvimento gera sempre maisdesenvolvimento

Peter Sloterdijk O que aconteceu no seacutec XX

Prevecirc-se haacute muito tempo que a linha da frente das futuras lutas culturais nos Estadosindustrializados ocidentais se estenderaacute entre os aceleradores do capitalismo digital e os seusdesaceleradores Natildeo eacute necessaacuterio ser-se profeta para ver que os aceleradores estatildeofavorecidos Eles aliam-se agrave dinacircmica tecnoloacutegica e aos princiacutepios baacutesicos da vida econoacutemicao Homo technicus e o Homo oeconomicus mantecircm-se predominantes

Ruumldiger Safranski Tempo

O ponto de partida das reflexotildees de Hartmut Rosa consiste na experiecircncia do

tempo na Modernidade Segundo Rosa a aceleraccedilatildeo enquanto tal natildeo traduz

propriamente algo de novo tal realidade poderaacute ser apreciada como uma parte

constituinte das sociedades modernas317 Com efeito Rosa pretende debruccedilar-se sobre

aquilo que eacute essencialmente novo na modernidade tardia a saber ldquoa sensaccedilatildeo ou

317 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p39

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melhor a convicccedilatildeo (hellip) de que foi o proacuteprio tempo que se desfezrdquo318 Segundo Rosa eacute

distintivo da Modernidade que as estruturas temporais se alterem e que tal tenha

consequecircncias de longo alcance no acircmbito de todo o ldquoprojeto da Modernidaderdquo e do

seu objetivo central de configuraccedilatildeo de uma vida autoacutenoma Uma carateriacutestica

determinante da experiecircncia baacutesica da modernidade tardia consiste no facto de diversas

realidades se encontrarem sob efeito da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo o que por

conseguinte conduz a que as experiecircncias do passado e as experiecircncias do presente jaacute

natildeo sejam indicadores fiaacuteveis de um futuro que assim se torna cada vez mais

imprevisiacutevel319 Segundo Rosa torna-se como que impercetiacutevel devido aos elevados

niacuteveis de aceleraccedilatildeo e de mudanccedila o delineamento de uma direccedilatildeo de um movimento

orientado320 Aleacutem disso a experiecircncia contraditoacuteria do tempo moderno encontra

expressatildeo na vaga perceccedilatildeo de que o tempo se estaacute a tornar cada vez mais escasso

apesar de nos encontrarmos continuamente a desenvolver cada vez mais teacutecnicas de o

economizar321

Segundo Rosa as sociedades modernas necessitam de mudanccedila crescimento

aceleraccedilatildeo ldquoincrementordquo322 (Steigerung) jaacute que existem apenas dentro de um certo

dinamismo323 De acordo com o filoacutesofo tais sociedades soacute se podem estabilizar

dinamicamente sofrendo estruturalmente um ldquoincrementordquo (Steigerung) contiacutenuo por

meio de aceleraccedilatildeo do crescimento e de intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo324 Tal situaccedilatildeo

318 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p39319 Segundo Koselleck ldquoO moderno eacute por outro lado a mudanccedila que cria uma nova experiecircncia dotempo modificando tudo muito mais rapidamente do que ateacute entatildeo teria sido vivido Atraveacutes de intervalosde tempo mais curtos entra no quotidiano dos afetados uma componente de estranheza natildeo dedutiacutevel dequalquer anterior vivecircncia isto distingue a experiecircncia da aceleraccedilatildeosatildeo articulados ritmos eandamentos de tempo que jaacute natildeo podem ser derivados de tempo natural ou ordem geracionalrdquo KoselleckR Fortschritt und Beschleunigung Zur Utopie der Aufklaumlrung In Der Traum der Vernunft Vom Elendder Aufklaumlrung Darmstadt Neuwied 1985 p78320 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p40321Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p43322 Steigerung ldquoIncremento de quantidaderdquo323Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 pp4471324 ldquoNo meu livro sobre a aceleraccedilatildeo tentei mostrar que as tendecircncias das mudanccedilas identificadas ecaracterizadas se reuacutenem sistematicamente e sem contestaccedilatildeo sob um uacutenico conceito o da aceleraccedilatildeosocial sendo que o acircmago da Modernidade ou da ldquomodernizaccedilatildeordquo pode consistir num processoprolongado de dinamizaccedilatildeo (ou de ldquomovimentaccedilatildeo cada vez mais velozrdquo (ldquoschneller-in-Bewegung-Setzensrdquo) das relaccedilotildees materiais sociais e mentais (geistig) De importacircncia crucial no entanto eacute que aloacutegica intriacutenseca da dinamizaccedilatildeo ndash diferente da foacutermula proposta pelo projeto da Modernidade - se tornouela proacutepria uma compulsatildeo estrutural As sociedades modernas satildeo caracterizadas por soacute ser capazes deestabilizar e reproduzir as suas partes integrantes e a sua estrutura social de forma dinacircmica ganhamestabilidade no e atraveacutes do movimento e este pode ser mais precisamente encarado como um

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produz natildeo apenas uma tendecircncia galopante temporal espacial tecnoloacutegica e

econoacutemica mas tambeacutem conduz a que a energia cineacutetica325 e ou a ldquoenergia de

transformaccedilatildeordquo da sociedade se mantenha a um niacutevel muito alto326 Natildeo obstante a

aceleraccedilatildeo e o ldquoincrementordquo tornam-se problemaacuteticos quando atingem um ritmo cujos

efeitos satildeo de natureza dessincroacutenica Se houver aceleraccedilatildeo dentro das partes

integrantes da sociedade os correspondentes incrementos de ritmo tambeacutem deveratildeo ser

aplicados noutras aacutereas ndash em caso contraacuterio ocorreraacute uma dessincronizaccedilatildeo deste

modo os processos os sistemas ou os indiviacuteduos natildeo acompanham este passo

acelerado327 Eacute precisamente neste limiar do arrebatamento da capacidade de adaptaccedilatildeo

pelas taxas de aceleraccedilatildeo e incremento da mobilizaccedilatildeo que Rosa encontra a rutura no

desenvolvimento da Modernidade entre a Modernidade claacutessica e a tardia328Tambeacutem

outros autores entre os quais Zygmunt Bauman reconhecem esta mudanccedila social na

Modernidade que poderaacute promover segundo Keupp uma desconstruccedilatildeo do tipo ideal

(Idealtyp) positivo do ser humano autoacutenomo e moderno e do ambiente onde vive329

Rosa procura o cerne destes fenoacutemenos da Modernidade tardia encontrando-os na roda

da aceleraccedilatildeo desta era na velocidade que o indiviacuteduo e os Estados-naccedilatildeo jaacute quase natildeo

conseguem acompanhar330 A conjetura de Rosa sobre a rutura epocal postulada dentro

ldquoincrementordquo (Steigerungrdquo) De um ponto de vista estrutural uma sociedade pode chamar-se ldquomodernardquose (e apenas) se deixar estabilizar de forma dinacircmica se ela depende portanto sistematicamente docrescimento do intensificccedilatildeo da inovaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo para manter e reproduzir a sua estruturaCompreende-se esta triacuteade constituiacuteda pela aceleraccedilatildeo pelo crescimento e pela intensificaccedilatildeo dainovaccedilatildeo como um processo de dinamizaccedilatildeo uacutenico que por sua vez se traduz em ldquoincrementordquo (dequantidade) por unidade de tempo Esta definiccedilatildeo de aceleraccedilatildeo eacute a base da minha teoria da aceleraccedilatildeordquo(Rosa H Ressonanz Berlin 2016 pp673-674)325 Segundo Peter Sloterdijk o ldquoprojeto da Modernidaderdquo poderia fundar-se numa ldquoutopia cineacuteticardquo cujoconceito baacutesico eacute o ldquoprogressordquo diz respeito agrave extensatildeo e dissoluccedilatildeo do movimento humano (cfSloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002)326 ldquoExiste a crenccedila de que a maneira como o sujeito moderno experiencia o mundo e se movimenta neleeacute ditada essencialmente pela loacutegica de ldquoincrementordquo da sociedade moderna A caracteriacutestica destasociedade eacute o facto de que se deixa apenas estabilizar de forma dinacircmica o que significa que ela natildeo soacutedepende (em situaccedilotildees especiais) contingente mas tambeacutem estrutural e prolongadamente do crescimentoda intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo para preservar e reproduzir as suas condiccedilotildees estruturaisIsto leva a uma dinacircmica perpeacutetua (e portanto ao mesmo tempo uma des-ontologizaccedilatildeo) das relaccedilotildeesmodernas com o mundo a relaccedilatildeo do sujeito moderno com o mundo das coisas o mundo social e consigomesmo eacute determinado por o facto que estes munos encontram se numa mudanccedila constante e numaaceleraccedilatildeo semore mais veloz O sistema econoacutemico dominante da Modernidade eacute sem qualquer duacutevidade importacircncia elementar para as forccedilas de dinamizaccedilatildeo e intensificaccedilatildeo que penetram as formas e esferasdos relacionamentos modernos s com o mundo Natildeo soacute Karl Marx mas tambeacutem o seu antiacutepodasocioloacutegico Max Weber chamou a atenccedilatildeo para este facto helliprdquo (Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 pp13-14)327 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p44328 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p44329 Keupp H Identitaumltskonstruktionen Reinbeck 2006 p 17330Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p48 Rosa HStrecker D Streckmann A Soziologische Theorien Konstanz 2007 p221

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de uma construccedilatildeo teoricamente fundamentada empiricamente compatiacutevel e

diacronicamente diferenciada dita ldquoque a aceleraccedilatildeo social inerente agrave Modernidade

supera na Modernidade tardia um ponto criacutetico aleacutem do qual a reivindicaccedilatildeo por

sincronizaccedilatildeo e integraccedilatildeo sociais jaacute natildeo se manteacutemrdquo331

Rosa define a aceleraccedilatildeo tal como modificada pela fiacutesica newtoniana como

ldquoum incremento de quantidade por unidade de tempordquo332 ou noutras palavras como a

ldquoreduccedilatildeo do quantum de tempo por quantum fixo de quantidaderdquo333 Para Rosa o termo

ldquoquantidaderdquo apresenta-se usado numa infinidade de aacutereas e processos diferentes por

exemplo na distacircncia percorrida no nuacutemero de caracteres comunicados nos bens

produzidos e tambeacutem na troca de parceiros no nuacutemero de locais de trabalho e nos

ldquoepisoacutedios da accedilatildeo por unidade de tempordquo334 Quanto mais se comunicar produzir ou

viver por unidade de tempo tanto maior seraacute por consequecircncia a aceleraccedilatildeo335

Segundo Rosa a aceleraccedilatildeo social divide-se por sua vez em aacutereas analiticamente

independentes em dimensotildees que na sua interaccedilatildeo justificam a progressiva

dinamizaccedilatildeo da Modernidade ldquoA forma mais oacutebvia e importante da aceleraccedilatildeo

modernardquo eacute a dimensatildeo da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica que visa a aceleraccedilatildeo de processos

em vista de fins336

A forma mais visiacutevel e consequente de aceleraccedilatildeo moderna consiste na

aceleraccedilatildeo teacutecnica intencional e sobretudo na aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica (ie mecacircnica)

dos processos com vista a fins Paradigmaacuteticos satildeo entatildeo os processos do transporte

da comunicaccedilatildeo e da produccedilatildeo (de bens e serviccedilos) Este tipo de aceleraccedilatildeo eacute a mais

faacutecil de medir e de demonstrar A histoacuteria da aceleraccedilatildeo da velocidade do movimento ndash

desde a sociedade preacute-moderna e preacute-industrial ateacute ao presente portanto desde a

jornada a peacute depois a cavalo a barco a vapor a comboio a automoacutevel e finalmente de

aviatildeo e ateacute agrave nave espacial ndash eacute a todos familiar e estaacute bem documentada337 sendo jaacute

331Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p49332 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115333 Rosa H Dynamisierung und Erstarrung in der modernen Gesellschaft Berlin 2010 p285334 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115335Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115336 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p11337 Sobre a histoacuteria da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica consultar Virilio P Geschwindigkeit und Politik Berlin1980 Virilio P Military Space In Derian J D (ed) The Virilio Reader Oxford 1998

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tratada por Virilio Contudo Rosa critica a abordagem de Virilio pelo facto de esta

conceber a aceleraccedilatildeo como uma aceleraccedilatildeo de pendor predominantemente

tecnoloacutegico338 natildeo considerando outros aspetos analiticamente independentes tais como

o da ldquoaceleraccedilatildeo da mudanccedila socialrdquo e da ldquoaceleraccedilatildeo do ritmo individual de vidardquo para

aleacutem de natildeo explorar suficientemente a base econoacutemica (capitalista) da temaacutetica da

aceleraccedilatildeo339

O sistema da economia capitalista une a aceleraccedilatildeo e o incremento quantitativo

(ou a aceleraccedilatildeo ao serviccedilo do ldquoincrementordquo) e combina-os segundo Rosa numa loacutegica

de accedilatildeo conjunta340 Ao dissolver o viacutenculo claacutessico e ldquonaturalrdquo entre a produccedilatildeo e a

satisfaccedilatildeo de necessidades (ou da procura) reconfigurando a economia numa loacutegica de

utilizaccedilatildeo de capital ou entatildeo na produccedilatildeo de mais-valias ndash isto eacute ao libertar a

produccedilatildeo da procura (tradicionalmente determinada) ndash eacute colocada em movimento uma

dinacircmica que supera todas as barreiras e obstaacuteculos de uma economia focando a

satisfaccedilatildeo de necessidades (ou da procura) Esta dinacircmica faz com que o aumento de

produccedilatildeo e de produtividade bem como a demanda de vantagens e eficiecircncia temporais

se tornem princiacutepios imperativos inevitaacuteveis de uma produccedilatildeo autonomizada que fabrica

ldquonecessidadesrdquo respetivas em simultacircneo341 O conceito de tempo utilizado na sociedade

moderna eacute segundo Rosa formulado e moldado decisivamente pela ldquocoisificaccedilatildeordquo do

tempo (caracterizada pelo processo de produccedilatildeo capitalista) isto eacute pela sua

transformaccedilatildeo num bem racionaacutevel e escasso no que concerne agrave sua eficiecircncia o que

338 Como Virilio tambeacutem Maurizio Ferraris vecirc uma conexatildeo entre a guerra e a tecnologizaccedilatildeomobilizada moderna na aacuterea das meios de comunicaccedilatildeo ldquoPara realizar a mobilizaccedilatildeo total natildeo eacutenecessaacuterio (como ateacute eacute tecnicamente possiacutevel) dispor de apps que digam onde estaacutes basta simplesmente acombinaccedilatildeo de um sistema de trabalhos flexiacuteveis com um aparato de responsabilizaccedilatildeo que te alcanccedila emtoda a parte atribuindo-te as tarefas E de um sistema de obrigaccedilotildees que se tornam perentoacuterias apenas pelofacto de serem tecnicamente possiacuteveis O imperativo teacutecnico vira assim ao contraacuterio o moral ldquose podesdevesrdquo A radicalizaccedilatildeo militar dos tempos do trabalho (em particular a solicitaccedilatildeo de disponibilidade aqualquer hora que faz desaparecer o caraacuteter proacuteprio da vida civil) pode ser pensada somente agrave luz danova responsabilidade da chamada Estamos todos em movimento seguimos todos as ordens natildeo haacutedistinccedilatildeo entre vida privada e vida puacuteblica entre vida civil e vida militar Aquilo que queria sugerir eacute que(geralmente) natildeo estamos em guerra mas estamos militarizados e que isto eacute o caraacuteter originalintroduzido pela chamadardquo Ferraris M Mobilizaccedilatildeo Total Trad Alberto Romele Joatildeo RebaldeLisboa 2018 p55339 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p103340 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p257341 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p262

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origina que o tempo seja experienciado como uma entidade linear sem qualidade e

abstrata342

Segundo Rosa a economia capitalista baseia-se constitutivamente entre outras

coisas na aquisiccedilatildeo e na exploraccedilatildeo da vantagem temporal343 de tal modo que no

interior deste sistema econoacutemico o dito de Marx de que ldquotoda a economia eacute uma

economia de tempordquo344 se afigura concretizado de uma maneira muito especiacutefica

Seguindo a anaacutelise sugerida por Marx o tempo de trabalho em primeiro lugar constitui

imediatamente um fator de produccedilatildeo decisivo isto eacute um fator de produccedilatildeo de valor

pois transforma tempo em valor atraveacutes do trabalho345 Na medida em que o valor de

troca de mercadorias eacute estipulado pelo tempo de trabalho o tempo que se poupa a

produzir pode ser diretamente traduzido em lucro (relativo) aqueles que satildeo capazes de

produzir em menos tempo ou seja permanecer abaixo do tempo meacutedio de trabalho

necessaacuterio para a produccedilatildeo de uma mercadoria geram lucros potencialmente maiores e

aumentam assim a ldquomais-valiardquo do trabalho (ou seja a proporccedilatildeo entre trabalho

ldquonecessaacuteriordquo ndash e assim trabalho pago ndash e ldquotrabalho mais-valiosordquo tomados no acircmbito

de um dia de trabalho muda em favor do uacuteltimo)346 O incremento da produtividade

diretamente definiacutevel por aumento de produccedilatildeo de output por unidade de tempo (por

hora de trabalho) ou por aceleraccedilatildeo cria vantagens competitivas ndash contudo apenas ateacute

a concorrecircncia copiar o processo e reduzir as horas de trabalho necessaacuterias para um

novo niacutevel iniciando assim uma espiral de aceleraccedilatildeo potencialmente infinita347 A

aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo ndash por exemplo atraveacutes da intensificaccedilatildeo ou ldquocondensaccedilatildeordquo do

trabalho ndash torna-se assim enquanto consequecircncia do princiacutepio da competiccedilatildeo um

elemento fundamental da economia capitalista Tal tambeacutem significa que o

desenvolvimento e a exploraccedilatildeo de vantagens temporais na introduccedilatildeo de novas

tecnologias de produccedilatildeo ou de novos produtos satildeo de importacircncia fundamental na luta

competitiva (de sobrevivecircncia no mercado) do fabrico de ldquolucros-extrardquo ou seja na

possibilidade de vender produtos num curto espaccedilo de tempo a um preccedilo

342Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p263343 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p259344 Marx K Grundrisse der Kritik der politischen Oumlkonomie In Marx KEngels F Werke vol42Berlin 1983 p105 apud Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in derModerne Frankfurt a M 2005 p265345 Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p66346 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p260347Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p66

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significativamente mais alto do que os custos de produccedilatildeo ou de os produzir abaixo do

valor de mercado antes que a concorrecircncia ganhe terreno novamente A aceleraccedilatildeo dos

ldquociclos de inovaccedilatildeordquo e do progresso tecnoloacutegico bem como o encurtamento dos ldquociclos

de vida dos produtosrdquo estatildeo de acordo com Rosa enraizadas no sistema348

Significativo para o viacutenculo entre a economia capitalista e a dinacircmica de

aceleraccedilatildeo da Modernidade eacute a circunstacircncia de que a aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo resultante

da economia do tempo capitalista exige uma aceleraccedilatildeo simultacircnea da distribuiccedilatildeo (pelo

menos se a possibilidade de abrir novos mercados estaacute esgotada) e do ato de consumo

De facto o ritmo do processo da utilizaccedilatildeo de capital depende decisivamente da

velocidade da sua circulaccedilatildeo isto eacute especialmente do transporte do armazenamento da

distribuiccedilatildeo e venda de bens e da aquisiccedilatildeo de mateacuterias-primas como neste caso natildeo se

cria qualquer valor atrasa-se a concretizaccedilatildeo de mais-valias e o tempo de circulaccedilatildeo

traduz-se de acordo com Marx num ldquotempo de desvalorizaccedilatildeordquo349 ndash a compulsatildeo para

acelerar constitui-se como uma nova premecircncia De particular interesse para a evoluccedilatildeo

da dinacircmica moderna de aceleraccedilatildeo eacute o facto de que do ponto de vista histoacuterico a

aceleraccedilatildeo impulsionada pela loacutegica da utilizaccedilatildeo de capital natildeo comeccedilou no setor da

produccedilatildeo mas no setor da distribuiccedilatildeo ou no da circulaccedilatildeo a partir do seacuteculo XVII o

transporte e a comunicaccedilatildeo aceleraram-se notavelmente muito antes das grandes

inovaccedilotildees tecnoloacutegicas que culminaram na aceleraccedilatildeo dos processos de produccedilatildeo A

principal razatildeo para tal situaccedilatildeo deve-se ao facto de que nos seacuteculos XVI e XVII o

capital se acumulara primeiro nas aacutereas do comeacutercio e nas da circulaccedilatildeo supondo um

aumento na rotatividade dos produtos pois a subsistecircncia e o corporativismo no setor de

produccedilatildeo impediam inicialmente tal desenvolvimento350 A aceleraccedilatildeo do comeacutercio e do

transporte foi portanto historicamente precedida pela aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo que

atingiu um cliacutemax dramaacutetico na Revoluccedilatildeo Industrial351

O incremento da aceleraccedilatildeo de capital e de mercadorias por unidade de tempo

tem como correlativo economicamente irrefutaacutevel um aumento na taxa de consumo por

unidade de tempo correspondente a um aumento na taxa de produccedilatildeo pois eacute somente

no ato de consumo que a mais-valia eacute concretizada A economia capitalista do tempo

348 Garhammer M Wie Europaumler ihre Zeit nutzen Berlin 1999 p79349 Marx K Das Kapital Stuttgart 1957 p458 apud Rosa H Beschleunigung Frankfurt aM 2005p 262 Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p72350Richter G Die lineare Zeit Hamburg 1991 p27351 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p260

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impotildee um aumento na intensidade de consumo correspondente ao processo de

produccedilatildeo e segundo Rosa pode ldquodesmascararrdquo o aumento do ritmo de vida definido

por um aumento do nuacutemero de episoacutedios de accedilatildeo ou de experiecircncia por unidade de

tempo como uma ldquonecessidade econoacutemicardquo352 Eacute significativo do ponto de vista

econoacutemico que um dos problemas de base de uma economia capitalista natildeo seja apenas

um problema de distribuiccedilatildeo mas antes da manutenccedilatildeo da circulaccedilatildeo acelerada e

dinamizada353 Naturalmente esta necessidade sisteacutemica natildeo pode explicar a

intensificaccedilatildeo correspondente do ritmo de vida na esfera do consumo ningueacutem eacute

forccedilado por razotildees econoacutemicas a aumentar o ldquonuacutemero de accedilotildees de satisfaccedilatildeo de

necessidades por unidade de tempordquo354 e com isto a ldquoaveriguar qual o valor do tempo

proacuteprio nos escalotildees do incrementordquo Que o sujeito na sociedade moderna tenda a

valorizar assim o tempo natildeo eacute nem antropologicamente predeterminado como Linder

assume355 nem tatildeo simplesmente proveniente da necessidade econoacutemica como Scharf

sugere356 torna-se necessaacuteria uma outra explicaccedilatildeo segundo Rosa acerca de uma

reconstruccedilatildeo dos fundamentos culturais das orientaccedilotildees das accedilotildees individuais

caracteriacutesticas da Modernidade

No curso da industrializaccedilatildeo a compulsatildeo de usar os recursos do tempo ndash

resultantes de uma economia capitalista do tempo ndash teve um impacto maciccedilo e

generalizado na forma e na substacircncia das praacuteticas perceccedilotildees e orientaccedilotildees do tempo

predominantes entre a populaccedilatildeo trabalhadora Essa mudanccedila foi acompanhada por

duras lutas sociais e muitas das vezes levadas a cabo por todos os meios de pressatildeo

externa357

O tempo usado no trabalho assalariado passou a medir-se pelo trabalhar do

reloacutegio mecacircnico e desligou-se dos ritmos da natureza estruturais da vida social dos

anteriores seacuteculos senatildeo dos mileacutenios anteriores Os dias as estaccedilotildees ou as condiccedilotildees

climaacuteticas jaacute natildeo desempenham praticamente nenhum papel na produccedilatildeo industrial De

uma maneira particularmente draacutestica esta dissociaccedilatildeo manifesta-se no trabalho por

turnos Eacute sublinha Marx uma consequecircncia natural do facto de o tempo linear no

352 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p262353 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p263354 Scharf G Zeit und Kapitalismus Frankfurt aM 1988 p157355 Linder S The Harried Leisure Class New York 1970 p77356 Scharf G Zeit und Kapitalismus Frankfurt aM 1988 p168357Thompson E Zeit Arbeitsdisziplin und Industriekapitalismus Frankfurt aM 1980

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acircmbito da economia capitalista moderna permanecer sem qualidade progredindo dia e

noite no veratildeo e no inverno de forma linear e na mesma proporccedilatildeo ndash segundo tal

conceccedilatildeo poder-se-ia afirmar que uma hora durante qual as maacutequinas estatildeo paradas e

natildeo se trabalha nem se transporta nem se vende equivale a ldquouma hora economicamente

perdidardquo358 O processo ateacute hoje em progressatildeo da dissoluccedilatildeo dos primeiros ritmos

naturais e mais tarde dos novos ritmos sociais coletivos adquiridos tanto de produccedilatildeo

como de circulaccedilatildeo e consumo em prol de um tempo simultacircneo sem qualidade e

indiscriminado possui tambeacutem um cerne econoacutemico segundo Hartmut Rosa359

Ao mesmo tempo com a industrializaccedilatildeo desenvolveu-se uma separaccedilatildeo

temporal e espacial estrita e quase completa entre trabalho e tempo livre com largas

consequecircncias na experiecircncia e no planeamento do tempo por parte do indiviacuteduo e nas

estruturas temporais da sociedade moderna Foi somente atraveacutes desta separaccedilatildeo que

emergiram as instituiccedilotildees caracteriacutesticas da Modernidade de ldquotempo livrerdquo e das

ldquohoras de trabalhordquo que estruturam fundamentalmente os modos de viver do sujeito e

tambeacutem as formas com as quais este tenta conciliar as horas do quotidiano com o tempo

da vida e o tempo da histoacuteria A separaccedilatildeo espacial e temporal entre trabalho e a vida

privada produziu consequecircncias poliacuteticas que se manifestam na Modernidade

especialmente na demarcaccedilatildeo especiacutefica entre o puacuteblico e o privado360 Finalmente o

tempo de trabalho separou-se do seu objeto ou seja foi estipulado de acordo com uma

duraccedilatildeo abstrata de calendaacuterio e reloacutegio natildeo dependendo mais de tarefas ou eventos

(que estruturam ou estruturavam as atividades de sociedades tradicionais

particularmente as agraacuterias) A partir deste momento o iniacutecio e o fim do horaacuterio de

trabalho passaram a ser marcados por uma sirene de faacutebrica por um reloacutegio de ponto ou

pelo computador menos pelos requisitos relativos ao conteuacutedo das tarefas do trabalho

O ldquotempo de eventordquo tradicional que estipulava a duraccedilatildeo e o ritmo das atividades e dos

eventos atraveacutes do seu caraacuteter natural e histoacuterico ndash ou seja atraveacutes do seu ldquotempo

proacutepriordquo361 do oacutecio sujeito a flutuaccedilotildees ndash foi substituiacutedo por uma rede de tempo linear e

abstrata

por meio da qual o quadro temporal de atividades e eventos eacute determinado

358 Marx K Das Kapital Stuttgart 1957 p271 apud Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungender Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p263359 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p204360 Cf Giddens A Time and social organisation Stanford 1987 p151361 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995 p46

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precedentemente estabelece preacute-requisitos de previsibilidade de manipulaccedilatildeo de tempo e

consequentemente de aceleraccedilatildeo de processos sociais Com ela o foco de atenccedilatildeo

temporal mudou-se das tarefas ou eventos para uma orientaccedilatildeo de tempo abstrata A era do

capitalismo industrial que eacute marcada por um lado pela economia do capitalismo e por

outro pela loacutegica tecnoloacutegica e especiacutefica da produccedilatildeo industrial apresenta-se como um

tempo abstrato linear e simultaneamente como as lutas em torno das horas de trabalho

tornam claro polarizado362

Para a interiorizaccedilatildeo do novo conceito de tempo (como uma compulsatildeo

imediata) revelam-se de importante eficaacutecia todas aquelas instituiccedilotildees da sociedade

moderna nas quais as respetivas orientaccedilotildees e praacuteticas satildeo habitualmente exercidas por

exemplo (para aleacutem das faacutebricas e empresas) hospitais prisotildees quarteacuteis jardins de

infacircncia e escolas363 A observaccedilatildeo da rigorosa disciplina do tempo desempenha um

papel preponderante em todas as instituiccedilotildees cujos padrotildees de atividade assentam num

esquema temporal geralmente muito riacutegido e abstrato (poder-se-aacute pensar nos intervalos

de tempo dos horaacuterios das sentenccedilas de prisatildeo etc) delineado como um objetivo

disciplinador central Os reloacutegios representam assim por excelecircncia instrumentos de

vigilacircncia porque quebram os ldquoritmosrdquo e os ldquotempos proacutepriosrdquo364 dos seres humanos

definidos pela natureza ou pelo haacutebito

A disciplina no uso do tempo que se regista no corpo consiste principalmente na

capacidade de orientar as proacuteprias accedilotildees conforme um esquema temporal abstrato isto eacute

consiste em ser pontual em adiar a satisfaccedilatildeo de necessidades (por exemplo as do sono

da fome ou da vontade de ir agrave casa de banho) em prol do que estaacute estipulado no dito

esquema temporal reprimir os impulsos confinar picos de desempenho e fases de

recuperaccedilatildeo a momentos especiacuteficos etc365

Segundo Rosa somente o desenvolvimento de tal disciplina do tempo

juntamente com as revoluccedilotildees tecnoloacutegicas da Modernidade se afiguram capaz de

provocar uma aceleraccedilatildeo (temporal e economicamente eficiente) e um incremento tatildeo

dinacircmicos 366 Tal revela-se especialmente na aacuterea do trabalho

362Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p309363O tempo poderia assim ser um dos instrumentos da sociedade disciplinar analisada por MichelFoucault364Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995365 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p267366 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p269

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O filoacutesofo contrasta pois o conceito de alienaccedilatildeo ndash tomado como uma

patologia da modernidade criada entre outros pela aceleraccedilatildeo ndash com o conceito de

ressonacircncia aqui apresentado como o epiacutetome de uma vida natildeo-alienada367 (Rosa

utiliza aqui o conceito de alienaccedilatildeo natildeo somente no sentido de trabalho mas tambeacutem

no acircmbito de outros contextos da vida na modernidade tardia) Tal como Rahel Jaeggi

em Alienaccedilatildeo - Sobre a actualidade de um problema da filosoacutefico-social (Entfremdung

ndash Zur Aktualitaumlt eines sozialphilosophischen Problems)368 Rosa delineia uma

redefiniccedilatildeo do conceito de alienaccedilatildeo Para Rosa a alienaccedilatildeo eacute uma forma especiacutefica de

relaccedilatildeo com o mundo na qual sujeito e mundo se enfrentam de uma forma indiferente

ou hostil-repulsiva (relaccedilatildeo de natildeo-relaccedilatildeo) A alienaccedilatildeo define assim um estado no

qual o mundo aparece frio riacutegido mudo e que natildeo oferece resposta369 Por contraste a

ressonacircncia eacute um modo de relaccedilatildeo (triacuteade do corpo mente e mundo)370 As experiecircncias

de ressonacircncia poderatildeo ser por exemplo experiecircncias de reconhecimento Natildeo

obstante existem experiecircncias de ressonacircncia que vatildeo aleacutem das relaccedilotildees

intersubjectivas os sujeitos modernos tambeacutem procuram e podem entrar numa relaccedilatildeo

de ressonacircncia na natureza na religiatildeo na arte no trabalho

Entre plantas e jardineiros entre livros e estudiosos entre taacutebuas e carpinteiros massas e

padeiros violinos e violinistas podem surgir verdadeiras relaccedilotildees de resposta no sentido

caracteriacutestico das relaccedilotildees ressonantes (Sennett) De facto qualquer pessoa que jaacute tenha

aprendido ou melhor adquirido uma certa teacutecnica de processamento de material uma

habilidade manual conhece o sentimento especiacutefico que surge quando o material parece

encontrar-se ou responder ao trabalhador quando se estabelece uma relaccedilatildeo entre material

ferramenta e matildeo e esta relaccedilatildeo concorda Sennett pode tambeacutem desenvolver-se entre

homem e maacutequina por exemplo entre condutor e motocicleta e tambeacutem num triacircngulo de

ressonacircncia entre homem maacutequina e o material a ser trabalhado - ou entre homem e texto

por exemplo quando comeccedilamos a compreender uma liacutengua estrangeira [hellip] Segundo o

conceito de ressonacircncia a ideia do material que responde implica sempre a possibilidade e

a ocorrecircncia de resistecircncia de imprevisto e de surpresas A massa a moto mas tambeacutem o

texto que tento escrever todos eles falam com a sua proacutepria voz por vezes revelam-se

materiais resistentes e talvez nunca possam ser completamente controlados calculados e

367 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p147368 Jaeggi R Entfremdung ndash Zur Aktualitaumlt eines sozialphilosophischen Problems Frankfurt am Main2005369 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p316370 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p298

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previstos Se o fizerem a relaccedilatildeo deixa de ser uma relaccedilatildeo ressonante torna-se entatildeo

puramente rotineira371

E mais

a oferta de trabalho no sentido de trabalho assalariado pode transformar a relaccedilatildeo de

ressonacircncia numa relaccedilatildeo alienada A intuiccedilatildeo baacutesica por detraacutes desta suposiccedilatildeo que estaacute

impregnada de tradiccedilatildeo e criacutetica do capitalismo eacute tatildeo simples quanto plausiacutevel ao oferecer

o seu trabalho o trabalhador assalariado eacute obrigado a assumir uma relaccedilatildeo instrumental com

ele com o material e com meios de trabalho processados Aleacutem disso o trabalhador natildeo

experimenta qualquer auto-eficaacutecia proacutepria porque realiza as especificaccedilotildees da faacutebrica (ou

da bolsa de valores) produto e material natildeo lhe respondem a si mas em uacuteltima instacircncia ao

capital que se tornou o objecto do processo de produccedilatildeo Deste ponto de vista o problema

na verdade a patologia do capitalismo acelerado consiste no facto de destruir um terreno de

ressonacircncia central da vida humana com esta coisificaccedilatildeo na area do trabalho372

Rosa defende assim que a esfera de ressonacircncia do trabalho tal como a esfera

de ressonacircncia da famiacutelia deve ser concebida como um oaacutesis de ressonacircncia373

Como jaacute dissemos anteriormente a teoria da ressonacircncia de Rosa foi recebida e

discutida de forma controversa374 Com efeito a derivaccedilatildeo abrangente do conceito de

ressonacircncia a partir de uma variedade de perspetivas e contextos foi alvo de profunda

condenaccedilatildeo por parte de diversos leitores que invocaram por seu turno o facto de o

conceito de ressonacircncia supostamente parecer arbitraacuterio como que carecendo de

precisatildeo e de realidade e em uacuteltima anaacutelise afigurar-se inadequado enquanto conceito

soacutecio-filosoacutefico baacutesico375 tal como Rosa o pretenderia inicialmente sustentar Rosa

inicia a sua definiccedilatildeo de ressonacircncia atraveacutes da elucidaccedilatildeo do significado fiacutesico-musical

da ressonacircncia que o filoacutesofo procurar diferenciar metaforicamente em diferentes

direcccedilotildees A determinaccedilatildeo da ressonacircncia por Rosa eacute assim concebida de tal forma que

lhe seja possiacutevel integrar a antiacutetese absoluta do significado fiacutesico autonomia diferenccedila

e contradiccedilatildeo reflectida devem ser constitutivas nas relaccedilotildees de ressonacircncia Nas

371 Ibid372 Ibid373 Ibid374 Brumlik M Resonanz oder Das Ende der kritischen Theorie In Blaumltter fuumlr deutsche undinternationale Politik Mai 2016 Berlin 2016 p 120ndash123 Peters C-H- Schulz P Resonanzen undDissonanzen Hartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 Wils J-P ResonanzIm interdisziplinaumlren Gespraumlch mit Hartmut Rosa Baden-Baden 2018375 HartmannM Im Resonanzhafen bekommt die Welt ein anderes Gesicht In Frankfurter AllgemeineZeitung 5 April Frankfurt 2016

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leituras de Rosa o conceito de ressonacircncia funciona de acordo com a loacutegica de um

equivalente geral para o qual os conceitos teoacutericos mais heterogeacuteneos podem ser

transferidos A mimese de Adorno376 (53) a aura de Benjamin377 (555) a comunicaccedilatildeo

de Habermas378 (587) a antropologia simeacutetrica de Latour379 (384) a intensidade de

Masumi380 (288) a assimilaccedilatildeo de Simmel381 (561) o carisma de Weber382 (554) entre

outros satildeo todos reformulados em termos de teoria da ressonacircncia Neste sentido Rosa

procura combinar distintos teorias e autores aqui evocados para sustentar a sua teoria da

ressonacircncia

A abrangecircncia quase ilimitada que envolve a definiccedilatildeo de ressonacircncia tal

como Rosa a elabora e que se estende a vaacuterios niacuteveis de anaacutelise e de determinaccedilotildees

funcionais teoacutericas provocara a possibilidade de perspetivaccedilotildees relativas a diversos

equiacutevocos e contradiccedilotildees Na fronteira entre a antropologia e a filosofia social por

exemplo surge a objeccedilatildeo de que Rosa no seu recurso agrave neurologia e agrave pesquisa infantil

define a ressonacircncia como uma relaccedilatildeo global primaacuteria preacute-reflexiva383 todavia e por

outro lado o filoacutesofo acaba por postular a autonomia como uma condiccedilatildeo preacutevia da

ressonacircncia384 Na transiccedilatildeo do niacutevel social para o niacutevel das relaccedilotildees entre objectos

coloca-se a questatildeo de saber em que sentido os objectos podem falar com a sua proacutepria

voz e iniciar relaccedilotildees que integrem a possibilidade de resposta ao humano e que se

estabeleccedilam como efetivamente transformadoras Na interface entre as dimensotildees

descritiva e normativa eacute questionaacutevel se natildeo deveria haver algo como uma ressonacircncia

negativa Rosa nega-o e vota a favor de uma disposiccedilatildeo positiva385 que se revela

incompatiacutevel com a sua reivindicaccedilatildeo de criacutetica agraves relaccedilotildees de ressonacircncia Rosa ignora

pois as contradiccedilotildees do seu conceito O que os indiviacuteduos experimentam ou descrevem

subjectivamente como uma relaccedilatildeo ressonante com o mundo pode aparecer ao niacutevel da

anaacutelise como emoccedilatildeo sentimental relaccedilatildeo de eco puro ou como uma reacccedilatildeo

376 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p53 377 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p555378 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p587379 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p384380 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p288381 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p561382 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p554383 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p110384 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p650385 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p744

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compensatoacuteria Um outro ponto de criacutetica diz respeito ao suposto recurso de Rosa ao

universo intelectual do Romantismo (condenaccedilatildeo essa apontada por Charles Taylor)386

386 Taylor C Resonanz und die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und DissonanzenHartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249-270 Taylor considerarelevante fazer inscrever o conceito de ressonacircncia no Romantismo pois segundo o filoacutesofo eacute nesteperiacuteodo filosoacutefico-cultural que o conceito desenvolvido por Rosa tem a sua origem (Taylor C Resonanzund die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und Dissonanzen Hartmut Rosas kritischeTheorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249) Taylor concorda com Rosa que uma boa vida seriaimpossiacutevel sem relaccedilotildees de ressonacircncia entre o eu e o mundo no entanto Taylor considera difiacutecil que aorigem romacircntica que envolve o conceito de ressonacircncia tal como tratado por Rosa possa pareceraceitaacutevel para muitos leitores modernos pois a perspetiva romacircntica inclui uma metafiacutesica e uma visatildeo danatureza que natildeo se compatibiliza com a visatildeo das ciecircncias naturais modernas (Taylor C Resonanz unddie Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und Dissonanzen Hartmut Rosas kritischeTheorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp253)

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PARTE II

___

Para uma proposta de apreciaccedilatildeo de oacutecio enquanto

conceito eminentemente criacutetico

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Capiacutetulo 1

O oacutecio

Delimitaccedilatildeo de um conceito filosoacutefico

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11 | Primeiros delineamentos

Se a teacutecnica eacute o completo domiacutenio do movimento tudo o que nos resta agora eacute uma funccedilatildeo progressiva travagem

Peter Sloterdijk Exageros selecionados

No ensaio A Sociedade do Cansaccedilo Byun Chul Han387 diagnostica aquilo que

designa convocando o pensamento hegeliano de perda de negatividade no acircmbito da

atual sociedade definida por seu turno agrave luz de um incessante incremento do

desempenho A possibilidade de negaccedilatildeo dialeacutetica que em uacuteltima anaacutelise traduz

movimento dinamismo desenvolvimento afigura-se no contexto da nossa sociedade

atual ndash a sociedade do desempenho ndash suspensa De acordo com Han a sociedade atual

perdera os seus mecanismos de paragem o excesso de positividade ndash e a anulaccedilatildeo da

emergecircncia de quaisquer modos de negatividade ndash conduz a uma situaccedilatildeo que poderia

ser descrita em analogia com um complexo mecacircnico a incessante e muacuteltipla

positividade em contiacutenuo e ininterrupto movimento provoca o sobreaquecimento do

mecanismo e em uacuteltima instacircncia a sua gripagem e consequente inutilizaccedilatildeo O

trabalho e o desempenho constituem pois os imperativos que determinam a sociedade

na modernidade tardia ilustrada por Han como um ser humano que sem

constrangimentos externos e na pretensa consciecircncia da sua liberdade apenas trabalha

trabalha e trabalha natildeo sendo mais capaz de desenvolver uma experiecircncia de oacutecio ou de

imersatildeo contemplativa ndash ateacute ao seu colapso fiacutesico e psicoloacutegico Neste sentido segundo

a perspetivaccedilatildeo de Han a sociedade da modernidade tardia conhece somente ndash como se

tais se constituiacutessem como as suas uacutenicas realidades constitutivas ndash a produtividade

incrementada e o crescimento acelerado permanente

As poliacuteticas neoliberais tecircm destruiacutedo todas as formas de tempo que natildeo estatildeo no caminho

da loacutegica da eficiecircncia e do capital Isto adoece e destroacutei a alma Portanto precisamos de

um outro tipo de tempo o tempo como um presente A aceleraccedilatildeo nomeia a crise do

tempo presente Tudo se torna mais raacutepido sem ser capaz de travar A crise em tempo real

poreacutem eacute que perdemos aqueles tempos que natildeo permitem a aceleraccedilatildeo tempos que

permitem uma experiecircncia de duraccedilatildeo em presenccedila Hoje o tempo de trabalho foi

totalizado para o uacutenico tempo por excelecircncia nessa eacutepoca Eacute o tempo que pode ser

387 Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014

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acelerado e explorado388

Todavia importaria recordar que tudo tinha comeccedilado de forma muito diferente

no berccedilo da nossa civilizaccedilatildeo europeia Tenhamos presente a seguinte passagem de

Eacutetica a Nicoacutemaco de Aristoacuteteles noacutes ocupamos o tempo a trabalhar para podermos

gozar de tempo livre do mesmo modo que fazemos a guerra para poder viver em

paz389 Segundo Josef Pieper esta uacuteltima passagem deveria ser lida como Estamos no

natildeo-oacutecio para ter oacutecio390 pois no grego antigo natildeo existia conceito linguiacutestico que

traduzisse a realidade do trabalho para o cidadatildeo (como sabemos o trabalho enquanto

satisfaccedilatildeo de necessidades fora reservado para contexto do ambiente domeacutestico a casa

o oikos cumprido por escravos e mulheres) Com efeito no iniacutecio da reflexatildeo sobre o

oacutecio na antiguidade grega impunha-se a questatildeo acerca de uma vida boa (e feliz)391 Na

Eacutetica a Nicoacutemaco Aristoacuteteles apresenta as suas consideraccedilotildees sobre o oacutecio (scholeacute) agrave

luz da consideraccedilatildeo de um ideal relativo a um estilo de vida boa conducente agrave

felicidade perfeita (eudaimoniacutea) do ser humano Importaria a este propoacutesito

compreender a derivaccedilatildeo argumentativa de tal afirmaccedilatildeo pois em verdade Aristoacuteteles

integra nas suas posiccedilotildees determinados atributos ou singularidades do oacutecio que ainda

persistem no contexto da modernidade Primeiramente o filoacutesofo assinala

repetidamente que a eudaimonia soacute pode consistir na theoria isto eacute na atividade de

uma natureza teoacuterica ou ldquocontemplativa392 o modo teoacuterico de vida permite ao ser

humano dedicar-se inteiramente agrave reflexatildeo do mundo e aumentar o seu conhecimento a

respeito deste Recorde-se pois que a accedilatildeo praacutetica inclusivamente na sua determinaccedilatildeo

moral e virtuosa (Aristoacuteteles cita como exemplo o serviccedilo em funccedilatildeo do estado e o

serviccedilo militar) apresenta-se subordinada agrave teoria393 Aristoacuteteles justifica a primazia da

teoria com o facto de tal constituir a atividade mais poderosa mais contiacutenua no

tempo e mais agradaacutevel394 Trata-se pois da atividade que natildeo carece de nada

388 Han B-C Die Zeit 13 Juni 2013 Nr 252013 Hamburg 2013389 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b5390 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p49391 Uma visatildeo mais detalhada do antigo ideal de um estilo de vida teoacuterico e das suas implicaccedilotildees ateacute osdias atuais poderaacute ser consultada em Juumlrgasch TKeiling T (ed) Anthropologie der TheorieTuumlbingen 2017392 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a15393 Sobre a hierarquizaccedilatildeo de bios theoretikos e bios praktikos consultar Huber G Bios theoretikosund bios praktikos bei Aristoteles und Platon In Vickers B (ed) Arbeit Muszlige MeditationBetrachtungen zur Vita activa und Vita contemplativa Zuumlrich 1985 pp 21-33394 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a

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basta-se a si proacutepria395 A contemplaccedilatildeo teoacuterica em contraste com a accedilatildeo praacutetica natildeo

persegue nenhum outro propoacutesito que lhe seja externo

Demais esta actividade parece ser a uacutenica que eacute querida por si proacutepria porque dela natildeo se

produz mais nenhuma consequecircncia para aleacutem do proacuteprio olhar contemplativo enquanto a

partir das actividades praacuteticas ainda conseguimos obter um resultado melhor ou pior para

aleacutem da proacutepria acccedilatildeo396

Somente apoacutes a apresentaccedilatildeo de tais reflexotildees sobre a teoria eacute que Aristoacuteteles

introduz o scholeacute enquanto condiccedilatildeo de bem-aventuranccedila O calmo e imperturbaacutevel

scholeacute designa o estado propiciador agrave emergecircncia da atividade contemplativa liberta de

restriccedilotildees de objetos externos o scholeacute eacute em verdade a condiccedilatildeo preacutevia da teoria397

Platatildeo jaacute estabelecera tal conexatildeo anteriormente398 Platatildeo designa no Teeteto os

filoacutesofos como aqueles que natildeo se importam se os outros falam muito ou pouco pois

eles os filoacutesofos cumprem apenas certo399 e que como tal se apresentam como

aqueles homens que foram verdadeiramente criados em liberdade e oacutecio400 A

caracterizaccedilatildeo elitista de Platatildeo acerca do filoacutesofo que debate e discute numa situaccedilatildeo

privilegiada de oacutecio revela-se particularmente aguda ou incisiva tendo em conta o modo

como o estatuto do filoacutesofo se distingue do estatuto das ditas pessoas pragmaticamente

atuantes (como por exemplo os falantes do tribunal) que foram educadas como

servas401 Importaria ainda sublinhar que tanto Aristoacuteteles quanto Platatildeo atribuem ao

oacutecio natildeo apenas uma funccedilatildeo episteacutemica pois em verdade as posiccedilotildees sobre o oacutecio

sustentadas por ambos os filoacutesofos integram a consideraccedilatildeo da possibilidade de

conhecimento do mundo desenvolvida de acordo com a fruiccedilatildeo de uma atividade que

conduz agrave felicidade Segundo Aristoacuteteles eacute o prazer da teoria que intensifica a

atividade libertando forccedilas particularmente produtivas402 Especialmente no acircmbito da

definiccedilatildeo aristoteacutelica de teoria encontramo-nos perante a combinaccedilatildeo de diversos

conceitos que se revelam afins tais como contemplaccedilatildeo felicidade atividade e

395 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1176b6-7396 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b1397 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 19ndash37398 Huber G Bios theoretikos und bios praktikos bei Aristoteles und Platon In Vickers B (ed)Arbeit Muszlige Meditation Betrachtungen zur Vita activa und Vita contemplativa Zuumlrich 1985 pp26ndash30Telo H bdquoThe freedom of θεωρία and σχολή in Platoldquo In Juumlrgasch T Keiling T (ed) Anthropologieder Theorie Tuumlbingen 2017 pp 11ndash27399 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p168400 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p172401 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p168402 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b

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autossuficiecircncia Inclusivamente a relaccedilatildeo entre oacutecio e reclusatildeo ou solidatildeo individuais

que se tornaraacute relevante no contexto cultural moderna jaacute constitui uma condiccedilatildeo

perspetivada por Aristoacuteteles que constata O saacutebio eacute capaz de criar uma situaccedilatildeo

contemplativa sozinho a partir de si proacuteprio e em si proacuteprio e quanto mais saacutebio for

mais facilmente o consegue fazer403

Embora Aristoacuteteles caracterize a atividade teoacuterica de modo enaltecedor em

contraste com trabalho praacutetico natildeo se afigura suficiente compreender de um modo

definitivo os dois conceitos somente agrave luz de uma oposiccedilatildeo ou contraposiccedilatildeo Na visatildeo

de Aristoacuteteles a teoria e a praacutetica encontram-se numa relaccedilatildeo complexa que se

expressa de um modo mais manifesto nas sua teses poliacuteticas numa sociedade em que a

liberdade pessoal se determina como uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a participaccedilatildeo

poliacutetica o privileacutegio final de tal liberdade ndash o oacutecio ndash adquire uma funccedilatildeo poliacutetica

imediata Como Soeffner observa em Aristoacuteteles o oacutecio foi considerado um requisito

para uma accedilatildeo poliacutetica bem-sucedida a esfera do oacutecio conscientemente separada da

praacutetica no tempo e no espaccedilo mas no entanto orientada para esta servira para desenhar

cenaacuterios e estrateacutegias opcionais antes da accedilatildeo404 Esta figura de pensamento apresenta-

se amplamente reconhecida nos tempos modernos a accedilatildeo praacutetica deve ser precedida de

uma reflexatildeo teoacuterica para que seja bem-sucedida Cumpriria a este propoacutesito chamar a

atenccedilatildeo para o notaacutevel facto de tanto na cultura grega como na romana as definiccedilotildees de

oacutecio apresentarem uma certa prioridade e positividade conceptual sobre os seus

opostos405 assim assinala Riedl Trabalho eacute apenas a definiccedilatildeo negativa de oacutecio tanto

em grego como em latim scholē eacute o termo que a ascholia nega Em latim o negotium eacute

o contra-conceito do otium406 Se em latim o par de opostos otiumnegotium toma o

lugar da distinccedilatildeo aristoteacutelica entre teoria e praacutetica tal jaacute parece traduzir

etimologicamente a avaliaccedilatildeo contrastante entre o oacutecio livre e privilegiado e a ndashnas

palavras de Platatildeo ndash laboriosa atividade do servo407 Manfred Fuhrmann esclareceu tal

conexatildeo

As palavras otium e negotium pertencem aos pares de opostos cujo negativo eacute formado

403 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a35404 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p 37405 Fuest L Poetik des Nicht(s)tuns Verweigerungsstrategien in der Literatur seit 1800 Paderborn2008 p18406 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 22407 Burke P The invention of leisure in early modern Europe In Past amp Present 146 (1995) 139

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pelo nec com negatium se designou todas as atividades empreendidas para a

autopreservaccedilatildeo para aumentar a riqueza ou para aumentar o prestiacutegio social Abrangia

assim tudo o que sempre tinha constituiacutedo o conteuacutedo da vida romana Qualquer

ocupaccedilatildeo por outro lado que natildeo atendesse diretamente a um dos objetivos acima

mencionados era o otium Isto incluiacutea em particular o que foi transmitido aos romanos

pelos gregos Estudo e educaccedilatildeo arte ciecircncia e literatura teoria e filosofia408

Eacute significativo que inclusivamente o filoacutelogo claacutessico Fuhrmann no seu

esclarecimento do termo natildeo pudera evitar comeccedilar por invocar o ne-gotium ativo de

modo a ndash e ao contraacuterio da explicaccedilatildeo etimoloacutegica que o mesmo Fuhrmann expusera

anteriormente ndash delimitar o otium como um conceito negativo Repare-se que no

acircmbito de tais explicitaccedilotildees Fuhrmann revela porventura de um modo natildeo intencional

o facto de a prioridade original do otium natildeo se encontrar preservada no atual ou

moderno conceito de oacutecio ndash pois agrave luz deste moderno sentido o oacutecio constitui-se como

um conceito derivado porque negativo do trabalho conceptualizado como digamos

ldquoum estado normalrdquo Apesar das sobreposiccedilotildees entre as tradiccedilotildees grega e romana a

transiccedilatildeo para a cultura latina constitui uma mudanccedila significativa no discurso acerca do

oacutecio409 Mesmo nos tempos preacute-ciceroacutenicos o conceito de oacutecio jaacute havia perdido o

elemento da reflexatildeo teoacuterica e do bem viver que tinha sido central em Aristoacuteteles como

podemos constatar nas observaccedilotildees de Fuhrmann

Para a aristocracia romana cujo propoacutesito na vida era a eficaacutecia poliacutetica o otium

significava a esfera privada Natildeo fazia diferenccedila quais as atividades ou ocupaccedilotildees em que

esta se encontrava envolvida ou se por exemplo Scipio reunira conchas no litoral ou

conversara com os seus amigos sobre as fundaccedilotildees do estado romano ndash natildeo fazia

diferenccedila Aleacutem disso natildeo importava o tempo ou as ocasiotildees em que algueacutem se afastava

do Foacuterum e da Cuacuteria as horas de oacutecio as feacuterias e a reforma constituiacuteam de igual maneira

otium410

Assim esvaziado e dissociado do conceito grego de scholeacute o conceito de oacutecio

poderia assumir novos significados e ser adaptado agraves condiccedilotildees da cultura romana Na

eacutepoca de Ciacutecero o uso do oacutecio jaacute havia se estendido muito aleacutem da dimensatildeo privada

408 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488409 Uma histoacuteria conceptual detalhada e abrangente do oacutecio desde as suas origens na Antiguidade Antigapoderaacute ser lida em Andreacute J-M Lrsquootium dans la vie morale et intellectuelle romaine des origines agravelrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966410 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488

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inscrevendo-se progressivamente no acircmbito da esfera poliacutetica411 Nos textos romanos

do seacuteculo I aC o discurso poliacutetico-moral sobre o oacutecio ganhara cada vez mais

predominacircncia a importacircncia do oacutecio para a comunidade e para o Estado passara a ser

reconhecida e com efeito exigida

A foacutermula de cum dignitate otium de Ciacutecero apresenta-se porventura como a

manifestaccedilatildeo mais reconhecida deste novo ideal poliacutetico de oacutecio412 Em Sestiana Ciacutecero

afirma que cum dignitate otium constitui a meta maacutexima da res publica Neste sentido e

tal como elucida Fuhrmann o oacutecio eacute doravante usado na linguagem poliacutetica como um

termo para um estado de relaccedilotildees puacuteblicas [] e significava o funcionamento sem

perturbaccedilotildees de uma certa constituiccedilatildeo constituinte-poliacutetica413 A dignitas como

segunda parte da foacutermula refere-se agrave distinccedilatildeo e agrave soberania do Estado romano bem

como dos seus representantes poliacuteticos em relaccedilatildeo a outros Estados e igualmente em

relaccedilatildeo aos cidadatildeos romanos comuns a dignitas tinha um caraacutecter estaacutetico e

designava uma categoria social que ia aleacutem do meacuterito individual para aleacutem da liberdade

condicional do cargo anual individual414 Ciacutecero assinala expressamente que os dois

componentes da foacutermula devem manter-se numa relaccedilatildeo equilibrada porque na

poliacutetica natildeo se deve deixar levar pela dignitas a ponto de natildeo se preocupar com o otium

nem se agarrar a um otium que contradiz a dignitas415

Importaria pois assinalar que o conceito poliacutetico original de cum dignitate

otium natildeo pode ser prontamente identificado com um conceito moderno de oacutecio

imensamente distante em termos conceptuais e culturais da foacutermula ciceroacutenica

nomeadamente no que concerne agrave sua definiccedilatildeo de oacutecio digno considerado em

afinidade com a possibilidade de expressatildeo da situaccedilatildeo biograacutefica e das realizaccedilotildees

pessoais de um ser humano Para se aproximar de uma possiacutevel conceccedilatildeo moderna do

termo o oacutecio teve de regressar da esfera poliacutetica agrave esfera privada Mais uma vez foi

Ciacutecero quem lanccedilou as bases para esta mudanccedila de sentido Fuhrmann esclarece que

411 Sobre o conceito e a praacutetica do oacutecio na eacutepoca ciceroniana consultar Andreacute J-M Lrsquootium dans lavie morale et intellectuelle romaine des origines agrave lrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966 p205412 Sobre a criacutetica do termo otium cum dignitate consultar Andreacute J-M Lrsquootium dans la vie morale etintellectuelle romaine des origines agrave lrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966 p295413 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 489414 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488415 No original [hellip] neque enim rerum gerendarum dignitate homines ecferri ita convenit ut otio nonprospiciant neque ullum amplexari otium quod abhorreat a dignitateldquo Cicero MT Rede fuumlr P Sestius[Pro P Sestio] In Die politischen Reden Fuhrmann M(ed) Vol2 Darmstadt 1993 p18

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Ciacutecero aplica a sua foacutermula cum dignitate otium num duplo sentido tanto para o Estado

como para os liacutederes poliacuteticos a razatildeo poderaacute ser prontamente compreendida pois

comenta Fuhrmann ldquoCiacutecero identificou constantemente as duas esferasrdquo416

Consequentemente um niacutevel pessoal jaacute se encontrava implicado no conceito de cum

dignitate otium Quando Ciacutecero no final de sua vida transferiu completamente o otium

para o acircmbito da vida individual tal deveu-se agrave experiecircncia autobiograacutefica de uma

situaccedilatildeo de emergecircncia concreta Apoacutes a morte de Ceacutesar e no decurso da luta pelo poder

daiacute resultante o nome de Ciacutecero integrava a lista de proscriccedilatildeo de Antonius sendo

entatildeo forccedilado a fugir de Roma para a sua propriedade rural em Tusculum Assim o

rhetor livre dos seus ofiacutecios teve que renunciar ao seu ideal de atividade poliacutetica natildeo

mais podendo continuar a ver num negatium realizado a justificaccedilatildeo de um otium

igualmente cumpridordquo417

Impossibilitado de cumprir a sua proacutepria exigecircncia de cum dignitate otium

Ciacutecero sentiu-se envolvido num confronto completamente novo com as formas positivas

e negativas do otium Esta mudanccedila de terminologia manifesta-se em particular na

introduccedilatildeo ao terceiro livro de De officiis que constitui uma doutrina de virtudes

dedicada ao seu filho que Ciacutecero escrevera no seu exiacutelio rural O facto de Ciacutecero ter

inicialmente aderido agrave ideia de um otium poliacutetico desejaacutevel torna-se evidente a partir do

momento em que declara Scipio Africanus como modelo perspetivando o poliacutetico

romano que segundo as palavras de Ciacutecero utilizara as suas horas de oacutecio privado para

o bem da res publica418 Para Ciacutecero tal oacutecio cumprido ao serviccedilo do cargo puacuteblico e da

comunidade representa o caso ideal que no entanto de modo algum toda a forma

possiacutevel de otium redime Assim sob circunstacircncias que conduziriam outras pessoas

ao enfraquecimento mantiveram o espiacuterito [de Scipio Africanus] despertas inatividade

e solidatildeo419 No mesmo tom Ciacutecero distingue de modo claro o oacutecio positivo e

legiacutetimo do estadista puacuteblico do oacutecio natildeo realizado improdutivo e privado que para ele

mesmo constitui uma ameaccedila no seu exiacutelio rural

Porque desde que fomos impedidos de fazer trabalho poliacutetico e negoacutecios no Foacuterum pela

416 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 483417 Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p211418 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1 p211 No original ldquonumquam seminus otio sum esse quam cum otiosus nec minus solum quam cum solus essetrdquo419 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1 p21 No original bdquoIta duae resquae languorem adferunt ceteris illum acuebant otium et solitudoldquo

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violecircncia armada sem Deus nos entregamos agrave inatividade e desde que deixamos a cidade

por esse motivo temos vivido apenas no campo e muitas vezes estamos sozinhos Mas

esta inatividade natildeo pode ser comparada agrave inatividade de Africanus nem esta solidatildeo pode

ser comparada agrave sua solidatildeo Ele descansava das mais belas conquistas para o Estado e de

vez em quando tirava feacuterias e de vez em quando retirava-se da agitaccedilatildeo das pessoas para

a solidatildeo como num porto mas a nossa inatividade tem a sua razatildeo de ser na falta de

campo de atividade e natildeo no desejo de descanso420

Confrontado com a sua proacutepria inatividade Ciacutecero desenvolve uma estrateacutegia

para preencher o seu otium vazio segundo uma forma autodeterminada procurando

tornaacute-lo produtivo Em vez de ficar entediado Ciacutecero recorre agrave escrita de textos

literaacuterios e filosoacuteficos Assim entre outras obras surge o De officiis cuja gecircnese eacute

explicada como consequecircncia do retiro poliacutetico e do oacutecio forccedilado

Mas porque assim ouvimos dos filoacutesofos que eacute preciso natildeo soacute escolher o menor dos males

mas tambeacutem escolher o que haacute de bom neles eu gosto da inatividade [] e tambeacutem natildeo

me deixo afrouxar no isolamento que a coerccedilatildeo e natildeo o livre arbiacutetrio me impocircs [] Mas

noacutes que natildeo temos tanta forccedila que nos distraiacutemos da solidatildeo pelo pensamento sem

palavras pusemos todo o nosso zelo e cuidado nesta atividade literaacuteria Eacute por isso que

escrevemos mais no pouco tempo que decorre apoacutes a queda da Repuacuteblica do que nos

muitos anos em que a revelaccedilatildeo ainda existia421

Como observou Lefegravevre [Ciacutecero] sente-se repelido e volta-se para a filosofia

como um substituto422 Nos escritos deste periacuteodo torna-se claro que para Ciacutecero a

atividade literaacuteria tivera como propoacutesito enfrentar a vida Uma consequecircncia notaacutevel

de tal desenvolvimento eacute a (re)privatizaccedilatildeo do conceito de oacutecio repare-se pois que

Ciacutecero natildeo perspetivara no De officiis o otium enquanto um estado desenvolvido no

acircmbito das esferas puacuteblicas referindo-se por contraste e como que exclusivamente agrave

420 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1-2 p211 No original ldquoNam et a republica forensibusque negotiis armis impi is vique prohibiti otium persequimur et ob eam causam urberelicta rura peragrantes saepe soli sumus Sed nec hoc otium cum Africani otio nec haec solitudo cum illacomparanda est Ille enim requiescens a rei publicae pulcherrimis muneribus otium sibi sumebataliquando et coetu hominum frequentiaque interdum tamquam in portum se in solitudinem recipiebatnostrum autem otium negotii inopia non requiescendi studio constitutum estrdquo421 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 3ndash4 pp211ndash213 No original ldquoSedquia sic ab hominibus doctis accepimus non solum ex malis eligere minima oportere sed etiam excerpereex his ipsis si quid inesset boni propterea et otio fruor [hellip] nec eam solitudinem languere patior quammihi adfert necessitas non voluntas [hellip] nos autem qui non tantum roboris habemus ut cogitationetacita a solitu dine abstrahamur ad hanc scribendi operam omne studium curamque convertimus Itaqueplura brevi tempore eversa quam multis annis stante re publica scripsimusrdquo422 Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p198

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esfera privadardquo423 O pensamento de Ciacutecero pode portanto ser apreciado agrave luz de

vaacuterios aspetos como um discurso precursor de um novo paradigma no discurso acerca

do oacutecio A sua distinccedilatildeo entre um oacutecio realizado e legiacutetimo por um lado e um oacutecio natildeo

realizado e repreensiacutevel por outro assume a possibilidade de o indiviacuteduo se tornar

responsaacutevel pela apropriaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo dos tempos livres destinados ao oacutecio Para

Ciacutecero o otium requer uma legitimaccedilatildeo moral que se entrecruza com a sua dimensatildeo

poliacutetica ndash e quanto mais a atividade desenvolvida no acircmbito do oacutecio se afigurar

orientada para o bem comum mais eminente e elevada tal atividade deveraacute ser

considerada no acircmbito poliacutetico-moral Uma atividade filosoacutefica e literaacuteria tambeacutem

poderaacute satisfazer tal criteacuterio Na decorrecircncia da sua retirada solitaacuteria (ainda que

involuntaacuteria) da esfera puacuteblica Ciacutecero estabelece um topos particularmente poderoso

sobre os quais os autores posteriores se orientaram Nos Essais Montaigne referiu-se

assim ao modelo de Ciacutecero laquo que dit vouloir employer sa solitude et sejour des affaires

publiques agrave sen acquerir par ses escris une vie immortelle raquo424

No contexto de tais posiccedilotildees Aristoacuteteles e Ciacutecero merecem amplas referecircncias e

citaccedilotildees ndash a convocaccedilatildeo dos seus pensamentos permite-nos responder a diversas

interrogaccedilotildees aqui delineadas tais como que tipo de atividade poderaacute ser desenvolvida

no acircmbito do oacutecio Cumpriria ter presente que o termo ldquooacuteciordquo natildeo significa

necessariamente natildeo-fazer-nada Em alematildeo a palavra significa originalmente

oportunidade ou possibilidade de fazer algo ou natildeo fazer nadardquo Com efeito o oacutecio no

sentido platoacutenico apresenta-se como uma atividade intelectual da mais alta prontidatildeo

para possibilidade de ocorrecircnca da theoria A teoria no seu sentido original de

contemplaccedilatildeo da verdade constitui-se como uma atividade intensamente intelectual

que natildeo obstante se desenvolve segundo uma imobilidade externa425

Uma filosofia moderna do oacutecio natildeo se caracteriza pela pretensatildeo de descrever

uma forma programaacutetica de oacutecio Se apreciarmos os distintos autores que em

determinado momento e ainda que de modo parco contribuiacuteram para uma filosofia do

oacutecio seremos levados a questionar a possibilidade de identificar ou delimitar quebras

epocais que correspondam a diferentes discursos acerca da mateacuteria Com efeito as teses

e os padrotildees de argumentaccedilatildeo elaborados pela filosofia antiga satildeo prolongados e

423Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p198424 de Montaigne ME De la solitude In Essais Rat M (ed) Paris 1962 p275425 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p283

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porventura ligeiramente modificados mas em princiacutepio mantidos como referecircncia

primordial

Poder-se-ia com certa pertinecircncia afirmar que o motivo de alteraccedilatildeo mais

visiacutevel consiste em verdade na motivaccedilatildeo da reflexatildeo filosoacutefica sobre o oacutecio Neste

sentido cumpriria atentar que no acircmbito da modernidade o quadro de pensamento

cultural que envolve o oacutecio poderaacute ser descrito agrave luz de uma nova postura que procura

definir tal termo agrave luz de um outro conceito o conceito de trabalho o oacutecio deveacutem

portanto uma realidade conceptualmente secundaacuteria decorrente derivada o oacutecio eacute

assim avaliado o contraconceito do conceito de trabalho segundo as novas formas da

organizaccedilatildeo social da modernidade

Esta mudanccedila de perspetivaccedilatildeo do oacutecio deveraacute ser apreciada menos como uma

mudanccedila de pontos de vista estritamente filosoacuteficos que se proporiam refutar ou superar

programaticamente os discursos da antiguidade do que como uma reaccedilatildeo aos fenoacutemenos

da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo que caracterizam a modernidade tardia Como tal as

novas filosoacuteficas do oacutecio deveratildeo ser compreendidas como filosofias

preponderantemente criacuteticas relativamente agraves novas realidades sociais desenvolvidas no

acircmbito da modernidade tardia ndash o conceito de oacutecio ele mesmo constitui-se como um

conceito criacutetico envolto num quadro de reflexatildeo social e de criacutetica cultural

Poder-se-ia a este respeito mencionar Nietzsche e Schopenhauer que

contribuiacuteram de certa forma para uma filosofia de oacutecio nos tempos modernos se em

Schopenhauer o oacutecio se constitui como possibilidade de autorrealizaccedilatildeo do ser humano

as observaccedilotildees de Nietzsche sobre o oacutecio entrecruzam-se de modo intenso com a sua

criacutetica cultural acerca dos tempos modernos426 Especialmente no caso de Nietzsche natildeo

426 No pensamento de Nietzsche encontramos um elogio ao oacutecio e correlativamente uma criacutetica aotrabalho ndash ambos os conceitos afiguram-se com efeito tratados de um modo intiacutemo Tal poderaacute serperspetivado como uma criacutetica agrave Modernidade no seu todo uma vez que Nietzsche a concebera assim oavanccedila Heidegger como uma revalorizaccedilatildeo de todos os valoresrdquo (Heidegger M Nietzsche IGesamtausgabe vol61 Schillbach B (ed) Frankfurt a M 1996 pp 66ndash91) Dispersas ao longo daobra de Nietzsche surgem diversas poleacutemicas contra aquilo que desgina como a era do trabalho(Nietzsche F Goumltzendaumlmmerung Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol6 Colli GMontinari M (ed) Muumlnchen 1988 p130) Em Humano demasiado humano existem alguns fragmentosque celebram o oacutecio antigo como uma praacutetica alternativa agrave hegemonia da eacutetica do trabalho na sociedadeburguesa Tais afirmaccedilotildees satildeo ndash especialmente no acircmbito do pensamento tardio de Nietzsche ndashapresentadas de modo particularmente enfaacutetico A este respeito Nietzsche debruccedila-se sobre a tradicionaldistinccedilatildeo entre bom e mau trabalho Este uacuteltimo o trabalho mau eacute concebido como o tormento damaldiccedilatildeo biacuteblica que nunca encontra termo e que exige constantemente a labuta (labor) ndash trata-se poisde um trabalho mau que em uacuteltima anaacutelise permanece improdutivo Ao contraacuterio o trabalho dito bomcorresponde ao trabalho que produz ao trabalho de criaccedilatildeo (opus) esta forma de trabalho tem sido desdeo seacuteculo XVII crescentemente elevada ao estatudo de ideal nos discursos e nas praacuteticas correspondentesLeiamos Arendt a tal respeito bdquoO trabalho liberto eacute pensado de acordo com o princiacutepio da arte eacute pessoal

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se afigura oacutebvio todavia que as suas observaccedilotildees filosoacuteficas ofereccedilam uma posiccedilatildeo

sistemaacutetica proacutepria no discurso da filosofia do oacutecio427

Uma das constantes na reflexatildeo teoacuterica sobre o oacutecio consiste na consideraccedilatildeo da

sua demarcaccedilatildeo relativa a todos os modos de trabalho especialmente de uma

atividade funcional Em alguns textos programaacuteticos e cientiacuteficos explica-se que o

oacutecio permite um distanciamento das preocupaccedilotildees da vida quotidiana em particular

e criativo Constitutivamente continua a natildeo ser claro se a obra deve ser libertada para si proacutepria ou de siproacuteprialdquo (Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p125) No final do seacuteculoXIX Nietzsche radicalizou tal discurso dotando-o de uma tonalidade poleacutemica Os pontos histoacutericos dereferecircncia para Nietzsche satildeo por um lado o trabalho fabril e por outro a tremenda aceleraccedilatildeo da vidaldquo(Nietzsche F Menschliches Allzumenschliches Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol2Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p231) subjacente ao trabalho do mundo industrializadoperspetivado por Nietzsche agrave luz a omnipresente pressa das pessoas sem descanso (Ibid p231) Perantea nova barbaacuterie (Ibid p232) na qual Nietzsche vislumbrara a falta de descanso (Ibid p232) natildeo setrataria somente de elaborar um diagnoacutestico pessimista dos tempos o foco de atenccedilatildeo de Nietzscheconsiste com efeito em problematizar a diferenccedila tradicional entre o trabalho mau e interminaacutevel comolabuta (labor) e a actividade boa e produtiva Importaria a este respeito ter presente que Nietzsche natildeosomente nega a individualidade agravequeles que satildeo activos nas suas profissotildees como tambeacutem (ao estilo deSchlegel) a despreza bdquoAos que satildeo activos falta geralmente a actividade superior refiro-me agrave actividadeindividual Satildeo [] activos [] mas natildeo como indiviacuteduos especiacuteficos e uacutenicos seres humanos a esterespeito satildeo preguiccedilososldquo (Ibid p231) Numa palavra o trabalhador eacute preguiccediloso (Ibid p232) poissegundo Nietzsche nada produz limitando-se a repetir os processos de trabalho ditados pela suaespecializaccedilatildeo O trabalho fabril torna-se portanto uma forma metafoacuterica de escravatura como todas asoutras profissotildees Segundo Nietzsche a escravatura reside nas estruturas e dinacircmicas de uma formaccedilatildeocultural que se tornou omnipresente que se estendeu para aleacutem da faacutebrica alcanccedilando a cultura dostrabalhadores desenvolvida apoacutes a industrializaccedilatildeo bem como o trabalho dos que procuram conhecimentoe a constituiccedilatildeo do sujeito em geral De acordo com o filoacutesofo aqui se encontra configurada amoralidade escravaldquo (Nietzsche F Zur Genealogie der Moral Saumlmtliche Werke KritischeStudienausgabe vol2 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p270) que deve ser combatida e quese ancorou no mais iacutentimo dos seus suacutebditos Ao inveacutes de trabalhar para si proacuteprio cada ser humanotrabalho por dinheiro ou para o dono da faacutebrica ou incluisvamente para Deus Sob o termo trabalhoNietzsche concebe praacuteticas de alienaccedilatildeo e natildeo praacuteticas de autodeterminaccedilatildeo A elaboraccedilatildeo porNietzsche de um contraconceito de trabalho decorre da cultura antiga do natildeo-trabalho dos cidadatildeoslivres (ou proprietaacuterios de escravos) de Atenas bem como do natildeo-trabalho das desistecircncias romacircnticas Acoisa nobre do oacutecio de que o filoacutesofo tratar em Humano demasiado humano deve portantodistinguir-se da preguiccedila num sentido regressivo e heteroacutenomo Natildeo obstante a arte constitui-se comoum modelo para Nietzsche ndash jaacute natildeo a tatildeo admirada arte de Wagner que se situa agora do lado da ineacuterciada preguiccedila e da improdutividade Assim numa das poleacutemicas posteriores contra Wagner Nietzscheafirma bdquoO trabalhador cansado e de respiraccedilatildeo lenta que olha bondosamente que deixa as coisas andarcomo estatildeo esta figura tiacutepica que se encontra agora na era do trabalho [] em todas as classes dasociedade hoje encontra-se na arte [] Wagner compreendeu istoldquo (Nietzsche F GoumltzendaumlmmerungSaumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol6 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p130)Em contraste Nietzsche em A Gaia Ciecircncia estabelece uma arte diferente nomeadamente uma artede viver que natildeo se refere a obras de arte mas agrave proacutepria vida como uma obra de arte bdquoNoacutes no entantoqueremos tornar-nos naquilo que somos ndash os novos os uacutenicos os incomparaacuteveis os autolegislativos osautocriadoresldquo (Nietzsche F Die froumlhliche Wissenschaft Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabevol3 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p422) bdquoApenas como criadores (Ibid p422) e tambeacutemapenas para os artistas (Ibid p351) o trabalho pode consequentemente ser libertado de si mesmo erealizado como arte Tal realizaccedilatildeo jaacute natildeo se refere agrave produccedilatildeo de obras de arte mas agrave proacutepria formaccedilatildeodo sujeito bdquoQueremos ser os poetas da nossa vida e nas coisas mais pequenas e quotidianas primeiroldquo(Ibid p538) 427 Gerhardt V ldquoDer freie Geist und die Muszlige Zur Anthropologie der Theorie bei Nietzscherdquo InJuumlrgasch TKeiling T (ed) Anthropologie der Theorie Tuumlbingen 2017 pp225-246 Schaumlfer MJ

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das atividades de aquisiccedilatildeo e de negoacutecio (negotium) regularmente praticadas428 Ao

contraacuterio dessas atividades as praacuteticas de oacutecio poderiam permitir um gozo

particularmente puro e determinado sem perseguir qualquer objetivo429 Tais praacuteticas

caracterizam-se sobretudo pelo facto de natildeo possuiacuterem uma finalidade exterior a si

mesmas o oacutecio natildeo eacute uma accedilatildeo intencional e racional430 e natildeo pode sob nenhuma

circunstacircncia ser integrado na conveniecircncia de uma orientaccedilatildeo futura431 No entanto

segundo vaacuterios autores tal natildeo significa que a oacutecio seja um fenoacutemeno infundado ou

supeacuterfluo Pelo contraacuterio a sua caracteriacutestica mais importante consiste no facto de o

oacutecio se constituir como uma realidade que encontra a sua finalidade em si mesma laquoLe

temps de lotium a sa finaliteacute en soi mecircmeraquo432

Com efeito tambeacutem estas caracterizaccedilotildees modernas de oacutecio podem ser traccediladas

desde Aristoacuteteles Nesta tradiccedilatildeo o conceito de oacutecio (e os seus correlatos em outras

liacutenguas) apresenta-se utilizado agrave luz de um intenso sentido de continuidade histoacuterica de

modo a traduzir uma atitude e um modo de vida que se desviam do modo de

funcionamento dominante do trabalho organizado no interior de uma sociedade O oacutecio

encontra-se assim em oposiccedilatildeo ao trabalho e a atividades quotidianas que devem ser

desenvolvidos tendo em vista a sobrevivecircncia e a continuidade da comunidade ndash assim

perspetivado o oacutecio poderaacute ser perspetivado como uma realidade que integra uma

funccedilatildeo determinada no interior da respetiva sociedade a saber a funccedilatildeo de relaxamento

e de recuperaccedilatildeo das forccedilas e das energias dos trabalhadores A avaliaccedilatildeo de que a

legitimaccedilatildeo do oacutecio decorre do processo de atribuiccedilatildeo e de estabelecimento da sua

funccedilatildeo no interior de uma sociedade e da sua forma de organizaccedilatildeo do trabalho constitui

objeto de estudo por vaacuterios autores que procuraram justamente num sentido teoacuterico e

socialmente criacutetico libertaacute-lo de tais processos ndash como eacute o caso de Gert Mattenklott por

exemplo

O oacutecio natildeo se afasta realmente deste princiacutepio [de uso racional] quando eacute obrigado a

Die Gewalt der Muszlige Wechselverhaumlltnisse von Arbeit Nichtarbeit Aumlsthetik ZuumlrichBerlin 2013Schaumlfer MJ Muumlssiggang eines Gottes Schreibarbeit nach Nietzsche In Karschnia A Kohns OKreuzer S Spies C (ed) Zum Zeitvertreib Strategien ndash Institutionen ndash Lektuumlren ndash BilderBielefeld 2005 pp175-186428 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p9429Hessel F Von der schwierigen Kunst spazieren zu gehen [1932] In In Ermunterung zum GenussKleine Prosa Berlin 1981 p46430 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p11431 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p10432 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p73

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prestar contas do ldquotempo vaziordquo quando permanece subordinado agrave pretensatildeo de provar o

seu significado no quadro da racionalidade interior-cultural433

Uma revisatildeo histoacuterica pode revelar que as funccedilotildees do oacutecio podem variar de

acordo com o contexto histoacuterico-social434 seja como condiccedilatildeo para a contemplaccedilatildeo

filosoacutefica do mundo (Aristoacuteteles) da dignidade poliacutetica (Ciacutecero) da transferecircncia

didaacutetica do conhecimento (Seacuteneca) da contemplaccedilatildeo cristatilde de Deus (Agostinho) da

autoria criativa (Montaigne) da formaccedilatildeo do caraacuteter individual (Goethe Schopenhauer)

ou como ponto de criacutetica contra uma modernidade acelerada (Nietzsche) No mundo

moderno e contemporacircneo a funcionalizaccedilatildeo do oacutecio poderia para aleacutem de constituir

uma possibilidade de travagem e de equiliacutebrio da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo do

trabalho ser dirigida entre outras coisas para a autorreflexatildeo e autorrealizaccedilatildeo do ser

humano Em vez de contemplar Deus ou a natureza do mundo o indiviacuteduo moderno

coloca-se no centro da sua perceccedilatildeo o oacutecio poderia assim traduzir aquele estado

extraordinaacuterio em que o indiviacuteduo reflete sobre si mesmo e estaacute consigo mesmo - le

temps ougrave lon est aupregraves de soi435 Portanto de acordo com Schopenhauer ldquoo oacutecio livre

de cada um dando-lhe o livre gozo da sua consciecircncia e da sua individualidade eacute o

fruto e o rendimento de toda a sua existecircncialdquo436 A metaacutefora do fruto e rendimento

integra a esperanccedila associada agrave emergecircncia de um determinado resultado do oacutecio de

uma vantagem produtiva ndash trata-se pois de uma expectativa que se sustenta na

discriminaccedilatildeo moral entre oacutecio cumprido e oacutecio natildeo cumprido entre otium e

otiositas entre oacutecio e ociosidade Schopenhauer formula tal criteacuterio de benefiacutecio nos

seus Aforismos para a sabedoria de vida

Mas o que rende o oacutecio livre para a maioria das pessoas Aborrecimento e teacutedio se natildeo

houver prazeres sensuais ou tolices para preenchecirc-lo Como o oacutecio eacute completamente

inuacutetil mostra-se pela forma como as pessoas o usam eacute quase sempre apenas o entediante

oacutecio dos tolos As pessoas comuns soacute pensam em gastar este tempo quem tem algum

talento - para usaacute-lo437

433 Mattenklott G Faulheit In Blindgaumlnger Physiognomische Essais Frankfurt a M 1986 p69434 Sobre a possibilidade de relaccedilatildeo entre o oacutecio e o respetivo contexto social consultar Dobler GRiedl PP bdquoEinleitungldquo In Dobler GRiedl PP (ed) Muszlige und Gesellschaft Tuumlbingen 2017 pp1-17435 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p74436 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p 29437 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p 29

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A distinccedilatildeo de Schopenhauer ndash entre um oacutecio usado de uma maneira razoaacutevel

por alguns indiviacuteduos excelsos e o ldquooacutecio entedianterdquo ldquogastadordquo pelos tolosrdquo ndash ilustra

revelando o facto de o discurso puacuteblico da eacutepoca apenas reconhecer certas

funcionalizaccedilotildees do oacutecio Para Schopenhauer tais funccedilotildees satildeo sobretudo a realizaccedilatildeo

do proacuteprio talento ndash em outras palavras a autorrealizaccedilatildeo autoacutenoma No contexto do

seacuteculo XIX se um indiviacuteduo pode fazer uso do oacutecio e alcanccedilar um resultado que valha

a pena tal determina-se como um criteacuterio de distinccedilatildeo da elite econoacutemica intelectual e

artiacutestica ndash que de acordo com Thorstein Veblen pode ser descrita como a leisure

class438 por contraste com o proletariado439 Schopenhauer assim o confirma de forma

exemplar segundo o filoacutesofo uma bem-sucedida autoconstituiccedilatildeo cumprida no oacutecio

natildeo constitui uma capacidade humana geral mas o privileacutegio de uma pequena elite440

Como jaacute se disse o oacutecio livre eacute a flor ou melhor o fruto da existecircncia de cada indiviacuteduo

na medida em que soacute ele o coloca na posse do seu proacuteprio eu aqueles que entatildeo tambeacutem

438 Veblen T The Theory of the leisure class An economic study of institutions New York 1934439 Sobre exemplos relevantes no mundo anglo-americano consultar Fludernik M Muszlige als sozialeDistinktion In Dobler G Riedl PP (ed) Muszlige und Gesellschaft Tuumlbingen 2017 pp163-177440 O oacutecio da leisure class segundo Veblen (18991934) (Veblen T The Theory of the leisure class Aneconomic study of institutions New York 1934) possui uma funccedilatildeo de demarcaccedilatildeo social a leisure classdistingue-se da populaccedilatildeo trabalhadora por exibir ostensivamente as suas atividades nos tempos livresNeste aspeto os membros da leisure class imitam o conceito elitista de oacutecio da sociedade grega embora oproacuteprio oacutecio experimentado seja provavelmente diferente do de Atenas Enquanto o antigo σχολήenfatizava a autocontemplaccedilatildeo filosoacutefica e a troca intelectual (o banquete constitui-se com efeito comoum cenaacuterio do oacutecio concebido como um assunto puramente masculino) uma mudanccedila dos bensintelectuais para a concentraccedilatildeo da riqueza pode ser observada entre os ricos por exemplo na sociedadeamericana no final do seacuteculo XIX Como Rashmi Jain observa no seu estudo socioloacutegico uma cultura deconsumo do oacutecio estaacute a desenvolver-se no Ocidente (o conceito de leisure afigura-se como oacutecio somenteem casos excecionais ou seja otiose leisure) Tal significa que o tempo livre se encontra preenchido comatividades de consumo que conduzem a uma exibiccedilatildeo cada vez mais enfaacutetica dos altos custos desteconsumo ldquoVeblen predicted that conspicuous consumption would eventually replace conspicuous leisureas the primary means of displaying pecuniary strength In modern societies it is difficult to display aconspicuous waste of time The leisure class resorts to conspicuous consumption of consumer goodsrdquo(Jain R Access to Leisure Impact of Forces of Liberalisation Privatisation and Glo- balisation onSocially Disadvantaged Groups in India In World Leisure Journal 491 (2007) 15-23) Quando falamosde lazer como distinccedilatildeo social soacute podemos falar de caracteriacutesticas de lazer que se referem a dois aspetosnomeadamente a disponibilidade de tempo livre (o tempo livre como condiccedilatildeo baacutesica do oacutecio) e vaacuteriaspraacuteticas de oacutecio que podem ser de natureza elitista ou socialmente distinta Assim para considerar oprimeiro aspeto eacute razoavelmente claro que o tempo livre soacute se torna mais amplamente disponiacutevel commaior prosperidade porque a pobreza natildeo soacute restringe severamente o orccedilamento de tempo (as classessociais mais baixas tecircm frequentemente vaacuterios empregos mal pagos ao mesmo tempo e portantopraticamente nenhum tempo livre) mas tambeacutem os receios existenciais dos pobres dificultam-lhes opleno aproveitamento do tempo que tecircm disponiacutevel (por exemplo no tempo de desemprego) No entantoo tempo livre disponiacutevel tambeacutem parece diminuir na outra ponta da escala social entre os ricos de modoque o alto volume de trabalho natildeo pode ser compensado pelo tempo de oacutecio mas apenas financeiramentee de facto segundo Veblen tal situaccedilatildeo conduz a uma orientaccedilatildeo intensiva do consumo com oreconhecido resultado de que aquele que tem um jardim grande e bonito por exemplo quase nunca podedesfrutar dele por falta de tempo Ateacute ao seacuteculo XIX a definiccedilatildeo de gentleman consistia na ausecircncia danecessidade de trabalhar ou seja na posse de bens ou rendimentos correspondentes Apesar doPuritanismo o ideal do proprietaacuterio de terras ou rendas permaneceu o mesmo ateacute o seacuteculo XIX O oacuteciodas classes altas era constitutivo para o seu estatuto

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recebem algo de bom por si mesmos devem ser elogiados alegremente enquanto o oacutecio

livre natildeo daacute nada agrave grande maioria das pessoas como acontece com no sentimento de um

indiviacuteduo que estaacute terrivelmente aborrecido que se vecirc como um fardo para si mesmo441

As notas de Schopenhauer apresentadas nos Aforismos da sabedoria de vida

confirmam com efeito a reorientaccedilatildeo moderna do oacutecio para o acircmbito do sujeito

individual A autoconstituiccedilatildeo do indiviacuteduo revela-se a funccedilatildeo mais importante do oacutecio

moderno ndash e a narraccedilatildeo afigura-se progressivamente como uma das suas teacutecnicas mais

importantes442 Mediante a narraccedilatildeo o ser humano pode dar sentido agrave sua existecircncia

construindo uma identiteacute narrative para si mesmo443 Tal ideia manifesta-se de modo

concreto no geacutenero literaacuterio da autobiografia emergente a partir dos finais do seacuteculo

XVIII O claacutessico autobioacutegrafo eacute caracterizado pela sua capacidade de integrar os

acontecimentos heterogeacuteneos da sua vida numa narrativa holiacutestica Na narraccedilatildeo o

narrador cria-se a si mesmo de facto tal propoacutesito da narraccedilatildeo autobiograacutefica jaacute era

conhecido dos primeiros teoacutericos da autobiografia como demonstram as observaccedilotildees de

Wilhelm Dilthey

Olhando para traacutes na memoacuteria compreendemos a conexatildeo dos elementos decorrentes do

curso de vida sob a categoria do seu significado Quando vivemos no presente repleto de

diferentes realidades sentimos o seu valor positivo ou negativo e agrave medida que

avanccedilamos em direccedilatildeo ao futuro a categoria de propoacutesito surge deste comportamento444

Assim o oacutecio poderaacute igualmente constituir-se como condiccedilatildeo preacutevia da

reflexatildeo e da narraccedilatildeo autobiograacutefica e portanto como condiccedilatildeo da autoconstituiccedilatildeo

bem-sucedida do indiviacuteduo Com efeito tal perspetivaccedilatildeo integra o ideaacuterio da cultura

quotidiana entrecruzando-se com a nova exigecircncia de que o ser humano necessita de

mais oacutecio para poder encontrar-se a si mesmo445 No contexto moderno a nova funccedilatildeo

do oacutecio parece decorrer da nova filosofia da subjetividade se o oacutecio natildeo se determina

como realidade externamente configurada poder-se-ia num sentido contraacuterio concebe-

lo como uma realidade que se desenvolve agrave luz da interioridade subjetiva que aspira ao

delineamento da sua autoidentidade Com efeito natildeo seria supeacuterfluo afirmar que o

discurso moderno acerca do oacutecio permite sobretudo desenvolver perspetivaccedilotildees e

441 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p31

442 Klinkert T Muszlige und Erzaumlhlen ein poetologischer Zusammenhang Vom Roman de la Rose biszu Jorge Sempruacuten (Otium) Tuumlbingen 2016443 Ricœur P Lrsquoidentiteacute narrative In Esprit 12 (1988) 295ndash304444 Dilthey W Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften GesammelteSchriften vol7 Groethuysen B (ed) LeipzigBerlin 1942 p201445 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p12

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conclusotildees sobre o conceito moderno de sujeito Pois o paradigma individualista

implica a existecircncia de um lugar e de um tempo que permitam ao indiviacuteduo ser

completamente ele mesmo e assim realizar-se O conceito de oacutecio poderia assim

servir para nomear aquela estrutura espaacutecio-temporal utoacutepica na qual que as conceccedilotildees

modernas de individualidade autoacutenoma e o anseio de autorrealizaccedilatildeo se tornam

possiacuteveis Mattenklott assim esclarece

o oacutecio eacute parte de um programa de vida e eacute [] cercado pelas mais altas exigecircncias um

tempo de reflexatildeo sobre o sentido metafiacutesico da vida para uns um tempo de autecircntico

desenvolvimento da personalidade para outros []446

A ideia de Mattenklott de que o oacutecio como parte de um programa de vida

poderia ter duas funccedilotildees essenciais nomeadamente dar sentido e desenvolvimento

autecircntico da personalidade eacute com feito uma ideia assaz moderna No trabalho tal

como Mattenklott o afirma esta funcionalizaccedilatildeo surge como uma constante

antropoloacutegica embora pressuponha um conceito moderno do indiviacuteduo O indiviacuteduo

moderno necessita do oacutecio para refletir e desenvolver-se ndash neste ponto a definiccedilatildeo

aristoteacutelica acerca do oacutecio enquanto realidade pautada pela autorreferencialidade

adquire uma tonalidade nova moderna Mas como tal desenvolvimento do oacutecio poderaacute

cumprir-se no acircmbito da modernidade tardia ndash tal parece constituir a interrogaccedilatildeo mais

premente A este respeito poder-se-ia convocar Marx e a sua conceccedilatildeo acerca de uma

sociedade natildeo capitalista no contexto da qual a autorrealizaccedilatildeo do ser humano poderia

ter lugar no seio do desenvolvimento de um trabalho natildeo alienado em verdade segundo

Marx poder-se-ia perspetivar inclusivamente uma continuidade entre trabalho

diversatildeo e oacutecio

Pois assim que o trabalho comeccedila a ser distribuiacutedo todos tecircm um certo ciacuterculo exclusivo

de atividade que lhe eacute imposto do qual natildeo pode sair ele eacute um caccedilador pescador ou

pastor ou criacutetico e deve permanecer assim se natildeo quiser perder os meios de vida ndash

enquanto que na sociedade comunista onde ningueacutem tecircm um ciacuterculo exclusivo de

atividade mas pode ser formado em qualquer aacuterea a sociedade regula a produccedilatildeo geral e

assim me permite fazer isso hoje amanhatilde uma coisa diferente caccedilar de manhatilde pescar agrave

tarde criar gado agrave noite e criticar depois do jantar como eu quiser447

446 Mattenklott G Faulheit In Blindgaumlnger Physiognomische Essais Frankfurt a M 1986 p44 447 Marx KEngels F Die deutsche Ideologie [1846] Die Marx-Engels-Werke vol3 Berlin 1969p33

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Distintamente de autores anteriores tanto Pieper448 quanto Russel449 escreveram

textos que expotildeem o conceito de oacutecio nos seus tiacutetulos permitindo-se assim ser

tomados como contribuiccedilotildees programaacuteticas com reivindicaccedilotildees sociopoliacuteticas Pieper

concebe a sua filosofia do oacutecio explicitamente como um caso exemplar de uma

atualizaccedilatildeo do paradigma aristoteacutelico na modernidade Ao contraacuterio de Aristoacuteteles natildeo

obstante Pieper e Russell procurar compreender o oacutecio a partir do seu oposto

conceptual ndash o trabalho O contraste entre oacutecio e ldquonatildeo oacuteciordquo (ascholiacutea) segundo a

contraposiccedilatildeo moderna entre oacutecio e ldquotrabalhordquo natildeo substitui a descriccedilatildeo acerca daquilo

que se faz no oacutecio A observaccedilatildeo de que as liacutenguas antigas concebem o ldquotrabalhordquo como

a-scholiacutea ou neg-otium ndash isto eacute como negaccedilatildeo do oacutecio (scholeacute otium) ndash enquanto que

na modernidade eacute o oposto que se verifica pois eacute o oacutecio que eacute concebido como uma

negaccedilatildeo do trabalho revela-se verdadeira Mas tal observaccedilatildeo natildeo justifica a

consequecircncia de que a determinaccedilatildeo de uma atividade de oacutecio seja irrelevante na loacutegica

das descriccedilotildees e legalizaccedilotildees modernas do oacutecio sendo substituiacuteda pela justaposiccedilatildeo com

o trabalho O delineamento de uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio a partir de uma conceccedilatildeo

dominante de trabalho poderaacute pois ser avaliada como problemaacutetica como constatam

Pieper e Russel com efeito segundo uma perspetivaccedilatildeo mais aprofundada ambos

Pieper e Russel rejeitam como insuficiente a ideia de que a definiccedilatildeo de oacutecio deveraacute ser

simplesmente desenvolvida agrave luz da predominacircncia do conceito de trabalho

Segundo as elucidaccedilotildees de Pieper a ascolia foi concebida pelos gregos como

uma escola de formaccedilatildeo da alma deste modo tal como Pieper o avanccedila o oacutecio

deveria ser traduzido preferencialmente agrave luz do conceito de educaccedilatildeo no sentido de

Humboldt enquanto desenvolvimento integral de todas as habilidades humanas Esta

vita contemplativa natildeo se trata necessariamente de um solipsismo retirado do indiviacuteduo

isolado que tem de recuperar do seu trabalho extenuante mas segundo Pieper da

perfeiccedilatildeo do indiviacuteduo que eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da comunidade humana

Pieper inicia o ensaio Muszlige und Kult com a objeccedilatildeo de que o periacuteodo imediato

do poacutes-guerra natildeo eacute o momento certo para falar de oacutecio450 Esta objeccedilatildeo eacute refutada

pela consideraccedilatildeo de que eacute precisamente o novo fundamento da cultura que torna

necessaacuteria uma defesa do oacutecio Se a nova construccedilatildeo da cultura alematilde foi planeada

segundo o espiacuterito ocidental deveria ser decidida hoje E segundo Pieper a

448 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999449 Russel B In Praise of Idleness and Other Essays London 2004 [1935]450 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p2

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premecircncia da discussatildeo acerca do oacutecio decorre justamente do conhecimento de tal

fenoacutemeno como um dos fundamentos da cultura ocidental451

Afigura-se caracteriacutestico do ensaio de Pieper o salto abrupto para a filosofia

aristoteacutelica que integra a ideia de que o oacutecio determina todas as conquistas culturais A

palavra grega que poderaacute ser traduzida como escola no original scholeacute deveria ser

assim sustenta Piepr a primeira indicaccedilatildeo da validade geral desta consideraccedilatildeo452 Para

Pieper tal consideraccedilatildeo natildeo soacute fornece uma primeira orientaccedilatildeo mas forma

igualmente a base da sua proacutepria reflexatildeo Tal postura teoacuterica de Pieper manifesta-se

cumprira salientar no facto de a traduccedilatildeo inglesa de Muszlige und Kult surgida em 1952

apresentar como tiacutetulo Leisure the base of culture453 A combinaccedilatildeo entre teoria cultural

sistemaacutetica e diagnoacutestico de crise define a perspetiva de Pieper sobre a situaccedilatildeo

histoacuterica apoacutes a Segunda Guerra Mundial Pieper aborda a recente rutura com a

civilizaccedilatildeo tal como ocorrida no fascismo como um momento de total irrupccedilatildeo do

contrafenoacutemeno do oacutecio ndash a saber o trabalho Pieper natildeo considera tal rutura com a

civilizaccedilatildeo como uma narrativa alternativa de continuidade histoacuterica mas sim como

uma visatildeo original e inalteradamente vaacutelida em relaccedilatildeo agrave qual Aristoacuteteles tambeacutem se

posicionara num outro contexto histoacuterico454

Segundo Pieper a justaposiccedilatildeo de entre oacutecio e trabalho natildeo se constitui como

uma realizaccedilatildeo histoacuterica recente mas traduz sim uma caracteriacutestica da modernidade

enquanto um todo no acircmbito da qual a posiccedilatildeo hieraacuterquica dos conceitos de oacutecio e de

trabalho fora profundamente invertida Sem se referir agrave Segunda Guerra Mundial que

terminara trecircs anos antes Pieper escreve que o conceito original de oacutecio tornou-se

completamente irreconheciacutevel no cansaccedilo programaacutetico do mundo total do trabalho455

Este diagnoacutestico eacute seguido por uma proposta terapecircutica dirigida a uma comunidade

mas que exige igualmente consideraccedilatildeo individual Segundo Pipier eacute imperioso

451 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p2452 P PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3453 Pieper J Leisure the basis of culture London 1952 Esta traduccedilatildeo foi iniciada por T S Eliot quetambeacutem escreveu uma introduccedilatildeo Eliot concebe a filosofia de Pieper como uma resposta aoentendimento filosoacutefico do positivismo loacutegico Em contraste com esta uacuteltima Pieper combinou filosofia eteologia combinaccedilatildeo essa que Eliot considera essencial para uma compreensatildeo adequada da proacutepriafilosofia Segundo Eliot tambeacutem Pieper se opotildee agrave bdquoillusion of a progress of philosophyldquo (Pieper JLeisure the basis of culture London 1952 p72)454 Este pressuposto de continuidade corresponde agrave filosofia da histoacuteria de Pieper Consultar Pieper JHoffnung und Geschichte Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp375ndash440 Godfrey JThe Future of Pieperrsquos Hope and History In Schumacher B (ed) The Cosmopolitan HermitWashington DC 2009 pp 141ndash170455 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3

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vencer a nossa proacutepria resistecircncia que decorre da sobrevalorizaccedilatildeo do mundo do

trabalho456 Pieper concebe a sobrevalorizaccedilatildeo do trabalho como um dos principais

motes culturais do seu tempo Convocando diversas conceccedilotildees tais como ldquoespiacuterito do

capitalismordquo segundo Max Weber a terceira figura imperial segundo Ernst Niekisch e

o ldquotrabalhadorrdquo formulada por Ernst Juumlnger457 Pieper conclui que a ideia relativa de que

autoimagem que o mundo do trabalho oferece ao indiviacuteduo se afigura como

profundamente decisiva no acircmbito do pensamento moderno Tal autoconceccedilatildeo estaacute

presente no conceito de ldquotrabalhadorrdquo por exemplo o qual natildeo significa uma posiccedilatildeo

social ou ambiente ou uma afiliaccedilatildeo de classe mas traduz um ldquosentido

antropoloacutegicordquo uma ldquoimagem humana geralrdquo A crise da sociedade moderna eacute

portanto segundo Pieper uma crise antropoloacutegica caracterizada por

uma opiniatildeo alterada sobre a natureza do homem em geral e uma interpretaccedilatildeo alterada da

existecircncia humana (menschlichen Dasein) em geral que se manifesta na nova

reivindicaccedilatildeo do conceito de trabalho e de trabalhador458

O objetivo de Pieper natildeo eacute de natureza historiograacutefica mas terapecircutica natildeo se

trata de traccedilar o caminho histoacuterico de tal mudanccedila na autocompreensatildeo humana mas

investigar a causa raiz de uma doutrina filosoacutefica do homem459 Nesse sentido Pieper

perspetiva o oacutecio como um contraconceito descritivo e normativo de trabalho indo aleacutem

dos teoacutericos jaacute mencionados Ao definir o ldquotrabalhadorrdquo como sintoma de uma crise

antropoloacutegica o diagnoacutestico de modernidade de Pieper comeccedila no domiacutenio do

paradigma aristoteacutelico com a questatildeo da realizaccedilatildeo da vida humana Com efeito no

primeiro capiacutetulo do ensaio Muszlige und Kult Pieper avanccedila a tese de que o ldquotrabalhordquo

natildeo se constitui como a realidade promotora da realizaccedilatildeo humana sustentando jaacute no

contexto do segundo capiacutetulo da sua obra a preocupaccedilatildeo em reabilitar a theoria como

atividade antropologicamente privilegiada Em verdade Pieper condena a conceccedilatildeo

acerca da filosofia enquanto trabalho intelectual460 enquanto atividade tambeacutem ela

caracterizada agrave luz do conceito de trabalho

456 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3457 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp3-5 Chad Lakiespropotildee a atualizaccedilatildeo deste diagnoacutestico de Pieper atraveacutes do pensamento de Charles Taylorperspetivando o trabalho como social imaginary Consultar Lakies C Challenging the CulturalImaginary Pieper on How Life might live In New Blackfriars 91 (2010) 499-510458 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p5459 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p6460 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p6

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Segundo Pieper Kant afigura-se como o responsaacutevel por tal mal-entendido

relativamente a si mesmo enquanto filoacutesofo e relativamente agrave sua proacutepria atividade

filosoacutefica Recorde-se que no ensaio intitulado Sobre um recentemente enaltecido tom

de distinccedilatildeo na Filosofia Kant descreve o pensar filosoacutefico agrave luz de uma lei da razatildeo

para adquirir posses atraveacutes do trabalho461 Pieper aponta as condiccedilotildees histoacutericas deste

comentaacuterio de Kant dirigido contra os filoacutesofos romacircnticos mas avalia-o como parte de

um autoengano eficaz conquanto assaz compreensiacutevel A conceccedilatildeo de Kant tal como

Pieper a comenta descreve o esforccedilo desenvolvido tendo em vista a aquisiccedilatildeo do

conhecimento como condiccedilatildeo suficiente da sua realizaccedilatildeo mas segundo as elucidaccedilotildees

de Piepier tal esforccedilo traduz inexoravelmente uma caracteriacutestica do trabalho dando

origem agrave postulaccedilatildeo da elevaccedilatildeo do ldquoesforccedilo de conhecerrdquo a criteacuterio de verdade Neste

sentido concluir-se-ia o trabalho parece ser a forma decisiva de desenvolvimento da

filosofia462

Tal posiccedilatildeo kantiana apresenta-se acompanhada como prontamente podemos

compreender pelo facto de o conhecimento filosoacutefico ser entendido como discursivo

natildeo intuitivo o que Pieper identifica como a primeira caracteriacutestica da obra

intelectual Esta compreensatildeo limitada da cogniccedilatildeo mental sublinha Pieper conduz ao

facto de a forma mais elevada de cogniccedilatildeo ndash a ideia que surge com a ldquorapidez do

relacircmpagordquo a ldquocontemplaccedilatildeo real ndash se assumir excluiacuteda enquanto possibilidade de

cogniccedilatildeo natildeo porque se apresente vazia de conteuacutedo mas porque eacute cumprida sem

esforccedilo463 A rejeiccedilatildeo de uma compreensatildeo do conhecimento como acontecimento

passivo ao inveacutes de accedilatildeo ativa determina-se como a segunda caracteriacutestica do trabalho

mental464 A conceccedilatildeo de filosofia enquanto trabalho apresenta consequecircncias no

acircmbito da organizaccedilatildeo social sublinha Pieper os processos de organizaccedilatildeo social tal

como os processos cognitivos devem estar sujeitas a um forte controlo social e a uma

profunda racionalizaccedilatildeo

No seguimento do que se enuncia a perspetivaccedilatildeo da filosofia como uma arte

livre (ars libera) apresenta-se ameaccedilada encontrando-se pois sujeita ou subordinada

461 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p7462 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p15463 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p14464 Neste contexto Pieper cita as palavras de Adolf Hitler as quais embora natildeo se refiram agrave atividade dereconhecimento descrevem aos olhos de Pieper em extrema radicalidade o autoentendimento dotrabalho que Pieper rejeita Toda a accedilatildeo eacute significativa ateacute mesmo um crime toda a passividade natildeotem sentido (PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p11) Pieperavalia esta afirmaccedilatildeo como uma frase terriacutevel (Ibid p14)

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ao ldquodever do cumprimento da funccedilatildeo de tal modo que o reconhecimento filosoacutefico se

afigura neste contexto como um serviccedilo social 465 De acordo com as posiccedilotildees de

Pieper seremos conduzidos agrave seguinte conclusatildeo se o desempenho criacutetico da filosofia

se relaciona de algum modo possiacutevel com a liberdade humana entatildeo poder-se-ia

argumentar que a definiccedilatildeo kantiana de filosofia enquanto de trabalho entra em conflito

com sua proacutepria ecircnfase no valor da liberdade A definiccedilatildeo kantiana de filosofia assim

apreciada parece contrariar a reivindicaccedilatildeo ndash tambeacutem profundamente kantiana ndash da

autonomia dos sujeitos livres que agem de modo autodeterminado Rejeitando o quadro

filosoacutefico kantiano Pieper recupera o paradigma aristoteacutelico de liberdade para

perspetivar uma possiacutevel definiccedilatildeo de filosofia ldquoA ldquoliberdaderdquo das ldquoartes liberaisrdquo

reside no fato de que elas natildeo precisam se legitimar a partir de sua funccedilatildeo socialrdquo466

O quarto capiacutetulo de Muszlige und Kult manifesta a recusa de Pieper em

perspetivar modos de estruturaccedilatildeo social e de distribuiccedilatildeo do privileacutegio do oacutecio entre

grupos sociais no contexto de uma alternativa organizaccedilatildeo social do trabalho Com

efeito a argumentaccedilatildeo de Pieper concentra-se nas consequecircncias antropoloacutegicas que o

mundo totalitaacuterio do trabalho produz O Excurso sobre o proletarianismo e a

desproletarizaccedilatildeo que constitui a maior parte do quarto capiacutetulo eacute significativo a este

respeito pois o mencionado excurso visa transpor o conceito de proletariado de uma

descriccedilatildeo de diferenciaccedilatildeo social para uma avaliaccedilatildeo do mal-entendido antropoloacutegico jaacute

analisado sob a palavra-chave trabalhador De acordo com a tese de Pieper

proletariado significa basicamente nada mais que estar preso ao processo de

trabalho Uma verdadeira desproletarizaccedilatildeo poderia ser alcanccedilada tornando

acessiacutevel ao trabalhador uma aacuterea de atividade significativa que natildeo eacute trabalho ndash em

outras palavras possibilitando-lhe a abertura do domiacutenio do verdadeiro oacutecio467 Pieper

modifica assim a distinccedilatildeo entre trabalho e oacutecio relativamente ao jaacute proposto ao longo

das suas observaccedilotildees anteriores A partir da descriccedilatildeo e da avaliaccedilatildeo da organizaccedilatildeo

social tal distinccedilatildeo constitui um contraste de formas de vida entre as quais os

indiviacuteduos aparentemente mudam Pieper descreve-o como algo inevitaacutevel tendo em

vista a possibilidade de provocar uma expansatildeo econoacutemica atraveacutes de medidas

poliacuteticas do espaccedilo vital que estaacute disponiacutevel para o oacutecio Tal significaria uma

465 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p16466 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p17467 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp35-36

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capacitaccedilatildeo externa do oacutecio uma mudanccedila na organizaccedilatildeo social468 Para Pieper esta

mudanccedila afigura-se necessaacuteria mas natildeo suficiente A coisa decisiva natildeo diz respeito agrave

organizaccedilatildeo social mas ao indiviacuteduo como representante do humano

Uma possibilidade puramente externa de oacutecio natildeo eacute suficiente soacute pode entatildeo florescer

para frutificar quando o homem se tornou capaz de fazer efeito de oacutecio por si mesmo

(esta eacute a expressatildeo grega - scholegraven aacutegein)469

Assim a descriccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo do oacutecio eacute transposta da acircmbito da filosofia

social para a esfera do questionamento acerca da determinaccedilatildeo da accedilatildeo que ocorre no

oacutecio ou eacute proacutepria do oacutecio como Pieper o apresenta com referecircncia a Aristoacuteteles Esta

consideraccedilatildeo implica poreacutem que a consideraccedilatildeo de que a justaposiccedilatildeo entre trabalho e

oacutecio ndash por mais relevante que se afigure atualmente ndash natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise

suficiente para desenvolver uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio Pieper permanece dentro

das orientaccedilotildees do paradigma aristoteacutelico quando remete a questatildeo da organizaccedilatildeo

social do trabalho e do oacutecio para a antropologia na qual somente uma determinaccedilatildeo

positiva do que significa agir no oacutecio pode ser dada O diagnoacutestico criacutetico moderno

com a sua reivindicaccedilatildeo sociopoliacutetica torna-se uma questatildeo de accedilatildeo individual Tal eacute

particularmente evidente no facto de Pieper na terceira secccedilatildeo do seu ensaio

determinar o oacutecio natildeo em relaccedilatildeo ao trabalho mas em relaccedilatildeo agrave ineacutercia (acedia) Aquele

que eacute dito preguiccediloso natildeo trabalha mais do que algueacutem que fazer efeito de oacutecio470

Este fenoacutemeno presta-se portanto a uma diferenciaccedilatildeo mais precisa dentro do natildeo-

trabalho No acircmbito do pensamento de Pieper o contraste entre oacutecio e trabalho

especifica-se agrave luz do contraste entre oacutecio e ineacutercia Referindo-se a Tomaacutes de Aquino

Pieper escreve que o contraconceito de acedia natildeo representa o espiacuterito de trabalho

da vida quotidiana mas a afirmaccedilatildeo e a concordacircncia altamente presumidas do

homem com o seu proacuteprio ser com o mundo como um todo com Deus ndash isto eacute com o

amor471

Torna-se claro a este respeito o modo como Pieper convoca o padratildeo

antropoloacutegico do paradigma aristoteacutelico segundo um olhar cristatildeo tendo em vista a

elaboraccedilatildeo de uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio Soacute pode haver oacutecio se o homem for uno

468 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p36 Sobre a filosofiasocial de Pieper consultar Wald B Der ldquolinke Pieperrdquo und das Dritte Reich In FechtrupHSchulze F Sternberg T (ed) Wissen und Weisheit Zwei Symposien zu Ehren von Josef Pieper Muumlnster 2005 pp 38-82469 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p36470 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p21471 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p22

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consigo mesmo se concordar com o seu ser real472 Este criteacuterio esclarece por que

razatildeo o oacutecio natildeo deve ser reduzido agrave sua possibilidade externa no contexto de formas

sociais a concordacircncia consigo mesmo eacute como a superaccedilatildeo do pecado da aciacutedia uma

questatildeo individual e interna A incorporaccedilatildeo social soacute pode dificultar ou tornar mais

favoraacutevel mas natildeo garantir tal cumprimento No decorrer do seu ensaio Pieper

desenvolve a sua anaacutelise da modernidade agrave luz espiritualidade cristatilde que se torna

assim o centro da sua argumentaccedilatildeo

O oacutecio eacute como uma atitude mental (este facto evidente deve ser registado o oacutecio ainda

natildeo eacute dado com os factos externos de pausa no trabalho tempos livres fim de semana

feacuterias O oacutecio eacute um estado da alma) - o oacutecio eacute precisamente a contraposiccedilatildeo do ideal do

ldquotrabalhadorrdquo473

Poder-se-ia lendo cuidadosamente a citaccedilatildeo de Pieper concluir que a definiccedilatildeo

de oacutecio enquanto atitude mental se distancia por um lado do paradigma aristoteacutelico

jaacute que nada corresponde diretamente a esta atitude na filosofia aristoteacutelica474 Todavia

poder-se-ia por outro lado assinalar pontos comuns entre a sentenccedila de Pieper e a

filosofia aristoteacutelica pois tal atitude mental soacute poderaacute ser concretizada em formas

especiacuteficas de ser ativo que se caracterizam por tal concentraccedilatildeo na perspetiva

interior do ser humana Assim propondo uma inversatildeo da conceccedilatildeo de trabalhador

Pieper descreve o oacutecio como a atitude de natildeo atividade de descanso de deixar as

coisas acontecerem de silecircncio Enquanto atitude de escuta recetiva o oacutecio eacute ao

mesmo tempo atitude de imersatildeo contemplativa no existente475 Assim definido o

oacutecio constitui-se como uma disposiccedilatildeo que se realiza enquanto atividade

especificamente teoacuterica que natildeo eacute discursiva nem reflexiva ndash natildeo eacute ldquotrabalhordquo ndash mas

sim eminentemente intuitiva

De acordo com Pieper o oacutecio eacute a atitude de contemplaccedilatildeo solene que natildeo se

define como atividade de cogniccedilatildeo laboriosa mas sim como experiecircncia de

concordacircncia com a verdadeira essecircncia de si mesmo e igualmente como experiecircncia

de estar de acordo com o sentido do mundo476 No seguimento de tais posiccedilotildees Pieper

472 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p22473 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p23474 Tal diz respeito acima de tudo agrave qualificaccedilatildeo desta atitude como mental Para Aristoacutetelescertamente que existe uma atitude ou disposiccedilatildeo (heacutexis) para a conduta virtuosa e isto natildeo exclui atheoria que traduz a virtude ou areteacute da faculdade mental (nous) do ser humano Consultar AristoacutetelesEacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a475 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p24476 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p25

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descreve a celebraccedilatildeo de uma festa como fenoacutemeno exemplar como a mais alta forma

de afirmaccedilatildeo pois eacute na celebraccedilatildeo da festa que se experiencia um acordo intenso entre

si proacuteprio e o mundo a celebraccedilatildeo da festa eacute pois o momento exemplar do oacutecio ldquoa

origem interior e inata do oacutecio Eacute o caraacuteter celebrativo atraveacutes do qual o oacutecio natildeo eacute

apenas sem esforccedilo mas o oposto de esforccedilo477 Eacute apenas na celebraccedilatildeo que o natildeo-

trabalho adquire um significado entendido por Pieper como acordo e acordo com o

mundo de que tanto o trabalho como a ineacutercia carecem478

Tambeacutem o ensaio de Russell intitulado In Praise of Idleness procura esclarecer o

paradigma aristoteacutelico a partir da relaccedilatildeo entre a accedilatildeo autopropositiva e a

autodeterminaccedilatildeo autoacutenoma No entanto Russell natildeo parece conseguir cumprir tal

tarefa ao inveacutes de resolver o problema Russel descreve-o somente como resultado da

tensatildeo entre uma autoimagem modernaliberal e o paradigma aristoteacutelico479 Russell

assinala com efeito a existecircncia de um problema de distribuiccedilatildeo justa do oacutecio que

reclama de modo urgente uma organizaccedilatildeo mais justa do trabalho Tambeacutem Pieper

admite natildeo obstante a toacutenica na dimensatildeo espiritual da accedilatildeo no oacutecio a capacitaccedilatildeo

externa do oacutecio enquanto representaccedilatildeo de um valor Apesar das diferentes ecircnfases as

477 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p26478 Com base neste criteacuterio acerca de um acordo intenso e pleno de cumprimento tal como ilustradono exemplo do festival podemos compreender as posiccedilotildees de Pieper sobre o oacutecio O caso exemplar deoacutecio natildeo eacute somente o filosofar mas a accedilatildeo culta A ideia de que as celebraccedilotildees satildeo momentosexemplares de oacutecio visa uma consequecircncia muito especiacutefica que jaacute havia sido sugerida na reinterpretaccedilatildeode uma questatildeo social como questatildeo antropoloacutegica e finalmente como questatildeo espiritual Se poreacutem acelebraccedilatildeo eacute o nuacutecleo do oacutecio entatildeo o oacutecio recebe desta a sua capacitaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo interiores eassim a festa e a celebraccedilatildeo recebem o seu significado e a sua capacitaccedilatildeo interior Mas este eacute o culto(PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p38) A atividade de culto eacuteportanto a atividade paradigmaacutetica de oacutecio Culto eacute a perfeiccedilatildeo da celebraccedilatildeo como aquela accedilatildeoinabitual agrave qual se deve dar prioridade mesmo antes do trabalho O culto por sua vez eacute a celebraccedilatildeomais festiva Deste ideal surge tambeacutem um criteacuterio para as formas corretas e incorretas de celebraccedilatildeo Afesta genuiacutena soacute ocorre onde a relaccedilatildeo com o culto ainda estaacute viva (PieperJ Muszlige und Kult Werkein acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p41) Pieper sublinha que natildeo se trata apenas de umaexigecircncia mas tambeacutem de uma afirmaccedilatildeo de que o criteacuterio normativo de autenticidade nofenoacutemeno da proacutepria celebraccedilatildeo deva ser determinado de forma descritiva Separado do culto o oacuteciotorna-se acedia ou seja ocioso e sem uma base no culto o trabalho torna-se desumano (PieperJMuszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p42) Somente na accedilatildeo culta haacuteportanto aquela realizaccedilatildeo da natureza humana que nem a ineacutercia nem o trabalho oferecem mas que eacute auacutenica promessa de felicidade Na pequena introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo inglesa Pieper enfatiza que a defesa doculto eacute uma defesa da liberdade bdquoSuppress that last sphere of freedom and freedom itself and all ourliberties will in the end vanish into thin airldquo (Pieper J Leisure the basis of culture London 1952p20) Tambeacutem a experiecircncia da liberdade do oacutecio eacute portanto condicionada pela liberdade do cultobdquoleisure in its turn is free because of its relation to worship to the cultusldquo (Pieper J Leisure the basisof culture London 1952 p21)479 Um outro autor que se confronta com este problema eacute Hans Blumenberg Para Blumenberg oproblema de como a antropologia antiga (e a sua identificaccedilatildeo de eudaimonia com theoria) pode serassociado agrave descriccedilatildeo kantiana da razatildeo humana Consultar Keiling T The pleasure of the non-conceptual Theory leisure and happiness in Blumenbergrsquos anthropology In SATS NorthernEuropean Journal of Philosophy 17 (2016) pp 81ndash113

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sociedades modernas enfrentam a questatildeo de uma distribuiccedilatildeo justa do oacutecio que natildeo eacute

levada em conta no acircmbito do paradigma aristoteacutelico Pieper e Russell dedicam-se de

facto a descrever um possiacutevel processo de aprendizagem de atividades de oacutecio480 e

ambos situam tal processo no contexto das instituiccedilotildees educacionais Neste sentido

Russel sustenta que natildeo se trata de perspetivar o tempo livre como soluccedilatildeo mas the

wise use of leisure como a product of civilisation and education481 Se o oacutecio

representa um valor social entatildeo torna-se imperioso problematizar natildeo soacute a distribuiccedilatildeo

do trabalho e do tempo de oacutecio que tem de ser proporcionado mas tambeacutem o acesso

aos espaccedilos de oacutecio Uma sociedade necessita de (devido agrave digitalizaccedilatildeo teoricamente

cada vez menos) trabalho para garantir a produccedilatildeo e reproduccedilatildeo do seu material mas

tambeacutem precisa de oacutecio para o seu desenvolvimento eacutetico espiritual e cultural

480 Annette Holba apresentou uma teoria do transformative leisure que se concentra no significado dooacutecio nos processos individuais e sociais de autoentendimento Apesar de Holba seguir Pieper Holbaapresenta as suas criacuteticas Pieper ldquodoes not make explicitly clear the relationship between leisure and thecommunicative structure that organizes and propels our livesrdquo (Holba A Transformative Leisure APhilosophy of Communication Milwaukee 2013 p14)481 Russel B In Praise of Idleness and Other Essays London 2004 [1935] p8

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12 | A dicotomia histoacuterico-cultural entre oacutecio e trabalho

hellipdeclara-se que todos os Imperadores de qualquer Impeacuterio declarado Santo pela vontade osinteresses e os apetites dos homens devem ceder seu trono agraves caracteriacutesticas infantis deatenccedilatildeo contiacutenua agrave vida de existecircncia total no presente de ignoracircncia de coacutedigos manuais efronteiras de integraccedilatildeo no sonho de valorizaccedilatildeo do jogo sobre o trabalho de simpatia pelacigarra que logo a nossa escola substitui pelo aplauso agrave formiga jaacute que (a primeira) conveacutemagrave alegria apenas e a outra ao lucro

Agostinho da Silva Educaccedilatildeo de Portugal

Aceleraccedilatildeo intensificaccedilatildeo do trabalho e de todos os modos de produccedilatildeo laboral

intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica e outros fenoacutemenos de ldquoincrementordquo482

encontram-se entre os principais temas que definem e caracterizam o nosso tempo Os

seus efeitos alteram o mundo em que vivemos e as relaccedilotildees que com ele mantemos bem

como a visatildeo ou a imagem que dele elaboramos e formamos ndash e anunciam a inquietaccedilatildeo

como o signo da modernidade tardia Tomando tal cenaacuterio como pano de fundo das

nossas reflexotildees um dos propoacutesitos centrais do trabalho que aqui apresentamos consiste

em sustentar que num sentido contraacuterio ao sentido corrente o oacutecio ndash um dos conceitos

que se tornaraacute estruturante no interior da presente tese acadeacutemica ndash natildeo se tornou uma

categoria historicamente obsoleta mas ao inveacutes adquiriu um novo significado pessoal

e social Como tal a definiccedilatildeo de oacutecio proposta e utilizada neste trabalho acadeacutemico

remete para a consideraccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de liberdade de ausecircncia de restriccedilotildees

temporais associadas agrave ausecircncia de uma expectativa imediata (e limitadora do tempo)

de desempenho e objetivo o oacutecio e a sua fruiccedilatildeo reclama liberdade das imposiccedilotildees de

restriccedilotildees de tempo e a produtividade de uma nova accedilatildeo pode crescer a partir da

liberdade de natildeo fazer Todavia o oacutecio permanece aqui indeterminaacutevel nas suas

finalidades diretas

Oacutecio e modernidade comportam uma relaccedilatildeo tensa Tal poderaacute ser verificado

atraveacutes da anaacutelise histoacuterica mas tambeacutem a partir da atenta consideraccedilatildeo da nossa

presente modernidade tardia As revoluccedilotildees industriais ndash desde a intensificaccedilatildeo da

482 O termo alematildeo Steigerung (que aqui traduzimos por ldquoincrementordquo) natildeo possui uma palavracorrespondente em liacutengua portuguesa Poderia significar ldquofazer maisrdquo num sentido quantitativo outambeacutem qualitativo Linguisticamente significa ldquoa comparaccedilatildeo de um adjetivordquo podendo tambeacutemsignificar o melhoramento do desempenho crescimento intensificaccedilatildeo aprimoramento expansatildeo eincremento

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mecanizaccedilatildeo por volta de 1800 ateacute agrave eletrificaccedilatildeo ocorrida a partir de

aproximadamente 1900 desde a automaccedilatildeo no seacuteculo XX ateacute agrave digitalizaccedilatildeo contiacutenua ndash

alteraram aceleraram e incrementaram de modo draacutestico e inexoraacutevel dimensotildees

significativas do mundo e da nossa relaccedilatildeo com ele ndash em especial o designado mundo

do trabalho483 A luz artificial dissolve o dia na noite o trabalho e o consumo tornam-se

possiacuteveis e exequiacuteveis a qualquer momento ao contraacuterio do sono que deixa de ser um

resiacuteduo fixo de repouso e de recuperaccedilatildeo fiacutesica e mental484 Os dados as informaccedilotildees

satildeo permanentemente transmitidos por todo o planeta e o capitalismo estabelece-se

mundialmente como a ordem econoacutemica e social dominante natildeo obstante a irrupccedilatildeo de

crises econoacutemicas e financeiras Na viragem do seacuteculo XX para o seacuteculo XXI os seres

humanos definidos nas suas potencialidades laborais e produtivas transformam-se em

trabalhadores independentes e em precaacuterios criativos

Otimizaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo natildeo satildeo apenas maacuteximas propagadas no mundo

externo mas tambeacutem internalizadas como nos revela a figura do eu-empreendedor485

perspetivado por alguns filoacutesofos sociais tais como Byung-Chul Han na sua obra A

Sociedade do Cansaccedilo Neste sentido o oacutecio parece ter-se tornado um conceito obsoleto

ou anacroacutenico conquanto nunca tenha desaparecido completamente Tal poderaacute ser

constatado por exemplo na tradiccedilatildeo da Bohegraveme cujos representantes no seacuteculo XIX e

iniacutecios do seacuteculo XX buscaram uma vida livre artisticamente inspirada para aleacutem das

convenccedilotildees sociais e morais e dos mecanismos de mercado486 Dandy e Flacircneur satildeo

figuras sociais proeminentes que se inscrevem natildeo obstante na cultura moderna aqui

adquirindo os seus contornos eminentemente esteacuteticos recordando-nos das

possibilidades quase esquecidas da vida ociosa no contexto da modernidade urbana em

raacutepida mutaccedilatildeo487

483 Schivelbusch W Geschichte der Eisenbahnreise Zur Industrialisierung von Zeit und Raum im 19Jahrhundert Muumlnchen 1977484 Crary J 247 Late capitalism and the ends of sleep London 2014485 Broumlckling U Das unternehmerische Selbst Soziologie einer Subjektivierungsform Frankfurt a M2007 E tambeacutem Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014486 Kreuzer H Die Boheme Analyse und Dokumentation der intellektuellen Subkultur vom 19Jahrhundert bis zur Gegenwart Stuttgart 1971 Meyer A-R Jenseits der Norm Aspekte der Bohegraveme-Darstellung in der franzoumlsischen und deutschen Literatur 1830ndash1910 Bielefeld 2001487 Krause R bdquoDem muumlszligigen Flaneur den angenehmsten Zeitvertreib gewaumlhrenrdquo Figurationendes Muumlszligiggangs in Heines sbquoBriefen aus Berlinlsquo und sbquoLutezialsquo In Unger TLillge CWeyand B(ed) Arbeit und Muumlszligiggang in der Romantik Paderborn 2017 pp171ndash182 Krause R bdquoDandysmeZu einem Motiv aus Nietzsches Baudelaire-Exzerptenldquo In Graumltz KKaufmann S (ed) Nietzscheals Dichter Lyrik ndash Poetologie ndash Rezeption Berlin Boston 2017 pp 401ndash420

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Que significa pois oacutecio ndash e como tal conceito se desenvolvera ao longo dos

tempos No final do seacuteculo XVIII o dicionaacuterio de Adelung definia o oacutecio na sua

demarcaccedilatildeo relativamente a neg-oacutecio como

o tempo restante do emprego regular de transaccedilotildees profissionais do negoacutecio profissional

ou tempo livre isenccedilatildeo do negoacutecio regular ] Aleacutem disso a completa liberdade de todas

as ocupaccedilotildees obrigatoacuterias488

De acordo com esta definiccedilatildeo oacutecio natildeo significa inatividade per se mas sim a

possibilidade de poder escolher livremente entre inatividade e atividade sem no

entanto estar obrigado agrave atividade escolhida ou a qualquer outra atividade no tempo

disponiacutevel Com efeito desde a Antiguidade grega o conceito de oacutecio tem sido definido

segundo uma conotaccedilatildeo positiva neste sentido Platatildeo considerara o oacutecio uma condiccedilatildeo

social necessaacuteria para filosofar489 Nos tempos modernos e particularmente desde o

seacuteculo XVIII a posiccedilatildeo privilegiada do oacutecio como modo de vida que seria propiacutecio agrave

arte agrave filosofia e agrave ciecircncia encontra-se em regressatildeo e os seus campos de atividade

apresentam-se crescentemente incluiacutedos no conceito de trabalho490 a este respeito a

definiccedilatildeo de Adelung que perspetiva o oacutecio como possibilidade de transaccedilotildees

profissionais de tempo livre ou restante consiste numa definiccedilatildeo que jaacute natildeo se afigura

passiacutevel de integrar uma compreensatildeo do conceito de oacutecio sem uma referecircncia ao

conceito de trabalho

Curiosamente a preguiccedila por sua vez define-a Adelung como a omissatildeo

inativa do trabalho obediente e no sentido estrito da palavra a habilidade dessa

omissatildeo491 Neste sentido nos iniacutecios do seacuteculo XVIII a preguiccedila eacute concebida como

uma situaccedilatildeo de natildeo-trabalho ndash embora se deva realmente trabalhar Assim definido o

conceito de preguiccedila pressupotildee uma certa obrigaccedilatildeo de trabalhar E a referecircncia agrave

omissatildeo do trabalho parece evocar ndash advertindo para ndash o perigo de desenvolver um

estilo de vida indolente marcado pelo gosto pela negligecircncia do dever de trabalhar492

488 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p626489 Martin N Muszlige In Historisches Woumlrterbuch der Philosophie (Vol6) Ritter JGruumlnder K (ed)Darmstadt 1984 Vol 6 p 257-260490 Martin N Muszlige In Historisches Woumlrterbuch der Philosophie (vol6) Ritter JGruumlnder K (ed)Darmstadt 1984 p 258491 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p628492 Consultar muumlszligig In Duden Das groszlige Woumlrterbuch der deutschen Sprache in zehn Baumlden WissRat der Dudenredaktion Mannheim 1999 vol 6 p2665

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O conceito de trabalho tambeacutem requer pois uma definiccedilatildeo que neste

contexto poderaacute ser inicialmente orientada para o uso contemporacircneo do termo no

iniacutecio da modernidade por volta do ano 1800493 No seu artigo de dicionaacuterio Adelung

descreve o uso da palavra trabalho segundo dois aspetos por um lado para a

performance e por outro para o trabalho a ser produzido ou produzido pela atividade

O artigo apresenta algumas passagens essenciais para a compreensatildeo do conceito de

trabalho

O trabalho plur -os um substantivo usado para descrever tanto a aplicaccedilatildeo

das forccedilas do corpo e da alma como o objeto desta aplicaccedilatildeo Portanto

significa

I A aplicaccedilatildeo dos seus poderes [] nomeadamente

1 no significado verdadeiro a aplicaccedilatildeo de forccedilas fiacutesicas principalmente para

adquirir propriedade temporal com ela [] Especialmente os artesatildeos fizeram

desta palavra a sua proacutepria para imprimir toda a gama de ocupaccedilotildees

pertencentes aos seus ofiacutecios

2 em sentido mais amplo a aplicaccedilatildeo obrigatoacuteria das forccedilas da alma em que o

significado da maioria das expressotildees mencionadas acima pelos trabalhos

manuais tambeacutem eacute comum Por isso tambeacutem se diz aqui ldquofazer o trabalhordquo ldquoir

trabalharrdquo ldquoir para o trabalhordquo e assim por diante

3 figurativo (1) O movimento interno dos corpos inanimados especialmente

aquele produzido pela fermentaccedilatildeo [] (2) esforccedilo dificuldade Em tempos

passados este significado se estendia ainda mais e era muito comum para

irritaccedilatildeo dores perseguiccedilatildeo etc [] No Alto Alematildeo este significado jaacute natildeo eacute

mais usual exceto que agraves vezes ainda eacute comum usar a palavra trabalho para o

esforccedilo

493 Consultar Conze W Arbeit In Geschichtliche Grundbegriffe Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland Brunner OConzeWKoselleck R (ed) Stuttgart 1972 vol 1 pp154-215 Fuumlllsack M Arbeit Wien 2009

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II o objeto do trabalho nomeadamente

1 O que deve ser produzido pelo trabalho Para dar um trabalhordquo ldquoEle tem

muitos trabalhos estaacute sobrecarregado com trabalho [hellip]

2 o que foi produzido pelo trabalho Este eacute o trabalho das suas matildeos ou seja

ele conseguiu fazer isso [hellip]494

O artigo de Adelung aponta revelando alguns desenvolvimentos que poderatildeo

ser descritos como porventura virulentos ocorridos no contexto do trabalho no

momento da viragem do seacuteculo XVIII para o seacuteculo XIX e que se refletiram

inclusivamente no uso da liacutengua alematilde em primeiro lugar o significado figurativo de

trabalho como esforccedilo e dificuldade que fora central para o uso da liacutengua do Alto

Alematildeo Meacutedio495 natildeo mais se apresenta considerado no Alto Alematildeo (I3(2)) ou seja a

conotaccedilatildeo negativa da palavra outrora dominante recuou consideravelmente496 Em

segundo lugar no acircmbito exterior ao da aplicaccedilatildeo de forccedilas fiacutesicas ndash para a qual eacute

sublinhada a utilizaccedilatildeo do termo pelos artesatildeos ndash a aplicaccedilatildeo obrigatoacuteria de forccedilas

mentais ou seja a atividade intelectual passa tambeacutem a ser descrita como trabalho

(I2) Em terceiro lugar no entanto o objetivo do trabalho continua a ser considerado de

um modo redutor e pouco claro (I1) Jaacute Joachim Heinrich Campe (1746-1818) que no

seu artigo de dicionaacuterio escrito em 1807 seguira de modo evidente Adelung

concebera o propoacutesito do trabalho de um modo mais amplo Trabalho [] eacute a aplicaccedilatildeo

esforccedilada de forccedilas fiacutesicas ou mentais para alcanccedilar uma finalidaderdquo497

As atividades que natildeo se destinam a um fim satildeo aqui por conseguinte excluiacutedas

do termo trabalho Algumas deacutecadas mais tarde foram formuladas consideraccedilotildees

494 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p634495 De acordo com M Lexer o termo Arbeit (trabalho) ndash e tambeacutem erbeit em alematildeo meacutedio-altoque traduz aquilo que eacute produzido pelo trabalho isto eacute a obra ndash significa esforccedilo custo arduidademiseacuteria que se sofre involuntaacuteria ou voluntariamente bem como inclusivamente puniccedilatildeo ConsultarLexer M Arbeit Arbeit In Ders Middle High German Dictionary Leipzig 1872 vol1 p88496 Antes do Iluminismo a Reforma contribuiu para uma valorizaccedilatildeo do trabalho quase como caridadepraticada e portanto como forma de culto cristatilde Entre os escritos da Reforma consultar Luther M Anden christlichen Adel deutscher Nation Stuttgart1990 [1520] pp17 44 Sobre os desenvolvimentosmodernos acerca da compreensatildeo do trabalho consultar Vontobel K Das Arbeitsethos des deutschenProtestantismus Das Arbeitsethos des deutschen Protestantismus Von der nachreformatori- schen Zeitbis zur Aufklaumlrung Bern 1946497 Consultar Die Arbeit In Woumlrterbuch der Deutschen Sprache Campe JH (ed) Braunschweig1807 Vol 1 p200

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muito mais precisas sobre o objetivo do trabalho humano A definiccedilatildeo de Karl Marx de

1844 relativa ao ser humano verdadeiro porque real como resultado do seu proacuteprio

trabalho498 constitui provavelmente o ponto culminante do significado antropoloacutegico

de trabalho

No entanto a definiccedilatildeo duacuteplice de Adelung ilustra de modo claro a finalidade

da produccedilatildeo da atividade (agraves vezes custosa) como forma de assegurar o proacuteprio sustento

(Adelung escreve para a aquisiccedilatildeo de propriedade) por um lado e como forma de

criaccedilatildeo de valor a produccedilatildeo de bens por outro lado sublinhando a complementaridade

destes dois aspetos do trabalho Na sua apresentaccedilatildeo da histoacuteria econoacutemica Andrea

Komlosy elucida-nos que estas duas dimensotildees do trabalho a partir do grego πόνοccedil

(poacutenos) para trabalho laborioso e uργον (eacutergon) para trabalho criativo (respetivamente

labor e molestia bem como opus em latim) podem ser encontradas em quase todas as

liacutenguas indo-europeias modernas do Arbeit e Werk em alematildeo ao trabalho e obra em

portuguecircs ateacute robocircta e dzieło em polaco499 Com efeito nos iniacutecios do seacuteculo XIX estes

dois aspetos da definiccedilatildeo de trabalho encontram-se profundamente interligados o

trabalho decorrente da forccedila manual humana e o trabalho enquanto opus

intelectualartiacutestico ndash tambeacutem este segundo aspeto saliente-se se afigura concebido

como algo que integra a proacutepria definiccedilatildeo de trabalho natildeo mais como uma produccedilatildeo

decorrente do oacutecio Hannah Arendt500 na sua obra A Condiccedilatildeo Humana clarificou tal

diferenciaccedilatildeo na sua anaacutelise do conceito moderno de trabalho agrave luz da formulaccedilatildeo dos

conceitos de trabalhar e de produzir salientando no acircmbito da definiccedilatildeo de trabalho a

inscriccedilatildeo do elemento da repeticcedilatildeo o que ainda natildeo ocorre na definiccedilatildeo de Adelung

Em contraste com a produccedilatildeo que termina quando o objeto tem a sua forma adequada e

agora pode ser inserido como uma coisa acabada do mundo das coisas existentes o

trabalho nunca estaacute acabado mas gira em repeticcedilatildeo infinita no ciacuterculo recorrente

prescrito pelo processo bioloacutegico da vida e cujo esforccedilo e praga soacute termina com a morte

498 Marx K Nationaloumlkonomie und Philosophie [1844] In Die Fruumlhschriften Landshut S (ed)Stuttgart 1971 p269499 Consultar Komlosy A Arbeit Eine globalhistorische Perspektive Wien 2014 pp36-40 Komlosyincorpora as liacutenguas modernas alematildeo inglecircs francecircs italiano espanhol portuguecircs russo polaco eseacutervio na sua investigaccedilatildeo sobre o conceito de trabalho desenvolvendo uma anaacutelise do atual sentido dotermo trabalho no domiacutenio das palavras assim perspetivando correspondecircncias ou natildeo conformidadeentre este e a liacutengua chinesa (consultar Komlosy A Arbeit Eine globalhistorische Perspektive Wien2014 pp44-52)500 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981

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do respetivo organismo501

Hoje o conceito afigura-se ainda mais complexo na medida em que o terceiro

domiacutenio da atividade humana discutido em Arendt a accedilatildeo e especialmente a accedilatildeo no

sistema social da poliacutetica apresenta-se tambeacutem avaliado como trabalho segundo a

linguagem comum ou corrente Arendt introduz a accedilatildeo e o falar como as duas formas de

atividades definidoras da identidade de seres humanos502 Na antiguidade agir na polis

constituiacutea uma tarefa dos homens livres sendo estritamente distinguida da esfera do

trabalho Rainer Hank entre outros autores diagnosticou um efeito oposto no final do

seacuteculo XX

O facto de que o compromisso com a poliacutetica ainda atrai pessoas soacute poderia ser bem-

sucedido por meio de um truque A poliacutetica tambeacutem pode ser entendida como uma

profissatildeo A poliacutetica eacute entatildeo trabalho jaacute natildeo brigas indisciplinadas mas responsaacutevel sobre

os assuntos da comunidade como nos tempos de Atenas503

No que respeita ao seacuteculo XX Hank poderia pois retomar a formulaccedilatildeo do

tiacutetulo da palestra de Max Weber sobre a poliacutetica como profissatildeo de 1917504 No iniacutecio

do seacuteculo XIX todavia provavelmente ainda natildeo era este o caso Mas a anaacutelise das

entradas do dicionaacuterio de Adelung mostra-nos que a subordinaccedilatildeo de partes cada vez

maiores da vita ativa agrave categoria de trabalho jaacute se havia configurado como uma situaccedilatildeo

que obtivera uma progressatildeo significativa no final do seacuteculo XVIII O periacuteodo de

meados do seacuteculo XVIII a meados do seacuteculo XIX eacute de extraordinaacuteria relevacircncia para o

desenvolvimento do conceito moderno de trabalho A literatura e as artes do

romantismo contribuem com estiacutemulos especiacuteficos para este processo pois as suas

posiccedilotildees esteacuteticas implicam uma contradiccedilatildeo da justaposiccedilatildeo estabelecida pelo

Iluminismo relativamente a trabalho positivamente valorizado e a ociosidade

negativamente valorizada no entanto poder-se-ia afirmar que os romacircnticos incorrem

na mera sobrevalorizaccedilatildeo do outro da vida ativa (para aleacutem da ociosidade tambeacutem o

sono o oacutecio e a preguiccedila) Num extremo do espectro de tais afirmaccedilotildees estaacute Friedrich

Schlegel por exemplo que em 1799 descrevera o ethos de trabalho burguecircs

501 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p90 502 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 pp164-174503 Hank R Arbeit ndash Die Religion des 20 Jahrhunderts Auf dem Weg in die Gesellschaft derSelbstaumlndigen Frankfurt a M 1995 p10 No que respeita agraves teorizaccedilotildees sobre o conceito de trabalhoprovindas da linguiacutestica anglo-saxoacutenica consultar Sennet R Handwerk Berlin 2008 de Botton AFreuden und Muumlhen der Arbeit Frankfurt a M 2014504 Consultar Weber M Politik als Beruf Berlin 2010 [1919]

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contemporacircneo segundo a personagem Juacutelio caracterizada segundo uma vazia

inquieta agitaccedilatildeo detentora de maus haacutebitos noacuterdicos a quem se opotildee a imagem

iluminada de Prometeu como um Heacutercules cujo objetivo final em todas as suas tarefas

hercuacuteleas sempre permaneceu um nobre oacutecio505 No outro extremo do espectro

localiza-se Georg Buumlchner que como saacutetiro trecircs deacutecadas e meia mais tarde em Leonce

e Lena trata de forma profundamente criacutetica o oacutecio como forma de vida da nobreza506

O desenvolvimento do emprego assalariado dependente no iniacutecio do seacuteculo XIX

caracterizava-se pelo facto de a esfera do trabalho estar cada vez mais separada espacial

e temporalmente da esfera da famiacutelia ter lugar em empresas ter iniacutecio a uma certa hora

da manhatilde e terminar a uma determinada hora da noite Nos tempos da modernidade

tardia deparamo-nos com o desenvolvimento inverso no escritoacuterio domeacutestico moderno

natildeo eacute apenas o espaccedilo de trabalho que dificilmente eacute separado do espaccedilo privado da

famiacutelia e do tempo livre ndash as duas esferas estatildeo tambeacutem profundamente interpenetradas

na modernidade Byung-Chul Han interpreta o contexto descrito como uma mudanccedila de

qualidade na experiecircncia do tempo com um efeito patoloacutegico

A sociedade moderna de desempenho acelerado de hoje tranca o tempo Ela amarra-o ao

trabalho O Burnout natildeo eacute uma doenccedila de trabalho mas uma doenccedila de desempenho Natildeo

eacute o trabalho como tal mas a performance esse novo princiacutepio neoliberal que torna a alma

doente A pausa como uma pausa do trabalho natildeo marca outra hora Eacute apenas uma fase do

tempo de trabalho Hoje natildeo temos outro tempo aleacutem do tempo de trabalho Haacute muito

tempo perdemos o tempo de celebraccedilatildeo e oacutecio [] Hoje natildeo soacute levamos o nosso tempo de

trabalho connosco de feacuterias mas tambeacutem de dormir [] O descanso eacute tambeacutem apenas um

modo de trabalho numa vida incrementada na medida em que serve principalmente para

regenerar a matildeo-de-obra507

No seguimento de tais consideraccedilotildees uma interrogaccedilatildeo impotildee-se como

enquadrar o oacutecio no contexto da modernidade Com efeito a modernidade tem sido

desde haacute muito um campo sui generis508 de investigaccedilatildeo no domiacutenio do conhecimento e

eacute frequentemente entendida como uma macro-epoch que poderia comeccedilar com a

filosofia literatura e induacutestria europeias por volta de 1800 A modernidade revela ser

505 Schlegel F Lucinde Polheim KK (ed) Stuttgart 1963 [1799] pp34 37 Dischner G FriedrichSchlegels Lucinde und Materialien zu einer Theorie des Muumlszligiggangs Hildesheim 1980506 Buumlchner G Dantons Tod In Ders Werke und Briefe Muumlnchen 1980 pp7-68507 Han B-C Alles eilt Wie wir die Zeit erleben In DIE ZEIT Sonderheft bdquoPhilosophieldquo 25 (2016)p42508 Consultar BeckerKiesel (ed)Moderne Begriff und Phaumlnomen Frankfurt aM 2013

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um conceito de diferenccedila O moderno eacute o que estaacute em contraste com o antigo509 A

modernidade define-se menos como uma eacutepoca claramente dataacutevel do que como uma

fissura510 como uma rutura forccedilada na sua diversidade e na sua incapacidade de

desenvolver-se segundo um princiacutepio de completude e agrave luz da elaboraccedilatildeo de um

conceito de sujeito que natildeo pode ser por princiacutepio finalizado ldquoA modernidade eacute a

idade que menos se manteve igual a si mesma observou Walter Benjamin jaacute em

193839511 Juumlrgen Habermas designou-a de um projeto inacabado512

Neste sentido a reavaliaccedilatildeo e a alteraccedilatildeo dos contornos esteacuteticos do oacutecio podem

ser consideradas como consequecircncias ou inclusivamente caracteriacutesticas constitutivas

na modernidade Neste contexto poder-se-ia apontar a relevacircncia do flacircneur concebido

como uma das principais figuras da modernidade urbana por conseguinte poder-se-ia

avaliar o oacutecio como uma categoria antropoloacutegica que assume uma forma histoacuterica

especiacutefica na sociedade moderna do trabalho uma categoria que se apresenta

esteticamente afim de uma compreensatildeo moderna da subjetividade individual agrave luz de

novas figuras como a do flacircneur

Segundo este uacuteltimo ponto de vista o oacutecio poderaacute ser geralmente considerado

como uma experiecircncia de pendor individual Todavia poder-se-ia tambeacutem afirmar que

as respetivas condiccedilotildees sociais desempenham um papel essencial na configuraccedilatildeo das

possibilidades e dos limites do oacutecio As restriccedilotildees de tempo e as expectativas concretas

de desempenho que limitam ou impedem o oacutecio decorrem de um modo preponderante

de estruturas sociais e econoacutemicas nas quais o homem estaacute integrado enquanto ser

social

509 Figal G bdquoKrise der Aufklaumlrung ndash Freiheitsphilosophie und Nihilismus als geschichtlicheVoraussetzungen der Moderneldquo In Vietta SKemper D (ed) Aumlsthetische Moderne in EuropaGrundzuumlge und Problemzusammenhaumlnge seit der Romantik Tuumlbingen 1997 p57Importaria a este respeito ler Sloterdijk ldquoNesta nossa parte do mundo comeccedilou uma rebeliatildeo contra atirania do real uma revolta que eacute apresentada por uma seacuterie de nomes escritos com letras mais ou menosdesgastadas revoluccedilatildeo industrial iluminismo ldquomodernizaccedilatildeordquo Aquele que usa tais expressotildees regrageral natildeo tem em conta que estas apenas fazem sentido enquanto componentes de uma revoluccedilatildeoontoloacutegica Mencionam aspetos da rebeliatildeo daquela eacutepoca contra a caracteriacutestica de carga esmagadoraque a realidade de outros tempos apresentava Quem quer ser moderno trabalha sempre mais raacutepido nosentido de fazer com que uma realidade que existiu ateacute ao presente se torne uma realidade que jaacute natildeoexisterdquo Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 p89510 Consultar Frick W bdquoAvantgarde und longue dureacutee Uumlberlegungen zum Traditionsverbrauch derklassischen Moderneldquo In BeckerKiesel (ed) Literarische Moderne Berlin 2007 pp 97ndash112511 Benjamin W bdquoCharles Baudelaire Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalis- musldquo GesammelteSchriften Tiedemann RSchweppenhaumluser H (ed) vol I2 Frankfurt a M 1974 p593512 Habermas J bdquoDie Moderne ndash ein unvollendetes Projektldquo In Habermas J Kleine philosophischeSchriften (IndashIV) Frankfurt a M 1981 p446

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A referecircncia a um sujeito do oacutecio natildeo significa natildeo obstante que o oacutecio soacute

possa ser vivenciado e experimentado na solidatildeo Pelo contraacuterio o oacutecio deve ser

concebido e com total justeza como um fenoacutemeno eminentemente social Desde a

antiguidade o oacutecio foi considerado repetidamente como uma condiccedilatildeo sine qua non

para a sociabilidade nas suas vaacuterias formas Interessantemente no final do seacuteculo

XVIII o filoacutesofo Christian Garve postulara que o oacutecio era uma conditio sine qua non

para a sociabilidade segundo tal perspetiva a sociabilidade constitui um ideal eacutetico da

vida decorrente entre outros da teoria da simpatia desenvolvida pela filosofia moral

escocesa

A relevacircncia social do oacutecio no entanto natildeo se limita agrave sua importacircncia para as

teorias e praacuteticas da sociabilidade Diversos estudos atribuem ao oacutecio um importante

valor social e poliacutetico que examinam criticamente a natureza da nossa economia e

juntamente com ela os nossos paradigmas econoacutemicos e sociopoliacuteticos Um exemplo

relevante desta atitude eacute a obra de Robert e Edward Skidelsky How Much is Enough

The Love of Money and the Case for the Good Life O ponto de partida central das

reflexotildees dos autores eacute uma palestra apresentada por John Maynard Keynes em 1928 e

publicada dois anos mais tarde de forma ampliada e atualizada no contexto da

devastadora crise econoacutemica mundial e que se intitula Economic Possibilities for our

Grandchildren De acordo com o que Keynes sustenta neste ensaio utoacutepico em cerca de

100 anos (por volta de 2030) o tempo de trabalho semanal seria de 15 horas Deste

modo o crescimento do capital e o progresso teacutecnico permitiriam o amanhecer de uma

nova era a era do oacutecio e da abundacircncia ndash ldquothe age of leisure and of abundancerdquo Com a

satisfaccedilatildeo de todas as necessidades materiais natildeo seria necessaacuterio mais crescimento

econoacutemico Keynes predisse pois que a idade futura do oacutecio seria uma idade da arte de

viver

Assim neste contexto o oacutecio constitui-se como um desafio eacutetico fundamental

Nesta questatildeo mas natildeo no prognoacutestico utoacutepico Robert Skidelsky segue Keynes Com

base na sua anaacutelise criacutetica do presente e no recurso a noccedilotildees eacuteticas de uma vida boa ndash

sustentadas em Aristoacuteteles ndash os autores de How Much is Enough The Love of Money

and the Case for the Good Life elaboram uma perspetiva poacutes-material para o futuro no

acircmbito da qual atribuem um papel importante ao oacutecio Robert e Edward Skidelsky

perspetivam o oacutecio como um ndash basic good ndash incluindo-o num cataacutelogo de demandas

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poliacuteticas com uma reivindicaccedilatildeo universal Os autores declaram que o oacutecio consiste

num valor baacutesico democraacutetico indispensaacutevel para uma sociedade que deve tratar os seus

proacuteprios recursos bem como os recursos do planeta com cuidado e justiccedila social

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Capiacutetulo 2

Espaccedilos e tempos do oacutecio

Uma leitura cultural

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21 | Do oacutecio como categoria espacial e temporal

La forme dune ville change plus vite heacutelas que le coeur dun mortel

Charles Baudelaire Le cygne

Vous pouvez eacutevidemment alleacuteguer que Sisyphe est paresseuxMais quoi ce sont les paresseux qui remuent le monde Les autres nrsquoont pas le temps

Albert Camus Carta a Francis Ponge de 27 de janeiro de 1943

Natildeo tenho pressa Pressa de queNatildeo tem pressa o sol e a lua estatildeo certosTer pressa eacute crer que a gente passa adiante das pernasOu que dando um pulo salta por cima da sombraNatildeo natildeo sei ter pressaSe estendo o braccedilo chega exactamente aonde o meu braccedilo chega ndash Nem um centiacutemetro mais longe

Alberto Caeiro Poemas inconjunctos

O oacutecio possui uma dimensatildeo espacial tal como toda a experiecircncia fiacutesica e

corporal o oacutecio desenvolve-se em espaccedilos especialmente concebidos diferindo estes

de forma frequente de outros espaccedilos tais como os espaccedilos de trabalho Academias

bibliotecas museus hoteacuteis casas de campo casas de chaacute banhos jardins ou parques

sanatoacuterios mosteiros (ou outros retreats) destacam-se amiuacutede da arquitetura normal da

vida e do trabalho destinando-se a um tipo de vida diferente apresentando-se distintos

dos edifiacutecios em que habitualmente se permanece Estes espaccedilos satildeo diferentes pois satildeo

lugares de ldquooacutecio-permitidordquo porventura de ldquooacutecio-promovidordquo Certamente o oacutecio natildeo eacute

apenas possiacutevel em lugares como aqueles aqui mencionados se natildeo todos os lugares

muitos lugares podem tornar-se e constituir-se como lugares de oacutecio

Mas quais satildeo as caracteriacutesticas dos lugares ou espaccedilos de oacutecio tais como

aqueles acima mencionados O que eacute que um mosteiro tem em comum com um hotel de

spa o que eacute que uma biblioteca tem em comum com um banho termal ou uma casa no

campo A primeira coisa comum e que subjaz aos lugares e espaccedilos de oacutecio consiste

num limite determinado mais ou menos demarcaacutevel Visitamo-los especificamente e a

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experiecircncia que se desenvolve no seu interior eacute de uma outra categoria que escapa agrave

normalidade da vida que lhe eacute exterior digamo-lo assim O limiar que se atravessa ao

entrar neles eacute o limiar entre o ruiacutedo e o silecircncio entre a azaacutefama e a tranquilidade Os

meios de comunicaccedilatildeo que transcendem o espaccedilo normalmente natildeo tecircm lugar em

espaccedilos de oacutecio embora o oacutecio possa ter uma dimensatildeo social e comunicativa Eis a sua

caracteriacutestica comum por muito diferentes que tais espaccedilos se afigurem entre si ndash mas o

oacutecio natildeo eacute o mesmo que tempo livre Tais lugares de oacutecio promovem a emergecircncia de

um tipo muito especial de atenccedilatildeo ndash uma atenccedilatildeo que natildeo tem de ser ganha e preservada

especificamente mas que surge por sua proacutepria iniciativa Sente-se aqui a vontade de

uma forma especial No oacutecio estamos envolvidos com possibilidades desfrutamos

delas Tal situaccedilatildeo alarga o campo de visatildeo do nosso olhar ndash natildeo se trata propriamente

da visatildeo concentrada na contemplaccedilatildeo de um quadro de um museu mas distintamente

da possibilidade de o nosso olhar extravasar o direcionamento o foco especiacutefico da

nossa visatildeo

O oacutecio ao que parece requer uma des-centraccedilatildeo especial um olhar natildeo fixo a

vontade de ser surpreendido Nesta prontidatildeo a liberdade desempenha um papel

especial mas um tipo especial de liberdade A liberdade eacute numa aceccedilatildeo corrente

concebida como a possibilidade de levar a cabo algo que se tenha decidido fazer sem

obstaacuteculos assim como num outro sentido a possibilidade de controlar o que acontece

em cada fase do ato para que nada possa simplesmente acontecer sem que seja previsto

ou pretendido Esta possibilidade de controlo eacute uma caracteriacutestica essencial do que se

chama vontade o controlo quanto a fazer algo segundo uma intenccedilatildeo preacute-estabelecida ndash

uma previsatildeo acerca de como algo deve acontecer antes de estar laacute tomando existecircncia

de acordo com aquilo que a imaginaccedilatildeo formulara previamente Em contraste a

liberdade de ser surpreendido natildeo eacute a liberdade de vontade mas a liberdade da vontade

Espaccedilos des-focados como um museu ou uma biblioteca que desperta o desejo

de ler encorajam ou permitem o oacutecio Estes espaccedilos promovem uma realizaccedilatildeo

particular que natildeo se traduz por sua vez numa realidade contiacutenua abrindo por

contraste um horizonte de possibilidades Do possiacutevel da fulguraccedilatildeo da possibilidade

resulta uma tranquilidade especial que estaacute intimamente ligada ao oacutecio Trata-se de uma

atividade pode ser formativa ou realizadora se realizada no oacutecio tal atividade

desenvolve-se sem forccedilar uma soluccedilatildeo No oacutecio deixa-se sempre acontecer o que se

estaacute ocupado com As soluccedilotildees podem permanecer abertas podem estar no contexto de

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outras possibilidades e tambeacutem do imprevisto ndash ou por outras palavras o natildeo previsiacutevel

desde o iniacutecio Desta forma a obra em que um artista trabalhou em oacutecio pode

surpreender o proacuteprio artista pois no oacutecio nada tem de ser decidido sob determinada

pressatildeo e uma tarefa poderaacute ser levada a cabo na plenitude das suas possibilidades Um

exemplo de tal situaccedilatildeo poderia ser a ocupaccedilatildeo de uma obra de arte que estaacute sempre

presente enquanto ela proacutepria na justaposiccedilatildeo das possibilidades da sua aparecircncia e tais

possibilidades sob vaacuterios pontos de vista da sua acessibilidade poderatildeo ser exploradas

Ainda que apenas possamos perceber ou entrever uma das suas acessibilidades as

outras encontram-se tambeacutem elas presentes

A espacialidade da vida eacute tanto mais esquecida quanto mais a accedilatildeo eacute orientada

para objetivos e assim empurrada para a estreiteza do canal do tempo Concebido agrave luz

da direccedilatildeo do objetivo tudo estaacute sujeito agrave compulsatildeo da sucessatildeo Tal natildeo eacute passiacutevel de

ser alterado ou resolvido com a mera mudanccedila do fazer para o natildeo fazer O natildeo fazer

poderaacute traduzir-se numa anoacutedina pausa tambeacutem ela subordinada ao fazer Eacute certo que a

pausa poderaacute ter o sentido de uma reflexatildeo faz-se uma pausa olha-se em redor e

pensa-se em como continuar No entanto a compulsatildeo da sucessatildeo permanece vigente

continuando a tratar-se de uma questatildeo de antes e depois de ainda natildeo e jaacute natildeo eacute Para

que isto se altere efetivamente a atitude deve mudar promovendo o afastamento de

uma orientaccedilatildeo para um objetivo de uma accedilatildeo para as possibilidades de experimentar

existecircncia de um forma des-centrada no espaccedilo Soacute desta forma a perceccedilatildeo e o

pensamento se tornaratildeo livres podendo envolver-se com o que existe Deste modo o

fazer natildeo para mas adquire um significado diferente No oacutecio estamos perante a

potencialidade de esquecimento da pausa enquanto momento permitido de suspensatildeo do

trabalho ndash trata-se justamente do esquecimento de que nos encontramos num momento

que nos eacute autorizada a interrupccedilatildeo do trabalho No oacutecio entrevemos as simples

possibilidades de existecircncia vecirc-se e aceita-se

A permanecircncia numa praccedila urbana o flanar a contemplaccedilatildeo do jogo de luzes e

nuvens na praia inclusivamente o passeio na natureza revelam um caraacutecter ocioso O

oacutecio natildeo exclui movimento mas tudo o que eacute observado por mais que possa alterar-se

nos seus pormenores deve pertencer a um todo calmo Observar ociosamente uma praccedila

urbana permite-nos dirigir o olhar para o quadro geral alargando o nosso campo de

visatildeo para laacute do movimento do ir e vir ndash eacute-nos aberta a possibilidade de contemplar tudo

no espaccedilo no jogo da distacircncia e da proximidade na pertenccedila conjunta do que eacute

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exterior ao outro no espaccedilo livre do grande horizonte no qual algo se pode mostrar

Este espaccedilo livre permite que tudo o que estaacute nele ou entra nele seja simultacircneo O que

muda com o tempo soacute pode confirmar esta simultaneidade e pertence aos

acontecimentos nesta praccedila nesta praia A observaccedilatildeo natildeo tem de ser limitada a uma

posiccedilatildeo e a um ponto de vista O perambular e a mudanccedila de perspetiva a ele associada

desbloqueia a totalidade espacial a ser observada Uma praccedila urbana pode ser vista a

partir de um determinado local numa perspetiva constante tal como um palco ou um

ecratilde de cinema Mas eacute apenas o perambular que iraacute revelar os seus vaacuterios aspetos Aqui

mostra-se como o observado tambeacutem pode incluir o observador Assim a praccedila pode

transformar-se num espaccedilo onde haacute calma uma calma que vem da simultaneidade do

que eacute visto e experimentado pelo observador Flanar passear ociosamente por aiacute

envolver-se com esta calma demorar-se nela Demorar eacute uma existecircncia temporal mas

que eacute retirada do seu caraacutecter temporal Eacute a pausa no tempo como uma presenccedila

ilimitada Este estado natildeo pode permanecer de modo duradouro eacute sabido mas tal natildeo

tem qualquer importacircncia enquanto nele nos demoramos Neste estado natildeo haacute um fim

e portanto tambeacutem natildeo haacute um depois Trata-se de estar temporalmente no espaccedilo

Tendo presente o amplo espectro filosoacutefico dedicado agrave avaliaccedilatildeo e agrave criacutetica da

mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo ndash novos conceitos filosoacuteficos aqui emergentes ndash no

contexto da modernidade tardia poder-se-ia com certa razoabilidade admitir que

perante tal situaccedilatildeo justificar-se-ia a existecircncia de uma certa necessidade crescente de

experiecircncias de fruiccedilatildeo do oacutecio tomadas como situaccedilotildees contrapostas ao estado de

coisas existente O oacutecio ele mesmo poderia neste sentido ser perspetivado como um

contra-conceito relativamente agraves matrizes de condiccedilotildees especiacuteficas da experiecircncia

espacial e temporal

O oacutecio poderia ser definido agrave partida como um fenoacutemeno passiacutevel de

contiacutenua alteraccedilatildeo segundo as condiccedilotildees culturais e sociais a que se encontra

intimamente relacionado ndash especialmente no que concerne ao conceito dominante de

trabalho Tendo em vista uma definiccedilatildeo mais fina vaacuterias diferenciaccedilotildees foram

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elaboradas de modo a conceptualizar o oacutecio513 Primeiramente uma importante distinccedilatildeo

deve ser estabelecida entre o oacutecio e o tempo livre Natildeo se trata de conceitos idecircnticos ndash

e tal diferenciaccedilatildeo deveraacute merecer especial atenccedilatildeo Com efeito na sociedade industrial

ocidental moderna as formas da realizaccedilatildeo do tempo livre emergiram natildeo raro como o

reverso do trabalho remunerado delineando-se e configurando-se o tempo dedicado ao

oacutecio como uma situaccedilatildeo ou uma realidade dependentes conquanto contrapostas do

trabalho (concretamente por exemplo na funccedilatildeo de reproduzir ou recuperar a forccedila de

trabalho ou comprar e consumir os bens produzidos) Todavia importaria elucidar que o

conceito de oacutecio remonta a raiacutezes mais antigas A origem do conceito de oacutecio pode ser

encontrada entre outras na antiga conexatildeo entre teoria e scholeacute sobre a qual

Aristoacuteteles se dedica na Eacutetica a Nicoacutemaco E na Poliacutetica o filoacutesofo distingue o oacutecio

enquanto atividade com um propoacutesito autossuficiente natildeo exclusivamente destinada agrave

recuperaccedilatildeo das forccedilas destinadas ao trabalho514 Portanto o oacutecio natildeo se configura como

mera inatividade mas sim atividade livre (praxis) que por sua vez se distingue das

atividades de manufatura que possuem o seu propoacutesito fora de si (poiesis)515 tal como

nos eacute dito na Eacutetica a Nicoacutemaco Paradigmaacutetico de uma accedilatildeo que serve a si proacutepria

poreacutem natildeo eacute a vida poliacutetica (praxis) mas a contemplaccedilatildeo (teoria) agrave qual a antiguidade

tardia e a Idade Meacutedia se referem repetidamente como fonte de felicidade

Com a institucionalizaccedilatildeo do trabalho na modernidade o quadro de referecircncia

mudou de tal modo que o designado tempo livre passou a corresponder no contexto do

seacuteculo XX ao contra-conceito de trabalho ndash e correlativamente o conceito de oacutecio

noccedilatildeo considerada como eticamente eminente no acircmbito da Antiguidade tornou-se

progressivamente a expressatildeo conceptual de uma situaccedilatildeo ou de uma realidade

moralmente reprovaacuteveis sofrendo os desenvolvimentos de uma conotaccedilatildeo

profundamente negativa em termos eacuteticos como ociosidade516 Prosaicamente o

lamento sobre a dissoluccedilatildeo ou a reduccedilatildeo da vida inteira ao trabalho se entrecortado com

a breve alegria que decorre da perspetiva do descanso ou da pausa parece tornar

possiacutevel a antiga promessa da felicidade no oacutecio novamente entrevista No entanto a

aceleraccedilatildeo e o incremento da vida quotidiana constituem elementos considerados como

passiacuteveis de neutralizar dificultar ou porventura aniquilar as possibilidades de

513 Gimmel JKeiling T Konzepte der Muszlige Tuumlbingen 2016514 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a1515 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1094a 1ndash25516 Henning C Gluumlck in Arbeit und Muszlige Stuttgart 2011 pp34-37

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realizaccedilatildeo do oacutecio ndash motivo pelo qual assistimos hoje a uma crescente demanda pelas

possibilidades de criaccedilatildeo de espaccedilos livres nas nossas sociedades de modo a que a

experiecircncia especiacutefica do oacutecio possa ocorrer enquanto experiecircncia de fruiccedilatildeo

Curiosamente o termo espaccedilo livre refere-se a um momento espacial de oacutecio que se

combina com efeito com a determinaccedilatildeo temporal do mesmo ndash e ambas as dimensotildees

espacial e temporal parecem estar ameaccediladas por desenvolvimentos sociais que podem

ser associados agrave modernidade Como seraacute apresentado seguidamente recorrendo agrave

anaacutelise de Georg Simmel relativa agrave sociedade moderna as experiecircncias do espaccedilo e do

tempo satildeo historicamente variaacuteveis e as mudanccedilas ocorridas nestas experiecircncias

afetam tambeacutem as condiccedilotildees baacutesicas do oacutecio

O iniacutecio da tendecircncia de aceleraccedilatildeo ndash que torna mais difiacutecil o acesso a

experiecircncias de oacutecio hoje tal como procuraremos sustentar ao longo desta tese de

doutoramento ndash eacute muitas vezes localizada nos tempos modernos no acircmbito do qual se

acrescentam com os seus efeitos e consequecircncias as mudanccedilas na experiecircncia do

espaccedilo e do tempo De facto uma das caracteriacutesticas genuiacutenas do modo de vida

moderno eacute a experiecircncia alterada do tempo tal como ilustra a notaacutevel definiccedilatildeo de

Baudelaire acerca do moderno como experiecircncia do transitoacuterio e do fugidio517 O gosto

pela velocidade por um lado e o lamento sobre o ritmo acelerado da vida por outro

constituem um certo modo de mundiviecircncia coletiva que conduziu alcanccedilando o seu

acme ao triunfo de novos meios de transporte e teacutecnicas de comunicaccedilatildeo no iniacutecio do

seacuteculo XX518 A sensaccedilatildeo de que a sociedade estaria a sofrer alteraccedilotildees a um ritmo

demasiado ceacutelere jaacute havia sido formulada no iniacutecio da modernidade519 configurando-se

como uma experiecircncia dominante agrave luz da crescente industrializaccedilatildeo do iniacutecio do seacuteculo

XIX Tal experiecircncia da modernidade como um tempo acelerado ndash desde o seacuteculo XIX

ndash eacute acompanhada pela tese de um crescente afastamento do espaccedilo que deveria

culminar no desaparecimento do espaccedilo520 A experiecircncia da maior celeridade de

circulaccedilatildeo entre longas distacircncias primeiramente tornada possiacutevel com o caminho-de-

ferro reduz o significado global do espaccedilo ndash como que evocando a sentenccedila de que ldquoo

517 ldquoLa moderniteacute crsquoest le transitoire le fugitif le contingent la moitieacute de lrsquoart dont lrsquoautre moitieacute estlrsquoeacuteternel et lrsquoimmuable ldquo Baudelaire C Curiositeacutes estheacutetiques Paris 1971 p467518 Sobre os efeitos do traacutefego acelerado consultar Schivelbusch W Geschichte der EisenbahnreiseZur Industrialisierung von Zeit und Raum im 19 Jahrhundert Muumlnchen 1977519 Koselleck R bdquoGibt es eine Beschleunigung in der Geschichteldquo In Koselleck R ZeitschichtenStudien zur Historik Frankfurt a M 2000 p153520 Schroer M bdquoBringing space back in Zur Relevanz des Raums als soziologischer Kategorieldquo InDoumlring JThielmann T (ed) Das Raumparadigma Zur Standortbestimmung des Spatial turnBielefeld 2008 pp 125ndash148

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espaccedilo eacute morto escrita por Heinrich Heine521 tendo em vista os novos meios de

transporte O designado desaparecimento do espaccedilo eacute pois uma noccedilatildeo que estaacute hoje

novamente presente especialmente com o desenvolvimento da Internet e da economia

globalizada (global village)522 A este respeito David Harvey perspetivando a

experiecircncia da mobilidade num mundo globalmente conectado cunhou o termo

compressatildeo espaccedilo-tempordquo referindo-se agrave aceleraccedilatildeo da velocidade de viagem523 Paul

Virilio constata o desaparecimento do espaccedilo524 e Hartmut Rosa considera a

emancipaccedilatildeo do tempo do espaccedilo como o nascimento da modernidade525 Note-se

no entanto que paralelamente ao lamento sobre o desaparecimento do espaccedilo na

filosofia e nas ciecircncias sociais emerge ainda que de um modo aparentemente

paradoxal o regresso do espaccedilo ou de um discurso sobre o espaccedilo que em

retrospetiva coincide com o iniacutecio de uma eacutepoca habitualmente designada por

modernidade tardia ou poacutes-modernismo Com efeito natildeo soacute Foucault proclamou a era

do espaccedilo jaacute no final dos anos 60 como tambeacutem Fredric Jameson se debruccedilou sobre o

facto de que a nossa vida quotidiana as nossas experiecircncias psiacutequicas e as linguagens

da nossa cultura atual ndash em contraste com a eacutepoca precedente da Alta Modernidade ndash

se apresentam determinadas mais pelas categorias do espaccedilo do que pelas do tempo526

Tais constataccedilotildees contraditoacuterias ndash por um lado o estiolamento por outro lado o retorno

do espaccedilo ndash sugerem uma definiccedilatildeo pouco clara do termo espaccedilo como Markus Schroer

avisadamente observa527 chamando a atenccedilatildeo para a equivocidade da noccedilatildeo de espaccedilo

que se encontra envolvida em determinadas discussotildees e discursos Importa portanto

examinar se se pode falar de um desaparecimento do espaccedilo ou se a situaccedilatildeo a avaliar se

configura eventualmente como uma transformaccedilatildeo da experiecircncia do espaccedilo que se

confunde com uma tendecircncia de aceleraccedilatildeo temporal Se todavia eacute caracteriacutestico do

oacutecio que as experiecircncias do espaccedilo e do tempo mudem conforme o estado do proacuteprio

521 Heine H Lutezia Historisch-kritische Gesamtausgabe der Werke (Duumlsseldorfer Ausgabe)Windfuhr M (ed) Bd 141 Hamburg 1990 p58522 Consultar Berger P bdquoAnwesenheit und Abwesenheit Raumbezuumlge sozialen Handelnsldquo InBerliner Journal fuumlr Soziologie 1 (1995) pp99ndash111523 H Harvey D The Condition of Postmodernity An Enquiry into the Origins of Cultural ChangeMalden MAOxford 1990 pp 201ndash323524 Virilio P bdquoDas dritte Intervall Ein kritischer Uumlbergangldquo In Decker EWeibel P (ed) VomVerschwinden der Ferne Telekommunikation und Kunst Koumlln 1990 pp 335ndash346525 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p61526 Jameson F bdquoPostmoderne Zur Logik der Kultur im Spaumltkapitalismusldquo In Huyssen AScherpeKR (ed) Postmoderne Zeichen eines kulturellen Wandels Hamburg 1986 p60527Schroer M bdquoBringing space back in Zur Relevanz des Raums als soziologischer Kategorieldquo InDoumlring JThielmann T (ed) Das Raumparadigma Zur Standortbestimmung des Spatial turnBielefeld 2008 p132

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oacutecio528 se o oacutecio como fenoacutemeno pode ser caracterizado pela sua especificidade de

espaccedilo-temporalidade entatildeo tornar-se-aacute razoaacutevel ponderar as possibilidades de as

mudanccedilas histoacutericas ocorridas na experiecircncia do espaccedilo e do tempo tambeacutem

apresentarem os seus efeitos nas possibilidades de experimentar o oacutecio Neste sentido

tornar-se-ia pertinente voltar aos claacutessicos das teorias da modernidade ndash como Hartmut

Rosa sugere529 ndash e aiacute encontrar reflexotildees sobre uma experiecircncia de espaccedilo e tempo que

se alterou significativamente As posiccedilotildees de Georg Simmel satildeo merecedoras de estudo

para aleacutem das relevantes abordagens desenvolvidas para uma filosofia social do espaccedilo

importaria sublinhar como notaacutevel o diagnoacutestico da sociedade delineado por Simmel

especialmente na atenccedilatildeo dedicada agrave experiecircncia quotidiana do homem moderno agrave luz

de uma singular perspetivaccedilatildeo de que a modernidade como um todo se apresenta

caracterizada segundo um tipo especial de experiecircncia530 ndash e neste ponto a abordagem

de Simmel natildeo se encontra muito distante do diagnoacutestico de Hartmut Rosa acerca do

tempo como procuraremos sustentar oportunamente nesta tese de doutoramento

Em Filosofia do Dinheiro obra publicada em 1900 comummente interpretada

como uma teoria da cultura moderna Simmel trata natildeo somente do princiacutepio e da

funccedilatildeo da economia monetaacuteria mas tambeacutem dos efeitos da cultura moderna moldada

pela economia monetaacuteria na atitude do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida A este respeito os

conceitos espaccedilo-temporais desempenham um papel central no acircmbito da atitude do

indiviacuteduo relativamente agrave vida pois Simmel perspetiva o estilo de vida moderno como

caracterizado pela distacircncia pela velocidade e pelo ritmo No uacuteltimo capiacutetulo da

Filosofia do Dinheiro que trata especificamente do estilo de vida Simmel fornece um

diagnoacutestico do tempo da cultura moderna um diagnoacutestico delineado agrave luz do conceito

de dinheiro concebido como forccedila motriz e como siacutembolo Eacute com efeito notaacutevel o

modo como na descriccedilatildeo da atitude moderna em relaccedilatildeo agrave vida Simmel se refere

repetidamente a caracterizaccedilotildees espaciais e temporais Neste sentido o estilo de vida

moderna desdobra-se em trecircs aspetos que Simmel define em termos de tempo e espaccedilo

distacircncia ritmo e tempo

528 Figal GHubert HW Klinkert T bdquoEinleitungldquo In Figal GHubert HW Klinkert T (ed)Die Raumzeitlichkeit der Muszlige Tuumlbingen 2016 p1529 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 pp89ndash105530 A teoria da modernidade de Simmel natildeo assume a forma de uma anaacutelise histoacuterica mas representaum relatoacuterio sobre as experiecircncias da realidade social na modernidade Frisby D Fragmente derModerne Georg Simmel - Siegfried Kracauer - Walter Benjamin Rheda-Wiedenbruumlck 1989 p68

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Atentemos primeiramente sobre as ldquoexpressotildees espaciaisrdquo usadas por Simmel

Distacircncia eacute um termo de significativa importacircncia para a perspetivaccedilatildeo de Simmel

acerca dos processos culturais como um todo Para a formaccedilatildeo do valor econoacutemico e

esteacutetico por exemplo o distanciamento dos objetos constitui um preacute-requisito pois uma

certa distacircncia deve ser assumida para que se possa relacionar com algo de uma forma

desejaacutevel531 Aleacutem de uma dialeacutetica geral de proximidade e de distacircncia que por

princiacutepio desempenha um papel relevante na formaccedilatildeo do valor no processo cultural

Simmel constata igualmente uma mudanccedila histoacuterica na distacircncia entre sujeito e objeto

que o filoacutesofo atribui ao efeito do dinheiro assim caracterizada

A distacircncia que afastou o subjetivo e o objetivo da sua unidade original tornou-se por

assim dizer corporal no dinheiro - enquanto que por outro lado seu significado eacute fiel agrave

correlaccedilatildeo de distacircncia e proximidade discutida acima aproximar de noacutes o que de outra

forma seria inatingiacutevel532

A consideraccedilatildeo de determinados paradoxos ou contradiccedilotildees compotildee de um

modo incisivo as posiccedilotildees de Simmel Assim se por um lado agrave medida que a

economia monetaacuteria cresce aumenta tambeacutem a distacircncia entre os sujeitos e os objetos

por outro lado a economia monetaacuteria facilita o comeacutercio e disponibiliza oferecendo

muito mais objetos ao sujeito do que antes ndash o que anteriormente pareceria inalcanccedilaacutevel

eacute agora acessiacutevel atraveacutes da economia monetaacuteria cada vez mais global Tiacutepico da

sociedade moderna eacute por conseguinte a situaccedilatildeo paradoxal em que o indiviacuteduo tem agrave

sua disposiccedilatildeo cada vez mais produtos que lhe satildeo cada vez mais facilmente acessiacuteveis

natildeo conseguindo poreacutem estabelecer uma verdadeira relaccedilatildeo com os objetos

individuais pois tudo concebe e perspetiva atraveacutes das lentes do dinheiro

A racionalizaccedilatildeo e a quantificaccedilatildeo modernas do espaccedilo constituem igualmente

um foco de atenccedilatildeo de Simmel O filoacutesofo refere-se por diversas vezes em Filosofia do

Dinheiro ao traacutefego associando o uso do espaccedilo que eacute cultivado na construccedilatildeo de

estradas modernas a uma tendecircncia que se orienta natildeo somente no sentido de um

domiacutenio do espaccedilo mas inclusivamente na direccedilatildeo de uma necessidade de economizar

tempo

531 bdquoDistacircncia e aproximaccedilatildeo satildeo tambeacutem na praacutetica termos de mudanccedila cada um pressupondo ooutro e ambos formando os lados da relaccedilatildeo com as coisas que noacutes subjetivamente chamamos onosso desejo objetivamente o seu valorrdquo Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p49532 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p136

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O alongamento de estradas tortuosas a criaccedilatildeo de novos caminhos diagonais todo o

sistema moderno de simetria e sistemaacutetica retangular eacute de facto uma economia direta de

espaccedilo mas para o tracircnsito eacute sobretudo uma economia de tempo como exige o

racionalismo da vida533

A economia de tempo surge neste acircmbito como um imperativo para o qual a

construccedilatildeo da convivecircncia humana deve ser orientada Tal conduz-nos aos aspetos do

estilo de vida moderno que natildeo satildeo descritos por uma analogia espacial como

distacircncia mas por uma analogia temporal534 nomeadamente ritmo e tempo

Em vez de um movimento ondulatoacuterio regular que determina os processos

naturais tais como o curso das estaccedilotildees do ano e as estaccedilotildees de acasalamento nos

animais existe jaacute nas primeiras culturas humanas uma uniformidade do curso do tempo

que natildeo se encontra nos animais e que eacute intensificada no mundo moderno A dissoluccedilatildeo

da sequecircncia natural de tensatildeo e relaxamento eacute tambeacutem evidente no fluxo de trabalho agrave

medida que o desenvolvimento cultural progride As maacutequinas com os seus processos

fixos impotildeem o seu ritmo ao trabalhador moderno natildeo seguindo as necessidades

fisioloacutegicas deste A vida cultural moderna sob a influecircncia da economia monetaacuteria eacute

finalmente

dominada por uma uniformidade contiacutenua uma vez que se pode comprar tudo por dinheiro

a qualquer momento e portanto as emoccedilotildees e irritaccedilotildees do indiviacuteduo jaacute natildeo precisam de

aderir a um ritmo que a partir da possibilidade da sua satisfaccedilatildeo o sujeitaria a uma

periodicidade transindividual535

No entanto no que concerne ao ritmo Simmel considera igualmente um

desenvolvimento contraacuterio que provoca a um distanciamento de toda a uniformidade e

que o filoacutesofo associa ao individualismo moderno Neste contexto o dinheiro atua como

catalisador destes desenvolvimentos Por um lado e de acordo com Simmel o dinheiro

proacuteprio eacute o mais radical porque por si soacute eacute o meio completamente indiferente para

uma transformaccedilatildeo de um ritmo de condiccedilotildees de vida forccedilado supra-individual que nos

obriga a um equiliacutebrio e desnivelamento do si mesmo536 O dinheiro eacute indiferente agrave

533 Simmel G Soziologie Untersuchungen uumlber die Formen der Vergesellschaftung Gesamtausgabevol11 von Otthein Rammstedt O (ed) Frankfurt a M 2006 p712534 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p676535 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p680536 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p691

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pessoa e natildeo estaacute sujeito a qualquer ciclo natural portanto tende a ter um efeito

equalizador e nivelador quando domina as relaccedilotildees intersubjetivas Por outro lado o

dinheiro liberta o indiviacuteduo de laccedilos pessoais e objetuais facilitando-lhe assim o

desenvolvimento da sua personalidade e a definiccedilatildeo dos seus proacuteprios objetivos

interesses que se podem revelar numa forma mais livre no seu proacuteprio ritmo de vida O

dinheiro eacute natildeo soacute responsaacutevel pela distacircncia e pelo ritmo mas tambeacutem afeta o ritmo de

vida que Simmel descreve da seguinte forma O que percebemos como ritmo de vida eacute

o produto da soma e da profundidade de suas mudanccedilasrdquo537 Correlativamente o

impacto psicoloacutegico das significativas mudanccedilas sociais provocadas pelo triunfo da

economia monetaacuteria constitui um relevante aspeto a que Simmel concede atenccedilatildeo

Avaliando a situaccedilatildeo de aumento da moeda disponiacutevel e o seu efeito de aceleraccedilatildeo dos

processos econoacutemicos Simmel enfatiza as consequecircncias psicoloacutegicas de um aumento

da quantidade de dinheiro

Enquanto a nova adaptaccedilatildeo natildeo for concluiacuteda o aumento constante do dinheiro daraacute

origem a contiacutenuos sentimentos de diferenccedila e choques psiacutequicos [hellip] e assim ao

acelerar do ritmo da vida Aumentos na produtividade de um paiacutes e aumentos salariais

associados levam ao aumento da mobilidade social que tambeacutem eacute percebida como um

aumento no ritmo de vida538

Enquanto a ldquonecessidade exagerada de atenccedilatildeo e de prestiacutegiordquo (Blasiertheit)

atuava como contrapartida psicoloacutegica do distanciamento moderno a alteraccedilatildeo do ritmo

de vida a niacutevel psicoloacutegico provoca um aumento da vida nervosa resultante da

alternacircncia raacutepida e ininterrupta das impressotildees externas e internas539 Nas raacutepidas

537 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p696538 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989539 Para Simmel modernidade significa uma transformaccedilatildeo da estrutura da personalidade dos indiviacuteduosque reagem agraves imposiccedilotildees da aceleraccedilatildeo e do incremento da modernidade com uma modificaccedilatildeo da suagestatildeo dos sentimentos da sua estrutura emocional da sua vida nervosa e da relaccedilatildeo entre emoccedilotildees eintelecto Esta eacute a base para a definiccedilatildeo de Simmel sobre a essecircncia da modernidade tal como exposta noseu ensaio sobre a arte de Rodin no qual escreve ldquoEacute que a essecircncia da modernidade se eacute que haacute algumaeacute psicologismo a experimentaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo de acordo com as reaccedilotildees do nosso interior ede facto de um mundo interior a dissoluccedilatildeo de conteuacutedos soacutelidos no elemento liacutequido da alma da qualtoda a substacircncia eacute libertada e cujas formas satildeo apenas formas de movimentos (Simmel G Philosophiedes Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p714) Daiacuteque Simmel entenda o processo de modernizaccedilatildeo como uma mudanccedila no equiliacutebrio entre os princiacutepiosuniversais de movimento e ineacutercia em favor do primeiro e portanto como a dissoluccedilatildeo de ritmos fixos afavor de uma permanecircncia da mudanccedila (Simmel G Die Bedeutung des Geldes fuumlr das Tempo desLebensrdquo Frankfurt am Main 1897 p230 e Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p711) Por seu turno os indiviacuteduos reagem a talmudanccedila com indiferenccedila para com os conteuacutedos do mundo segundo uma certa mudanccedila dialeacuteticaverificada em permanente sobre-estimulaccedilatildeo com a obsessatildeo de experiecircncias sempre novas e cada vez

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mudanccedilas da moda Simmel perspetiva uma marca de Modernidade classificada pelo

filoacutesofo como uma era nervosa

A mudanccedila de moda indica o grau em que os estiacutemulos nervosos podem ser atenuados

quanto mais nervosa for a idade mais raacutepida seraacute a mudanccedila de moda pois a necessidade

de estiacutemulos diferenciais um dos portadores essenciais de toda a moda eacute ligado ao

afrouxamento das energias nervosas540

Simmel menciona o ritmo especificamente impaciente da vida moderna541

que conduz a uma ecircnfase no presente A desintegraccedilatildeo das tradiccedilotildees cada vez mais

rapidamente tornadas obsoletas favoreceria segundo o filoacutesofo os elementos

volaacuteteisfugazes e mutaacuteveis da vida542 A tensatildeo nervosa descrita por Simmel ndash como

que evocando o quadro cliacutenico da neurastenia tornado ceacutelebre no tempo de vida do

proacuteprio filoacutesofo ndash assume o seu espaccedilo ou lugar de desenvolvimento na metroacutepole

moderna Devido agrave raacutepida mudanccedila de sensaccedilotildees e impressotildees a vida na grande cidade

difere da vida no campo e na pequena cidade pois segundo Simmel no campo e na

mais extremas e estiacutemulos provocativos em suma com todos os sintomas de neurastenia A ausecircnciado definitivo no interior da nossa alma conduziu-nos agrave procura da satisfaccedilatildeo momentacircnea em estiacutemulosextremos sempre novos bem como em sensaccedilotildees e atividades externas Assim tal ausecircncia enredou-nospor sua vez na confusatildeo na falta de estabilidade e de sossego que rapidamente se manifestam notumulto da grande cidade na perseguiccedilatildeo feroz da concorrecircncia na infidelidade especificamente modernanos domiacutenios do gosto dos estilos das atitudes dos relacionamentos (Ibid p714) O filoacutesofo francecircsTristan Garcia escreve a este respeito bdquoLa socieacuteteacute moderne ne promet plus aux individus une autre vie lagloire de lacuteau-delaacute mais seulement ce que nous sommes deacutejagrave ndash plus et mieux hellip Eh bien ce qui nous estoffert de meilleur cacuteest une augmentation de nos corps une intensification de nos plaisirs de nos amoursde nos eacutemotionshelliprdquo (Garcia T La vie intense Une obsession moderne Paris 2016 p11) Namodernidade tardia isto eacute onde ldquonormalmente nenhuma transcendecircncia acena para a maioria doshomensrdquo natildeo haacute senatildeo a vida breve seria consequentemente necessaacuterio tentar intensificaacute-lacontinuamente por exemplo invocando ldquoa sua eletricidade interiorrdquo Garcia reconhece na feacutee eacutelectriciteacute aimagem emblemaacutetica da procura de tensatildeo num mundo que perdeu o encanto (Max Weber) Garciaanalisa o sentimento de mediocridade e de rotina quando a tensatildeo da vida se aproxima de zero e nadaresta senatildeo o vazio como por exemplo no caso de um esgotamento Para Garcia a busca de intensidadee a exaustatildeo bem como a depressatildeo estatildeo de matildeos dadas enquanto momentos dialeacuteticos Mas quando avida consiste apenas em saltos de adrenalina estes tornam-se rotina e anulam-se a si proacuteprios Nesteparadoxo Garcia descobre o problema de fundo da ldquovida intensardquo Tous autant que nous sommes noussentons bien deacutesormais que lintensiteacute geacuteneacuteraliseacutee noffre dautre perspective une fois eacuteleveacutee au rang deprincipe de vie que notre eacutepuisement ineacuteluctable presque meacutecanique Elle entraicircne tout organismeindividuel ou collectif qui sy livre sans reacuteserve dans une vague deacutepression une lente diminution delexcitation une annulation fatale mais qui ne trouve jamais vraiment son terme agrave moins duneffondrement (Ibid p174) Interessante eacute o facto de que no seu ensaio ldquoLa vie intenserdquo Garcia quaseesgota a filosofia francesa do seacuteculo XX incluindo entre outros Bataille Lacan Klossowski e Lyotardque trataram a questatildeo das intensidades por vezes de forma intensiva e supostamente em nome deuma revolta contra ldquoa vida alienadardquo ou a mistificaccedilatildeo capitalista dos desejos Curiosamente o primeirovolume do coloacutequio sobre Nietzsche de 1972 em Cerisy-la-Salle tinha o tiacutetulo ldquoIntensiteacutesrdquo (Nietzscheaujourdhui colloque de Cerisy Volume 1 Intensiteacutes Paris 2011)540 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p194541 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p197542 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p198

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pequena cidade a alma beneficia de um ritmo de vida uniforme e equilibrado passiacutevel

de profunda perturbaccedilatildeo no interior do enorme ritmo de vida nas metroacutepoles que apela

por sua vez e de um modo mais intenso ao intelecto

As observaccedilotildees de Simmel sobre a intelectualizaccedilatildeo e a coisificaccedilatildeo da vida

moderna decorrem de consideraccedilotildees intimamente relacionadas com a economia

monetaacuteria pois de acordo com as palavras esclarecedoras do filoacutesofo a economia

monetaacuteria [] e o domiacutenio intelectual estatildeo na conexatildeo mais profunda543 Nas relaccedilotildees

que definem ambas produzem um nivelamento das diferenccedilas individuais e uma

concentraccedilatildeo em relaccedilotildees objetivas544 A quantificaccedilatildeo ao inveacutes da qualificaccedilatildeo

desempenha um papel crescentemente preponderante na sociedade e na vida mental do

indiviacuteduo tal como o assinala Simmel ldquoA mente moderna tornou-se cada vez mais uma

mente calculista (rechnend)rdquo 545

No ensaio As Metroacutepoles e a Vida Mental bem como em Filosofia do Dinheiro

Simmel debruccedila-se curiosamente sobre a invenccedilatildeo do reloacutegio de bolso como modo de

ilustraccedilatildeo do domiacutenio da quantidade sobre a qualidade da transformaccedilatildeo do tempo em

realidade objetivamente mensuraacutevel e objetivada imposta ao indiviacuteduo em todos os

momentos546 A vida nas grandes cidades afigura-se assim determinada por esta nova

compreensatildeo do tempo mensuravelmente preciso exato uma ordem temporal

quantificada que determina coordena e rege as diversas atividades ndash quantificadamente

moldadas ndash dos seus habitantes547

Em Filosofia do Dinheiro Simmel refere-se igualmente agrave conexatildeo entre esse

novo tempo padronizado e a emergecircncia do capitalismo uma relaccedilatildeo essencial que

merece a atenccedilatildeo do filoacutesofo De acordo com Simmel com a emergecircncia do comeacutercio

mundial e dos primeiros centros financeiros originou-se o conceito moderno de tempo

543 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p118544 bdquoTodas as relaccedilotildees emocionais entre as pessoas satildeo baseadas na sua individualidade enquantoas relaccedilotildees racionais calculam as pessoas como nuacutemeros como elementos indiferentesmanifestando um interesse apenas de acordo com o seu desempenho objetivamente avaliaacutevel rdquoSimmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnke KC(ed) Frankfurt a M 1989 p118545 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p119546 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p119547 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p120

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[] como valor determinado pela utilidade e pela escassez548 Poder-se-ia pois

asseverar que no acircmbito do pensamento de Simmel o conceito de tempo objetivo eacute

com efeito explicitamente avaliado como um conceito historicamente e culturalmente

determinado e desenvolvido encontrando-se na sua geacutenese intimamente relacionado

com o desenvolvimento econoacutemico especialmente com a emergecircncia do capitalismo

Simmel atenta ainda sobre um traccedilo geral do sentimento moderno que o

filoacutesofo associa a uma experiecircncia do tempo definindo-o como uma forma especial de

expectativa Aqui se revela interessantemente a relaccedilatildeo do homem moderno com o

futuro

Nos tempos modernos especialmente ao que parece na fase mais recente dos tempos

modernos haacute um sentimento de tensatildeo expectativa urgecircncia natildeo resolvida como se a

coisa principal o definitivo o ponto central da vida e das coisas ainda estivesse por vir no

futuro549

Continuamente Simmel constata uma inquietaccedilatildeo secreta e uma confusa falta

de estabilidade e da calma550 que envolvem e configuram a vida moderna e que o

filoacutesofo perspetivando o problema da distacircncia entre as pessoas nas cidades grandes

associa aos efeitos da economia monetaacuteria O sentimento de expectativa e adiamento

descrito por Simmel como caracteriacutesticas dos indiviacuteduos das grandes metroacutepoles eacute pois

perspetivado como uma decorrecircncia ou um efeito do incremento econoacutemico e da

implementaccedilatildeo do dinheiro como novo valor cultural e social que parece anular

enquanto novo meio universal a orientaccedilatildeo dos indiviacuteduos para determinados objetivos

ou propoacutesitos de vida natildeo economicamente determinados Acumulando dinheiro natildeo o

gastando constitui um gesto de adiamento da decisatildeo de consumir incessantemente

como que mantendo todas as possibilidades abertas num qualquer futuro A relaccedilatildeo com

o dinheiro eacute assim baseada na expectativa de que ainda teremos um qualquer destino

ou fim para ele no futuro Esta orientaccedilatildeo do dinheiro em direccedilatildeo a um suposto futuro ndash

e natildeo para a satisfaccedilatildeo das necessidades atuais ndash revela-se ainda mais evidente na

548 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p707549 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p669550 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p675

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modernidade tardia especialmente no que concerne ao creacutedito e demais instrumentos do

capitalismo financeiro que hoje conhecemos551

Hartmut Rosa retoma prologando as reflexotildees de Simmel segundo Rosa entre

as distintas criacuteticas claacutessicas da modernidade as posiccedilotildees de Simmel afiguram-se como

aquelas que se destacam pela sua notaacutevel atenccedilatildeo agraves realidades da aceleraccedilatildeo e do

incremento perspetivadas como realidades eminentemente modernistas ndash embora sem

lhe dedicar uma elaboraccedilatildeo teoacuterica independente552 A ecircnfase de Rosa sobre tal

singularidade das posiccedilotildees de Simmel apresenta-se como um elemento merecedor de

estudo no interior do seu proacuteprio pensamento tambeacutem Rosa tal como Simmel

encontra-se especialmente interessado nos efeitos que a sociedade moderna exerce sobre

a atitude e o sentimento da vida dos indiviacuteduos

Por conseguinte no que respeita ao tempo de vida Rosa constata um

incremento de episoacutedios de accedilatildeo eou experienciais por unidade de tempo como

resultado de uma escassez de recursos de tempo553 Neste ponto Rosa evoca o conceito

de Simmel sobre o ritmo de vida partilhando com efeito muitos dos seus

diagnoacutesticos554 Enquanto Simmel se concentra por completo na funccedilatildeo do dinheiro

enquanto causa do incremento do ritmo de vida Rosa oferece um total de trecircs causas

complexas a saber 1 fatores econoacutemicos 2 fatores culturais e 3 fatores soacutecio-

estruturais Todavia poder-se-ia afirmar que a segunda causa (ou seja os fatores

culturais) apontada por Rosa para a transformaccedilatildeo tatildeo manifesta na modernidade das

aspiraccedilotildees de uma vida religiosa (focada no aleacutem-mundo) para as aspiraccedilotildees de uma

551 Consultar Priddat B bdquoWozu Geldldquo In Schlitte A Denzler A Huditz F (ed) Geld Werteund Werte Wuumlrzburg 2017 pp199-209552 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p100553 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p198554 Rosa partilha a opiniatildeo de Simmel de que o ritmo da vida acelerada pode co-induzir patologias Noiniacutecio do seacuteculo XX como Joachim Radkau no seu estudo sobre a Idade do Nervosismo assinalou(Radkau J Das Zeitalter der Nervositaumlt Muumlnchen 1998) o diagnoacutestico de neurastenia como resultadode um ritmo de vida demasiado estimulado foi amplamente difundido (ver tambeacutem Simmel G bdquoDieGroszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt aM 1989 p67) Uma forma muito semelhante de doenccedila da pressa foi tambeacutem descoberta no nossotempo nos EUA com as mesmas causas presumidas (Levine R Eine Landkarte der Zeit Muumlnchen1999 p 152) A este propoacutesito Hartmut Rosa comenta Se se seguir estes indicadores haacute fortespossibilidades de emergecircncia de outra grande aceleraccedilatildeo na transiccedilatildeo do seacuteculo XX para o seacuteculo XXIdesde a doenccedila da pressa ateacute agrave recente e omnipresente ldquoAttention Deficit Syndromerdquo em crianccedilas eadolescentesrdquo (Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der ModerneFrankfurt a M 2005 p437) Algumas formas de depressatildeo tambeacutem podem ser co-causadas pelo ritmoacelerado da vida moderna Alain Ehrenberg concebe pois a depressatildeo como uma reaccedilatildeo induzida pelostress de uma psique dessincronizada perante as exigecircncias de velocidade da vida moderna (EhrenbergA La fatigue decirctre soi deacutepression et socieacuteteacute Paris 1999)

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vida inscrita no mundo jaacute se encontra mencionada por Simmel particularmente na sua

abordagem do dinheiro como um substituto para um objetivo final555 de vida

entretanto perdido na modernidade

Tal como no pensamento de Simmel as mudanccedilas no modo de relacionamento

com o tempo e o espaccedilo resultam no contexto das posiccedilotildees de Rosa numa crise

descrita como alienaccedilatildeo trata-se pois de um estado que poderaacute ser caracterizado como

uma situaccedilatildeo no acircmbito da qual os sujeitos voluntariamente perseguem objetivos que

natildeo satildeo realmente desejados Na sua anaacutelise dedicada a tais fenoacutemenos de alienaccedilatildeo (em

relaccedilatildeo ao espaccedilo ao tempo e ao mundo das coisas) Rosa convoca muacuteltiplos aspetos

que tambeacutem desempenham um papel relevante nas reflexotildees de Simmel pensemos

pois nas posiccedilotildees de Simmel sobre o distanciamento e a quantificaccedilatildeo do espaccedilo que

em Rosa encontram afinidade teoacuterica com o distanciamento e alienaccedilatildeo das coisas556

Todavia importaria elucidar que Simmel permanece ambivalente em algumas das

avaliaccedilotildees centrais da cultura moderna em verdade para o filoacutesofo a objetificaccedilatildeo das

relaccedilotildees humanas encontra-se perspetivada como potencialidade de configuraccedilatildeo de um

ganho de liberdade para o indiviacuteduo que pode assim desligar-se das dependecircncias

pessoais e desenvolver as suas idiossincrasias

Segundo Rosa a tendecircncia de aceleraccedilatildeo e de incremento constitui-se como jaacute

vimos como caracteriacutestica de toda a modernidade A interrogaccedilatildeo sobre se e como eacute

possiacutevel escapar a este processo de aceleraccedilatildeo e incremento ndash a que procuraram

responder Simmel e Rosa ndash merece ser analisada com a devida atenccedilatildeo Enquanto a

teoria da ressonacircncia de Rosa557 se apresenta como uma proposta abrangente no que

concerne a uma eventual resposta ao problema da alienaccedilatildeo558 a abordagem de Simmel

assume-se na melhor das hipoacuteteses como uma proposta de neutralizaccedilatildeo da alienada

perspetivada ao niacutevel do estilo de vida individual que inclui por sua vez formas de

atividade que talvez pudessem ser descritas como oacutecio Tal conduz-nos agrave interrogaccedilatildeo

sobre se Simmel tambeacutem poderia delinear reflexotildees sobre as possibilidades da

experiecircncia de lazer na modernidade consideradas porventura como uma

contraposiccedilatildeo relativamente agraves tendecircncias de alienaccedilatildeo constatadas Com efeito

555 Rosa tambeacutem considera a funccedilatildeo substituta religiosa do dinheiro a este respeito consultarRosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005p285556 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Frankfurt aM 2013 pp125ndash128557 Rosa H Resonanz Berlin 2016558 Rosa H Resonanz Berlin 2016

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importaria elucidar que o oacutecio natildeo constitui um conceito central no trabalho de Simmel

embora o seu diagnoacutestico pareccedila sugerir a constataccedilatildeo acerca de uma necessidade ou

uma premecircncia de experiecircncia de lazer nos tempos modernos No entanto Simmel

justapotildee oacutecio a trabalho econoacutemico entre outras coisas segundo uma observaccedilatildeo

lateral sobre o fenoacutemeno da moda Simmel menciona igualmente as vaacuterias atividades

de lazer do habitante da cidade559 No que diz respeito ao tempo livre o pensamento de

Simmel apresenta uma certa ecircnfase sobre o facto de os tempos livres se encontrarem

inexoravelmente determinados pelo desenvolvimento do trabalho apresentando-se

profundamente configurados segundo a economia monetaacuteria

Como foi dito que a histoacuteria das mulheres tem a peculiaridade de natildeo ser a histoacuteria das

mulheres mas a dos homens pode-se dizer que a histoacuteria do oacutecio dos jogos dos

divertimentos eacute se olharmos mais de perto a histoacuteria do trabalho e da seriedade560

De acordo com Simmel as condiccedilotildees de trabalho tornaram-se tatildeo exigentes sob

a influecircncia da economia monetaacuteria e da correlativa divisatildeo do trabalho que natildeo restaria

praticamente nenhuma energia que os indiviacuteduos poderiam dispensar para as designadas

atividades de oacutecio necessaacuterias para aleacutem do trabalho Se o dia tem esta aparecircncia que

rosto teraacute a noite561 eacute pois uma questatildeo que Simmel levanta no poleacutemico texto

Infelices possidentes de 1893 A resposta a tal interrogaccedilatildeo eacute suficientemente clara as

experiecircncias mudadas dos tempos modernos a inquietaccedilatildeo as experiecircncias de choque

bem como a hiperestesia562 geral conduzem a um esvaziamento das atividades de

oacutecio trata-se de um mero desejo de soacute se quer divertir ndash soacute divertir ndash e esta eacute toda a

miseacuteria do nosso sistema de diversatildeordquo563 Por conseguinte Simmel considera que o

trabalho e o oacutecio nos tempos modernos formam uma totalidade e que os problemas do

mundo do trabalho acelerado e incrementado dominado pelo dinheiro se prolongam

nas atividades de oacutecio O tempo de oacutecio constitui-se meramente e somente como o

lado oposto das horas de trabalho e natildeo como um antiacutedoto para a alienaccedilatildeo moderna ao

que parece

559 Consultar Frisby D bdquoSimmel and Leisureldquo In Rojek C (ed) Leisure for leisure Basingstoke1989 pp 75ndash91560 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295561 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295562 Simmel G Soziologische Aesthetik Gesamtausgabe vol5 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p211563 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295

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A distinccedilatildeo entre fins e meios constitui-se como uma problemaacutetica central na

teoria da cultura Simmel Se o mundo do trabalho assalariado se caracteriza por relaccedilotildees

de propoacutesito e finalidade nas vaacuterias esferas da cultura por sua vez ocorre a

possibilidade de irrupccedilatildeo de momentos nos quais se opera uma rotaccedilatildeo de eixos564

segundo a qual as objeccedilotildees culturais se tornam formas autoacutenomas que jaacute natildeo podem ser

entendidas como meios para um fim Este processo apresenta duas possibilidades a

criaccedilatildeo de um mundo independente que se desprende como contra-imagem positiva de

uma vida quotidiana alienada ou a criaccedilatildeo de um mundo independente que surge ao

indiviacuteduo como estranho e hostil agrave vida e se volta contra ele tal como descrito na

trageacutedia da cultura Enquanto que para Simmel a autonomizaccedilatildeo progressiva da

economia e da tecnologia provoca de um modo mais contundente a configuraccedilatildeo da

segunda destas duas possibilidades expostas a autonomizaccedilatildeo progressiva da arte

afigura-se por sua vez como um domiacutenio de merecido enaltecimento aos olhos do

filoacutesofo natildeo obstante as suas advertecircncias contra formas extremas de lart pour lart

Pois de acordo com o pensamento de Simmel conquanto a arte seja tambeacutem

ela determinada pela loacutegica do dinheiro (tal como por exemplo a exposiccedilatildeo de arte

com a sua curta meia-vida565) este domiacutenio cultural possui ainda ndash assim o afirma o

filoacutesofo ndash um potencial libertador real permitindo a abertura para uma distacircncia

fecunda para as coisas O conceito de arte segundo Simmel ndash e de um modo que eacute

particularmente relevante no acircmbito do seu conceito de filosofia ndash entrecruza-se com as

perspetivaccedilotildees relativas ao conceito de contemplaccedilatildeo a este respeito assim escreve

Simmel a arte e a sua experiecircncia permite-nos mudar o alcance da visatildeo na qual nos

colocamos original e naturalmente em relaccedilatildeo agrave realidade566

As reflexotildees de Simmel sobre grandes personalidades artiacutesticas como Goethe e

Rembrandt revelam igualmente que no acircmbito da produccedilatildeo artiacutestica de obras se torna

possiacutevel a configuraccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o geral a qual por sua vez

natildeo impotildee um distanciamento entre o trabalho e o seu produtor ao contraacuterio do que

acontece com o produto industrial que se baseia pois na divisatildeo do trabalho Tal

atividade a produccedilatildeo artiacutestica poderia ser compreendida com devida justeza como

564 Simmel G Lebensanschauung vier metaphysische Kapitel Gesamtausgabe vol16 Fitzi GRammstedt O (ed) Frankfurt a M 1999 p245565 Simmel G Ueber Kunstausstellungen Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 pp 242ndash250566 Simmel G Soziologische Aesthetik Gesamtausgabe vol5 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p209

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uma atividade natildeo alienada concretizada segundo o talento pessoal e individual

permanecendo por seu turno orientado para a obra como que convocando o conceito

de poiesis Trata-se igualmente de uma experiecircncia especial de tempo que rompe com

a vida quotidiana e nos liberta da ordem temporal objetiva do trabalho natildeo se

apresentando orientada para a produccedilatildeo de um trabalho ndash de acordo com Simmel a

atividade de produccedilatildeo artiacutestica poderia ser perspetivada nas suas potencialidades de

realizaccedilatildeo ou efetuaccedilatildeo da aventura

A caracteriacutestica formal da aventura daacute conta justamente dessa possibilidade de

irrupccedilatildeo de uma situaccedilatildeo que permite ao indiviacuteduo cair da contiguidade da vida567

Ao mesmo tempo a aventura proporciona um sentimento de unidade interior que a

distingue de outros episoacutedios da vida aproximando-a da experiecircncia da obra de arte A

aventura oferece uma liberdade que nem o trabalho nem os prazeres quotidianos

proporcionam e como tal uma interrupccedilatildeo do quotidiano que pode ser perspetivada

como uma situaccedilatildeo afim agrave experiecircncia da festa concebida por sua vez como um

permanente candidato agrave definiccedilatildeo ou agrave exemplificaccedilatildeo de experiecircncias de oacutecio568 Num

outro sentido a aventura partilha ainda a inquietaccedilatildeo e o sensacionalismo com a

experiecircncia moderna do tempo O conceito mais proacuteximo de uma possiacutevel definiccedilatildeo de

uma experiecircncia de oacutecio poderia ser encontrado assim sustentamos na noccedilatildeo

simmeliana de convivecircncia

A convivecircncia eacute segundo Simmel uma forma luacutedica social569 no acircmbito da

qual formas de sociabilidade podem ser exercidas sem que os envolvidos sigam

diretamente interesses concretos Tal poderaacute ser claramente encontrado nos haacutebitos da

conversaccedilatildeo social A conversaccedilatildeo social distingue-se da conversaccedilatildeo diaacuteria pelo facto

de na seriedade da vida as pessoas falarem acerca de conteuacutedos que querem comunicar

ou sobre os quais querem comunicar ndash na convivecircncia poreacutem a conversaccedilatildeo torna-se

um fim em si mesma570 Neste sentido e tal como a perspetivamos a descriccedilatildeo de

convivecircncia no sentido da praxis assim proposta por Simmel traduz com efeito

diversos aspetos que sugerem que tal situaccedilatildeo social ndash a convivecircncia ndash poderia com

567 Simmel G Das Abenteuer Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurta M 1996 p168568 Consultar Pieper J Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999569 Simmel G Soziologie der Geselligkeit Gesamtausgabe vol12 Kramme RRammstedt O (ed)Frankfurt a M 1996 pp177ndash193570 Simmel G Soziologie der Geselligkeit Gesamtausgabe vol12 Kramme RRammstedt O (ed)Frankfurt a M 1996 p187

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devida justeza ser tomada como exemplo de uma experiecircncia de oacutecio na

modernidade571

No discurso popular o termo oacutecio encontra-se frequentemente associado agrave

noccedilatildeo de des-aceleraccedilatildeo Segundo tal aceccedilatildeo o oacutecio representaria o oposto do ritmo

agitado da vida quotidiana podendo ser alcanccedilado e cumprido vivendo conscientemente

o dia mais lento572 Como tal o oacutecio desacelerado poderia ser perspetivado como um

contraprojeto relativamente a uma experiecircncia de modernidade que eacute tatildeo caracteriacutestica

quanto deploraacutevel mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo Perante tal quadro cultural poetas e

escritores tecircm-se ocupado criticamente com as tendecircncias de mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo

como as observaccedilotildees de Goethe sobre o ldquovelocifeacutericordquo573 ou as observaccedilotildees de Musil

sobre o ldquoAcelerismordquo comprovam574 De particular importacircncia apresenta-se a

descoberta formulada por Heinrich Heine em 1843 a propoacutesito da abertura das

primeiras linhas ferroviaacuterias Os conceitos elementares de tempo e espaccedilo tornaram-se

flutuantes No caminho-de-ferro o espaccedilo eacute aniquilado e tudo o que nos resta eacute o

tempordquo575 Uma vez que a aceleraccedilatildeo teacutecnica permite ultrapassar mais rapidamente as

distacircncias geograacuteficas a relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo altera-se a favor deste uacuteltimo por

outras palavras na modernidade emerge uma de-espacializaccedilatildeo e uma

temporalizaccedilatildeo576 Para aqueles que sofrem de aceleraccedilatildeo moderna o oacutecio natildeo

obstante apresenta-se como uma opccedilatildeo que permite o escape a este desenvolvimento

ou pelo menos a sua suspensatildeo conquanto temporaacuteria Pois o oacutecio aparece duplamente

determinado por uma de-temporalizaccedilatildeo por um lado e ndash como se acrescenta no

paraacutegrafo seguinte ndash uma tendecircncia para a espacializaccedilatildeo por outro

Hartmut Rosa com efeito debruccedilou-se sobre as causas do lamento da aceleraccedilatildeo

geral da vida na modernidade em numerosos escritos Segundo o filoacutesofo o progresso

teacutecnico promove uma aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo do transporte e da comunicaccedilatildeo

571 Sobre a sociabilidade no contexto do jogo consultar Schlitte A Das symbolische Spiel bei GeorgSimmel In Kowalewicz MH (ed) Spiel Facetten seiner Ideengeschichte Muumlnster 2013 pp55-71572 Gruumln A Vom Zauber der Muszlige Freiburg 2008 p34573 Goethe JW Brief an G H L Nicolovius November 1825 In Saumlmtliche Werke BriefeTagebuumlcher und Gespraumlche vol10 (37) Die letzten Jahre 1823ndash1828 Fleig H (ed) Frankfurt a M1993 p334574 Musil R Der Mann ohne Eigenschaften Reinbek 1970 p402575 Heine H Lutetia Berichte uumlber Politik Kunst und Volksleben Saumlmtliche Schriften vol5 BrieglebK (ed) Muumlnchen 1975 p449576 Schroer M Raum Zeit und soziale Ordnung In Ernst P Strohmaier A (ed) Raum Konzepte inden Kuumlnsten Kultur- und Naturwissenschaften Baden Baden 2013 p14

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reduzindo em uacuteltima consequecircncia o tempo necessaacuterio por unidade de quantidade577

Neste sentido e de acordo com Rosa a aceleraccedilatildeo teacutecnica liberta recursos de tempo

oferecendo ndash potencialmente ndash ocasiotildees para a eventual desaceleraccedilatildeo da vida humana

Todavia tal determinaccedilatildeo das sociedades modernas natildeo se afigura compatiacutevel com as

potencialidades teoacutericas da aceleraccedilatildeo teacutecnica pois em verdade os recursos de tempo

das nossas sociedades revelam-se cada vez mais escassos apesar da economia de tempo

decorrente do desenvolvimento tecnoloacutegico578

As observaccedilotildees de Rosa sustentam igualmente que a desaceleraccedilatildeo natildeo pode

constituir o princiacutepio formativo temporal do oacutecio Se tal fosse o caso o oacutecio encontrar-

se-ia passiacutevel de ser reduzido a um estado no acircmbito do qual se disponibilizaria mais

tempo para uma determinada atividade ou no acircmbito do qual haveria menos a fazer

num determinado periacuteodo de tempo No entanto e tal como assinala Rosa a

produtividade absoluta natildeo deve ser determinada como o criteacuterio decisivo do oacutecio ndash

pode-se ser muito produtivo e tambeacutem muito improdutivo numa vivecircncia de oacutecio ndash

mas sim a perspetiva do indiviacuteduo experiente em torno deste (natildeo-) fazer Assim se

natildeo eacute o periacuteodo de tempo em que algo eacute feito que caracteriza o oacutecio mas o modo de

fazer-se a si proacuteprio a des-temporizaccedilatildeo oferece-se como um termo promissor para a

descriccedilatildeo temporal do oacutecio Tal caracterizaccedilatildeo coincide com posiccedilotildees teoacutericas que

definem o oacutecio como devaneio do tempo como uma esfera de intemporalidade

leve579 ou como uma intemporalidade limitada580

Para uma compreensatildeo mais precisa acerca do que a destemporalizaccedilatildeo do oacutecio

pode consistir algumas consideraccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre o tempo afiguram-se aqui

pertinentes Em primeiro lugar haacute que fazer uma distinccedilatildeo entre duas noccedilotildees opostas de

temporalidade que estatildeo profundamente enraizadas na histoacuteria cultural europeia Henri

Bergson observou que o tempo eacute perspetivado na maioria das vezes [como] um meio

homogecircneo581 ou seja como uma condiccedilatildeo fiacutesica objetiva determinada pelas leis da

577 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen Theorie spaumltmodernerZeitlichkeit Frankfurt aM 2013578 Rosa H Bewegung und Beharrung in modernen Gesellschaften Eine beschleunigungstheoretischeZeitdiagnose In Kodalle K Rosa H (ed) Rasender Stillstand Beschleunigung desWirklichkeitswandels Konsequenzen und Grenzen Wuumlrzburg 2008 p13579 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p11580 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p45581 Bergson H Zeit und Freiheit Hamburg 1994 p70

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linearidade uniformidade e unidirecionalidade Este tempo cosmoloacutegico progride

contiacutenua e consistentemente transformando irrevogavelmente o futuro no passado De

um modo distinto existe ainda a ideia de um tempo fenomenoloacutegico que soacute emerge na

experiecircncia do proacuteprio indiviacuteduo tal forma subjetiva de tempo eacute caracterizada pela

caracteriacutestica de singularidade para o experimentador e pela qualidade da duraccedilatildeo582

A filosofia desenvolveu termos distintos para designar estas duas formas de

temporalidade A distinccedilatildeo entre tempo cosmoloacutegico e fenomenoloacutegico remonta agrave

teoria narrativa de Paul Ricœur apresentando-se como anaacuteloga da distinccedilatildeo corrente

entre tempo objetivo e subjetivo presente em outras abordagens teoacutericas de

tempo583

Aleacutem destas diferenccedilas terminoloacutegicas as conceccedilotildees dicotoacutemicas acerca do

tempo possuem a sua origem comum na teologia de Agostinho de Hipona que

estabelecera a sua teoria do tempo no Deacutecimo Primeiro Livro de Confessiones

Agostinho natildeo considera o tempo como um mero facto externo pela primeira vez na

histoacuteria da filosofia o tempo eacute perspetivado agrave luz da existecircncia de uma duraccedilatildeo

interna Enquanto o tempo exterior decorre constantemente e pode ser medido e

comparado a sua perceccedilatildeo interior e espiritual atinge uma qualidade completamente

diferente Soacute a alma humana segundo Agostinho conhece a presenccedila do presente

assim como a presenccedila do passado (a memoacuteria) e a presenccedila do futuro (a

expectativa) Pois estes trecircs estatildeo na alma e em outros lugares eu natildeo os vejo584

Segundo Agostinho o tempo espiritual transcende o tempo objetivamente fiacutesico tal

apreciaccedilatildeo do tempo subjetivo eacute com efeito motivada religiosamente encontrando-se

intimamente ligada ao seu interesse pela contemplaccedilatildeo divina ndash Deus criador do tempo

estaacute fora do tempo (isto eacute na eternidade) e o proacuteprio Agostinho se vecirc a si mesmo

como um ser humano finito derretido no tempo Natildeo obstante Agostinho concebe a

simultaneidade do passado do presente e do futuro na alma humana agrave luz da conceccedilatildeo

de uma imagem conquanto fraacutegil da eterna unidade divina agrave qual o ser humano aspira

582 Polkinghorne DE Narrative Psychologie und Geschichtsbewuszligtsein Beziehungen undPerspektiven In Juumlrgen Straub J (ed) Erzaumlhlung Identitaumlt und historisches Bewuszligtsein Diepsychologische Konstruktion von Zeit und Geschichte Frankfurt a M 1998 p35583 Ricœur P Zeit und Erzaumlhlung Muumlnchen 1991 p390 Consultar Roumlmer I Das Zeitdenken beiHusserl Heidegger und Ricœur Dordrecht 2010 pp254ndash275584 Augustinus Confessiones XI 26 (565) No original bdquo[hellip] tempora sunt trira praesens de praeteritispraesens de praesentibus praesens de futuris sunt enim haec in anima tria quaedam et alibi ea non video[hellip]ldquo

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a unir-se atraveacutes da contemplaccedilatildeo585 Assim se o tempo interior permite a uniatildeo do

homem a Deus o tempo exterior por sua vez revela-se insignificante Agostinho

privilegia com efeito o tempo interior pois este relaciona-se intimamente com as

noccedilotildees de contemplaccedilatildeo eternidade divina e intemporalidade

Todavia e como bem sabemos a praacutetica quotidiana moderna afigura-se muitas

vezes orientada para e segundo o tempo objetivo A razatildeo para tal situaccedilatildeo apresenta-se

tatildeo simples quanto pragmaacutetica atraveacutes da objetivaccedilatildeo do tempo mediante a sua

mensurabilidade a comparabilidade e o planeamento requeridos pelo desempenho das

tarefas quotidianas encontram-se possibilitados e cumpridos Na vida quotidiana o

tempo objetivo transfigura-se numa mercadoria utilizaacutevel que eacute consumida para agir e

alcanccedilar determinadas metas como o tempo enquanto recurso natildeo se encontra

disponiacutevel indefinidamente ndash eacute pois um bem escasso ndash constitui-se ele mesmo objeto

de consideraccedilotildees econoacutemicas586 O tempo eacute por conseguinte alocado para determinados

fins administrado em calendaacuterios e planeado de tal forma que o maior benefiacutecio

possiacutevel pode ser derivado dele Tambeacutem o designado tempo livre natildeo se afigura isento

de tais consideraccedilotildees de uso no sentido real uma vez que eacute desejaacutevel e expectaacutevel que o

empregadotrabalhador o utilize tendo em vista a regeneraccedilatildeo da sua forccedila de trabalho

(e tambeacutem o desenvolvimento do consumo de bens) A perceccedilatildeo subjetiva do tempo

natildeo eacute plenamente passiacutevel de ser abolida na vida quotidiana todavia a temporalidade

quotidiana ou normal apresenta-se caracterizada pelo facto de que o tempo subjetivo

natildeo se consiste numa quantidade independente Pelo contraacuterio o tempo subjetivo parece

estar ligado ao tempo objetivo dominante adquirindo significado enquanto objeto de

comparaccedilatildeo a designada pressatildeo do tempo por exemplo parece traduzir um certo

modo de perceccedilatildeo subjetiva vivenciada quando temos pouco tempo objetivo disponiacutevel

para cumprir uma tarefa ndash por outro lado o teacutedio tambeacutem ele um modo de perceccedilatildeo

subjetiva parece indicar uma situaccedilatildeo de excesso de tempo objetivo como que fazendo

correr o reloacutegio muito lentamente

O tempo de oacutecio representa pois a possibilidade de um desvio do tempo

normal diaacuterio pois os caacutelculos de benefiacutecios temporais natildeo desempenham aiacute qualquer

funccedilatildeo Para o indiviacuteduo que vivencia uma experiecircncia de oacutecio o tempo cosmoloacutegico

585 Augustinus Confessiones XI 39 (587) No original bdquo[hellip] donec in te confluam purgatus et liquidusigne amoris tuildquo586 Consultar Safranski R Zeit Was sie mit uns macht und was wir aus ihr machen Muumlnchen 2015pp106ndash130

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natildeo eacute totalmente abolido mas jaacute natildeo se afigura concebido como um recurso escasso e

constantemente mensuraacutevel natildeo se traduzindo pois num objeto de urgecircncia

permanente Hans Blumenberg distinguiu o tempo-de-ter-que-fazer utilitaacuterio (Muss-

Zeit) que designa a parte da vida individual ocupada pelas exigecircncias da

autopreservaccedilatildeo do tempo-de-poder-fazer (Kann-Zeit) definido como um espaccedilo

livre de realizaccedilotildees indefinidas587 No tempo-de-ter-que-fazer o ser vivo reage agraves suas

necessidades existenciais enquanto o tempo-de-poder-fazer apresenta-se libertado de

tais constrangimentos tornando possiacutevel o preenchimento individual do tempo de vida

com algum conteuacutedo significativo

De acordo com Blumenberg poder-se-ia sustentar que enquanto a vida

quotidiana parece estar dominada por um tempo-de-ter-que-fazer as potencialidades

oferecidas pelo tempo-pode-ser-fazer representam por seu turno uma condiccedilatildeo

necessaacuteria para o oacutecio Por conseguinte a temporalidade especiacutefica do oacutecio tambeacutem

poderaacute ser compreendida como o resultado do seu caraacuteter autorreferencial conquanto o

tempo diaacuterio ou o tempo-de-ter-que-fazer se destina agrave execuccedilatildeo de tarefas certas

necessaacuterias e propositadas no tempo-de-poder-fazer proacuteprio do oacutecio natildeo eacute exigida uma

divisatildeo dos recursos de tempo disponiacuteveis em diferentes tarefas decorrentes de

restriccedilotildees externas ndash porque por definiccedilatildeo tais restriccedilotildees natildeo existem Na ausecircncia de

tais exigecircncias o indiviacuteduo moderno pode na experiecircncia de oacutecio colocar-se no centro

da sua reflexatildeo e da sua accedilatildeo autoacutenoma ou autodeterminada considerando que tal

situaccedilatildeo se afigure cumprida agrave luz da possibilidade de natildeo imposiccedilatildeo de um tempo

cosmoloacutegico ou tambeacutem dito objetivo De facto nos comentaacuterios narrativos

autobiograacuteficos por exemplo verifica-se a descriccedilatildeo de experiecircncias de presenccedila e

fenoacutemenos de destemporalizaccedilatildeo no acircmbito dos quais a sucessatildeo do tempo exterior

perde o seu significado Em verdade tal estado um estado elevado de tempo eacute na

maioria dos casos apenas temporaacuterio ndash ateacute que as exigecircncias da vida quotidiana

retornem novamente A experiecircncia do oacutecio constitui-se portanto num estado de

tempo excecional que soacute pode atingir um significado (temporaacuterio) por contraste com o

fundo normal de um tempo quotidiano588 Neste sentido o tempo de oacutecio tambeacutem

pode ser descrito como uma heterocronia

587 Blumenberg H Lebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p291588 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32

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Como compreender tal conceito ndash heterocronia A este respeito poder-nos-

iacuteamos sustentar no conceito jaacute avanccedilado por Michel Foucault de heterotopia589 que

parece integrar uma certa referecircncia agrave temporalidade lrsquoheacuteteacuterotopie [qui] se met agrave

fonctionner agrave plein lorsque les hommes se trouvent dans une sorte de rupture absolue

avec leur temps traditionnelrdquo590 Aparentemente para aleacutem das exigecircncias sistemaacuteticas

o modelo de heterotopia de Foucault inclui de uma certa forma a ideia de uma

conceccedilatildeo especiacutefica do tempo que possui uma designaccedilatildeo anaacuteloga Foucault recorre ao

exemplo do museu e da biblioteca que o filoacutesofo interpreta em termos de uma extensatildeo

de tempo pretendida Os exemplos que rompem com a estruturaccedilatildeo tradicional ou

quotidiana do tempo satildeo segundo Foucault museus e bibliotecas ndash e bem assim

lugares claacutessicos de oacutecio o tempo passado seria neles preservado pois tais lugares

assim perspetivados afiguram-se como que libertos das restriccedilotildees temporais como se

se encontrassem fora do tempo Segundo Foucault uma segunda forma de heterotopia

temporal consiste na heacuteteacuterotopie chronique que o filoacutesofo francecircs exemplifica atraveacutes

de acontecimentos culturais como feiras de divertimento e aldeias de feacuterias Nestes

lugares o tempo natildeo eacute acumulado mas celebrado como algo fugaz ndash laquode plus futile de

plus passager de plus preacutecaireraquo591 Apesar da dicotomia conceptual entre eternidade e

efemeridade ambas as formas de heterotopia do tempo assemelham-se na medida em

que o tempo natildeo estaacute disponiacutevel neles como recurso sendo sim celebrado como um

fenoacutemeno independente Todavia o simples facto de ter tempo de ter tempo livre ndash e

de assim se sugerir a rutura com a temporalidade quotidiana ndash natildeo configura por si

mesmo um criteacuterio suficiente para o oacutecio afinal de contas o tempo natildeo gasto ainda

estaacute disponiacutevel como um recurso para accedilotildees futuras relacionadas com objetivos e pode

assim tornar-se objecto de consideraccedilotildees econoacutemicas592 Tal como adverte Blumenberg

589 Em analogia com Foucault o espaccedilo de oacutecio seria um espace autre de tipo diferente e distinto(proacuteprio) dos espaccedilos habituais bem como excluiacutedo e fechado E o tempo heterocronia designaria algoque natildeo se determina sob o signo do habitual natildeo se apresentando regulamentado segundo o cursoregular das coisas mas experimentando uma determinaccedilatildeo individual e por consequecircncia uma atribuiccedilatildeode significado a heterocronia independentemente de ser prolongada ou restrita encontra-se em estreitaligaccedilatildeo (funcionando como um acto de justificaccedilatildeo) com as instituiccedilotildees cujo significado eacute alimentado poraquela ndash nenhum museu sem eternidade intencional nenhum festival sem limite temporal do qual extrai asua solenidade em primeiro lugar Como a heterocronia o oacutecio tambeacutem segue o seu proacuteprio horaacuterio namedida em que quase nunca abrange uma vida inteira mas apenas uma parte seja de curto ou de longoprazo 590 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p759591 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p760592 Figal G Muszlige als Forschungsgegenstand In Muszlige Ein Magazin 11 (2015)p 19

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a margem de manobra temporal do tempo-de-ter-que-fazer natildeo eacute suficiente para ter

um tempo preenchido593

Qual eacute entatildeo a diferenccedila fundamental que separa o tempo diaacuterio do tempo de

oacutecio A liberdade relativamente agrave pressatildeo externa do tempo constitui de facto uma

condiccedilatildeo necessaacuteria para o oacutecio ndash todavia o elemento decisivo determina-se como o

modo segundo o qual o indiviacuteduo percebe esse espaccedilo livre no tempo Neste sentido

importaria asseverar o tempo de oacutecio eacute portanto determinado pela sua qualidade

fenomenoloacutegica a experiecircncia do oacutecio ocorre ndash e assim poderiacuteamos concluir ndash quando o

sujeito jaacute natildeo se sente compelido a comparar a sua proacutepria perceccedilatildeo do tempo (com o

tempo externo) como que se esquecendo justamente ainda que por momentos de tal

diferenccedila ou dicotomia O tempo de oacutecio eacute pois um tempo proacuteprio594 (Eigen-Zeit no

sentido literal) na experiecircncia de oacutecio apenas o tempo subjetivo adquire significado

enquanto o tempo objetivo natildeo possui qualquer relevacircncia A partir de tais

consideraccedilotildees poder-se-ia explicitar de um modo mais claro o efeito da

destemporalizaccedilatildeo que emerge enquanto desvio heteroacutecrono relativamente ao

tempo quotidiano trata-se pois de perspetivar a possibilidade de uma separabilidade

entre o subjetivo e o objetivo entre o tempo fenomenoloacutegico e o tempo cosmoloacutegico Eacute

precisamente esta possibilidade de separabilidade que determina o tempo de oacutecio

repousado na experiecircncia e natildeo mensuraacutevel595 Ao contraacuterio do caso normal da vida

quotidiana o tempo objetivo natildeo se introduz na experiecircncia do oacutecio como uma

referecircncia para a perceccedilatildeo subjetiva do tempo Na sua experiecircncia de oacutecio o sujeito

pode natildeo obstante sentir a passagem do tempo ndash mas tal situaccedilatildeo natildeo determina a sua

fruiccedilatildeo enquanto tal Ao inveacutes de comparar planear e utilizar intervalos de tempo ndash

situaccedilotildees que configuram a temporalidade objetiva ndash o indiviacuteduo pode concentrar-se

de um modo tanto quanto possiacutevel pleno na atividade que para si mesmo escolheu

realizar Se o tempo fenomenoloacutegico jaacute natildeo eacute comparado com o tempo cosmoloacutegico o

tempo em si mesmo pode ser objeto de olvido por parte do sujeito do oacutecio tal como

elucida Figal assim que se tem tempo para fazer algo o tempo jaacute natildeo desempenha um

papel Certamente o tempo natildeo para mas eacute singularmente suspenso596 Ao sujeito do

oacutecio a singular ldquosuspensatildeordquo do tempo parece sugerir que o tempo (fenomenoloacutegico)

593 Blumenberg H Lebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p291594 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995595 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p45596 Figal G Muszlige als Forschungsgegenstand In Muszlige Ein Magazin 11 (2015) 19

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ficara completamente parado enquanto o tempo (cosmoloacutegico) permanece

despercebido

Para ilustrar tal situaccedilatildeo alguns conceitos filosoacuteficos poderatildeo ser apontados

tendo em vista a elucidaccedilatildeo conceptual da possibilidade da perceccedilatildeo individual do

tempo se determinar para aleacutem da objetividade cosmoloacutegica O termo alematildeo Weile

(ldquopermanecircncia certo espaccedilo de tempordquo) pode ser aplicado aos tempos de oacutecio como um

caso especial de experiecircncia subjetiva do tempo Figal descreve a dimensatildeo temporal do

oacutecio como um periacuteodo de tempo que se estabelece em Weile597 ou atraveacutes da forma

verbal ativa de permanecer (verweilen) oacutecio significar ser capaz (poder) de

permanecer (verweilen) assim tambeacutem elucida Bruumlhweiler598 No mesmo tom o oacutecio

realiza-se num Verweilen (permanecer) livre e significativo no tempo sustenta Riedl599

Entre tais posiccedilotildees as observaccedilotildees de Michael Theunissen sobre o Verweilen

(permanecer) afiguram-se assaz pertinentes pois o filoacutesofo descreve o oacutecio como uma

possibilidade de concentraccedilatildeo no sempre presente600 Somente aqueles que natildeo se

importam com o futuro e tambeacutem natildeo pensam nos seus sofrimentos passados podem

verweilen (permanecer) Concentrando-se no presente a pessoa que verweilt

(permanece) sente portanto como que um aliacutevio601 Aleacutem disso Verweilen

(permanecer) pode significar um certo tipo de felicidade conceccedilatildeo que Theunissen

define na sua iacutentima ligaccedilatildeo com os conceitos aristoteacutelicos de teoria e de eudaimoniacutea

Esta eacute a felicidade que Aristoacuteteles pode atribuir ao comportamento teoacuterico no mundo pois

concebe a teoria como um observar e assim a coloca no mesmo niacutevel de uma

contemplaccedilatildeo esteacutetica602

Theunissen recusa proclamar a existecircncia equivalente ou inclusivamente

independente de um tempo subjetivo face ao tempo objetivo pois o que se faz

independente no tempo-do-ego natildeo eacute em verdade senatildeo uma consumaccedilatildeo do tempo

pelos sujeitos humanos a consumaccedilatildeo de um tempo cosmoloacutegico que natildeo eacute subjetivo

597 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32598 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p11599 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 20600 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291601 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291602 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291

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em si603 Natildeo obstante para Theunissen a possibilidade de uma experiecircncia de

felicidade depende de um modo de perceccedilatildeo que jaacute natildeo presta atenccedilatildeo ao tempo

homogeneamente progressivo

O momento eacute adequado para a irrupccedilatildeo suacutebita Verweilen (permanecer) proporciona

felicidade porque o seu objeto desligado do meu anteprojeto relativamente ao futuro

aparece de repente sob uma luz nova e desconhecida604

Segundo Theunissen a felicidade praacutetica que resulta da sintetizaccedilatildeo dos

tempos605 poderia constituir uma contraparte ao Verweilen (permanecer) concebido

por seu turno como um prolongamento do tempo orientado para a experiecircncia no

presente No acircmbito da experiecircncia da ldquofelicidade praacuteticardquo tal como perspetivada por

Theunissen o sujeito natildeo se dissolve no presente mas medeia o seu passado presente e

futuro numa experiecircncia de continuidade que lhe permite construir uma identidade

supratemporal a qual pode determinar-se como possibilidade de autorrealizaccedilatildeo praacutetica

agrave luz do conceito de autonomia

Neste sentido e ainda de acordo com Theunissen uma conceccedilatildeo linear

acelerada do tempo poderia ser complementada por uma conceccedilatildeo riacutetmica e ciacuteclica do

tempo Tal conceccedilatildeo riacutetmica e ciacuteclica do tempo encontra-se claramente em tensatildeo com

o conceito linear do tempo que hoje conhecemos como dominante O conceito de

tempo linear enfatiza com efeito a continuidade do fluxo irreversiacutevel de

acontecimentos que flui sem pontos inicial e final segundo uma loacutegica sempre mais

acelerada e mais incrementada tal como a reconhecemos no contexto da modernidade

tardia A abertura do tempo a este sentido de infinito afigura-se natildeo obstante tentadora

e desafiadora tal como observa Wendorff ldquoUm mundo tatildeo moderno de tempo linear

natildeo tem pontos fixos em nenhum lugar mas tambeacutem natildeo oferece paz em nenhum

lugarrdquo606

Segundo este quadro cada momento possui a sua existecircncia irrevogavelmente

fugaz sem a possibilidade de um aprofundamento real Em lugar algum o ser humano

pode ancorar-se firmemente na corrente do tempo ndash e o seu sentimento mais premente

consiste em desejar adaptar-se tanto quanto lhe for possiacutevel agrave velocidade do tempo que

lhe foi atribuiacutedo a fim de com ela se tornar sincroacutenico preenchendo-a de significado e

603 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p303604 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p292605 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291606 Wendorff R Der Mensch und die Zeit Opladen 1988 pp34-35

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conteuacutedo Na era da vida acelerada os (cada vez mais) temidos perigos do futuro

determinam o presente o presente encontra-se parcialmente coberto pelo futuro e ao

mesmo tempo o futuro estaacute sobrecarregado com os problemas do presente (repare-se

por exemplo que as sociedades modernas dificilmente podem resolver os seus

problemas ecoloacutegicos de outra forma que natildeo seja sobrecarregando os custos de

eliminar o seu lixo civilizacional no futuro) Por outro lado o constante progresso do

conhecimento torna difiacutecil a adaptaccedilatildeo ao futuro no presente Paradoxalmente quanto

mais raacutepido cresce o nuacutemero de inovaccedilotildees mais difiacutecil se torna prever situaccedilotildees de vida

futuras

Na modernidade tardia e sob a constante interaccedilatildeo entre inovaccedilatildeo e nostalgia a

diferenccedila entre conhecido e desconhecido afigura-se profundamente reduzida O

exoacutetico ou o novo natildeo se apresentam mais estranhos ao sujeito moderno do que o antigo

ou o familiar Com efeito no acircmbito da modernidade temporalmente acelerada cujo

curso se desdobra ao longo de experiecircncias cada vez mais fugazes dos tempos presentes

o anteriormente ldquonovordquo torna-se pronta e rapidamente obsoleto velho Dir-se-ia com

efeito que o original o claacutessico e o perene possuem a vantagem de dificilmente

envelhecerem no sentido histoacuterico ndash mas o novo ao inveacutes ameaccedila transfigurar-se

segundo uma celeridade inexoraacutevel em velho

Contra tais tendecircncias um tempo qualitativo perspetivado como ldquotempo-

proacutepriordquo607 desenvolvido no acircmbito de uma vivecircncia de oacutecio permitiria a abertura de

horizontes humanos da experiecircncia ndash desde logo a experiecircncia-de-si A hegemonia de

uma conceccedilatildeo linear do tempo conduz-nos ao esquecimento de que nos encontramos

inseridos numa complexidade de ritmos temporais e de mareacutes de realidade Distintas

situaccedilotildees naturais e relacionamentos humanos exigem tempos proacuteprios de

desenvolvimento e de amadurecimento A agricultura por exemplo eacute

predominantemente orientada segundo ciclos naturais mas a distribuiccedilatildeo dos seus

produtos eacute determinada por padrotildees de tempo lineares Atraveacutes da mecanizaccedilatildeo e da

transformaccedilatildeo quiacutemica da produccedilatildeo de alimentos estruturas temporais cada vez mais

lineares penetram no reino ciacuteclico da natureza e no reino agriacutecola O sujeito da

modernidade tardia por sua vez sofre a perda do sentido dos ritmos naturais608 tal

607 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995608 Benz E Akzeleration der Zeit Mainz 1977 Consultar Luumlbbe H Der verkuumlrzte Aufenthalt in derGegenwart In Kemper P (ed) bdquoPostmodemeldquo Frankfurt 1988 pp145-164

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como assinala Benz ndash conquanto estes possam ainda ser parcialmente experienciados no

espaccedilo do idiacutelio A este respeito leiamos Hans-Georg Gadamer

Eacute uma unilateralidade voluntaacuteria da modernidade que a coisa mais importante aqui eacute

poder-fazer poder-controlar Mas tambeacutem vemos que isto natildeo eacute tudo haacute tambeacutem a

hora da morte e a hora do nascimento Eacute precisamente aqui que nos chega tambeacutem a

incontrolabilidade do tempo das coisas que natildeo podemos-fazer Inclusivamente coisas

que acontecem naturalmente e ritmicamente Haacute um esquema baacutesico de experiecircncia

riacutetmica do tempo em que o fim estaacute ligado ao iniacutecio Olhamos para o reloacutegio quando

queremos ver como estatildeo as coisas com o tempo O reloacutegio eacute algo que liga constantemente

o fim com o iniacutecio nomeadamente atraveacutes do movimento circular E assim tudo no nosso

mundo estaacute entrelaccedilado com o movimento de autorrenovaccedilatildeo todos noacutes conhecemos o

ritmo do acordar e do dormir ou aquele momento particular em que a respiraccedilatildeo se

transforma em exalaccedilatildeo de que Paul Celan falou609

E continuamente

E assim se pode ver em toda a parte este padratildeo baacutesico do riacutetmico no qual noacutes mesmos

estamos inseridos como seres vivos E talvez toda a literacia real consista em natildeo

desaprender esta reconexatildeo riacutetmica e experimentaacute-la no oacutecio em tudo o que absorvemos

no mundo e na experiecircncia610

A formulaccedilatildeo moderna dos distintos conceitos de trabalhordquo e de oacutecio ndash bem

como as relaccedilotildees entre as diferentes realidades que designam ndash constitui a possibilidade

da determinaccedilatildeo e da regulaccedilatildeo do tempo como tempo de trabalho e tempo de natildeo-

trabalho Este uacuteltimo o tempo de natildeo-trabalho ndash definido tal como a sua designaccedilatildeo o

ilustra em relaccedilatildeo contraposta ao conceito de trabalho ndash diz respeito pois ao periacuteodo

do dia ou da noite que sucede ao periacuteodo laboral bem como ao domingo e ainda agraves

feacuterias (recorde-se que o periacuteodo de feacuterias concedido ao trabalhador constituiu uma

conquista histoacuterico-social que ainda natildeo se plenamente encontrava efetivada e regulada

nos iniacutecios do seacuteculo XIX) Importaria igualmente tomar em linha de conta os periacuteodos

de doenccedila enquanto parte integrante do tempo de natildeo-trabalho tal como ndash se bem

609 Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weise Maszlig (CD)Penzberg 1989 A este respeito assim escreve Gadamar Mas tambeacutem enquanto acordamos e dormimosEm alematildeo uso o termo Entschlafenen[algueacutem que natildeo mais acorda] Muito proacuteximos um do outroencontram-se o sono e a morte como o disse Heraacuteclito de modo inolvidaacutevel Poderiacuteamos ainda falar deuma das grandes particularidades dos deuses gregos pois o divino nunca dorme aqui mas estaacutepermanentemente desperto o divino natildeo conhece o ato de despertar mas este o despertar eacute de algumaforma um milagrerdquo (Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weiseMaszlig (CD) Penzberg 1989)610 Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weise Maszlig (CD)Penzberg 1989

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pretendermos tomar o ponto de vista da biografia do indiviacuteduo trabalhador ndash os anos da

infacircncia e da velhice Este quadro assim exposto assume com efeito a consideraccedilatildeo dos

complexos contornos que envolvem a relaccedilatildeo entre trabalhonatildeo-trabalho e tempo trata-

se pois de uma perspetivaccedilatildeo acerca das implicaccedilotildees entre trabalho e temporalidade

Analogamente cumpriria tomar em atenta anaacutelise a interseccedilatildeo entre

trabalhonatildeo-trabalho e o conceito de espaccedilo Em verdade a espacialidade ndash a

configuraccedilatildeo de conceccedilotildees espaciais especiais ndash determina e estabelece distintamente

os espaccedilos de trabalho (a oficina domeacutestica do artesatildeo o campo do agricultor as

primeiras faacutebricas etc) e os espaccedilos de oacutecio (o jardim e o parque o teatro o museu o

salatildeo o quarto o prado verde o barco sobre o lago etc) Assim a apreciaccedilatildeo da

oposiccedilatildeo entre trabalho por um lado e ldquotempo livrerdquo e ldquooacuteciordquo por outro exige a

consideraccedilatildeo da demarcaccedilatildeo entre espaccedilos de trabalho e espaccedilos privados uma

demarcaccedilatildeo que traduz igualmente uma envolvecircncia histoacuterico-social (conquanto nem

sempre passiacutevel de exata diferenciaccedilatildeo ndash um exemplo a evocar poderia ser o trabalho

em casa a tecelagem entre outros especialmente desempenhado por mulheres) A este

respeito o periacuteodo em torno de 1800 poderaacute apresentar-se como um momento de

transiccedilatildeo no acircmbito do qual a contraposiccedilatildeo acentuada entre espaccedilos de trabalho e

espaccedilos privados comeccedilara a implementar-se como uma nova realidade crescente

particularmente com a industrializaccedilatildeo e a proliferaccedilatildeo das faacutebricas A distinccedilatildeo entre

espaccedilos de trabalho e espaccedilos de oacutecio poderaacute ainda ser lida agrave luz de uma outra

interessante oposiccedilatildeo que se afigura elaborada segundo um certo desenvolvimento

semacircntico das noccedilotildees de cidade e de campo

Desde os tempos antigos a histoacuteria cultural tem conhecido uma infinidade de

lugares e de configuraccedilotildees espaciais que se destinam a permitir ao indiviacuteduo iniciar o

desenvolvimento da fruiccedilatildeo do oacutecio podendo em alguns casos traduzir-se como

efetivas expressotildees de uma disposiccedilatildeo individual para o oacutecio Enquanto os aristocratas

romanos por exemplo se retiravam para suas propriedades os priacutencipes modernos

encenavam o lugar da sua experiecircncia do oacutecio atraveacutes da construccedilatildeo de residecircncias

proacuteprias para tal fim geralmente integrando amplos jardins A construccedilatildeo destes

uacuteltimos tambeacutem considerados como lugares propiacutecios agrave contemplaccedilatildeo traduz uma

interessante continuidade histoacuterica que se prolonga no tempo desde a construccedilatildeo dos

jardins do mosteiro dos monges bem como dos parques da cidade nos quais os flacircneurs

burgueses do seacuteculo XIX procuravam a paz por contraste com o ruiacutedo das ruas mais

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agitadas de uma nova modernidade urbana ndash no caso de natildeo desejarem o escape da

floresta mais exoacutetica ou misteriosa ou a fuga para as paisagens arcaacutedicas da Itaacutelia O

conceito de paisagem belardquo ilustra o facto de nem todos os locais de oacutecio terem de ser

construiacutedos de raiz como tal ndash de um modo distinto certas praacuteticas espaacutecio-temporais

tais como os passeios a peacute ou as caminhadas podem transformar um qualquer local

indiferenciado num lugar de oacutecio Com efeito a cultura espacial do oacutecio manifesta-se

de forma muito variada e estaacute presente em numerosos locais o Jardim de Agostinho a

Biblioteca de Montaigne a Ilha de Rousseau e a Itaacutelia de Goethe encontram-se entre os

topoi mais culturalmente evocados do oacutecio

Tendo presente tal quadro teoacuterico alguns estudiosos do oacutecio tecircm-se dedicado agraves

suas condiccedilotildees e manifestaccedilotildees espaciais ndash o que talvez aconteccedila devido a um certo

gosto pela fenomenologia da espacialidade Vaacuterias abordagens acerca da espacialidade

do oacutecio podem aqui ser mencionadas e distinguidas tendo em conta diferentes

meacutetodos de anaacutelise dos aspetos de tal realidade e diferentes niacuteveis da sua descriccedilatildeo

Assim alguns estudos satildeo dedicados agrave descriccedilatildeo detalhada de espaccedilos concretos de

oacutecio particularmente configuraccedilotildees arquitetoacutenicas ou naturais que em virtude das suas

caracteriacutesticas se apresentam adequados para permitir ao indiviacuteduo o desenvolvimento

de situaccedilotildees de oacutecio Esta abordagem sustenta-se no pressuposto de que os espaccedilos de

oacutecio satildeo com efeito espaccedilos artificialmente construiacutedos ou produzidos de acordo com a

possibilidade de efetuaccedilatildeo de tal experiecircncia ndash satildeo pois espaccedilos criados segundo o

propoacutesito da promoccedilatildeo do favorecimento da fruiccedilatildeo do oacutecio Guumlnter Figal chama a

atenccedilatildeo para tal afinidade da experiecircncia do oacutecio com certos locais que lhe satildeo neste

sentido conformes O oacutecio procura e encontra os seus lugares e espaccedilos611

Tal observaccedilatildeo sugere vaacuterias interrogaccedilotildees quais as caracteriacutesticas que

predestinam um determinado espaccedilo como espaccedilo de oacutecio tais caracteriacutesticas revelam

modos de continuidade antropoloacutegica no acircmbito de diferentes tempos e contextos ou

ao inveacutes cada eacutepoca produz para si mesma os seus proacuteprios espaccedilos especiacuteficos Tal

como Figal esclarece o facto de um certo gosto pela construccedilatildeo de jardins banhos

museus e outros locais de oacutecio percorrer a histoacuteria cultural europeia parece constituir

uma indicaccedilatildeo de que existe uma consciecircncia histoacuterica do efeito favoraacutevel de certos

611 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p26

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enquadramentos espaciais do oacutecio Por sua vez uma outra abordagem relativa ao

estudo da espacialidade do oacutecio consiste natildeo em examinar os espaccedilos de oacutecio mas em

descrever o proacuteprio oacutecio metaforicamente como um espaccedilo de acordo com tal postura

de anaacutelise Maeumll Renouard define o oacutecio como um espaccedilo propiacutecio agrave reflexatildeo ldquoLe

recueillement promis par lrsquootium concerne les conditions de la penseacutee Il est lrsquoespace ougrave

elle est possiblerdquo612 A vantagem argumentativa de tal posiccedilatildeo revela-se clara se

tomarmos o oacutecio como uma unidade espacial podemos delimitaacute-lo por contraste com

outros espaccedilos sociais tais como o espaccedilo de trabalho da economia ou da poliacutetica A

dicotomia estrutural entre o oacutecio e o mundo quotidiano pode ser mais facilmente

conceptualizada como uma oposiccedilatildeo espacial ndash o oacutecio apresenta-se descrito como uma

realidade aleacutem do trabalho e aleacutem do tempo livre613

Nesse sentido Peter Philipp Riedl identifica o oacutecio com os espaccedilos livres que

permitem o afastamento de todos os mecanismos coercitivos sociais e poliacuteticos da

modernidade614 Assim o oacutecio assume-se compreendido como um domiacutenio da vida

humana que se determina por seu turno como uma condiccedilatildeo possibilitadora de certos

processos cognitivos ou praacuteticos no oacutecio o homem pode pensar sobre si mesmo

realizar-se Por fim uma terceira abordagem integra ainda os estudos acerca da

espacialidade do oacutecio segundo esta uacuteltima postura de anaacutelise o oacutecio perspetivado sob

o tiacutetulo da espacialidade anuncia-se como a experiecircncia de um sujeito que se

caracteriza pela perceccedilatildeo intensificada do espaccedilo circundante trata-se pois de uma

perspetiva de pendor fenomenoloacutegico que compreende o oacutecio como a possibilidade de

experiecircncia de uma existecircncia espacial [desenvolvida pelo sujeito] que estaacute no mundo

e ao mesmo tempo perante o mundo615 O individuo ao dirigir o seu olhar para o seu

ambiente envolvente ndash aqui apresentam-se novamente evocados os velhos conceitos de

theoria e de contemplatio ndash desenvolve a experiecircncia do espaccedilo que se anuncia

inteiramente como o foco da sua atenccedilatildeo e assim se transfigura o espaccedilo assim

contemplado em espaccedilo de oacutecio A caracteriacutestica especial do olhar que o individuo

612 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p73613 Reinhard W Die fruumlhneuzeitliche Wende Von der sbquoVita contemplativalsquo zur sbquoVita activalsquo In WulfCJorg Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p9614 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 26615 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32

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dirige ao espaccedilo (de oacutecio) reside justamente na abstraccedilatildeo dos processos temporais e na

integraccedilatildeo de vaacuterias impressotildees num todo espacial

A observaccedilatildeo contemplativa desenvolvida numa experiecircncia de oacutecio de uma praccedila

urbana deteacutem-se menos no ir-e-vir do que o panorama geral e no movimento da proacutepria

observaccedilatildeo Assim se pode ver como acontece em todas as observaccedilotildees contemplativas

desenvolvidas no oacutecio tudo no espaccedilo ndash no jogo da distacircncia e da proximidade na

pertenccedila conjunta do que eacute exterior no espaccedilo livre do grande horizonte em que algo se

pode mostrar Este espaccedilo livre permite que tudo aquilo que estaacute dentro de si ou tudo

aquilo que em si entre se afigure pois simultacircneo616

Importaria elucidar que de acordo com esta uacuteltima abordagem acerca da

espacialidade do oacutecio ndash uma abordagem marcada por um cariz eminentemente

fenomenoloacutegico ndash o conceito de tempo poder-se-ia constituir igualmente como uma

determinaccedilatildeo integrante No acircmbito de tal abordagem fenomenoloacutegica cumpre

perspetivar a experiecircncia do espaccedilo enquanto experiecircncia do oacutecio agrave luz de uma

possibilidade de relaccedilatildeo ndash ou de modo rigoroso contrarrelaccedilatildeo ndash face ao ldquocaso

normalrdquo ou seja o contexto da vida quotidiana distante da fruiccedilatildeo do oacutecio Se a

experiecircncia do oacutecio eacute caracterizada por um estado de tempo excecional que rompe

com a administraccedilatildeo diaacuteria e a mediccedilatildeo do tempo como um recurso econoacutemico escasso

entatildeo tal experiecircncia do oacutecio poderaacute com justeza ser perspetivada como uma exceccedilatildeo

ou desvio dos modos de perceccedilatildeo usual do espaccedilo De acordo com a premissa

fenomenoloacutegica quem experimenta o oacutecio natildeo perceciona um mero espaccedilo limitado que

pode ser utilizado e preenchido com objetos quotidianos em vez disso no acircmbito do

espaccedilo do oacutecio emergem as qualidades do proacuteprio espaccedilo perante o qual o sujeito se

coloca numa relaccedilatildeo individual Na histoacuteria da cultura existem muacuteltiplos exemplos de

tal fruiccedilatildeo do oacutecio num contexto espacial ao inveacutes de temer a floresta ou de evitaacute-la

enquanto fonte de perigo atravessando-a pelo caminho mais raacutepido a burguesia do

seacuteculo XVIII passara a procurar a floresta para tomaacute-la como o lugar das suas

caminhadas sem rumo e sem destino definidos agrave partida O mesmo se pode dizer das

montanhas que neste mesmo periacuteodo cultural deixaram de ser consideradas como um

lugar de terra incognita para serem perspetivadas como um lugar de autoconhecimento

Natildeo se trata pois de possibilidades de alteraccedilatildeo ou de mudanccedila constitutivas do espaccedilo

enquanto tal mas sobretudo da perceccedilatildeo do espaccedilo que passara a ser apreciado como

616 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p30

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adequado para praacuteticas de movimento em oacutecio e em contemplaccedilatildeo Tais espaccedilos natildeo

satildeo pois procurados por razotildees econoacutemicas ou sociais mas sim como novos lugares

propiacutecios agrave experiecircncia e agrave aventura

Tal como a dimensatildeo temporal do oacutecio pode ser compreendida agrave luz da noccedilatildeo de

destemporalizaccedilatildeordquo assim a espacializaccedilatildeo oferece-se neste ponto como uma

expressatildeo conceptual passiacutevel de descrever a mudanccedila de perceccedilatildeo que promove a

atenccedilatildeo dedicada agraves qualidades do espaccedilo617 A perceccedilatildeo do espaccedilo quanto experiecircncia

de oacutecio apresenta-se por conseguinte baseada num processo semacircntico num contexto

de experiecircncia do oacutecio o espaccedilo deixa de ser tomado como um facto fiacutesico ou

geograacutefico para ser concebido como um lugar significativo A semantizaccedilatildeo do espaccedilo

pode com efeito decorrer de processos coletivos bem como de criaccedilotildees individuais

ou em muitos casos de ambas as situaccedilotildees Ao atribuir significado a um espaccedilo

indefinido o indiviacuteduo pode tomar esse mesmo espaccedilo (objetivo) transfigurando-o e

determinando-o subjetivamente e assim tornaacute-lo um lugar de oacutecio A utilizaccedilatildeo

diferenciada dos termos espaccedilo e lugar cujas definiccedilotildees e relaccedilotildees natildeo satildeo

consensualmente perspetivadas na teoria do espaccedilo618 desenvolvida ateacute ao momento

pretende dar conta da seguinte distinccedilatildeo enquanto o espaccedilo representa uma estrutura e

uma disposiccedilatildeo a priori os lugares constituem-se somente atraveacutes da diferenciaccedilatildeo de

espaccedilos diferentes do estabelecimento de fronteiras e sobretudo da atribuiccedilatildeo de

significado a uma determinada estrutura topograacutefica topoloacutegica ou social

A passagem do espaccedilo para o lugar ndash a configuraccedilatildeo da experiecircncia do oacutecio ndash

natildeo se apresenta inteiramente anaacuteloga agrave passagem da perceccedilatildeo objetiva para a perceccedilatildeo

subjetiva do tempo conquanto tal relaccedilatildeo se afigure pelo menos estruturalmente

semelhante pois enquanto o espaccedilo se constitui como uma realidade mais ou menos

divisiacutevel e mensuraacutevel em termos objetivos jaacute a conexatildeo do lugar com um eu que

estaacute aqui e tambeacutem designa esse ser aqui eacute de importacircncia excecional619 Segundo

Jacques Derrida o lugar pode ser compreendido como um lugar ocupadoequipado

617 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p31618 Sobre os termos espaccedilo e lugar e as suas diferentes relaccedilotildees no curso da histoacuteria da filosofiaconsultar Waldenfels B Ortsverschiebungen Zeitverschiebungen Modi leibhaftiger ErfahrungFrankfurt a M 2009 p31 Guumlnzel S Raumkehren In Guumlnzel S (ed) Raum Ein interdisziplinaumlresHandbuch StuttgartWeimar 2010 pp 77ndash120619 Waldenfels B Ortsverschiebungen Zeitverschiebungen Modi leibhaftiger Erfahrung Frankfurt aM 2009 p32

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(lieu investi) por contraste com o espaccedilo abstrato620 A fonte na floresta soacute se torna um

lugar quando se distingue conceptualmente do espaccedilo circundante e ndash tal como locus

amoenus na literatura por exemplo ndash se afigura suscetiacutevel de integrar um significado

cultural Distintamente um espaccedilo arquitetoacutenico tal como uma construccedilatildeo significativa

criada pelo homem jaacute eacute sempre um lugar Com efeito nem todos os lugares se

apresentam de raiz como lugares de oacutecio do mesmo modo a semacircntica que configura

um lugar enquanto tal natildeo se afigura vinculativa para todos os indiviacuteduos de uma

comunidade nem vaacutelida independentemente do contexto ndash trata-se pois de perspetivar

a atitude dos sujeitos em relaccedilatildeo ao espaccedilo atitude passiacutevel de configuraccedilatildeo desse

mesmo espaccedilo em lugar (tenha-se presente pois que o mesmo espaccedilo ndash por exemplo

uma praccedila urbana movimentada ndash pode ser perspetivada por um sujeito como o espaccedilo

do seu negotium e por outro sujeito ndash digamos um flacircneur ndash como o lugar da sua

flacircnerie esteacutetica)

A perceccedilatildeo do espaccedilo constitui-se como a pedra de toque de tais consideraccedilotildees

a percepccedilatildeo do espaccedilo enquanto lugar representa uma situaccedilatildeo ou desvio da atitude

quotidiana perante o espaccedilo Neste sentido e analogamente ao conceito de

heterocronia a espacialidade do oacutecio pode assim ser definida como uma

heterotopia Michel Foucault designa de heacuteteacuterotopies um certo tipo de lugares que

estatildeo inscritos em cada cultura de forma semelhante ao que se passa nas utopias nas

heterotopias os mecanismos de ordem regular de uma sociedade satildeo simultaneamente

representados questionados e invertidos (agrave la fois repreacutesenteacutes contesteacutes et inverseacutes)

Todavia ao contraacuterio das utopias ficcionais as heterotopias estatildeo ligadas a lugares reais

(lieux reacuteels) Enquanto utopias ldquoeffectivement reacutealiseacuteesrdquo as heterotopias possuem um

estatuto paradoxal satildeo ldquodes sortes de lieux qui sont hors de tous les lieux bien que

pourtant ils soient effectivement localisablesrdquo Por outras palavras as heterotopias

formam uma espeacutecie de contra-lugar onde as regras e os processos de uma sociedade

satildeo interrompidos ou invertidos Esta eacute a sua caracteriacutestica saliente eles satildeo

ldquoabsolument autres que tous les emplacements qursquoils reflegravetentrdquo621

A partir da consideraccedilatildeo de tal caracteriacutestica que determina e envolve a

Heterotopia poderemos compreender e descrever tambeacutem o caraacutecter espacial

620 Derrida J Chōra Wien 1990 p42621 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p755

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excecional do oacutecio Algumas heterotopias mencionadas por Foucault ndash tais como jardins

ndash correlacionam-se com os lugares ldquoclaacutessicosrdquo do oacutecio622 Natildeo obstante para aleacutem das

formas concretas de realizaccedilatildeo o oacutecio per se pode ser considerado agrave luz de estruturas

heterotoacutepicas se as compreendermos como desvios do modo funcional normal de uma

sociedade Foucault refere-se explicitamente agrave realidade da oisiveteacute como um

exemplo de tal heterotopia de desvio (heacuteteacuterotopie de deacuteviation) pois dans notre

socieacuteteacute ougrave le loisir est la regravegle loisiveteacute forme une sorte de deacuteviation623 O conceito

tambeacutem oferece pontos de partida relevantes para uma segunda observaccedilatildeo a de que a

alteridade do oacutecio consiste acima de tudo numa perceccedilatildeo alterada e profundamente

subjetiva dos lugares e dos tempos Rainer Warning por seu turno descreveu as

heterotopias como ldquoespaccedilos de experiecircncia esteacutetica e assim elucidou sobre a

possibilidade de determinar o modo especiacutefico de perceccedilatildeo de uma heterotopia literaacuteria

de oacutecio624 Segundo o Warning as heterotopias surgem de uma

[] convergecircncia do sujeito da escrita com um espaccedilo real que pode ser experimentado e

mantido imaginativamente como outro espaccedilo com base em certas caracteriacutesticas de

modo que as ocupaccedilotildees jaacute existentes deste espaccedilo pelo imaginaacuterio social possam

acomodar esta correspondecircncia como eacute o caso da maioria dos exemplos do cataacutelogo de

Foucault conquanto natildeo dependentes de tais especificaccedilotildees625

No espiacuterito de Foucault Warning sustenta assim que natildeo eacute o espaccedilo enquanto

tal que determina o seu estatuto de homotopia (isto eacute de lugar regular) ou de

heterotopia mas sim a atitude do autor ou do narrador relativamente a esse mesmo

espaccedilo No entanto o espaccedilo pode ter caracteriacutesticas que o distinguem de tal forma que

convidam o sujeito a uma interpretaccedilatildeo heterotoacutepica626 Por essas caracteriacutesticas do

espaccedilo Warning compreende certos estiacutemulos do imaginaacuterio que movem o sujeito da

622 Designadas de espaces ou lieux autres as heterotopias segundo Foucault tecircm origem na ideia deum espaccedilo fundamentalmente heterogeacuteneo ao qual tambeacutem devem o seu nome Os espaccedilos no espaccedilo satildeodemarcados do conjunto maior (tais como utilizando um dos exemplos de Foucault os lares de idosos)ou excluiacutedos dele Foucault menciona assim os hospitais psiquiaacutetricos ou as prisotildees como ilustraccedilatildeo detal conceito Independentemente de se tratar de exclusatildeo ou de marginalizaccedilatildeo os espaccedilos de oacuteciorequerem uma demarcaccedilatildeo a fim de os distinguir dos outros espaccedilos e por assim dizer de os protegerdestes pois o oacutecio eacute suscetiacutevel de perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da sua diferenccedilaTraduzido com a versatildeo gratuita do tradutor - wwwDeepLcomTranslator623 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p757624 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009625 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p21626 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p21

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concentraccedilatildeo na realidade para o modo da imaginaccedilatildeo Warning menciona alguns

exemplos que tambeacutem podem ser concebidos como situaccedilotildees de oacutecio

Tal pode ser a solidatildeo a beleza da natureza e a distacircncia da civilizaccedilatildeo para os quais um

sujeito danificado pela civilizaccedilatildeo se sente atraiacutedo Mas tambeacutem pode ser simplesmente

um banco protegido que convida a permanecer na azaacutefama da grande cidade ou mesmo

um barracatildeo de madeira que limita um potencial local de construccedilatildeo um terrain vague

[] As heterotopias literaacuterias constituem-se a partir de tais encontros entre os estiacutemulos

do imaginaacuterio com um sujeito que por eles pode ser influenciado627

Em uacuteltima anaacutelise a forccedila imaginativa do sujeito ndash eventualmente colocada

em movimento atraveacutes de estiacutemulos do espaccedilo ndash decide sobre a transformaccedilatildeo de uma

homotopia em heterotopia Natildeo eacute por acaso que Warning elucida e sustenta as suas teses

recorrendo a exemplos de textos literaacuterios que se afiguram culturalmente centrais para a

compreensatildeo moderna do oacutecio incluindo a quinta promenade de Les Recircveries du

promeneur solitaire de Rousseau No episoacutedio da Icircle Saint Pierre Rousseau introduz as

mais importantes caracteriacutesticas baacutesicas do idiacutelio sobretudo o foco espacial a beleza

da natureza a falta de sujet a sensaccedilatildeo de proteccedilatildeo e seguranccedila a ausecircncia de

conflitos O sujeito pode aqui assim sublinha Warning imergir-se em formas

simples de vida oacutecio para atividades criativas e de prazer em outras palavras um

mundo de fantasia euforicamente afinado como um todo628 No episoacutedio da Icircle Saint

Pierre Rousseau contrasta a heterotopia de oacutecio da ilha com a normalidade agitada da

metroacutepole de Paris Assim Warning conclui com a tese aqui apresentada sobre a

espacializaccedilatildeo e a destemporalizaccedilatildeo da perceccedilatildeo excecional A intensidade espacial

do silecircncio e da solidatildeo na quinta Recircverie de Rousseau corresponde a uma reduccedilatildeo da

intensidade temporal ao ponto da ilusatildeo de um stans nunc privado do tempo []629

Segundo Hermann Luumlbbe a possibilidade de experiecircncia de tal nunc stans ndash

experienciado por Rousseau na mencionada Recircverie como um eminente tempo de oacutecio ndash

encontra-se perniciosamente submetida nas nossas sociedades contemporacircneas a uma

atrofia do presente630 (Gegenwartsschrumpfung) tendo em conta que de acordo com

Luumlbbe a experiecircncia do tempo vivenciada na modernidade tardia se determina por uma

627 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p29628 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p43629 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p37630 Luumlbbe H Gegenwartsschrumpfung In Backhaus KHolger Bonus H (ed) Die Beschleunigungsfalle oder der Triumph der Schildkroumlte Stuttgart 1998 pp263-293

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crescentemente nociva estadia mais curta no presente631 Aqui encontramo-nos pois

no centro das discussotildees contemporacircneas sobre as tendecircncias de aceleraccedilatildeo na

modernidade tardia A este respeito voltemos a Hartmut Rosa

O pressuposto formulado por Luumlbbe de que as sociedades modernas no sentido desta

definiccedilatildeo experimentam um contiacutenuo encolhimento endoacutegeno isto eacute uma atrofia do

presente sistematicamente autogerado em resultado de uma crescente velocidade de

obsolescecircncia ou de uma incessante compressatildeo da inovaccedilatildeo socioculturais assume

agora uma importacircncia decisiva632

Estas satildeo razotildees essenciais para a configuraccedilatildeo de uma experiecircncia de

compressatildeo do tempo sob a qual se tenta processar culturalmente a acumulaccedilatildeo de

inovaccedilatildeo condensada temporalmente O resultado dessa relaccedilatildeo modificada com o

tempo poderaacute ser enunciado por exemplo atraveacutes de um aumento do nuacutemero de

episoacutedios de vida por unidade de tempo De acordo com Rosa a maacutexima cultural da

sociedade moderna tardia eacute a seguinte quantos mais e quanto mais intensos satildeo os

episoacutedios de experiecircncia que podem ser provados de modo a enriquecer a vida interior

em menos tempo mais interessante seraacute a vida dos sujeitos contemporacircneos Saborear e

desfrutar a vida relacionam-se pois com a possibilidade de ter tempo ou por outras

palavras com a possibilidade de se entregar temporariamente ao intemporal Saborear e

desfrutar de algo de modo acelerado resulta em verdade numa contradictio in adjecto

Neste contexto poder-se-ia igualmente referir a hiperatividade da cultura

contemporacircnea Byung Chul Han interpreta a cultura da aceleraccedilatildeo da seguinte forma

Eacute precisamente agrave vida nua radicalmente transitoacuteria que se reage com a hiperatividade

com a histeria do trabalho e da produccedilatildeordquo633

Tal como sublinha Rosa no contexto da modernidade tardia o encurtamento e a

compressatildeo dos episoacutedios da experiecircncia conduzem a uma fragmentaccedilatildeo das estruturas

do tempo bem como a uma alteraccedilatildeo significativa na experiecircncia do tempo e na

perceccedilatildeo do seu raacutepido fluxo634 As vaacuterias accedilotildees individuais afiguram-se diacutespares

profundamente acompanhadas pelo sentimento de cumprir um dever e satildeo

percecionados como realizaccedilotildees insatisfatoacuterias incompletas privadas de qualquer

631 Luumlbbe H Im Zug der Zeit Verkuumlrzter Aufenthalt in der Gegenwart Heidelberg 1994632 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt a M 2012 p192633 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p37634 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p203

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sentido de plenitude Tal explica-se agrave luz do facto de que a soma de tais accedilotildees e

episoacutedios natildeo resultar numa experiecircncia concebida como uma totalidade significativa

natildeo constituindo uma narrativa mas sim consistir na justaposiccedilatildeo de vivecircncias natildeo

mediadas fragmentadas natildeo promovendo uma experiecircncia efetiva e subjetivamente

satisfatoacuteria Na sua ausecircncia de contextualidade e de espacializaccedilatildeo as experiecircncias e

accedilotildees individuais natildeo adquirem a qualidade de memoacuterias enriquecidas com qualidades e

componentes sensuais A ldquoatrofia do presenterdquo (Gegenwartsschrumpfung) tal como

descrita por Luumlbbe e perspetivada segundo a consideraccedilatildeo das atuais tendecircncias de

aceleraccedilatildeo da modernidade tardia poderia ser contrariada por um ldquoaumento do

presenterdquo (Gegenwartsvergroumlszligerung) de acordo com o qual se possibilitaria que no

acircmbito de uma determinada experiecircncia de oacutecio o tempo presente fosse efetivamente

vivenciado como um nunc permanens A este respeito poder-se-ia evocar

Schopenhauer e a sua formulaccedilatildeo da primeira e mais importante regra da sua

Eudemonologia ldquoNatildeo deve ser tolo ter sempre a certeza de que se aprecia o presente

tanto quanto possiacutevel uma vez que a vida como um todo eacute apenas um pedaccedilo maior do

presenterdquo635

635 Schopenhauer A Die Kunst gluumlcklich zu sein Muumlnchen 2018 p11

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22 | Pierre Hadot sobre Goethe da vivecircncia do presente como exerciacutecio

espiritual

Natildeo cuida a alma de futuro nem passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte e fado

Goethe Faust II

Um dos mais belos livros dedicados agrave questatildeo do tempo de um ponto de vista

eminentemente eacutetico eacute Natildeo te esqueccedilas de viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios

Espirituais (2008) de Pierre Hadot O livro de Hadot cujo capiacutetulo I se debruccedila sobre a

questatildeo da vivecircncia plena do tempo presente a partir do pensamento de Goethe introduz

a temaacutetica filosoacutefico-eacutetica do ldquoexerciacutecio espiritualrdquo enquanto Bildung enquanto

formaccedilatildeo-de-si e em uacuteltima instacircncia enquanto praacutetica-de-si

A expressatildeo ldquoexerciacutecio espiritualrdquo que foi utilizada por um certo nuacutemero de historiadores

do pensamento como Louis Gernet e Jean-Pierre Vernant ou autores como Georges

Friedmann natildeo tem uma conotaccedilatildeo religiosa apesar do que pensam alguns criacuteticos A

expressatildeo estaacute relacionada com actos do intelecto ou da imaginaccedilatildeo ou mesmo da

vontade que se caracterizam pela sua finalidade graccedilas a eles o indiviacuteduo esforccedila-se por

transformar a sua maneira de ver o mundo com o objectivo de se transformar a si proacuteprio

Natildeo tem que ver com o informar-se mas com o formar-se636

Tal como nos elucida Hadot no prefaacutecio que apresenta o seu livro o tiacutetulo da

obra em questatildeo ndash Natildeo te esqueccedilas de viver ndash constitui a evocaccedilatildeo de uma maacutexima

goethiana assumindo-se como a luz orientadora do delineamento das teorizaccedilotildees

propostas pelo historiador da filosofia particularmente no que concerne agrave apreciaccedilatildeo do

exerciacutecio espiritual tatildeo caro a Goethe de concentraccedilatildeo absoluta no instante presente de

vivecircncia plena do momento presente num sentido eacutetico que convoca as mais eminentes

perspetivaccedilotildees relativas agrave temporalidade desenvolvidas no acircmbito do estoicismo e do

epicurismo A sugestatildeo de uma alianccedila entre as posiccedilotildees de Goethe e a praacutetica antiga

dos exerciacutecios espirituais como modos de formaccedilatildeo-de-si e de constituiccedilatildeo de um

636 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p11

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sentido de afinidade harmoniosa entre o indiviacuteduo e a totalidade do ser traduz com

efeito um dos eixos filosoacuteficos que orienta a referida obra de Hadot

ldquoNatildeo cuida a alma de futuro nem passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte

e fadordquo637 trata-se dos ceacutelebres versos de Fausto II que marcam o momento da uniatildeo

entre os dois amantes Fausto e Helena e aos quais Hadot vai conceder as suas melhores

atenccedilotildees Tais versos que traduzem a uniatildeo de dois tempos duas culturas duas

metafiacutesicas ndash Fausto o protoacutetipo do homem moderno e Helena a figura que evoca a

beleza antiga ndash constituiu-se como um diaacutelogo amoroso desdobrando-se nos seus

versos rimados (eacute o momento da aprendizagem por Helena e atraveacutes da matildeo de Fausto

a arte da rima) que ilustra o momento de intenso e pleno presente como que isento de

passado e de futuro no qual dois amantes desfrutam da presenccedila absoluta um do outro

sem nada mais desejar ou aspirar Tal como esclarece Hadot tais versos ecoam outros

tantos os da Elegia de Marienbad ldquoNatildeo te restou esperanccedila acircnsia desejo Era esta a

meta do mais iacutentimo anelordquo638 O desvanecimento do passado ou do futuro concertado

com a fruiccedilatildeo total da felicidade no instante presente anuncia-se como expressatildeo do

encontro entre dois amantes a que tambeacutem Fausto e Helena deram corpo representando

poeticamente a uniatildeo entre o moderno e o antigo num ponto temporal que eacute o da arte

Todavia tal como elucida Hadot os ceacutelebres versos que compotildee o diaacutelogo amoroso

entre Fausto e Helena poderatildeo ser lidos a partir de um outro niacutevel de interpretaccedilatildeo

trata-se com efeito da ilustraccedilatildeo do momento em que Fausto se depara com a sageza

antiga com a antiga arte de viver que reclama um outro sentido de temporalidade que

Fausto ateacute entatildeo desconhecia por completo ndash a dedicaccedilatildeo absoluta ao instante presente

Assim escreve Hadot

De facto para Goethe era precisamente essa a caracteriacutestica da vida e da arte antigas

saber viver no presente conhecer aquilo a que ele chamava como veremos a ldquosauacutede do

momentordquo Como afirma Siegfried Morenz ldquoEssa natureza particular da Greacutecia ningueacutem

a caracterizou melhor do que Goethe [hellip] no diaacutelogo entre Fausto e Helena quando o

alematildeo ensina agrave heroiacutena grega a arte da rima Entatildeo ldquoNatildeo cuida a alma de futuro nem de

passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte e fadordquo [hellip] Ao Fausto niilista que apostou

com Mefistoacutefeles que nunca diria ao instante ldquoSuspende-te tu que eacutes tatildeo belordquo a antiga e

nobre Helena depois da inocente Margarida revela o esplendor do ser isto eacute do instante

637 Goethe JW Fausto II Ato III vv9382-9384 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe ea Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p15638 Goethe JW Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p18

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presente e convida-o a dizer sim ao instante ao mundo e a ele proacuteprio639

Como compreender a expressatildeo goethiana ldquosauacutede do momentordquo Segundo

Hadot tal expressatildeo constitui-se como uma formulaccedilatildeo que Goethe desenvolvera num

acircmbito esteacutetico especialmente no contexto de uma reflexatildeo a propoacutesito das pinturas

murais de Herculano e de Pompeia e que conduzira o poeta ao delineamento de uma

perspetivaccedilatildeo de pendor eminentemente eacutetico o exerciacutecio espiritual de absoluta

concentraccedilatildeo no presente tatildeo caro aos homens antigos e do qual os modernos pouco ou

nada sabem pois estes afiguram-se perdidos de um sentido de temporalidade plena

dispersando-se entre a nostalgia do passado e acircnsia do futuro O escrito evocado por

Hadot eacute uma carta a Zelter datada de outubro de 1829 na qual Goethe desenvolve a sua

visatildeo acerca de duas noccedilotildees afins a de presente e a de presenccedila correspondentemente

atualidade temporal e proximidade especial ambas expressas atraveacutes da mesma palavra

Gegenwart Leiamos a passagem em questatildeo

A presenccedila tem realmente qualquer coisa de absurdo imaginamos que eacute assim vemos

sentimo-nos Confiamos nisso Mas natildeo temos consciecircncia do benefiacutecio que podemos tirar

desses instantes Queremos dizer o seguinte O ausente eacute uma pessoa ideal enquanto as

pessoas que estatildeo aiacute presentes aparecem aos olhos umas das outras como triviais Eacute de

facto muito estranho que devido agrave realidade da presenccedila o ideal desapareccedila quase por

completo Seraacute provavelmente por essa razatildeo que para os Modernos o ideal apenas se

manifesta como nostalgia640

A passagem afigura-se interessantemente pertinente quando lida do ponto de

vista da contraposiccedilatildeo entre Goethe e os romacircnticos seus contemporacircneos em verdade

de acordo com Goethe a postura filosoacutefica romacircntica de aspiraccedilatildeo incessante do ideal

constitui-se como uma postura a depreciar Recorde-se a este respeito a relevante

dicotomia apresentada por Schiller entre poesia ingeacutenua e poesia sentimental natildeo eacute em

verdade a poesia sentimental ndash a poesia moderna romacircntica ndash definida agrave luz do conceito

de ideal A impossibilidade romacircntica de afirmaccedilatildeo do instante pleno e da presenccedila

viva do ser a favor da postulaccedilatildeo de modos de nostalgia pelo passado ou de formas de

aspiraccedilatildeo de entidades ou determinaccedilotildees ideais natildeo passiacuteveis de cumprimento ou

realizaccedilatildeo efetivas assume-se como uma das caracteriacutesticas que revelam a falecircncia do

639 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p19640 Goethe JW Carta a Zelter de 19 de outubro de 1829 Goethes Briefe HA vol4 P346 ApudHadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p20

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homem moderno em dedicar-se de modo total ao instante presente A evasatildeo

romacircntica relativamente ao momento presente anuncia-se pois como alvo de rejeiccedilatildeo e

de condenaccedilatildeo por parte de Goethe trata-se neste sentido de censurar aos romacircnticos a

sua incapacidade de perspetivar o instante presente como prenhe de intensidade de

experiecircncia e de sentido e agrave luz do qual a existecircncia humana pode nas palavras de

Hadot ldquoreencontrar dignidade e nobrezardquo641 O sentido eacutetico da dedicaccedilatildeo total ao

momento presente ndash jaacute entrevisto e desenvolvido pelos homens da antiguidade ndash

constitui-se como o fundo das posiccedilotildees de Goethe a este respeito

Por conseguinte a adesatildeo ao instante presente e agrave presenccedila viva do ser afirma-

se pois como a postura eacutetica representativa da designaccedilatildeo goethiana ldquoa sauacutede do

momentordquo Tenhamos presente a seguinte passagem da jaacute mencionada carta a Zelter

desta feita a propoacutesito das pinturas de Herculano e de Pompeia

Aiacute se encontra o que haacute de mais maravilhoso na Antiguidade para quem pode ver ver

com os seus proacuteprios olhos a sauacutede do momento [die Gesundheit des Moments] e todo o

seu valor Porque essas pinturas desaparecidas devido a uma cataacutestrofe atroz continuam a

ter a mesma frescura depois de quase dois mil anos a ser tatildeo belas tatildeo agradaacuteveis como

no momento de felicidade e de bem-estar que precedeu o seu terriacutevel desaparecimento Se

nos interrogarmos sobre o que representam ficaremos talvez embaraccedilados com a resposta

Por ora direi o seguinte essas figuras transmitem esse sentir o instante deve estar prenhe

bastando-se a si proacuteprio para que possa vir a ser uma cesura digna no tempo e na

eternidade642

A reflexatildeo esteacutetica traccedilada por Goethe a respeito das pinturas de Herculano e de

Pompeia desenvolve-se sob uma tonalidade eminentemente eacutetica permitindo ao poeta o

contacto e o conhecimento com uma singular sageza que afirma a adesatildeo incondicional

ao instante prenhe de sentido ndash aquilo a que os gregos chamavam o kairoacutes ndash e a

correlativa comunhatildeo do indiviacuteduo com a presenccedila viva dos seres e das coisas

Importaria a este respeito chamar a atenccedilatildeo para o caraacutecter problemaacutetico ou

inclusivamente controverso da idealizaccedilatildeo do homem antigo que subjaz agraves visotildees de

Goethe ndash assim como como bem sabemos das posturas eacuteticas e esteacuteticas das geraccedilotildees

culturais dos seacuteculos XVIII e XIX (pense-se em Schiller ou em Houmllderlin por

exemplo) Tal idealizaccedilatildeo Greacutecia e do espiacuterito grego assume-se pois como resultado

641 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p22642 Goethe JW Carta a Zelter de 19 de outubro de 1829 Goethes Briefe HA vol4 Pp346-347Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p22

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das influentes teorizaccedilotildees esteacuteticas de Winckelmann especialmente no que concerne agrave

perspetivaccedilatildeo da escultura claacutessica grega enquanto modo mais elevado de realizaccedilatildeo

artiacutestica humana Interessantemente de acordo com o estudioso francecircs Roger Ayrault

autor do estudo La Geacutenese du romantisme allemand (1961-1976) a leitura intensa de

Winckelmann pelas geraccedilotildees posteriores contribuiacutera para a irrupccedilatildeo de uma ldquocrise

esteacuteticardquo no contexto cultural germacircnico agrave luz da qual se poderaacute compreender a origem

do sentimento de melancolia romacircntica associado agrave consciecircncia de impossibilidade de

realizaccedilatildeo de objetos artiacutesticos que se encontrariam em plena comunhatildeo com a arte da

antiguidade a mais elevada que a humanidade alguma vez produzira tal como

Winckelmann afirmara

Natildeo obstante o caraacutecter problemaacutetico ou controverso da idealizaccedilatildeo do espiacuterito

grego num acircmbito germacircnico ndash viveriam de facto os antigos gregos segundo a ldquosauacutede

do momentordquo tal como crera Goethe ndash cumpriria assim sustenta Hadot atentar com

devido rigor sobre a vontade filosoacutefica tal como mantida pelos gregos de ldquoencontrar a

paz da alma atraveacutes da transformaccedilatildeo de si e do modo de olhar o mundordquo643 Natildeo se

trata pois de postular de modo decisivo a existecircncia de uma serenidade inata como

que inconsciente por parte do homem grego e que estaria na origem do seu modo de

saber viver aderindo incondicionalmente ao instante presente Talvez tal serenidade se

afigurasse como uma serenidade conquistada ndash e tal esforccedilo da vontade desenvolvida

pelo homem grego natildeo deveraacute constituir objeto de suspeiccedilatildeo teoacuterica

Tal vontade filosoacutefica esclarece Hadot poderaacute em verdade ser vislumbrada jaacute

no periacuteodo arcaico Quando um dos Sete Saacutebios Piacutetaco escreve que a melhor coisa eacute

ldquofazer bem o presenterdquo644 ou seja concentrar-se na accedilatildeo presente sem se deixar

perturbar pelas preocupaccedilotildees em relaccedilatildeo ao futuro e pelas anguacutestias experienciadas no

passado tal constitui um conselho que se postula como uma norma eacutetica Do mesmo

modo no seacuteculo V no contexto do movimento sofista tambeacutem Antifonte censura os

seus contemporacircneos por natildeo praticarem um modo de existecircncia centrado no presente

permitindo que o tempo se desvaneccedila sem ter sido efetivamente vivido

Haacute pessoas que natildeo vivem a vida presente eacute como se estivessem a preparar-se

concentrando toda a sua energia para viver uma outra vida que natildeo esta e enquanto fazem

643 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p31644 Laeacutercio D Vies et doctrines des philosophes illustres I 17 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas deViver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p31

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isso o tempo passa e esvai-se645

Segundo Hadot as posiccedilotildees epicurista e estoica natildeo obstante as suas profundas

diferenccedilas em diversas mateacuterias integram conceccedilotildees anaacutelogas acerca da experiecircncia ndash

eacutetica ndash de vivenciar o tempo presente A alianccedila entre eacutetica e temporalidade presente

anuncia-se com efeito como uma das caracteriacutesticas filosoacuteficas que aproximam

epicurismo e estoicismo Neste sentido ambas as correntes filosoacuteficas convergem na

afirmaccedilatildeo da superioridade da postura saacutebia de dedicaccedilatildeo plena ao momento presente

ausente de dispersatildeo no passado ou no futuro a definiccedilatildeo de felicidade agrave luz de uma

conceccedilatildeo de adesatildeo incondicional do saacutebio ao instante presente ndash e que a felicidade que

o instante presente proporciona eacute uma felicidade equivalente agrave felicidade eterna

podendo ser alcanccedilada e experienciada no imediato no aqui e agora ndash determina-se

como uma das traves-mestras do epicurismo e do estoicismo Poder-se-ia com justeza

sustentar que o exerciacutecio espiritual ndash recorrendo ao termo de Hadot ndash de dedicaccedilatildeo

absoluta ao momento presente tal como verificado no epicurismo e no estoicismo

implica o delineamento de uma singular postura filosoacutefica acerca da (ou perante a)

temporalidade que se encontra por sua vez na origem da postulaccedilatildeo eacutetica O

desenvolvimento de um ldquosaber que ensina a tranquilidaderdquo que propotildee a anulaccedilatildeo da

inquietaccedilatildeo constitui-se como a possibilidade de cumprir uma ldquotransformaccedilatildeo total da

vidardquo ndash e no acircmbito do qual um dos elementos mais relevantes ldquoeacute a mudanccedila de atitude

em relaccedilatildeo ao tempordquo646

A transformaccedilatildeo radical da atitude humana relativamente ao tempo ou agrave

temporalidade anuncia-se assim como condiccedilatildeo de possibilidade de alcance da

felicidade pelo saacutebio segundo o epicurismo A concentraccedilatildeo no momento presente do

qual se pode retirar toda a felicidade que eacute possiacutevel ao homem isenta de imersatildeo na

anguacutestia no medo ou na ansiedade decorrentes da perturbaccedilatildeo dos tempos passados ou

dos tempos futuros apresenta-se como uma norma do saber-viver O prazer mais

intenso ou a felicidade mais desejaacutevel definem-se agrave luz da ausecircncia de temores de

inquietaccedilotildees e de incertezas condiccedilatildeo indispensaacutevel do alcance da paz da alma

Inscrever os desejos humanos num horizonte de expetativas futuras anuncia-se como

causa de sofrimento tal como explicita Hadot no acircmbito do epicurismo importa

645 Les Preacutesocratiques Ed P Dumont Paris 1988 P1112 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de ViverGoethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p31646 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p33

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determinar quais os ldquodesejos naturais e necessaacuteriosrdquo concebidos como desejos

essenciais para a preservaccedilatildeo da existecircncia ndash estes desejos assim entendidos ldquopodem

ser facilmente satisfeitos sem nos entregarmos agrave incerteza e agrave inquietaccedilatildeo de um longa

demandardquo647 Continuemos a ler Hadot a tal respeito

ldquoDecircmos graccedilas agrave bem-aventurada Naturezardquo diz uma maacutexima epicurista ldquoque fez como

que seja faacutecil chegar agraves coisas necessaacuterias e que as coisas difiacuteceis de atingir natildeo sejam

necessaacuteriasrdquo Tudo o que faz parte da doenccedila da alma ndash paixatildeo humana desejo de riqueza

de poder ou de depravaccedilatildeo ndash eacute que obriga a pensar no passado e no futuro Mas o prazer

mais puro talvez o mais intenso pode ser atingido facilmente no presente Natildeo eacute apenas

da quantidade de desejos satisfeitos que o prazer natildeo depende ele sobretudo natildeo depende

da duraccedilatildeo Natildeo eacute necessaacuterio ser longo para ser absolutamente perfeito ldquoUm tempo

infinito natildeo nos faz experimentar um prazer maior do que aquele que experimentamos

num tempo que vemos como limitadordquo648

A felicidade epicurista ndash ou a sabedoria epicurista ndash apresenta-se traccedilada

segundo a recusa da construccedilatildeo de uma expetativa delineada sob a noccedilatildeo de futuro o

apercebimento da vacuidade dos desejos situados no futuro e a dedicaccedilatildeo ao instante

enquanto uacutenico (e autecircntico) momento capaz de despertar a felicidade e a alegria

afiguram-se como postulados eacuteticos que traduzem de modo concreto a alianccedila entre

sabedoria e fina perspetivaccedilatildeo acerca do tempo A este respeito a maacutexima de Horaacutecio

natildeo poderia ser mais ilustrativa ldquoQue a alma feliz com o presente odeie preocupar-se

com o futurordquo649

No acircmbito do estoicismo e convocando o pensamento de Marco Aureacutelio ndash a que

Hadot dedicou a obra La citadelle inteacuterieure Introduction aux Penseacutees de Marc Auregravele

(1992) ndash importaria no mesmo tom compreender a possibilidade de realizaccedilatildeo do

exerciacutecio espiritual de concentraccedilatildeo no momento presente o momento que nos basta e

o presente basta-nos num duplo sentido com ele podemos ocupar-nos por completo

natildeo necessitando de pensar em outra coisa e aleacutem disso ele concede-nos a felicidade

plena natildeo sendo necessaacuterio dele sairmos em busca de qualquer outra realidade ou

situaccedilatildeo que resultariam invariavelmente vatildes Segundo Marco Aureacutelio o presente eacute

tudo aquilo quanto basta agrave nossa felicidade ndash e esta somente poderaacute ser alcanccedilada na

647 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p34648 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p34649 Horaacutecio Odes Livro II XVI v25 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p35

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medida em que sabemos reconhecer e distinguir aquilo que depende de noacutes daquilo que

natildeo depende de noacutes A este respeito assim escreve Hadot

O passado jaacute natildeo depende de noacutes porque estaacute definitivamente arrumado o futuro natildeo

depende de noacutes porque ainda natildeo existe Soacute o presente depende de noacutes Portanto eacute a uacutenica

coisa que pode ser boa ou maacute uma vez que eacute a uacutenica que depende da nossa vontade O

passado e o futuro porque natildeo dependem de noacutes porque natildeo satildeo da ordem do mal ou do

bem moral devem portanto ser-nos indiferentes Eacute inuacutetil preocuparmo-nos com o que jaacute

natildeo existe ou com o que talvez nunca venha a existir650

No seguimento de tais observaccedilotildees Hadot cita Marco Aureacutelio e Seacuteneca

Se expulsas de ti mesmo quero dizer do teu pensamento [hellip[ tudo o que por tua vez

fizeste ou disseste tudo o que com apreensotildees de futuro te atormenta [hellip] se expulsas

[hellip] aquilo que estaacute por vir bem como o que jaacute laacute vai [hellip] se te aplicas a viver somente o

momento que passa quero dizer o presente poderaacutes passar o tempo que te for dado ateacute agrave

morte com calma benevolecircncia e reconhecimento ao teu bom geacutenio651

Haacute portanto dois sentimentos que devemos eliminar decididamente o medo do futuro e a

recordaccedilatildeo da desgraccedila jaacute passada esta jaacute natildeo me diz respeito aquele ainda natildeo me diz

respeito652

O saacutebio goza o presente sem depender do futuro liberto das pesadas inquietaccedilotildees que

atormentam a alma ele natildeo espera nada natildeo deseja nada e natildeo se lanccedila no incerto porque

se contenta com o que tem [isto eacute o presente a uacutenica coisa que nos pertence] E natildeo se

pense que se contenta com pouco porque aquilo que ele tem [o presente] eacute todas as

coisas653

Segundo Hadot a analogia mais fulgurante entre o epicurismo e o estoicismo

poderaacute ser compreendida agrave luz da proposta do exerciacutecio espiritual de transformaccedilatildeo

radical da apreciaccedilatildeo humana do tempo concretizada de acordo com o postulado de

absoluta concentraccedilatildeo no instante presente doador de toda a felicidade possiacutevel O

saber relativo ao momento presente como realidade prenhe de sentido e o

reconhecimento acerca da vacuidade ou da futilidade das anguacutestias introduzidas por

tempos estranhos ndash o passado ou o futuro fontes de toda a perturbaccedilatildeo da alma ndash

650 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p38651 Marco Aureacutelio Pensamentos Livro XII 3 3-4 p144 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de ViverGoethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 pp38-39652 Seacuteneca Cartas a Luciacutelio Carta 78 sect14 p333 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe ea Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p39653 Seacuteneca Des Bienfaits VIII 2 4-5 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p39

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traduzem um elemento de afinidade essencial entre ambas as correntes filosoacuteficas A

tais observaccedilotildees cumpriria ainda acrescentar a conceccedilatildeo estoica acerca da adesatildeo

incondicional ao tempo presente ndash concebido como exerciacutecio espiritual por Hadot ndash com

a possibilidade de plena uniatildeo com a totalidade do ser A adesatildeo ao instante constitui-se

neste sentido como possibilidade de integraccedilatildeo no movimento ou no devir do ser ou do

mundo ou segundo os termos especificamente estoicos da Razatildeo universal A

dimensatildeo miacutestica de tal praacutetica natildeo deve ser descurada o assentimento agrave ou com a

totalidade do ser a fusatildeo ou a uniatildeo decorrentes de um sentimento de iacutentima

identificaccedilatildeo com o mundo e o seu devir traduzem a praacutetica eacutetica do saacutebio ndash para quem

o instante presente oferece contendo a totalidade do ser Sobre tais conceccedilotildees Hadot

esclarece recorrendo a Marco Aureacutelio e a Seacuteneca uma vez mais

O instante presente eacute fugidio minuacutesculo ndash Marco Aureacutelio insiste bastante neste ponto ndash

mas nesse vislumbre como diz Seacuteneca podemos exclamar em uniacutessono com Deus Tudo

me pertencerdquo [hellip] Para compreender isto eacute preciso lembrar o que representa para o

estoico a acccedilatildeo moral a virtude ou a sabedoria O bem moral uacutenico bem para o estoico

tem uma dimensatildeo coacutesmica eacute a concordacircncia da razatildeo que estaacute em noacutes com a Razatildeo que

preside ao cosmos que produz o encadeamento do destino A cada momento eacute o nosso

juiacutezo a nossa acccedilatildeo os nossos desejos que devem entrar em concordacircncia com a Razatildeo

universal Principalmente eacute necessaacuterio acolher com alegria a conjunccedilatildeo de acontecimentos

que resulta do curso da Natureza Eacute portanto necessaacuterio a cada instante ressituarmo-nos

na perspectiva da Razatildeo universal de modo que a cada instante se o homem viver de

acordo com a Razatildeo universal a sua consciecircncia espraia-se na infinitude do cosmos o

cosmos aparece-lhe na sua totalidade Isto eacute possiacutevel porque para os estoicos haacute uma

fusatildeo total uma implicaccedilatildeo reciacuteproca de todas as coisas em todas as coisas Criacutesipo falava

da gota de vinho que se funde com a totalidade do mar e se estende a todo o mundo654

Voltemos a Goethe Em verdade a determinaccedilatildeo da influecircncia direta do

epicurismo ou no estoicismo no pensamento ou na obra goethianos constitui tarefa

irrelevante As teses principais de tais correntes filosoacuteficas perpassaram a tradiccedilatildeo

cultural e literaacuteria europeia desde Montaigne ateacute Rosseau e agraves suas Les Recircveries du

promeneur solitaire ndash recorde-se a este respeito na quinta promenade a seguinte frase

ldquoEacute necessaacuterio que o coraccedilatildeo esteja em paz e que nenhuma paixatildeo venha perturbar a sua

calmardquo655 Curiosamente e tal como aponta Hadot importaria ter presente um poema de

654Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 pp 40-41655 Rousseau JJ Os Devaneios do Caminhante Solitaacuterio Lisboa 1989 p77 Apud Hadot P Natildeo TeEsqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa2019 p44

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Andreas Gryphius muito ceacutelebre num acircmbito germacircnico e que parece incorporar de

modo mais ou menos declarado o conselho eacutetico de dedicaccedilatildeo ao presente como praacutetica

de uma vida boa

Natildeo satildeo meus os anos que o tempo me levou

Nem meus satildeo ainda os anos que o futuro reservou

Soacute o instante eacute meu se lhe der atenccedilatildeo

Meu eacute tambeacutem o que anos e eternidades satildeo656

Tal como considera W Schadewaldt657 no acircmbito do pensamento goethiano a

noccedilatildeo de Gegenwart integra o sentido de ldquopresenccedilardquo no sentido de apariccedilatildeo de

manifestaccedilatildeo viva ndash trata-se com efeito de uma noccedilatildeo afim de Dasein ldquoestar-aiacuterdquo por

conseguinte somente existe presenccedila manifestaccedilatildeo viva ldquoestar aiacuterdquo no instante presente

ndash ou para usar o termo de Goethe Augenblick ldquopiscar de olhosrdquo tatildeo repentino quatildeo

efeacutemero e natildeo obstante prenhe de significado denso de sentido suscetiacutevel de irrupccedilatildeo

na consciecircncia de quem o vivencia de um sentimento de uniatildeo ou de fusatildeo com o devir

do mundo Evoquemos novamente a Elegia de Marienbad ldquoOlha o instante

[Augenblick] de frente [nos olhos] Augenrdquo658 A disposiccedilatildeo do indiviacuteduo para entregar-

se ao instante presente apreciando-o na sua densidade de sentido e na sua intensidade

temporal como que concentrando e fundindo na sua efemeridade passado e presente

apresenta-se para Goethe como um saber viver ndash e um exerciacutecio espiritual ndash proacuteprio do

homem grego Trata-se recorrendo agrave expressatildeo do poeta da ldquosauacutede do momentordquo

conquanto esta visatildeo relativa agrave mundividecircncia grega possa ser discutiacutevel devido agrave sua

eventual ausecircncia de rigor histoacuterico importaria no entanto tomar a posiccedilatildeo goethiana

como uma avaliaccedilatildeo acerca da impossibilidade de desenvolver tal exerciacutecio espiritual de

absoluta dedicaccedilatildeo ao instante presente por parte dos homens modernos Tal como

salienta Hadot Egmont parece constituir um temperamento excecional pela sua alegria

de viver ldquoHei-de deixar de saborear o momento presente para poder estar certo do

momento que estaacute para vir E voltar a consumir o momento seguinte em temores e

656 Gryphius A Gedichte Eine Auswahl Org Adalbert Elschenbroich Estugarda 1968 Apud HadotP Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria EtelvinaSantos Lisboa 2019 p43657 Schadewalt W Goethestudien p476 n103 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e aTradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p45658 Goethe JW Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p45

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preocupaccedilotildeesrdquo659 Curiosamente e no mesmo sentido eacute o proacuteprio Goethe quem numa

conversa com o chanceler Von Muumlller afirma em tom de lamento ldquoPorque os homens

natildeo foram capazes de reconhecer o valor do presente e de lhe dar vida suspiraram por

um futuro melhor e interpretaram o pensamento sobre o passado com uma apaixonada

nostalgiardquo660 De modo igualmente ilustrativo importaria ainda ter presente as

palavras de Goethe numa das conversas com Eckermann ldquoAgarra-te com firmeza ao

presente Qualquer circunstacircncia qualquer instante tem um valor infinito pois eacute ele o

representante de toda a eternidaderdquo661 E no acircmbito de um poema intitulado

Lebensregel poder-se-ia ler uma vez mais a convocaccedilatildeo de tais posiccedilotildees proacuteprias da

sabedoria antiga acerca da concentraccedilatildeo plena no instante presente

Se na vida quiseres passar um bom bocado

Natildeo tens de te preocupar com o passado

Aborrece-te o menos que puderes

Aproveita o presente o melhor que souberes

Ignora o oacutedio a outros e aos teus

E deixa o futuro nas matildeos de Deus662

Por fim e tal como interessantemente elucida Hadot cada instante anuncia-se

para Goethe como ldquosiacutembolordquo do ser se aceitarmos a definiccedilatildeo de siacutembolo como ldquoa

relaccedilatildeo viva e instantacircnea do insondaacutevelrdquo663 tal como formulada pelo proacuteprio poeta Em

que consiste o insondaacutevel segundo Goethe De acordo com os esclarecimentos de

Hadot o insondaacutevel representa ldquoo misteacuterio indiziacutevel que estaacute no seio da Natureza e de

toda a realidaderdquo664 o instante presente e a dedicaccedilatildeo a ele permitem a anunciaccedilatildeo e a

659 Goethe JW Egmont Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dosExerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p52660 Goethe JW Entretiens avec le chancelier F de Muumlller de 7 de setembro de 1827 Apud GoetheElegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos ExerciacuteciosEspirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p52661 Conversations de Goethe avec Eckermann de 3 novembro de 1823 Apud Goethe Elegia deMarienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios EspirituaisTrad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p53662 Goethes JW Lebensregel Apud Goethe Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilasde Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019p52663 Goethe JW Maacuteximas e Reflexotildees Apud Goethe Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo TeEsqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa2019 p57664 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p57

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abertura ao misteacuterio do ser que se apresenta pois natildeo obstante a efemeridade do

momento na sua eterna presenccedila A concentraccedilatildeo absoluta no instante presente afigura-

se neste sentido como possibilidade de absoluta imersatildeo no devir do ser acompanhada

de sentimentos de participaccedilatildeo coacutesmica e de totalidade ontoloacutegica O exerciacutecio

espiritual de dedicaccedilatildeo plena ao instante presente eacute a sua propedecircutica ndash assim os

antigos nos ensinaram

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23 | Rousseau e a autonarrativa

Oacutecio e ociosidade As pessoas jaacute se comeccedilam a envergonhar do descanso as longasreflexotildees quase fazem remorsos Pensa-se com o reloacutegio na matildeo enquanto se almoccedila o olhono jornal da Bolsa vive-se como algueacutem que continuamente ldquopudesse perderrdquo algo ldquoMelhorfazer qualquer coisa do que nadardquo ndash esta maacutexima eacute tambeacutem uma corda para estrangulartoda a cultura e todo o gosto mais elevado E do mesmo modo que a expressatildeo individual seafunda visivelmente nesta pressa dos trabalhadores assim acontece tambeacutem com o sentidoda expressatildeo individual com os olhos e os ouvidos para a melodia dos movimentos A provaestaacute na rude clareza que se exige agora por todo o lado presente em todas as situaccedilotildees emque os seres humanos queiram alguma vez ser honestos uns com os outros no conviacutevio comamigos mulheres parentes crianccedilas professores alunos chefes e priacutencipes ndash jaacute natildeo haacutetempo nem forccedilas para cerimoacutenias para a cortesia com rodeios para todo o esprit naconversaccedilatildeo e sequer para algum otium Pois a vida agrave caccedila dos ganhos materiais obrigacontinuamente a despender o espiacuterito ateacute agrave exaustatildeo fingindo sempre defraudando ouantecipando-se aos outros a virtude propriamente dita eacute agora fazer qualquer coisa emmenos tempo do que qualquer outro E assim eacute raro haver horas de honestidade permitidanestas poreacutem estaacute-se cansado e uma pessoa gostaria natildeo soacute de se ldquodeixar ficarrdquo como ateacutede se estender rudemente ao comprimento e agrave largura De acordo com esta tendecircnciaescrevem as pessoas agora as suas cartas e o estilo e o espiacuterito das cartas seraacute sempre overdadeiro ldquosinal dos temposrdquo Se ainda houver algum prazer na sociedade e nas artes seraacuteo que conseguem os escravos exaustos do trabalho Oh como a nossa gente culta e incultagoza tatildeo pouco a ldquoalegriardquo E como cresce a suspeita em relaccedilatildeo a toda a alegria Otrabalho ganha cada vez mais a boa consciecircncia para o seu lado o pendor para a alegriachama-se jaacute ldquonecessidade de descansordquo e comeccedila a envergonhar-se de si proacuteprio ldquoDevemosisto agrave nossa sauacutederdquo assim falam quando satildeo apanhados num passeio ao campo Simpoderiacuteamos em breve chegar ao ponto de natildeo nos entregarmos a um pendor para a vitacontemplativa (isto eacute a dar passeios com ideias e amigos) sem autodesprezo e maacuteconsciecircncia

Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia

A narraccedilatildeo constitui uma das teacutecnicas crucias da autoestruturaccedilatildeo e da

autoconstituiccedilatildeo humanas atraveacutes da narraccedilatildeo o ser humano permite-se dar sentido agrave

sua vida construindo segundo as palavras de Ricœur uma identiteacute narrative para si

proacuteprio665 Tal como Ricœur propotildee no seu ensaio Lrsquoidentiteacute narrative (1988) ndash um

escrito que recupera e desenvolve tal conceito que lhe daacute tiacutetulo previamente formulado

em Temps et reacutecit III ndash a funccedilatildeo narrativa (fonction narrative) determina-se como um

modo de acesso mediaccedilatildeo e configuraccedilatildeo da identidade de um ser humano Se de

acordo com o filoacutesofo o conhecimento-de-si se constitui inexoravelmente como

interpretaccedilatildeo ndash porventura como escrita-de-si e como leitura-de-si ndash natildeo seraacute

supeacuterfluo perspetivar as possibilidades de determinaccedilatildeo de uma identidade atraveacutes da

fusatildeo entre histoacuteria (ou conjunto de factos) e ficccedilatildeo tendo presente que a identidade

poderaacute determinar-se agrave luz das narrativas que ela mesma desenvolve para si proacutepria

sobre si proacutepria Neste sentido segundo Ricœur a ficccedilatildeo e a funccedilatildeo narrativa

665 Ricœur P Lrsquoidentiteacute narrative In Esprit 12 (1988) pp 295-304

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determina-se como uma mediaccedilatildeo privilegiada da escrita da identidade de um ser

humano no mesmo tom o filoacutesofo atenta sobre um certo caraacutecter epistemoloacutegico da

autobiografia (a narraccedilatildeo-de-si) concebido como geacutenero literaacuterio passiacutevel de tal

mediaccedilatildeo privilegiada que compotildee o conhecimento-de-si Trata-se pois de perspetivar

o ser humano nunca considerado enquanto um sujeito que se determina como uma

entidade puramente formal como um escritor-de-si como um leitor-de-si cuja

identidade integra as possibilidades da ficccedilatildeo e da narraccedilatildeo enquanto modos de

autoestruturaratildeo e autoconstituiccedilatildeo

Atente-se que do ponto de vista dos estudos literaacuterios e de acordo com Martin

Kreiswirth a intensificaccedilatildeo da emergecircncia da narraccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas conhecera a

formulaccedilatildeo de uma expressatildeo conceptual profundamente ilustrativa narrativist turn666

Com efeito importaria chamar a atenccedilatildeo sobre o facto de numerosas obras filosoacuteficas

fornecerem um espectro consideraacutevel de distinccedilotildees ou variaccedilotildees conceptuais relativas agrave

temaacutetica da narraccedilatildeo o que torna o fenoacutemeno de contar histoacuterias narrativamente cada

vez mais tangiacutevel relevante presente Talvez o ponto basilar de todas estas

consideraccedilotildees consista em desenvolver as narrativas em contraposiccedilatildeo agraves regras e

princiacutepios gerais e abstratos normalmente usados na ciecircncia para compreender os

fenoacutemenos667 Quem tenta explicar uma situaccedilatildeo por meio de algumas regras gerais

dedica a sua atenccedilatildeo a somente uma parte das informaccedilotildees abstratas disponiacuteveis Em

contraste ao transmitir um facto atraveacutes de uma narrativa o foco natildeo estaacute na

abstraccedilatildeo e na reduccedilatildeo mas no detalhe concreto De acordo com os representantes das

abordagens narrativas tal riqueza de informaccedilatildeo e tal densidade de pormenorizaccedilatildeo

traduzem o caraacutecter eminente da narraccedilatildeo Aleacutem disso o gesto de contar narrativas

permite igualmente a formulaccedilatildeo de modos de possibilidade de expressar algo sobre

quem somos ndash para noacutes mesmos e para os outros ndash e que exigecircncias e expectativas

podem ser colocadas sobre noacutes Estas satildeo as abordagens que podem ser descritas como

autoconceito narrativo O ponto de partida da teoria da identidade narrativa em

666 Consultar Kreiswirth M Trusting the Tale The Narrativist Turn in the Human Science In NewLiterary History 23 (1992) 629-657 Nash C (ed) Narrative in Culture The Use of Storytelling in theSciences Philosophy and Literature LondonNew York 1990 Hinchman LHinchman S (ed)Memory Identity Community The Idea of Narrative in the Human Sciences Albany 1997 Haker HbdquoNarrative und moralische Identitaumltldquo In Mieth D (ed) Erzaumlhlen und Moral Narrativitaumlt imSpannungsfeld von Ethik und Aumlsthetik Tuumlbingen 2000 pp37-65 Kraus W bdquoDas narrative Selbst unddie Virulenz des Nicht-Erzaumlhltenldquo In Joisten K (ed) Narrative Ethik Das Gute and das Boumlse erzaumlhlenMuumlnchen 2007 pp25-43667 Arras J D Narrative Ethics In Routledge Encyclopedia LondonNew York 1998 pp 1201-1205

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Ricoeur eacute a ideia de que a identidade dos seres humanos natildeo pode ser explicada apenas

pela identidade numeacuterica a categoria da mesmidade (a identidade como mesmidade)

constitui pois uma determinaccedilatildeo natildeo particularmente relevante aos olhos do filoacutesofo

que propotildee por sua vez uma elaboraccedilatildeo de pendor profundamente eacutetico relativo agrave

categoria da ipseidade (a identidade como si-mesmo) a categoria que elege como modo

de perspetivaccedilatildeo da identidade narrativa Ricoeur critica o facto de a discussatildeo analiacutetica

se centrar predominantemente nas caracteriacutesticas mentais e fiacutesicas como criteacuterios

definidores de identidade dos seres humanos ndash em verdade o filoacutesofo francecircs procura

recusar a corrente analiacutetica elaborada por Derek Parfit que sustenta a intencional

limitaccedilatildeo do conceito de identidade pessoal de tal modo que em uacuteltima o mencionado

conceito de identidade pessoal se reduza a uma vazio e a impessoalidade se afirme

como noccedilatildeo privilegiada Ora para Ricoeur pelo contraacuterio eacute justamente a experiecircncia

individual e pessoal ordenada narrativamente que forma a base da identidade de

algueacutem

Todavia segundo Byun-Chul Han desenvolver e organizar narrativamente a

experiecircncia pessoal no contexto da modernidade tardia constitui uma tarefa difiacutecil

periclitante A perspetivaccedilatildeo de uma ldquocrise temporalrdquo inserta no contexto da

modernidade tardia constitui um dos elementos centrais da argumentaccedilatildeo do filoacutesofo a

este propoacutesito ndash uma ldquocrise temporalrdquo caracterizada tanto por uma forte aceleraccedilatildeo

quanto por uma paralisaccedilatildeo e sobretudo avaliada na sua ausecircncia de uma estrutura de

um ritmo668 Tal situaccedilatildeo assim considerada conduz a uma de-temporalizaccedilatildeo

(Entzeitlichung)

A des-temporalizaccedilatildeo (Entzeitlichung) generalizada implica o desaparecimento dos cortes

temporais e das conclusotildees dos limiares e das transiccedilotildees que satildeo constitutivos do sentido

A falta de uma articulaccedilatildeo forte do tempo daacute lugar agrave sensaccedilatildeo de que este corre mais

rapidamente do que antes Esta sensaccedilatildeo intensifica-se porque os acontecimentos

desprendem-se com crescente celeridade uns dos outros sem deixarem marca profunda

sem chegarem a tornar-se uma experiecircncia A falta da gravitaccedilatildeo faz com que todas as

coisas soacute superficialmente se aflorem Nada importa Nada eacute decisivo Nada eacute definitivo

Natildeo haacute qualquer corte Quando deixa de ser possiacutevel determinar o que tem importacircncia

tudo perde importacircncia O excesso de possibilidades de conexatildeo equivalentes ndash quer dizer

de direccedilotildees potenciais ndash poucas vezes conduz a uma conclusatildeo O concluir pressupotildee um

tempo articulado669

668 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p38669 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p38

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E mais adiante

A destemporalizaccedilatildeo natildeo permite lugar a qualquer progresso narrativo O narrador

demora-se nos acontecimentos mais pequenos e insignificantes porque natildeo sabe distinguir

o que eacute do que natildeo eacute importante A narrativa implica diferenccedilas e escolhashellipA falta da

trajetoacuteria narrativa que funciona de maneira seletiva faz com que o narrador natildeo possa

escolher o que eacute significativo hellip A destemporalizaccedilatildeo faz com que toda a tensatildeo narrativa

desapareccedila O tempo narrado decompotildee-se numa cronologia vazia de acontecimentos

Deveriacuteamos falar de uma enumeraccedilatildeo mais do que uma narrativa Os acontecimentos natildeo

se imprimem numa imagem coerente Esta incapacidade de siacutentese narrativa e tambeacutem

temporal gera uma crise de identidade O narrador jaacute natildeo eacute capaz de reunir os

acontecimentos em seu redor670

A narratividade no entanto natildeo soacute estrutura as experiecircncias que satildeo feitas na

vida mas tambeacutem na sua forma literaacuteria forma a base sobre a qual podemos aprender

algo sobre a identidade de algueacutem Tenha-se presente que atraveacutes do recurso agrave

autobiografia a histoacuteria cultural europeia pocircde produzir um tipo de escrita

profundamente orientada para a construccedilatildeo de identidades narrativas permitindo o

desenvolvimento de processos de autoconstituiccedilatildeo de um determinado sujeito que se

escreve a si mesmo e que se afigura transparente ao seu leitor ou perante o seu leitor

Importaria assinalar a este respeito que a emergecircncia das narrativas autobiograacuteficas

tem lugar num momento cultural em que o conceito moderno de sujeito se encontra a

tomar forma e configuraccedilatildeo proacuteprias ndash um momento cultural em que a autoconstituiccedilatildeo

se determina para uma funccedilatildeo de oacutecio nomeadamente no final do seacuteculo XVIII671 Com

efeito a configuraccedilatildeo de uma ideia de individualidade humana entrecruza-se com a

possibilidade de emergecircncia da narrativa literaacuteria No entanto se a narrativa

autobiograacutefica eacute uma forma de autoconstituiccedilatildeo e se a ideia de autoconstituiccedilatildeo estaacute

conceptualmente ligada ao oacutecio entatildeo eacute razoaacutevel assumir que nas autobiografias

modernas as situaccedilotildees de oacutecio satildeo frequentemente encenadas

Tomemos um exemplo profundamente ilustrativo Les recircveries du promeneur

solitaire de Jean-Jacques Rousseau Este escrito tardio de Rousseau uma das obras

autobiograacuteficas mais influentes do final do seacuteculo XVIII revela a ecircnfase no oacutecio como a

670 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p40671 Sill O Zerbrochene Spiegel Studien zur Theorie und Praxis modernen auto- biographischenErzaumlhlens BerlinNew York 1991 p53 Stuumlssel K bdquoAutorschaft und Autobiographik im kultur- undmediengeschichtlichen Wandelldquo In Breuer USandberg B (ed) Grenzen der Identitaumlt und derFiktionalitaumlt (Autobiographisches Schreiben in der deutschsprachigen Gegenwartsliteratur vol1)Muumlnchen 2006 pp19-33

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mais indispensaacutevel das condiccedilotildees para a autorreflexatildeo Na quinta promenade das

Recircveries du promeneur solitaire o ego narrativo daacute por si mesmo vivenciando um

dolce far niente

Le preacutecieux far niente fut la premiegravere et la principale de ces jouissances que je voulus sa-

vorer dans toute sa douceur et tout ce que je fis [] ne fut en effet que loccupation

dlicieuse et neacutecessaire dun homme qui est deacutevoueacute agrave loisiveteacute672

Rousseau estiliza o oacutecio como um modo ideal de existecircncia que permite ao

narrador autobiograacutefico uma experiecircncia-de-si feliz Enquanto se demora no oacutecio as

restriccedilotildees e as necessidades externas entram em segundo plano O sujeito de Rousseau

pode colocar-se no centro da sua contemplaccedilatildeo como que experienciando um estado de

autossuficiecircncia divina

De quoi jouait-on dans une pareille situation The rien dexteacuterieur agrave soi the rien sinon de

soi-mecircme et de sa propre existence tant que cet eacutetat dure on seine suffit agrave soi-mecircme

comme Dieu673

Interessantemente a respeito da emergecircncia da subjetividade moderna e da sua

autoproibiccedilatildeo de cumprimento do oacutecio Peter Sloterdijk elucida

O big bang no desenvolvimento do conceito subjetivo europeu de liberdade de que

estou a falar aqui eacute abordado mais de dois mil anos depois em solo suiacuteccedilo nomeadamente

no Outono de 1765 Atraveacutes da sua uacutenica testemunha que ao mesmo tempo representa o

protagonista dos acontecimentos temos um conhecimento relativamente detalhado sobre

tal conceito Naquela eacutepoca a Suiacuteccedila tinha um papel fundamental na histoacuteria da ideia da

liberdade republicana renovada mas como pode ser visto imediatamente esta ideia

deveria tambeacutem desempenhar um papel importante na histoacuteria da subjetividade moderna

que naquela eacutepoca estava a ganhar velocidade O heroacutei da histoacuteria natildeo eacute Jean-Jacques

Rousseau nascido em Genebra cinquenta e trecircs anos de idade naquele ano um homem

em fuga Em alguns dias ensolarados de outono o autor perseguido agora em repouso e

encantado pelo charme da ilha tranquila havia sido levado para o lago num barco a remos

Num lugar distante deixara os remos afundarem e deitou-se de costas no fundo do barco

para se dedicar a uma atividade movimentada Deixou-se conduzir por uma viagem

interior que o autor descreveu com o termo recircverie Devo portanto retomar o termo Big

Bang jaacute que na realidade natildeo era um acontecimento explosivo mas quase impercetiacutevel e

de caraacuteter implosivo ou contemplativo Neste momento o termo liberdade assume

672 Rousseau J-J Les recircveries du promeneur solitaire Œuvres complegravetes Vol 1 Gagnebin B (ed)Paris 1959 [1776ndash1778] p1042 673 Rousseau J-J Les recircveries du promeneur solitaire Œuvres complegravetes Vol 1 Gagnebin B (ed)Paris 1959 [1776ndash1778] p1047

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involuntariamente um novo significado Descreve o estado de uma inutilidade requintada

em que o indiviacuteduo estaacute completamente consigo mesmo Deste modo a liberdade no

sentido atual experimenta-a quem descobre um desemprego sublime no seu interior ndash sem

contactar imediatamente uma agecircncia de empregos674

E mais adiante

Uma vez que a subjetividade tinha sido posta em movimento desta maneira eram

necessaacuterios meios para lidar com o perigo colocado pela inutilidade divina do sujeito-da-

recircverie que se contemplava e perdia em si mesmo Estes meios soacute seriam fornecidos por

sujeitos-controladores pensantes Eles foram inicialmente recrutados a partir da filosofia

alematilde da geraccedilatildeo apoacutes Rousseau por volta de 1800 Os seus protagonistas compreenderam

intuitivamente que o novo sujeito-da-recircverie era socialmente inaceitaacutevel Isto soacute poderia

acontecer de tal forma que o novo sujeito autoacutenomo do sonho-acordado ndash ao contraacuterio da

sua proacutepria tendecircncia ndash fosse agora associado ao mundo do desempenho Kant

primeiramente conseguiu fazecirc-lo desenvolvendo a transiccedilatildeo para o sujeito atraveacutes da

filosofia transcendental mas apenas para usar o sujeito em todo este campo de tarefas das

atividades de reconhecimento e de julgamento A partir desse momento acabou o seu feliz

desemprego Kant retirou o sonhador do barco e recrutou-o para um emprego no serviccedilo

puacuteblico Ningueacutem iria escapar ao campo de trabalho da sociedade no futuro Assim o

fundador do positivismo Auguste Comte pronunciou-se deste modo numa conferecircncia

por volta de 1850 Ningueacutem tem direito algum a natildeo ser o de cumprir sempre o seu

dever Natildeo eacute aqui que se deve difundir toda a histoacuteria da disciplina da socializaccedilatildeo

forccedilada e finalmente da caluacutenia da negaccedilatildeo e da submissatildeo do sujeito ao

desenvolvimento cultural dos seacuteculos XIX e XX O resultado seria o romance da

modernidade que tem medo da sua mais importante descoberta Contentar-me-ei em

salientar que a Inquisiccedilatildeo contra o sujeito autoacutenomo parece ter entrado numa fase final nas

uacuteltimas deacutecadas675

Um outro fenoacutemeno das Recircveries apresenta-se particularmente sintomaacutetico da

narrativa autobiograacutefica moderna trata-se do locus da autorreflexatildeo ociosa ndash com

efeito esta encontra-se intimamente ligada a determinados lugares tranquilos676 Na

quinta promenade eacute pois a Ilha de Satildeo Pedro no Lago Biel para onde Rousseau foge

dos seus perseguidores Neste seu exiacutelio Rousseau passa seis semanas que preenche

com passeios ao longo da ilha Na outra obra autobiograacutefica de Rousseau as

674 Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 pp44-45675 Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 p45 676 Sobre o caraacutecter espacial do oacutecio em geral consultar Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige InHasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellen Wandel Semantisierungen AumlhnlichkeitenUmbesetzungen Berlin 2014 pp26-33

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Confessions eacute a floresta de Montmorency ao norte de Paris para onde o autor se retira

para caminhar e escrever na pura solidatildeo677 A perspetivaccedilatildeo de um locus proacuteprio agrave

autorreflexatildeo natildeo constitui no entanto uma inovaccedilatildeo de Rousseau encontrando-se

presente em verdade nos primoacuterdios da autobiografia A cena-chave das Confessiones

de Agostinho eacute bem conhecida num jardim isolado em Milatildeo as duacutevidas de Agostinho

sobre a sua proacutepria vida atingem o seu acme e inspiradas pela leitura das cartas de

Paulo conduzem-no agrave conversatildeo ao cristianismo678 As claacutessicas autobiografias

demonstram quatildeo decisiva eacute a posiccedilatildeo espacial do ego autobiograacutefico para a sua

autoexploraccedilatildeo e para a autonarrativa

677 Consultar Rousseau J-J Les confessions Œuvres completes Vol 1 Gagnebin B (ed) Paris1959 [1782ndash1789] p404678 Augustinus A Confessiones Flasch KMojsisch B (ed) Stuttgart 2009 [397-401 AD] p386

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24 | O enquadramento do oacutecio

Quanto mais o trabalho intelectual se assimilava agrave violenta atividade industrial sem gostonem tradiccedilatildeo e quanto mais a ciecircncia e a escola se esforccedilavam diligentemente para nosprivarem da liberdade e da personalidade e por nos forccedilarem desde a mais terna idade aviver forccedilados e esbaforidos numa situaccedilatildeo dita ideal de azaacutefama tanto mais a arte do oacutecioentrou em decadecircncia desuso e descreacutedito junto das outras artes jaacute obsoletas Como se emalgum momento tiveacutessemos sido mestres nela Pelos tempos fora no ocidente a preguiccedilaconvertida em arte foi praticada apenas por inofensivos diletanteshellipNatildeo tenho a menor intenccedilatildeo de aconselhar a maquinaccedilatildeo devoradora de personalidades danossa induacutestria e da nossa ciecircncia Se a induacutestria e a ciecircncia natildeo sentem mais a necessidadede uma personalidade entatildeo que prescindam dela Mas noacutes os artistas que no meio dagrande bancarrota cultural habitamos uma ilha com recursos de vida ainda suportaacuteveisdevemos reger-nos por outras leis como sempre o fizemoshellipChegou o momento em que sinto a falta da arte do preguiccedilar fortalecida e refinada por umasoacutelida tradiccedilatildeo e no qual o meu outrora imaculado espiacuterito germacircnico direciona o seu olharcom inveja e nostalgia para a Aacutesia maternal onde uma praacutetica antiga amestrou um ritmoestruturador e enobrecedor ao aparentemente informe estado de presenccedila e inaccedilatildeo

Hermann Hesse A arte do oacutecio

Especialmente sob certas condiccedilotildees externas a reflexatildeo sobre a proacutepria vida

assume-se possiacutevel legiacutetima e promissora A praacutetica literaacuteria que consiste em mostrar o

eu que recorda e que narra inserido numa situaccedilatildeo de oacutecio e num lugar

preferencialmente natural e isolado encontra a sua possibilidade no discurso teoacuterico

sobre a autobiografia enquanto geacutenero no curso da modernidade679 Pode-se portanto

perspetivar os ldquoenquadramentos do oacuteciordquo como espaciais mas tambeacutem como soacutecio-

histoacutericos ou temporais680 Na sua anaacutelise de enquadramento Goffman elucida que

circundamos situaccedilotildees sociais com enquadramentos de modo a poder reconhececirc-las

no seu caraacutecter individual e assim distingui-las de outras situaccedilotildees681 Com estes atos

de enquadramento os parceiros de interaccedilatildeo indicam mutuamente como definem a

situaccedilatildeo social especiacutefica em que se encontram que regras de interaccedilatildeo nela se aplicam

e que acento da realidade682 atribuem a esta situaccedilatildeo especiacutefica

679 Desta forma o acoplamento da reflexatildeo autobiograacutefica e do oacutecio adquire um caraacutecter toacutepico o oacuteciodo autobioacutegrafo estaacute ligado a certos lugares de autorreflexatildeo que se estabeleceram no decurso da histoacuteriacultural e desenvolveram a sua influecircncia atraveacutes dos limites epocais680 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 pp43-45681 Goffman E Frame Analysis An Essay on the Organization of Experience Havard 1974682 Schuumltz ALuckmann T Strukturen der Lebenswelt Konstanz 2003

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A fruiccedilatildeo do oacutecio a criaccedilatildeo de seus espaccedilos e tempos segue um regulamento

social que pode ser exemplarmente apreciado no Decamerone de Boccaccio683 A

condiccedilatildeo que permite que sete senhoras e trecircs senhores narrem uma centena de novelas

uns aos outros durante dez dias eacute o enquadramento espacial e temporal que tecircm de

criar de antematildeo Este enquadramento afigura-se intimamente relacionado com a

necessidade e com a ameaccedila pois a praga grassa em Florenccedila Aleacutem do perigo real que

representa a praga constitui um siacutembolo que evoca um mundo caoacutetico e um destino

incontrolaacutevel Escapar deste perigo em direccedilatildeo a uma propriedade rural fora de Florenccedila

eacute mais do que verosiacutemil ou compreensiacutevel traduzindo uma reaccedilatildeo convincente Entra-

se assim num enclave espacial na paisagem de uma quinta e num tempo para si

proacuteprio dez dias cada um deles decorrendo segundo uma rotina diaacuteria fixa Este

conjunto de atos de enquadramento apresenta-se projetado segundo a finalidade de criar

uma atmosfera serena e aberta na qual os temas contraditoacuterios e os distintos geacuteneros

narrativos possam coexistir farsa romance e drama erotismo religiatildeo engano golpes

do destino intriga amor amizade etc Em Decamerone Boccaccio revela

paradigmaticamente o que ndash sempre jaacute ndash tem de ser criado e desenvolvido

estruturalmente em termos de tempo e espaccedilo para que o oacutecio possa desenvolver-se

por um lado o afastamento da vita ativa do quotidiano dos seus objetivos e da

consequente compulsatildeo para agir e tomar decisotildees e por outro lado a adoccedilatildeo de uma

postura dirigida para as possibilidades de uma abertura extraordinaacuteria do tempo e do

espaccedilo mediante a rutura com a perceccedilatildeo orientada para objetivos jaacute definidos de

antematildeo

Curiosamente importaria assinalar de um ponto de vista do desenvolvimento

histoacuterico e social os distintos modos de criaccedilatildeo dos espaccedilos e dos tempos do oacutecio

segundo diferentes classes sociais ndash pois tambeacutem a criaccedilatildeo de tais espaccedilos e tempos se

afigura determinada inicialmente segundo diferentes padrotildees de comportamento social

A aristocracia prefere a quinta rural (por exemplo o Tusculum de Cicero) ou o castelo

de prazer e de caccedila O clero que com seus mosteiros criara um mundo dentro do mundo

e portanto a sua proacutepria ordem simboacutelica de espaccedilo e tempo enquadra molda

configura os seus lugares e tempos dedicados ao oacutecio e agrave meditaccedilatildeo dentro desse mesmo

mundo religioso Neste sentido o clero desenvolve um paradoxo que lhe eacute especiacutefico o

oacutecio proposital na meditaccedilatildeo a abertura para tudo o que eacute divino combinado com a

683 Soumlffner J Das Decamerone und sein Rahmen des Unlesbaren Heidelberg 2005

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exclusatildeo de tudo o que eacute mundano ou mais do que isso diaboacutelico A burguesia por

sua vez encontra os seus enclaves de oacutecio espacial e temporal para aleacutem do seu mundo

profissional no conviacutevio do salatildeo e na sala tranquila da biblioteca ou na sala de estudo

Se a aristocracia se abre agrave natureza atraveacutes da caccedila o cidadatildeo dedica-se ao passeio

urbano684 e igualmente agrave natureza e ao ar livre E os trabalhadores (qualificados) e os

pequenos empregados constroem as suas casas de jardim Ateacute hoje sob a forma de

finas diferenccedilas685 as vaacuterias formas de espaccedilos de oacutecio foram preservadas

dependendo dos seus contextos sociais Por muito diferentes que sejam os respetivos

enquadramentos do oacutecio todos eles revelam caracteriacutesticas em comum

Todos os regulamentos do oacutecio satildeo destinados agrave criaccedilatildeo de pequenos mundos

autoacutenomos no mundo governados de acordo com as suas proacuteprias leis Neles se

permitem e se concretizam as possibilidades do tempo experimentado contra o tempo

medido segundo um propoacutesito de suspensatildeo do tempo dito normal do tempo padratildeo de

trabalho e das rotinas diaacuterias procurando-se assim estabelecer uma outra loacutegica em

contraposiccedilatildeo agrave cronologia Os espaccedilos e os tempos exteriores possibilitam a abertura

da perceccedilatildeo e do sentimento humano para a interaccedilatildeo de todos os sentidos ndash com efeito

o oacutecio cria a oportunidade de uma sinestesia liberada experienciaacutevel Assim este

enquadramento espacial e temporal do oacutecio potencia o contraste com a realidade

quotidiana o pano de fundo do qual o oacutecio emerge e vive O afastamento deliberado de

um mundo no qual por um lado nos movemos em trecircs quartos das nossas accedilotildees como

autoacutematos686 e por outro lado se configura como um mundo de perspetiva

unidimensional orientado pelo interesse e condenado agrave compulsatildeo de agir e tomar

decisotildees pode conduzir agrave emergecircncia de paradoxos produtivos inclusivamente a

atividade de enquadramento poderaacute ser perspetivada como uma atividade intencional

para a produccedilatildeo de uma certa liberdade deliberada o espaccedilo para interesses

livremente flutuantes Desta forma o oposto de trabalho como esforccedilo deveria tornar-

se possiacutevel trata-se igualmente de criar o paradoxo do trabalho prazeroso um

trabalho que natildeo estaacute orientado para um fim exterior a si proacuteprio nem orientado para

assegurar a sua existecircncia nem para auferir dinheiro decorrente de um suposto contrato

de trabalho O enquadramento espacial e temporal do oacutecio promove com efeito tal

contraste paradoxal A separaccedilatildeo e o encerramento dos espaccedilos do oacutecio relativamente

684 Woumllfel K Spaziergaumlnge Zuumlrich 2009685 Bourdieu P La distinction Critique sociale du jugement Paris 1979686 Bourdieu P La distinction Critique sociale du jugement Paris 1979 p740

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aos espaccedilos do quotidiano neg-oacutecio potenciam a abertura de um espaccedilo de imaginaccedilatildeo

para aleacutem do mensuraacutevel

Trata-se de uma intemporalidade de que os artistas por exemplo necessitam ou

agrave qual aspiram uma intemporalidade no interior da qual se pode sonhar sem ter de

adormecer (Nietzsche por exemplo descreve o artista como o noctacircmbulo do dia687)

O mesmo se aplica ao tempo ocioso que natildeo se pode ser medido pois repousa na

experiecircncia Com a sua proacutepria extensatildeo variaacutevel este tempo natildeo soacute se opotildee ao curso

padratildeo diaacuterio do tempo mas produz tambeacutem um paradoxo de intemporalidade

temporaacuteria atraveacutes do seu enquadramento (e do estatuto de enclave que eacute assim

criado)688

Assim apesar da sua funccedilatildeo excludente e do caraacutecter exclusivo de lazer o

enquadramento potencia uma exclusatildeo das influecircncias externas do mundo Mas o

enclave do oacutecio natildeo eacute absorvido por ele Natildeo gera uma atenccedilatildeo dirigida mas ndash

metaforicamente ndash como que cria por um lado uma moldura de imagem fechada para o

exterior e por outro lado uma superfiacutecie de projeccedilatildeo que se abre e na qual tudo pode

ser potencialmente pintado Movimentar-se num espaccedilo de opccedilotildees que reivindica todos

os sentidos significa entrar nesse humor extraordinaacuterio permitindo-nos aqui prever ou

reconhecer porventura a reflexatildeo de uma vida tatildeo deliciosa quatildeo improvaacutevel no reino

da liberdade autoacutenoma

687 Nietzsche F Die froumlhliche Wissenschaft Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol3 ColliG Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p79688 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p36

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25 | O enquadramento do idiacutelico

Eu nunca guardei rebanhosMas eacute como se os guardasseMinha alma eacute como um pastorConhece o vento e o solE anda pela matildeo das EstacotildeesA seguir e a olharToda a paz da Natureza sem genteVem sentar-se a meu lado

Alberto Caeiro O guardador de rebanhos

O homem natildeo deve viver numa pobreza de espiacuterito idiacutelica ndash deve trabalhar689

O veredicto de Hegel a propoacutesito do idiacutelio ilustra e sintetiza um debate que tivera o seu

iniacutecio nos finais do seacuteculo XVIII especialmente nas geraccedilotildees anteriores agrave de Hegel as

geraccedilotildees de Kant e de Schiller ndash e que em traccedilos gerais se caracteriza por uma

crescente postura de subordinaccedilatildeo do conceito de oacutecio ao conceito-chave de trabalho

Com efeito quando Hegel formula a propoacutesito do idiacutelio o sentimento de falta dos

impulsos mais elevados do ser humano impulsos que o incitam agrave atividade

proporcionando-lhe o sentimento de forccedila interior e do qual os interesses mais

profundos se podem desenvolver690 o filoacutesofo propotildee-se delinear em verdade um

conceito de trabalho que se afigura caracterizado como uma potecircncia histoacuterica e humana

que o idiacutelio natildeo pode satisfazer De acordo com a noccedilatildeo de idiacutelio ndash noccedilatildeo aqui

contraposta ao conceito de trabalho ndash a natureza satisfaz [] ao homem toda a

necessidade que nele possa surgir e este contenta-se no seu estado de inocecircncia []

com o que o prado a floresta as manadas um pequeno jardim a sua cabana podem

oferecer-lhe em comida habitaccedilatildeo e outras comodidades de modo que todas as paixotildees

de ambiccedilatildeo ou de cobiccedila []permanecem ainda em silecircnciordquo691

689 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p336690 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p336691 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p335

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Joseph Vogl atentou sobre tais posiccedilotildees de Hegel relativas ao conceito de

trabalho ndash lidas agrave luz da foacutermula hegeliana de desejo inibido692 contrastando-as com

uma certa interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo iluminista (anterior portanto) de tal conceito de

acordo com Vogl o conceito de trabalho tal como compreendido na Aufklaumlrung

traduzia toda atividade que natildeo se interrompe com a satisfaccedilatildeo de uma

necessidade693 Debruccedilando-se sobre Fausto II de Goethe Vogl elabora uma nova

economia do trabalho na modernidade [] cujo ponto central estaacute na impossibilidade

de terminar as accedilotildees (e do ldquofazerrdquo) e numa certa emergecircncia da ldquofutilidaderdquo como

caracteriacutestica que envolve todas as produccedilotildees694 No contexto de Fausto II um texto

literaacuterio que curiosamente evoca um tratamento tatildeo interessante quatildeo problemaacutetico do

idiacutelio Vogl comenta a propoacutesito da abertura do Quinto Ato a apresentaccedilatildeo do idiacutelio na

sua realidade espacial descrita agrave luz da existecircncia harmoniosa de cabanas de Filemom

e Baucis cuja pura existecircncia atrai o impulso inquieto de Fausto para a expansatildeo695

Com efeito o confronto entre o idiacutelio e a modernidade caracterizada agrave luz da irrupccedilatildeo

do conceito do trabalho tal como encarnado no projeto de exploraccedilatildeo de terras de

Fausto constitui uma realidade filosoficamente considerada reconhecida e perspetivada

jaacute nos iniacutecios de 1800 Neste acircmbito o idiacutelico configura-se como algo mais do que um

espaccedilo dramatuacutergico ou narrativo de contraste Trata-se da evocaccedilatildeo de uma vida de

oacutecio uma contraimagem com qual a literatura e a filosofia passaram a trabalhar a

partir de iniacutecios do seacuteculo XIX

Cerca de cinquenta anos antes das referecircncias de Goethe e Hegel ao idiacutelio jaacute

Kant havia tratado em Ideia de uma histoacuteria universal de um ponto de vista

cosmopolita a questatildeo do progresso da humanidade agrave luz da designada qualidade em si

natildeo realmente amaacutevel do egoiacutesmo da ambiccedilatildeo do desejo de poder ou de ganacircncia

perspetivada em contraposiccedilatildeo a uma vida de pastor arcaacutedico desenvolvida com

perfeita harmonia contentamento e amor agrave mudanccedila e na qual todos os talentos

permanecem escondidos no seu germe para sempre696 Segundo Kant e a sua proposta

relativa a uma comparaccedilatildeo ou analogia entre o oacutecio e um tempo vazio perante o qual

692 Hegel GWF Phaumlnomenologie des Geistes Werke vol3 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p153693 Vogl J Kalkuumll und Leidenschaft Poetik des oumlkonomischen Menschen Muumlnchen 2002 p339694 Vogl J Kalkuumll und Leidenschaft Poetik des oumlkonomischen Menschen Muumlnchen 2002 p336695 Goethe JW Faust Frankfurter Ausgabe vol 71 Schoumlne A (ed) Frankfurt a M 2005p434696 Kant I bdquoIdee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbuumlrgerlicher Absichtldquo Werke vol9Weischedel W (ed) Darmstadt 1983 p38

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o acircnimo humano sente desgosto descontentamento nojo697 a ideia de um estado no

acircmbito do qual apenas canccedilotildees arcaacutedicas seriam cantadas e a beleza da natureza seria

observadardquo698 constitui uma metaacutefora do fracasso de destino humano tanto em termos

de psicologia individual quanto em termos de histoacuteria da humanidade Neste sentido o

uso metafoacuterico do idiacutelio poderaacute ser tomado como uma indicaccedilatildeo ilustrativa dos modos

de tratamento filosoacuteficos de determinadas formas de oacutecio e do oacutecio em geral em iniacutecios

do seacuteculo XIX

Em Sobre a poesia ingeacutenua e sentimental Schiller formulou o mais decisivo e

abrangente reflexo da problematizaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do idiacutelio no domiacutenio da

esteacutetica A sua tentativa de redefinir o idiacutelio como uma forma que conduz o ser

humano que natildeo pode mais retornar agrave Arcaacutedia ao Eliacutesio699 apresenta-se distinta do

tradicional (sentimental) idiacutelio dos pastores700 na medida em que o primeiro

representa um estado antes do iniacutecio da cultura que proporciona por sua vez muito

pouco para o espirito Assim escreve Schiller portanto soacute podemos amaacute-la e buscaacute-la

quando temos necessidade de descanso natildeo quando as nossas forccedilas aspiram ao

movimento e a atividaderdquo701 Por outro lado no idiacutelio eacute necessaacuterio apresentar um

estado de harmonia e paz consigo mesmo como o objetivo uacuteltimo702 da cultura que

absorve o momento ativo da civilizaccedilatildeo

Assim o descanso seria a impressatildeo dominante deste tipo de poesia mas um descanso da

perfeiccedilatildeo natildeo da ineacutercia um descanso que flui do equiliacutebrio natildeo da paralisaccedilatildeo das

forccedilas que flui da abundacircncia natildeo da vacuidade e eacute acompanhado pelo sentimento de

uma capacidade infinita703

Como antecipaccedilatildeo de um futuro utoacutepico o idiacutelio espacialmente limitado de

Schiller participa na temporalizaccedilatildeo da utopia que segundo a observaccedilatildeo de Reinhart

Koselleck comeccedilou na segunda metade do seacuteculo XVIII704 Ao mesmo tempo no

697 Kant I Eine Vorlesung Kants uumlber Ethik Menzer P (ed) Berlin 1924 p201 Sobre o problemado tempo em Kant consultar Seel M Rhythmen des Lebens Kant uumlber erfuumlllte und leere Zeit InKersting W Langbehn C (ed) Kritik der Lebenskunst Frankfurt a M 2007 pp 181ndash200698 Kant I Uumlber Paumldagogik Werke vol10 Weischedel W (ed) Darmstadt 1983 p730699 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 p730 700 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 pp747-748701702 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 pp746 751703704 Koselleck R Die Verzeitlichung der Utopie Frankfurt a M 2003 pp131ndash149

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acircmbito das posiccedilotildees de Schiller encontramo-nos perante uma postura que pretende

suavizar a dureza da loacutegica da filosofia histoacuterica tornando possiacutevel no jogo esteacutetico

aquilo que natildeo pode ser experimentado na atividade da vida comum Neste sentido em

Cartas sobre a educaccedilatildeo esteacutetica Schiller contrasta o trabalho escravo dos indiviacuteduos

contemporacircneos e o oacutecio feliz das geraccedilotildees posteriores formadas segundo a educaccedilatildeo

da natureza humana705 Como tal o tratamento filosoacutefico do oacutecio tal como

desenvolvido por Schiller natildeo se afigura propriamente perspetivado num sentido

utoacutepico706 todavia poder-se-ia asseverar que a este respeito encontramo-nos perante

uma postura schilleriana de enfatizaccedilatildeo da discrepacircncia entre as reivindicaccedilotildees

fracassadas do indiviacuteduo e a perfeiccedilatildeo adiada do geacutenero Se o oacutecio constitui um modo

de situaccedilatildeo contraposta ao trabalho doloroso produtivo o idiacutelio por sua vez e tal como

Schiller o avalia filosoficamente apresenta-se definido e caracterizado atraveacutes de uma

nova formulaccedilatildeo do proacuteprio conceito de oacutecio agora relacionada com a possibilidade de

uma interseccedilatildeo com a experiecircncia esteacutetica o idiacutelio consiste pois numa fenomenal e

estrutural ligaccedilatildeo entre o oacutecio e a experiecircncia esteacutetica707 o surgimento do ideal na

realidade deve assim poder ser desfrutado Atraveacutes do abandono de uma definiccedilatildeo

sentimental de idiacutelio ndash o idiacutelio bucoacutelico e arcaacutedico do pastor ndash e da ecircnfase sobre a

atividade enquanto elemento integrante da definiccedilatildeo proposta o conceito de idiacutelio

segundo Schiller consiste natildeo meramente num reflexo criacutetico do triunfo histoacuterico da

vita ativa no mundo prometeico da modernidade708 mas principalmente e

inclusivamente numa nova perspetivaccedilatildeo acerca da consequecircncia desse mesmo

desenvolvimento na realidade do idiacutelio Com efeito de acordo com Schiller jaacute por volta

de 1800 os termos arcaacutedia e pastor bucoacutelico constituem referecircncias idiacutelicas que se

assumem como obsoletas709

Perante a proclamaccedilatildeo da a crise do oacutecio aquando da emergecircncia da sociedade

burguesa de trabalho atraveacutes da perspetivaccedilatildeo acerca de uma cisatildeo contundente entre

705 Schiller F Uumlber die aumlsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen SaumlmtlicheWerke vol5 Alt P-A- Maier ARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 p588706 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 25707 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 26708 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 26709 Consultar Kaiser G Wandrer und Idylle Goethe und die Phaumlnomenologie der Natur in derdeutschen Dichtung von Geszligner bis Gottfried Keller Goumlttingen 1977 p101

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trabalho produtivo e fuga para a para a ociosidade sonhadora710 (a ociosidade

caracterizada na sua tendecircncia agressiva agrave recusa impotildee-se pois enquanto novo

conceito que implica uma interpretaccedilatildeo profundamente depreciativa porque

moralmente e socialmente condenaacutevel da realidade do oacutecio) e a proclamaccedilatildeo da

impossibilidade de configuraccedilatildeo de mais estados idiacutelicos711 a nossa tese de

doutoramento procuraraacute discutir tais problemaacuteticas segundo uma argumentaccedilatildeo distinta

e apresentando conclusotildees que divergem das posiccedilotildees anteriormente tratadas Com

efeito a rejeiccedilatildeo da oposiccedilatildeo aceacuterrima entre oacutecioidiacutelio e trabalho ndash uma tese

continuamente formulada no contexto dos debates dedicados agrave mateacuteria ndash constitui a

pedra de toque deste trabalho acadeacutemico

No acircmbito da situaccedilatildeo designada como bucoacutelica concebida como uma preacute-

configuraccedilatildeo do idiacutelico tal como desenvolvido no seacuteculo XVIII712 o oacutecio encontra-se

relacionado com a figura do pastor pois a sua atividade proporcionava-lhe ocasiotildees

bastantes para o oacutecio e portanto para o canto713 Eacute bem sabido que natildeo se tratava de

uma representaccedilatildeo realista dos estilos de vida rurais714 Ao separar o pastoreio do seu

campo de atividade original e ao encenaacute-lo como uma mimese da poesia715 o bucoacutelico

tradicional orientou a vida do pastor para uma zona de oacutecio Desde o iniacutecio do

Iluminismo tal artificialidade poeacutetica que envolve a atividade dos pastores tornara-se

cada vez mais problemaacutetica ou pelo menos sujeita a uma exigecircncia de justificaccedilatildeo716

Conquanto o problema da representaccedilatildeo do oacutecio pastoral face agraves condiccedilotildees

rurais caracterizadas por um trabalho aacuterduo e pouco reconhecido do ponto de vista

social constitua um relevante tema de discussatildeo o bucoacutelico do seacuteculo XVIII natildeo foi

criticado somente pela sua inverosimilhanccedila pela sua ausecircncia de realidade tal como

710 Forte L Lob der Faulheit Muszlige und Muumlszligiggang im 19 Jahrhundertldquo In Huber M FeilchenfeldtK (ed) Bildung und Konfession Politik Religion und literarische Identitaumltsbildung 1850ndash1918Tuumlbingen 1996 p80711 Fuest L Poetik des Nicht(s)tuns Verweigerungsstrategien in der Literatur seit 1800 Paderborn2008 p21712 Haumlntzschel G Idylle In Reallexikon der deutschen Literaturwissenschaft vol2 Weimar KFricke H (ed) Berlin 1997 p123 Garber K Bukolik In Fricke HGrubmuumlller K (ed) Reallexikonder deutschen Literaturwissenschaf VolI BerlinNew York 2007 p288 Heller JC Masken derNatur Zur Transformation des Hirtengedichts im 18 Jahrhundert Paderborn 2018713 Scaliger JC Poetices libri septem (Faks-Neudr d Ausg Leipzig von Lyon 1561) Stuttgart BadCannstatt 1987 p6714 Mix Y-G Idyllik Anti-Idyllik Aufklaumlrung und Selbstaufklaumlrung Zur aumlsthetischen undphilosophischen Kritik des Arkadien-Topos In Birkner NMix Y-G (ed) Idyllik im Kontext vonAntike und Moderne Tradition und Transformation eines europaumlischen Topos Berlin 2015 p207715 Iser W Das Fiktive und das Imaginaumlre Perspektiven literarischer Anthropologie Frankfurt a M1993 p70716 Gottsched JC Versuch einer Critischen Dichtkunst 4 Aufl Leipzig 1751 (Darmstadt 1962)p582

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adverte Mix717 O problema realista configurou apenas um aspeto de uma mudanccedila

geral na poeacutetica do idiacutelio no seacuteculo XVIII Esta intensificou-se especialmente a partir de

1800 e neste novo contexto as situaccedilotildees de oacutecio passaram a ser relacionadas com

outras profissotildees ou atividades profissionais nos finais do seacuteculo XVIII por exemplo a

escolha de pescadores em vez de pastores como figuras do idiacutelio podia ser justificada

pelo facto de estes serem demasiado ociosos pois descanso e oacutecio [] sem diligencia

natildeo eram traccedilos de verdadeira felicidade718

A crescente rejeiccedilatildeo cultural e poeacutetica do pastor enquanto figura do idiacutelio par

excellence foi acompanhada por uma extensatildeo do idiacutelio a uma aacuterea de representaccedilatildeo

predominantemente rural Deste modo o idiacutelio passara assim a ser descrito num

sentido mais moderno como um conglomerado natildeo soacute de poesia de pastor mas tambeacutem

de poesia de vida rural719 Em verdade a representaccedilatildeo do trabalho como parte

integrante da ruralidade sempre encontrou o seu lugar na poesia da vida rural720

conquanto na oposiccedilatildeo toacutepica do campo e da cidade a vida rural tambeacutem figure aqui

como a opccedilatildeo menos atarefada Neste contexto a integraccedilatildeo das obras rurais no idiacutelio

do final do seacuteculo XVIII pode ser descrita natildeo soacute como a substituiccedilatildeo da categoria

fundamental do geacutenero do oacutecio pelo trabalho721 mas principalmente como a

transformaccedilatildeo de conceitos idiacutelicos de oacutecio

A vida no campo (Das Landleben) de 1768 de Christian Cay Lorenz Hirschfeld

revela de modo ilustrativo a relaccedilatildeo entre oacutecio vida no campo e trabalho fiacutesico Escrito

num periacuteodo cultural e social anterior agraves turbulecircncias ocorridas a partir de 1800 a

referida obra de Hirschfeld sobre a vida no campo definida como um idiacutelio

pitoresco722 oferece propondo muacuteltiplas evocaccedilotildees e referecircncias relativas ao artigo A

vida do campo (Landleben) na Oeconomischer Encyclopaedie723 da autoria de

Johann Georg Kruumlnitz Contra o desprezo pelo trabalho rural o texto estabelece para

717 Mix Y-G Idyllik Anti-Idyllik Aufklaumlrung und Selbstaufklaumlrung Zur aumlsthetischen undphilosophischen Kritik des Arkadien-Topos In Birkner NMix Y-G (ed) Idyllik im Kontext vonAntike und Moderne Tradition und Transformation eines europaumlischen Topos Berlin 2015 p208718 Bronner FX Neue Fischergedichte und Erzaumlhlungen Zuumlrich 1794 p8719 Boumlschenstein-Schaumlfer R Idylle Stuttgart 1977 pp4 6 p 74720 Garber K Der Locus amoenus und der Locus terribilis Bild und Funktion der Natur in derdeutschen Schaumlfer- und Landlebendichtung des 17 Jahrhunderts Koumlln 1974 p83721 Boumlschenstein-Schaumlfer R Arbeit und Muszlige in der Idyllendichtung des 18 Jahrhunderts InHoffmeister G (ed) Goethezeit Studien zur Erkenntnis und Rezeption Goethes und seiner ZeitgenossenFestschrift fuumlr Stuart Atkins Bern 1981 p27722 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p23723 Consultar bdquoLandlebenldquo In Kruumlnitz JG (ed) Oeconomische Encyclopaumldie oder allgemeinesSystem der Land- Haus- und Staats-Wirthschaft in alphabetischer Ordnung vol 60 Berlin 1773ndash1858pp318ndash358

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aleacutem da referecircncia aos benefiacutecios da agricultura que a sua contemplaccedilatildeo (das

atividades do trabalho rural) recordando-nos as penas dos nossos vizinhos anima

tambeacutem o nosso sentimento de paz e de conforto724 Por outro lado a obra de

Hirschfeld procura tambeacutem avaliar um determinando tipo de indiviacuteduos os designados

distintos ociosos725 para os quais o tempo livre no campo constitui um mero pretexto

para nada fazer pois apesar de contemplarem cem cenas de trabalho de manhatilde cedo ateacute

agrave tarde tais indiviacuteduos natildeo exercem qualquer ocupaccedilatildeo uacutetil agrave sociedade humana nem

entretecircm o espiacuterito com qualquer consideraccedilatildeo adequada agrave dignidade da vida rural726

Assim segundo Hirschfeld por um lado o apreciador do oacutecio natildeo desempenha

qualquer trabalho fiacutesico no campo por outro lado a contemplaccedilatildeo do trabalho fiacutesico

deve destinar-se a evitar que o seu oacutecio se transfigure numa mera situaccedilatildeo de

ociosidade

O significado das perceccedilotildees idiacutelicas insertas num contexto de trabalho agriacutecola

para a definiccedilatildeo e o tratamento filosoacutefico dos conceitos de oacutecio tal como desenvolvidos

a partir de 1800 poderaacute tambeacutem ser relevantemente avaliado no ensaio de Christian

Garve ldquoSobre o oacuteciordquo (Uumlber die Muszlige) De acordo com a tradiccedilatildeo europeia que remonta

agrave antiguidade Garve define o campo como um local privilegiado de oacutecio

Quem poderia falar de oacutecio sem comemorar a vida rural e as ciecircncias Natildeo haacute lugar onde

o oacutecio seja tatildeo desejado como no campo nenhum objeto pode preenchecirc-lo de tal forma

que o cultivo das Ciecircncias727

A demarcaccedilatildeo toacutepica entre o campo e a cidade ndash esta concebida como local de

trabalho comercial [] negoacutecios governamentais e distraccedilotildees728 ndash corresponde agrave

dupla demarcaccedilatildeo entre por um lado o oacutecio e o trabalho (enquanto atividade

heteroacutenoma) e por outro lado entre oacutecio e ociosidade A uacuteltima a ociosidade eacute a

inatividade mas o oacutecio eacute a possibilidade externa de uma atividade voluntaacuteria

autoescolhida portanto a atividade mais nobre729 A caracterizaccedilatildeo do oacutecio como

atividade como ldquooacutecio ativordquo730 eacute pois central para Garve que propotildee inclusivamente

724 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p38725 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p112726 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p114727 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p237728 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p237729 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p234

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a designaccedilatildeo das atividades exercidas no oacutecio como trabalho731 desde que estas sejam

determinadas de uma forma autoacutenoma (como tal e segundo tal perspetivaccedilatildeo nem

todas as atividades satildeo portanto adequadas para o oacutecio)

Garve caracteriza o oacutecio como uma atividade mental relacionando-a natildeo

obstante com o trabalho fiacutesico no campo Tal conceccedilatildeo encontra-se interessantemente

manifesta tambeacutem em termos linguiacutesticos o discurso acerca do cultivo das ciecircncias

em associaccedilatildeo direta com o imaginaacuterio do campo assume-se assim apresentado pois

de acordo com as palavras de Garve a capacidade de desfrutar da vida rural eacute atribuiacuteda

agravequeles que ou cultivam a proacutepria terra que habitam ou cultivam o campo da ciecircncia e

da literatura732 A perspetivaccedilatildeo sobre o ldquocultivordquo da literatura e da ciecircncia ou dos

campos embora mantendo a diferenccedila entre os campos de atividade intelectual e

agriacutecola integra inclusivamente a surpreendente consideraccedilatildeo do oacutecio como metaacutefora

para trabalho O pensamento e a escrita diferem da agricultura no que diz respeito ao

seu campo de atividade mas correspondem-lhe no seu caraacutecter de atividade na medida

em que podem ocupar o seu lugar Enquanto na poesia bucoacutelica o pastor servia como

representante ou equivalente ficcional do oacutecio do poeta aqui jaacute natildeo eacute o oacutecio mas o

trabalho da populaccedilatildeo rural que interveacutem para definir e descrever o acircmbito do oacutecio

como uma atividade diferente mas homoacuteloga sobretudo em distinccedilatildeo agrave ociosidade A

divisatildeo eficaz do trabalho num espetaacuteculo idiacutelico para o ator do oacutecio por um lado e um

trabalho esforccedilado externalizado pela divisatildeo social do trabalho por outro devem-se

tambeacutem a uma mudanccedila funcional da literatura rural no decurso da modernidade

econoacutemica

Muitas das fontes literaacuterias do tempo dizem-nos que falar de vida rural significa cada vez

menos a praacutetica da produccedilatildeo agriacutecola e da sua atividade de mercado mas antes um

conceito de reflexatildeo que expressa estados de espiacuterito e de alma no espelho de uma certa

experiecircncia de existecircncia733

Com a racionalizaccedilatildeo da agricultura e a separaccedilatildeo do trabalho a imagem da vida

rural fora progressivamente substituiacuteda pela da literatura econoacutemica A incorporaccedilatildeo de

730 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p236731 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p239732 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p239733 Fruumlhsorge G Die Kunst des Landlebens Vom Landschloss zum Campingplatz EineKulturgeschichte Muumlnchen 1993 p29

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passagens do livro de Hirschfeld na Enciclopeacutedia Oeconomica revela tratar-se ainda de

um testemunho desta ligaccedilatildeo anterior e igualmente da ligaccedilatildeo entre a perceccedilatildeo esteacutetica

e a reforma econoacutemica ateacute ao momento em que finalmente se prescindira

completamente da idealizaccedilatildeo A este respeito Fruumlhsorge assinala a total ausecircncia de

verbetes dedicados agrave vida rural nas enciclopeacutedias ulteriores734

Tais transformaccedilotildees ocorridas nos modos de representaccedilatildeo da literatura de vida

rural tal como verificadas por volta de 1800 deveratildeo ser entendidas agrave luz da

possibilidade de uma transferecircncia parcial de padrotildees de representaccedilatildeo bucoacutelicos para o

campo da vida rural bem como uma extensatildeo da gama temaacutetica da poesia pastoril Natildeo

eacute mais a figura do pastor mas a ideia de uma existecircncia feliz no campo que representa

uma forma de vida artificialmente estilizada aberta agrave irrupccedilatildeo de determinadas

possibilidades que natildeo tecircm lugar ou efetividade na vida social na cidade A combinaccedilatildeo

de diferentes estrateacutegias de representaccedilatildeo dos respetivos geacuteneros eacute acompanhada de

uma hibridaccedilatildeo dos valores tradicionalmente associados O oacutecio mediado pelos

pastores deveacutem assim um oacutecio ativo conquanto estilizado mas profundamente

relacionado com um modo de vida concreto da vida rural

A partir daqui (e acompanhando este desenvolvimento na poeacutetica idiacutelica do

seacuteculo XVIII) eacute possiacutevel uma abstraccedilatildeo ou formalizaccedilatildeo do idiacutelio que tambeacutem pode

destacar-se de definiccedilotildees temaacuteticas relacionadas com o conteuacutedo como a vida rural

Herder em Adrastea define o idiacutelio como a representaccedilatildeo ou narrativa de um modo

de vida humano de acordo com o seu estado de natureza com a sua elevaccedilatildeo a um ideal

de felicidade e desgraccedila735 Em vez do desenho de uma vida feliz numa aacuterea delimitada

ndash o oacutecio no campo ndash que engloba no seu interior uma outra aacuterea ndash o trabalho agriacutecola

justamente ndash e no qual o oacutecio se reflete encontramo-nos perante o alargamento do

conceito de idiacutelio relativamente a representaccedilotildees de um modo de vida inteira A funccedilatildeo

medial do trabalho agriacutecola como ainda se podia observar em Hirschfeld ou Garve

diminui com efeito a favor da produccedilatildeo ativa do estado idiacutelico tal como jaacute verificado

na uniatildeo do oacutecio e do trabalho rural

Brotando dos nossos coraccedilotildees as nossas mentes devem criar este idiacutelio da vida atraveacutes da

arte completar este claustro da vida atraveacutes da seleccedilatildeo O idiacutelio do vazio as descriccedilotildees da

734 Fruumlhsorge G Landleben Vom Paradies-Bericht zum Natur-Erlebnis Entwicklungsphasenliterarisierter Lebenspraxis In Barner W (ed) Tradition Norm Innovation Soziales und literarischesTraditionsverhalten in der Fruumlhzeit der deutschen Aufklaumlrung Muumlnchen 1989 p165735 Herder JG Idyll In Adrastea (Werke vol10) Arnold G (ed) Frankfurt a M 2000 p281

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natureza os pastores que natildeo existem em nenhum lugar desaparecem nele como

galantarias fugitivas desaparece todo o material de um mundo de imagens alheias a noacutes

de que a nossa imaginaccedilatildeo sabe tatildeo pouco como a nossa sensaccedilatildeo Por outro lado o nosso

mundo em todos os sentidos e costumes entra no belo esplendor de uma nova criaccedilatildeo

espiacuterito e coraccedilatildeo amor generosidade diligecircncia coragem doccedilura criam uma Arcaacutedia no

seu mundo no seu estado ordenando-o desfrutando-o utilizando-o736

O idiacutelio do pastor tradicional eacute aqui evocado pela uacuteltima vez A peculiaridade e a

singularidade das formas individuais de vida deveratildeo concretizar-se tal como Herder as

perspetiva agrave luz das possibilidades de transformaccedilatildeo deste mundo estrangeiro de

imagens mediante a atividade produtiva de criaccedilatildeo do respetivo estado737 que garanta o

idiacutelico para si proacuteprio

Importaria assinalar o modo como no texto de Herder o niacutevel de representaccedilatildeo

esteacutetica se interseta com o idiacutelico enquanto imagem Tal como o idiacutelio da vida deve

ser criado atraveacutes da arte assim tambeacutem estes mesmo domiacutenios vida e arte criam

uma Arcaacutedia no seu mundo Enquanto segundo Iser o bucoacutelico tematiza o

fingimento e assim permite visualizar a ficcionalidade literaacuteria738 no conceito de

idiacutelico de Herder encontramo-nos por sua vez perante um princiacutepio de produtividade

que eacute igualmente eficaz na poesia e na vida combinando a diferenccedila entre os dois

domiacutenios

Esta ecircnfase na dimensatildeo de produtividade afigura-se profundamente distinta das

perspetivaccedilotildees sobre o oacutecio e o idiacutelio anteriormente apresentadas como representativas

do conceito moderno de trabalho No contexto do capitalismo inicial as referecircncias a

gozar e usar exigem uma forma de produccedilatildeo que seja cumprida segundo a satisfaccedilatildeo

das necessidades e correlativamente que seja orientada mais para o valor de utilidade

do que para o valor de troca Se se entende o oacutecio como accedilatildeo autoacutenoma fundada sobre

si mesma que enquanto tal se encontra de certa forma relacionada negativamente

com o trabalho739 importaria concluir pois que o designado trabalho idiacutelicordquo somente

poderaacute tratar-se de um conceito obsoleto pretensamente referido a uma situaccedilatildeo de

736 Herder JG Idyll In Adrastea (Werke vol10) Arnold G (ed) Frankfurt a M 2000 p282737 Para o mestre dos heteroacutenimos de Pessoa o pastor poeacutetico Alberto Caeiro este estado constituiacutea oestado de ldquoum mestre Budista Zen iluminado que vive no aqui e agora concentrando-se no mundoimediato da perceccedilatildeo que dissolve o pensamento (especialmente o pensamento abstrato)738 Iser W Das Fiktive und das Imaginaumlre Perspektiven literarischer Anthropologie Frankfurt a M1993 p60739 Schuumlrmann V Muszlige Bielefeld 2001 p28

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impossiacutevel ou contraditoacuteria realidade ou efetividade e portanto de uma certa forma

relacionado negativamente com o conceito moderno de trabalho

Todavia no contexto da modernidade do mundo da vida e do trabalho no seacuteculo

XIX o idiacutelico natildeo desaparece A compreensatildeo da complexidade de associaccedilotildees

referidas ao idiacutelico na era Biedermeier natildeo obstante a crescente dissoluccedilatildeo de tal

situaccedilatildeo ou realidade ao longo do curso do mencionado seacuteculo740 (como Schneider jaacute

constata no pensamento tardio de Herder) deveraacute tender para a apreciaccedilatildeo da

possibilidade de tal estado conduzir o sujeito do mundo moderno acelerado para o

mais calmo simples e natural e assim criar uma relaccedilatildeo complementar funcional

que se contraponha a uma experiecircncia de uma modernidade aceleradardquo741

740 Schneider HJ Einleitung Antike und Aufklaumlrung Tuumlbingen 1988 p63741 Seeber HU Einleitung In Seeber HU Klussmann PG (ed) Idylle und Modernisierung inder europaumlischen Literatur des 19 Jahrhunderts Bonn 1986 p7

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Capiacutetulo 3

Sobre a possibilidade de inscriccedilatildeo do oacutecio no acircmbito da

modernidade tardia

Um ensaio

Nunca tive dinheiro para poder ter teacutedio agrave vontade

Bernardo Soares Livro do Desassossego

Segundo as conceccedilotildees de Aristoacuteteles expressas na Poliacutetica742 a alianccedila entre o

trabalho e o cultivo do oacutecio com dignidade constitui uma das determinaccedilotildees essenciais

da vida boa O cultivo e a fruiccedilatildeo do oacutecio afiguram-se para o filoacutesofo antigo como

condiccedilotildees propiciadoras do desenvolvimento da educaccedilatildeo do ser humano ndash e o trabalho

por sua vez constitui somente o seu outro lado necessaacuterio Com efeito a sociedade

industrial e o capitalismo nunca aceitaram uma relaccedilatildeo tatildeo equilibrada e

interdependente entre trabalho e oacutecio ndash pelo contraacuterio o trabalho constituiacutera neste

742 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b

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contexto o conceito e a realidade merecedores de todos os enaltecimentos culturais o

oacutecio por sua vez fora parcialmente desacreditado e identificado com preguiccedila e a

sua temporalidade proacutepria possibilidade de realizaccedilatildeo da sua experiecircncia e fruiccedilatildeo fora

reduzida ao acircmbito do ldquotempo livrerdquo Tais transformaccedilotildees tiverem como propoacutesito

como sabemos a reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho destituiacuteda de valor proacuteprio Neste

sentido se a realidade institucionalizada do trabalho procurara controlar o fator

subjetivo e impor aos empregados o espartilho do ldquotu devesrdquo a moderna

ldquosubjetivaccedilatildeo do trabalhordquo743 consiste na configuraccedilatildeo de um incitante ldquotu podesrdquo que

no fundo oculta no seu iacutentimo um ldquoNatildeo podes natildeo quererrdquo Os meacutetodos modernos de

gestatildeo do trabalho procuram capturar a ldquopessoa inteirardquo com todas as suas emoccedilotildees

motivaccedilotildees paixotildees e entusiasmos e assim integraacute-la na totalidade da sua existecircncia

na realidade do trabalho Todas as forccedilas subjetivas devem assim ser direcionadas para

os objetivos da empresa a fim de incrementar a eficiecircncia e o lucro o autocontrolo

voluntaacuterio deve segundo tal loacutegica substituir a dominaccedilatildeo externa Por conseguinte

de acordo com os princiacutepios da loacutegica moderna do trabalho tais exigecircncias ou

submissotildees apresentam-se de modo ocluso como pretensos motivos para o

desenvolvimento pessoal dos trabalhadores Perante tal quadro Foucault designara estes

novos meacutetodos de controlo dos seres humanos segundo o conceito de

governabilidade744 o qual traduz o processo de interiorizar o poder tornando-o

invisiacutevel e insuscetiacutevel de ser confrontado ou destituiacutedo

Privada da fruiccedilatildeo do oacutecio a sociedade natildeo possui cultura num sentido enfaacutetico

ndash apenas induacutestrias culturais destinadas a promover o entretenimento e assim a

diversatildeo e as distraccedilotildees mais inoacutecuas Natildeo obstante se desejarmos dotar com plena

justeza a experiecircncia de oacutecio de um significado social importaria perspetivaacute-lo

tambeacutem agrave luz do conceito do trabalho ndash neste sentido uma ldquovida boardquo deveria integrar

a dimensatildeo do ldquotrabalho bomrdquo tal como escreve Seel745 Que significaria tal realidade a

do ldquotrabalho bomrdquo No reino da liberdade no acircmbito do qual o desenvolvimento

humano constitui um fim em si mesmo a reduccedilatildeo da jornada de trabalho anuncia-se ndash

evoque-se Marx ndash como a condiccedilatildeo baacutesica746 Para Marx o tempo ganho eacute tanto o

743 Moldaschl M Das Subjekt als Objekt der Begierde ndash Die Perspektive der bdquoSubjektivierung vonArbeitldquo Heidelberg 2002744 Foucault M Die Gouvernementalitaumlt In Broumlckling U Krasmann S Lemke T (ed)Gouvernementalitaumlt der Gegenwart Studien zur Oumlkonomisierung des Sozialen Frankfurt a M 2000pp41-60745 Seel M Versuch uumlber die Form des Gluumlcks Frankfurt a M 1999 p142

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tempo de lazer como o tempo destinado a atividades superiores747 Um primeiro passo

para a libertaccedilatildeo da omnipotente obrigaccedilatildeo de trabalhar poderia ser apresentado

segundo a consideraccedilatildeo seacuteria e consequente de um Rendimento Baacutesico Incondicional

(RBI)748 perspetivado como projeto social cujas potencialidades consistiriam na

libertaccedilatildeo das maiores preocupaccedilotildees com o proacuteprio sustento garantindo ao indiviacuteduo

uma certa forma da autonomia749

Libertaccedilatildeo do trabalho e libertaccedilatildeo no trabalho satildeo portanto duas faces da

mesma moeda e que devem representar uma nova premecircncia social no acircmbito de uma

comunidade que deseja efetivar as condiccedilotildees de desenvolvimento da experiecircncia de

fruiccedilatildeo do oacutecio Em primeiro lugar tornar-se-ia necessaacuterio religar o trabalho agraves

necessidades humanas e sociais ao inveacutes de o manter capturado no interior de uma

loacutegica de crescimento econoacutemico A este propoacutesito importaria saber distinguir do

ponto de vista das possibilidades de realizaccedilatildeo digna do ser humano a especificidade de

uma efetiva necessidade social ndash que possa cumprir-se no acircmbito do consumo dos bens

baacutesicos coletivos da sustentabilidade ecoloacutegica e da justiccedila do social ndash de uma

necessidade que visa natildeo mais do que o incremento permanente do crescimento e de

novas possibilidades de utilizaccedilatildeo de capital750 A economia deveria seguir a efetiva

necessidade e natildeo ndash como Luhmann afirma ndash a necessidade da economia751

As necessidades de uma sociedade boa e justa datildeo lugar agrave configuraccedilatildeo das

prestaccedilotildees indispensaacuteveis para alcanccedilar tal propoacutesito Estas prestaccedilotildees devem poder ser

diferenciadas daquelas que apenas conduzem agrave produccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser

vendido ndash forccediladamente pelo marketing e pela publicidade ndash sem considerar

746 Marx K Das Kapital Kritik der politischen Oumlkonomie Die Marx-Engels-Werke vol24 Berlin1976 p828747 Marx K Grundrisse der Kritik der politischen Oumlkonomie In Marx KEngels F Werke vol42Berlin 1983 p599748 A este respeito importaria mencionar a recente publicaccedilatildeo em Portugal de um estudo filosoacuteficoseacuterio e competente acerca de tal mateacuteria Referimo-nos agrave obra intitulada Rendimento BaacutesicoIncondicional Uma Defesa da Liberdade da autoria de Roberto Merrill Sara Bizarro Gonccedilalo Marceloe Jorge Pinto publicada em 2019 (Merril RBizarro SMarcelo GPinto J Rendimento BaacutesicoIncondicional Uma Defesa da Liberdade Lisboa 2009)749 Vanderborght Y van Parijs P Ein Grundeinkommen fuumlr alle Geschichte und Zukunft einesradikalen Vorschlags Frankfurt a M 2005 Arlt H-J Erwerbsarbeit und soziale Existenz Leitbildervon gestern und Werte fuumlr morgen Karlsruhe 2012

750 Neste contexto deve ser claramente enfatizado que nem todas as formas de crescimento econoacutemicosatildeo geralmente rejeitadas aqui (tal como Rosa tambeacutem o considera) Haacute naturalmente muitos paiacuteses (porexemplo no Terceiro Mundo) que dependem urgentemente do crescimento econoacutemico o que natildeo podeser por exemplo o caso dos paiacuteses industrializados do Norte da Europa A criacutetica eacute dirigida contra umaideologia de incremento aceleraccedilatildeo e crescimento por sua proacutepria causa751 Luhmann N Wirtschaft als soziales System Opladen 1974 p208

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consequecircncias a longo prazo Desde que o desempenho do trabalho seja interpretado e

tratado como um fator de custo (Kostenfaktor) as condiccedilotildees de trabalho soacute podem ser

restritivas e onerosas Natildeo obstante importaria reconhecer que o desempenho do

trabalho constitui igualmente uma atividade humana e que como tal deveria ser

avaliada tomando em linha de conta o bem-estar fiacutesico psicoloacutegico e social dos

trabalhadores

Somente no uso eacute que o significado do trabalho se torna real O uso deveria

permanecer intimamente vinculado agrave necessidade real a fim de evitar consumos inuacuteteis

supeacuterfluos ou inclusivamente prejudiciais Mas no contexto da sociedade capitalista

natildeo basta que a necessidade se apresente realmente satisfeita ndash cumpre sim manter os

consumidores num estado de perpeacutetua insatisfaccedilatildeo perniciosamente favoraacutevel agrave venda

incessante de mais produtos pois a pedra de toque da produccedilatildeo capitalista consiste com

efeito em identificar os consumidores estimular os seus desejos criando assim

necessidades artificiais

Juntamente com uma nova e distinta conceccedilatildeo de trabalho que permitiria avaliaacute-

lo na sua possibilidade de libertaccedilatildeo do domiacutenio capitalista a experiecircncia de fruiccedilatildeo do

oacutecio poderia alcanccedilar o seu valor e significados sociais natildeo mais como um privileacutegio

elitista de uns poucos indiviacuteduos mas como um modo de vida coletivo destinado a

produzir e representar o humanum sob a forma de educaccedilatildeo e de cultura A capacidade

de desenvolvimento da experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio deveraacute neste sentido ser passiacutevel

de ser cumprida como uma capacidade individual merecedora de exerciacutecio e de

aperfeiccediloamento que teria como cerne a potencialidade de realizaccedilatildeo de uma certa

forma de desprendimento serena no presente Com o recurso ao termo desprendimento

procuramos caracterizar um determinado estado que livre de constrangimentos e

fixaccedilotildees possa abrir-se agrave ocupaccedilatildeo autoacutenoma e sem propoacutesitos exteriores com as

questotildees espirituais do ser humano no mundo Sem estar compulsivamente focalizado

num determinado resultado o ser humano permitir-se-ia em estado contemplativo

desenvolver uma experiecircncia de fruiccedilatildeo de oacutecio que poderia mas natildeo necessariamente

adquirir os contornos de uma situaccedilatildeo de exerciacutecio do filosofar Com efeito o oacutecio

tambeacutem poderia ser descrito como uma forma paradoxal de passividade ativa ou

atividade passiva assim perspetivado a experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio poderaacute ser

caracterizada pela assunccedilatildeo de um alto niacutevel de alerta mental e por conseguinte como

uma disposiccedilatildeo ou prontidatildeo para receber conhecimento

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Importaria tambeacutem conceber a experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio agrave luz das

potencialidades de configuraccedilatildeo da capacidade que consideramos eminente de

perceccedilatildeo plena do presente Segundo tal estado percetivo encontrar-nos-iacuteamos natildeo

propriamente no acircmbito de uma atividade de aquisiccedilatildeo de conhecimento intelectual

mas no contexto de um modo singular de abertura agrave receccedilatildeo de ideias (a theoria no

sentido grego) repare-se a este propoacutesito que na liacutengua alematilde o termo ideia pode ser

expresso recorrendo agrave palavra Einfall ndash que significa entre outros conceitos ldquoinvasatildeordquo

Tal soa-nos profundamente ilustrativo trata-se da experiecircncia de um certo

autoconhecimento ndash e um conhecimento do mundo que nos invade (einfallen) que nos

encontra e que a noacutes se dirige O momento feacutertil verificado durante este processo

ldquoexiste muitas vezes precisamente onde natildeo se suspeitava e natildeo se procurava752

Atraveacutes da experiecircncia aqui descrita o momento de desprendimento de pensamentos ou

de imagens ndash que deveraacute seguir-se a um intenso e complexo fluxo mental ndash afigura-se

como momento de formulaccedilatildeo ou de descoberta de ideias que em bom rigor como que

nos ldquoinvademrdquo

O exerciacutecio e o desenvolvimento de tal experiecircncia poderiam ser ensinados no

sistema educacional dos nossos estados mas lamentavelmente no atual desenho do

sistema de ensino o oacutecio (acadeacutemico) encontra-se excluiacutedo O que pretenderiacuteamos

referir a este respeito consiste naquilo a que os gregos designaram de aretecirc a

excelecircncia ndash uma atitude e uma atividade (ethos) que ilustram a condiccedilatildeo para o

exerciacutecio de uma vida boa numa sociedade justa Deste modo a experiecircncia de fruiccedilatildeo

do oacutecio tal como a concebemos encontra-se relacionada com a formaccedilatildeo do humanum

tanto no que concerne ao indiviacuteduo quanto no que respeita agrave vida comunitaacuteria Em

tempos mais recentes Gadamer reativou tal perspetivaccedilatildeo de educaccedilatildeo753 convocando

os pensamentos de Herder e de Hegel Gadamer considera a educaccedilatildeo como um dever

que o indiviacuteduo deve manter consigo mesmo destinado agrave aspiraccedilatildeo do ensino superior

para a humanidade num mundo comunitaacuterio A experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio torna-se

agrave luz deste quadro indispensaacutevel para a possibilidade de emergecircncia de tal situaccedilatildeo

formativa do indiviacuteduo Que o exerciacutecio e o desenvolvimento da capacidade de fruir

oacutecio se constitui como um elemento integrante da formaccedilatildeo dos indiviacuteduos e que a sua

752 Kaumlmpf-Jansen H Aumlsthetische Forschung Wege durch Alltag Kunst und Wissenschaft Zu eineminnovativen Konzept aumlsthetischer Bildung Koumlln 2002 p128753 Gadamer H-G Hermeneutik I Wahrheit und Methode Grundzuumlge einer philosophischenHermeneutik Gesammelte Werke vol 1 Tuumlbingen 1990 p15

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promoccedilatildeo se determina como uma tarefa essencial dos Estados o pensamento de

Aristoacuteteles jaacute o contemplava de forma eminente754

Ora a felicidade eacute um fim em si proacuteprio pois todos julgam que natildeo surge acompanhada de

dor mas de prazer No entanto as opiniotildees divergem quando se trata de definir que prazer eacute

esse pois cada qual o determina de acordo com a sua disposiccedilatildeo Uma coisa eacute certa o

melhor prazer eacute o do melhor homem e o que proveacutem das fontes mais excelentes Torna-se

claro portanto que devem ser aprendidas e ensinadas coisas em funccedilatildeo da diagogia e que

esses ensinos e aprendizagens devem ser uacuteteis em si mesmos ao passo que as mateacuterias que

se referem ao trabalho satildeo necessaacuterias e uacuteteis em funccedilatildeo de outras coisas755

No entanto as sociedades da nossa modernidade tardia parecem desenvolver-se

na direccedilatildeo oposta seguindo a pressatildeo da economia a educaccedilatildeo escolar e os estudos

universitaacuterios estatildeo a transformar-se de modo progressivo e como que inexoraacutevel

numa temporada formativa que tem como objetivo a preparaccedilatildeo imediata e exclusiva

para o exerciacutecio de uma profissatildeo Com efeito as nossas organizaccedilotildees educacionais

parecem encontrar-se submetidas aos ditames da usabilidade econoacutemica ndash a pergunta

pela utilidade econoacutemica dos cursos e dos curricula universitaacuterios afirma-se sobre todas

as outras Mas a verdadeira educaccedilatildeo ndash aliada agrave possibilidade de experiecircncia eminente

do oacutecio ndash natildeo possui utilidade exterior a si mesmo natildeo servindo nenhum propoacutesito

externo Lamentavelmente os aspetos educacionais concentrados no desenvolvimento

de uma visatildeo clara e sofisticada do mundo em todas as suas dimensotildees racional-

espiritual e sensual-esteacutetica encontram-se profundamente descurados negligenciados

depreciados

Agrave luz da capability approach756 de Amartya Sen natildeo se trata apenas de chamar

as pessoas a desenvolverem a sua capacidade individual de fruiccedilatildeo de oacutecio a sociedade

e as suas instituiccedilotildees poliacuteticas devem tambeacutem ser impelidas a providenciar as

condiccedilotildees estruturais para tal Natildeo seria portanto absurdo ou destituiacutedo de

razoabilidade ndash como o adverte Bahr ndash exigir uma legislaccedilatildeo que teria de proporcionar

uma educaccedilatildeo geral que reintroduzisse o oacutecio757

754Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b755 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a5-10756 Sen A Capability and well-being In Nussbaum M Sen A (ed) The quality of life Oxford 1993pp30-53757 Bahr H-D Fragment uumlber Muszlige Landsberg 2007 p26

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Recorde-se que Bertrand Russell em 1935 se posicionara a favor da

proclamaccedilatildeo de que a tarefa de uma educaccedilatildeo e ou formaccedilatildeo mais avanccediladas consistiria

em superar a ideologia interiorizada do trabalho e permitir que as pessoas usassem

sabiamente os seus tempos de oacutecio758 Se o oacutecio eacute essencial para o desenvolvimento da

civilizaccedilatildeo759 e o resultado do oacutecio consiste num desenvolvimento abrangente e

completo do homem entatildeo o lado artiacutestico e esteacutetico teraacute de desempenhar igualmente

um papel mais relevante nos processos de aprendizagem escolar que assim merecem o

nome de uma verdadeira ldquoeducaccedilatildeordquo Todavia o caminho de abertura agrave revalorizaccedilatildeo

do oacutecio como parte integrante da formaccedilatildeo do indiviacuteduo deve desenvolver-se se acordo

com a proposta de uma nova conceccedilatildeo de trabalho

Detenhamo-nos neste ponto sobre o conceito de trabalho segundo Marx Com

efeito de acordo com o conceito marxiano de trabalho tal noccedilatildeo deveraacute ser concebida

no seu fundamento como metabolismo com a natureza760 como a praacutetica de

fabricaccedilatildeo da Lebenswelt O trabalho definido por Marx corresponde tanto ao meio

central da exploraccedilatildeo e da alienaccedilatildeo humanas quanto agrave potencialidade de o ser humano

se constituir enquanto tal libertando-se da sua alienaccedilatildeo subjugante761 Em oposiccedilatildeo a

Adam Smith Marx sustenta

Que esta superaccedilatildeo de obstaacuteculos eacute em si mesma uma atividade de liberdade e que para

aleacutem disso os fins externos recebem a aparecircncia de necessidade meramente externa da

natureza despojada sendo definidos como fins que o proacuteprio indiviacuteduo estabelece (assim

como a autorrealizaccedilatildeo a objetivaccedilatildeo do sujeito portanto a liberdade real cuja accedilatildeo eacute o

trabalho)hellip de tal A Smith natildeo suspeita762

Recorde-se pois que o complexo conceito de trabalho de Marx se baseia numa

estrutura antropoloacutegico-utoacutepica Assim escreve Marx nos Manuscritos Econoacutemico-

Filosoacuteficos

O objeto do trabalho eacute portanto a objetivaccedilatildeo da vida do homem na medida em que este

ndash natildeo soacute de um ponto de vista intelectualmente consciente mas tambeacutem em termos de

produccedilatildeo laboral ndash se dobra sobre si proacuteprio olhando-se deparando-se consigo mesmo

758 Russell B Lob des Muumlszligiggangs Muumlnchen 2002 p85759 Russell B Lob des Muumlszligiggangs Muumlnchen 2002 p75760 Marx K Das Kapital Kritik der politischen Oumlkonomie Die Marx-Engels-Werke vol24 Berlin1976 p192761 Consultar Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40Berlin 1983 p510762 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p512

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atraveacutes de um mundo por si criado763

Tal posiccedilatildeo marxiana deve ser perspetivada de um ponto de vista eminentemente

antropoloacutegico o ser humano na sua relaccedilatildeo laboriosa com a natureza ndash avaliada por

Marx como o corpo inorgacircnicordquo764 do humano ndash produz-se a si mesmo enquanto ser

humano justamente e em contraste com o animal Assim esta autogeraccedilatildeo do humano

mediante o trabalho constitui o modo de determinaccedilatildeo da sua proacutepria essecircncia da

essecircncia do seu ser enquanto humano eacute justamente atraveacutes do trabalho que potencia a

configuraccedilatildeo de um ambiente de vida que o humano se constitui enquanto tal O

trabalho enquanto potencialidade de autorrealizaccedilatildeo do homem afigura-se com efeito

como a determinaccedilatildeo antropoloacutegica do ser humano765 De acordo com tal visatildeo

marxiana o ser do humano apresenta-se compreendido agrave luz da noccedilatildeo de projeto ndash o ser

do humano constitui-se como algo que se produz segundo um processo um vir-a-ser

que se desenvolve atraveacutes da atividade do trabalho natildeo se determinando como uma

invariaacutevel ontologicamente configurada como uma essecircncia A produccedilatildeo-de-si mediante

o trabalho afirma-se pois como o ser do ser humano Esta dimensatildeo dinacircmica que

envolve a ideia de autodesenvolvimento do ser humano tal como sustentada por Marx

traduz a sua influecircncia de Hegel Assim se conclui que o desenvolvimento da essecircncia

do ser humano na sua proacutepria humanidade se determina como uma tarefa histoacuterico-

material Esta eacute tambeacutem a visatildeo de Kofler

Mas o homem em virtude da sua capacidade de pensar e agir com consciecircncia (isto eacute de

estar sujeito) alcanccedila formas sempre mais elevadas de liberdade e assim permanece o

verdadeiro sujeito da histoacuteria A histoacuteria aparece aqui como a autorrealizaccedilatildeo do homem

no caminho da realizaccedilatildeo de niacuteveis sempre mais elevados de liberdade Com tal Hegel

fundou o conceito histoacuterico de progresso que Marx adotou766

Do ponto de vista marxiano o sentido de autorrealizaccedilatildeo humana que envolve a

definiccedilatildeo de trabalho natildeo se encontra ainda historicamente alcanccedilado nem

materialmente realizado e cumprido Tal deveraacute ocorrer sobretudo no decurso do

progresso da sociedade como um todo e como seu elemento essencial Todavia e ao

inveacutes das aspiraccedilotildees marxianas a histoacuteria da humanidade tal como a conhecemos tem

763 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p517764 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p517765 Gimmel J Konstellationen negativ-utopischen Denkens Ein Beitrag zu Adornos aporetischemVerfahren Freiburg Muumlnchen 2015 p165766 Kofler L Zur Kritik buumlrgerlicher Freiheit Hamburg 2000 p84

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sido fundamentalmente determinada pelo trabalho alienado que priva as pessoas da sua

essecircncia fazendo-as recuar agrave condiccedilatildeo de animal Tal trabalho alienado poderaacute ser

exemplificado pois como trabalho assalariado em condiccedilotildees capitalistas

Importaria ainda esclarecer que o conceito de oacutecio que aqui tratamos avaliado

como um espaccedilo de acontecimentos da autorrealizaccedilatildeo humana deve ser

fundamentalmente distinguido de um conceito de tempo livre trabalho e tempo livre satildeo

geralmente concebidos como conceitos opostos na medida em que o tempo livre eacute

definido e determinado por natildeo ter de trabalhar ndash uma suspensatildeo do trabalho

justamente Como tal trabalho e tempo livre significam princiacutepios complementares

profundamente interligados de ordem da rotina diaacuteria Em verdade o conceito de

tempo livre eacute um conceito secundaacuterio porque decorrente do conceito de trabalho Em

termos da histoacuteria das ideias ndash e isto eacute especialmente verificaacutevel quando se trata de

fenoacutemenos de oacutecio ndash o conceito de tempo livre estaacute normalmente subordinado ao

campo do trabalho O tempo livre eacute concebido como uma funccedilatildeo do trabalho que serve

ele mesmo para a reproduccedilatildeo do trabalho Na Poliacutetica Aristoacuteteles referia-se a estas

questotildees num tom muito similar a propoacutesito do descanso e da diversatildeo

Com efeito se o trabalho e o oacutecio satildeo indispensaacuteveis para (embora o oacutecio seja preferiacutevel

ao trabalho e ateacute agrave finalidade deste) pesquisemos como deve ser usado o tempo de lazer

Natildeo certamente a jogar porque entatildeo o jogo constituiria forccedilosamente a finalidade da

vida o que eacute impossiacutevel (eacute aliaacutes durante a labuta quotidiana que os jogos satildeo melhor

empregues pois o trabalho aacuterduo exige pausas e os jogos satildeo proacuteprios para dar descanso

sendo que o trabalho implica cansaccedilo e esforccedilo) Nesse sentido importa fomentar os

jogos mas sempre acautelando o momento oportuno da sua utilizaccedilatildeo e aplicando-os

como se de uma terapecircutica se tratasse porquanto o movimento da alma que deles resulta

produz relaxamento e o prazer que deles se retira facilita o descanso767

De acordo com o pensamento de Aristoacuteteles o tempo livre perspetivado como

possibilidade de descanso e de diversatildeo torna-se natildeo exclusivamente a antiacutetese do

trabalho mas sim o seu elemento complementar O tempo livre serve pois o trabalho

e portanto assim o tem como finalidade Todavia segundo Aristoacuteteles o conceito

autenticamente contraacuterio do conceito de trabalho eacute pois o conceito de oacutecio ndash natildeo o

tempo livre ou porventura o descanso ou a diversatildeo Assim clarifica Aristoacuteteles ldquo[] o

767 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b30-40

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oacutecio parece conter em si mesmo prazer felicidade e ventura Os que trabalham natildeo

podem fruir disto mas apenas os que se entregam ao oacuteciordquo768

Neste sentido e enquanto conceito contrastante relativamente ao conceito de

trabalho o oacutecio traduz natildeo um princiacutepio organizador do tempo mas a caracteriacutestica

central da diferenciaccedilatildeo social alguns homens desenvolvem uma vida de e no trabalho

enquanto que os homens livres cumprem uma vida isenta da compulsatildeo do trabalho No

contexto do pensamento de Marx eacute precisamente esta diferenciaccedilatildeo social que ilustra a

relaccedilatildeo de exploraccedilatildeo em funccedilatildeo das aacutereas de trabalho recreaccedilatildeo (tempo livre) e oacutecio

Se na antiguidade (e nas suas sociedades esclavagistas) a exploraccedilatildeo do trabalho

escravo proporcionava uma mais-valia que permitiria uma vida em liberdade para os

seus cidadatildeos no capitalismo por seu turno eacute a exploraccedilatildeo da forccedila de trabalho

proletaacuteria que proporciona lucro ao capitalista Neste contexto o conceito de tempo

livre significa um elemento potenciador da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho dos

explorados que se encontra sujeito a uma loacutegica de eficiecircncia da qual resulta o ritmo da

jornada de trabalho de acordo com os padrotildees de maacuteximo lucro agregado o tempo de

tempo livre deve pois ser limitado ao miacutenimo de modo a que natildeo se reduza o

desempenho no trabalho A este propoacutesito Marx classificara ironicamente esta

estrateacutegia na sua obra-maior O Capital sob o capiacutetulo jornada de trabalho como

pequenos furtos de capital nas refeiccedilotildees e tempos de recuperaccedilatildeo dos

trabalhadores769 Assim a diferenciaccedilatildeo entre trabalho e tempo livre aplica-se apenas

ao assalariado perspetivado como o sucessor do antigo escravo Note-se que Aristoacuteteles

definira a vida do homem livre agrave luz da ausecircncia da necessidade de trabalhar Eacute a

imposiccedilatildeo externa do trabalho que obriga os escravos ou os trabalhadores assalariados

modernos ao descanso e ao tempo livre neste sentido a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles

poderia ser traduzida de forma mais incisiva aqueles que natildeo precisam de tempo livre

satildeo livres770

768 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a1-5769 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p257770 Marx tambeacutem aborda esta circunstacircncia Depois de criticar o conceito de trabalho de Smith Marxnatildeo obstante admite No entanto ele [Smith] estaacute certo de que nas formas histoacutericas do trabalho comotrabalho escravo trabalho fronteiriccedilo e trabalho assalariado o trabalho sempre parece repulsivo semprecomo trabalho forccedilado extremo e o natildeo-trabalho como liberdade e felicidade por relaccedilatildeo com aquele(Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin 1983p512)

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Poder-se-ia na limitaccedilatildeo radical do tempo de trabalho efetuado no acircmbito da

sociedade da modernidade tardia discernir um momento que potenciaria a fuga ao

caraacutecter viciante das formas de produccedilatildeo capitalista Com efeito a demanda por uma

forma de abstinecircncia que recoloca a relaccedilatildeo entre a satisfaccedilatildeo da necessidade e o

desempenho no trabalho num contexto significativo poderia ser assim avaliada

Giorgio Agamben perspetiva na possibilidade de abstenccedilatildeo (o natildeo-fazer ou natildeo-

participar) o proprium do homem ndash trata-se pois segundo o filoacutesofo italiano de uma

faculdade essencial extraordinaacuteria do ser humano que o diferencia de todos os outros

seres vivos Para Agamben o ser humano eacute essencialmente um ser de possibilidade

um ser cuja vida consiste em ser livre isto eacute em cumprir as oportunidades ou

abandonaacute-las Convocando a filosofia de Aristoacuteteles Agamben sustenta que a potecircncia

de fazer algo (ou ser algo) eacute igualmente e desde sempre a potecircncia de natildeo fazer (ou

natildeo ser) o filoacutesofo italiano procura neste sentido pensar a potecircncia como potecircncia isto

eacute pensar a possibilidade como possibilidade

O que [] [Aristoacuteteles] procura pensar no livro theta da Metafiacutesica eacute por outras palavras

natildeo a potecircncia como pura possibilidade mas os modos efetivos da sua existecircncia Portanto

ndash e porque natildeo se evapora de uma soacute vez e diretamente na accedilatildeo mas possui a sua proacutepria

existecircncia ndash a potecircncia natildeo tem necessariamente de poder passar a ato o natildeo ter que ser

(ou o natildeo ter que fazer) eacute tambeacutem e de modo constitutivo potecircncia []771

A potecircncia genuinamente humana para se abster ou para ser inativo a

possibilidade de natildeo transferir uma possibilidade para o ato a potencialidade de natildeo

realizar uma possibilidade ndash eis pois o que segundo Agambem deve ser preservado

para que o homem seja livre podendo cumprir-se como ser humano Ao contraacuterio se o

ser humano tivesse de cumprir em ato todas as suas potecircncias de tal modo que todas

as suas possibilidades tivessem de ser transformadas em realidade entatildeo o ser humano

encontrar-se-ia privado de liberdade ndash pois de acordo com Agambem a liberdade

humana consiste justamente no facto de que o que se pode fazer pode igualmente ser

recusado ser feito Agamben formula tal pensamento no seu livro Laperto Luomo e

lanimale (2002) no qual define a inatividade e o fazer-nada como a forma mais alta

da vida e principalmente no epiacutelogo da obra La communitagrave che viene (1990) onde

faz alusatildeo a especulaccedilotildees teoloacutegicas judaicas

No Saacutebado abster-nos-emos [] de qualquer trabalho produtivo [] Uma atividade

771 Agamben G Das Offene Der Mensch und das Tier Frankfurt aM 2002 p55

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puramente destrutiva ou natildeo criativa [] a qual decorresse do oacutecio sabaacutetico natildeo seria no

entanto proibida Natildeo o trabalho mas a inatividade e a discriccedilatildeo satildeo o paradigma da

poliacutetica vindoura [] A salvaccedilatildeo [] que eacute o assunto deste livro natildeo eacute uma obra mas um

certo tipo de vazio sabaacutetico [] Portanto este livro natildeo trata da questatildeo o que fazer mas

da questatildeo como fazer Inatividade natildeo significa ineacutercia mas [] uma operaccedilatildeo em que o

como substitui o quecirc [hellip]772

Aqui Agamben convoca um pensamento de Adorno exposto em Minima

Moralia (1951) sobre a forma da sociedade utoacutepica justa de acordo com o filoacutesofo

alematildeo o fim da produtividade anuncia-se como a caracteriacutestica essencial da sociedade

justa (vindoura) cuja diferenccedila constitutiva relativamente ao capitalismo (e ao estado de

coisas existente) consiste na sua possibilidade de configurar-se como uma alteridade

pouco percetiacutevel um discreto outro ser-como da atividade

A casa agrave crianccedila que regressa das feacuterias parece-lhe nova fresca festiva Mas

nada nela mudou desde que a deixara O simples facto de esquecer o dever [hellip] restitui

agrave casa a sua paz sabaacutetica [hellip] Natildeo de outro modo surgiraacute o mundo ndash quase sem

mudanccedila ndash agrave perpeacutetua luz da sua festividade quando jaacute natildeo se encontrar sob a lei do

trabalho e para quem regressa a casa o dever eacute tatildeo faacutecil como o jogo nas feacuterias 773

A este respeito importaria sublinhar que Agamben e Adorno natildeo identificam a

redenccedilatildeo da alienaccedilatildeo e da dominaccedilatildeo com a cessaccedilatildeo completa de toda a produtividade

e de toda a accedilatildeo (posiccedilatildeo que de certa forma se apresenta em conformidade com as

visotildees de Hegel e de Marx acerca do trabalho como determinaccedilatildeo essencial do ser

humano) ndash de modo distinto os dois filoacutesofos propotildeem uma interpretaccedilatildeo do conceito

de trabalho agrave luz da possibilidade de exerciacutecio da produccedilatildeo como um ldquojogo de

autorrealizaccedilatildeordquo potenciando no acircmbito da sociedade justa liberta de todo o designado

ldquotrabalho alienanterdquo sustentado numa loacutegica inexoraacutevel que conduz ao incremento sem

rumo e sem propoacutesito da produccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo de tal estado assim descrito e proposto Agamben evoca a

ceacutelebre maacutexima do Escrivatildeo de Melville Bartleby774 I would prefer not to ndash Eu

preferiria natildeo fazer Tal maacutexima como sabemos constitui a foacutermula com a qual

Bartleby o funcionaacuterio de um escritoacuterio de advocacia de Nova Iorque em Wall Street

escapa furtando-se a qualquer atividade O propoacutesito de Agambem evocando o escrito

772 Agamben G La communitagrave che viene Torino 2001 p92773 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 sect72774 Agamben G Bartleby oder die Kontingenz Berlin 1998 p37

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de Melville consiste em perspetivar a sentenccedila de Bartleby como a foacutermula de uma

resistecircncia poacutes-utopia para aleacutem do carrossel poliacutetico-potencial de dominaccedilatildeo e

servidatildeo em que as posiccedilotildees de mestre e servo podem ser alteradas mas a dominaccedilatildeo

enquanto tal permanece intocada ndash pois Bartleby natildeo concordando com as solicitaccedilotildees

que lhe satildeo impostas natildeo recusa mera e simplesmente e nada estaacute mais longe dele do

que o heroico pathos da negaccedilatildeo775 como sublinha Agamben Atraveacutes do recurso agraves

expressotildees serenidade e abandono Agamben procura designar o estado utoacutepico de

redenccedilatildeo sabaacutetica Neste ponto Agamben parece referir-se uma vez mais a Adorno

que descreve o estado de salvaccedilatildeo no qual o homem pode abster-se de agir e assim

olhar pacificamente para o ceacuteu como um animal (e como Rousseau ao longo das suas

promenades)

Talvez a verdadeira sociedade se canse do desenvolvimento e deixe por liberdade sem

aproveitar possibilidades em vez de tomar de assalto com compulsatildeo maniacuteaca estrelas

desconhecidas Para uma humanidade que jaacute natildeo conheccedila a miseacuteria amanhece algo do

deliacuterio da infrutuosidade de todas as accedilotildees ateacute entatildeo realizadas para fugir agrave miseacuteria e que

reproduziam engrandecida a miseacuteria juntamente com a riqueza [hellip] Rien faire comme

une becircte deitado sobre a aacutegua e olhar tranquilamente para o ceacuteu ser nada mais sem

outra determinaccedilatildeo ou cumprimento poderia substituir o processo o fazer o cumprir

[hellip]776

Tal consistiria pois numa vida de oacutecio que dificilmente atribuiremos ao

empresaacuterio ocupado dos tempos modernos A diferenccedila conceptual entre as formas

antigas e as formas modernas de interpretaccedilatildeo do conceito de trabalho poderaacute ser

clarificada agrave luz da anaacutelise do entendimento do conceito de oacutecio no acircmbito de uma

perspetivaccedilatildeo moderna encontramo-nos com efeito perante o cada-vez-mais e nunca-

suficiente que tende a tornar infinito o processo de produccedilatildeo e a intensificar a demanda

por desempenho Neste sentido e tendo presente os quadros antigos e modernos de

perspetivaccedilatildeo do trabalho propomos compreender e descrever o oacutecio como uma

situaccedilatildeo em que as pessoas satildeo libertadas da compulsatildeo de trabalharem aleacutem dos seus

limites impostos pela necessidade ou por inquietaccedilotildees interiores no acircmbito de uma

sociedade desenhada na modernidade tardia ndash uma sociedade que segundo Byun Chul

Han operou a mudanccedila de paradigma de uma configuraccedilatildeo disciplinar no sentido de

775 Agamben G Bartleby oder die Kontingenz Berlin 1998 p38776 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 sect100

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Foucault para uma sociedade de desempenho777 tal mudanccedila de paradigma tal como

Byun Chul Han constitui com efeito uma continuidade e natildeo propriamente uma

qualquer rutura

O inconsciente social tem evidentemente a aspiraccedilatildeo de maximizar a produccedilatildeo Atingido

um determinado niacutevel de produtividade a teacutecnica disciplinar isto eacute o esquema negativo

da proibiccedilatildeo rapidamente atinge os seus limites Devido ao incremento da produccedilatildeo o

paradigma da disciplina eacute substituiacutedo pelo paradigma de desempenho isto eacute pelo esquema

positivo do verbo ldquopoderrdquo (koumlnnenrdquo) pois a partir de um determinado niacutevel de produccedilatildeo

a negatividade de proibiccedilatildeo bloqueia e impede um novo incremento A positividade do

ldquopoderrdquo eacute muito mais eficaz do que a negatividade do ldquodeverrdquo Como tal o inconsciente

social altera-se do ldquodeverrdquo para o ldquopoderrdquo O sujeito do desempenho eacute mais raacutepido e mais

produtivo do que o sujeito disciplinar O ldquopoderrdquo natildeo anula poreacutem o ldquodeverrdquo O sujeito

do desempenho continua a ser disciplinado uma vez que jaacute passou pelo estaacutedio da

disciplina O ldquopoderrdquo aumenta o niacutevel de produtividade778

No que concerne agrave situaccedilatildeo psicoloacutegica dos indiviacuteduos da modernidade tardia

Han refere-se agraves posiccedilotildees de Alain Ehrenberg

Alain Ehrenberg situa a depressatildeo no momento de transiccedilatildeo da sociedade disciplinar para

a sociedade de desempenho ldquoA carreira da depressatildeo comeccedila no momento em que o

modelo disciplinar de controlo comportamental modelo que atribuiacutea de modelo

autoritaacuterio e reprimido um determinado papel a cada classe social e a cada um dos sexos

eacute substituiacutedo por uma norma que induz cada indiviacuteduo agrave iniciativa pessoal obrigando-o a

tornar-se a ele mesmo (hellip) O homem deprimidohellip estaacute cansado de esforccedilar-se de tornar-

se ele mesmohellip Natildeo deixa de ser controverso que Alain Ehrenberg trate a depressatildeo

apenas de um ponto de vista da economia do lsquoeu mesmorsquo (Selbst) Para o socioacutelogo

francecircs a depressatildeo decorre do imperativo social de ser o lsquoeu mesmorsquo a depressatildeo

traduziria assim a expressatildeo patoloacutegica do fracasso do indiviacuteduo em ser ele mesmo na

modernidade tardia hellip Ehrenberg natildeo aborda a violecircncia sisteacutemica inerente agrave sociedade de

empenho que provoca enfartes psiacutequicos A depressatildeo provocada por esgotamento natildeo

tem como origem o imperativo de estar entregue apenas a si mesmo mas sim de acordo

com Ehrenberg a pressatildeo por um maior desempenho779

777 Lamentavelmente o tradutor da ediccedilatildeo portuguesa do livro de Byun-Chul HanMuumldigkeitsgesellschaft (Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa2014) traduziu o termo alematildeo ldquoLeistungsgesellschaftrdquo por sociedade de produccedilatildeo o que natildeo eacutecompletamente correto neste contexto Seria preferiacutevel o recurso agrave traduccedilatildeo sociedade de empenho Aleacutemdisso o termo psicoloacutegicosocioloacutegico inconsciente social foi traduzido como o sujeito sem consciecircnciasocial o que tambeacutem nos soa inapropriado778 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 pp20-21779 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 pp21-22

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Continuamente

Alain Ehrenberg compara de modo erroacuteneo o tipo de homem da atualidade com o homem

soberano de Nietzsche ldquoO homem soberano semelhante a si mesmo e anunciado por

Nietzsche estaacute a ponto de se tornar realidade massificada Nada haacute acima dele que lhe

possa impor diretrizes ou prescriccedilotildees jaacute que se julga o uacutenico senhor de si mesmordquo Seria

precisamente Nietzsche o primeiro a dizer que o tipo de homem que se encontra a ponto de

se tornar realidade massificada natildeo corresponderia ao super-homem soberano mas sim

ao uacuteltimo homem que apenas trabalhahellipO homem depressivo eacute o animal laborans que se

explora a si mesmo780

Segundo a conceccedilatildeo aristoteacutelica de felicidade e de vida virtuosa tal quadro

traduziria uma apropriaccedilatildeo indevida da possibilidade fundamental inerente agrave perfeiccedilatildeo

humana a qual deve sim ser cumprida agrave luz do conceito de ergon de autopropoacutesito

consistindo a perfeiccedilatildeo humana na realizaccedilatildeo de um tipo de accedilatildeo que se exerce dentro

dos seus proacuteprios limites sem expansatildeo ou incremento externos Recorde-se pois que

de acordo com Aristoacuteteles a realizaccedilatildeo das accedilotildees humanas determinada segundo o

saber eacutetico da justa medida constitui a caracteriacutestica essencial da perfeiccedilatildeo e da

felicidade Correlativamente e tendo presente que o oacutecio poderia significar em traccedilos

essenciais uma situaccedilatildeo em que as pessoas poderiam ser libertadas da obrigaccedilatildeo de

ultrapassar as suas fronteiras internas seja por necessidade interior ou imposiccedilatildeo

externa a analogia do oacutecio com a paz tambeacutem poderia ser aqui pertinentemente

proposta Paz e oacutecio poderiam traduzir espaccedilos livres de possibilidades nos quais a

plenitude harmoniosa ndash no sentido de autossuficiecircncia e autossatisfaccedilatildeo ndash permite a

possibilidade de conduccedilatildeo a determinados sentidos de perfeiccedilatildeo perspetivada por sua

vez agrave luz de ideais antigos de vida praacutetica tomados como contramodelos do progresso e

do crescimento ilimitados que envolvem a nossa modernidade tardia Natildeo se trata com

efeito de proclamar mediante a proposta de um conceito de oacutecio enquanto conceito

criacutetico a aceacuterrima oposiccedilatildeo relativamente ao trabalho e agrave produccedilatildeo laboral ndash mas sim

de perspetivar o oacutecio enquanto espectro de possibilidades que permitem a libertaccedilatildeo dos

sujeitos perante a coaccedilatildeo da expansatildeo e do incremento sem fim e sem finalidade do

trabalho A liberdade do oacutecio relativamente agrave coaccedilatildeo do trabalho ndash e oacutecio neste ponto

natildeo deve ser confundido com o mero tempo livre como recreaccedilatildeo ndash constitui a liberdade

de possibilitaccedilatildeo de modos de vida boa que possua o seu fim em si mesma e que se

realiza em atividades como a arte a sociabilidade livre a contemplaccedilatildeo espiritual e a

780 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p23

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teoria781 A vida boa encontra a sua realizaccedilatildeo em si mesma sem ser orientada para

qualquer propoacutesito externo A vida boa natildeo traduz um mero tempo livre supostamente

isento de trabalho coagido ndash ela natildeo constitui uma pausa numa qualquer tarefa

exteriormente imposta ao contraacuterio a vida boa natildeo eacute uma tarefa ndash eacute um saber viver eacute

um ethos

Num contexto moderno como bem sabemos e tal como Marx o formulara a

ordem econoacutemica capitalista eacute determinada por uma loacutegica interna que obriga e

condiciona igualmente o explorador do trabalho assalariado natildeo se trata da coaccedilatildeo a

trabalhar (no sentido de trabalho assalariado) mas da coaccedilatildeo agrave acumulaccedilatildeo eterna de

capital782 Eacute necessaacuterio acumular mais-valias para vencer no sistema competitivo do

mercado Segundo Marx o capitalista afigura-se dependente da expansatildeo infinita Neste

sentido importaria elucidar a diferenccedila constitutiva entre o capitalista e o cidadatildeo livre

da polis o capitalista ele proacuteprio encontra-se sujeito a uma coaccedilatildeo a um viacutecio isto eacute o

de expandir a sua riqueza incessantemente inexoravelmente O capitalista natildeo conhece

pois verdadeiramente o oacutecio Concluir-se-ia a partir de tal posiccedilatildeo que o oacutecio ndash no

sentido eminente que decorre das formulaccedilotildees de Aristoacuteteles ndash natildeo tem lugar ou

presenccedila na modernidade capitalista O trabalho ndash que configura de modo tatildeo

dominante quatildeo inexoraacutevel o nosso mundo atual ndash natildeo decorre de uma necessidade

real natildeo conduz agrave satisfaccedilatildeo real das necessidades e natildeo traduz uma demanda por uma

produccedilatildeo significativa de bens com uma destinaccedilatildeo efetiva trata-se de um modo

distinto de um processo que visa a destruiccedilatildeo uacuteltima dos bens produzidos e vendidos de

modo a que estes sejam substituiacutedos por outros bens sempre novos ndash a loacutegica do

781 Peter Sloterdijk sobre teoria na Modernidade ldquoQuero dar a um poeta a uacuteltima palavra para articular afelicidade e a miseacuteria da vida de teoria De facto nos tempos modernos satildeo os poetas e natildeo os filoacutesofosque conseguem expressar a Dasein na epocheacute involuntaacuteria do homem melancoacutelico e a descriccedilatildeovoluntaacuteria do observador excecircntrico Deixamos o mundo muitas vezes confinado e confinante dasdisciplinas cientiacuteficas e entramos na esfera da marginalidade soberana quando lemos no Livro doDesassossego de composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboabdquoe do alto da majestade de todos os sonhos ajudante de guarda-livros na cidade de LisboaMas o contraste natildeo me esmaga ndash liberta-me e a ironia que haacute nele eacute sangue meu O que deverahumilhar-me eacute a minha bandeira que desfraldo e o riso com que deveria rir de mim eacute um clarim comque sauacutedo e gero uma alvorada em que me faccediloA gloacuteria nocturna de ser grande natildeo sendo nada A majestade sombria de esplendor desconhecido Esinto de repente o sublime do monge no ermo e do eremita no retiro inteirado da substacircncia do Cristonas pedras e nas cavernas do afastamento do mundoE na mesa do meu quarto absurdo reles empregado e anoacutenimo escrevo palavras como a salvaccedilatildeo daalma e douro-medo poente impossiacutevel de montes altos vastos e longiacutenquos da minha estaacutetua recebida porprazeres e do anel de renuacutencia em meu dedo evangeacutelico joacuteia parada do meu desdeacutem extaacuteticordquoSloterdijkP Scheintod im Denken Von Philosophie und Wissenschaft als Uumlbung Berlin 2010 pp146-147782 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 23 capiacutetulo VII

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consumo infinito encontra-se aqui a sua justificaccedilatildeo Segundo tal quadro o trabalho

tende a tornar-se um processo sem sentido vatildeo fuacutetil e inesperadamente mais proacuteximo

de acontecimentos de diversatildeo pautado por estrutura viciante e por uma loacutegica de

produccedilatildeo econoacutemica no sentido convencional Hannah Arendt descreveu este fenoacutemeno

em Vita activa da seguinte forma

O milagre econoacutemico alematildeo poderia ser um exemplo claacutessico do facto de nas condiccedilotildees

modernas a destruiccedilatildeo da propriedade privada a destruiccedilatildeo do mundo dos objetos e o

esmagamento de cidades natildeo produzirem pobreza mas sim riqueza que estes processos

de destruiccedilatildeo se transformem natildeo numa reconstruccedilatildeo dos destruiacutedos mas antes num

processo de acumulaccedilatildeo incomparavelmente mais raacutepido e mais eficaz traduz a uacutenica

condiccedilatildeo para que um determinado paiacutes seja suficientemente moderno permitindo-se

assim reagir a tal destruiccedilatildeo com um incremento da produccedilatildeo783

Nesta descriccedilatildeo de uma processualidade que atinge incrementos exponenciais de

produccedilatildeo recorrendo a formas de aniquilaccedilatildeo Hannah Arendt concebe o proacuteprio

caraacutecter distintivo da modernidade como alienaccedilatildeo radical do mundo devido a uma

totalizaccedilatildeo do conceito de trabalho784 As posiccedilotildees de Arendt ndash como que convocando

Marx ndash propotildeem a necessidade de configuraccedilatildeo de uma alternativa mais humana

nomeadamente atraveacutes da reformulaccedilatildeo da noccedilatildeo de verdadeira riqueza Eis o que

Marx escrevera sobre tal questatildeo

a verdadeira riqueza [] eacute o tempo que natildeo eacute absorvido pelo trabalho diretamente

produtivo mas pelo prazer pelo oacutecio para que decirc lugar agrave livre atividade e

desenvolvimento785

E seguidamente

Mas o tempo livre o tempo disponiacutevel eacute a proacutepria riqueza em parte destinado ao gozo dos

produtos em parte dirigida agrave livre atividade que natildeo eacute como o trabalho determinada pela

coaccedilatildeo de um propoacutesito externo que deve ser cumprido e cujo cumprimento eacute uma

necessidade natural ou um dever social786

Na sociedade ideal comunista tal como Marx a concebera a verdadeira

riqueza resultaria da potencialidade de o trabalho efetivamente necessaacuterio ser

783 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p323784 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p367785 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p252786 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p253

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minimizado ao ponto de um maacuteximo de tempo livre se tornar possiacutevel Tal significaria

uma emancipaccedilatildeo social dos indiviacuteduos com vista agrave sua proacutepria liberdade que Ernst

Bloch na sua obra Das Prinzip Hoffnung (1954) descrevera agrave luz da expressatildeo

atividade no oacutecio787 perspetivando a utopia comunista como um oacutecio ativo em todos

os campos788 A loacutegica da exploraccedilatildeo social alterar-se-ia ndash pois a limitaccedilatildeo da riqueza

material agrave satisfaccedilatildeo das necessidades efetivamente necessaacuterias conduziria agrave abdicaccedilatildeo

do tempo livre enquanto mera funccedilatildeo do trabalho e agrave fruiccedilatildeo do oacutecio na sua

determinaccedilatildeo mais eminente O oacutecio assim compreendido significaria a realizaccedilatildeo de

atividades livres de imposiccedilatildeo externa ndash tratar-se-ia enfim do cumprimento de

atividades livres e desenvolvidas segundo finalidades proacuteprias De acordo com tal visatildeo

utoacutepica da sociedade comunista o tempo livre e o oacutecio convergem no contexto de uma

minimizaccedilatildeo do trabalho necessaacuterio (Tempo livre e o oacutecio natildeo significam o mesmo O

tempo livro eacute condiccedilatildeo para o oacutecio mas natildeo suficiente) Simultaneamente o contraste

claacutessico entre trabalho e oacutecio torna-se difuso na medida em que o trabalho jaacute natildeo teria

de ser considerado essencialmente como alienado mas poderia ser entendido num

sentido profundamente emancipatoacuterio como autorrealizaccedilatildeo

Com Marx um novo conceito de oacutecio poderia assim ser associado ao conceito

de trabalho ndash pois de acordo com os dois filoacutesofos trabalho significa em verdade a

atividade humana de autorrealizaccedilatildeo cumprida segundo propoacutesitos internos e

autoacutenomos (natildeo heteroacutenomos) desvinculada da obrigaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo de objetivos

externos e livre de coerccedilatildeo externa O trabalho assim definido integra todas as

determinaccedilotildees centrais do oacutecio ndash interessantemente tal conceito de trabalho traduziria

em uacuteltima consequecircncia uma descriccedilatildeo das atividades que as pessoas fazem quando

estatildeo livres da coerccedilatildeo para trabalhar no duplo sentido de estar livre da coerccedilatildeo da

dependecircncia e da necessidade de trabalhar Mas seraacute que tal conceito de trabalho pode

realmente ser estabelecido Natildeo faraacute mais sentido sustentar abertamente que natildeo soacute o

trabalho no sentido da sociedade do desempenho merece reconhecimento social mas

tambeacutem uma vida de oacutecio sem as coaccedilotildees de produtividade que se verificam no domiacutenio

do trabalho Haacute nos dias de hoje uma tendecircncia a conceber cada vez mais aacutereas da

vida como aacutereas de trabalho a fim de poder conferir-lhes verdadeiro reconhecimento789

787 Bloch E Das Prinzip Hoffnung Frankfurt a M 1982 p1083788 Bloch E Das Prinzip Hoffnung Frankfurt a M 1982 p1080789 Krebs A Arbeit und Liebe Die philosophischen Grundlagen sozialer Gerechtigkeit Frankfurt a M2002 A autora combina aqui o conceito de reconhecimento social com o de trabalho refletindo sobre oconceito especiacutefico de um trabalho socialmente relevante O conceito de oacutecio que natildeo tem de definir oreconhecimento social por uma produccedilatildeo externa poderia ser oposto ao conceito de trabalho aqui jaacute

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ldquoTrabalho de relacionamentordquo ldquotrabalho de cuidadordquo ldquotrabalho de almardquo etc satildeo

exemplos de um desejaacutevel alargamento do conceito de trabalho com vista agrave integraccedilatildeo

dos domiacutenios das relaccedilotildees interpessoais ou da autorreferecircncia que tambeacutem merecem

reconhecimento enquanto trabalho para aleacutem das questotildees de eficiecircncia necessidade e

benefiacutecio social Atraveacutes da reformulaccedilatildeo criacutetica do conceito de oacutecio proporiacuteamos a

possibilidade de contrariar uma expansatildeo inflacionaacuteria da retoacuterica do desempenho e do

trabalho coercivo independentemente de se ter de afirmar que o proacuteprio modelo antigo

de oacutecio se baseou numa ideologia de exclusatildeo social servidatildeo e exploraccedilatildeo790

Cumpriria assim levantar a questatildeo acerca do modo como as mudanccedilas nas

formas contemporacircneas de trabalho afetam a relaccedilatildeo entre trabalho e tempo livre

Fenoacutemenos como a flexibilizaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho o trabalho de home office e o

falso autoemprego indicam que o trabalho assalariado claacutessico e por conseguinte o

horaacuterio rigoroso de trabalho e de oacutecio estatildeo a perder a sua importacircncia Ainda temos

tempo livre quando nos tornamos empresaacuterios de noacutes mesmo Byan Chul Han

responde

A sociedade do seacuteculo XXI jaacute natildeo eacute uma sociedade disciplinar mas uma sociedade de

desempenho Tambeacutem os seus habitantes natildeo satildeo nomeados ldquosujeitos de obediecircnciardquo mas

sujeitos de desempenho Satildeo empresaacuterios de si proacuteprios791

Continuamente

Reage-se a esta vida nua (e convertida em algo radicalmente efeacutemero) com a

hiperatividade e a histeria do trabalho e da produccedilatildeo A aceleraccedilatildeo atual tem tambeacutem

muito que ver com esta carecircncia de ser A sociedade de trabalho e de desempenho natildeo eacute

uma sociedade livre pois ela produz novas coaccedilotildees A dialeacutetica do senhor e do escravo

natildeo desemboca afinal numa sociedade em que cada homem eacute um ser livre passiacutevel de se

entregar ao oacutecio Ela conduz ao inveacutes a uma sociedade de trabalho em que o proacuteprio

senhor se tornou escravo do trabalho Nesta sociedade coerciva cada homem transporta

consigo o seu proacuteprio campo de trabalho forccedilado A particularidade deste campo de

trabalho forccedilado consiste no facto de cada um ser ao mesmo tempo prisioneiro e capataz

viacutetima e agressor Desta forma cada um explora-se a si mesmo792

No acircmbito de profissotildees que permitem a organizaccedilatildeo do proacuteprio tempo de

trabalho como as profissotildees artiacutesticas ou cientiacuteficas sabe-se que eacute difiacutecil traccedilar a linha

alargado790 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 p241791 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p19792 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p37

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estrita entre tempo livre e trabalho ou igualmente desenvolver um esforccedilo para impor

a si mesmo um plano de trabalho e de recuperaccedilatildeo consistente A pergunta eacute oacutebvia

podemos afirmar que tais formas de trabalho tornam o oacutecio parte integrante do proacuteprio

trabalho na medida em que permitem a isenccedilatildeo perante a coaccedilatildeo externa de trabalhar

num determinado momento ndash ou pelo contraacuterio seraacute que tais formas de trabalho

conduzem de um modo tatildeo inesperado quatildeo pernicioso agrave minimizaccedilatildeo do oacutecio de uma

forma tatildeo eficiente e tatildeo desejaacutevel no acircmbito da sociedade capitalista Talvez a resposta

mais apropriada a tal questatildeo consista natildeo obstante em formular a interrogaccedilatildeo tratar-

se-ia ainda de estar-se sujeito agrave coaccedilatildeo de trabalhar Com efeito se a coaccedilatildeo agrave

produtividade externa permanecer intacta a transferecircncia para a proacutepria organizaccedilatildeo do

dia tende a tornar-se a maximizaccedilatildeo da (auto)exploraccedilatildeo Um trabalho com oacutecio seria

somente concebiacutevel sem a coaccedilatildeo de trabalhar Entatildeo o tempo livre natildeo mais seria

necessaacuterio pois seriacuteamos soberanos do proacuteprio tempo Neste contexto a relaccedilatildeo entre

o oacutecio e a demanda sociopoliacutetica por um rendimento baacutesico incondicional793 que se

refere precisamente agrave possibilidade de circunstacircncias pautadas por uma produtividade

livre de coerccedilatildeo (para trabalhar) teria de ser considerada e elucidada A tendecircncia para

dissolver a distinccedilatildeo entre trabalho e tempo livre no entanto apresenta uma outra

faceta O tempo livre natildeo constitui apenas uma funccedilatildeo do trabalho supostamente

regeneradora da matildeo-de-obra ndash o tempo livre torna efetivos a existecircncia e o

desenvolvimento de um mercado de consumo dos produtos do trabalho Neste sentido

os tempos de recreaccedilatildeo diversatildeo prazer e relaxamento encontram-se tambeacutem eles

sujeitos a uma crescente economizaccedilatildeo nos tempos livres consome-se e compra-se o

que foi produzido no trabalho Como eacute sabido os niacuteveis de consumo verificados no

designado tempo livre aumentaram enormemente nas uacuteltimas deacutecadas Dificilmente

poder-se-ia imaginar um tempo livre sem meios eletroacutenicos de comunicaccedilatildeo e de

entretenimento sempre novos sempre mais acelerados e sempre mais capazes ou

passiacuteveis de desenvolvimento de dependecircncia nos seus utilizadores dificilmente poder-

se-ia imaginar uma (induacutestria de) cultura que natildeo esteja sujeita agraves leis das empresas

793 Curiosamente Franzmann concebe a introduccedilatildeo de um rendimento baacutesico incondicional como umademocratizaccedilatildeo do oacutecio (Franzmann M Einleitung Kulturelle Abwehrformationen gegen die Kriseder Arbeitsgesellschaft und ihre Loumlsung In Franzmann M (Ed) Bedingungsloses Grundeinkommen alsAntwort auf die Krise der Arbeitsgesellschaft Weilerswist 2010 pp 11ndash103) Com efeito Franzmannrefere-se a uma democratizaccedilatildeo pois segundo o socioacutelogo a disponibilidade estrutural do oacutecioencontra-se distribuiacuteda de forma profundamente desigual na sociedade (Franzmann M EinleitungKulturelle Abwehrformationen gegen die Krise der Arbeitsgesellschaft und ihre Loumlsung In FranzmannM (Ed) Bedingungsloses Grundeinkommen als Antwort auf die Krise der ArbeitsgesellschaftWeilerswist 2010 p37)

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rentaacuteveis de entretenimento Com a crescente pressatildeo para criar novos mercados (de

consumo) incluindo a expansatildeo da induacutestria do tempo livre a relaccedilatildeo entre trabalho e

tempo livre estaacute a ser reequilibrada nas sociedades ocidentais a relaccedilatildeo entre trabalho e

tempo livre natildeo traduz somente o resultado da lei da minimizaccedilatildeo do tempo livre (ateacute ao

limite da perda de eficiecircncia do desempenho laboral) pois neste preciso contexto o

tempo livre constitui igualmente uma variaacutevel profundamente necessaacuteria para

aumentar as vendas dos bens produzidos os assalariados precisam do tempo livre

suficiente natildeo somente para continuar a trabalhar recuperando forccedilas mas

inclusivamente para gastar os seus salaacuterios no mercado O consumo revela-se uma

segunda forma de complementaridade do trabalho aleacutem da recreaccedilatildeo

O que se encontra em causa seria pois a apreciaccedilatildeo da possibilidade de

configuraccedilatildeo de um tempo utoacutepico que possibilitaria que todos os indiviacuteduos pudessem

ter tempo disponiacutevel Tratar-se-ia pois de poder dispor do seu proacuteprio tempo

quotidiano e do seu proacuteprio tempo da vida de poder dividir o seu orccedilamento de acordo

com o tempo para si mesmo ndash dentro dos limites necessaacuterios para assegurar a produccedilatildeo

social e independentemente da separaccedilatildeo entre tempo de trabalho e tempo livre de

poder desenvolver um tempo proacuteprio e inclusivamente um tempo socialmente

dividido dependendo da situaccedilatildeo e da fase da vida Tal regime de tempo utoacutepico

permitiria a configuraccedilatildeo de modos de ldquotempo-soberanordquo de ldquotempo-autoacutenomordquo A este

respeito o conceito de oacutecio revela-se adequado para contrariar enquanto corretivo

conceptual o conceito de trabalho coercivo O conceito de trabalho poderia entatildeo ser

enriquecido (atraveacutes da exigecircncia de oacutecio e de um aumento da soberania sobre o tempo

e portanto da sua proacutepria autorrealizaccedilatildeo) precisamente no sentido da emancipaccedilatildeo

humana Estamos com efeito a usar um conceito de trabalho que estaacute muito distante de

qualquer caacutelculo de utilidade e que natildeo pode ser medido com base no reconhecimento

econoacutemico atraveacutes da remuneraccedilatildeo ou do lucro ndash um conceito de trabalho que natildeo

corresponde ao trabalho desenvolvido na sociedade da modernidade tardia no acircmbito

da qual a gestatildeo da carecircncia de tempo se exerce sob criteacuterios de eficiecircncia Neste

sentido no acircmbito da sociedade da modernidade tardia o oacutecio poderaacute ndash deveraacute ndash

constituir-se como um conceito normativo-criacutetico de particular importacircncia e soacute poderaacute

cumprir-se enquanto realidade para aleacutem de um trabalho orientado para a eficiecircncia e

para um fim racional inscrito numa loacutegica econoacutemico-social de mobilizaccedilatildeo e de

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| 281 |

Errata

Paacutegina Onde se lecirc Deve ler-se

Paacutegina 20 linha 14 Hartmut Rosa e o trabalho de

Sloterdijk

Hartmut Rosa o trabalho de

Sloterdijk

Paacutegina 25 linha 11 como um conceito eminentemente

critico

como um conceito critico

Paacutegina 142 linha 29como experiecircncia de concordacircncia

com a verdadeira essecircncia de si

mesmo e igualmente como

experiecircncia de estar de acordo com

o sentido do mundo

como experiecircncia de concordacircncia

com a verdadeira essecircncia de si

mesmo

Paacutegina 176 linha 22por uma de-temporalizaccedilatildeo por uma de-temporalizaccedilatildeo do

ldquotempo cosmoloacutegicordquo

Paacutegina 177 linha 18des-temporizaccedilatildeo de-temporalizaccedilatildeo

Paacutegina 180 linha 13tempo-pode-ser-fazer tempo-de-poder-fazer

Paacutegina 211 linha 22de-temporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo (ldquoqualitativordquo)

Paacutegina 211 linha 23des-temporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 212 linha 3 destemporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 212 linha 7 destemporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 193

nota rodapeacute

perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da

sua diferenccedila Traduzido com a

versatildeo gratis do tradutor

perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da

sua diferenccedila

Paacutegina 213 linha 29 O heroacutei da histoacuteria natildeo eacute

Jean-Jacques Rousseau

O heroacutei da histoacuteria eacute Jean-

Jacques Rousseau

| 282 |

  • Klinkert T Muszlige und Erzaumlhlen ein poetologischer Zusammenhang Vom Roman de la Rose bis zu Jorge Sempruacuten (Otium) Tuumlbingen 2016
  • | Sumaacuterio
  • | Declaraccedilatildeo de honra
  • | Agradecimentos
  • | Resumo
  • | Abstract
  • | Nota sobre traduccedilotildees
  • | Referecircncias bibliograacuteficas
Page 3: Mobilização e Aceleração no contexto da Modernidade Tardia

Dirk Michael Schmidt

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Tese realizada no acircmbito do Programa Doutoral em Filosofia

orientada pela Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2021

| 3 |

Dirk Michael Schmidt

Mobilizaccedilatildeo e Aceleraccedilatildeo

no contexto da Modernidade Tardia

Tese realizada no acircmbito do Programa Doutoral em Filosofia

orientada pela Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira

Membros do Juacuteri Presidente

Doutora Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens Travis Professora Catedraacutetica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Vogais

Doutor Joatildeo Manuel Cardoso Rosas Professor Associado da Universidade do Minho

Doutora Magda Eugeacutenia Pinheiro Brandatildeo Costa Carvalho Teixeira Professora Auxiliar da Universidade dos Accedilores

Doutor Joseacute Francisco Preto Meirinhos Professor Catedraacutetico da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Maria Joatildeo Couto Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade

do Porto

| 4 |

| Sumaacuterio

| Declaraccedilatildeo de honra 7

| Agradecimentos 8

| Resumo 9

| Abstract 10

| Nota sobre traduccedilotildees 11

| Introduccedilatildeo 12

PARTE I DIAGNOacuteSTICOS FILOSOacuteFICOS E APRECIACcedilOtildeES CRIacuteTICAS

OS CONCEITOS DE MOBILIZACcedilAtildeO E DE ACELERACcedilAtildeO e do

trabalhador

26

| Capiacutetulo 1 Sob o signo da velocidade 27

11| O ldquovelocifeacutericordquo de Goethe 28

12| Da aceleraccedilatildeo como fenoacutemeno cultural e esteacutetico 42

13| ldquoA Mobilizaccedilatildeo Totalrdquo e ldquoO Trabalhadorrdquo aproximaccedilotildees ao pensamento

de Ernst Juumlnger

49

| Capiacutetulo 2 Em torno do conceito de modernidade tardia Posturas filosoacutefico-criacuteticas 73

21| A Teoria Criacutetica e a Modernidade 74

22| A modernidade como fenoacutemeno contraditoacuterio 84

23| Zygmunt Bauman e o conceito de modernidade liacutequida 94

| 5 |

24| O pensamento filosoacutefico-social de Hartmut Rosa o conceito de aceleraccedilatildeo 105

PARTE II PARA UMA PROPOSTA DE APRECIACcedilAtildeO DO OacuteCIO ENQUANTO

CONCEITO EMINENTEMENTE CRIacuteTICO

119

| Capiacutetulo 1 O oacutecio Delimitaccedilatildeo de um conceito filosoacutefico 120

11| Primeiros delineamentos 121

12| A dicotomia histoacuterico-cultural entre trabalho e oacutecio 146

| Capiacutetulo 2 Espaccedilos e tempos do oacutecio Uma leitura cultural 157

21| Do oacutecio como categoria espacial e temporal 158

22| Pierre Hadot sobre Goethe da vivecircncia do presente como exerciacutecio

espiritual

198

23| Rousseau e a autonarrativa 210

24| O enquadramento do oacutecio 217

25| O enquadramento do idiacutelico 221

| Capiacutetulo 3 Sobre a possibilidade de inscriccedilatildeo do oacutecio no acircmbito da modernidade

tardia Um ensaio

232

| Referecircncias bibliograacuteficas 254

I Errata 282

| 6 |

| Declaraccedilatildeo de honra

Declaro que a presente tese eacute de minha autoria e natildeo foi utilizada previamente

noutro curso ou unidade curricular desta ou de outra instituiccedilatildeo As referecircncias a outros

autores (afirmaccedilotildees ideias pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da

atribuiccedilatildeo e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referecircncias

bibliograacuteficas de acordo com as normas de referenciaccedilatildeo Tenho consciecircncia de que a

praacutetica de plaacutegio e autoplaacutegio constitui um iliacutecito acadeacutemico

Porto 06 de abril de 2021

Dirk Michael Schmidt

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| Agradecimentos

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| Resumo

A analise dos conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo concebidos como

modos filosoacuteficos de considerar e de descrever a designada Modernidade Tardia

constitui a temaacutetica principal desta tese de doutoramento Eacute nosso propoacutesito fornecer

um estudo abrangente e detalhado das vaacuterias posiccedilotildees sobre mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo

desenvolvidas por filoacutesofos alematildees contemporacircneos tais como Peter Sloterdijk

Hartmut Rosa e Byung-Chul Han Atraveacutes da exposiccedilatildeo das perspetivas sobre o assunto

avanccediladas por Sloterdijk Rosa e Han ndash que compotildee o nuacutecleo da ldquoParte Irdquo desta tese de

doutoramento ndash pretendemos apresentar de modo criacutetico o mais recente (ou poder-se-

ia dizer o mais urgente) toacutepico de discussatildeo filosoacutefica no contexto cultural alematildeo e

europeu Juntamente com tal diagnoacutestico filosoacutefico relativo aos aspetos centrais da

denominada Modernidade Tardia pretenderemos desenvolver um estudo cuidado sobre

o conceito de oacutecio tomado como um conceito eminentemente criacutetico ndash este seraacute o foco

da ldquoParte IIrdquo da nossa tese de doutoramento A ausecircncia de tal conceito de oacutecio (e o seu

contraste cultural com o hegemoacutenico e omnipresente conceito de trabalho) no acircmbito da

Modernidade Tardia tal como a consideraccedilatildeo das causas de tal ausecircncia formam um

relevante toacutepico de anaacutelise nesta tese de doutoramento Este trabalho acadeacutemico destina-

se a constituir um modesto contributo para o estudo filosoacutefico da Modernidade Tardia o

nosso tempo presente a uacuteltima e definitiva palavra sobre o assunto natildeo seraacute

seguramente escrita por noacutes

Palavras-chave Mobilizaccedilatildeo Aceleraccedilatildeo Oacutecio Trabalho Modernidade Tardia

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| Abstract

The analysis of the concepts of mobilisation and acceleration regarded as

philosophical modes of considering and describing the so-called Late Modernity is the

chief subject of this PhD thesis It is our purpose to offer a comprehensive and detailed

study concerning the several positions on mobilisation and acceleration developed by

contemporary German philosophers such as Peter Sloterdijk Hartmut Rosa and Byung-

Chul Han By expounded the perspectives on the subject advanced by Sloterdijk Rosa

and Han ndash which forms the heart of ldquoPart 1rdquo of this doctoral thesis ndash we intend to

present in a critical way the most recent (or one may say the most urgent)

philosophical topic of discussion within the German and European cultural context

Along with such a philosophical diagnosis regarding the central aspects of the so-called

Late Modernity our PhD thesis is also concerned with proposing a critical perspective

on the subject accordingly we intend to develop a thorough study devoted to the

concept of leisure taken as a pre-eminently critical concept ndash this is the focus of ldquoPart

IIrdquo of our doctoral thesis The absence of such a concept of leisure (and its cultural

contrast to the hegemonic and omnipresent concept of labour) within Late Modernity

and the consideration of the causes of this absence forms a relevant topic of analysis in

this PhD thesis This academic work is intended to constitute a modest contribution to

the philosophical study of Late Modernity our present time the last and definitive word

on the subject will certainly not be written by us

Keywords Mobilisation Acceleration Leisure Labour Late Modernity

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| Nota sobre traduccedilotildees

As citaccedilotildees em inglecircs e francecircs permanecem na liacutengua original Salvo indicaccedilatildeo

em contraacuterio todas as traduccedilotildees das citaccedilotildees de obras originalmente escritas em liacutengua

alematilde apresentadas ao longo da presente tese satildeo da nossa autoria As exceccedilotildees a tal

procedimento devidamente assinaladas neste trabalho acadeacutemico constituem as

traduccedilotildees portuguesas de algumas obras de Peter Sloterdijk e de Byung-Chul Han

publicadas pela editora Reloacutegio drsquoAacutegua

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Introduccedilatildeo

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Em direccedilatildeo a oeste a movimentaccedilatildeo moderna torna-se cada vez maior de modo que paraos Americanos os habitantes da Europa na sua totalidade se apresentam como seres quegostam do sossego e dele usufruem quando estes mesmos no entanto voam em confusatildeocomo abelhas e vespas Esta movimentaccedilatildeo torna-se tatildeo grande que a cultura superior jaacutenatildeo pode madurar os seus frutos eacute como se as estaccedilotildees do ano se seguissem umas agraves outrasdemasiado depressa Por falta de sossego a nossa civilizaccedilatildeo vai dar a uma nova barbaacuterieEm nenhuma eacutepoca os ativos ou seja os irrequietos foram tatildeo considerados Reforccedilar emgrande medida o elemento contemplativo faz parte por conseguinte das necessaacuteriascorreccedilotildees que se tem de efetuar no caraacuteter da humanidade No entanto desde jaacute cadaindiviacuteduo que seja calmo e constante de coraccedilatildeo e de cabeccedila tem o direito de crer quepossui natildeo soacute um bom temperamento mas tambeacutem uma virtude de utilidade geral e que aoconservar essa atitude ateacute cumpre uma missatildeo superior

Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano

A ldquomobilidade propriamenterdquo uma ldquomobilidade aceleradardquo agrave maacutexima potecircncia natildeo eacute senatildeoo fenoacutemeno que noacutes proacuteprios apelidamos de sempre-mais-sempre-mais-para-sempre-mais oqual realmente eacute como que o englobante (mas imanente) dos vaacuterios aspetos que temosvindo a explicitar como tiacutepicos da atual era tecnoloacutegica A proacutepria loacutegica do atual poder e dosatuais fluxos comunicacionais eacute aquele fenoacutemeno que procura elevar agrave extremaexponenciaccedilatildeo Para quecirc ndash perguntar-se-aacute A resposta imediata eacute oacutebvia mas uma respostamenos imediata uma resposta de tipo ontoloacutegico talvez deva consistir em dizer que paranada

Adeacutelio Melo O bloqueio do espiacuterito na actual era tecnoloacutegica

Degraves que nous avons compris le programme de lhistoire remarque Baudrillard nous allonsplus loin quelle par lesprit ldquoEt cette mutation est due agrave une acceacuteleacuteration on essaie dallerde plus en plus vite si bien quen fait on est deacutejagrave arriveacutes agrave la fin Virtuellement Mais on y estquand mecircmerdquo Cette ruse moderniste les theacuteories de la singulariteacute aussi bien que lemouvement acceacuteleacuterationniste de Nick Srnicek et Alex Williams la reprennent agrave leur compteLa vitesse moderne qui charmait les poegravetes nest plus suffisante et les vieilles automobilessemblent bien lentes un demi-siegravecle plus tard On peut ecirctre exciteacute par la rapiditeacute des voituresactuelles dont on devine pourtant quelles sont plus lentes que celles de demain Il ne fautpas sarrecircter en chemin il faut aller encore plus vite que le mouvement actuel Ainsi lasingulariteacute technologique est-elle la repreacutesentation de lacceacuteleacuteration du progregravestechnologique jusquagrave un point au-delagrave duquel une machine supra- intelligente supplanteralintelligence humaine Le Manifeste acceacuteleacuterationniste de 2013 rejette quant agrave lui la critiquefrileuse du neacuteolibeacuteraiisme et du progregraves des techniques par la vieille gauche pour defendreson acceacuteleacuteration par la penseacutee progressiste leacutemancipation ne consiste pas agrave ralentirlintensiteacute du progregraves mais agrave aller encore plus vite que lui par la penseacutee et agrave imaginer denouveau ldquoun avenir plus modernerdquo Pour le rendre de nouveau sensible il faut surencheacuterir sursa repreacutesentation devenue trop familiegravere Il ne faut pas accepter les fatigues de lespritconservateur mais inventer plus et eacutemanci- per mieux Continuer agrave progresser comme avantcest deacutejagrave faire du surplace et bientocirct reacutegresser donc devenir reacuteactionnaire ll faut presser lepas et aller plus vite que la musique On ne progresse quagrave ce prix ldquoacceacuteleacuterer toujours leprocessus deacutevolution technologiquerdquo Bien sucircr le plaisir de lacuteacceacuteleacuteration relegraveve de la logiquede laddiction il en va de lideacutee de progregraves comme de limpression de satisfaction augmenteacuteepar la morphine

Tristan Garcia La vie intense

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ldquoAinda eacute compreensiacutevel para os seres humanos o moderno curso do mundo

desencadeado pelos homensrdquo1 ndash a interrogaccedilatildeo envolta num tom tatildeo melancoacutelico quatildeo

iroacutenico proacuteprio de quem natildeo possui esperanccedilas de obter uma resposta satisfatoacuteria eacute

avanccedilada por Peter Sloterdijk na sua obra A Mobilizaccedilatildeo Infinita publicada em 1989

Natildeo seria supeacuterfluo a este respeito chamar a atenccedilatildeo para um pequeno fait

divers editorial agrave partida filosoficamente irrelevante que envolve o tiacutetulo de tal obra de

Sloterdijk com efeito aquando da publicaccedilatildeo do livro em questatildeo o tiacutetulo inicialmente

previsto seria Eurotaoismus ndash Zur Kritik der politischen Kinetik tendo o filoacutesofo

alematildeo decidido de um modo inopinado proceder agrave sua alteraccedilatildeo a favor do seguinte

tiacutetulo (que a traduccedilatildeo portuguesa existente datada de 2002 jaacute contempla) A

Mobilizaccedilatildeo Infinita A desconcertante introduccedilatildeo do termo Eurotaoiacutesmo de pendor

porventura demasiado obscuro ou esoteacuterico no tiacutetulo de uma obra de filosofia ocidental

poderia constituir a justificaccedilatildeo da postura de recuo ou de correccedilatildeo de Sloterdijk ndash e em

verdade o prefaacutecio de tal obra escrito pelo proacuteprio oferece diversas consideraccedilotildees

acerca do desconforto com que a Academia alematilde recebera tal livro assim intitulado

No entanto do nosso ponto de vista importaria atentar de um modo mais avisado

sobre o novo tiacutetulo que se impotildee e natildeo propriamente sobre o tiacutetulo preterido a

preferecircncia por A Mobilizaccedilatildeo Infinita ndash tiacutetulo que convoca de modo aberto e

declarado um outro tiacutetulo A Mobilizaccedilatildeo Total ensaio de Ernst Juumlnger ndash poderia ser

compreendida agrave luz de uma certa premecircncia manifesta no interior do pensamento de

Sloterdijk em voltar a pensar a modernidade Justamente a premecircncia em pensar

ainda a modernidade ndash tal poderaacute ser apreciado da nossa perspetiva como uma das

posturas filosoacuteficas que marcam o pensamento de Sloterdijk e em especial os eixos

teoacutericos que estruturam as posiccedilotildees avanccediladas em A Mobilizaccedilatildeo Infinita

Uma das principais linhas de pensamento que compotildeem A Mobilizaccedilatildeo Infinita

consiste na sustentaccedilatildeo de uma afinidade essencial entre modernidade e movimento Tal

afinidade essencial poderia com justeza ser concebida como passiacutevel de configuraccedilatildeo

de uma singular definiccedilatildeo de modernidade ndash agrave luz do conceito de movimento do seu

conceito de movimento Eis o conceito que se assume como proacuteprio da modernidade

como o seu conceito definidor Sloterdijk natildeo se dispotildee a perspetivar a ceacutelebre

dicotomia antigos vs modernos que percorrera o pensamento filosoacutefico alematildeo dos

1 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p23

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seacuteculos XVIII e XIX de Winckelmann e Lessing a Schiller e Hegel e que procurara

determinar os princiacutepios culturais constitutivos do moderno a partir de um fundo de

contraste relativamente ao mundo antigo natildeo obstante poder-se-ia a este respeito

evocar o par de oposto repouso vs movimento como ilustrativo de tal dicotomia tenha-

se presente pois a eminente relevacircncia filosoacutefica do conceito de repouso no acircmbito do

pensamento antigo culminando com a metafiacutesica de Aristoacuteteles e a sua conceccedilatildeo de ser

perfeito definido pois como motor que influencia o movimento dos seres inferiores

mas determinado na sua perfetibilidade ontoloacutegica pela sua proacutepria imobilidade ndash pelo

seu repouso O sentido lacunar do movimento e da entidade que se move em direccedilatildeo a

algo que natildeo possui ou encontra em si mesma traduz uma perspetivaccedilatildeo proacutepria da

filosofia grega que natildeo encontra continuaccedilatildeo ou aprofundamento no acircmbito metafiacutesico

moderno Do mesmo modo a apreciaccedilatildeo grega do conceito de limite concebido

segundo a sua possibilidade de inteligibilidade racional e perspetivado por

conseguinte agrave luz das noccedilotildees de determinaccedilatildeo de nuacutemero e de proporccedilatildeo natildeo poderaacute

ser plenamente transposta para o pensamento moderno especialmente se tivermos em

atenccedilatildeo o enaltecimento filosoacutefico mecacircnico-fiacutesico e esteacutetico do conceito contrastante

de infinito desde Descartes ateacute Kant e aos idealistas alematildees

Tais consideraccedilotildees que natildeo consideramos fuacuteteis permitem-nos recorrendo agrave

postura filosoacutefica alematilde que animou os debates filosoacuteficos dos seacuteculos XVIII e XIX

acerca da dicotomia antigos vs modernos avaliar a possibilidade de definiccedilatildeo da

modernidade procurando vislumbrar os seus princiacutepios e eixos teoacutericos proacuteprios e

constitutivos Em A Mobilizaccedilatildeo Infinita Sloterdijk propotildee-se desenvolver esta mesma

tarefa filosoacutefica pensar a modernidade e o que a define

De acordo com a posiccedilatildeo-chave sustentada por Sloterdijk em A Mobilizaccedilatildeo

Infinita ndash a saber a alianccedila indissociaacutevel entre modernidade e movimento ndash o projeto

moderno funda-se numa singular utopia cineacutetica2 nunca antes enunciada enquanto tal

Pensar tal impensado da modernidade e desvelaacute-lo criticamente enquanto sua

determinaccedilatildeo essencial e definidora constitui o propoacutesito de Sloterdijk nesta obra

Neste sentido de acordo com o filoacutesofo a eacutepoca denominada moderna poderaacute ser

caracterizada como um momento histoacuterico-cultural desenvolvido segundo um quadro de

pensamento que integra no seu nuacutecleo uma teoria do movimento civilizador no acircmbito

da qual o curso do mundo e a accedilatildeo da humanidade se anunciam como a mesma

2 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p24

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realidade confluente Eis o projeto da modernidade a aspiraccedilatildeo tomada como passiacutevel

de realizaccedilatildeo da identidade ou da conciliaccedilatildeo ou justaposiccedilatildeo entre o movimento do

mundo e o movimento das accedilotildees da humanidade afirmada como subjetividade livre

Leia-se a este respeito Sloterdijk

[hellip] todo o movimento do mundo deve passar a ser a realizaccedilatildeo do plano que noacutes temos

dele Os nossos proacuteprios movimentos vitais passam a ser progressivamente idecircnticos ao

proacuteprio movimento do mundo o processo mundial no seu todo coincide

progressivamente com a nossa manifestaccedilatildeo de vida as coisas acontecem conforme se

pensa porque aquilo que acontece cada vez mais se realiza por noacutes o fazermos3

O projeto da modernidade assente na emergecircncia e na configuraccedilatildeo exultantes

de uma humanidade que se reconhece a si mesma como subjetividade ativa movente

livre e autoacutenoma capaz de criar o curso do mundo e da sua histoacuteria permite-nos a

proclamaccedilatildeo da modernidade como ldquopuro ser-para-o-movimentordquo4 Tal como elucida

Sloterdijk se a modernidade se anuncia como a nova eacutepoca que reuacutene as condiccedilotildees de

possibilidade de emancipaccedilatildeo do ser humano da sua situaccedilatildeo de menoridade e como

tal como novo tempo que permite cumprir o movimento de autolibertaccedilatildeo da

humanidade importaria concluir que nos encontramos com efeito perante um processo

que ldquonoacutes pura e simplesmente natildeo podemos natildeo querer e de um movimento que nos eacute

impossiacutevel natildeo fazermosrdquo5

A transposiccedilatildeo do conceito fiacutesico-mecacircnico de movimento para o acircmbito

filosoacutefico-cultural ndash elevado a princiacutepio ou primado definidores dos novos tempos

modernos ndash constituiacutera assinala Sloterdijk um gesto ilustre eminentemente eacutetico Tal

como nos elucida o filoacutesofo a cineacutetica eacute a eacutetica da modernidade ndash de que forma Tenha-

se presente a este propoacutesito a interseccedilatildeo entre o projeto eacutetico da modernidade ndash a

proclamaccedilatildeo da saiacuteda da humanidade da sua situaccedilatildeo de menoridade mediante a

afirmaccedilatildeo da sua liberdade ndash e a cineacutetica ndash a assunccedilatildeo de um conceito de subjetividade

que se carateriza pelas suas potencialidades de atividade e de produccedilatildeo do mundo e da

sua histoacuteria enquanto espaccedilo de liberdade Em verdade a modernidade definira-se

desde o seu iniacutecio como ldquoprogressiva e progressistardquo6 na sua forma de execuccedilatildeo e

cumprimento de si a noccedilatildeo de progresso um dos elementos mais estruturantes do

ideaacuterio da modernidade assinala a dimensatildeo eacutetica da cineacutetica trata-se pois da

3 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p24-254 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p335 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p346 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p31

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possibilidade de realizaccedilatildeo concreta do automovimento da subjetividade na sua

atividade e na sua liberdade constitutivas Assim a curiosa fusatildeo entre moralidade e

fiacutesica-mecacircnica caracteriacutestica da modernidade resulta numa unidade de accedilotildees que se

designa por subjetividade ndash perspetivada por seu turno como ldquomisteriosa forccedila de

iniciativa que se manifesta como a capacidade de pocircr em marcha novas seacuteries de

movimento intituladas accedilotildeesrdquo7 No mesmo tom esclarece Sloterdijk

A experiecircncia de um progresso real ensina-nos que uma iniciativa humana prenhe de

valores sai lsquopara fora de sirsquo rebenta com os antigos limites da sua mobilidade alarga o seu

campo de accedilatildeo e se impotildee com boa consciecircncia frente a entraves internos e a resistecircncias

externas8

A argumentaccedilatildeo de Sloterdijk assume de um modo crescente uma tonalidade

luacutegubre mas nem por isso menos incisiva agrave medida que a sua critica da utopia cineacutetica

da modernidade se delineia e se aprofunda Convocando uma metaacutefora de Novalis

apresentada em Cristandade e a Europa de 1799 Sloterdijk perspetiva tal subjetividade

em movimento como o moleiro no moinho que se moacutei a si mesmo dos tempos modernos

tal como o esclarece Sloterdijk a metaacutefora de Novalis que servira para designar o novo

princiacutepio de funcionamento do complexo homem-maacutequina-natureza ldquoque fora posto em

marcha por meros Eus-empresaacuterios prosaicamente automovidos por protestantes

Britacircnicos Prussianos e professoresrdquo9 constitui a primeira formulaccedilatildeo filosoacutefica do

conceito de utopia cineacutetica que define a modernidade a imagem do moinho no seu

perpetuum mobile ldquoque eacute movido pela corrente do acaso e vai flutuando sobre elardquo10

ilustra uma mobilidade ldquoem que o elemento dinacircmico eacute ao mesmo tempo o

desconsolador uma deriva propulsionada pelo Eu em direccedilatildeo ao que eacute insensato

catastroacutefico desenfreado mortalrdquo11 Segundo Sloterdijk a metaacutefora de Novalis repleta

de teor diagnoacutestico soacute hoje poderaacute ser compreendida em todo o seu alcance No

contexto da modernidade tardia que nos envolve eacute-nos permitido sob a forma de

lamento tomar consciecircncia daquilo que a subjetividade ldquoconsegue fazer na sua

maacutequinardquo12 no acircmbito do seu automovimento infinito agrave sombra de um progresso que se

revela natildeo mais do que curso decadente movimento vazio para mais movimento vazio

7 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p328 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p329 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3510 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3511 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p3512 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p36

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imposto por uma capacidade de movimento cada vez mais acelerada e incrementada e

reconhecida tanto como fuacutetil quanto como desastrosa

A postura filosoficamente exultante dos iniacutecios do projeto da modernidade ndash o

seu projeto eticamente eminente pois assente na aspiraccedilatildeo de cumprimento de

emancipaccedilatildeo da humanidade na sua atividade e na sua liberdade ndash afigura-se no acircmbito

da modernidade tardia em que vivemos como um sentimento perdido A perspetivaccedilatildeo

do curso do movimento do mundo e da humanidade confluindo na mesma realidade ndash e

concebido agrave luz da ilustre conceccedilatildeo de progresso ndash adquire os contornos de um mal-

estar tatildeo imprevisto quatildeo inexoraacutevel Leia-se Sloterdijk a este respeito

As consequecircncias do moderno processo mundial que caminham por si proacuteprias ndash eacute o que

noacutes vemos com crescente mal-estar ndash apoderam-se dos projetos controlados e da parte

essencial do empreendimento da Modernidade da consciecircncia do automatismo espontacircneo

e guiado pela razatildeo irrompe um fatal movimento estranho que nos escapa em todas as

direccedilotildees Aquilo que parecia uma saiacuteda controlada para a liberdade revela-se agora como

um resvalar para uma incontrolaacutevel heteromobilidade catastroacutefica13

Segundo Sloterdijk tal sentimento de indeleacutevel mal-estar traduz uma situaccedilatildeo de

nova e inesperada passividade da subjetividade que agora se reconhece a si mesma

como viacutetima porque produtora do controlo perdido do movimento do mundo ndash

transformado num mero automatismo cineacutetico ndash que resulta tambeacutem ser o movimento-

de-si-mesma Tal passividade da subjetividade que se verifica no ldquomundo

historicamente movimentadordquo14 poderaacute ser descrita agrave luz de uma nova e inusitada

situaccedilatildeo de perda de autonomia o movimento do mundo conquanto produzido no

decurso do movimento proacuteprio da subjetividade enquanto tal afigura-se todavia como

uma entidade outra estranha opressora ndash numa palavra uma entidade heteroacutenoma

relativamente agrave subjetividade Neste acircmbito procurando delinear modos de anaacutelise de

tal sentimento de mal-estar perante o curso do mundo subjetivamente produzido

marcado por uma opressiva mobilidade indelevelmente acelerada e incrementada

Sloterdijk introduz o termo mobilizaccedilatildeo [Mobilmachung] evocando de modo expliacutecito

a noccedilatildeo avanccedilada por Ernst Juumlnger

A referecircncia aberta a Juumlnger tal como a apresenta Sloterdijk afigura-se envolta

de subtis cuidados justificativos que traduzem e reforccedilam em verdade a pertinecircncia da

13 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 pp25-2614 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p28

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menccedilatildeo a obra de Juumlnger perspetivada pela tradiccedilatildeo cultural que lhe eacute posterior como

maldita suspeita de preconizadora de fascismo e como tal mais odiada do que

rigorosamente lida e discutida pela intelligentsia ndash assim o assume Sloterdijk ndash conteacutem

as bases seminais da anaacutelise seacuteria e filosoficamente delineada acerca do fenoacutemeno da

mobilizaccedilatildeo enquanto realidade inscrita na totalidade do processo social natildeo obstante a

sua origem beacutelica e militar Trata-se justamente do ensaio A Mobilizaccedilatildeo Total de

1930 (e na sequecircncia desta obra O Tabalhador) Tal como elucida Sloterdijk as

anaacutelises de Juumlnger datando da deacutecada de 1930 constituem um espetro de

perspetivaccedilotildees suscetiacuteveis de compreensatildeo do fenoacutemeno da mobilizaccedilatildeo como realidade

moderna devendo merecer as melhores atenccedilotildees dos filoacutesofos do nosso tempo ndash ainda

que tais pontos de vista natildeo sejam compatiacuteveis com o ldquosono dos justos no projeto da

Modernidaderdquo

A convocaccedilatildeo do mal-afamado pensamento de Ernst Juumlnger no que respeita agrave

questatildeo da avaliaccedilatildeo da utopia cineacutetica da modernidade ndash e natildeo se transformam todas as

utopias em distopias ndash poderaacute ser tomado como um modo de afirmaccedilatildeo de uma certa

excentricidade teoacuterica de Sloterdijk Todavia para o filoacutesofo alematildeo a criacutetica

contemporacircnea da modernidade deveraacute desenvolver-se em torno da problemaacutetica da

mobilizaccedilatildeo perspetivada como ldquoprocesso autoacutegeno da Modernidaderdquo15 impelindo ao

delineamento de criacutetica alternativa da modernidade enquanto criacutetica da falsa

mobilidade Tal consiste com efeito num dos projetos mais relevantes da filosofia de

Sloterdijk a configuraccedilatildeo de uma nova teoria criacutetica que no caso singular de A

Mobilizaccedilatildeo Infinita se assume como teoria criacutetica do movimento no momento da

modernidade tardia isto eacute no momento do autorreconhecimento da modernidade ldquono

seu lado sofridordquo16 A este respeito leia-se Sloterdijk esclarecendo o seu proacuteprio projeto

filosoacutefico

Assim a criacutetica da sociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se apoacutes a

derrocada do marxismo e depois do ambiacuteguo ensurdecimento das escolas de Frankfurt

ainda pode haver uma terceira versatildeo de teoria criacutetica de um tipo exigente entatildeo com

certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica do movimento17

15 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p4116 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p4217 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 p41

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A tese de doutoramento que aqui apresentamos intitulada Mobilizaccedilatildeo e

Aceleraccedilatildeo no contexto da Modernidade Tardia integra a aspiraccedilatildeo de constituir-se

como o ensaio ou a tentativa de delineamento de resposta ao apelo ou ao repto de

Sloterdijk Eacute pois nosso propoacutesito pensar a modernidade tardia agrave luz das categorias de

mobilizaccedilatildeo [Mobilmachung] e de aceleraccedilatildeo [Beschleunigung] ndash aqui tomadas como

conceitos filosoficamente definidores e estruturantes dos tempos que vivemos ndash

partindo de um ponto de vista que convoca as mais recentes posiccedilotildees avanccediladas pela

filosofia poliacutetica e social Com efeito a perspetivaccedilatildeo criacutetica das omnipresentes e

volaacuteteis mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo da modernidade tardia constitui uma das temaacuteticas

culturais mais prementes dos nossos dias configurando-se como uma nova e intensa

problemaacutetica de discussatildeo em torno da qual um singular panorama filosoacutefico tatildeo

complexo quatildeo vasto e abrangente se impotildee e se delineia poder-se-ia a este respeito

nomear a teoria dromoloacutegica de Virilio18 o trabalho de Lipovetsky19 e Garcia20 na

Franccedila a teoria da aceleraccedilatildeo de Hartmut Rosa21 e o trabalho de Sloterdijk22 e Byun

Chul Han23 na Alemanha as posiccedilotildees de Baumann24 em Inglaterra e de Ferraris25 em

Itaacutelia

O especto de teorizaccedilotildees que compotildee o nosso quadro de pensamento poderaacute ser

traccedilado desde Ernst Juumlnger e Peter Sloterdijk ndash cujas perspetivaccedilotildees acerca do conceito

de mobilizaccedilatildeo concentraratildeo as nossas melhores atenccedilotildees ndash ateacute aos filoacutesofos alematildees

contemporacircneos Hartmut Rosa e Byun-Chul Han ndash cujas posiccedilotildees acerca da temaacutetica da

aceleraccedilatildeo considerada como conceito filosoacutefico receberaacute da nossa parte uma anaacutelise

que se pretende cuidada e exaustiva Os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo

criticamente avaliados do ponto de vista filosoacutefico permitir-nos-atildeo o desenho dos eixos

18 Virilio P Vitesse et Politique essai de dromologie Paris 1977 Virilio P Dromologie logiquede la course Paris 199119 Lipovetsky G Le Bonheur paradoxal essai sur la socieacuteteacute dhyperconsommation Paris 2006Lipovetsky G LrsquoEmpire de leacutepheacutemegravere la mode et son destin dans les socieacuteteacutes modernes Paris 1987Lipovetsky G LEgravere du vide Paris 1983 Lipovetsky G Les Temps hypermodernes Paris 2004 20 Garcia T La vie intense Une obsession moderne Paris 201621 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 Rosa H RessonanzBerlin 2016 Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 201822 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Lisboa 2002 23 Han B-C A Sociedade de Transparecircncia Lisboa 2014 Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo TradGilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014 Han B-C O Aroma do tempo Lisboa 2016 Han B-CPsicopolitica Lisboa 201524 Bauman Z Liquid Fear Cambridge 2006 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 200725 Ferraris M Mobilizaccedilatildeo Total Lisboa 2018

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culturais que determinam o periacuteodo histoacuterico que nos envolve e sobre o qual

ensaiaremos pensar a modernidade tardia

Segundo Rosa a tendecircncia de aceleraccedilatildeo constitui-se como caracteriacutestica de toda

a modernidade todavia importaria distinguir no que concerne ao conceito de

modernidade a designada modernidade tardia ndash eacutepoca sobre a qual nos deteremos de

um ponto de vista filosoacutefico-criacutetico ndash da modernidade dita claacutessica A expectativa

acerca de um futuro melhor ndash uma das facetas do progresso da modernidade ndash que

marcara o periacuteodo anterior agraves deacutecadas de 1960 e 1970 acabou por desmoronar-se a tal

ponto que a experiecircncia do progresso linear se tornara nas uacuteltimas deacutecadas ndash assim

sublinha Rosa ndash a experiecircncia de uma celeridade sem sentido

Tanto no aspeto individual quanto no aspeto coletivo trata-se pois da transiccedilatildeo de um

movimento experimentado por uma dinamizaccedilatildeo sem direccedilatildeo que evoca por sua vez a

sensaccedilatildeo de paralisaccedilatildeo apesar de ndash ou justamente devido a ndash uma dinacircmica de aumento

dos acontecimentos26

A pergunta sobre a causa e o modo como lidar com este processo de aceleraccedilatildeo e

mobilizaccedilatildeo ndash pergunta agrave qual os trabalhos de Rosa procuram responder e que mereceraacute

no acircmbito da presente tese a nossa atenccedilatildeo ndash deveraacute ser analisada com o devido

cuidado Tomando esta pergunta como ponto de partida Rosa retoma a proposta de

Peter Sloterdijk acerca da necessidade de desenvolver a teoria criacutetica agrave luz desta mesma

orientaccedilatildeo ndash ou seja a do questionamento criacutetico acerca da aceleraccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo

(ou nas palavras de Sloterdijk a cineacutetica) enquanto eixo definidor da modernidade

Ten years ago an analogous idea was advanced byhellip Peter Sloterdijk who attempted to

develop a new critical theory of ldquopolitical kineticsldquo conceived as a third version of critical

theory after Marx and the Frankfurt School In Sloterdijkacutes view both earlier versions of

critical theory ultimately failed because they misunderstood and uncritically supported the

kinetic forces of modernity which set everything in motion until they ultimately achieve a

state of bdquototal mobilizationldquo (bdquototale Mobilmachungldquo) a warlike state where everything is

determined by the logic of speed [hellip] Nonetheless we believe that something useful can

be retrieved from his otherwise highly problematic reformulation of critical theory27

Detendo-se sobre a proposta de Sloterdijk Rosa delineara o seu ensaio

Aceleraccedilatildeo e Alienaccedilatildeo Esboccedilo de uma teoria criacutetica da temporalidade na

26 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p43727 Rosa HScheuerman W High-Speed Society Social Acceleration Power and ModernityPennsylvania University Park 2009 p15

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modernidade tardia (Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen

Theorie spaumltmoderner Zeitlichkeit) 28 no qual apresenta uma teoria da modernidade que

procura ligar e dar continuidade agrave teoria criacutetica A concordacircncia com a visatildeo de Axel

Honneth de que a identificaccedilatildeo de patologias sociais constitui um objetivo central natildeo

soacute da teoria criacutetica enquanto tal mas tambeacutem da filosofia social29 poderaacute ser assinalado

como um dos pontos teoacutericos centrais do ensaio de Rosa30 O filoacutesofo contrasta pois o

conceito de alienaccedilatildeo ndash tomado como uma patologia da modernidade criada pela

aceleraccedilatildeo ndash com o conceito de ressonacircncia aqui apresentado como o epiacutetome de uma

28 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen Theorie spaumltmodernerZeitlichkeit Frankfurt aM 201329 Enquanto subdisciplina da filosofia praacutetica a filosofia social interroga sobre o modo como as pessoasvivem e agem e como devem viver e agir A filosofia social natildeo considera as pessoas como indiviacuteduosisolados mas como membros de um mundo social que dependem de formas bem-sucedidas decoexistecircncia sob um modo que natildeo eacute apenas instrumental ndash isto eacute enquanto zoon politikon A filosofiasocial aborda assim a forma adequada das nossas instituiccedilotildees e praacuteticas sociais indagando ateacute que pontoestas podem promover ou minar as possibilidades de os indiviacuteduos de desenvolverem uma boa vidaPois se soacute pode ser indiviacuteduo em sociedade entatildeo enquanto ser genuinamente social o indiviacuteduodesenvolve sempre em conjunto os preacute-requisitos supra-individuais das suas accedilotildees individuais (Jaeggi RCelikates R Sozialphilosophie Eine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017 p11) A filosofia social surge destemodo como que focada numa tese exigente O social ndash praacuteticas sociais instituiccedilotildees e relaccedilotildees ndash deveser entendido como uma condiccedilatildeo constitutiva de individualidade e de liberdade Natildeo obstante a suaproximidade agrave sociologia a filosofia social difere desta por desenvolver uma reflexatildeo normativamenteorientada sobre o funcionamento das instituiccedilotildees sociais bem como sobre as patologias sociais ou sejaos desenvolvimentos mal orientados e as crises (Jaeggi R Celikates R Sozialphilosophie EineEinfuumlhrung Muumlnchen 2017 p11) Aleacutem disso a filosofia social coloca questotildees metodoloacutegicas esocioloacutegicas fundamentais o que em alguns aspectos a torna uma instacircncia de metarreflexatildeo da teoria-social da sociolologia e das ciecircncias sociais (HollisM Soziales Handeln Berlin 1995 Risjord MPhilosophy of Social Science London 2014) Num contexto alematildeo a filosofia social em contraste como contexto anglo-americano distingue-se da filosofia poliacutetica (apesar de todas as sobreposiccedilotildees) natildeo soacutepelo seu enfoque mais amplo nos fenoacutemenos sociais (em oposiccedilatildeo aos fenoacutemenos poliacutetico-institucionais)mas tambeacutem pelo facto de se esforccedilar por uma anaacutelise soacutecio-teoacuterica e soacutecio-ontoloacutegica da estrutura e dadinacircmica das relaccedilotildees sociais Deste modo a filosofia social estende-se tambeacutem para aleacutem da filosofiapraacutetica no sentido mais restrito devido ao seu interesse numa classificaccedilatildeo avaliativa dos fenoacutemenossociais a filosofia social natildeo se preocupa apenas com o significado normativo das praacuteticas e instituiccedilotildeessociais mais do que uma teoria puramente normativa a filosofia social interessa-se pela descriccedilatildeoempiacuterica e pela penetraccedilatildeo conceptual do mundo social com as suas situaccedilotildees problemaacuteticas especiacuteficas(Dewey J Syllabus Social Institutions and the Study of Morals (1923) Em Middle Works Vol 15Carbondale 1983 p 230-373 Ferrara A The Idea of a Social Philosophy Em Constellations 9 (2002)3 p 419-435 Pollmann A Integritaumlt Aufnahme einer sozialphilosophischen Personalie Bielefeld2005) A filosofia social eacute assim definida tanto por uma determinada aacuterea temaacutetica como por umadeterminada abordagem Em parte concentra-se em fenoacutemenos que natildeo satildeo tidos em conta por outrasdisciplinas a configuraccedilatildeo das instituiccedilotildees e praacuteticas sociais bem como os problemas sociais que surgemna interface entre o indiviacuteduo e a sociedade Por outra parte a filosofia social analisa os mesmosfenoacutemenos ndash tais como os problemas no trabalho e de comercializaccedilatildeo ndash sob uma perspetiva diferenteDeste modo mesmo conceitos centrais como liberdade ou poder afiguram-se compreendidos deforma muito diferente em filosofia social do que em filosofia poliacutetica se atentarmos especialmente sobreo contexto alematildeo (Jaeggi R Celikates R Sozialphilosophie Eine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017p11)Por contraste a filosofia social no contexto anglo-saxoacutenico eacute frequentemente equiparada agrave filosofiapoliacutetica Segundo Rahel Jaeggi uma das representantes da quarta geraccedilatildeo da Escola de Frankfurt a ideiade uma espeacutecie de divisatildeo de trabalho entre filosofia poliacutetica e filosofia social tambeacutem poderia serenganadora pois natildeo eacute faacutecil distinguir entre fenoacutemenos de vida social que tambeacutem incluem aacutereas como afamiacutelia situados abaixo das instituiccedilotildees de coexistecircncia politicamente constituiacutedas e a aacuterea maisestreita dos fenoacutemenos das instituiccedilotildees poliacuteticas ou estatais (Jaeggi R Celikates R SozialphilosophieEine Einfuumlhrung Muumlnchen 2017p13)

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vida natildeo-alienada31 (Rosa utiliza o conceito de alienaccedilatildeo natildeo somente no contexto do

trabalho mas tambeacutem no acircmbito de outros contextos da vida na modernidade tardia

mobilizada e acelerada)

A teoria da ressonacircncia de Rosa foi recebida e discutida de forma controversa32

Com efeito a derivaccedilatildeo abrangente do conceito de ressonacircncia a partir de uma

variedade de perspetivas e contextos foi alvo de profunda condenaccedilatildeo por parte de

diversos leitores que invocaram por seu turno o facto de o conceito de ressonacircncia

supostamente parecer arbitraacuterio como que carecendo de precisatildeo e de realidade e em

uacuteltima anaacutelise afigurar-se inadequado enquanto conceito soacutecio-filosoacutefico baacutesico33 tal

como Rosa o pretenderia inicialmente sustentar Um outro ponto de criacutetica diz respeito

ao suposto recurso de Rosa ao universo intelectual do Romantismo34 Natildeo obstante

cumpria esclarecer que embora Rosa se refira em muitos casos agrave sensibilidade

ressonancial do Romantismo (em contradiccedilatildeo deliberada com conceitos racionalistas) o

filoacutesofo adverte tambeacutem que de acordo com a mundividecircncia do Romantismo a

prevalecircncia eacute concedida agrave emoccedilatildeo puramente subjetiva e interior ao inveacutes da

ressonacircncia com o mundo exterior35 Poder-se-ia com justeza e rigor afirmar que na

teoria da ressonacircncia de Rosa a relaccedilatildeo ou a convocaccedilatildeo do Romantismo natildeo se traduz

numa postura de sustentaccedilatildeo ou propagaccedilatildeo de um retorno aos ideias ou agrave

mundividecircncia de tal periacuteodo cultural mas sim numa descriccedilatildeo seacuteria e destituiacuteda de

qualquer bizarra exultaccedilatildeo do efeito continuado dos conceitos romacircnticos de

ressonacircncia na modernidade36

A abordagem de Rosa assume um papel especial em relaccedilatildeo a outras tentativas

proeminentes de atualizaccedilatildeo da teoria criacutetica Honneth e Jaeggi poderiam sem

dificuldade concordar sobre um meta-criteacuterio que determinaria qual a melhor teoria

30 HonnethA Pathologierı des Sozialen Frankfurt aM1994 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 p27031 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p14732 Brumlik M Resonanz oder Das Ende der kritischen Theorie In Blaumltter fuumlr deutsche undinternationale Politik Mai 2016 Berlin 2016 p 120ndash123 Peters C-H- Schulz P Resonanzen undDissonanzen Hartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 Wils J-P ResonanzIm interdisziplinaumlren Gespraumlch mit Hartmut Rosa Baden-Baden 201833 HartmannM Im Resonanzhafen bekommt die Welt ein anderes Gesicht In Frankfurter AllgemeineZeitung 5 April Frankfurt 201634 Taylor C Resonanz und die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und DissonanzenHartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249-27035 Hartmut Rosa Resonanz Berlin 2016 p 47936 Hartmut Rosa Resonanz Berlin 2016 p 600

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criacutetica da sociedade nomeadamente no que concerne ao seu grau de reflexividade37

Para Rosa de modo distinto o criteacuterio apropriado parece avaliar quatildeo bem uma teoria

consegue descrever condiccedilotildees que contradizem uma necessidade baacutesica da natureza

humana (considerando no entanto que a natureza humana natildeo deveraacute ser entendida

de forma substancialista38) Aleacutem disso Rosa propotildee aprofundar a visatildeo da filosofia

social no que respeita agraves experiecircncias da proacutepria existecircncia corporal e corpoacuterea

enfatizando este seu desiderato em contraste com o paradigma intersubjectivista de

reconhecimento de Honneth39

Neste ponto um conceito moderno de autonomia poderia ser especificado de

vaacuterias maneiras e Rosa salienta uma caracteriacutestica da conceptualizaccedilatildeo acerca da

autonomia no acircmbito de filosofia social40 nomeadamente a privatizaccedilatildeo da questatildeo da

boa vida41 Daqui decorreria que ldquoo imperativo normativo se mede pela distribuiccedilatildeo

dos recursos [] ndash e eacute sempre melhor ter mais do que ter menosrdquo42 Se a proacutepria

normatividade da filosofia social exige um mero mais quantitativo de recursos entatildeo

tal como Rosa assinala a filosofia social parece encontrar-se na ausecircncia de uma

postura de questionamento criacutetico dos processos abrangentes de aceleraccedilatildeo ndash pois em

uacuteltima instacircncia e paradoxalmente parece que ela mesmo os coproduz ou pelo menos

os corrobora Ao inveacutes de medir a qualidade de vida com base em recursos e opccedilotildees o

foco da filosofia social deveraacute ser segundo Rosa a relaccedilatildeo com o mundo a

renovaccedilatildeo da teoria criacutetica tal como Rosa a propotildee deveraacute orientar-se e desenvolver-se

agrave luz da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoSe a aceleraccedilatildeo eacute o problema entatildeo a ressonacircncia eacute talvez

a soluccedilatildeordquo43

No acircmbito da presente tese de doutoramento a pergunta formulada por Rosa ndash o

modo como eacute possiacutevel lidar com este processo de aceleraccedilatildeo ndash e a que ele procurara

responder delineando a sua teoria da ressonacircncia como uma teoria ldquoabrangenterdquo44

constituiraacute igualmente um dos eixos teoacutericos definidores ou estruturantes Todavia

este nosso trabalho acadeacutemico proporaacute uma outra tentativa de resposta agrave mesma

37 Honneth A Gerechtigkeit und kommunikative Freiheit Uumlberlegungen im Anschluss an Hegel InSubjektivitaumlt und Anerkennung Paderborn 2004pp 213ndash227 Jaeggi R Kritik von LebensformenBerlin 201438 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p30139 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p33340 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p4941 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p1742 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p4943 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p3944 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p21

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interrogaccedilatildeo convocando desde um ponto de vista filosoacutefico outras teorias que talvez

possamos designar como ldquoclaacutessicasrdquo e que se desenvolveram na antiguidade ndash

referimo-nos pois ao conceito de oacutecio que sob o nosso olhar se apresentaraacute como um

conceito eminentemente criacutetico

Relativamente agrave estrutura interna da presente tese importaria esclarecer que a

mesma integra duas partes temaacuteticas a primeira parte seraacute dedicada ao diagnoacutestico

filosoacutefico dos conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo bem como agrave anaacutelise de distintas

posturas filosoacutefico-criacuteticas acerca da modernidade tardia ndash conceito este que tambeacutem

seraacute objeto de atenta consideraccedilatildeo e a segunda parte a mais longa constituiraacute a

tentativa de proposta de elaboraccedilatildeo do conceito de oacutecio ndash filosoficamente determinado

- como conceito eminentemente criacutetico perspetivado agrave luz da possibilidade da sua

inserccedilatildeo no acircmbito de uma teorizaccedilatildeo criacutetica acerca da modernidade tardia A

contraposiccedilatildeo cultural entre os conceitos de oacutecio e de trabalho seraacute igualmente um

elemento de cuidada discussatildeo O momento final da tese que aqui se apresenta

integraraacute pois um ensaio de indagaccedilatildeo de eventuais soluccedilotildees criacuteticas para as

problemaacuteticas de filosofia social e poliacutetica analisadas no acircmbito deste trabalho

acadeacutemico

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PARTE I

___

Diagnoacutesticos filosoacuteficos e apreciaccedilotildees criacuteticas

Os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo

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Capiacutetulo 1

Sob o signo da velocidade

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11 | O ldquovelocifeacutericordquo de Goethe

Poreacutem tudo meu caro amigo eacute hoje ultra45 tudo transcende ininterruptamente tanto nopensamento como na accedilatildeo Jaacute ningueacutem se conhece ningueacutem percebe o elemento no qualflutua e reage ou a mateacuteria com a qual trabalha Os jovens vecircem-se afligidos demasiadocedo e depois integrados no ceacutelere voacutertice do tempo riqueza e velocidade satildeo aquilo que omundo mais admira e deseja o mundo instruiacutedo conta com caminhos de ferro correioexpresso barcos a vapor e todas as possiacuteveis comodidades de comunicaccedilatildeo para se superarhellip

JW von Goethe ldquoCarta a Zelterrdquo 1825

Com o enorme aceleramento da vida o espiacuterito e o olhar acostumam-se a ver e ajulgar parcial ou erradamente e cada qual se assemelha ao viajante que conheceterras e povos pela janela do comboio

Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano

Ateacute que ponto e de que modo os conceitos de mobilizaccedilatildeo e de aceleraccedilatildeo (ou

eventualmente de incremento)46 quando considerados do seu ponto de vista filosoacutefico

e assim desenvolvidos no acircmbito de uma filosofia poliacutetica e social ndash poderatildeo ser

compreendidos agrave luz da sua inserccedilatildeo no contexto da modernidade tardia Poderatildeo tais

conceitos e as realidades que referem ser perspetivados como traccedilos definidores ou

caracteriacutesticos da histoacuteria cultural da modernidade tardia ndash se sim de que modo

Segundo Marshall Berman a modernidade alcanccedila a sua primeira expressatildeo artiacutestica no

Fausto de Goethe47 O episoacutedio de Fileacutemon e Baucis eacute evocado como exemplar o

destino das duas figuras simboacutelicas do mundo antigo pautado pela perenidade eacute

desafiado pelo espiacuterito inquieto e movente de Fausto Com este episoacutedio integrado na

segunda parte de Fausto Goethe como que propotildee a conclusatildeo de que dos

comportamentos precipitados resultam de modo inexoraacutevel o erro e a violecircncia48

Fausto erra porque se precipita porque eacute incapaz devido agrave sua impaciecircncia inquieta de

45 Sobre a influecircncia linguiacutestica crescente do prefixo ldquoultrardquo num contexto alematildeo consultar Dewitz H-G Briefwechsel zwischen Goethe und Zelter in den Jahren 1799 bis 1832 Muumlnchen 1998 p67346A palavra Steigerung (que poderiacuteamos traduzir por ldquoincrementordquo) ndash proposta por Hartmut Rosa parapensar a modernidade tardia ndash natildeo possui com efeito uma palavra correspondente em portuguecircs Poderiasignificar ldquofazer maisrdquo num sentido quantitativo ou tambeacutem num sentido qualitativo Linguisticamente otermo significa ldquoa comparaccedilatildeo de um adjetivordquo podendo tambeacutem significar o melhoramento dodesempenho crescimento intensificaccedilatildeo aprimoramento expansatildeo e incremento47 Berman M All That Is Solid Melts Into Air The Experience of Modernity New York 1988 Marianne Gronemeyer tambeacutem concebe a tiacutepica expressatildeo do ideal de vida moderno segundo a ausecircnciapermanente de descanso e de tranquilidade a partir de Fausto Gronemeyer M Das Leben als letzteGelegenheit Darmstadt 1996 p122

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ser perspicaz no momento certo Fausto parece servir-se sempre ndash com a ajuda de

Mefistoacutefeles ndash das perversidades da violecircncia49 Jaacute a elas havia recorrido na primeira

parte da trageacutedia no que concerne ao assassinato do irmatildeo de Margarida Agora na

segunda parte apoacutes a morte de Fileacutemon e Baucis Fausto apercebe-se ndash tarde demais ndash

da consequecircncia fatal da sua precipitaccedilatildeo ldquoFoi lesta a ordem mais lesto o fimrdquo50 Na

recusa do presente por um futuro antecipado e velocifeacuterico51 de Fausto Goethe prevecirc

igualmente outro fenoacutemeno da precipitaccedilatildeo que Heidegger retrata em ldquoSer e Tempordquo a

preocupaccedilatildeo [Sorge] A preocupaccedilatildeo como personificaccedilatildeo de uma consciecircncia

exacerbada e voltada para o futuro Apenas a preocupaccedilatildeo exagerada possibilita

finalmente o cenaacuterio apocaliacuteptico do ldquovelocifeacutericordquo Fausto ocupa-se jaacute cego com

visotildees ldquomodernasrdquo e voltadas para o futuro com projetos de grande escala influenciado

pela precipitaccedilatildeo ldquoApresso-me a dar corpo ao que penseirdquo52 Aqui se sela o seu decliacutenio

sob o signo da cegueira e da ilusatildeo

48Safranski R Goethe Kunstwerk des Lebens Frankfurt 2015 Venzke A Goethe und des PudelsKern Wuumlrzburg 2006 Bollmann S Warum ein Leben ohne Goethe sinnlos ist Muumlnchen 201649 Diz um proveacuterbio turco que foi o diabo quem inventou a pressa Dahl J Die Eile hat der Teufelerfunden In Scheidewege Jahresschrift fuumlr skeptisches Denken Jahrgang 19 198990 p171 Nomesmo tom Hans Blumenberg afirma que a estreiteza do tempo eacute a raiz do malrdquo Blumenberg HLebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p71 Sob o pretexto de que o humanamente possiacutevelapenas se realiza pela pressa o diabo Mefistoacutefeles quer tentar Fausto a natildeo ser tatildeo preciso na suaexploraccedilatildeo do mundo Quer atordoaacute-lo com vatildes distraccedilotildees embriagaacute-lo com prazeres sensaborotildees lanccedilaacute-lo em tumultos e atraiacute-lo com selvagens libertinagens para garantir que se esvazia interiormente e pascenos seus desejos natildeo realizados Mefistoacutefeles dita para Fausto um fracassar diferente daquele que esteantecipa para si mesmo Mefistoacutefeles espera seduzi-lo agrave banalidade tornaacute-lo inconsciente com o alvoroccedilodo mundo e colocaacute-lo numa satisfaccedilatildeo ilusoacuteria Mefistoacutefeles quer livrar-se da sua viacutetima com umasuperficialidade friacutevola pois natildeo eacute soacute o demoniacuteaco como tambeacutem a vulgaridade e a irreflexatildeo que podemdar corpo ao mal segundo Hannah Arendt Arendt H Vom Leben des Geistes Band 1 Das DenkenMuumlnchenZuumlrich 1979 p14) O ldquodiabo tem portanto um interesse vital em minar o pensamento e oincorruptiacutevel desejo por experiecircncia ele ldquoinventou a pressardquo para afianccedilar que o questionar e o pensaraprofundadamente fossem reprimidos e mesmo sem a presenccedila miacutetica de um diabo resta concluir que aaceleraccedilatildeo origina uma trivialidade e um superficialismo nas experiecircncias nas relaccedilotildees e no contacto50 Goethe JW Fausto Trad Joatildeo Barrento Lisboa 1999 v11382 p53451 Para grande infortuacutenio da nossa eacutepoca que natildeo permite que coisa alguma amadureccedila devoreconhecer que devoramos jaacute no proacuteximo instante aquele que acabou de transcorrer desperdiccedilando o diano proacuteprio dia vivendo apenas de preocupaccedilotildees imediatas sem nos determos demoradamente em nadaPois se jaacute haacute mesmo jornais para cada uma das fases do dia Uma boa cabeccedila poderia provavelmenteinterpolar uma coisa e outra Com isso tudo o que se faz o que se empreende o que se compotildee oumesmo o que se planeia eacute logo arrastado para a cena puacuteblica Ningueacutem pode estar triste ou alegre sem queisso sirva de passatempo aos outros e isso se estenda de casa em casa de cidade em cidade de paiacutes empaiacutes e por fim de continente em continente tudo velocifeacutericordquo Goethe JW Briefe vol4 Briefe derJahre 1821 -1832 Muumlnchen 1988 p159 A palavra ldquovelocifeacutericordquo criada por Goethe combina avelocidade (ldquovelocitasrdquo) com o diaboacutelico (do ldquoLuacuteciferrdquo) Manfred Osten coloca tal neologismo nocontexto da totalidade da obra de Goethe Alles veloziferisch [Tudo (eacute) velocifeacuterico] ou a descoberta dalentidatildeo por Goetherdquo Osten M Zur Modernitaumlt eines Klassikers im 21Jahrhundert Frankfurt a M2003 p3352 Goethe JW Fausto Trad Joatildeo Barrento Lisboa 1999 v11501 p541

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Com a morte de Fileacutemon e Baucis rompe-se com a ideia de cultura baseada na

lei da continuidade O oacutedio de Fausto ao passado a recusa de qualquer cultura

sustentada na memoacuteria ou na evocaccedilatildeo da recordaccedilatildeo antecipa aqui o elogio da rutura

o gosto pela descontinuidade caracteristicamente modernos Goethe que no seu

romance Willhelm Meister adverte que natildeo se deve perder de vista o antigo

(perspetivado pois como uma salutar e desejaacutevel contraposiccedilatildeo agravequilo que no mundo

moderno tatildeo rapidamente se altera e se transfigura) procurara no mesmo sentido

alertar que a postura mais razoaacutevel a adotar deveria consistir em inibir repetidas vezes

os passos para a modernidade ritmadamente acelerada e correlativamente observar a

situaccedilatildeo em quietude Na eacutepoca de Goethe foi sobretudo Napoleatildeo quem determinou

exemplarmente o novo ritmo Napoleatildeo foi natildeo somente o primeiro a praticar a

moderna guerra de movimento (ldquoLEmpereur a trouveacute une nouvelle meacutethode de faire la

guerre il ne se sert que de nos jambes et pas de nos baiumlonnettesrdquo53) como tambeacutem

introduziu enquanto poliacutetico um ritmo ateacute entatildeo desconhecido Napoleatildeo impocircs agrave

Europa a velocidade (eacutelan et vitesse) ndash o segredo pessoal do seu sucesso como um

sentido de viver ldquomodernordquo

No pensamento de Nietzsche a figura do energeacutetico e dinacircmico Uumlbermensch

parece contrapor-se agrave visatildeo desenvolvida pelo filoacutesofo de que a falta de quietude eacute

uma das marcas de uma civilizaccedilatildeo que entrou numa nova barbaacuterie54 Nietzsche

sustenta nas Consideraccedilotildees Intempestivas que a aceleraccedilatildeo inquieta que a

volatilizaccedilatildeo e a dissoluccedilatildeo de circunstacircncias e crenccedilas estabelecidas que ldquoo hiper-

raacutepido e impensado estilhaccedilamento e o definhar de todo os fundamentos e a sua

dissoluccedilatildeo num vir-a-ser que sempre estaacute a fluir e a dissolver-se que o desfiar e a

historizaccedilatildeo incansaacutevel de tudo o que chegou a ser atraveacutes do homem moderno helliprdquo

(Das rasend-unbedachte Zersplittern und Zerfasern aller Fundamente ihre Aufloumlsung

in ein immer flieszligendes und zerflieszligendes Werden das unermuumldliche Zerspinnen und

Historisieren alles Gewordenen durch den modernen Menschenhellip)55constituem os

53 Lormier D Fiers de notre Histoire Paris 201354 Nietzsche F Menschliches Allzumenschliches Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol2Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p 232 A secccedilatildeo nordm285 da Primeira Parte da obra apresenta oilustrativo tiacutetulo O moderno desassossego55 Nietzsche F Unzeitgemaumlszlige Betrachtungen Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol1Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 239 p313A traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova (cf Nietzsche F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva TradMarco Antonio Casanova Rio de Janeiro 2003) natildeo transmite o sentido original dado por Nietzsche ldquobdquooraivoso e impensado estilhaccedilamento e o desmantelamento de todos os fundamentos sua dissoluccedilatildeo emum vir a ser que sempre se dilui o desfiar e a historizaccedilatildeo incansaacutevel de tudo o que veio a ser atraveacutes do

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princiacutepios baacutesicos da cultura moderna (Europeu super-orgulhoso do seacuteculo XIX tu

andas hiper-raacutepido (Uumlberstolzer Europaumler des neunzehnten Jahrhunderts du

rasest)rdquo56 Neste desenvolvimento Nietzsche acredita ter reconhecido a origem da

degradaccedilatildeo e da decadecircncia quando o filoacutesofo ldquopensa na pressa geral e na crescente

velocidade da queda na suspensatildeo de toda contemplatividaderdquo eacute ldquocomo se percebesse

os sintomas de uma total erradicaccedilatildeo e desenraizamento da culturardquo57

Curiosamente a avaliaccedilatildeo de alteraccedilotildees e mudanccedilas cada vez mais aceleradas no

contexto da modernidade manifesta-se desde logo no interior de debates culturais

sobre qualquer modo de inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Jaacute em 1877 W G Greg contemporacircneo

de Nietzsche formulara

Sem duacutevida a caracteriacutestica mais saliente da vida nesta segunda metade do seacuteculo XIX eacute a

rapidez ndash [hellip] a velocidade com que nos movemos a enorme pressatildeo a que estamos

submetidos ndash e haacute que pensar numa primeira questatildeo se esta alta velocidade eacute em si uma

coisa boa e numa segunda se vale o preccedilo que pagamos ndash um preccedilo que soacute calculamos e

apenas com dificuldade sabemos estabelecer fielmente58

A questatildeo da teacutecnica e da tecnologia constitui-se pois como uma das dimensotildees

que acompanha a reflexatildeo cultural sobre os fenoacutemenos da aceleraccedilatildeo e do incremento

modernos ndash e desde logo a partir do seacuteculo XIX Com efeito e tal nos esclarece

Hartmut Rosa em Beschleunigung (2005) diversas inovaccedilotildees teacutecnicas de

incrementaccedilatildeo de aceleraccedilatildeo promoveram aquando da sua criaccedilatildeo e introduccedilatildeo uma

forma de luta dentro da cultura na qual os ardentes defensores das novas tecnologias

que elogiavam a abertura a novas possibilidades e promessas enfrentavam adversaacuterios

igualmente determinados que advertiam por sua vez para a perda da dimensatildeo e da

homem modernohellip Tambeacutem a ediccedilatildeo mais recente de Andreacute Itaparica (cf Nietzsche F Sobre autilidade e a desvantagem da histoacuteria para a vida Segunda consideraccedilatildeo intempestiva Trad AndreacuteItaparica Satildeo Paulo 2017) natildeo transmite o sentido original dado por Nietzsche ldquoSeu dilaceramento edesfibramento coleacuterico de todo fundamento sua dissoluccedilatildeo em um devir derretido e fluido o incansaacuteveldestecer e historiar tudo o que deveio atraveacutes do homem modernordquo56 Nietzsche F Unzeitgemaumlszlige Betrachtungen Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol1Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 239 p313A traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova (cf Nietzsche F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva TradMarco Antonio Casanova Rio de Janeiro 2003) natildeo transmite o sentido original de Nietzsche ldquoEuropeusuper-orgulhoso do seacuteculo XIX tu estaacutes fora de tirdquo Tambeacutem a ediccedilatildeo mais recente de Andreacute Itaparica(cf Nietzsche F Sobre a utilidade e a desvantagem da histoacuteria para a vida Segunda consideraccedilatildeointempestiva Trad Andreacute Itaparica Satildeo Paulo 2017) natildeo transmite sentido original de NietzscheldquoEuropeu orgulhoso do seacuteculo vocecirc estaacute perdendo o juiacutezordquo57 Nietzsche F Schopenhauer como educador Trad Rubens Rodrigues Torres Filho Satildeo Paulo 1999p29258 Citado Levine R Eine Landkarte der Zeit Wie Kulturen mit Zeit umgehen Muumlnchen 1999 p206

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medida humanas e para a emergecircncia de um ambiente passiacutevel de ser controlado bem

como para as consequecircncias fiacutesica e psicologicamente nocivas da nova tecnologia59 Os

processos de aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica natildeo decorrem natildeo obstante de modo uniforme e

linear mas muitas vezes irregularmente enfrentando obstaacuteculos resistecircncia e

contramovimentos que podem ser motivo ou causa de eventuais atrasos na sua

implementaccedilatildeo desencadeando porventura a sua interrupccedilatildeo ou inclusivamente a sua

inversatildeo temporaacuteria Aleacutem disso um determinado impulso de aceleraccedilatildeo teacutecnica eacute por

vezes seguido por um discurso cultural de desaceleraccedilatildeo conquanto e por regra o

entusiasmo pelos frutos do ritmo acelerado se sobreponha60 apesar da criacutetica por parte

dos ldquodesaceleradoresrdquo a maioria destas lutas terminaram com a vitoacuteria dos

ldquoaceleradoresrdquo ndash assim elucida Hartmut Rosa para quem a aceleraccedilatildeo e ldquoincrementordquo se

afiguram como realidades necessaacuterias para manter a estabilidade do capitalismo na

modernidade tardia

O dever de uma justificaccedilatildeo eacute por assim dizer posposto do movimento para a

perseveranccedila ldquoDoravante natildeo satildeo os agentes de mudanccedila que na cultura se tecircm de

justificar mas aqueles que se querem agarrar ao existenterdquo61

Haacute mais de cem anos Max Weber formulou na sua nota preliminar aos ensaios

sobre sociologia da religiatildeo (portanto no contexto da sua investigaccedilatildeo sobre a eacutetica

protestante) que o capitalismo eacute ldquoo mais fatiacutedico da nossa vida modernardquo62 Com o

termo vida moderna Weber referia-se acima de tudo ao estilo de vida individual e

coletiva o foco principal do seu trabalho63 De acordo com as posiccedilotildees de Weber o

capitalismo enquanto forma especiacutefica da atividade econoacutemica influencia molda e

determina de um modo intenso e maciccedilo as formas do estilo de vida individual ou

coletiva As consequecircncias da influecircncia do capitalismo e da crescente burocratizaccedilatildeo

da vida no acircmbito das sociedades modernas constituem como sabemos temas centrais

dos estudos de Max Weber de acordo com as posiccedilotildees weberianas as sociedades

59 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p8060 Os defensores da desaceleraccedilatildeo a favor da quietude tentavam por vezes conferir uma expressatildeooriginal ao seu protesto contra a velocidade - eg nos moldes da moda parisiense de 1840 observada porWalter Benjamin no seu ensaio sobre o flacircneur segundo o qual em passeios flanam tartarugasBenjamin W bdquoDer Flaneurldquo In Benjamin W Gesammelte Schriften Rolf TiedemannHermannSchweppenhaumluser volV Frankfurt aM 1982 p53261 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p8362 Weber M Vorbemerkungen In Die Protestantische Ethik Eine Aufstzsammlung Winkemann J(ed) Guumltersloh 1991 p1863 Hennis W Max Webers Fragestellung Tuumlbingen 1987

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modernas poderatildeo ser compreendidas agrave luz de uma curiosa metaacutefora ndash a metaacutefora de

uma caixa dura como o accedilo da qual o espiacuterito teraacute fugido e no interior da qual nos eacute

imposto um estilo de vida que tende a transformar-nos em hedonistas sem coraccedilatildeo e

saacutebios sem espiacuterito ldquoO capitalismo que conseguiu nos nossos dias o domiacutenio da vida

econoacutemica cria e educa []os sujeitos econoacutemicos [] de que necessitardquo64

O capitalismo impotildee de acordo com o olhar de Weber um estilo de vida

especiacutefico ndash que lhe eacute mais do que afim ou conforme uacutetil na era do capitalismo tardio

tal estilo de vida desenvolve-se no sentido da constituiccedilatildeo da figura e do

comportamento do designado consumidor ndash condiccedilatildeo necessaacuteria para a configuraccedilatildeo e a

manutenccedilatildeo de tal sistema econoacutemico Esta estreita fundamental e determinante

conexatildeo entre capitalismo e estilo de vida problemaacutetica tratada de modo profundo em

Weber afigura-se como uma questatildeo indevidamente desconsiderada ou negligenciada

assim aponta Hartmut Rosa em Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung

(2012) no acircmbito da discussatildeo filosoacutefica contemporacircnea65 apesar de a penetraccedilatildeo

capitalista em todas as esferas da vida ter aumentado significativamente desde as

primeiras deacutecadas do seacuteculo XX momento histoacuterico do qual datam os estudos de

Weber

Com efeito o liberalismo poliacutetico subjacente ao capitalismo proclama que

dentro de certos limites se trata de uma questatildeo exclusiva dos proacuteprios indiviacuteduos

determinarem a forma e o conteuacutedo de uma vida boa66 Tal implica que a resposta a esta

questatildeo central uma problemaacutetica relevante no interior do pensamento de Weber mas

tambeacutem no de Kant ndash a questatildeo sobre como devemos viver ndash deve ser reservada

apenas e soacute aos indiviacuteduos Estes devem descobrir e decidir de forma tatildeo autoacutenoma e

genuiacutena quanto possiacutevel o que segundo as palavras de Herder eacute a sua proacutepria

medida ou o seu modo de vida proacuteprio A ideia de que soacute o podem alancar na

comunicaccedilatildeo e no diaacutelogo ou seja de que soacute atraveacutes da interaccedilatildeo com outros sujeitos

64 Weber M A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Ana Falcatildeo Bastos e Luiacutes LeitatildeoLisboa 2018 p 4365 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15266 Aqui uso o termo aristoteacutelico ldquoεὖ ζῆνldquo que poderaacute ser traduzido por bdquovida boaldquo Aristoacuteteles afirma queeacute geralmente aceite que o fim de todo o comportamento humano eacute a eudaimonia viver bem (εὖ ζῆν) eacuteagir bem (εὖ πράττειν) com a finalidade de atingir a eudaimonia (consultar Aristoacuteteles Eacutetica aNicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1095a15-20) εὖ ζῆν deve portanto sertraduzido como ldquovida boardquo (natildeo confundir com ldquoboa vidardquo) No latim era usada a traduccedilatildeo beata vita pormeio do qual na liacutengua portuguesa se tornou comum o termo ldquovida felizrdquo (tambeacutem na liacutengua alematilde se usao termo aristoteacutelico ldquogutes lebenrdquo (vida boa) e natildeo o termo ldquogluumlckliches Lebenrdquo (vida feliz))

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podem desenvolver uma identidade e uma conceccedilatildeo proacutepria de vida boa natildeo se opotildee agrave

ideia da autonomia eacutetica individual67 A sociedade como um todo deveraacute disponibilizar

aos indiviacuteduos um espectro amplo e ilimitado de opccedilotildees e oportunidades de vida e ao

mesmo tempo segundo uma posiccedilatildeo eminentemente liberal natildeo julgar decisotildees

individuais Todavia e tal como sublinha Hartmut Rosa hoje inuacutemeros problemas ou

fenoacutemenos sociais satildeo atraveacutes das estrateacutegias de privatizaccedilatildeo e da desregulamentaccedilatildeo

poliacutetico-econoacutemica transferidas do campo da poliacutetica para outras esferas da sociedade ndash

inclusivamente as questotildees eacuteticas aquelas que se relacionam com a definiccedilatildeo de uma

vida boa De acordo com as proclamaccedilotildees do liberalismo poliacutetico que subjaz ao

capitalismo para que todos os indiviacuteduos tenham a oportunidade de encontrar de modo

livre a sua proacutepria e autecircntica forma de viver a sociedade deve definir e garantir uma

estrutura formal que garanta os direitos e as liberdades defendidos pelo liberalismo no

acircmbito dos quais os conceitos de bem e de vida boa sejam considerados do modo mais

neutro possiacutevel a fim de salvaguardar a liberdade e a igualdade de oportunidades

Correlativamente a liberdade individual deve incluir na sua definiccedilatildeo a procura de um

plano de vida proacuteprio que a liberdade econoacutemica ndash devido agrave eficiecircncia da economia de

livre mercado ndash parece satisfazer apesentando os preacute-requisitos econoacutemicos que

proporcionem a maior diversidade possiacutevel de opccedilotildees quanto agrave escolha de um plano de

vida proacuteprio Como pressuposto baacutesico do liberalismo poliacutetico ndash que se transfigura ele

mesmo em liberalismo econoacutemico ndash assume-se que ldquoos mercadosrdquo se comportam de

maneira neutra em relaccedilatildeo agraves conceccedilotildees de vida boa pois fornecem quer qualitativa

quer quantitativamente somente os serviccedilos e bens que os participantes individuais do

mercado (com base nas suas preferecircncias) desejam

Asseverar-se-ia que a doutrina do liberalismo poliacutetico se afigura pois

insuscetiacutevel de ser completamente separada da tendecircncia atual de desregulamentaccedilatildeo

poliacutetico-econoacutemica que coloca cada vez mais aacutereas da vida individual e coletiva agrave

mercecirc do jogo do mercado livre No entanto daqui resulta a seguinte contradiccedilatildeo para

as sociedades ocidentais contemporacircneas por um lado encontramo-nos perante o

supostamente salutar ideal do liberalismo poliacutetico que consiste na possibilidade de

constituiccedilatildeo de imagem pluralista e individualista das mais diversas e heterogeacuteneas

ldquoconceccedilotildeesrdquo de vida boa e por outro lado deparamo-nos com a exigecircncia dos sistemas

67 Cooke M Authenticity and Autonomy Taylor Habermas and the Politics of Recognition InPolitical Theory 25 (1997) pp 258

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capitalistas que afirma a imposiccedilatildeo de que pelo menos a maioria dos indiviacuteduos deve

desenvolver identidades que coloquem a produccedilatildeo a carreira e o consumo no topo da

sua lista de prioridades Por conseguinte os indiviacuteduos das sociedades modernas devem

estar dispostos a adaptarem-se natildeo apenas agraves exigecircncias fiacutesicas e psicoloacutegicas de um

sistema capitalista cuja essecircncia eacute uma mudanccedila permanente e aceleradaincrementada

em quase todas as aacutereas da vida mas tambeacutem e de certo modo a reconhececirc-las como

componentes indispensaacuteveis de uma vida boa Neste sentido a visatildeo acerca de uma

conceccedilatildeo de vida boa que eventualmente se basearia na continuidade durabilidade e

permanecircncia das condiccedilotildees de vida tradicionais tem no acircmbito das condiccedilotildees externas

das sociedades modernas tendecircncia a ser frustrada tal como elucida para aleacutem de

Hartmut Rosa tambeacutem Richard Sennett em The Corrosion of Character The Personal

Consequences Of Work In the New Capitalism68 Como tal e seguindo Sennet e Rosa

importaria questionar a proclamada possibilidade de a sociedade capitalista fornecer um

efetivo fundamento garantidamente neutro que permita que todos os estilos de vida

possam ser livremente ou autonomamente cumpridos e realizados seratildeo os sujeitos da

modernidade tardia efetivamente livres e autoacutenomos no que respeita a definir o seu

estilo de vida individual e numa dimensatildeo coletiva uma ldquosociedade boardquo tal como

autenticamente desejam

Voltemos a Weber O sistema capitalista parece estar exposto a uma bizarra

compulsatildeo trata-se da exigecircncia de desvalorizar segundo um ciclo incessante novos

produtos teacutecnicas e estilos de vida que acabam de ser inventados pois a compulsatildeo

vazia e sem propoacutesito pelo novo deveraacute sempre digamos recomeccedilar do iniacutecio69

Todavia haacute um cenaacuterio que se afigura e com o qual nos deparamos a visatildeo liberal

acerca da responsabilidade individual pelas definiccedilotildees (plurais) de vida boa combinada

com a realidade socioeconoacutemica das sociedades capitalistas liberais da modernidade

tardia parece conduzir-nos em uacuteltima instacircncia e de um modo como que inexoraacutevel agrave

ldquocaixa de accedilo e mecanizadardquo a metaacutefora formulada por Max Weber da qual ldquotodo o

espiacuterito escapourdquo Citemos Max Weber aludindo ao ldquoUacuteltimo Homemrdquo em Nietzsche

Onde o capitalismo se mostra mais forte nos Estados Unidos a procura da riqueza

despida do seu sentido eacutetico-religioso tende hoje a associar-se a paixotildees puramente

68 Sennet R The Corrosion of Character The Personal Consequences Of Work In the New CapitalismNew York 1998 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p16069 Gamm G Das metaphorische Selbst Tuumlbingen 1992 p81

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agoniacutesticas o que natildeo raramente lhe confere um caraacuteter de ldquodesportordquo Ainda ningueacutem

sabe quem no futuro habitaraacute a jaula e se no fim deste desenvolvimento brutal novos

profetas viratildeo ou renasceratildeo com toda potecircncia dos antigos pensamentos e ideais ou

ainda ndash caso nada disso aconteccedila ndash se se instalaraacute uma petrificaccedilatildeo mecacircnica coroada por

uma espeacutecie de presunccedilatildeo convulsiva Nesse caso para ldquoos uacuteltimos homensrdquo dessa fase da

civilizaccedilatildeo tornar-se-atildeo verdade as seguintes palavras ldquoespecialistas sem espiacuterito

hedonistas sem coraccedilatildeo ndash estes natildeo imaginam ter subido um degrau da Humanidade nunca

antes atingido70

Considerando tais problemaacuteticas Hartmut Rosa levanta a questatildeo acerca do

porquecirc das conceccedilotildees individuais de vida boa (que de acordo com a doutrina liberal

devem ser escolhidas o mais plural e livremente quanto possiacutevel) nos conduzem natildeo

somente a ambicionar ser ldquobons produtoresrdquo ndash o que significa segundo Rosa o desejo

de alcanccedilar um alto niacutevel na hierarquia dos produtores (e respetivamente na carreira

profissional) ndash mas tambeacutem e num sentido inverso nos incitam agrave aquisiccedilatildeo dos

produtos por noacutes produzidos Encontramo-nos portanto perante uma situaccedilatildeo

caracterizada por ciclos de consumo incessante crescente e sem limites ndash que definem

ldquoo ethos do consumidorrdquo sendo eventualmente condiccedilatildeo sine qua non da determinaccedilatildeo

de um estilo de vida A questatildeo para a qual Hartmut Rosa chama a atenccedilatildeo eacute pois a

seguinte porque eacute que os ideais ldquoautecircnticosrdquo e individuais de vida boa encaixam tatildeo

perfeitamente nas necessidades sisteacutemicas da economia capitalista orientada para o

crescimento para uma constante aceleraccedilatildeo e incremento da produccedilatildeo e do consumo71

Gerhard Gamm por sua vez propotildee uma resposta em Das metaphorische Selbst (1992)

As prestaccedilotildees da adaptaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo psicoloacutegica e fiacutesica das pessoas agrave diretriz do

sistema satildeo tomadas como garantidas [hellip] As sociedades da modernidade tardia estatildeo

acima de tudo interessadas em adquirir os recursos necessaacuterios ao sistema que a niacutevel da

produccedilatildeo e do consumo incidem sobre a capacidade de transformaccedilatildeo e incremento do

comportamento humano72

A posiccedilatildeo de Gerhard Gamm apresenta-se afim das posiccedilotildees de Weber

anteriormente mencionadas acerca da capacidade de o capitalismo criar e desenvolver

os seus proacuteprios (e a si mesmo necessaacuterios e uacuteteis) sujeitos econoacutemicos No

seguimento de tais posiccedilotildees assim comenta Hartmut Rosa

70 Weber M A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Ana Falcatildeo Bastos e Luiacutes LeitatildeoLisboa 2018p 16571 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15672 Gamm G Das metaphorische Selbst Tuumlbingen 1992 p80

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Para uma sociedade capitalista orientada para o crescimento econoacutemico e para o

incremento eacute indispensaacutevel que os seus membros natildeo escolham uma conceccedilatildeo de ldquovida

boardquo qualquer mas uma muito especiacutefica nomeadamente a ldquodoutrina abrangenterdquo

(comprehensive doctrine) do paradigma consumidorprodutor que faz com que a sua

atenccedilatildeo e energia sejam canalizadas numa determinada direccedilatildeo e natildeo na direccedilatildeo da

contemplaccedilatildeo meditaccedilatildeo ascetismo encaixe social desenvolvimento e crescimento

criativo ou algo semelhante73

Tal como Hartmut Rosa observa eventuais mudanccedilas neste padratildeo de orientaccedilatildeo

capitalista comportariam o possiacutevel perigo de decliacutenio econoacutemico e social de tal

sociedade74 Natildeo obstante e tal como enfatizara claramente Max Weber este natildeo eacute o

uacutenico padratildeo de orientaccedilatildeo possiacutevel nem o mais ldquoracionalrdquo ou o mais ldquonaturalrdquo A

definiccedilatildeo de vida boa subjacente ao capitalismo deve a sua existecircncia a uma constelaccedilatildeo

uacutenica profundamente especiacutefica de vaacuterios fatores culturais ndash por exemplo uma religiatildeo

(cristatilde) que rejeita tendencialmente o mundo mas que ao mesmo tempo aposta num

envolvimento ativo com o mundo e que pode recorrer a bases poliacuteticas juriacutedicas e

econoacutemicas determinadas A este respeito Hartmann Tyrell escreve o seguinte

introduzindo a reflexatildeo sobre o relevante conceito de pleonexia como aspeto

determinante do capitalismo

O espiacuterito do capitalismo portanto o espiacuterito dirigido metodologicamente ndash calculado pela

pleonexia resiste a toda a moralidade social (e econoacutemica) convencional e mostra-se

como um complexo de comportamentos estranho ofensivo irracional e ldquosem sentidordquo

isto se o colocarmos agrave luz de outros pontos de vista de valores (eacuteticos religioso-

metafiacutesicos esteacuteticos ou aristocraacutetico-nobres)75

Na sua Eacutetica a Nicoacutemaco Aristoacuteteles define a pleonexia (πλεονεξία) como um

ldquosempre-querer-ter-maisrdquo (relacionado com a ganacircncia e a avareza) caracterizando tal

conceito como uma das trecircs formas da injusticcedila Para Aristoacuteteles ndash e mais tarde para

Epicuro e para o estoicismo ndash a pleonexia representa um enorme mal76 O facto de o

conceito de pleonexia ter sido avaliado negativamente manifesta-se natildeo soacute em

Aristoacuteteles mas em toda a historiografia e filosofia antigas em Heroacutedoto e em

Tuciacutedides o termo era usado de forma pejorativa assim como em Xenofonte e em

73 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15674 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p15675 Tyrell H ldquoWorum geht es in der Protestantischen Ethik Ein Versuch zum besseren Vestaumlndnis MaxWebers In Saeculum 41 2 (1990) 13176 MacphersonCB Die politische Theorie des Besitzindividualismus Frankfurt a M 1967 pp 74

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Platatildeo entre outros77 H Busche define o conceito a partir de um contexto aristoteacutelico

da seguinte forma ldquopleonexia o (querer)-ter-mais (πλεονεξία do latim avaritia) eacute um

termo que se compotildee por ldquomaisrdquo (pleon) e ldquoterrdquo (echein) Se de Heroacutedoto a Platatildeo

pleonexia significa a aspiraccedilatildeo injusta do ter mais do que seria justo em Aristoacuteteles por

seu turno o termo natildeo denota subjetivamente a atitude injusta mas objetivamente a

injusticcedila no ldquoexcesso de bensrdquo78 Com efeito em Aristoacuteteles a pleonexia o querer-ter-

mais constitui um conceito que se insere no domiacutenio da injusticcedila Recorde-se que a

justiccedila eacute para Aristoacuteteles a mais alta de todas as virtudes caracterizada como essencial

para o harmonioso e regulado conviver como criteacuterios de justiccedila aplicam-se o legal e o

igual e as leis devem garantir que a todos seja atribuiacuteda a sua devida parte daqui se

conclui que a igualdade entre os cidadatildeos eacute um criteacuterio essencial de justiccedila Aristoacuteteles

define pois a igualdade agrave luz do conceito de justa medida que eacute comum a todas as

virtudes eacuteticas

Uma vez que o injusto eacute iniacutequo e a injusticcedila iniquidade eacute evidente que haacute um meio termo

entre [os extremos da] iniquidade a saber a igualdade Em toda e qualquer espeacutecie de

acccedilatildeo haacute um mais e um menos haacute tambeacutem um igual Ora se a justiccedila eacute iniquidade entatildeo a

justiccedila eacute igualdade coisa que eacute aceite por todos sem ser necessaacuteria demonstraccedilatildeo79

Se a justiccedila eacute a mais elevada das virtudes ndash e se a pleonexia eacute o seu conceito

contraposto ndash entatildeo a pleonexia natildeo poderaacute ser considerada como um viacutecio entre os

demais de acordo com a eacutetica aristoteacutelica a pleonexia eacute ldquonatildeo uma parte da perversatildeo

mas antes a mais completa perversatildeordquo80 A pleonexia natildeo eacute um viacutecio exclusivamente

puacuteblico trata-se de um viacutecio que torna igualmente impossiacutevel a correta forma de vida

individual uma vez que aqueles que ldquodistribuem por si a maior parte do dinheirordquo81

violam a prudecircncia Recorde-se pois e a partir de tais consideraccedilotildees que a filosofia

eacutetica de Aristoacuteteles se apresentada determinada pelas noccedilotildees de justa medida e de

ordem racional perspetivados como modos de efetividade da convivecircncia entre os

homens Como de acordo com Aristoacuteteles o ser humano eacute por natureza um ser

poliacutetico que soacute pode ser considerado realizado na relaccedilatildeo com outros a pleonexia

enquanto transgressatildeo da justa medida constitui uma maldade fundamental pois

77 Consultar Delling G πλεονέκτης In Friedrich G (ed) Theologisches Woumlrterbuch zum neuenTestament Stuttgart 1959 pp 226-248 Reiner H Geiz In Ritter J (ed) Historisches Woumlrterbuchder Philosophie BaselStuttgart 1974 pp217-21978 Houmlffe O (ed) Aristoteles-Lexikon Stuttgart 2005 p 45679 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1131a1080 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1130a1081 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1168b16

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assume-me como causa que impossibilita a vida boa individual no mesmo sentido e em

termos coletivos o querer-ter-mais afigura-se como elemento que coloca em perigo a

comunidade poliacutetica dos cidadatildeos baseada por sua vez na igualdade como valor

fundamental

Muitos incluindo ateacute aqueles que pretendem estabelecer regimes aristocraacuteticos cometem

o erro de natildeo soacute favorecerem os ricos como de ludibriarem as expectativas do povo

Todavia o certo eacute que acaba por chegar a hora em que dos falsos bens nasce

inevitavelmente um verdadeiro mal pois os excessos cometidos pelos ricos constituem um

factor mais dissolvente dos regimes do que os cometidos pela massa popular82

A pleonexia eacute ndash como jaacute foi dito ndash o maior dos viacutecios pois dificulta a

coexistecircncia dos cidadatildeos na polis impossibilitando-a em casos extremos Ora para

Aristoacuteteles a polis eacute a forma mais elevada de comunidade pois assegura a autarquia dos

cidadatildeos Tal autarquia natildeo existe apenas na independecircncia econoacutemica (que

corresponderia ao nosso entendimento atual) mas eacute o requisito baacutesico para a realizaccedilatildeo

e para o cumprimento da vida boa conforme descrito na Eacutetica a Nicoacutemaco Recorde-se

que para Aristoacuteteles uma entidade pode ser dita autaacuterquica quando aspira a algo por

motivaccedilatildeo proacutepria e natildeo por motivaccedilatildeo alheia O mesmo se aplica agrave principal finalidade

humana a eudaimonia Segundo o pensamento aristoteacutelico somente na polis eacute possiacutevel

ao ser humano realizar o seu proacuteprio teacutelos ndash a eudaimonia justamente

A cidade enfim eacute uma comunidade completa formada a partir de vaacuterias aldeias e que por

assim dizer atinge o maacuteximo de auto-suficiecircncia Formada a princiacutepio para preservar a

vida a cidade subsiste para assegurar a vida boa83

Por conseguinte poder-se-ia a este respeito concluir que para Aristoacuteteles o

objetivo da vida humana consiste em desenvolver uma vida boa e que esta soacute na polis

pode ser alcanccedilada realizada cumprida ndash e vivida Aquele que aspira a ter mais e mais

ndash aquele que pratica pois o mais grave dos viacutecios a pleonexia ndash coloca em perigo

atraveacutes da sua extrema ambiccedilatildeo dirigida a coisas externas a comunidade que em

Aristoacuteteles eacute considerada digna per se Deste modo o quer-ter-mais age como que

82 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981297a5-1583 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981252b25

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contra a natureza do ser humano tornando periclitante o objetivo fundamental pelo

qual os humanos se juntam em comunidade a vida boa

De modo distinto no acircmbito do pensamento de Thomas Hobbes a pleonexia eacute a

principal causa ou motivaccedilatildeo das accedilotildees socias que segundo o filoacutesofo natildeo satildeo

eticamente nem moralmente questionaacuteveis ou demonizaacuteveis (a menos que conduzam a

certas situaccedilotildees com previsiacuteveis consequecircncias negativas reclamando entatildeo por parte

do estado ndash o Leviatatilde ndash uma intervenccedilatildeo) Atendendo a tal definiccedilatildeo de pleonexia

importaria pois chamar a atenccedilatildeo para o facto de a antropologia hobbesiana diferir

essencialmente no seu fundamento da antropologia aristoteacutelica O projeto hobbesiano

de estado baseia-se na premissa de que o querer-ter-mais (a pleonexia aristoteacutelica)

constitui o principal motor das accedilotildees humanas como que expressando uma desejaacutevel

atitude de conservaccedilatildeo e de manutenccedilatildeo da proacutepria existecircncia e de proteccedilatildeo de si-

proacuteprio contra danos externos84 Por conseguinte poder-se-ia afirmar e de um modo

natildeo especialmente controverso que de acordo com Hobbes o homem eacute profundamente

determinado pela pleonexia e que de certa forma tal viacutecio aristoteacutelico se traduz num

relevante virtude social ndash o mesmo quadro de pensamento poderia certamente ser

aplicado a Bernard Mandeville que concebera os mais moralmente condenaacuteveis viacutecios

humanos como causas indispensaacuteveis da prosperidade econoacutemica de uma sociedade

Neste sentido os viacutecios humanos avaliados pelos pensadores antigos como elementos

corrosivos da vida social apresentam-se perspetivados como potenciais elementos

positivos ndash de acordo com os novos ritmos e movimentaccedilotildees sociais e econoacutemicos ndash no

contexto dos alvores da modernidade e do capitalismo Interessantemente o proacuteprio

Hobbes um dos principais teorizadores da filosofia poliacutetica moderna concebera a sua

proacutepria filosofia como uma rutura contra a tradiccedilatildeo apresentando o seu proacuteprio

pensamento poliacutetico como um novo e desejaacutevel comeccedilo que de um modo inaugural

permitiria a verdadeira compreensatildeo sobre a necessidade e a geacutenese de um estado A

este respeito assim escreve Adorno sobre Hobbes

O esclarecimento comprometera-se com o liberalismo Se todos os afetos se valem a

autoconservaccedilatildeo ndash que domina de qualquer modo a figura do sistema ndash parece constituir a

fonte mais provaacutevel das maacuteximas de accedilatildeo Eacute ela que viria a ser liberada no mercado livre

Os escritores sombrios dos primoacuterdios da burguesia como Hobbes [] que foram os porta-

vozes do egoiacutesmo do eu reconhecem por isso mesmo a sociedade como o princiacutepio

84 Hobbes T Leviathan Fetscher I (ed) Frankfurt aM 1966 p95

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destruidor e denunciam a harmoniahellip Com o desenvolvimento do sistema econoacutemico no

qual o domiacutenio do aparelho econoacutemico por grupos privados divide os homens a

autoconservaccedilatildeo confirmada pela razatildeo que eacute o instinto objetualizado do indiviacuteduo

burguecircs revelou-se como um poder destrutivo da natureza inseparaacutevel da

autodestruiccedilatildeo85

85 Adorno TW Horkheimer M Dialeacutetica do esclarecimento Trad Guido Antonio de Almeida Riode Janeiro 1985 p89

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12 | Da aceleraccedilatildeo como fenoacutemeno cultural e esteacutetico

Agrave dolorosa luz das grandes lacircmpadas eleacutectricas da faacutebrica Tenho febre e escrevo Escrevo rangendo os dentes fera para a beleza disto Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Oacute rodas oacute engrenagens r-r-r-r-r-r-r eterno Forte espasmo retido dos maquinismos em fuacuteria Em fuacuteria fora e dentro de mim Por todos os meus nervos dissecados fora Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto Tenho os laacutebios secos oacute grandes ruiacutedos modernos De vos ouvir demasiadamente de perto E arde-me a cabeccedila de vos querer cantar com um excesso De expressatildeo de todas as minhas sensaccedilotildees Com um excesso contemporacircneo de voacutes oacute maacutequinas ()

Fraternidade com todas as dinacircmicasPromiacutescua fuacuteria de ser parte-agenteDo rodar feacuterreo e cosmopolitaDos comboios estreacutenuosDa faina transportadora-de-cargas dos naviosDo giro luacutebrico e lento dos guindastesDo tumulto disciplinado das faacutebricasE do quase-silecircncio ciciante e monoacutetono das correias de transmissatildeo

Aacutelvaro de Campos Ode triunfal

Lhomme intense du libertinage ou du romantisme se mue bientocirct en homme exalteacute desmouvements davant-garde du_surreacutealisme du futurisme du constructivisme porteur duprojet dune humaniteacute nouvelle Il espegravere ldquotenir le pas gagneacuterdquo selon le mot de Rimbaud Degeacuteneacuteration en geacuteneacuteration il appelle de ses vœux une avanceacutee une perceacutee deacutecisive dans ledomaine de la poeacutesie de la penseacutee des arts visuels de la politique ou des mœurs En avantCe qui acceacutelegravere sans cesse agrave la vitesse fulgurante des automobiles des trains des avionsnous emporte loin du monde preacutehistorique et mythique ougrave la reacutepeacutetition eacutetait la valeursupeacuterieure de la culture Les poegravetes Apollinaire Marinetti ou Pessoa quand ils se montrentlas du monde ancien espegraverent que la vie moderne augmentera nos perceptions pour nousarracher agrave lordinaire des vieilles ideacutees et des ouvrages clas- siques Le modernisme de cepoint de vue est la plus puissante des drogues de lesprit il promet une surexcitationinimaginable de toute notre humaniteacute arracheacutee agrave la banaliteacute Bien sucircr on saccoutume agravecette drogue Ce nest pas grave il faut en augmenter les doses et acceacuteleacuterer encore lemouvement par la penseacutee

Tristan Garcia La vie intense

No dia 20 de fevereiro de 1909 o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti

publicou o texto ldquoFundaccedilatildeo e Manifesto Futuristardquo no jornal francecircs Le Figaro Natildeo

se trata nem do manifesto de uma organizaccedilatildeo concreta nem de uma visatildeo puramente

profeacutetica do futuro De um modo distinto o texto reclama um novo estilo artiacutestico que

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represente uma experiecircncia da vida proacutexima da realidade86 Marinetti declara de modo

tatildeo veemente quatildeo incisivo a obsolescecircncia da arte claacutessica de acordo com o italiano o

olhar claacutessico procura desde sempre os elementos da estabilidade da harmonia da

eternidade etc tomados por Marinetti como valores esteacuteticos obsoletos regressivos

referentes a um passado ndash e como tal sem lugar na vida moderna Voltar costas ao

passado e encaminhar-se para o futuro a verdadeira direccedilatildeo do desenvolvimento

progressista ldquoQuerem vocecircs pois desperdiccedilar todas as vossas melhores forccedilas nesta

eterna e inuacutetil admiraccedilatildeo pelo passado da qual soacute poderatildeo sair fatalmente exaustos

diminuiacutedos e vencidosrdquo87

Segundo Marinetti o que determina o ser humano na sociedade moderna eacute a

mudanccedila a insurreiccedilatildeo o dinamismo e acima de tudo a velocidade Dever-se-ia

esquecer o passado e procurar experienciar o elemento mais relevante da sociedade

moderna a velocidade justamente

Afirmamos que a magnificecircncia do mundo se enriqueceu de uma beleza nova a beleza da

velocidade (hellip) O tempo e o espaccedilo morreram ontem Agora vivemos no absoluto porque

jaacute criamos a velocidade eterna e omnipresente88

De certa forma a singularidade do futurismo consiste menos na reinvenccedilatildeo da

arte ou no apelo a um novo sentido esteacutetico (subjetivo ou objetivo) do que no

abandono de todas as tradiccedilotildees a fim de apresentar uma experiecircncia contemporacircnea de

beleza ndash e a velocidade estaacute no acircmago de tal posiccedilatildeo Quando o manifesto foi publicado

em 1909 o futurismo alastrou-se rapidamente para os domiacutenios esteacuteticos da pintura

literatura escultura muacutesica arquitetura entre outros em muacuteltiplos paiacuteses Para

acentuar a importacircncia da velocidade ie a fim de fundar e expandir uma consciecircncia

social da velocidade os futuristas tentaram representar a experiecircncia da velocidade

atraveacutes de diferentes formas de arte e de vaacuterias teacutecnicas artiacutesticas ldquoTudo se move tudo

flui tudo acontece com a maacutexima velocidade Uma figura nunca paira imoacutevel diante de

noacutes mas aparece e desaparece incessantementerdquo89

86 Apollonio U Der Futurismus In Apollonio U (ed) Der Futurismus Manifest und Dokumenteeiner kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln 1972 p1087 Marinetti FT Gruumlndung und Manifest des Futurismus In Apollonio U (ed) Der FuturismusManifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1909]) p3588 Marinetti FT Gruumlndung und Manifest des Futurismus In Apollonio U (ed) Der FuturismusManifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1909]) p3389 Boccioni U et al Die futuristischen Malerei ndash Technisches Manifest In Apollonio U DerFuturismus Manifest und Dokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1910])

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A erosatildeo da materialidade soacutelida causada pela velocidade apresenta-se como

uma caracteriacutestica central da pintura futurista A representaccedilatildeo da velocidade pura

constitui-se com efeito como uma das expressotildees de tal movimento esteacutetico

Inclusivamente a escultura e a arquitetura futuristas distinguem-se pelo desprezo

relativamente agrave imobilidade e agrave harmonia perspetivadas como caracteriacutesticas de

condiccedilotildees do passado de acordo com a intenccedilatildeo de proclamar uma consciecircncia da

velocidade A destruiccedilatildeo do soacutelido como teacutecnica de representaccedilatildeo da velocidade eacute pois

significativa para as artes plaacutesticas ndash do mesmo modo no acircmbito da arquitetura os

futuristas procuraram preconizar uma correspondecircncia com a realidade da vida

moderna

O problema da arquitetura futurista (hellip) reside na urgecircncia de construir a casa futurista do

zero usando todas as ferramentas da ciecircncia e tecnologia no atentar de todas as

reivindicaccedilotildees dos nossos costumes e dos nossos espiacuteritos pelo mais nobre no esmagar de

tudo o que eacute grotesco e dissidente de noacutes (tradiccedilatildeo estilo esteacutetica proporccedilatildeo) (hellip)

Perdemos o sentido para o monumental o pesado o estaacutetico e enriquecemos o gosto pelo

ligeiro o praacutetico o efeacutemero e o veloz90

O Futurismo proclamando a iminecircncia da velocidade apresenta-se dotado

desde o seu surgimento de um potencial criacutetico e revolucionaacuterio Devido ao desejo de

experiecircncia da velocidade extremas alguns futuristas ansiaram pela guerra Tenha-se

presente pois a este respeito o lamento de Antonio Gramsci relativamente ao facto de

alguns futuristas se terem voltado para a guerra e para o fascismo glorificante da

violecircncia91 Assim escreve Walter Benjamin sobre a mateacuteria

p4090 SantacuteElia A Die futuristische Architektur In Apollonio U (ed) Der Futurismus Manifest undDokumente einer kuumlnstlerischen Revolution 1909-1918 Koumlln (1972[1910]) p21391 Gramsci A A Letter to Leon Trotsky on Futurism Revolutionary History 7 (2) 1999 pp118-120A relaccedilatildeo entre Futurismo e Fascismo Italiano eacute profundamente complexa e natildeo pode ser aqui explicadade forma exaustiva Apontemos natildeo obstante alguns elementos que deveratildeo ser tomados comorelevantes para a compreensatildeo de tais relaccedilotildees Comecemos pela anaacutelise das posturas poliacuteticas assumidaspelos artistas futurista italianos com efeito os Futuristas italianos publicaram um programa poliacutetico (comcontornos ideoloacutegicos expliacutecitos) apoacutes o fim da guerra em 1918 o designado Manifesto del partitopoliacutetico futurista que se seguiu ao seu programa esteacutetico de 1913 (Hesse E Die Achse Avantgarde ndashFaschismus Zuumlrich 1992 p282) Os objectivos aiacute formulados representaram uma nova orientaccedilatildeo nodesenvolvimento do Futurismo e a proclamaccedilatildeo do programa poliacutetico de 1918 significou um corte entreo (dito) Futurismo poliacutetico e o Futurismo artiacutestico (Schmidt-Bergmann H-G Futurismus Reinbek1993 p151) A partir daiacute Marinetti procurara diferenciar o movimento artiacutestico do Futurismo que ()permaneceu um movimento muitas vezes mal compreendido e de vanguarda () que () a maioria natildeoconsegue compreender() e o () Partido do Futurismo Italiano() que () deveria ter em containtuitivamente as necessidades mais agudas () do povo italiano (citado por Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p151) Apesar desta separaccedilatildeo o objetivo final do Futurismo italianopermaneceu esteacutetico consistindo na proclamaccedilatildeo da possibilidade de criaccedilatildeo da artecrazia (umaexpressatildeo para a ideia futurista de uma forma de governo em que os artistas guiariam o destino da naccedilatildeo

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Somente a guerra possibilita mobilizar a totalidade dos meios teacutecnicos da atualidade

sob o auspiacutecio das relaccedilotildees de posse Eacute evidente que a apoteose da guerra no fascismo natildeo

se serve desses argumentos Apesar disso eacute instrutivo notaacute-los No manifesto de Marinetti

em favor da guerra colonial na Etioacutepia lecirc-se lsquoHaacute 27 anos noacutes futuristas opomo-nos agrave

caracterizaccedilatildeo da guerra como antiesteacutetica () De acordo com tal determinamos () a

guerra eacute bela porque fundamenta graccedilas agraves maacutescaras de gaacutes aos assustadores megafones

aos lanccedila-chamas e aos pequenos tanques o domiacutenio da humanidade sobre a maacutequina

subjugada A guerra eacute bela porque inaugura a tatildeo sonhada metalizaccedilatildeo do corpo humano

A guerra eacute bela porque enriquece um campo florido com as orquiacutedeas iacutegneas das

metralhadoras A guerra eacute bela porque unifica os tiros de fuzil os balaccedilos de canhatildeo os

cessar-fogos os perfumes e odores putrefatos numa sinfonia A guerra eacute bela porque cria

novas arquiteturas como a dos grandes tanques dos geomeacutetricos esquadrotildees aeacutereos das

espirais de fumaccedila sobre aldeias em chamas e muitas outras () Poetas e artistas do

futurismo () lembrai-vos destes princiacutepios para uma esteacutetica da guerra para que vossa

luta por uma nova poesia e uma nova plaacutestica () seja por eles iluminadarsquo Esse manifesto

tem a vantagem da nitidez O seu questionamento merece ser retomado pelo dialeacutetico Para

este a esteacutetica da guerra dos dias de hoje apresenta-se do seguinte modo se o uso natural

das forccedilas produtivas eacute bloqueado pela distribuiccedilatildeo da propriedade a elevaccedilatildeo dos meios

teacutecnicos em termos de ritmo de fontes de energia pressiona em direccedilatildeo a uma utilizaccedilatildeo

antinatural dessas forccedilas92

(Ver Baumgarth C Geschichte des Futurismus Reinbek 1966 pp 118) Em marccedilo de 1919 omovimento poliacutetico do Futurismo decidiu unir forccedilas com a Fasci di combattimento fundada porBenito Mussolini (Chiantera-Stutte P Von der Avantgarde zum Traditionalismus Frankfurt aM 2002p53) Marinetti e Mussolini que jaacute se tinham encontrado em comiacutecios em 1915 (Hesse E Die AchseAvantgarde ndash Faschismus Zuumlrich 1992 p284) entraram nas eleiccedilotildees parlamentares italianas de finais de1919 numa lista comum natildeo alcanccedilando no entanto a vitoacuteria Mussolini retirou as suas conclusotildees desteresultado eleitoral pressupondo que tal fraco desempenho se devera a alguns dos pontos de vista dosFuturistas os quais poderiam ter conduzido agrave perda de votos entre a burguesia (Hesse E Die AchseAvantgarde ndash Faschismus Zuumlrich 1992 p284) Seguidamente Mussolini desenvolveu com o seufasci uma mudanccedila ideoloacutegica no sentido de uma poliacutetica mais conservadora a fim de alcanccedilar umeleitorado mais amplo nas aacutereas do clero dos ricos e dos industriais (Aragno P Futurismus undFaschismus In Grimm R Hermand J Faschismus und Avantgarde Koumlnigstein 1980 p86) A ruturatemporaacuteria entre Marinetti e Mussolini ocorreu no Segundo Congresso do Partido dos Fascistas em maiode 1920 quando Mussolini anunciou publicamente a sua nova vontade de compromisso com os gruposconservadores tendo o liacuteder futurista e a maioria dos seus seguidores deixado o partido em protesto(Chiantera-Stutte P Von der Avantgarde zum Traditionalismus Frankfurt aM 2002 p57) Com a suaretirada do partido fascista em 1920 o desenvolvimento poliacutetico do Futurismo chega ao fim doravante asua influecircncia far-se-ia sentir somente no acircmbito das poliacutetcas culturais (Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p151) Todavia em 1924 Marinetti procurou a reconciliaccedilatildeo com ofascismo publicando a antologia Futurismo e Fascismo dedicada ao seu grande e querido amigoMussolini E em verdade Marinetti permaneceu ligado a Mussolini pelo menos pessoalmente ateacute agrave suamorte E a arte futurista sobreviveu ao fascismo especialmente na arquitetura (Schmidt-Bergmann H-GFuturismus Reinbek 1993 p169-171) Sobre este assunto ver tambeacutem Strobel-Koop R Geschichteund Theorie des italienischen Futurismus ndash Literatur Kunst und Faschismus Saarbruumlcken 2008 GentileE The Struggle for Modernity Nationalism Futurism and Fascism New York 2003 Hans HbdquoSchoumlnheit gibt es nur im Kampfldquo Zum Verhaumlltnis von Gewalt und Aumlsthetik im italienischen FuturismusGoumlttingen 2015

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Na Primeira Guerra Mundial figuras maacuteximas da arte futurista como Umberto

Boccioni e Antonio SantElia por exemplo natildeo sobreviveram os campos de batalha

europeus Ainda assim persistiu o entusiasmo antes vivenciado93 e com a Segunda

Guerra Mundial o futurismo sucumbiu parcialmente ao fascismo Com efeito segundo

Peter Sloterdijk em Os Filhos Terriacuteveis dos Tempos Modernos (2014) o fascismo

possui tambeacutem raiacutezes neste tipo de pensamento marcado pela negaccedilatildeo da

desmobilizaccedilatildeo

Natildeo se deve ver no fascismo um mero partido ou uma ideologia convencional No seu

gesto elementar ele emergiu de um militantismo mobilizado de poliacutetica de rua este como

espiacuterito da negaccedilatildeo da desmobilizaccedilatildeo [] alicerccedila-se na [] crenccedila de ter iniciado a

guerra sem um depois em vista [] comunicando com Oswald Spengler O fascismo eacute a

postura de pessoas que confundem a mobilizaccedilatildeo com a vitoacuteria94

No mesmo sentido Peter Sloterdijk caracteriza a modernidade tardia do iniacutecio

do seacuteculo XXI como um deslizar e precipitar num Futurismo generalizado95 Assim

escreve Sloterdijk

A fissura ontoloacutegica na qual estranhamente o mundo moderno se encontra em casa torna-

se inteligiacutevel em observaccedilotildees de pequena escala atraveacutes de declaraccedilotildees sobre

92 Benjamin W Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit GesammelteSchriften Tiedemann RSchweppenhaumluser H (ed) volI 2 Frankfurt aM 1980 p46893Segundo a compreensatildeo futurista a velocidade afigurar-se-ia como um elemento em constantemutaccedilatildeo no que toca a todas as formas de vida como uma caracteriacutestica inerente da sociedade modernaUsando exemplos das formas diversas ndash as operaccedilotildees mecacircnicas e tecnoloacutegicas o movimento da luz adestruiccedilatildeo de corpos o catildeo em movimento etc ndash os futuristas ilustram uma relevacircncia latente dofenoacutemeno da velocidade para aleacutem das dimensotildees puramente fiacutesicas 94Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p146Importaria ainda ter presente as seguintes consideraccedilotildees de Sloterdijk O discurso de Heidegger sobre oser-para-a-morte articula o sentimento de que a mobilizaccedilatildeo-para-a-morte do sujeito apoacutes 1918 natildeoreconhece qualquer acalmia A impossibilidade de uma desmobilizaccedilatildeo cunhou o estado de espiacuteritoexistencial das pessoas que fizeram parte do evento da Guerra Mundial - incluindo aqueles que apoacutes aguerra se precipitaram para aquilo que encaravam como entretenimento Como a mobilizaccedilatildeo para aguerra das guerras acabou por se provar irreversiacutevel para muitos dos combatentes o Dasein ulteriorrepresenta-se apenas por um militar contiacutenuo e por um deslizar de guerra para guerra - especialmenteentre aqueles que como os marxistas os darwinistas poliacuteticos e os decisionistas querem acreditar naconstacircncia da luta e da inimizade A siacutendrome que assomou imediatamente a seguir da Guerra Mundialcom o nome de fascismo baseada no movimento de uniatildeo e de luta desfilante em camisas negrasesquerdo-nacionalista de Mussolini influenciou numerosas formaccedilotildees poliacuteticas militares e culturais queapoacutes os anos de 1917 e 1918 sentiram exigiram glorificaram e praticaram a transiccedilatildeo de uma guerrapara a outra ndash nos Freikorps nas associaccedilotildees a favor da guerra civil nas tropas de assalto dos partidosparlamentares nos quadros revolucionaacuterios da esquerda e em algumas secccedilotildees da remexida arteEncontra-se o impulso fascista ndash a vontade de continuar a lutar apoacutes a guerra das guerras ndash em muitoslugares tambeacutem naqueles em que ele natildeo se chama assimrdquo Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder derNeuzeit Frankfurt aM 2014 p14695 Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p85

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desproporccedilotildees anteriores e posteriores O principal teorema civilizacionalmente dinacircmico

prescreve que no processo do mundo poacutes-hiato mais energias satildeo libertadas do que

podem ser contidas em formas de civilizaccedilatildeo transmissiacuteveis Isto significa que o excesso

croacutenico das mobilizaccedilotildees de atividades e a libertaccedilatildeo progressiva de fluxos de eventos pela

accedilatildeo movidos que se repercutem em reliacutequias objetivas propulsionam tanto a relaccedilatildeo com

o mundo como a experiecircncia da realidade na modernidade para crescentes e constantes

assimetrias96

Segundo Sloterdijk a exaustatildeo do presente deve-se ao facto de a accedilatildeo sensata

dos sujeitos ter sido substitutiacuteda pela sensaccedilatildeo de que se eacute impulsionado de forma

externa e infligida Os indiviacuteduos nas sociedades ocidentais apesar da prosperidade

material lamentam-se de depressatildeo e sobrecarga de tarefas O indiviacuteduo encontraria

aliacutevio em tudo o que natildeo tem de fundar ou inventar em tudo o que jaacute existia antes de

vir ao mundo e estaacute para existir quando do mundo partir Em tudo enfim que eacute

herdado tanto no material como nas regras e valores morais ndash e em relaccedilatildeo ao qual se

pode reivindicar uma validade objetiva mesmo que com a mesma natildeo se esteja

inteiramente satisfeito A este respeito Sloterdijk perspetiva os gestos do poder como

justificaccedilatildeo para tal quadro cultural apontado atraveacutes do recurso ao termo hiato a

ausecircncia de qualquer tipo de viacutenculo ou de modos de continuidade entre as novas

geraccedilotildees e as geraccedilotildees anteriores trata-se de acordo com o filoacutesofo da consideraccedilatildeo de

formas lacunares insertas no tempo de modos de rutura entre o antes e o depois A

capacidade de sobrevivecircncia de uma cultura traduz a sua potencialidade de se repetir

com sucesso apenas quando o herdado conta mais do que o novo apenas quando o

vigente natildeo ultrapassa o legiacutetimo haacute mais estabilidade do que erosatildeo Tal de acordo

com a anaacutelise de Sloterdijk correra razoavelmente bem ateacute ao Renascimento a eacutepoca

em que mercadores descobridores e artistas abandonaram os guetos das guildas e

assumiram posiccedilotildees influentes e prestigiadas Foi com a Revoluccedilatildeo Francesa que

segundo Sloterdijk a reviravolta futurista finalmente se estabeleceu ndash um imparaacutevel e

dinacircmico processo

96 Sloterdijk P Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014 p84

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13 | ldquoA mobilizaccedilatildeo totalrdquo e ldquoO trabalhadorrdquo aproximaccedilotildees ao pensamento

de Ernst Juumlnger

Os trabalhadores funcionam de acordo com leis semelhantes agraves das componentes de uma maacutequina

FW Taylor The Principles of Scientific Management

No ensaio A Mobilizaccedilatildeo Total97 de 1930 Ernst Juumlnger refere-se agrave Primeira

Guerra Mundial descrevendo- a como o acontecimento histoacuterico-beacutelico no qual o geacutenio

da guerra se embrenhou pela primeira vez com o geacutenio do progresso98 A mobilizaccedilatildeo

experienciada durante a Guerra natildeo soacute pelos exeacutercitos mas por toda a sociedade

constitui aos olhos de Juumlnger um princiacutepio estrutural da modernidade Tal como Juumlnger

salienta para que a vitoacuteria na guerra pudesse torna-se possiacutevel assistiu-se a uma

colossal pressatildeo nas universidades nos laboratoacuterios de pesquisa e nas faacutebricas para

desenvolver inovaccedilotildees tecnoloacutegicas cada vez mais raacutepidas as quais foram conduzidas

de modo imensamente acelerado agrave maturidade da sua produccedilatildeo Juumlnger traccedilou tal

princiacutepio estrutural agrave luz de uma crescente conversatildeo da vida em energia ndash o que de

acordo com o escritor alematildeo se traduziu como uma realizada materializada natildeo apenas

nos tempos de guerra mas tambeacutem nos tempos de paz Com a mobilizaccedilatildeo total

sustenta Juumlnger esbateu-se a diferenccedila entre guerra e paz ndash pois agora a guerra

avaliada como permanente corrida ao armamento prolonga-se em tempos da paz

Segundo Juumlnger a mobilizaccedilatildeo ocultar-se-ia atraacutes de uma maacutescara de razatildeo natildeo

sendo todavia racionalmente controlaacutevel e obedecendo somente agraves suas proacuteprias leis99

97 Walter Benjamin escreveu sobre este ensaio O que surge aqui sob disfarce de voluntaacuterio na PrimeiraGuerra Mundial posteriormente de mercenaacuterio no poacutes-guerra eacute na verdade o confiaacutevel e fascistaguerreiro das classesldquo Benjamin W Society GS III Berlin pp238-250 citado por Kiesel H ErnstJuumlnger Muumlnchen 2007 p378 Helmuth Kiesel por outro lado avalia o ensaio da seguinte formaldquoJuumlnger natildeo foi nem o inaugurador nem o difusor irrefletido da mobilizaccedilatildeo total mas quem lhe fez odiagnoacutesticordquo Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2007 p374 A respeito de Walter Benjamin e de ErnstJuumlnger eacute curioso que Theodor W Adorno numa entrevista em fevereiro de 1951 com o filoacutesofo ehistoriador judeu e amigo de Benjamin Gershom Scholem relacionou Ernst Juumlnger que fazia parte doEstado-Maior alematildeo em Paris com uma operaccedilatildeo de resgate e de salvaccedilatildeo de Walter Benjamin nocontexto da qual seria suposto Benjamin usar o disfarce que o salvaria de enfermeira num hospitalmilitar (Juumldische Allgemeine de 04062009) Veja tambeacutem a correspondecircncia entre Scholem e Juumlngerem ScholemG Ernst Juumlnger und Gershom Scholem Briefwechsel 1975-1981 em Weichelt M KraumlmerG (Ed) Sinn und Form (32009) Berlin 2009 p29398 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p 24599 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p240

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Num outro livro O Trabalhador100 (1932) que funcionaraacute como complemento de A

Mobilizaccedilatildeo Total Ernst Juumlnger procura transcender a sua experiecircncia da guerra e

iniciar um diagnoacutestico universal da modernidade Em verdade O Trabalhador retrata

a figura do ldquotrabalhadorrdquo como poder elementar passiacutevel de destruir a sociedade

burguesa Nele Juumlnger revela a emergecircncia de uma nova eacutepoca caracterizada pelo

ldquocaraacutecter total de trabalhordquo que destroacutei os valores do mundo burguecircs ndash a apreciaccedilatildeo do

indiviacuteduo o liberalismo democraacutetico o contrato social ndash contrapondo-lhes conceccedilotildees

de ldquotipordquo e proclamando noccedilotildees de ldquoestado operaacuteriordquo e de ldquoplano de trabalhordquo como

factos objetivos A visatildeo geral de Juumlnger sobre as diferentes eacutepocas culturais natildeo eacute

fundamentada com uma teoria rigorosa Juumlnger prefere referir-se as distintas formas do

ldquotrabalhadorrdquo a partir de diferentes perspetivas Deste modo Juumlnger dissocia tais

formas das condiccedilotildees sociais e concebe-as agrave luz de um poder elementar Este invade o

mundo burguecircs e remodela-o ateacute desaparecer definitivamente Como as formas natildeo satildeo

fenoacutemenos transitoacuterios de configuraccedilotildees espontaneamente concebidas mas antes

intemporais as suas intervenccedilotildees fortalecidas na modernidade tornam-se parte de um

processo inevitaacutevel Na segunda parte do livro Juumlnger oferece um rico panorama de

observaccedilotildees sobre a ascensatildeo da figura do ldquotrabalhadorrdquo que vai desde o vestiaacuterio o

comportamento das massas nos seus tempos livres o culto do corpo a rejeiccedilatildeo do teatro

a favor do cinema o comportamento dos moradores das cidades etc Central aqui eacute a

substituiccedilatildeo do indiviacuteduo pelo ldquotrabalhadorrdquo enquanto tipo A isto estaacute associada uma

uniformidade do mundo civilizado (visiacutevel tambeacutem na similaridade entre aacutereas diacutespares

como as da publicidade da estatiacutestica etc) que ocasionalmente se converte num tipo de

crueldade Mais tarde no final da deacutecada de 1930 o proacuteprio Juumlnger abandonaria esta

sua perspetivaccedilatildeo Como alternativa o escritor alematildeo procurou avaliar possibilidades

que permitissem ao indiviacuteduo escapar ao funcionalismo do mundo total do trabalho

segundo as quais o ser humano pudesse sobreviver agrave succcedilatildeo niilista quando

confrontado com a aniquilaccedilatildeordquo Considerando que de acordo com o conceito de

mobilizaccedilatildeo total o ldquosistemardquo se afigura capaz de integrar qualquer resistecircncia ativa

Juumlnger contrapotildee-lhe um momento de resistecircncia do ldquodisfuncionalrdquo101

Embora O Trabalhador soacute possa ser varialmente interpretado como um

diagnoacutestico de um sistema ora totalitaacuterio fascista ora comunista-estalinista ou

100 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934101 Citado por Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p253

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porventura capitalista o livro foi tomado por muitos criacuteticos como uma antecipaccedilatildeo da

realidade do fascismo no Terceiro Reich102 Agrave estrutura da obra subjaz como jaacute

mencionado a hipoacutetese formulada por Juumlnger de que as suas observaccedilotildees e conclusotildees

sobre a postura do ser humano na Primeira Guerra Mundial tambeacutem pertencem ao

mundo da paz Entre outras coisas estaacute presente a ideia de libertar todas as forccedilas

produtivas A base para o seu diagnoacutestico eacute o reconhecimento da aceleraccedilatildeo como parte

do caraacutecter da modernidade Juumlnger declara neste sentido que o ser humano vive

numa eacutepoca de grande consumo cujo uacutenico efeito eacute o movimento acelerado das

rodas103 Embora O Trabalhador revele traccedilos antiliberais e anti-burgueses o livro foi

rejeitado pela imprensa nacional-socialista104

As obras O Trabalhador e A Mobilizaccedilatildeo Total contecircm elementos de pendor

diagnoacutestico apesar da afinidade com pensamentos militaristas e antiliberais a ambos os

textos estatildeo subjacentes o discernimento sobre o processo de desdobramento dialeacutetico

da Aufklaumlrung e a natureza dupla do uso natildeo restrito da razatildeo instrumental Salientar-se-

ia tambeacutem a afirmaccedilatildeo de que a tecnologia ascendera ao escalatildeo de sujeito histoacuterico

Assim resultam frutiacuteferos pontos de ligaccedilatildeo com a filosofia criacutetica da tecnologia

emergente durante e apoacutes a Segunda Guerra Mundial e ndash tenha-se presente ndash

desenvolvida pela primeira vez pelo irmatildeo de Ernst Juumlnger Friedrich Georg amigo

proacuteximo de Martin Heidegger De facto Heidegeer conhecia tanto A Mobilizaccedilatildeo

Total e O Trabalhador como ldquoA Perfeiccedilatildeo da Tecnologiardquo de Friedrich Georg

Juumlnger105 Com efeito para Heidegger Ernst Juumlnger afigurava-se como um dos mais

importantes representantes contemporacircneos da filosofia de Nietzsche106

102 Consultar Sombart N Ernst Juumlnger Der Arbeiter Zur Neuauflage 1964 In Nachdenkenuumlber Deutschland Vom Historismus zur Psychoanalyse Muumlnchen 1987 p147103 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p171104 A recensatildeo de Thilo von Trotha no Voumllkischer Beobachter apresenta de forma precisa as diferenccedilasideoloacutegicas entre Ernst Juumlnger e os nacional-socialistas as especulaccedilotildees Ernst Juumlnger sobre a tecnologiaa sua visatildeo planetaacuteria a sua declinaccedilatildeo de fundaccedilotildees racial-eacutetnicas a sua distinccedilatildeo categoacuterica entreburgueses e trabalhadores separam-no de forma muito clara da doutrina do Blut und Boden ancoradano nazismo Von Trotha T Das endlose dialektische Gespraumlch In Voumllkischer Beobachter Bayern-Ausgabe 45 Nr 296 vom 22 Oktober Muumlnchen 1932 p23 Peter Koslowski conclui bdquoOTrabalhadorldquo natildeo era compatiacutevel com a ideologia Blut und Boden (ldquosangue e terrardquo) do nazismoporque o seu trabalhador-tipo eacute tatildeo transnacional como eacute transsocialista e transcapitalistaldquo Koslowski PDer Mythos der Moderne Die dichterische Philosophie Ernst Juumlngers Muumlnchen 1991 p69 105 Juumlnger GF Die Perfektion der Technik Frankfurt a M 1946106 Heidegger M Zu Ernst Juumlnger Gesamtausgabe vol90 Frankfurt aM 2004Em janeiro de 1940 Heidegger convocou um pequeno ciacuterculo de colegas da Universidade de Freiburgpara um Debate sobre Juumlnger Desta assembleia resultam textos nos quais Heidegger expotildeedetalhadamente o seu juiacutezo sobre as visotildees de Juumlnger acerca do caraacutecter do tempo e da compreensatildeo daeacutepoca marcada pela vontade de poder e pela tecnologia Estes e outros materiais elaborados entre 1934e 1954 sobre Ernst Juumlnger que constituem em verdade reflexotildees sobre o contexto histoacuterico do

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O grau de destruiccedilatildeo humana cultural e civilizacional da Primeira Guerra

Mundial foi sentido pela maioria dos contemporacircneos como uma verdadeira rutura

Como resultado o quadro tradicional de referecircncias em que se inseriam o pensamento e

accedilatildeo foi profundamente abalado e questionado Com efeito Ernst Juumlnger em A

Mobilizaccedilatildeo Total acolheu a ideia da mobilizaccedilatildeo ldquoagrave maneira Nietzscheanardquo enquanto

libertaccedilatildeo do empedernimento civilizacional e da decadecircncia na sociedade tendo

acabado poreacutem por se distanciar por completo de tais posiccedilotildees ainda na deacutecada de

1930 A este respeito Peter Sloterdijk retoma em A Mobilizaccedilatildeo Infinita o conceito

de mobilizaccedilatildeo (total) de Ernst Juumlnger107 um conceito libertado do seu significado

militar especiacutefico e aplicado agrave sociedade moderna ndash como observa Sloterdijk De acordo

com Sloterdijk a liberdade de movimento constitui desde o Iluminismo a base fiacutesica

da autonomia Independentemente da forma como fora interpretada a mobilizaccedilatildeo fora-

o de algum modo positivamente pois muitas vezes se negligenciaram os aspetos

problemaacuteticos da sua dinacircmica

Este corre de tal maneira que noacutes empregamos com franqueza o conceito de mobilizaccedilatildeo

como expressatildeo principal para descrever e explicar o processo fundamental da

Modernidade [hellip] trata-se apenas por agora de corroborar a evidecircncia as

modernizaccedilotildees para noacutes apresentam sempre do ponto de vista cineacutetico o caraacutecter de

comunismo do nacional-socialismo e da guerra preenchem todo o volume 90 da ediccedilatildeo completa deobras de Heidegger O longo contacto amigaacutevel iniciado em 1942 e que durara mais de trinta anos comFriedrich Georg Juumlnger irmatildeo de Ernst inluenciou o pensamento de Heidegger de maneira marcanteDepois de 1945 a palestra A questatildeo da Tecnica datada de 1949 forma juntamente com Das Gestell(1955) o acircmago de pensamento de Heidegger acerca de tal questatildeo Inicialmente Heidegger tendera arelacionar a visatildeo de Juumlnger com o nacional-socialismo que nivelara as antigas fronteiras de classecriando uma nova grande vontade do Estado Gradualmente a partir de 193435 a perspetiva deHeidegger mudara A URSS e os Estados Unidos satildeo pensados pelo filoacutesofo jaacute em 1935 como expressatildeode o mesmo sombrio frenesim da tecnologia desenfreada e da organizaccedilatildeo sem fundamento de povos(Heidegger M Einfuumlhrung in die Metaphysik (Sommersemester 1935) Jaeger P (Ed) Frankfurt a M1983 p40) Se o nacional-socialismo fora tomado por Heidegger como uma alternativa poliacutetica agravemodernidade economizada e tecnologizada mais tarde o filoacutesofo alematildeo natildeo poderia continuar a ignoraruma realidade mais profunda ldquopois noacutes tambeacutem aumentamos o armamento em termos de tecnologia eorganizaccedilatildeo (numa palavra aumentamos o armamento para a ldquoMachenschaftrdquo(ldquomanipulativedominationrdquordquodominaccedilatildeo manipuladorardquo) Heit H Heideggers Revolution In Sezession (44) Steigra2015 p 22107 A controveacutersia em torno de Ernst Juumlnger do homem e da sua biografia revela complexidades deenorme monta A visatildeo convencional de Juumlnger como um entusiasta nacional-socialista constitui umaspeto que merece um atento esclarecimento ndash a este respeito Hannah Arendt manifesta-se sobre oescritor alematildeo rejeitando as posturas correntes de condenaccedilatildeo simplista Os diaacuterios de guerra de ErnstJuumlnger fornecem talvez a melhor e mais honesta prova das dificuldades enfrentadas pelo indiviacuteduoquando este quer manter inquebrantaacuteveis as proacuteprias conceccedilotildees de valor e o proacuteprio conceito de verdadenuma situaccedilatildeo no qual a moralidade e a verdade natildeo existem mais Apesar da influecircncia inegaacutevel da obrainicial de Juumlnger em certos membros da intelligentsia nazi ele era um ativo oponente ao nazismo doprimeiro ao uacuteltimo dia do regime provando que o conceito de honra um tanto antiquado uma vezcorrente no corpo de oficiais prussiano era completamente suficiente para uma resistecircncia individualArendt H Besuch in Deutschland Berlin 1993 p73

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mobilizaccediloumles [hellip] Que se multiplica o nuacutemero dos milionaacuterios nos negoacutecios que as

borboletas da nossa infacircncia jaacute natildeo existem que as curvas do turismo em paiacuteses distantes e

das despesas com o armamento mostram uma significativa tendecircncia para subirhellip [hellip]

Muito para aleacutem das intenccedilotildees de Juumlnger a categoria da mobilizaccedilatildeo pode facultar pontos

de vista que natildeo satildeo compatiacuteveis com o sono dos justos no projecto da Modernidade A

foacutermula ominosa da ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo prepara-nos para o reconhecimento que continua

sendo escandaloso ateacute quase insuportaacutevel de que haacute no mundo moderno um processo

fundamental poliacutetico-cineacutetico que tende a neutralizar de facto a diferenccedila moralmente

importante entre guerra e trabalho e anula cada vez mais a antiga distinccedilatildeo entre a

situaccedilatildeo de reserva e a entrada em acccedilatildeo Eacute esse precisamente o fatiacutedico processo de

mobilizaccedilatildeo que encaminha para a ldquofrenterdquo tudo quanto seja reserva de forccedilas e impele

para a realizaccedilatildeo tudo quanto seja potencial Dos exerciacutecios duvidosos de Juumlnger - o

homem mau que seraacute citado a grande distacircncia embora nunca sem respeito pela sua

capacidade de percepccedilatildeo - no sentido do diagnostico da eacutepoca resultou por fim a

definiccedilatildeo hellip como a ldquomobilizaccedilatildeo do planeta pela figura do trabalhadorrdquo108

A combinaccedilatildeo do entusiasmo de Juumlnger relativamente agrave tecnologia enquanto

desmascaramento e as posiccedilotildees de Heidegger quanto agrave essecircncia da tecnologia na

forma de Gestell serve a Sloterdijk como guia para a interpretaccedilatildeo da

mobilizaccedilatildeo enquanto processo fundamental autoacutegeno da Modernidade leva a pocircr agrave

disposiccedilatildeo potenciais de movimento sempre crescentes para manter posiccedilotildees que

precisamente devido agraves condiccedilotildees preacutevias e agraves consequecircncias desses estados de prontidatildeo

se tornam impossiacuteveis come posiccedilotildees e impelem para o insustentaacutevel 109

Com efeito de acordo com Sloterdijk a nova ldquoteoria criacuteticardquo deve desenvolver-

se segundo a possibilidade de integraccedilatildeo de uma investigaccedilatildeo em torno dos fenoacutemenos

da mobilizaccedilatildeo concebidos como eixos definidores da modernidade tardia procurando

soluccedilotildees de pendor criacutetico para tal realidade110

108 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p47109 Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p52110 bdquoAbre-se aqui para uma criacutetica alternativa da Modernidade o vasto campo dos paradoxos cineacuteticosDeste modo a criacutetica da sociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se apoacutes a derrocada do marxismoe depois do ambiacuteguo ensurdecimento das escolas de Francoforte ainda pode haver uma terceira versatildeo deteoria criacutetica de um tipo exigente entatildeo com certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica domovimento O seu criteacuterio terapecircutico consistiria na diferenciaccedilatildeo caso esta se possa conseguir comexactidatildeo entre autecircntica mobilidade e falsa mobilizaccedilatildeo A sua ofensiva exigecircncia de verdade basear-se-ia no reconhecimento de que haacute em questotildees cineacuteticas um espectro que se estende desde o fisioloacutegico ateacuteao poliacutetico Graccedilas a uma teoria criacutetica da mobilizaccedilatildeo lanccedilar-se-ia uma ponte sobre o abismo existenteentre o processo mental e o acontecer real no plano dos conceitos fundamentaishellip Se ela for possiacutevelentatildeo concretizar-se-ia desde o princiacutepio como escola preparatoacuteria da desmobilizaccedilatildeo Somente comotranquila teoria do movimento somente como silenciosa teoria da ruidosa mobilizaccedilatildeo eacute que uma criacuteticada Modernidade ainda pode ser diferente do objecto criticadohellipA questatildeo da possibilidade de uma

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Poder-se-ia com justeza afirmar que o ensaio de Ernst Juumlnger com o tiacutetulo A

Mobilizaccedilatildeo Total publicado em 1930 se afigura delineado segundo um certo sentido

de afinidade teoacuterica e conceptual com o universo de pensamento de O Trabalhador

constituindo com efeito como que uma introduccedilatildeo agraves temaacuteticas avanccediladas pelo filoacutesofo

nesta uacuteltima obra publicada dois anos depois em 1932111 Mediante a elaboraccedilatildeo do

conceito de ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo de contornos teoacutericos declaradamente beacutelicos Juumlnger

procurara perspetivar a emergecircncia de novos modos de preparaccedilatildeo e de conduccedilatildeo da

guerra cuja caracteriacutestica essencial consistiria no uso de todos os recursos disponiacuteveis

de um Estado bem como de todas as suas forccedilas civis e econoacutemicas com vista agrave

construccedilatildeo de um colossal processo de trabalho beacutelico ndash um exeacutercito de trabalho112

justamente Segundo a metafiacutesica de Juumlnger ndash se nos eacute permitido usar tal expressatildeo ndash a

designada ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo apresenta-se passiacutevel de ser realizada somente por si

mesma como que segundo uma certa autopoieses natildeo se afigurando suscetiacutevel de ser

desenvolvida por uma subjetividade que lhe seja exterior Tal como avanccedila Juumlnger a

ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo poderaacute ser concebida agrave luz do princiacutepio que criou as cidades

tecnologizadas e com as quais o ser humano se encontra profundamente

comprometido113 Segundo as posiccedilotildees expressas por Juumlnger em O Trabalhador poder-

se-aacute compreender que a mobilizaccedilatildeo total visa em verdade a dominaccedilatildeo para laacute da

guerra ndash todavia se pensarmos aqueacutem da esfera beacutelica importa pois conceber a

possibilidade de na era das massas e das maacutequinas cada indiviacuteduo se apresentar

impelido a transformar-se num trabalhador114

ldquoterceirardquo teoria criacutetica essencialmente diferente vai assim desembocar no enigma claacutessico como eacutepossiacutevel a calma na tempestade para seres do princiacutepio ao fim condenados agrave acccedilatildeoldquo Sloterdijk P AMobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002 p52Hartmut Rosa retomou tal posiccedilatildeo aprofundando-a bdquoTen years ago an analogous idea was advanced bythe hellipGerman philosopher Peter Sloterdijk who attempted to develop a new critical theory of ldquopoliticalkineticsrdquo conceived as a third version of critical theory after Marx and the Frankfurt School InSloterdijkrsquos view both earlier versions of critical theory ultimately failed because they misunderstood anduncritically supported the kinetic forces of modernity which set everything in motion until theyultimately achieve a state of ldquototal mobilizationrdquo (ldquototale Mobilmachungrdquo) a warlike state whereeverything is determined by the logic of speed Unfortunately Sloterdijkrsquos own approach was overlyspeculative unsystematic hellip Nonetheless we believe that something useful can be retrieved from hisotherwise highly problematic reformulation of critical theory In our view temporal structures provide aspecial point of access to the necessary connection between systemic macro- and individual microlevelperspectives on social experience There is no question that structural social transformations (for examplethe emergence of industrial capitalism) yield corresponding changes in individual self-understandings andorientations towards actionrdquo Rosa HScheuerman W High-Speed Society Social Acceleration Powerand Modernity Pennsylvania University Park 2009 p16111 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p97112 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p125113 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128114 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128

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Os sinais que traduzem tal realidade poderatildeo ser assinalados historicamente nos

uacuteltimos anos da Primeira Guerra Mundial assim os perspetiva Juumlnger de acordo com o

filoacutesofo a derrota dos alematildees deveraacute ser compreendida mediante a invocaccedilatildeo da falta

de adaptaccedilatildeo do povo alematildeo ao espiacuterito de progresso115 Como conceber tal posiccedilatildeo

de Juumlnger Com efeito segundo o filoacutesofo o progresso constitui a possibilidade de

configuraccedilatildeo de um ajuste ou de uma equalizaccedilatildeo das condiccedilotildees de vida dos povos

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave emergecircncia de uma ldquomobilizaccedilatildeo superiorrdquo dos recursos e das

forccedilas o que conduz por sua vez agrave desejada destruiccedilatildeo das caracteriacutesticas e das

tradiccedilotildees culturais e ao consequente desgaste da ldquomaacutescara humanitaacuteriardquo Neste sentido

tal como Juumlnger subtilmente o analisa o espiacuterito humanista do progresso como que

provoca paradoxalmente um inusitado novo curso do mundo natildeo antevisto pelos seus

preconizadores nas suas intenccedilotildees o niilismo completo o resultado inopinado do

progresso tal como Juumlnger o avalia constitui uma das temaacuteticas filosoacuteficas mais

relevantes de O Trabalhador ndash pois de acordo com o filoacutesofo o desejo do alcance de

um ldquoponto zero civilizacionalrdquo e num sentido dialeacutetico a inversatildeo de tal movimento na

sua direccedilatildeo oposta apresenta-se como a uacutenica possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a emergecircncia de uma nova realidade a realidade da ldquomobilizaccedilatildeo totalrdquo

A possibilidade de redenccedilatildeo ou de salvaccedilatildeo do niilismo a que o progresso

burguecircs no conduzira afigura-se aos olhos de Juumlnger como decorrecircncia de um poder

que se revela como mobilizaccedilatildeo total Importaria a este respeito ter presente que tal

conceito de Juumlnger o conceito de mobilizaccedilatildeo total se apresenta como uma expressatildeo

que representa uma realidade mais abrangente do que a sua envolvecircncia beacutelica ou

militar parece fazer crer Trata-se em verdade de um conceito que traduz um elemento

essencialmente utoacutepico e fantaacutestico da ideia de civilizaccedilatildeo elaborada por Juumlnger

Conquanto a origem de tal conceito resida na avaliaccedilatildeo teoacuterica da experiecircncia da guerra

que culmina com o ensaio que integra o proacuteprio conceito no seu tiacutetulo A Mobilizaccedilatildeo

Total apresentar-se teoricamente insuficiente ou porventura conceptualmente

equiacutevoco definir a noccedilatildeo em questatildeo mediante a consideraccedilatildeo de modos de incremento

intensificaccedilatildeo ou expansatildeo radical de tal realidade representada O conceito de

mobilizaccedilatildeo total constitui-se como um dos elementos centrais do pensamento de

Juumlnger ndash e sua envolvecircncia filosoacutefica na qual se integra uma certa conceccedilatildeo relativa agrave

sua determinaccedilatildeo fatiacutedica como que historicamente necessaacuteria e repleta de sentido

115 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 pp129 136

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metafiacutesico natildeo deveraacute ser desprezada nem depreciada Tal como a define Juumlnger a

mobilizaccedilatildeo total eacute

muito menos realizada do que ela proacutepria realiza se por ela proacutepria eacute na guerra e na paz a

expressatildeo das misteriosas e convincentes exigecircncias a que esta vida na era das massas e

das maacutequinas nos submete116

Curiosamente e tal natildeo deixa de ser surpreendente no seu ensaio A Mobilizaccedilatildeo

Total Juumlnger parece minimizar a temaacutetica da primazia da tecnologia no acircmbito da sua

definiccedilatildeo de mobilizaccedilatildeo total embora tal conceccedilatildeo se afigure central no contexto da

sua utopia tecnoloacutegica ndash como compreender tal posiccedilatildeo Poder-se-ia a este propoacutesito

evocar uma certa postura proacutepria de Juumlnger que natildeo raro se deseja afirmar pelos seus

contornos eminentemente metafiacutesicos como que corrigindo a impressatildeo de

materialismo frio Atente-se sobre a seguinte citaccedilatildeo

O lado teacutecnico da Mobilizaccedilatildeo Total natildeo eacute no entanto o decisivo Pelo contraacuterio a sua

condiccedilatildeo preacutevia como a condiccedilatildeo preacutevia de qualquer tecnologia eacute mais profunda

queremos abordaacute-la aqui como a prontidatildeo para a mobilizaccedilatildeo117

Natildeo obstante o seu caraacutecter metafisicamente natildeo necessaacuterio o desenvolvimento

teacutecnico natildeo eacute definido por Juumlnger como arbitraacuterio com efeito o filoacutesofo analisa a sua

proacutepria geraccedilatildeo na sua eufoacuterica disposiccedilatildeo para a submissatildeo exultante aos ditames

daquilo que eacute tecnicamente possiacutevel

A simultaneidade de certos meios com uma certa forma da humanidade natildeo depende do

acaso mas eacute enquadrada no quadro de uma necessidade superior A unidade do homem

com os seus meios eacute portanto a expressatildeo de uma unidade de tipo superior118

A instacircncia metafiacutesica que supostamente deveria promover tal unidade

perspetivada por Juumlnger a unidade do homem com os seus meios eacute avanccedilada pelo

filoacutesofo mediante a invocaccedilatildeo do conceito de espiacuterito do mundo (Weltgeist) Assim o

apresenta Juumlnger ldquoEacute um grande e terriacutevel espetaacuteculo ver os movimentos das massas

cada vez mais uniformemente formadas agraves quais o espiacuterito do mundo coloca as suas

armadilhasrdquo119

116 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128117 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p128118 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p240119 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p141

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Interessantemente tal quadro filosoacutefico traccedilado por Juumlnger parece desenvolver-

se segundo uma afinidade conceptual com o pensamento de Hegel em especial com a

sua conceccedilatildeo de espiacuterito do mundo A consideraccedilatildeo da introduccedilatildeo de certas referecircncias

histoacuterico-intelectuais natildeo nos permitem concluir uma influecircncia direta do sistema

hegeliano no pensamento de Juumlnger bem entendido em todo o caso poder-se-ia evocar

a existecircncia de relevantes analogias entre a importacircncia central do princiacutepio do trabalho

em Juumlnger e a ideia de Hegel relativa ao ldquoespiacuterito do mundo que se realiza no trabalhordquo

ndash ambas as conceccedilotildees parecem traduzir com uma consonacircncia comum o quadro

civilizacional da modernidade A este respeito o filoacutesofo Peter Koslowski afirma no

seu livro sobre o pensamento de Ernst Juumlnger com o tiacutetulo O Mito da Modernidade que

os sistemas totalitaacuterios de pendor comunista e fascista do seacuteculo XX continham nos

seus ideaacuterios entre outras coisas elementos de um exagero patoloacutegico do caraacuteter de

trabalho da modernidade O conceito de trabalho de Hegel120 bem como a sua

conceccedilatildeo de espiacuterito do mundo constituem elementos definidores da modernidade e

todos os seus erros podem ser rastreados ateacute ele

Apenas Hegel [] transferiu a ideia de que o sujeito se constitui unicamente atraveacutes do

120 No que respeita agraves relaccedilotildees entre as posiccedilotildees de Hegel e de Juumlnger sobre o conceito de trabalhoimportaria tomar em atenccedilatildeo as seguintes elucidaccedilotildees o lsquotrabalhadorrsquo de Juumlnger aponta com efeito parauma universalidade enquanto Gestalt provando que a categoria econoacutemica marxista do lsquotrabalhadorenquanto proletariadorsquo eacute insuficiente e e natildeo corresponde agrave ubiquidade do lsquocaraacutecter trabalhistarsquo namodernidade A 24 de setembro de 1978 numa carta a Henri Plard Juumlnger escreve ldquoNa altura natildeoconseguia prever o risco que estava a correr com a conceccedilatildeo Marx perspetiva o sistema do trabalhadormas natildeo o compreende totalmente Algo semelhante poderia ser determinado sobre a sua relaccedilatildeo comHegel Suspeito que Hegel estaria mais de acordo com a Gestalt do trabalhador do que com a reduccedilatildeomarxista de pendor econoacutemico A Gestalt representa o lsquoespiacuterito do mundorsquo para uma determinada eacutepocaincluindo no que diz respeito agrave economia O problema baacutesico eacute o poder este lsquodetermina o detalhersquordquo(Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 390) Tal como afirma Juumlnger o trabalhadorpoderia assim ser interpretado como a Gestalt que o espiacuterito do mundo assume no auge damodernidade e as interpretaccedilotildees hegeliano-idealista e marxista-materialista da figura do trabalhador satildeoapenas dois lados do mesmo fenoacutemeno Porque Por detraacutes da representaccedilatildeo do espiacuterito do mundo estaacute amateacuteria natildeo a ideia A teoria natildeo determina como Hegel frequentemente e decididamente enfatiza arealidade mas eacute a realidade que daacute origem a ideias a partir de si mesma Inclusivamente a invenccedilatildeoteacutecnica segue a sua compulsatildeo Natildeo eacute nem ficcional nem acidental em uacuteltima instacircncia Tal correspondea uma compreensatildeo da mateacuteria que nos conduz de regresso a Platatildeo ndash natildeo eacute materialista mas material(Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 390) Segundo Juumlnger a interpretaccedilatildeoeconoacutemica do trabalhador implica apenas um segmento da mobilizaccedilatildeo total da modernidade O facto deas avaliaccedilotildees econoacutemicas poderem ser alargadas em grande medida [hellip] pode ser explicado pelo facto deque o trabalho tambeacutem pode ser interpretado economicamente mas natildeo pelo facto de que o trabalho eacutesinoacutenimo de economia Pelo contraacuterio o trabalho eleva-se acima de tudo o que eacute econoacutemicordquo (Juumlnger ESaumlmtliche Werke (Vol8) Stuttgart 1982 p 94) Atraveacutes da mobilizaccedilatildeo na modernidade o ser humanotorna-se segundo Juumlnger um trabalhador total ideal para quem o mundo eacute apenas o material daapropriaccedilatildeo teacutecnica e do controlo De acordo com Juumlnger tal mobilizaccedilatildeo possui o seu iniacutecio na teoria deHegel sobre o espiacuterito do mundo a entidade que dentro da atividade do espiacuterito subjetivo (do serhumano) impulsiona o processo da histoacuteria mundial Do mesmo modo Hegel natildeo reconhece qualquerdiferenccedila real entre o desenvolvimento do trabalho humano e o desenvolvimento do mundo o mundoapresenta-se completamente entregue agraves matildeos do homem e do seu trabalho

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trabalho [] para Deus e assim deu uma consagraccedilatildeo quase religiosa ao caraacuteter de trabalho

do mundo ] O eu moderno sobrecarrega-se a si mesmo atraveacutes da sobrecarga de

trabalho que para o trabalhador da modernidade torna-se o uacutenico princiacutepio constitutivo da

sua subjetividade de facto o uacutenico princiacutepio para a criaccedilatildeo de sentido121

Tal como pertinentemente avalia Koslowski o passo filosoacutefico de Juumlnger

constitui-se como uma decorrecircncia concebida como culminante das posiccedilotildees de Hegel

acerca do trabalho como elemento definidor da subjetividade e do mundo modernos

atraveacutes do ensaio O Trabalhador Juumlnger ndash como que sem o entrever ndash contribuiacutea para a

possibilidade de revelaccedilatildeo de tais traccedilos patoloacutegicos do pensamento progressista e da

eacutetica do trabalho que caracterizam a modernidade promovendo mediante o culto do

trabalho o exacerbamento radical envolto num tom celebrativo de tal princiacutepio

constitutivo dos tempos modernos

No contexto da mobilizaccedilatildeo industrial moderna configurada agrave luz do progresso

teacutecnico anuncia-se uma caracteriacutestica relevantemente definidora do novo ldquotipordquo de

trabalhador trata-se da autoconsciecircncia (ou do reconhecimento) da sua capacidade de

domiacutenio das possibilidades que o raacutepido desenvolvimento dos meios teacutecnicos produz no

mundo e no ser humano A legitimaccedilatildeo da pretensatildeo do trabalhador a tal poder de

domiacutenio decorre do facto de aquele o trabalhador se afigurar de modo consciente

capaz de enfrentar os desafios da tecnologia de um modo soberano ndash pois

contrariamente ao bourgeois que manteacutem uma relaccedilatildeo secundaacuteria ou derivada com os

meios teacutecnicos o trabalhador desenvolve relativamente a estes uma ldquorelaccedilatildeo

substancialrdquo Esta eacute pois uma das linhas de pensamento mais estruturantes de O

Trabalhador

Na histoacuteria das descobertas geograacuteficas e cosmograacuteficas naquelas invenccedilotildees cujo sentido

mais secreto se revela uma vontade irada de omnipotecircncia omnipresenccedila e omnisciecircncia

[] o espiacuterito por assim dizer correu para aleacutem de si mesmo para acumular um material

que aguarda ordem e penetraccedilatildeo de poder Esse caos de factos meios de poder e

possibilidades de movimento surgira pronto para ser usado como uma ferramenta para

governar em grande escala122

121 Koslowski P Der Mythos der Moderne Die dichterische Philosophie Ernst Juumlngers Muumlnchen1991 p211122 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p71

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Tal como Juumlnger o analisa no contexto do seacuteculo XX o domiacutenio dos meios

teacutecnicos revela-se crescentemente como uma tarefa que a burguesia parece enfrentar

com a impotecircncia do aprendiz de feiticeiro do poema de Goethe A utilizaccedilatildeo parcial

orientada para o lucro dos meios teacutecnicos pela ordem econoacutemica burguesa constitui

apenas uma fraccedilatildeo do seu potencial desenvolvendo como que uma dinacircmica ou um

movimento sem direccedilatildeo ou orientaccedilatildeo determinaacuteveis que soacute poderatildeo revelar-se

destrutivos Por conseguinte o domiacutenio da tecnologia pelo trabalhador tal como

possibilitado no acircmbito da mobilizaccedilatildeo total eacute afirma-o Juumlnger da maior importacircncia

para o mundo123 Tal como avalia Juumlnger somente o trabalhador possui a soberania do

controlo do vasto arsenal de meios teacutecnico-industriais que no acircmbito do seacuteculo XX

adquiriram a forma de agentes destruidores totais ndash pois somente ele o trabalhador

manteacutem uma relaccedilatildeo direta com as forccedilas elementares e vitais apresentando-se a si

proacuteprio como o protagonista da mobilizaccedilatildeo teacutecnica Repare-se a este propoacutesito que

de acordo com o filoacutesofo a emancipaccedilatildeo moderna relativamente agrave esfera do natural e do

elementar tal como empreendida pelas elites burguesas promovera uma distanciaccedilatildeo da

vida (o que potenciara a equiacutevoca afirmaccedilatildeo de que a direccedilatildeo do progresso permitiria

um contiacutenuo e crescente desenvolvimento da prosperidade e da seguranccedila fiacutesica e

material) e em uacuteltima instacircncia a ausecircncia de contacto com as designadas ldquoforccedilas

elementaresrdquo configurando um estilo de vida burguecircs que se desenvolve segundo

relaccedilotildees ldquoderivadasrdquo124 com a realidade Inclusivamente no que concerne ao ideal

romacircntico da natureza encarnado num enquadramento burguecircs que desprezaria com

hostilidade o progresso Juumlnger vislumbra natildeo mais do que a expressatildeo de decadecircncia

de uma vida enfraquecida no seu acircmago revelando neste ponto a influecircncia de

Nietzsche

A nossa tarefa natildeo eacute ser as contrapartes mas os jogadores que tudo arriscam [] A

extensatildeo de um caminho que parecia levar ao conforto e agrave seguranccedila conduz agora agrave zona

do perigoso Neste sentido o trabalhador aparece aleacutem do recorte que o progresso lhe

mostrou como o portador da substacircncia baacutesica heroica que determina uma nova vida125

No seguimento de tais posiccedilotildees Juumlnger formula a sua perspetivaccedilatildeo decisiva o

ceacutelere progresso teacutecnico que supostamente deveria permitir agrave humanidade tornar-se

independente da natureza e dominar economicamente os seus recursos promovera uma

123 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p79124 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p46125 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p46

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aceleraccedilatildeo um incremento e uma dinacircmica teacutecnicos inesperados que tornam por sua

vez as forccedilas libertadas incontrolaacuteveis Segundo tal quadro Juumlnger delineia a conceccedilatildeo

de um sentido metafiacutesico que determinara o ser humano alienado no acircmbito no processo

de trabalho moderno como que propondo uma criacutetica ou uma soluccedilatildeo para as suas

visotildees assaz ambivalentes e oscilantes entre o lamento condenatoacuterio e a afirmaccedilatildeo

exultante da tecnologia ldquoA maacutequina roubou-nos muito Tirou o tudo de noacutes e fez de

noacutes especialistas [] Mas temos de reconhecer isto Os movimentos inevitaacuteveis natildeo

podem ser paradosrdquo126

Perante o reconhecimento da impossibilidade de deter o curso do

desenvolvimento tecnoloacutegico Juumlnger proclama a afirmaccedilatildeo da tecnologia

Na grande cidade entre carros e letreiros de neacuteon nas reuniotildees poliacuteticas de massa na

velocidade motora do trabalho e do prazer no meio da azaacutefama da Babilocircnia moderna

seria necessaacuterio parar por um momento como uma pessoa de outro mundo com o espanto

profundo do qual as crianccedilas satildeo capazes e dizer Tudo isto tem o seu significado um

significado profundo que tambeacutem se realiza em mim127

No mesmo tom de proclamaccedilatildeo metafiacutesica Juumlnger procura desenvolver a

afirmaccedilatildeo da tecnologia como que denunciado no seu proacuteprio pensamento uma

inspiraccedilatildeo futurista

E aqui eu senti novamente o que se sente atraacutes do motor do aviatildeo quando o punho empurra

o acelerador para a frente e o terriacutevel rugido da forccedila que quer escapar da terra se eleva ou

quando se corre pelas paisagens cicloacutepicas da regiatildeo do Ruhr num comboio Expresso agrave

noite enquanto as chamas brilhantes dos altos-fornos rasgam a escuridatildeo e no meio do

movimento furioso nenhum aacutetomo parece possiacutevel agrave mente que natildeo estaacute em trabalho128

Neste ponto do pensamento de Juumlnger a tecnologia parece constituir-se como o

siacutembolo do espiacuterito da eacutepoca ndash que por sua vez eacute capturado por um frio olhar que

penetra ateacute aos aacutetomos ldquodo trabalhordquo que seguem uma necessidade maior A partir de

tais conceccedilotildees Juumlnger traccedila uma perspetivaccedilatildeo relativa agraves condiccedilotildees preacutevias para a

designada ldquoGestalt do trabalhadorrdquo Com efeito em O Trabalhador o pensamento de

Juumlnger assume contornos eminentemente metafiacutesicos ndash eacute pois agrave luz de tal envolvecircncia

126 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p160127 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p301128 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p154

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que se deseja metafiacutesica que o conceito de Gestalt desempenha um papel determinante

Tenha-se presente a este respeito a relevacircncia intelectual de tal conceito no contexto de

iniacutecios do seacuteculo XX no acircmbito da Teoria Gestalt fundada por Christian von Ehrenfels

em 1889 a noccedilatildeo de Gestalt concebida segundo as possibilidades de percetibilidade

visual de formas externas apresenta-se transferida para o domiacutenio estrutural de outras

entidades sensoriais psicoloacutegicas ou inclusivamente espirituais Na deacutecada de 1920 o

conceito de Gestalt apresenta-se inserido e desenvolvido no acircmbito da filosofia de vida

(Lebensphilosophie) de Ludwig Klages e das ideias histoacuterico-filosoacuteficas de Theodor

Lessing129 Natildeo obstante os desenvolvimentos mais decisivos para a compreensatildeo de tal

conceito a partir do ponto de vista do pensamento de Juumlnger satildeo as posiccedilotildees elaboradas

por Leibniz Oswald Spengler e Hans Driesch Como definir e compreender tal conceito

a partir de Juumlnger Primeiramente importaria ter presente uma primeira relaccedilatildeo

porventura demasiado pueril mas nem por isso menos ilustrativa descrita por Juumlnge a

relaccedilatildeo entre carimbo (Stempel) ndash a partir do qual o filoacutesofo apresentaraacute o seu

conceito de Gestalt que encarna a categoria da perenidade ndash e estampagem (Praumlgung)

ndash concebida como a atualizaccedilatildeo concreta e temporal130 Leiamos Juumlnger a este respeito

Na Gestalt repousa o todo que compreende mais do que a soma das suas partes e que era

inalcanccedilaacutevel numa era anatoacutemica Eacute o sinal de um tempo que se voltaraacute a ver sentir e agir

sob o feiticcedilo das Gestalten [] Mas da maior importacircncia eacute o facto de que a Gestalt natildeo

estaacute sujeita aos elementos do fogo e da terra e que portanto o homem como Gestalt

pertence agrave eternidade131

O conceito de Gestalt constitui-se assim como um princiacutepio que tal como um

carimbo metafiacutesicordquo concede ao homem concreto ndash bem como a toda uma eacutepoca ndash a

sua forma (interior e exterior) tal forma natildeo estaacute sujeita agrave temporalidade mas repousa

eternamente em si mesma permanecendo para aleacutem do tempo ndash e como tal natildeo se

apresenta suscetiacutevel de ser descoberta mediante a metodologia cientiacutefica A

proximidade intelectual deste conceito com o quadro dualista ideia-aparecircncia tem

conduzido recorrentemente agrave consideraccedilatildeo do pensamento de Juumlnger como um

pensamento de pendor platoacutenico132 Com efeito o proacuteprio Ernst Juumlnger chamara a

129 Bohrer K-H Die Aumlsthetik des Schreckens Die pessimistische Romantik und Ernst JuumlngersFruumlhwerk MuumlnchenWien 1978 p476 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p94130 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p 37131 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p37132 Blumenberg H Der Mann vom Mond Uumlber Ernst Juumlnger Frankfurt a M 2007 p25 Meyer MErnst Juumlnger MuumlnchenWien 1990 p114 Trawny P Die Autoritaumlt des Zeugen Ernst Juumlngerspolitisches Werk Berlin 2009 p25

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atenccedilatildeo para a semelhanccedila da sua conceccedilatildeo de Gestalt com o conceito de Goethe de

planta primordial (Urplanze)133 Como tal enfatizando um certo sentido de

totalidade da natureza Juumlnger professara resolutamente o monismo134

Recorde-se que de acordo com a morfologia de Goethe as formas de

organismos existentes consistem em variaccedilotildees de um fenoacutemeno primordial

(Urphaumlnomen) do respetivo grupo de organismos que pode ser abstraiacutedo e concebido

como realidade perene das formas em mudanccedila Spengler por sua vez aplicara tal

conceito agrave histoacuteria perspetivando uma forma primordial (Urform) metafiacutesica de

cultura que se traduz como o ideal formal subjacente a todas as culturas135 Por sua vez

Juumlnger recorrera ao conceito de Gestalt para representar o surgimento de um novo

princiacutepio que governaria uma nova eacutepoca histoacuterica136 No ensaio Typus Name Gestalt

de 1963 Juumlnger ilustra o seu conceito de Gestalt atraveacutes de um modelo orgacircnico se

uma flor determinada (o aspeto concreto) for identificada com base nas suas

caracteriacutesticas como um liacuterio tal flor determinada pertenceraacute a um certo tipo Este

tipo apresenta-se determinado e produzido pela Gestalt ou seja a planta primordial

O conceito de Gestalt consiste no natildeo especificado137

As ideacuteias de Hans Driesch professor de Juumlnger poderatildeo ser igualmente

convocadas para o delineamento de tal modelo Segundo a bio-teoria de Driesch no

acircmbito da qual o todo eacute mais do que soma das suas partes tipo e totalidade

afiguram-se como palavras-chave de acordo com as posiccedilotildees de Driesch acerca do fator

de controlo da vida os seres vivos possuem um desenvolvimento autorregulador a que

o professor de Juumlnger designa de entelechie seguindo Aristoacuteteles Tendo presente que

este princiacutepio se revela eficaz em todos os organismos importaria compreendecirc-lo como

elo de ligaccedilatildeo dos seres vivos enquanto totalidade Com efeito Driesch estende tais

conceccedilotildees para um acircmbito metafiacutesico concedendo agrave forccedila vital entelequial uma

existecircncia transcendente natildeo submetida ao espaccedilo-tempo138 O proacuteprio Juumlnger refere-se

133 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p390 Consultar Gnoli A VolpiF Ernst Juumlnger Wien 2002 p42134 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p 242135Felken D Oswald Spengler Muumlnchen 1988 p42136 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p13137 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p138138 Loumlffler T Ernst Juumlngers organologische Verwindung der Technik auf dem Hintergrund derBiotheorie seines akademischen Lehrers Hans Driesch Em Titan Technik Ernst und Friedrich GeorgJuumlnger uumlber das technische Zeitalter Wuumlrzburg 2000 p 57

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igualmente agrave afinidade mantida entre o seu conceito de Gestalt e a monadologia de

Leibniz139 fazendo-nos recordar que tambeacutem Leibniz se debruccedilara sobre a ideia de

entelechie A partir da convocaccedilatildeo de diversas influecircncias nem sempre representadas

de um modo filosoficamente rigoroso ou conceptualmente claro Juumlnger crecirc encontrar-se

na posse de um elemento metafiacutesico que lhe permite garantir a unidade na

multiplicidade dos fenoacutemenos e por conseguinte estabelecer uma nova realidade140

com base em analogias

Poder-se-ia afirmar que no acircmbito de O Trabalhador Juumlnger parece

desenvolver ideias previamente elaboradas segundo uma tonalidade teoacuterica que poderaacute

ser descrita como uma fusatildeo de diagnoacutestico prognoacutestico e poleacutemica nesta obra o modo

de determinaccedilatildeo da Gestalt do trabalhador consiste em tornar-se reconheciacutevel

produzindo assim uma nova realidade neste quadro assim apreciado a tecnologia

enquanto siacutembolo desempenha um papel decisivo Ao longo da sua argumentaccedilatildeo

Juumlnger revela-se convicto de que a substituiccedilatildeo da burguesia pela classe trabalhadora se

apresenta como um processo inevitaacutevel trata-se pois de um ldquofactordquo ndash que natildeo merece

qualquer explicitaccedilatildeo por parte de Juumlnger ndash de que o trabalhador se encontra em

contacto com os poderes elementares necessitando de compreender-se a si mesmo

enquanto tal reconhecendo a superioridade metafiacutesica das suas potencialidades de

poder sobre a burguesia No seguimento de tais posiccedilotildees Juumlnger sustenta uma definiccedilatildeo

do conceito de trabalhador natildeo se trata de todo de proletariado mas sim de uma

unidade metafiacutesica Assim definido eacute tarefa do trabalhador cumprir-se enquanto tal

devendo primeiramente desenvolver o reconhecimento de si como expressatildeo de uma

Gestalt141

A visatildeo de Gestalten eacute um ato revolucionaacuterio pois reconhece um ser na plenitude total e

uniforme da vida Eacute a grande superioridade deste processo que se realiza para aleacutem das

avaliaccedilotildees morais e esteacuteticas bem como cientiacuteficas142

Tal como aponta Juumlnger em contraste com a visatildeo racional-positivista do

mundo que se afigura traccedilada segundo fragmentos diacutespares o trabalhador que se

alimenta da dimensatildeo profunda do ser apresenta-se capaz de compreender os siacutembolos

139 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p390140 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p13141 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p45142 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p46

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da unidade integral da vida O alinhamento do homem e da maacutequina acelerada sugerido

neste contexto pode assim ser justificado num mundo onde a velha distinccedilatildeo entre

forccedilas mecacircnicas e orgacircnicas falha143 o trabalhador enquanto entidade funcional

funde-se com os seus instrumentos De modo a traduzir tal fusatildeo Juumlnger elaborara o

termo construccedilatildeo orgacircnica tal processo por sua vez tornar-se-ia visiacutevel agrave luz da

inserccedilatildeo do ser humano numa rede num sistema abrangente de interligaccedilotildees com os

sistemas de transporte e com o sistema monetaacuterio bem como com os sistemas de meios

de comunicaccedilatildeo de massas e os meios de comunicaccedilatildeo144

Segundo as observaccedilotildees de Juumlnger tal fusatildeo entre o trabalhador e a tecnologia

poderaacute ser perspetivada agrave luz de um profundo processo de uniformizaccedilatildeo e de

massificaccedilatildeo do ser humano a fisionomia de cada individuo assume os contornos de

uma maacutescara que todos passam a usar a indumentaacuteria por sua vez assemelha-se a um

uniforme de trabalho a perda da individualidade ou da subjetividade individual torna-se

patente nos novos ideaacuterios das artes plaacutesticas do cinema ou da fotografia ndash evoque-se

pois o futurismo Inclusivamente na nova induacutestria emergente a publicidade torna-se

possiacutevel entrever a dissoluccedilatildeo da individualidade humana mediante a uniformizaccedilatildeo do

uso dos mesmos bens por todos os sujeitos atraveacutes do poder sugestivo e

profundamente influente dos anuacutencios publicitaacuterios elaborados por poucas corporaccedilotildees

Em O Trabalhador Juumlnger faz preceder as suas principais posiccedilotildees de uma

reflexatildeo fundamental acerca das relaccedilotildees entre o ser humano e a tecnologia advertindo

que o primeiro natildeo se afigura relativamente agrave segunda nem como seu criador nem

como sua viacutetima145 Com efeito poder-se-ia asseverar que de acordo com a visatildeo de

Juumlnger a dimensatildeo da teacutecnica ou da tecnologia natildeo se apresenta como elemento

definidor ou constitutivo do ser humano ou da relaccedilatildeo deste com o mundo Natildeo

obstante no contexto da modernidade ndash e em especial a partir do momento histoacuterico

que envolve a Primeira Guera Mundial ndash importaria conceber a tecnologia como

elemento determinante da emergecircncia e da configuraccedilatildeo de novas condiccedilotildees que

143 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p104144 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p124145 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160

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orientam a accedilatildeo humana como que criando uma nova realidade146 e interessantemente

uma nova linguagem vaacutelida no espaccedilo do trabalho que deve ser dominada

Esta linguagem natildeo eacute menos importante natildeo menos profunda do que qualquer outra pois

possui natildeo soacute gramaacutetica mas tambeacutem metafiacutesica Neste contexto a maacutequina desempenha

um papel tatildeo secundaacuterio como o do ser humano eacute apenas um dos oacutergatildeos atraveacutes dos quais

esta linguagem eacute falada147

Na sua qualidade de linguagem a tecnologia apresenta-se compreensiacutevel por

todos ela eacute pois universal ndash e como prova de tal realidade Juumlnger refere a sua raacutepida

difusatildeo mundial Aquele que se relaciona com a tecnologia aquele que fala a sua

linguagem adapta-se agraves possibilidades de um poder que se esconde por detraacutes dos

siacutembolos teacutecnicos148 Estes os siacutembolos teacutecnicos afiguram-se passiacuteveis de introduzir

alteraccedilotildees nos antigos siacutembolos tradicionais promovendo inclusivamente a destruiccedilatildeo

da velha lei da vida Curiosamente tal como Juumlnger a perspetiva a tecnologia revela-se

em uacuteltima instacircncia anticristatilde149 e correlativamente niilista a tecnologia promove a

anarquia anunciando-se como um meio de revoluccedilatildeo total150 Natildeo obstante

importaria elucidar tal como Juumlnger o faz que o poder destrutivo da tecnologia se

afigura passiacutevel de ser consumado apenas pela burguesia ndash natildeo pelo trabalhador

Repara-se que segundo Juumlnger apenas o representante da ldquoGestalt do trabalhadorrdquo o

trabalhador enquanto ldquotipordquo manteacutem uma relaccedilatildeo elementar com a tecnologia151

sabendo-se a si mesmo capaz de compreender a combinaccedilatildeo entre a vontade humana e

o poder tecnoloacutegico tendo em vista a mobilizaccedilatildeo total Homem e maacutequina ndash

trabalhador e tecnologia ndash constituem uma construccedilatildeo orgacircnica A tecnologia eacute a forma

pela qual a Gestalt do trabalhador mobiliza o mundo152

A este respeito o trabalhador desenvolve toda uma seacuterie de mutaccedilotildees de diversa

ordem provocada pela tecnologia153 O caraacutecter da tecnologia como siacutembolo

146 Figal G Der metaphysische Charakter der Moderne Ernst Juumlngers Schrift Uumlber die Linie (1950)und Martin Heideggers Kritik Uumlber bdquoDie Linieldquo (1955) em Ernst Juumlnger im 20 Jahrhundert Muumlller H(Ed) Muumlnchen 1995 P 186147 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160148 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp169172149 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p164150 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p173151 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160152 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p160153 Fiorentino F Mythographie einer zersplitterten Welt Ernst Juumlngers konservativ- revolutionaumlreAntwort auf die Moderne Em Prognosen Figal G e Knapp G (Ed) Tuumlbingen 2001 P 69

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destrutivo introduzida por Juumlnger em A Mobilizaccedilatildeo Total e repetida vaacuterias vezes e

gradualmente descrita em O Trabalhador aponta para uma preocupaccedilatildeo central do

autor natildeo restaratildeo duacutevidas de que a tecnologia eacute por sua proacutepria natureza um puro

meio de poder ausente de qualquer relaccedilatildeo com os ideais humanitaacuterios de progresso

seguranccedila fiacutesica ou material e inclusivamente de conforto A tecnologia permite com

efeito a satisfaccedilatildeo das exigecircncias do trabalhador especialmente no acircmbito da fase da

sua perfeiccedilatildeo mas o seu propoacutesito determinante consiste na possibilidade de alcance de

um estado de domiacutenio total O seu uacutenico escopo eacute a preparaccedilatildeo da unidade imperial154

Uma vez atingido este objetivo o desenvolvimento da teacutecnica perde o seu sentido

De modo a ilustrar as vantagens do impeacuterio prometido Juumlnger delineia o quadro

de um presente caoacutetico sujeito a mudanccedilas constantes no contexto do qual a guerra se

apresenta travada em tempo de paz devido a aspiraccedilotildees de pendor econoacutemico Tal

como Juumlnger o avalia a concorrecircncia excessivamente incrementada conduz agrave

destruiccedilatildeo de vastas somas de dinheiro que tecircm de ser gastas a fim de criar necessidades

natildeo naturais no consumidor e tornaacute-lo por seu turno dependente da conveniecircncia A

matildeo-de-obra empregue na produccedilatildeo de bens deve portanto ser constantemente

incrementada155 No entanto no acircmbito de O Trabalhador a economia estaacute sujeita a um

controlo rigoroso e a uma constacircncia de meios

Somente a constacircncia incondicional de meios natildeo importa como esses meios satildeo sempre

constituiacutedos eacute capaz de reduzir a competiccedilatildeo excessiva e imprevisiacutevel a uma competiccedilatildeo

como pode ser observada dentro dos reinos da natureza ou dentro das condiccedilotildees sociais

que se tornaram histoacutericas156

A constacircncia dos meios segundo Juumlnger soacute se afigura possiacutevel num espaccedilo

estaacutetico altamente ordenado no qual a mobilizaccedilatildeo total jaacute se encontra realizada Este

espaccedilo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da perfeiccedilatildeo da tecnologia condiccedilatildeo da sua possibilidade

de domiacutenio total157 Tal quadro revela justamente a visatildeo fulcral de Juumlnger acerca da

tecnologia esta representa uma espeacutecie de veiacuteculo metafiacutesico que deveria conduzir no

futuro a humanidade de regresso a uma era dourada Natildeo obstante de acordo com as

posiccedilotildees de Juumlnger a tecnologia encontra-se ainda numa fase de transiccedilatildeo e o uso dos

154 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp178 180155 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p184156 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p190157 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp182 190 194

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meios teacutecnicos de energia ainda possui um caraacutecter de oficina158 Revela-se neste

sentido imperioso ndash e tal consiste no apelo de Juumlnger dirigido a uma nova elite jaacute

presente em O Coraccedilatildeo Aventuroso (Das abenteuerliche Herz) de 1929 ndash ldquoincrementar

a forccedila e a velocidade dos processos Embora Juumlnger descreva a tecnologia a partir de

noccedilotildees como ferramenta meios e instrumentos o filoacutesofo natildeo a considera (de

acordo com uma definiccedilatildeo tradicional) como um meio neutro159 De acordo com Juumlnger

existem certas ordens ou comandos que se encontram entelechialmente incluiacutedos na

tecnologia possuindo uma autonomia proacutepria o que a dota por sua vez de um caraacuteter

demoniacuteaco Tal autonomiadaemonia pode ser concebida do ponto de vista do ser

humano como fator promotor de alienaccedilatildeo Em resposta a tal possibilidade Juumlnger

propotildee-se desenvolver contra-estrateacutegias segundo uma postura que poderaacute assemelhar-

se a determinadas posiccedilotildees marxistas ou tecnocratas Juumlnger esforccedila-se por desenvolver

uma re-instrumentalizaccedilatildeo da tecnologia

O modo como se processa a configuraccedilatildeo e a realizaccedilatildeo do Estado do

ldquotrabalhadorrdquo num sentido eminentemente poliacutetico permanece uma temaacutetica equiacutevoca

e pouco clara no interior do pensamento de Juumlnger Natildeo obstante a retoacuterica marcial

proacutepria de Juumlnger permite-nos compreender que a determinaccedilatildeo de tal estado natildeo

poderaacute concretizar-se sem o recurso agrave violecircncia Repare-se partindo de um outro ponto

de vista que tambeacutem a arte se constitui aos olhos de Juumlnger como um meio de

mudanccedila apta ao delineamento das condiccedilotildees de configuraccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo total

uma vez que a arte tambeacutem ela deve representar o ldquoGestalt do trabalhadorrdquo o seu

objeto principal eacute pois o trabalho o objetivo e a tarefa da arte satildeo o desenho espacial

uniforme que resulta na revalorizaccedilatildeo da escultura da arquitetura e do planeamento

urbano160 Tal como avanccedila Juumlnger o Estado deve assegurar o controlo das fontes de

mateacuterias-primas proclamando e decretando o dever de serviccedilo de trabalho para toda a

populaccedilatildeo161 O Parlamento por sua vez deveraacute ser transformado de oacutergatildeo da sociedade

num oacutergatildeo estatal determinando-se como uma entidade de trabalho O Estado no

contexto das poliacuteticas de educaccedilatildeo ndash que se anunciam como um quadro cultural

relevantiacutessimo ndash assume-se como responsaacutevel pela educaccedilatildeo dos afetos de uma raccedila

de pessoas desenvolvida em escolas especiais tendo em vista a criaccedilatildeo de uma nova

158 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 pp194 203159 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p170160 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p218161 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p293

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elite funcional que suporta todas as caracteriacutesticas de uma ordem162 A constituiccedilatildeo do

Estado eacute substituiacuteda pelo plano de trabalho ndash neste ponto como prontamente nos eacute

sugerido as posiccedilotildees de Juumlnger parecem evocar as poliacuteticas econoacutemicas sovieacuteticas

relativas aos planos quinquenais163

O poder do Estado eacute pois de acordo com Juumlnger determinado pela metafiacutesica

do mundo do trabalho e tal eacute decisivo ao ponto de o Gestalt do trabalhador se expressar

nas forccedilas responsaacuteveis164 A democracia do trabalho descrita por Juumlnger natildeo se

afigura declaradamente nacionalista (pois apresenta-se envolta por uma perspetiva

planetaacuteria global) nem nacional-socialista (natildeo estamos perante a ideologia de sangue

e solo) mas possui sim as caracteriacutesticas gerais de um sistema totalitaacuterio natildeo se

poderaacute portanto falar de uma utopia positiva A caracteriacutestica especial da sua

configuraccedilatildeo eacute com efeito a sua envolvecircncia metafiacutesica Assim de acordo com Ernst

Juumlnger o Estado do trabalhador possui por um lado as caracteriacutesticas de uma

tecnocracia e por outro os elementos metafiacutesicos cujas intenccedilotildees poderiam ser

reconhecidas por uma futura elite funcional (que Juumlnger designa de ordem)165

162 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p299163 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p300164 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p273165 Apoacutes a tomada do poder pelos nacional-socialistas Juumlnger refugiou-se numa emigraccedilatildeo interior queculminou numa resistecircncia poeacutetica com a escrita de Sobre as Faleacutesias de Maacutermore (Auf denMarmorklippen) Esta obra publicada em 1939 pouco antes do iniacutecio da Segunda Guerra Mundial natildeofora surpreendentemente banida pelas autoridades de censura Sobre as Faleacutesias de Maacutermore uma dassuas obras mais poleacutemicas poderaacute ser considerada como a pedra de toque da mudanccedila de atitude do autorrelativamente ao Nacional-Socialismo No centro da trama estatildeo o narrador em primeira pessoa emqualquer nome que o identifique e o irmatildeo Otho (a referecircncia aos disciacutepulos Ernst e Friedrich Georgpor detraacutes das personagens poderia natildeo obstante ser enunciada) As personagens vivem junto agraves faleacutesiasde maacutermore no Rautenklause perto de um lago a Grande Marina dedicando-se aiacute agrave botacircnica Satildeoapoiados pelo Padre Lampros interessado em filosofia natural Anteriormente serviram com oscavaleiros de roxo e para cumprir o seu dever de feudo participaram de uma campanha ilegal deconquista natildeo valorizando tal missatildeo como certa ou errada (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15)Stuttgart 1978 - 1983 P 259 294 287) A analogia com a participaccedilatildeo dos irmatildeos Juumlnger na PrimeiraGuerra Mundial e a justificaccedilatildeo de Ernst Juumlnger para a guerra revelam-se evidentes No passado osirmatildeos haviam sido membros da Ordem dos Mauritanos imersos no teacutedio ambos sonhavam compoder e superioridade abandonando a Ordem Os Mauritanos satildeo descritos como intelectuaisorgulhosos e fundamentalmente maus satildeo os velhos conhecedores do poder e veem amanhecer umanova hora para restaurar a tirania que tem vivido nos seus coraccedilotildees desde o iniacutecio (Disciacutepulos E AllWorks (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 Pp 265) Assim os representantes do Novo Nacionalismocom sua luta pelo poder e pela ditadura satildeo adequadamente caracterizados conquanto Juumlnger mencioneos Mauritanos como um siacutembolo intemporal O mauritanismo acredita Juumlnger floresce sempre onde oEstado revela fraqueza Juumlnger admite o seu erro mas ao mesmo tempo relativiza a sua culpa Mais tardeouvi o irmatildeo Otho dizer sobre os nossos tempos na Mauritacircnia que um erro soacute se torna um erro sepersistir nele (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 P265) Um membro dosmauritanos eacute igualmente o chefe dos guardas florestais que domina o Hochwald apostado em alargar oseu poder No iniacutecio soacute se ouvem rumores depois os relatos de violecircncia tornam-se mais frequentesO chefe dos guardas florestais agrega em torno de si a corjardquo promovendo a anarquia com umacombinaccedilatildeo de terror aberto e infiltraccedilatildeo E um decliacutenio dramaacutetico dos valores ocorre no acircmbito do caosprevalecente (Juumlnger E Saumlmtliche Werke (Vol15) Stuttgart 1978 - 1983 P 269)

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Natildeo obstante importaria ter presente a oscilaccedilatildeo continuamente presente no

espiacuterito de Juumlnger entre o lamento e a exultaccedilatildeo posiccedilotildees profundamente ambivalentes

relativamente agrave configuraccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo total O filoacutesofo debruccedila-se de facto

sobre o processo de empobrecimento e de deformaccedilatildeo a que o indiviacuteduo se encontra

sujeito no ambiente das grandes cidades e dos distritos industriais A este respeito

Juumlnger menciona a dissoluccedilatildeo da individualidade na massa de transeuntes e o

deambular do flacircneur como uma espeacutecie moribunda pelos meios de transporte

modernos

paisagens urbanas inteiras nas grandes cidades satildeo sobrepostas por um clima de

decadecircncia Aqui encontramos o indiviacuteduo em decliacutenio cujo sofrimento estaacute gravado em

dezenas de milhares de rostos e cuja visatildeo enche o observador de uma sensaccedilatildeo de

enfraquecimento de uma falta de um sentido 166

Tais observaccedilotildees veemente ilustrativas impelem-nos agrave convocaccedilatildeo das visotildees

expressionistas dos pintores desta eacutepoca todavia em contraste com tais artistas como

George Grosz (Metropolis) ou LS Lowry cuja visatildeo pouco generosa da atrofia da

individualidade ganha acuidade sobretudo pelo sofrimento imposto pelos sintomas da

modernidade teacutecnico-industrial Juumlnger natildeo condena tal desenvolvimento concebendo-

o neutralmente como um processo de transiccedilatildeo para novas formas de existecircncia que

deve por sua vez ser desejado incrementado e acelerado Tal como aponta Claudia

Gerhards no acircmbito do pensamento de Juumlnger estamos perante a seguinte posiccedilatildeo

a estrutura do movimento ascendente constante inscrito na ideia de progresso eacute

radicalizada [] em favor de uma mudanccedila abrupta de deficiecircncia extrema para

abundacircncia absoluta167

Considerando as perspetivaccedilotildees de Juumlnger sobre o domiacutenio do trabalhador a

partir do ponto de vista de um discurso apocaliacuteptico tal como Gerhards o empreende

tornam-se patentes as diversas caracteriacutesticas que identificam este ensaio como uma

contribuiccedilatildeo para o apocaliticismo da modernidade Em verdade Juumlnger interpreta a

modernidade como uma fase transitoacuteria na qual os fenoacutemenos de fragmentaccedilatildeo

Importaria ter presente que a obra O Trabalhador fora discutida de forma controversa na imprensa em1932 no Voumllkischer Beobachter surge uma criacutetica extremamente negativa a rejeiccedilatildeo de Juumlnger doconceito bioloacutegico de raccedila e da perspetiva planetaacuteria global que natildeo conhece nenhuma ideologia desangue e solo eacute pois deplorada pelos editores no jornal (Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2009 pp394)166 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p117 167 Gerhards C Apokalypse und Moderne Wuumlrzburg 1999 P33

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alienaccedilatildeo e destruiccedilatildeo natildeo soacute tecircm de ser suportados como tambeacutem forccedilados e

incrementados Para Juumlnger a Primeira Guerra Mundial constituiu o comeccedilo do decliacutenio

da ordem burguesa que se revelou incapaz de lidar com a dinacircmica da mecanizaccedilatildeo

Somente o trabalhador natildeo se encontra passivamente sujeito aos desenvolvimentos

especiacuteficos da modernidade podendo pois conduzir a sua accedilatildeo como protagonista da

aceleraccedilatildeo do incremento e da radicalizaccedilatildeo da modernidade no momento da

mobilizaccedilatildeo total O processo histoacuterico encontra entatildeo a sua conclusatildeo na perfeiccedilatildeo

da tecnologia na construccedilatildeo orgacircnica que permite ao trabalhador possuir o domiacutenio

absoluto no espaccedilo da dominaccedilatildeo planetaacuteria

Na sua interpretaccedilatildeo da modernidade Juumlnger acabaria por empreender a

paradoxal tentativa de uma re-mistificaccedilatildeo do mundo desencantado pela tecnologia e

pela racionalizaccedilatildeo procurando superar tal processo de empobrecimento atraveacutes de uma

descriccedilatildeo da tecnologia segundo categorias mitoloacutegicas e apocaliacutepticas Neste sentido

Juumlnger parece seguir a loacutegica interna da dialeacutetica do Iluminismo na medida em que a

religiatildeo se encontra secularizada pelo progresso do conhecimento o ser humano

perante a situaccedilatildeo de vazio de valores entatildeo criada reconhece-se a si mesmo nas suas

necessidades metafiacutesicas aspirando a preencher tal situaccedilatildeo com novos valores Como

tal a sacralizaccedilatildeo da tecnologia e a organizaccedilatildeo da poliacutetica transfiguradas em culto

constituem segundo Juumlnger as estrateacutegias mais importantes para superar tal situaccedilatildeo de

vacuidade

Martin Heidegger enfatizou de modo declarado que a leitura de O Trabalhador

lhe proporcionou a elaboraccedilatildeo de ideais fundamentais para suas proacuteprias interrogaccedilotildees

sobre tecnologia168 Por seu lado Ernst Juumlnger refere-se vaacuterias vezes ao longo da sua

obra ao conceito de tecnologia desenvolvido por Heidegger como Gestell169 Depois de

Juumlnger Heidegger assume que o conceito de trabalho alterado expressa uma nova

qualidade ldquoPois o trabalho (cf Ernst Juumlnger Der Arbeiter 1932) atinge agora uma

categoria metafiacutesica da objetificaccedilatildeo incondicional de tudo o que estaacute presente []rdquo170

168 Heidegger M (Briefe 1955) em Ernst Juumlnger ndash Martin Heidegger Briefe 1949 ndash 1975 Stuttgart2008 pp 155169 Juumlnger E Der Arbeiter Herrschaft und Gestalt Hamburg 1934 p539 Juumlnger E SaumlmtlicheWerke Stuttgart 1978 p564 Juumlnger E Die totale Mobilmachung Saumlmtliche Werke B7 Stuttgart 2002 p244170 Heidegger M Vortraumlge und Aufsaumltze Pfullingen 1954 p72

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O diaacutelogo entre Heidegger e Juumlnger apresenta-se envolto de relevante

importacircncia filosoacutefica O Walten do Gestell descreve um processo semelhante que

Ernst Juumlnger designou de mobilizaccedilatildeo total ou pensamento teacutecnico Enquanto que

Juumlnger procura sublinhar a existecircncia de um princiacutepio metafiacutesico oculto que integra um

objetivo determinaacutevel na histoacuteria Heidegger propotildee sustentar a emergecircncia da

perniciosa autonomia ou independecircncia do pensamento matemaacutetico-racionalista ndash

decorrente como bem sabemos do pensamento metafiacutesico que Heidegger procura

superar Tais conceccedilotildees de Heidegger e de Juumlnger poderatildeo ser vistas como confluentes

na sua tarefa de superaccedilatildeo do niilismo em Uumlber die Linie (Do outro lado da linha)

Juumlnger aspira a vislumbrar a linha da metafiacutesica cruzada integrando no seu

pensamento uma conceccedilatildeo de vontade de poder (ou a vontade terrena) Heidegger por

outro lado visa uma superaccedilatildeo da metafiacutesica propondo assim o delineamento de um

pensamento para aleacutem da metafiacutesica da vontade O texto de Juumlnger Uumlber die Linie171 eacute

curiosamente publicado pela primeira vez como parte integrante de uma publicaccedilatildeo

comemorativa do 60ordm aniversaacuterio de Martin Heidegger172 Atraveacutes de um foco

existencialista sobre o indiviacuteduo173 Juumlnger neste texto datado de 1950 introduz

algumas alteraccedilotildees na orientaccedilatildeo da sua interrogaccedilatildeo essencial repetidamente

formulada desde 1930 sobre como pode o homem escapar do uso sem sentido do

mundo das maacutequinas e dos autoacutematos174

171Juumlnger E Uumlber die Linie Frankfurt aM 1950 Juumlnger E Uumlber die Linie In Saumlmtliche Werke(Vol7) Stuttgart 1978 ndash 1983172 Kiesel H Ernst Juumlnger Muumlnchen 2007 p601173 Martus S Ernst Juumlnger Stuttgart 2001 p178174 Em ldquoUumlber die Linierdquo partindo da questatildeo do niilismo levantada na obra de Friedrich NietzscheJuumlnger revela-se natildeo obstante otimista de acordo com o filoacutesofo a travessia do ldquoponto zerordquo natildeoconstitui uma realidade ineacutedita ndash tal situaccedilatildeo jaacute fora superada por exemplo na poliacutetica designadamenteno afastamento dos alematildees relativamente aos partidos radicais Embora o niilismo domine os sistemaspoliacutetico-econoacutemicos e a ordem teacutecnica a crescente perda de valores a reduccedilatildeo da vida e a crescenteaceleraccedilatildeo dos processos indicam segundo Juumlnger que se atingiu um cliacutemax que promove por sua vezum contramovimento Todavia uma nova situaccedilatildeo de seguranccedila tal como Juumlnger a considera ainda natildeofora conquistada O cruzamento da linha a passagem do ponto zero divide o espetaacuteculo indica o meiomas natildeo o fim(Juumlnger E Uumlber die Linie In Saumlmtliche Werke (Vol7) Stuttgart 1978 ndash 1983 p261)Se a linha for atravessada uma nova devoccedilatildeo ao ser pode ser esperada (Juumlnger E Uumlber die Linie InSaumlmtliche Werke (Vol7) Stuttgart 1978 - 1983 p267) Interessantemente a reaccedilatildeo de Heidegger agraveconceccedilatildeo de superaccedilatildeo do niilismo proposta por Ernst Juumlnger eacute negativa Heidegger condena o facto deJuumlnger permanecer preso agrave linguagem e ao pensamento da metafiacutesica Como se mesmo a linguagem dametafiacutesica e da proacutepria metafiacutesica seja a do Deus vivo ou morto enquanto metafiacutesica impotildee aquelabarreira que impossibilita a transiccedilatildeo para laacute da linha ou seja a superaccedilatildeo do niilismordquo Heidegger MBriefe 1955 In Heidegger M Briefe 1949 ndash 1975 Stuttgart 2008 p172

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Capiacutetulo 2

Em torno do conceito de modernidade tardia

Posturas filosoacutefico-criacuteticas

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21 | A Teoria Criacutetica e a Modernidade

O nuacutecleo da criacutetica da economia poliacutetica de Marx eacute a necromancia como um heroacutei que desceao reino dos mortos para se bater com as sombras do valor Marx segue mantendo-se deforma inquietante atual no presente O morto-vivo que circula entre os seres humanos naqualidade de valor monetaacuterio e que na de comunicador sorridente subtrai o tempo e a almados vivos governa hoje quase sem subterfuacutegios sobre as sociedades avanccediladas O trabalhoa comunicaccedilatildeo a arte e o amor pertencem aqui por completo agraves eliminatoacuterias finais dodinheiro Formam a substacircncia da era dos media e da experiecircncia Tal como o dinheironecessita de tempo para ser aproveitado a chamada ldquogrande histoacuteriardquo tambeacutem prosseguede forma fantasmagoacuterica Toda a histoacuteria tornou-se tendencialmente uma histoacuteria doaproveitar eacute um jogo em constante prolongamento Contudo essa histoacuteria jaacute natildeo eacute umdiaacutelogo entre vivos e mortos sobre a bonomia do mundo mas antes uma impregnaccedilatildeo dovivo cada vez mais profunda pelo assombro econoacutemico Da subjetividade humana do nossotempo espreita cada vez mais descoberta a alma do dinheiro uma sociedade decompradores comprados e de prostituidores prostituiacutedos instala-se sob condiccedilotildees demercado globalizadas O claacutessico e liberal laissez-faire explicita-se num mamar e deixar-semamar poacutes-moderno

Peter Sloterdijk Temperamentos filosoacuteficos de Platatildeo a Foucault

Quid est beata vita securitas et perpetua tranquillitas

Seneca Epistulae morales ad Lucilium

ldquoNatildeo haacute vida correta na falsardquo175 Esta eacute uma das frases mais conhecidas de

Adorno integrada num aforismo que encerra uma secccedilatildeo de Minima Moralia dedicada

agrave reflexatildeo sobre as severas possibilidades de desenvolver uma vida boa ndash uma vida

correta ndash nos tempos modernos Recorde-se pois que a frase de Adorno proveacutem do

livro redigido nos uacuteltimos anos da Segunda Guerra Mundial ndash Minima Moralia

justamente ndash e publicado em 1951 com o subtiacutetulo assaz expressivo ldquoReflexotildees a partir

de uma vida danificadardquo A ceacutelebre maacutexima de Adorno evoca tal subtiacutetulo apoacutes o

colapso da civilizaccedilatildeo o morticiacutenio industrial organizado pelos nazis as duas

175 Na traduccedilatildeo de Luiz Bicca (Adorno TW Minima Moralia Reflexotildees a partir da vida danificadaTraduccedilatildeo de Luiz Bicca e revisatildeo de Guido de Almeida Satildeo Paulo 1992) lecirc-se ldquonatildeo haacute vida correta nafalsardquo jaacute na de Gabriel Cohn ldquoNatildeo haacute vida certa na falsardquo (Adorno TW Minima Moralia Reflexotildees apartir da vida lesada Trad Gabriel Cohn Rio de Janeiro 2008 p34) No original alematildeo lecirc-se ldquoEs gibtkein richtiges Leben im falschenrdquo (Adorno TW Minima Moralia Reflexionen aus dembeschaumldigten Leben Frankfurt a M 1951 p43) Em alematildeo a questatildeo eacute substancialmente complexa epor isso a sua traduccedilatildeo para o portuguecircs mostra-se difiacutecil Eacute apenas pela contraposiccedilatildeo da palavra alematildebdquorichtigldquo a bdquofalschldquo (bdquofalsaldquo) que esta se torna bdquocorretaldquo num sentido de ldquovida boardquo Sem a contraposiccedilatildeoa palavra e o conceito de bdquorichtigrdquo ligados agrave palavra e ao conceito de bdquoLebenrdquo (vida) teriam antes osignificado de bdquoverdadeiraldquo associado a bdquointensaldquo por exemplo bdquoIch habe nie richtig gelebtldquo deveriaaqui ser traduzido para bdquonunca vivi verdadeiramente (e intensivamente)ldquo O aforismo de Adorno jogaprecisamente com estas variantes de significado

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aterradoras guerras mundiais os totalitarismos de um tumultuoso seacuteculo XX os traumas

e as sistemaacuteticas reificaccedilotildees em que a presenccedila humana na modernidade teve de

incorrer ldquoa vidardquo teria ficado indelevelmente danificada mas natildeo obstante esta mesma

vida prolonga-se como que de um modo igualmente inexoraacutevel na modernidade

tardia176

Eacute aqui que se posicionam os autores da designada ldquoQuarta Geraccedilatildeo da Escola de

Frankfurtrdquo tais como Hartmut Rosa e Rahel Jaeggi que continuaram e prolongaram

durante os uacuteltimos anos o trabalho de desenvolvimento das ideias da teoria criacutetica

Estes desenvolvimentos posteriores da teoria criacutetica tentaram manter-se fieacuteis agraves

abordagens dos ldquofundadoresrdquo Marx Horkheimer Adorno e Marcuse mas tambeacutem de

outros representantes como Walter Benjamin ou Erich Fromm ndash incluindo por fim

Habermas e Honneth ndash sem adotar no entanto qualquer tipo de postura de limitaccedilatildeo ou

restriccedilatildeo a um determinado horizonte teoacuterico177 Pertence pois agraves posiccedilotildees basilares

desta escola teoacuterica a convicccedilatildeo de que as metodologias e as asserccedilotildees sobre a verdade

satildeo sempre historicamente fundamentadas e enquadradas que natildeo existem verdades

sociais supra-histoacutericas ou ahistoricamente vaacutelidas e que todas as formas de trabalho

teoacuterico tecircm de ser adaptadas agraves condiccedilotildees mutaacuteveis da praacutetica social Daqui resulta a

posiccedilatildeo de que novos projetos ou abordagens da teoria criacutetica natildeo devam apenas seguir

cegamente os pressupostos metodoloacutegicos e teoacutericos dos ldquoclaacutessicosrdquo da tradiccedilatildeo mas

adaptaacute-los continuamente ao contexto social em mutaccedilatildeo ndash no nosso caso ao contexto

da modernidade tardia

A este respeito Hartmut Rosa encontra-se em concordacircncia com a visatildeo de Axel

Honneth de que a identificaccedilatildeo de patologias sociais constitui um objetivo central natildeo

soacute da teoria criacutetica enquanto tal mas tambeacutem da filosofia social178 Representantes

desta tradiccedilatildeo de pensamento sempre recorreram a padrotildees normativos de ambas as

176 Natildeo obstante tecircm de ser encontrados espaccedilos nos quais as pessoas possam descobrir apoio efelicidade Para Adorno tal consistiria na arte Adorno reconhecia a grande arte ndash Beethoven SchoumlnbergBeckett ou Kafka ndash como algo que pela sua forma resiste ao inquieto decorrer da vida Em conformidadecom as posiccedilotildees de Adorno encontra-se sobretudo a grande arte que natildeo participava na injusticcedila domundo Pelo contraacuterio a sua existecircncia forccedila e beleza o seu espiacuterito de liberdade contestaram asmentiras nas quais todos parecem ter encontrado paz O iminente definhar da arte ndash a sua segundoAdorno perversa degeneraccedilatildeo em induacutestria da cultura ndash relaciona-se com o facto de cada vez maisartistas terem desistido de compreender a cultura o campo da liberdade que resiste agrave alienaccedilatildeo177 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p269178 HonnethA Pathologierı des Sozialen Frankfurt aM1994 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 p270

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aacutereas Estes padrotildees de valor que podem ser adotados em instituiccedilotildees ou estruturas

sociais e que caraterizam tais ldquopatologiasrdquo natildeo podem segundo Rosa ser deduzidos de

um ponto de vista supra-histoacuterico e supra-social O real sofrimento humano natildeo

constitui o mero ponto de partida normativo teoricamente apropriado mas o elemento

histoacuterico-social que motiva a criacutetica desenvolvida pela teoria criacutetica ndash tal base

normativa se assim a designarmos deveraacute estar caso se acompanhe esta posiccedilatildeo

ancorada no quotidiano e na experiecircncia de vida dos atores sociais

Tal como adverte Rosa sofrimento poreacutem natildeo significa num sentido imediato

uma oposiccedilatildeo consciente179 eacute sempre possiacutevel que os atores sociais sofram no interior

de instituiccedilotildees ou estruturas sem estarem (claramente) cientes de tal situaccedilatildeo e eacute

precisamente aqui que as teorias da falsa consciecircncia e da criacutetica ideoloacutegica ganham

plausibilidade e atratividade180 Tal como Hartmut Rosa expotildee no ensaio ldquoCriacutetica das

circunstacircncias do tempo Aceleraccedilatildeo e alienaccedilatildeo como conceitos-chave da criacutetica

socialrdquo (2009)181 o caminho mais promissor para uma variante contemporacircnea da teoria

criacutetica182 traccedila-se a seu ver (e de Rahel Jaeggi) a partir de uma justaposiccedilatildeo criacutetico-

comparativa entre as conceccedilotildees de ldquovida boardquo perseguidas (consciente ou

inconscienteimplicitamente) pelos atores e pelas praacuteticas sociais que eles de facto

praticam Eacute pois esta a convicccedilatildeo de Hartmut Rosa que desenvolveu em Identitaumlt und

kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor (1998) obra na qual se

confronta com o trabalho de Charles Taylor183 a ideia de que os sujeitos humanos nas

179 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p271180 A este respeito Sloterdijk exige uma nova teoria criacutetica da falsa mobilidade ldquoAssim a criacutetica dasociedade torna-se criacutetica da falsa mobilidade Se hellip ainda pode haver uma terceira versatildeo de teoriacriacutetica de um tipo exigente entatildeo com certeza que soacute sob a forma de uma teoria criacutetica do movimento Oseu criteacuterio terapecircutico consistiria na diferenciaccedilatildeo caso esta se possa conseguir com exactidatildeo entreautecircntica mobilidade e falsa mobolisaccedilatildeordquo (Sloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio deCastro Lisboa 2002 p41181 Consultar Jeaggi RWesche T(ed) Was ist Kritik Frankfurt aM 2009 pp23-54182 A primeira geraccedilatildeo da teoria criacutetica surgiu em termos intelectuais na Repuacuteblica de Weimar os seusseguidores mantinham contacto pessoal entre si Todos se encontravam sob ameaccedila da perseguiccedilatildeofascista e emigraram para fora da Alemanha (representantes TW Adorno M Horkheimer WBenjamin E Fromm H Marcuse Otto Kirchheimer etc) A segunda geraccedilatildeo da teoria criacutetica eracomposta na sua maioria por disciacutepulos de Horkheimer e Adorno cujo pensamento se fez sentir noperiacuteodo do poacutes-guerra contrariamente agrave primeira geraccedilatildeo a interaccedilatildeo destes membros tinha como basecontactos pessoais esporaacutedicos (representantes J Habermas L von Friedeburg A Lorenzer ASchmidt O Negt etc) Como representante principal da terceira geraccedilatildeo eacute frequentemente referido AHonneth (mais 37 candidatos do espaccedilo alematildeo e 32 do espaccedilo anglo-saxoacutenicco - Muharrem Accedilikgoumlzentra na lista com base na literatura avaliada em Acikgoumlz M Die Permanenz der kritischen TheorieMuumlnster 2014 p129) Mais recentemente impulsos inovadores (ldquo4 Geraccedilatildeordquo) chegam-nos de R Forstna temaacutetica da alienaccedilatildeo de R Jaeggie sobretudo de H Rosa183 Rosa H Identitaumlt und kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor Frankfurt aMNew York 1998

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suas accedilotildees e decisotildees retornam sempre a uma ndash consciente e reflexiva ou impliacutecita e

desarticulada ndash noccedilatildeo de ldquovida boardquo na qual encontram orientaccedilatildeo De acordo com

Rosa as pessoas necessitam de saber para onde querem (ou devem) mover-se e do que

seria para si mesmas uma vida realizada a fim de poderem agir184 as condiccedilotildees

sociais que motivam estruturalmente o sujeito a perseguir as ditas conceccedilotildees de uma

vida bem-sucedida e que se perdem nas suas circunstacircncias constituem assim um

ponto de investigaccedilatildeo privilegiado e extremamente relevante para a criacutetica social Por

esta razatildeo os ideais de autodeterminaccedilatildeo (individual e coletiva) tendo em vista o modo

de vida escolhido e a luta pela emancipaccedilatildeo dos obstaacuteculos poliacuteticos estruturais e

institucionais agrave concretizaccedilatildeo da autonomia ndash que sempre foram de importacircncia nuclear

na tradiccedilatildeo teoacuterica da Escola de Frankfurt ndash natildeo se devem guiar por normas universais

a promessa de autonomia e liberdade a convicccedilatildeo de que os indiviacuteduos devem ter o

direito e a oportunidade de encontrar uma vida adequada agraves suas capacidades

necessidades e esperanccedilas e o entendimento de que por essa mesma razatildeo a

comunidade poliacutetica deve organizar-se democraticamente para servir de molde para a

estrutura coletiva satildeo em termos filosoacuteficos o centro da modernidade formando o

coraccedilatildeo daquilo que Juumlrgen Habermas chamou ldquoprojeto da modernidaderdquo185

Consequentemente as condiccedilotildees sociais que estiolam a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo e aniquilam as potencialidades do exerciacutecio da autonomia individual e

coletiva devem ser identificadas e denunciadas sempre que se constituam como um

impedimento sistemaacutetico para um sujeito concretizar a sua ideia de uma vida boa186

Importaria aqui mencionar o criteacuterio de uma ldquotranscendecircncia intramundanardquo conforme

formulado por Axel Honneth187 Segundo este criteacuterio exige-se que os proacuteprios atores

sociais (e natildeo apenas os criacuteticos) tenham em sua posse uma noccedilatildeo acerca daquilo que

poderia configurar uma vida ou uma sociedade melhores e aleacutem disso que manifestem

nas suas praacuteticas diaacuterias uma sensibilidade para as patologias que a teoria criacutetica tenta

identificar formulando especificamente os modos possiacuteveis de superaccedilatildeo dessas

mesmas patologias

184 Rosa H Identitaumlt und kulturelle Praxis Politische Philosophie nach Charles Taylor Frankfurt aMNew York 1998 p38185 Habermas J Die Moderne ein unvollendetes Projekt Leipzig 1994186 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p272187Honneth A Pathologien der Vernunft Geschichte und Gegenwart der kritischen Theorie FrankfurtaM 2007

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As duas versotildees atualmente mais discutidas da teoria criacutetica (a teoria da

comunicaccedilatildeo de Juumlrgen Habermas e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth)

propotildeem dois princiacutepios distintos para a identificaccedilatildeo da unidade conceptual

fundamental de uma sociedade Segundo Habermas a unidade (synthesis) de uma

sociedade encontra-se nas circunstacircncias de aproximaccedilatildeo e no mundo da vida

construiacutedo com base na comunicaccedilatildeo enquanto que para Honneth satildeo as condiccedilotildees de

reconhecimento que formam a base de uma sociedade188 Importaria natildeo obstante

avanccedilar que Hartmut Rosa por seu turno trabalha com termos como ldquoaceleraccedilatildeordquo e

ldquoincrementordquo(ldquoSteigerungrdquo) todavia e tendo presente que conceitos como

ldquoaceleraccedilatildeordquo189 ou ldquoincrementordquo190 natildeo referem substacircncias mas processos Rosa natildeo

sustenta que a aceleraccedilatildeo eacute a base ou a unidade fundamental (synthesis) da sociedade

moderna ndash de um outro modo Rosa afirma que eacute pois a dynamis a loacutegica moderna do

desenvolvimento e da mudanccedila e que neste sentido a modernidade ndash e a modernidade

tardia em particular ndash seriam ininteligiacuteveis sem um entendimento adequado deste

princiacutepio de dinamizaccedilatildeo191 Hartmut Rosa natildeo questiona a premissa de que as

condiccedilotildees de interaccedilatildeo (que incluem as relaccedilotildees de comunicaccedilatildeo tal como as de

reconhecimento) possam ser concebiacuteveis como base de uma sociedade mas o filoacutesofo

procura sustentar em todo o caso que a modernidade tardia natildeo seraacute adequadamente

analisada e compreendida se natildeo forem tomados adequadamente em consideraccedilatildeo a

dimensatildeo dinacircmica da modernidade o poder transformador da aceleraccedilatildeo e do

incremento da mobilizaccedilatildeo e ainda as ldquocircunstacircncias de ressonacircnciardquo192

De acordo com o conceito de Juumlrgen Habermas desenvolvido na ldquoTeoria da

Accedilatildeo Comunicativardquo as patologias sociais surgem da distorccedilatildeo sistemaacutetica das

condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo193 Segundo Habermas eacute objetivo e missatildeo da teoria criacutetica

identificar as causas estruturais destas distorccedilotildees Eis a sua ideia fundamental as

reivindicaccedilotildees de poder e de conhecimento bem como as de valor e de verdade satildeo

188 Breuer S Kritische Theorie Tuumlbingen 2016 Walter-Busch E Geschichte der Frankfurter SchuleKritische Theorie und Politik Muumlnchen 2010189 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005190 Rosa H Resonanz Berlin 2016191 Gertenbach L Rosa H Kritische Theorie Stuttgart 2009 p 36 Rosa H Weltbeziehungen imZeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p123192 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p56 Rosa HRessonanz Berlin 2016 p113193 Habermas J Theorie des kommunikativen Handelns Frankfurt am Main 1981 Habermas JVorstudien und Ergaumlnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns Frankfurt am Main 1984

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justificadas apenas se forem ou puderem ser reconstruiacutedas como resultado de um

discurso livre de dominaccedilatildeo isto eacute quando emergirem ou pelo menos puderem

emergir de um discurso ao qual todas as posiccedilotildees e argumentos tecircm livre acesso De

acordo com tal visatildeo o processo de formular filtrar deliberar e ponderar coletivo dos

argumentos revela-se um processo moroso Tal como Habermas e os seus seguidores

apologistas de uma conceccedilatildeo de democracia deliberativa tecircm argumentado de forma

convincente o poder poliacutetico na modernidade soacute pode ser justificado se decorrer de um

processo democraacutetico de muacuteltiplas camadas processo este que necessita de um grande

nuacutemero de espaccedilos de discussatildeo e filtros para formular e experimentar argumentos e

reivindicaccedilotildees de validade Natildeo apenas todos os grupos sociais mas tambeacutem em

princiacutepio todo o indiviacuteduo deve ter a oportunidade de formular exigecircncias e ideias e de

as levar agrave praccedila puacuteblica para que sejam subsequente e gradualmente filtradas e

canalizadas pelo processo poliacutetico por meio de deliberaccedilatildeo e representaccedilatildeo ateacute ao ponto

de fazerem parte de decisotildees e leis coletivamente desenvolvidas No entanto mesmo se

considerarmos este conceito de democracia excessivo ou demasiado ambicioso natildeo haacute

duacutevida de que o processo de evoluccedilatildeo de uma vontade democraacutetica e de uma tomada de

decisatildeo satildeo por si soacute morosos Tal pressupotildee a identificaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo de cada

grupo social afetado e requer o desenvolvimento e a formulaccedilatildeo de argumentos e

programas (coletivos) a experiecircncia e a ponderaccedilatildeo deliberativos de posiccedilotildees e

reivindicaccedilotildees e finalmente o estabelecimento e a implementaccedilatildeo constitucional e

institucional de decisotildees e ambiccedilotildees vinculadas coletivamente Sob a condiccedilatildeo da

modernidade tardia se desenvolver agrave luz de um pluralismo poacutes-convencional e de um

aumento das dependecircncias globais este processo consome tendencialmente cada vez

mais tempo mais pessoas e mais grupos satildeo afetados cada vez menos coisas satildeo

inquestionaacuteveis e mais pontos de vista e mais necessidades diversas devem ser

considerados A complexidade das condiccedilotildees e das consequecircncias destas decisotildees

aumenta o que dificulta o planeamento e a previsibilidade das alternativas Em

contrapartida no processo de aceleraccedilatildeo os recursos de tempo disponiacuteveis para as

decisotildees tambeacutem natildeo avultam ndash pelo contraacuterio diminuem Devido agrave elevada taxa de

inovaccedilatildeo tecnoloacutegica agrave velocidade das transaccedilotildees econoacutemicas e ao ritmo da mudanccedila

sociocultural mais decisotildees tecircm de ser tomadas em menos tempo o que forccedila a poliacutetica

a acelerar o andamento das suas deliberaccedilotildees e decisotildees No entanto tal significa que os

horizontes e padrotildees temporais das tomadas de decisatildeo democraacuteticas e deliberativas por

um lado e os desenvolvimentos teacutecnicos econoacutemicos cientiacuteficos e culturais por outro

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divergem dramaticamente Sem negar a teoria da comunicaccedilatildeo de Habermas a longo

prazo natildeo se poderaacute evitar atentar contra os drasticamente alterados e acelerados

padrotildees de comunicaccedilatildeo sociais e privados tal como adverte Hartmut Rosa194

Habermas resume os seus pensamentos sobre a modernidade no notaacutevel ensaio

ldquoModernidade - um projeto inacabadordquo tal como se segue

A questatildeo permanece indecisa teremos que manter-nos com as intenccedilotildees do Iluminismo

apesar de ser corrompido ou pelo contraacuterio haveraacute que dar o projeto da modernidade

como perdido e desejar por exemplo que os potenciais cognitivos - que natildeo desembocam

no progresso teacutecnico no crescimento econoacutemico e na administraccedilatildeo racionalizada - sejam

canalizados de tal maneira que a praacutetica vital remetendo para tradiccedilotildees tornadas cegas

natildeo seja afetada por eles195

Eacute bem sabido que Habermas membro da Escola de Frankfurt apresenta-se

como um pensador que natildeo abdica do recurso ao conceito de Iluminismo a fim de

concretizar o potencial cognitivo e emancipatoacuterio desta linha de pensamento na

sociedade No excerto citado natildeo obstante revela-se tambeacutem a sua criacutetica da

modernidade como um processo de diferenciaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo ndash uma criacutetica baseada

nas teorias das sociedades modernas de Max Weber Durkheim e Simmel Habermas tal

como Simmel concebe o desenvolvimento social moderno como um processo funcional

de diferenciaccedilatildeo196 que conduz a que sociedades deixem de funcionar com base em

relaccedilotildees arcaicas ou feudais de parentesco sendo progressivamente dominadas por

sistemas como o da poliacutetica da economia etc Embora Habermas classifique

positivamente a racionalizaccedilatildeo moderna como um processo de diferenciaccedilatildeo porque

liberta o ser humano da tutela tambeacutem mediada pela tradiccedilatildeo ainda assim o filoacutesofo

refere um outro lado mais pernicioso trata-se do perigo do privileacutegio concedido agrave

ldquoaccedilatildeo racional-finalistardquo (Zweckrationales Handeln de Max Weber) e agrave ldquorazatildeo

Instrumentalrdquo197 (instrumentelle Vernunft de Max Horkheimer) afins ao ldquoprogresso

194 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt 2012 p206195 Habermas J A Modernidade um projeto inacabado Trad Nuno Ferreira Fonseca 1980 InCriacutetica - Revista do Pensamento Contemporacircneo 2 (1987) p13196 Simmel G Uumlber soziale Differenzierung Leipzig 1890197 Horkheimer M Zur Kritik der instrumentellen Vernunft Gesammelte Schriften vol6 bdquoZur Kritikder instrumentellen Vernunftldquo Frankfurt a M 1991 pp19-186 Segundo Habermas o conceito de razatildeoinstrumental lembra a ldquoracionalidade finaliacutestica alargada agrave totalidaderdquo a razatildeo teraacute assim assimiladopoder e uma distinccedilatildeo entre o que exige validade e o que beneficia de autopreservaccedilatildeordquo (Habermas JDer Diskurs der Moderne Zwoumllf Vorlesungen Frankfurt a M1985 p144) Poreacutem na ldquoDialeacutetica doEsclarecimentordquo Horkheimer e Adorno observaram acima de tudo uma ldquoliga entre razatildeo e soberaniapoder e legitimidaderdquo (Habermas J Der Diskurs der Moderne Zwoumllf Vorlesungen Frankfurt a

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teacutecnico [ao] crescimento econoacutemico e [agrave] administraccedilatildeo racionalizadardquo198 tal situaccedilatildeo

segundo Habermas poderaacute condenar agrave ldquoatrofiardquo199 toda a accedilatildeo comunicativa orientada

para a compreensibilidade (e a razatildeo comunicativa)

As teorias de modernidade ldquoclaacutessicasrdquo enfrentam vaacuterias objeccedilotildees200 Uma delas eacute

que o fenoacutemeno da modernidade eacute por elas interpretado como um desenvolvimento natildeo-

linear e contiacutenuo e que desta forma natildeo tem em conta ou natildeo o tem suficientemente em

conta as descontinuidades heterogeneidades ruturas e mudanccedilas na histoacuteria do mundo

ocidental da modernidade Outra objeccedilatildeo eacute o latente etno ou eurocentrismo das teorias

M1985 p146) Horkheimer distingue na sua criacutetica da razatildeo instrumental por um lado uma ldquorazatildeoobjetivardquo como o sistema abrangente de todos os seres (incluindo os seres humanos e suas finalidades) epor outro uma ldquorazatildeo subjetivardquo como a capacidade de classificar inferir deduzir ou seja o resumo dofuncionamento abstrato do mecanismo do pensamento Natildeo eacute a razoabilidade dos objetivos mas aadequaccedilatildeo dos procedimentos que satildeo objeto delas Nas suas obras especialmente na criacutetica eleapresenta a razatildeo instrumental como a loacutegica do domiacutenio sobre a natureza Esta tambeacutem tem um impactono pensamento e na psique do homem atraveacutes do pensamento abstrato dominaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo satildeointernalizadas Para Horkheimer a razatildeo encontra-se em crise pois hoje uma razatildeo objetiva natildeo eacuteconcebida ou mesmo contestada como ilusatildeo ndash pelo contraacuterio vivemos uma subjetivaccedilatildeo e formalizaccedilatildeoda razatildeo Ele advoga a favor de uma loacutegica de conteuacutedo em prol de uma loacutegica puramente formal Overdadeiro racionalismo seraacute mais do que uma simples forma e deveraacute incluir momentos de conteuacutedo Senatildeo haacute uma teoria social em particular como pano de fundo entatildeo toda a epistemologia permaneceraacuteformalista e abstrata A loacutegica formal (entendida anaacuteloga agrave matemaacutetica) seraacute apenas uma sucessatildeo detautologias sem um significado concreto na realidade histoacuterica Ao separar factos e valores o status quoseraacute sempre legitimado A razatildeo segundo Horkheimer e dentro de uma tradiccedilatildeo hegeliana e marxista eacute acapacidade de compreender as conexotildees dialeacuteticas como uma realidade mais profunda aleacutem de merasaparecircncias Jaacute que a razatildeo significaraacute sempre uma reconciliaccedilatildeo de contradiccedilotildees Horkeimer projeta umareconciliaccedilatildeo entre a razatildeo ldquoobjetivardquo e ldquosubjetivardquoHerbert Marcuse por outro lado descreve a razatildeo da seguinte forma ldquoA razatildeo eacute por essecircnciacontradiccedilatildeo oposiccedilatildeo negaccedilatildeo enquanto a razatildeo ainda natildeo for possiacutevelrdquo (Marcuse H Vernunft undRevolution Berlin 1962 p370) Ele estabelece uma diferenccedila entre o conceito de racionalidade (hojegeralmente uma racionalidade tecnoloacutegica) e o conceito de razatildeo A razatildeo seraacute o ser real dentro do qualestatildeo unidas todas as oposiccedilotildees cruciais (sujeito-objeto essecircncia-aparecircncia pensamento-ser) seraacute aunidade de facticidade e verdade coisa e conceito realidade e ideia existecircncia e essecircncia Mas o ser natildeoeacute racional imediatamente deveraacute antes ser levado agrave razatildeo pois existe na presente sociedade irracionaluma alternativa racional como possibilidade negativa A razatildeo eacute o objetivo desta sociedade (ideal) para acriacutetica da presenteexistente sociedade a razatildeo eacute a norma Marcuse distingue a razatildeo de umaracionalidade cientiacutefica formal ldquotecnoloacutegicardquo (como Horkheimer a razatildeo objetiva da subjetiva) Aciecircncia moderna libertara a natureza de todos os propoacutesitos a mateacuteria de todas as qualidades Emprimeiro plano estaraacute a operabilidade e usabilidade praacutetica A racionalidade cientiacutefica eacute desprovida devalor natildeo tem propoacutesitos eacute-lhes neutra eacute essencialmente uma mera forma que pode ser subjugada aqualquer fim Para Marcuse ldquoum a priori tecnoloacutegicordquo significa ver a natureza apenas como um potencialmeio enquanto mateacuteria controlaacutevel e organizaacutevel Natildeo tem valor eacute meramente mateacuteria mateacuteria-primapara exploraccedilatildeo natildeo lhe eacute imanente sentido plano ou propoacutesito A ldquoracionalidade tecnoloacutegicardquo significaolhar as coisas a natureza e os seres humanos como um meio em si A natureza eacute submetida a esta razatildeotecnoloacutegica e instrumentalista que estaacute adaptada agraves exigecircncias do capitalismo e esta conceccedilatildeo noentanto tambeacutem prevalece no homem na natureza do homem nos impulsos fundamentais em adaptaccedilatildeoagraves exigecircncias do sistema existente O domiacutenio da natureza combinado com o domiacutenio do homem ambosse tornam objetos substituiacuteveis Existe aqui uma analogia com a racionalidade formal de Max Webercomo a racionalidade dos meios empregues para qualquer propoacutesito198 Habermas J A Modernidade um projeto inacabado Trad Nuno Ferreira Fonseca 1980 InCriacutetica - Revista do Pensamento Contemporacircneo 2 (1987) 16199 Para a distinccedilatildeo de diferentes conceitos de razatildeo e soluccedilotildees concernentes a isto com referecircncia aHabermas consultar Vilares A O Percurso Eacutetico do Reconhecimento Porto 2017 p33200 Joas HKnoumlbl W Sozialtheorie Frankfurt aM 2004 p430

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de modernidade acusando-as de projetarem aspetos culturais especiacuteficos das sociedades

ocidentais nos objetivos universais de desenvolvimento Natildeo seraacute de nenhuma maneira

correto assumir que a modernidade na Ameacuterica Latina em Aacutefrica ou no Sudeste

Asiaacutetico teraacute o mesmo rumo ou ateacute os mesmos padrotildees estruturais e culturais que

conhecemos da Europa ou Ameacuterica do Norte Em ambos os casos a criacutetica aponta para

o facto de estas teorias da modernidade negarem a priori a possibilidade de um

pluralismo (histoacuterico eou geograacutefico) da modernidade No entanto natildeo seraacute de

esquecer que teorias ldquopoacutes-modernistasrdquo201 sobre o ldquopluralrdquo ou sobre as ldquomuacuteltiplas

modernidadesrdquo formam muitas vezes um espaccedilo lacunar na medida em que por um

lado justificam razoavelmente as contradiccedilotildees as diferenccedilas e as mudanccedilas da

modernidade ocidental e da heterogeneidade e hibridismo do moderno em diferentes

regiotildees do mundo mas por outro natildeo permitem especificar o que seraacute a ldquomodernidaderdquo

unificadora por detraacutes da multiplicidade de fenoacutemenos na qual a unidade se forma sob

uma pluralidade A dissoluccedilatildeo da ideia de moderno na ideia de pluralidade poderia

anular o conceito de modernidade o discurso sobre as ldquomuacuteltiplas modernidadesrdquo

poderia tornar-se equivalente agrave constataccedilatildeo de que existem diversas formas de vida e

201 Habermas daacute a seguinte sugestatildeo sobre o poacutes-modernismo e do mesmo modo aponta para o perigodesta linha de pensamento que ultimamente tambeacutem foi empregada por neoconservadores (por exemplonos Estados Unidos) para eludir justificaccedilotildees racionais e cientiacuteficas ldquo[] Com estes ldquopoacutesrdquo osprotagonistas querem desfazer-se de um passado agrave atualidade natildeo podem ainda dar um novo nome namedida em que para os reconheciacuteveis problemas do futuro natildeo temos ateacute agora nenhuma respostaFoacutermulas como ldquopoacutes-Iluminismordquo ou ldquopoacutes-histoacuteriardquo desempenham o mesmo papel Gestos de despedidaapressada como estes satildeo adequados aos periacuteodos de transiccedilatildeo Agrave primeira vista os ldquopoacutes-modernistasrdquo dehoje apenas repetem o credo dos assim chamados ldquopoacutes-racionalistasrdquo de ontem [hellip] Mas o prefixo quenos coloca diante de tais designaccedilotildees de estilo e de orientaccedilatildeo natildeo tem sempre o mesmo significado Oque eacute comum aos ldquoismosrdquo que se formam com o prefixo ldquopoacutesrdquo eacute o sentido do tomar distacircncia Elesexpressam uma experiecircncia de descontinuidade poreacutem assumem posiccedilotildees diferentes em relaccedilatildeo aopassado que distanciam Com a palavra ldquopoacutes-industrialrdquo por exemplo os socioacutelogos querem apenas dizerque o capitalismo continuou a desenvolver-se e que os novos setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos seampliaram agrave custa do acircmbito diretamente produtivo Com a palavra ldquopoacutes-empiacutericordquo os filoacutesofos queremdar a entender que determinados conceitos normativos de ciecircncia e de progresso cientiacutefico foramultrapassados pelas novas investigaccedilotildees Os ldquopoacutes-estruturalistasrdquo querem aperfeiccediloar mais do quesuperar (hellip) Inicialmente a expressatildeo ldquopoacutes-modernordquo designava novas variantes no interior do amploespectro da modernidade tardia isto ao ser aplicada nos Estados Unidos durante os anos 50 e 60 agravescorrentes literaacuterias que se queriam diferenciar das obras do modernismo inicial O poacutes-modernismo soacute setransformou em grito de guerra afetivamente carregado e diretamente poliacutetico quando nos anos 70 duasposiccedilotildees contraacuterias ganharam forccedila de expressatildeo de um lado os neoconservadoreshelliprdquo Habermas JArquitetura moderna e poacutes-moderna Trad Carlos Eduardo Jordatildeo Machado 1987 Novos EstudosCEBRAP 18 (1987) pp115-116 Eacute evidente que os vaacuterios aspetos do poacutes-modernismo podem serinterpretados e estruturados de forma diferente Uma sugestatildeo eacute feita por P Pereira ldquoTemos assim aquiloa que podemos chamar duas poacutes-modernidades uma (a que chamamos primeira) que se esboccedila noslimites da proacutepria modernidade que precisou de fragmentar o homem para o re-construir e re-conhecerface ao outro e que tem em conta a singularidade a finitude e a transitividade de todo o pensarremetendo essencialmente para a reconciliaccedilatildeo do pensamento com a vida outra (a segunda) que numaldquocontinuidaderdquo da loacutegica racionalista se configura em torno de uma ldquoestetizaccedilatildeordquo da realidadecaracteriacutestica a mediatizaccedilatildeo e da neo-coisificaccedilatildeo que tem resultado numa cultura poacutes-filosoacuteficardquoPereira P Do sentir e do pensar Porto 2006 p 89 Neste trabalho eacute utilizado o termo ldquomodernidadetardiardquo na tradiccedilatildeo da Escola de Frankfurt

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arranjos sociais que podem entrar em conflito O desafio central poderia ser portanto

descrever a modernidade ou entatildeo o processo de ldquomodernizaccedilatildeordquo ndash se se partilhar a

convicccedilatildeo de que esta comporta um desenvolvimento processual ndash de tal forma que esta

definiccedilatildeo possa absorver as mudanccedilas radicais na histoacuteria do Ocidente moderno bem

como a diversidade cultural das ldquomodernidadesrdquo contemporacircneas

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22 | A modernidade como fenoacutemeno contraditoacuterio

Eacute na faculdade de mentir que caracteriza a maior parte dos homens atuais que se baseia acivilizaccedilatildeo moderna (hellip) Atualmente a mentira chama-se utilitarismo ordem social sensopraacutetico disfarccedilou-se nestes nomes julgando assim passar incoacutegnita A maacutescara deu-lheprestiacutegio tornando-a misteriosa e portanto respeitada De forma que a mentira comoordem social pode praticar impunemente todos os assassinatos como utilitarismo todos osroubos como senso praacutetico todas as tolices e loucuras A mentira reina sobre o mundoQuase todos os homens satildeo suacutebditos desta omnipotente Majestade Derrubaacute-la do tronoarrancar-lhe das matildeos o cetro ensanguentado (hellip)

Teixeira de Pascoaes A Saudade e o Saudosismo

Como eacute que o indiviacuteduo apesar de ser mais autoacutenomo depende cada vez mais da sociedadeComo eacute que este se torna mais pessoal e mais solidaacuterio ao mesmo tempo Pois eacute irrefutaacutevelque estes dois movimentos por mais contraditoacuterios que pareccedilam aconteccedilamparalelamenterdquo

Eacutemile Durkheim Uumlber soziale Arbeitsteilung

Se atentarmos natildeo soacute aos textos ldquoclaacutessicosrdquo sobre a Modernidade mas tambeacutem a

outros tornar-se-aacute claro que a modernidade eacute um fenoacutemeno contraditoacuterio

ambivalente202 ldquoum fenoacutemeno ambiacuteguo incerto e de vaacuterias facesrdquo203 um acontecimento

que natildeo traz apenas algo de bom ou somente de mau mas de ambos oportunidades

mas tambeacutem riscos ganhos mas tambeacutem perdas aspetos positivos mas tambeacutem

negativos Por um lado a modernidade pode significar a libertaccedilatildeo204 libertaccedilatildeo das

ldquodependecircncias primordiaisrdquo205 das ldquolimitaccedilotildees tradicionais e (simplesmente)

202 Bauman Z Modernity and Ambivalence Ithaca NY 1991203 Beck UBeck-Gernsheim E Riskante Chancen Opladen 1990 p15204 Beck (Beck U Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne Frankfurt a M 1986p223) compreende o conceito de individualizaccedilatildeo autoacutenoma na modernidade sob um duplo sentido(positivonegativo) por um lado assistimos agrave separaccedilatildeo de formas e laccedilos sociais historicamentepredeterminados em contextos tradicionais de poder o que nos permite cumprir a dimensatildeo delibertaccedilatildeo da modernidade por outro lado verificamos a perda da seguranccedila no que diz respeito aoconhecimento da accedilatildeo das normas orientadoras do comportamento e da feacute imperando neste sentido adimensatildeo de desencanto (ldquoDimension der Entzauberungrdquo) Uma breve notaccedilatildeo sobre uma questatildeo de traduccedilatildeo a traduccedilatildeo do termo alematildeo Entzauberung eacuteprofundamente complexa A expressatildeo portuguesa desencantamento do mundo carece de um elementoque poderia ser associado a um elemento romacircntico maacutegico e talvez o termo des-enfeiticcedilamentocairia aqui melhor Entzauberung eacute um termo que natildeo pode ser traduzido por uma palavra soacute Comefeito o encantamento do mundo ocorreu principalmente no Romantismo alematildeo e com o processode desencantamento do mundo descrito por Max Weber verificou-se um processo oposto Oencantamento romacircntico poderia ser interpretado no sentido de Novalis quando o poeta descreve omundo a partir do seu conceito de idealismo maacutegico (Brucker M Novalis Leipzig 1992 p11)205 Habermas J Nachmetaphysisches Denken Philosophische Aufsaumltze Frankfurt aM 1989 p234

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monoacutetonasrdquo206 de ldquopressotildees fatiacutedicasrdquo 207 do ldquoespartilho dos papeacuteis normas e caminhos

de vida estanquesrdquo 208 das ldquocorrentes enferrujadas do estatuto e das ordens feudaisrdquo209

de ldquolaccedilos constritivosrdquo210 No entanto a acelerada emancipaccedilatildeo dos contextos

tradicionais tambeacutem se relaciona com uma ldquomagnanimidade em expansatildeordquo da

autonomia individual para planear e configurar a vidardquo 211 O ser humano tem a

oportunidade e a obrigaccedilatildeo ldquode construir biograficamente algo para si mesmo a partir

das perspetivas sugeridas pela sociedade sobre o curso da vidardquo 212 Este ldquoreivindica um

pedaccedilo da sua proacutepria vidardquo213 e pode escolher o seu niacutevel como antes nunca foi

possiacutevel Em todas as aacutereas desde o ldquopiso teacuterreo das mercadoriasrdquo ateacute ao ldquoandar

superiorrdquo onde se ldquoproduz sentidordquo214 existe ldquoriqueza de variedaderdquo215 e ldquovariedade de

opccedilotildeesrdquo216 Se antes apenas um modo de viver poderia ser representado como ldquonormalrdquo

agora muito outros podem concorrer ao mesmo epiacuteteto Uma ldquoficccedilatildeo idealrdquo do ldquoser

humano modernordquo217 eacute superada e substituiacuteda por uma nova compreensatildeo mais aberta

da identidade O Eu tem um horizonte de oportunidade para se libertar natildeo eacute ldquomais um

servo das convenccedilotildees e padronizaccedilotildees sociaisrdquo218 O ser humano tem em seu poder

mais do que nunca a possibilidade de ldquoser diferente sem medordquo segundo Adorno219

Natildeo obstante tal processo tambeacutem pode ser experienciado como uma ldquoperda dos

apoios convencionaisrdquo220 Por conseguinte modernidade tambeacutem pode significar perda

a ldquoperda de uma inclusatildeo social estaacutevelrdquo221 a ldquoperda de valores inquestionavelmente

vaacutelidosrdquo222 a ldquoperda da proteccedilatildeo abrangecircncia ndash coletiva e individual ndash de um abrigo de

significado (Sinn-Dach)rdquo223 a ldquoperda das certezas tradicionais no que diz respeito aos

206 Berger P Individualisierung Statusunsicherheit und Erfahrungsvielfalt Opladen 1996 p279207 Schoumlll A Ich glaube dass ich nicht an Gott glaube Frankfurt aM New York 1995 p227208 Keupp H Ambivalenzen postmoderner Identitaumlt Frankfurt aM 1994 p337209 Gross P Die Multioptionsgesellschaft Frankfurt aM 1994 p37210 Gergen K Das uumlbersaumlttigte Selbst Heidelberg 1996 p282211 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p38httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]212 Boumlhnisch L Sozialpaumldagogik der Lebensalter WeinheimMuumlnchen 1997 p34213 Beck U Jenseits von Stand und Klasse Goumlttingen 1983 p43214 Gross P Die Multioptionsgesellschaft Frankfurt aM 1994 p41215 Gross P Pop-Soziologie Zeitdiagnostik in der Multioptionsgesellschaft Wien 2003 p44216 Schroer M Individualisierte Gesllschaft Muumlnchen 1997 p174217 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p16httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]218 Keupp H Identitaumlten in der Ambivalenz der postmodernen Gesellschaft 2002 p16httpwwwippmuenchendetexteidentitaetenpdf [consultado em 15052018]219 AdornoTW Minima Moralia Gesammelte Schriften vol4 Frankfurt aM 1980 p113220 Habermas J Nachmetaphysisches Denken Philosophische Aufsaumltze Frankfurt aM 1989 p234221Barz H Neue Werte ndash Neue Wuumlnsche Future Values DuumlsseldorfBerlinRegensburg 2001 p 41222 Keupp H Bildung zwischen Anpassung und Lebenskunst Salzburg 2006 p6223 Hitzler RHoner A Bastelexistenz Frankfurt aM 1994 p307

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conhecimentos praacuteticos agraves crenccedilas e agraves normas orientadorasrdquo224 a ldquoperda do dado

adquiridordquo225 ldquoA saiacuteda do homem da sua menoridade de que ele proacuteprio eacute culpado eacute ao

mesmo tempo uma saiacuteda veloz do ninho das relaccedilotildees humanas em estruturas fixasrdquo226

O ldquoprojeto da Modernidaderdquo proclamado por Juumlrgen Habermas e outros autores

eacute sobretudo fundamentado na ideia e na promessa da saiacuteda do homem da sua

menoridade de que ele proacuteprio eacute culpado na promessa da autonomia e

autodeterminaccedilatildeo significativa desde o Iluminismo Tal natildeo contradiz contudo o facto

de que o sujeito autoacutenomo se encontra tambeacutem sob certa forma ldquodependenterdquo da ldquorede

de significadosrdquo de relaccedilotildees constitutivas e de comunidades para encontrar um plano

de vida razoaacutevel para si227 Mas esta ideia estaacute entrelaccedilada com a ideia poliacutetica de

participaccedilatildeo democraacutetica e de autodeterminaccedilatildeo pois as macrocondiccedilotildees

socioeconoacutemicas determinantes da accedilatildeo e da vida natildeo podem ser controladas pelos

indiviacuteduos enquanto tal Se estas satildeo mais do que um coincidente resultado da interaccedilatildeo

entre forccedilas sobre as quais natildeo haacute controlo entatildeo deveratildeo ser orientadas por um

processo deliberativo poliacutetico e coletivo A promessa da Modernidade decorre com

efeito do desejo de superar as restriccedilotildees impostas agrave autodeterminaccedilatildeo pela pobreza e a

escassez a doenccedila e a deficiecircncia a ignoracircncia e todas as possiacuteveis circunstacircncias

naturais adversas A este respeito assim escreve Hartmut Rosa

O projeto da modernidade faz-se numa forccedila de persuasatildeo e de atraccedilatildeo com aquilo a que

se poderia chamar a ldquoenergia cineacuteticardquo da sociedade tambeacutem com a introduccedilatildeo de uma

acelerada mudanccedila social De forma semelhante o desenvolvimento de uma economia

capitalista voltada para o crescimento forte e produtiva bem como o progresso

simultaneamente cientiacutefico e tecnoloacutegico produziram os recursos que credibilizaram a

promessa de transformaccedilatildeo poliacutetica da sociedade (por meio de redistribuiccedilatildeo) e de

liberdade de escolha Em suma o processo da aceleraccedilatildeo moderna (social e competitiva) e

o projeto (eacutetico) de autonomia e autodeterminaccedilatildeo tecircm-se pelo menos em princiacutepio

apoiado mutuamente Mas a Modernidade em determinados aspetos nunca cumpriu esta

promessahellip Hoje num seacuteculo XXI ldquoglobalizadordquo a promessa quase perdeu todo o seu

potencial e a pressatildeo ganhou tal magnitude que a ideia (democraacutetica) de autonomia

individual e coletiva se tornou quase anacroacutenica228

224 Beck U Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne Frankfurt aM 1986 p206225 Bolz N Die Sinngesellschaft Berlin 1997 p10226 Dahrendorf R Das Zerbrechen der Ligaturen und die Utopie der Weltbuumlrgergesllschaft FrankfurtaM 1994 p424227 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p113228 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115

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Segundo Hartmut Rosa a promessa de autonomia poliacutetica para organizar a

sociedade para aleacutem das necessidades econoacutemicas eacute ldquodentro de um quadro referente agrave

Modernidade tardia uma lembranccedila teacutenuerdquo229 pois a loacutegica da competiccedilatildeo do

ldquoincrementordquo (Steigerung) do crescimento e da aceleraccedilatildeo natildeo possui limites no seu

interior Isto seria segundo Rosa ldquoum equivalente da heterodeterminaccedilatildeo absoluta da

heteronomia completa e portanto tambeacutem uma negaccedilatildeo total da promessa da

Modernidaderdquo230 Os princiacutepios imperativos da aceleraccedilatildeo inovaccedilatildeo e do ldquoincrementordquo

(Steigerung) ameaccedilam erodir o campo de manobra da poliacutetica e o potencial de liberdade

nos modos individuais de viver231 assunto este com o qual natildeo soacute Hartmut Rosa mas

tambeacutem Zygmunt Bauman se ocupou

Zygmunt Bauman e Hartmut Rosa em particular tecircm-se envolvido

intensamente ao longo dos uacuteltimos anos nos seus respetivos trabalhos com o problema

do incremento da mobilizaccedilatildeo da dinamizaccedilatildeo progressiva e da aceleraccedilatildeo das

circunstacircncias sociais que ambos conceptualizam como caracteriacutesticas capitais da

Modernidade232 Ambos afirmam que em parte o projeto da aceleraccedilatildeo perpeacutetua se

emancipou e atingiu os seus limites naturais no presente tal como constatam que uma

ldquoUm grande nuacutemero de pessoas provavelmente ateacute a maioria nunca desfrutou da possibilidade dedeterminar autonomamente as suas proacuteprias vidas devido agraves pressotildees das condiccedilotildees de trabalhoheteroacutenomas Este argumento aplica-se na minha opiniatildeo natildeo apenas aos trabalhadores assalariados mastambeacutem aos empregadores e gerentes jamais conseguiram controlar as regras do jogo apenasaprenderam a jogaacute-lo com ecircxito E o ldquogrande compromissordquo de aceitar heteronomia no local de trabalhopara garantir autonomia na vida familiar nunca funcionou bem conforme nos apontou Charles Taylor(1988) No entanto o ldquosistema modernordquo de privatizaccedilatildeo eacutetica capitalismo econoacutemico e poliacuteticademocraacutetica conseguiu ldquomanter o sonho vivordquo ateacute agraves uacuteltimas trecircs deacutecadas do seacuteculo XX a promessa deuma ldquoexistecircncia paciacuteficardquo para usar a formulaccedilatildeo de Marcuse parecia crediacutevel pois esperava-se umcrescimento econoacutemico consistente progresso tecnoloacutegico emprego para todos reduccedilatildeo do horaacuterio detrabalho e um Estado social em crescimento A histoacuteria poderia ainda ser entendida como evolutiva se aluta econoacutemica (diaacuteria) a luta pela sobrevivecircncia e a competiccedilatildeo social perdessem o seu poder decisivosobre a forma individual e coletiva de viver No entanto o capitalismo somente valeria como um sistemaeconoacutemico aceitaacutevel culturalmente ao abrigo da firme convicccedilatildeo - propagada e compartilhada pelos seusdefensores de Adam Smith a Milton Friedman - de que o sistema se poderia tornar tatildeo produtivo einquebrantaacutevel que o indiviacuteduo acabaria por se ver em liberdade para pocircr em praacutetica os seus planos devida os seus sonhos valores e objetivos sem a ameaccedila ominosa de pobreza de decliacutenio e de fracasso Aaceleraccedilatildeo e a competitividade poderiam entatildeo ser interpretadas como meios para alcanccedilar o fim daautodeterminaccedilatildeo Como jaacute se deveria ter tornado evidente na argumentaccedilatildeo desenvolvida nos capiacutetulosanteriores sou da opiniatildeo de que na ldquosociedade da aceleraccedilatildeordquo da Modernidade tardia esta promessaperdeu toda a credibilidade A aceleraccedilatildeo jaacute natildeo eacute experienciada como uma forccedila de libertaccedilatildeo mascomo uma forccedila que exerce pressatildeo e opressatildeordquo Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 pp115 sgts229 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p118230 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115231Doumlrre K Lessenich S Rosa H Soziologie Kapitalismus Kritik Frankfurt aM 2009232 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005

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vez ultrapassados esses limites se poderaacute tornar mais difiacutecil manter em accedilatildeo a demanda

pela sincronizaccedilatildeo e integraccedilatildeo sociais Relativamente a este aspeto os autores

reportam a ldquotransiccedilatildeordquo para outra fase da Modernidade233

Numa das suas obras Bauman descreve metaforicamente o estado desta eacutepoca

atual ldquoLiquid Modernityrdquo234 eacute uma das suas obras principais que reuacutene os seus

pensamentos sobre a nova orientaccedilatildeo da Modernidade235 Bauman recorre agrave metaacutefora da

liquidez para compreender as especificidades do presente e da nova fase da histoacuteria da

nossa era236 Em contraste com uma precedente Modernidade soacutelida esta reorientaccedilatildeo

associa-se agrave crescente volatilizaccedilatildeo ldquode tudo que era dos estados (ou ordens sociais) e

estaacutevelrdquo237 e agraves dinacircmicas contiacutenuas de aceleraccedilatildeo238 Neste sentido Bauman afirma que

a ordem atual se apresenta determinada essencialmente pela sua volatilidade pela

inadequaccedilatildeo das estruturas sisteacutemicas pela liquefaccedilatildeo do quotidiano e pela

flexibilizaccedilatildeo especialmente no domiacutenio do trabalho De acordo com o filoacutesofo os

processos de trabalho e de vida temporalmente rotineiros (e espacialmente vinculados)

foram substituiacutedos por padrotildees temporais e espacialmente muito mais flexiacuteveis Estas

condiccedilotildees de vida em mudanccedila tornam-se portanto o centro da investigaccedilatildeo de

Bauman Influenciada pelo pensamento marxista a sua anaacutelise da economia como

ldquobaserdquo da sociedade constitui um ponto de partida fundamental para o estudo que o

filoacutesofo realiza dos processos sociais modernos239 A partir dos mecanismos principais

de integraccedilatildeo social Bauman descreve a transiccedilatildeo da Modernidade soacutelida para a

Modernidade liacutequida desenvolvendo um diagnoacutestico criacutetico do tempo atual cujo toacutepico

principal consiste na avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees atuais de vida No que seguimento de tais

233 Rosa utiliza o termo Modernidade tardia para descrever esta ldquooutra fase da Modernidaderdquoconcordando com aos representantes da Escola de Frankfurt ao passo que Bauman nas suas primeirasobras emprega o de poacutes-Modernidade termo que eacute substituiacutedo posteriormente pelo conceito deModernidade liquida Tendo em vista uma simplificaccedilatildeo seraacute utilizado no presente trabalho aterminologia estabelecida referente agrave ldquoModernidade tardiardquo234 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000235 O livro Liquid Modernityldquo eacute uma das suas obras mais significativas para a dinamizaccedilatildeo dasociedade e por isso uma obra-alicerce para a seguinte anaacutelise das suas teses Com esta terminologiadesliga-se do poacutes-modernismo que ele proacuteprio utilizou em trabalhos anteriores e apoia-se empublicaccedilotildees posteriores nas suas reflexotildees sobre a Modernidade liacutequida Portanto neste debruccedilar sobre asteses de Bauman seraacute usado apenas o conceito de Modernidade liacutequida236 ldquoThese are reasons to consider ldquofluidityrdquo or ldquoliquidityrdquo as fitting metaphors when we wish to graspthe nature of the presentrdquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2237 ldquoTudo o que era dos estados [ou ordens sociais mdash staumlndisch] e estaacutevel se volatilizahelliprdquo (Marx KEngels F Manifesto do Partido Comunista Ed Instituto Joseacute Luis e Rosa Sunderman 2003 p13)238 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p3239 Varcoe IKilminster R Zygmunt Baumanns Sozialkritik Wiesbaden 2007 p28

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consideraccedilotildees Bauman enfatiza o tema da liberdade versus a libertaccedilatildeoautonomia240

(verdadeiras) do sujeito241 que o filoacutesofo nomeia como objetivo primeiro do processo

de ldquomodernizaccedilatildeordquo242 Em oposiccedilatildeo agrave abordagem associativa e fenomenoloacutegica de

Bauman Hartmut Rosa desenvolve por seu turno a anaacutelise da Modernidade atraveacutes de

uma posiccedilatildeo marcadamente estruturalista Rosa ocupa-se igualmente com as estruturas

temporais das sociedades modernas bem como com os correlativos desenvolvimentos e

problemaacuteticas sociais num plano tanto individual como coletivo Para Rosa a categoria

240 Geralmente a autonomia pode ser conceptualizada como autodeterminaccedilatildeo livre de influecircnciasextriacutensecas e rastos de dependecircncia (Junge M Ambivalente Autonomie Muumlnster 2004 p143 PauenM Autonomie Muumlnchen 2011 p 254) Frequentemente em equiparaccedilatildeo com termos como liberdade eautodeterminaccedilatildeo a autonomia caracteriza-se pela capacidade de estabelecer regras para si isto eacute agirconforme as regras para si estabelecidas (Pauen M Autonomie Muumlnchen 2011 pp 254) Em suacontraposiccedilatildeo estaacute heteronomia e anomia heterodeterminaccedilatildeo submissatildeo e tambeacutem alienaccedilatildeo Nafilosofia moral de Kant o termo foi cunhado ateacute aos dias de hoje (consultar Shell S Kant and the limitsof autonomy Cambridge 2009 p2) e natildeo significa neste entendimento uma liberdade sem regras ouarbitrariedade mas uma vinculaccedilatildeo do sujeito autoacutenomo por si mesmo (Pauen M AutonomieMuumlnchen 2011 p255) A autonomia natildeo se refere a accedilotildees individuais mas a uma qualidade que pertencea corporaccedilotildees pessoas ou objetos como um todo e confere-lhes assim uma capacidade para agirindedependentemente de influecircncias extriacutensecas ou da aleatoriedade Uma pessoa pode neste contextoser considerada autoacutenoma quando age nem em pura arbitrariedade nem por induccedilatildeo ou imposiccedilatildeoextriacutensecas mas guiada nas suas decisotildees e accedilotildees por princiacutepios proacuteprios (cf Ibid p257) Asconcetualizaccedilotildees do sujeito moderno satildeo comumente caracterizadas pela reclamaccedilatildeo por parte doIluminismo para que o ser humano se liberte da sua menoridade por culpa proacutepria (Kant) e que persigauma vida autoacutenoma e autodeterminada (Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichenWandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) A autonomia vista como umconceito relativo aponta contudo tambeacutem para a ambiguidade da autonomia individual e deste modotambeacutem para o conceito de sujeito Consequentemente o sujeito moderno natildeo deve ser pensado comopuramente autoacutenomo uma vez que ainda eacute dependente de estruturas e tradiccedilotildees sociais (Ibid p9)Subjectividade e capacidade de agir satildeo aplicadas socialmente as estruturas e relaccedilotildees sociais moldam osujeito moderno (Meiszligner H Jenseits des autonomen Subjekts Bielefeld 2010 p10) Assim asdiferentes concepccedilotildees de sujeito implicam por um lado uma relaccedilatildeo ativa e formativa com o mundo elascolocam-no em relaccedilatildeo com a realidade social e formulam-no natildeo apenas como um produto do seu meio(Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in derSpaumltmoderne Bielefeld 2006 p9) Por outro lado jaacute a semacircntica do termo (subiectum) implica umareivindicaccedilatildeo absoluta de soberania O sujeito estaacute ancorado nas estruturas sociais e tem que incorporarnum mundo dado estrutrado pelo poder (ibid p15) o que necessariamente conduz agrave limitaccedilatildeo daautonomia (cf Ibid) Reckwitz define esta estrutura dupla do sujeito moderno como se seguesubiectum o sujeito tem um duplo sentido eacute o elevado agraves alturas e o subjugado Eacute o centro da accedilatildeoautoacutenoma e do pensamento [] E eacute aquilo que subjaz ao que se sobrepotildee [] Na sua ambiguidade osujeito apresenta-se como dominador subordinado um sujeitado sujeitandoldquo (Reckwitz A Das hybrideSubjekt Goumlttingen 2010 p9)241 O conceito de sujeito representa uma categoria baacutesica no desenvolver de teoria dentro das ciecircnciassociais especialmente no que diz respeito agraves abordagens modernas e poacutes-moderna da Modernidade tardia(Keupp HHohl J Subjektdiskurse im gesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in derSpaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) pode ser visto como o conceito-chave heuriacutestico das ciecircncias sociaise da cultura no iniacutecio do seacuteculo XXI (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p10) A ideiado sujeito moderno e reflexivo da teoria do conhecimento de Descartes formava um comeccedilo e foi atraveacutesde Hobbes e Kant que se manifestou como um fator decisivo no processo de entendimento (BeerRSievi Y Subjekt oder Subjektivation Wien 2010 p4) No entanto dada a mudanccedila socialatualmente sobre rodas que faz parte da criaccedilatildeo teoacuterica na Modernidade tardia ou no poacutes-modernismo oconceito eacute posto agrave prova natildeo sem controveacutersia desde a morte do sujeito que resultara do teacutermino poacutes-moderno das bdquograndes narrativasldquo sobre o sujeitoldquo (Keupp HHohl J Subjektdiskurse imgesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p7) ateacute agraveadesatildeo ao conceito de sujeito como base para qualquer perceccedilatildeo e criacutetica de condiccedilotildees sociais o tema

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de anaacutelise ldquotempordquo constitui o fundamento essencial para a sua teoria sobre a

Modernidade uma vez que na sua argumentaccedilatildeo a compreensatildeo das dinacircmicas

modernas de aceleraccedilatildeo deve integrar um conhecimento significativo sobre os processos

atuais de mudanccedila243 O facto de que o tempo e a aceleraccedilatildeo estatildeo diretamente ligados

aos desenvolvimentos sociais da Modernidade configura tambeacutem um elemento basilar

para Bauman e tornou-se entretanto ndash e natildeo apenas nas ciecircncias sociais ndash um tema

amplamente debatido Assim valida-se em grande parte como indiscutiacutevel a afirmaccedilatildeo

de que o tempo eacute uma categoria-chave para uma anaacutelise sociocientiacutefica da

Modernidade244 Desde Durkheim e da sua questatildeo acerca da estabilidade e da ordem

sociais no contexto de uma aceleraccedilatildeo crescente o problema tem vindo a destacar-se

nas teorias modernas da sociedade245 Tambeacutem Anthony Giddens sublinhou em 1984 a

importacircncia do tempo e da sua relaccedilatildeo com o espaccedilo

It [time and space DS] is not a specific type or ldquoareardquo of social science which can be

pursued or discarded at will lt is at the very heart of social theory as interpreted through

the notion of structuration246

estaacute discutido numa maneira controversa Esta discussatildeo prefigura uma fragmentaccedilatildeo que implica quenatildeo existe uma uacutenica conceccedilatildeo abrangente do sujeito poacutes-modernoda modernidade tardia dentro dasciecircncias sociais Capital no decorrer deste trabalho no entanto satildeo as suposiccedilotildees fundamentais nadefiniccedilatildeo geral de termos de que o sujeito moderno eacute objetivo e interface das praacuteticas do discursordquo deque surge do dualismo entre o interior mental e o exterior material e de que deste modo natildeo estaacutesimplesmente disponiacutevel mas sempre resulta num processo de produccedilatildeo cultural permanenterdquoReckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p10) No sujeito estatildeo retratadas natildeo soacute asespecificidades individuais como tambeacutem as de foro social cultural poliacutetico cultural e histoacuterico da suarespetiva eacutepoca Os sujeitos configuram-se sobretudo atraveacutes das diferentes praacuteticas sociais e ordens deconhecimento que o moldam na compreensatildeo de si mesmo nas suas perceccedilotildees e ateacute mesmo nos seusproacuteprios movimentos corporais (Ibid p7) Assim evoluem a compreensatildeo de si mesmo e a suaidentidade agrave luz da respetiva bdquocultura do sujeitoldquo (Keupp HHohl J Subjektdiskurse imgesellschaftlichen Wandel Zur Theorie des Subjekts in der Spaumltmoderne Bielefeld 2006 p45) SegundoReckwitz em contraste com o conceito de indiviacuteduo o conceito de sujeito trata mais a questiona em quemedida a accedilatildeo do ser singular eacute determinada socialmente e qual eacute a forma que os indiviacuteduos assumem emdeterminados contextos sociais e histoacutericos (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p9) Otermo sujeito pode por conseguinte ser entendido como aquilo que denota toda a forma cultural [] naqual o indiviacuteduo enquanto entidade corpoacutereo-mental-afetiva em determinadas praacuteticas e discursos setorna um ser social (Reckwitz A Das hybride Subjekt Goumlttingen 2010 p17) No cerne das anaacutelises dosujeito edificam-se portanto estruturas especiacuteficas respetivas que compotildeem determinadas formas desubjetividade (Meiszligner H Jenseits des autonomen Subjekts Bielefeld 201 p11)242 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p18243 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24244 Elias N Uumlber die Zeit Frankfurt aM 1984 Giddens A The Constitution of Society Cambridge1984 pp34 110 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der ModerneFrankfurt a M 2005 p20 Scheuerman W Social Theoty of Speed In European Lournal of Sociology47 (2006) 443245Scheuerman W Social Theoty of Speed In European Lournal of Sociology 47 (2006) 443246 Giddens A The Constitution of Society Cambridge 1984 p110

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Tanto a pesquisa existente e as investigaccedilotildees detalhadas como os estudos sobre

o tempo teoricamente orientados carecem aos olhos de Rosa de um viacutenculo metoacutedico

relativamente a uma teoria de base empiacuterica descurando por conseguinte a

identificaccedilatildeo dos aspetos cruciais do tempo e dos atuais desenvolvimentos sociais247

Rosa tenta preencher esta lacuna existente na literatura das ciecircncias sociais delineando

a sua teoria da aceleraccedilatildeo social e do ldquoincrementordquo (Steigerung) Ao contraacuterio de

Bauman cujas observaccedilotildees sobre os processos de aceleraccedilatildeo influenciam fortemente as

suas reflexotildees sobre a Modernidade liacutequida conquanto natildeo formem sistematicamente o

seu centro de atenccedilatildeo Rosa parte para a investigaccedilatildeo da anaacutelise das estruturas temporais

modernas Ao analisar a interaccedilatildeo automotora da aceleraccedilatildeo social e ao integraacute-la numa

teoria da Modernidade Rosa pretende apresentar uma obra que revele o paradoxo do

tempo e a crescente dinamizaccedilatildeo das condiccedilotildees sociais e das suas consequecircncias248 O

objetivo eacute que o trabalho compreenda249 os ldquoatuais desenvolvimentos e problemas

sociais no contexto da Modernidade tardia250 procurando representar o entrelaccedilamento

sistemaacutetico entre as perspetivas do agente e as do sistema251 De acordo com Rosa os

processos sociais podem ser geralmente vistos como micro ou macrossocioloacutegicos

Nos primeiros o foco estaacute no sujeito na sua relaccedilatildeo consigo mesmo nas relaccedilotildees

sociais entre pessoas e grupos e entre o sujeito e o mundo o plano do agente eacute o ponto

de partida para anaacutelises microssocioloacutegicas Por outro lado os ensaios

macrossocioloacutegicos tratam os processos sociais como alteraccedilotildees de estruturas

sisteacutemicas252 nos quais a grande criaccedilatildeo social e a sua estrutura satildeo o acircmago da

investigaccedilatildeo Rosa propotildee-se a desenvolver em conformidade com a teoria

criacuteticaescola de Frankfurt um viacutenculo entre as duas perspetivas (anaacutelises sociais

247 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p22248 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p23249 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p 24 47250 Rosa opta pelo termo Modernidade taacuterdia para poder escrever sobre a mudanccedila social dos tempospresentes atraveacutes de uma perspectiva estrutural (Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen derZeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p49) O termo poacutes-modernismo a seu verpressupotildee uma perspetiva cultural (cf Busch M Solidaritaumlt im beschleunigten Wandel Berlin 2012p53) A designaccedilatildeo ldquoModernidade tardiardquo tambeacutem se poderaacute referir mais agravequilo que eacute processual aodesenvolvimento per se da Modernidade (Para uma elaboraccedilatildeo mais aprofundada sobre a diferenciaccedilatildeohistoacuterica entre o modernismo claacutessico e a Modernidade tardia entre outros cf Rosa HStrecker DStreckmann A Soziologische Theorien Konstanz 2007251 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24252 Turner B (ed) The Cambridge Dictionary of Sociology Cambridge 2006 pp346383

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sisteacutemico-estruturais e abordagens centradas no sujeito)253 Para aleacutem de tal propoacutesito a

teoria de Rosa tem ainda em vista investigar os equivalentes dos processos

socioculturais na construccedilatildeo de autorrelaccedilotildees subjetivas ou seja analisar a ldquoassimilaccedilatildeo

das loacutegicas dos sistemas e das accedilotildees pessoaisrdquo254

Apesar da enunciaccedilatildeo de tais aspetos negativos da modernidade Hartmut Rosa

considera a ldquoexpansatildeo do alcance do mundordquo255 (Weltreichweitenvergroumlszligerung) como

um elemento moderno que merece enaltecimento filosoacutefico e cultural A loacutegica da

dinamizaccedilatildeo da aceleraccedilatildeo e do incremento (ldquoSteigerungrdquo) da modernidade tem

consequecircncias segundo Rosa no modo como o sujeito eacute colocado no mundo e no tipo

de relaccedilotildees que este pode formar Como resultado a relaccedilatildeo entre sujeito e mundo torna-

se mais dinacircmica256 A ldquoposiccedilatildeo no mundordquo o lugar na ordem que um ser humano

ocupa ou pode ocupar natildeo eacute mais predeterminada mas eacute estabelecida segundo uma

competiccedilatildeo dinacircmica e muitas vezes contingente Na modernidade tardia tal significa

que esta posiccedilatildeo pode nova e constantemente mudar natildeo se encontrando como

acontecia no acircmbito da modernidade claacutessica determinada antes da vida adulta e

consolidada mediante uma carreira ou um percurso profissionais na modernidade

tardia a posiccedilatildeo do indiviacuteduo no mundo carateriza-se bem mais pela inseguranccedila

dinacircmica e tem de ser disputada defendida ou trocada repetidas vezes ao longo do

tempo de vida Tal pressupotildee que o sujeito natildeo ldquose conecte e cresccedila numa maneira

ressonanterdquo257 quando tem de se reposicionar dinacircmica e repetidamente sendo a

obrigado a acertar contiacutenuas tomadas de posiccedilatildeo Ao mesmo tempo contudo o

indiviacuteduo alarga o seu horizonte de alcance relativamente ao mundo torna-o mais

previsiacutevel disponiacutevel e dominaacutevel Eacute neste sentido que a histoacuteria da modernidade pode

ser contada como uma histoacuteria natildeo restrita de progresso

Atraveacutes do crescimento da riqueza econoacutemica e da potecircncia produtiva atraveacutes do domiacutenio

cada vez mais abrangente da natureza atraveacutes do incremento das possibilidades e

disponibilidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas mas tambeacutem como resultado dos processos

sociais de liberalizaccedilatildeo pluralizaccedilatildeo e individuaccedilatildeo bem como em muitos lugares de

democratizaccedilatildeo aumentam as ldquopossibilidades do mundordquo dos indiviacuteduos desde o seacuteculo

253Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p24254 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p25255 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p704 H Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 256Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt a M 2012257 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p312

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XVIII 258

Segundo Rosa a tecnologia dos transportes coloca quase toda a superfiacutecie

terrestre ao alcance de um sempre crescente nuacutemero de pessoas em termos de turismo e

da migraccedilatildeo a digitalizaccedilatildeo e a mediatizaccedilatildeo permitem a novas pessoas um mais

elevado alcance comunicativo a comercializaccedilatildeo por sua vez torna disponiacutevel

diariamente um nuacutemero cada vez maior de possibilidades e tudo isto acontece no

momento em que a ciecircncia permite que aspetos do mundo e do corpo se tornem

tecnologicamente manipulaacuteveis e maleaacuteveis Colocar o mundo ao alcance do indiviacuteduo

constitui o motivo da modernidade em geral Com a expressatildeo ldquoexpansatildeo do alcance do

258 Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p520

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mundordquo259 resumem-se segundo Rosa o programa estrutural e o projeto cultural da

modernidade

23 Zygmunt Bauman e o conceito de modernidade liacutequida

O ritmo de mudanccedila raacutepido e continuamente acelerado torna verdadeiro seguinte

que o futuro natildeo seraacute como o presente

259 De acordo com Rosa uma caracteriacutestica determinante da sociedade moderna ndash que nos permitecompreender o conceito de ldquoexpansatildeo do alcance do mundordquo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) ndash consisteno facto de esta apenas poder manter a estrutura atraveacutes de formas de incremento e de mobilizaccedilatildeo isto eacuteatraveacutes de crescimento (econoacutemico) de aceleraccedilatildeo (tecnoloacutegica) eou de sequecircncias de inovaccedilotildees cadavez mais raacutepidas (Rosa H Escalation the crisis of dynamic stabilization and the prospect of resonance In Doumlrre K (Ed) Sociology capitalism critique LondonNew York 2015 pp 280ndash305 Rosa HResonanz Berlin 2016 pp 671ndash706 Rosa H et al Appropriation activation and acceleration Theescalatory logics of capitalist modernity and the crisis of dynamic stabilization In Theory Culture andSociety 34 2017 pp 53ndash74) Quando Rosa fala de estabilizaccedilatildeo e de preservaccedilatildeo o filoacutesofo pretendereferir-se em primeiro lugar agrave estabilizaccedilatildeo da ordem institucional baacutesica nomeadamente a economia demercado orientada para a concorrecircncia o sistema cientiacutefico educativo e social o sistema de sauacutede e aordem baacutesica geral poliacutetica e juriacutedica e em segundo lugar agrave loacutegica operacional de acumulaccedilatildeo edistribuiccedilatildeo propriamente dita que define por seu turno o status quo por outras palavras trata-se daloacutegica de incremento da acumulaccedilatildeo de capital ativaccedilatildeo mobilizada crescimento aceleraccedilatildeo e inovaccedilatildeo(Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 29) Mesmo que as instituiccedilotildees poliacuteticas econoacutemicas oueducativas possam mudar ao longo do tempo no que concerne agrave sua aparecircncia ou composiccedilatildeo os seusimperativos sisteacutemicos e compulsotildees internas de incremento e crescimento permanecem (Rosa HUnfuumlgbarkeit Wien 2018 p 63) O ciacuterculo de incremento resultante da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica social eda vida faz da ldquoestabilizaccedilatildeo dinacircmicardquo um processo que se impulsiona a si proacuteprio (ver Rosa HBeschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p 243)Atraveacutes do incremento contiacutenuo da capacidade da produccedilatildeo e da eficiecircncia este processo manteacutem ostatus quo socioeconoacutemico e com ele as instituiccedilotildees da economia de mercado e do estado social bemcomo as da ciecircncia e da educaccedilatildeo Como resultado a loacutegica do incremento permanente e com ela anecessidade de crescimento velocidade e aperfeiccediloamento inscreve-se na subjetividade moderna e na suaestrutura habitual De facto esta loacutegica estaacute segundo Rosa duplamente enraizada no caraacutecter modernopor um lado como o desejo de expandir os nossos recursos e possibilidades por outro lado como o medode perder esses mesmos recursos em competiccedilatildeo (e portanto as condiccedilotildees para uma vida boa) Eacuteinegaacutevel que o crescimento (econoacutemico) a aceleraccedilatildeo (tecnoloacutegica) e a inovaccedilatildeo (sociocultural) trazemuma promessa genuiacutena estatildeo diretamente relacionados com as nossas ideias de liberdade e felicidade(Rosa H Unfuumlgbarkeit Wien 2018 pp 46) Mas porque eacute que este modo surge como atraente para amaioria dos sujeitos modernos A resposta que Rosa oferece eacute seguinte porque a loacutegica de incrementoda ldquoestabilizaccedilatildeo dinacircmicardquo anda de matildeos dadas com a promessa de alargar cada vez mais o alcance e oacircmbito de accedilatildeo tanto individual quanto coletivamente Tal conduz agravequilo que o filoacutesofo chama o projetode expansatildeo mundial (Rosa H Ressonanz Berlin 2016 p704 Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien2018 p 40) Uma vez que segundo Rosa as sociedades modernas soacute conseguem estabilizar-se no modode incremento (ou seja dinamicamente) elas satildeo estrutural e institucionalmente forccediladas adisponibilizar cada vez mais do ldquomundordquo para o colocar teacutecnica econoacutemica e politicamente ao seualcance tornar as mateacuterias-primas utilizaacuteveis abrir mercados ativar potenciais sociais e psicoloacutegicosaumentar as possibilidades teacutecnicas aprofundar a base de conhecimentos melhorar as possibilidades decontrolo e monitorizaccedilatildeo etc (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 12) Tal tambeacutem incluicertamente muitos aspetos positivos mas Rosa natildeo se concentra neles Segundo Rosa o estar-no-mundoe o agir-no-mundo modernos estatildeo assim orientados para tornar o mundo quantitativa e qualitativamentemais e mais disponiacutevel controlaacutevel e acessiacutevel (claro que este argumento estaacute intelectualmente muitoproacuteximo das ideias da primeira geraccedilatildeo da Teoria Criacutetica especialmente do conceito de Adorno eHorkheimer da razatildeo instrumental (Horkheimer M Adorno T W Dialektik der AufklaumlrungPhilosophische Fragmente Frankfurt a M 1984) e da mentalidade prometeica do homem moderno(Marcuse H Triebstruktur und Gesellschaft Ein philosophischer Beitrag zu Sigmund Freud) Frankfurt

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Zygmunt Bauman Postmodernity and its Discontents

Antes de entrarmos na exposiccedilatildeo e no comentaacuterio do pensamento de Hartmut

Rosa importaria aqui delinear ainda que de modo breve as principais conceccedilotildees que

estruturam as reflexotildees criacuteticas de Zygmundt Bauman relativas agrave modernidade Com

efeito no acircmbito do quadro semacircntico que os termos evocam Zygmunt Bauman recorre

aos termos liquidez260 e volatilidade como metaacuteforas para descrever o novo decorrer da

Modernidade e para separar este tardio estaacutegio liacutequido dos estaacutegios iniciais dominados

por uma maior solidez Ao contraacuterio do que eacute soacutelido o que eacute liacutequido altera

continuamente a sua forma natildeo eacute permitido o repouso e por isso eacute sensiacutevel agrave passagem

do tempo261 Aquilo que eacute liacutequido eacute extraordinariamente moacutevel e estaacute portanto

associado agrave mobilidade flexibilidade liberdade e agrave ligeireza ndash traccedilos que Bauman

atribui agrave nossa era presente A ordem social atual caracteriza-se pelo desconjuntar dos

viacutenculos sociais daqueles que com ou sem razatildeo se assumiam como modos de

restriccedilatildeo da liberdade de escolha e da liberdade de accedilatildeo262 Para Bauman as

caracteriacutesticas imperativas das mudanccedilas radicais atuais consistem na dissociaccedilatildeo do

poder da poliacutetica na progressiva individualizaccedilatildeo e na renegaccedilatildeo da comunidade263

bem como no fim do planear pensar e agir a longo prazo e na crescente

responsabilidade do indiviacuteduo pelo seu proacuteprio modo de viver influenciado pelas

circunstacircncias volaacuteteis e em constante mutaccedilatildeo264 De acordo com o filoacutesofo esta nova

forma de Modernidade eacute igualmente marcada pela efemeridade das formas sociais na

sua estrutura ndash estas encontram-se usando os termos de Bauman derretidas265 Neste

a M 1977)) Tal aplica-se agrave ciecircncia (tornando o mundo reconheciacutevel previsiacutevel e disponiacutevel) bem comoagrave prosperidade econoacutemica (quanto mais ricos formos ndash individualmente eou coletivamente ndash maisdisponiacutevel controlaacutevel e acessiacutevel eacute o mundo) De facto segundo Rosa a ldquoexpansatildeo do alcance domundo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) tambeacutem explica a atratividade da tecnologia especialmente naaacuterea da mobilidade e da comunicaccedilatildeo (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien 2018 p 48) Neste sentido aexpansatildeo do alcance do mundo (Weltreichweitenvergroumlszligerung) pode referir -se por um lado a umaacessibilidade ou disponibilidade (fiacutesica ou comunicativa) e por outro lado a uma controlabilidade oudomiacutenio (poliacutetico e teacutecnico) e ainda a uma ldquoutilizaccedilatildeo do mundordquo (Rosa H Unverfuumlgbarkeit Wien2018 p21)260 bdquohellipliquids unlike solids cannot easily hold their shape Fluids so to speak neither fix space norbind time While solids have clear spatial dimensions but neutralize the impact and thus downgrade thesignificance of timehellip fluids do not keep to any shape for long and are constantly ready (and prone) tochange itldquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2261 Ibid pp 2 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p2262Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p7263 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p71264 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 Bauman Z LiquidFear Cambridge 2006 265Bauman define formas sociais como estruturas que limitam a margem de manobra para tomadas dedecisatildeo e tambeacutem como instituiccedilotildees que monitorizam a repetecircncia de processos rotineiros e padrotildees de

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contexto Bauman questiona quais os efeitos que estas mudanccedilas radicais exercem sobre

as condiccedilotildees de vida do sujeito na Modernidade liacutequida

Os profundos processos de transformaccedilatildeo socioeconoacutemica a abdicaccedilatildeo de

sistemas de ordens centrais que asseguravam a sua coesatildeo e regularidade e a

inconsistecircncia a eles associada tecircm um efeito decisivo no modo de vida do individuo

Que no mundo da Modernidade tardia ainda nem tudo se tenha liquefeito e que existam

forccedilas poderosas que intentem limitar um fluxo livre eacute amplamente ignorado por

Bauman Ritzer e Murphy266 argumentam que a observaccedilatildeo ndash natildeo exclusiva de Bauman

ndash de que a Modernidade tardia eacute marcada por uma liquefaccedilatildeo crescente eacute de facto

certeira mas que diversos bloqueios e limitaccedilotildees tecircm de ser tidos em conta

Como caracteriacutestica saliente do conceito multifacetado e complexo de

Modernidade Bauman invoca a relaccedilatildeo modificada entre espaccedilo e tempo267 O espaccedilo e

o tempo evadem-se da Modernidade O tempo pela sua funccedilatildeo em expansatildeo torna-se

histoacuterico e emancipa-se do espaccedilo268 A era da Modernidade eacute no fundo aquela em que

o tempo estaacute no centro de tudo Em contraste com o elemento estaacutevel (o espaccedilo) o

tempo afigura-se superior devido agrave sua natureza ativa e dinacircmica permitindo-se

manipular e alterar269 Atraveacutes das novas tecnologias torna-se possiacutevel atravessar o

espaccedilo de uma forma cada vez mais raacutepida e acelerada em muito menos tempo do que

anteriormente Tendo presente a nova flexibilidade e o desejo de expansatildeo Bauman

concebe a Modernidade como sendo originalmente um empreendimento de ldquosubmissatildeo

do espaccedilordquo270 Mas a submissatildeo do espaccedilo constituiu com efeito um dos principais

objetivos da ldquoModernidade pesadardquo progresso que neste contexto significava

crescimento e extensatildeo espacial Assim o tempo teria de permanecer maleaacutevel e pela

sua natureza encolher continuamente271 Tal processo provocou o desenvolvimento de

um novo imediatismo que marcaria o fim da designada Modernidade soacutelida O iniacutecio e

o fim dos intervalos de tempo aproximar-se-iam cada vez mais e disso resultariam

apenas momentos e natildeo desenvolvimentos temporais abrangentes A rapidez de

movimento tornou-se um valor essencial ndash ou segundo Bauman um meio fundamental

comportamento geralmente aceites (Bauman Z Liquid Times Living in na Age of UncertaintyCambridge 2007 p42) 266 Ritzer GMurphy J Festigkeit in einer Welt der Fluumlssigkeit Wiesbaden 2007 p53267Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p8268 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p134269 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p132270Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p132271Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p136

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ao serviccedilo do poder e da dominaccedilatildeo O poder tornou-se extraterritorial devido agrave

velocidade dos sinais eletroacutenicos tornando o espaccedilo insignificante272 O novo desafio eacute

portanto ser-se capaz de um deslocamento suficientemente raacutepido para se alcanccedilar de

modo mais ceacutelere possiacutevel a instantaneidade ndash soacute assim se obteraacute poder movendo-se

lentamente eacute-se dominado Somente aquele que eacute ceacutelere a adaptar-se a novas situaccedilotildees

e a renunciar ao longo prazo pode na ldquoera do imediatismordquo assumir uma posiccedilatildeo de

topo273

the collapse of long-term thinking planning and acting and the disappearance or

weakening of social structures in which thinking planning and acting could be inscribed

for a long time to come leads to a splicing of both political history and individual lives

into a series of short-term projects and episodes which are in principle infinite and do not

combine into the kinds of sequences to which concepts like lsquodevelopmentrsquo lsquomaturationrsquo

lsquocareerrsquo or lsquoprogressrsquo (all suggesting a preordained order of succession) could be

meaningfully applied A life so fragmented stimulates lsquolateralrsquo rather than lsquoverticalrsquo

orientations Each next step needs to be a response to a different set of opportunities and a

different distribution of odds and so it calls for a different set of skills and a different

arrangement of assets Past successes do not necessarily increase the probability of future

victories let alone guarantee them while means successfully tested in the past need to be

constantly inspected and revised since they may prove useless or downright

counterproductive once circumstances change A swift and thorough forgetting of outdated

information and fast ageing habits can be more important for the next success than the

memorization of past moves and the building of strategies on a foundation laid by previous

learning274

A durabilidade assim como tudo o que impede o movimento constitui um

fardo podendo eventualmente conduzir a uma derrota na proacutexima jogada da

aceleraccedilatildeo275

As forccedilas de liquefaccedilatildeo descritas por Bauman natildeo afetam apenas o niacutevel macro

mas tambeacutem a liquefaccedilatildeo da realidade da vida da imagem de si mesmo e da interaccedilatildeo

ao niacutevel micro276 Os processos profundos de mudanccedila da Modernidade encontram

tambeacutem equivalecircncias ao niacutevel do sujeito numa forma de viver igualmente definida

272 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p136273 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p150274Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p3Sobre o problema ldquoverticalidaderdquo versus ldquohorizontalidaderdquo na modernidade tardia consultar SloterdijkP Die schrecklichen Kinder der Neuzeit Frankfurt aM 2014275Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p152276 Ritzer GMurphy J Festigkeit in einer Welt der Fluumlssigkeit Wiesbaden 2007 p57

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pelas forccedilas da liquefaccedilatildeo Bauman observa que ao abdicar dos comiteacutes centrais de

organizaccedilatildeo o mundo apresenta-se hoje como uma aglomeraccedilatildeo ilimitada de

possibilidades e tudo se resume ao niacutevel do indiviacuteduo que sozinho pode ndash e deve ndash

decidir que opccedilotildees escolher277

the responsibility for resolving the quandaries generated by vexingly volatile and

constantly changing circumstances is shifted onto the shoulders of individuals ndash who are

now expected to be lsquofree choosersrsquo and to bear in full the consequences of their choices

The risks involved in every choice may be produced by forces which transcend the

comprehension and capacity to act of the individual but it is the individualrsquos lot and duty

to pay their price because there are no authoritatively endorsed recipes which would allow

errors to be avoided if they were properly learned and dutifully followed or which could

be blamed in the case of failure278

A privatizaccedilatildeo e a individuaccedilatildeo satildeo para Bauman elementos distintivos da

Modernidade liacutequida A ldquoevaporaccedilatildeordquo das vaacuterias determinantes que antes ofereciam

diretrizes de accedilatildeo relativamente bem ancoradas ldquodesamarrourdquo personalidades

colocando-as perante a ldquoagonia da escolhardquo279 Mediante a liquefaccedilatildeo de formas sociais

as quais na Modernidade soacutelida ainda ofereciam um quadro referencial para estrateacutegias

de vida pensadas a longo prazo e que no entanto hoje ainda preservam

passageiramente a sua forma torna-se mais difiacutecil desenvolver um plano de vida

consistente e coerente Eacute neste contexto que Bauman enquadra a sua anaacutelise das forccedilas

de subjetivaccedilatildeo e as suas reflexotildees sobre os estilos de vida na Modernidade tardia280

Como supramencionado Bauman considera os fenoacutemenos da Modernidade

liacutequida como intimamente relacionados com a transformaccedilatildeo da sociedade do tipo

capitalista Bauman baseia por conseguinte o seu conceito de sujeito na ideia de partida

de ldquouma transformaccedilatildeo epocalrdquo da sociedade do tipo capitalista desde o capitalismo da

produccedilatildeo ao capitalismo do consumo os quais influem e determinam perpetuamente

toda a sociedade e os seus indiviacuteduos281 Bauman concebe o ldquotrabalhordquo como o

mecanismo central na Modernidade soacutelida da inclusatildeo social como elemento que une

a sociedade relacionando entre si os diferentes mundos de vida (Lebenswelt)

individuais agrave racionalidade do sistema Na Modernidade liacutequida tal situaccedilatildeo afigura- se

277 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p76278Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p4279 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p15280 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p7281 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p41

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transposta para a realidade do ldquoconsumordquo ndash o que determinou significativamente a

rutura epocal entre a Modernidade soacutelida e a liacutequida tal como entre os novos projetos

de identidade e os estilos de vida282 Bauman propotildee que os membros da Modernidade

liacutequida diferem dos da Modernidade soacutelida no sentido em que jaacute natildeo satildeo mais

produtores mas sim consumidores283 A vida no papel do produtor em tempos da

Modernidade soacutelida e do capitalismo austero no qual o homem eacute procurado como forccedila

de trabalho284 ainda estava claramente definida por normas Segundo tal quadro limites

socialmente aceites estabeleciam uma margem de manobra para a avidez e o desejo

bem como um miacutenimo para as condiccedilotildees de vida a palavra de ordem consistira em

aderir a uma vida numa posiccedilatildeo segura entre o miacutenimo para subsistecircncia por um lado e

o limite do luxo pelo outro285 No capitalismo claacutessico de produccedilatildeo assim entendido

por Bauman os indiviacuteduos detinham uma posiccedilatildeo mais ou menos clara e as condiccedilotildees

de trabalho e de vida encontravam-se definidas de forma clara Disciplina asceacutetica de

trabalho e constacircncia bem como uma ligaccedilatildeo a um lugar e a um tempo delineam os

contornos desta fase Com a liquefaccedilatildeo das estruturas sociais e o concomitante

desmantelamento desenfreado e sempre progressivo do abarcador sistema de regulaccedilatildeo

normativa a vida do produtor encaminhou-se crescentemente na direccedilatildeo da do

consumidor Com a desregulamentaccedilatildeo a liberalizaccedilatildeo e a privatizaccedilatildeo as estruturas

fixas do capitalismo da produccedilatildeo liquefizeram-se e o indiviacuteduo nas suas demandas e

interesses tornou-se progressivamente o centro de toda a realidade O formar-se-a-si-

mesmo e a resultante responsabilizaccedilatildeo pessoal tornaram-se preceito as condiccedilotildees de

vida jaacute natildeo satildeo definidas por meios coletivos e sociais pois encontram-se

desinstitucionalizadas tornando-se viaacutevel que natildeo advenham senatildeo de esforccedilos

individuais Bauman refere-se assim aos pensamentos de Pierre Bourdieu

argumentando que a coerccedilatildeo social fora substituiacuteda por incentivos no lugar dos

modelos de comportamento violentos e obrigatoacuterios encontramo-nos perante a seduccedilatildeo

da criaccedilatildeo de novas necessidades e desejos286 O princiacutepio do desejo tomou o lugar da

necessidade sendo rapidamente substituiacutedo pelo querer oscilante pelo ldquoultimato do

282 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p90283 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p89 Bauman Z Liquid life Cambridge 2005p28284 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007p 182285 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p93286 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p182

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princiacutepio de prazerrdquo287 Os meios de comunicaccedilatildeo de massas obtecircm neste caso um

novo e tremendo poder para gerar imaginaccedilotildees e fantasias individuais e coletivas288

Devido agrave falta de padrotildees normativos de orientaccedilatildeo carece-se de diretrizes para uma

ldquoconformidaderdquo substituiacuteda pela ldquoadequaccedilatildeo situacionalrdquo289 Eacute importante estar-se

preparado a todo o momento para aproveitar novas oportunidades e em particular

desenvolver novos desejos que faccedilam manter o movimento

No ato de consumir eacute tentada uma evasatildeo da inseguranccedila geral no miacutenimo pelo

momento290 O valor capital o movimento em si eacute aqui expresso ndash estar sempre um

passo agrave frente sempre em corrida (dada a inexistecircncia de destinos reais a corrida em si

preenche essa lacuna) ndash no ldquoarqueacutetipordquo do passeio para compras do shopping no qual

todos os membros da sociedade de consumo participam Bauman considera que o

comportamento do consumidor que olha observa toca pesa compra para de imediato

devolver eacute representativo do comportamento do sujeito na era atual291 Para Bauman a

eterna busca de novas e melhores ofertas concretiza-se no siacutembolo da Modernidade

liacutequida com a sua igualmente eterna ponderaccedilatildeo de opccedilotildees e desejo de possibilidades

alternativas No ato de consumo no ato de apropriaccedilatildeo poder-se-ia escapar pelo menos

por breves momentos agrave incerteza agrave inseguranccedila e ao vazio que surgiram com o

desmantelamento de todas as estruturas soacutelidas durante a Modernidade liacutequida No

entanto tanto produtos como estruturas sociais tecircm um prazo de validade o ato da

compra tem de ser repetido constantemente Mesmo que o consumo fizesse parte da

sociedade moderna desde sempre ele teraacute evoluiacutedo atraveacutes dos processos de

transformaccedilatildeo da Modernidade liacutequida de uma componente para um modo de viver e

atraveacutes disto tambeacutem para um imperativo do presente292

Para Bauman a individualizaccedilatildeo caracteriza de modo indeleacutevel a Modernidade

Com a substituiccedilatildeo da determinaccedilatildeo heteroacutenoma da ordem ldquoestamentalrdquo por uma

(ldquoobrigatoacuteriardquo) autodeterminaccedilatildeo o indiviacuteduo da Modernidade liacutequida encontra-se

287 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p92288 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p102289 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p93290 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p98291 Bauman Z Flaneure Spieler und Touristen Essays zu postmodernen Lebensformen Hamburg2007 p88292 Blackshaw T Zygmunt Baumann Routledge London amp New York 2005 p114

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numa certa forma de liberdade apresentando-se igualmente como o responsaacutevel pela

configuraccedilatildeo da sua vida e da sua identidade Neste ponto Bauman sustenta a tese de

que a individuaccedilatildeo significa de jure uma garantia da autonomia ndash dado que o ser

singular na Modernidade liacutequida pela libertaccedilatildeo das estruturas sociais soacutelidas se torna

de jure num indiviacuteduo ndash mas coloca em causa o facto de esta autonomia existir de

facto293 Bauman acrescenta o seu entendimento de autonomia (no que diz respeito ao

debate sobre a autonomia individual) agrave possibilidade de uma autodeterminaccedilatildeo agrave

margem de manobra dada agrave escolha e accedilatildeo em estreita relaccedilatildeo com a constituiccedilatildeo de si

mesmo e da sua vida em geral Esta foi concedida de modo gradual ou no miacutenimo

superficialmente aos indiviacuteduos ldquolibertadosrdquo atraveacutes dos processos acelerados de

liquefaccedilatildeo Com base nas suas reflexotildees presentes em ldquoFreedomrdquo livro publicado em

1988 Bauman aponta para que atraveacutes da libertaccedilatildeo de estruturas sociais soacutelidas os

indiviacuteduos tenham mais liberdade e autonomia na formaccedilatildeo da sua identidade e do seu

modo de viver do que alguma vez tiveram Como jaacute foi referido o sujeito da

Modernidade liacutequida tem agrave sua disposiccedilatildeo vaacuterios estilos de vida A figura do

consumidor eacute o autoacutenomo ator de consumo pois tem liberdade de escolha Poreacutem ao

incremento da liberdade opotildee-se simultaneamente o facto de que natildeo existe a opccedilatildeo de

natildeo participar no ldquojogordquo da liberdade de escolha individual ndash tendo em conta a

influecircncia de mecanismos sobre os quais o ser singular natildeo possui controlo A

individuaccedilatildeo enquanto destino natildeo constitui uma escolha livre e assim

concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de liberdade adveacutem uma tendecircncia agrave imposiccedilatildeo e agrave

orientaccedilatildeo independentes num mundo sem marcos de referecircncia fixos294 Eacute nestes

moldes que Bauman desenvolve as suas reflexotildees sobre a ambivalecircncia da autonomia

do sujeito na Modernidade liacutequida

Segundo Bauman a libertaccedilatildeo estaacute no topo da hierarquia dos valores da

humanidade moderna O objetivo central da Modernidade consiste em desenvolver uma

vida autoacutenoma e autodeterminada295 Bauman partindo das posiccedilotildees de Eacutemile

Durkheim observa que natildeo eacute possiacutevel obter liberdade lutando continuamente contra a

sociedade mas sim e de uma certa forma submetendo-se a ela296 Neste sentido

293 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p43294 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p45295 Libertar-se com o objetivo de se autodeterminar em combinaccedilatildeo com a possibilidade de poderescolher uma identidade livremente ter a liberdade de agir e ser capaz de definir o proacuteprio modo de vivereacute neste contexto posto em paralelo com a busca pela autonomia (cf Bauman Z Freedom MiltonKeynes 2003 p25)296 Kron TReddig M Der Zwang zur Moral und die Dimension moralischer Autonomie beiDurkheim Wiesbaden 2003 p180

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Bauman considera que o abrigo dado pela sociedade pode ajudar a encontrar a

libertaccedilatildeo nesta dependecircncia referindo-se a Durkheim297 Como jaacute foi esclarecido antes

a autonomia consiste para se autoconceber sempre de forma relativa pois o ser singular

nunca poderaacute estar consumadamente livre do seu contexto histoacuterico e social A

autonomia neste ponto vista soacute pode ser adquirida em toda a sua completude no quadro

do contexto social numa certa forma de ldquosubmissatildeordquo e ao abrigo da sociedade Como

resultado dos processos de liquefaccedilatildeo e das consequentes individuaccedilotildees privatizaccedilotildees e

fragmentaccedilotildees o ser humano separou-se da sociedade constata Bauman298 O ser

singular conquistou todas as liberdades concebiacuteveis ndash no entanto a tarefa de se libertar

foi cumprida somente porque ocorrera no contexto do grande todo social299 A partir

disto formou-se um abismo entre a individualidade como destino e a individualidade

praacutetica e real como autoafirmaccedilatildeo300 Bauman prossegue declarando que a capacidade

de autoafirmaccedilatildeo dos seres humanos individualizados raramente eacute suficiente para uma

autoconstituiccedilatildeo o que ao mesmo tempo implica a liberdade ilimitada a par com uma

ldquoimpotecircnciardquo do ser singular perante ela301 Passou o tempo em que a esfera do puacuteblico

se submetia agrave do privado O poder agora publicamente exposto e a liberdade

condicionada do indiviacuteduo ameaccedilam com a presente dominaccedilatildeo do privado sobre o

puacuteblico a impotecircncia praacutetica da liberdade que se alcanccedilou Apesar de o poder puacuteblico

ter perdido muito das suas qualidades negativas tambeacutem desapareceram dele as suas

ldquoforccedilas criadoras positivasrdquo302 Assim segundo Bauman o ldquogrande abismo entre o

direito agrave autodeterminaccedilatildeo e a possibilidade de controlar as condiccedilotildees sociais que

permitem ou impedem essa autodeterminaccedilatildeordquo representa a ldquoprincipal contradiccedilatildeo da

Modernidade liacutequidardquo303 Esta ambivalecircncia da autonomia passou como muitas outras

coisas da esfera puacuteblica para a esfera privada e deve ser digerida individualmente ndash

todavia assinala Bauman os indiviacuteduos natildeo estatildeo ainda agrave altura desta tarefa304

there is a wide and growing gap between the condition of individuals de jure and their

chances to become individuals de facto ndash that is to gain control over their fate and make

297 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p29298Neste contexto Bauman tambeacutem se refere agrave ldquouacutenica formardquo remanescente de comunitarizaccedilatildeo aseparaccedilatildeo conjunta daquilo que eacute estranho as inquietaccedilotildees e medos comuns ou o oacutedio compartilhado(Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p49)299 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p32300 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p46301 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p46302 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p65303Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p50304 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p50

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the choices they truly desire305

O sujeito da Modernidade liacutequida dispotildee apenas de uma autonomia de jure

Como natildeo possui ldquorecursos suficientesrdquo para se autoafirmar a autonomia de facto

permanece por atingir Bauman classifica a autonomia individual nos tempos da

Modernidade liacutequida como ambivalente Esta ambivalecircncia alimenta-se da diversidade

de opccedilotildees oferecidas pela Modernidade liacutequida com o incremento excessivo de

possibilidades tambeacutem crescem as possibilidades de decisatildeo a clareza torna-se

obsolescente e os pontos de referecircncia fixos ndash os paracircmetros que poderiam avaliar uma

decisatildeo como ldquoboardquo ou ldquocertardquo escasseiam A consciecircncia de que se poderia ter decidido

e escolhido de um modo diferente torna-se mais aguda e faz com que se concretize o

perigo de fragmentaccedilatildeo306 A identificaccedilatildeo de si mesmo agora uma tarefa individual

abarca efeitos colaterais disruptivos permanecendo contudo inevitaacutevel pois o

incremento na liberdade natildeo a isenta da agonia da escolha e da responsabilidade307 O

sujeito libertado da Modernidade liacutequida enfrenta por um lado um enorme incremento

de autonomia atraveacutes do ganho de liberdade de escolha individual mas por outro lado

o mesmo sujeito encontra-se exposto agrave inescapaacutevel compulsatildeo dos mecanismos de

volatilizaccedilatildeo social A estes processos o perder das certezas tradicionais e a emergecircncia

do medo e da desorientaccedilatildeo reagiu-se procurando incansaacutevel e coercivamente o

consumo e o prazer308 Na busca de um novo sentido num mundo em que nada eacute mais

predeterminado o mercado do consumo eacute o novo ldquomercado de significadordquo Face agrave

sobrecarga do mundo desregulamentado os indiviacuteduos entregam-se ao mercado do

consumo como poder heteroacutenomo que mina permanentemente o exerciacutecio da autonomia

e impede os seres humanos de controlarem as suas proacuteprias vidas309 A liberdade reduz-

se por conseguinte agrave liberdade de consumir os indiviacuteduos aparentemente libertados

estatildeo sujeitos agraves restriccedilotildees do consumo e do mercado Relativamente a tal Bauman

escreve

the mobility and the flexibility of identification which characterize the lsquoshopping aroundrsquo

type of life are not so much vehicles of emancipation as the instruments of the

redistribution of freedoms They are for that reason mixed blessings ndash enticing and desired

as much as repelling and feared and arousing most contradictory sentiments They are

305 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p39306 Junge M Ambivalente Autonomie Muumlnster 2004 p143307 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p185308 Bauman Z Liquid Times Living in an Age of Uncertainty Cambridge 2007 p186309 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p44

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highly ambivalent values which tend to generate incoherent and quasi-neurotic

reactions310

O leque de possibilidades criado pela liquefaccedilatildeo dos viacutenculos tradicionais eacute

assim integrado diretamente em mecanismos de mercado e deste modo novamente

empregue por um poder estranho311 Perante a autonomia ambivalente do sujeito da

Modernidade liacutequida Bauman sublinha o papel da teoria criacutetica para a real e ateacute entatildeo

inatingida libertaccedilatildeo do indiviacuteduo312 Como jaacute foi mencionado Bauman concebe o

caminho para a libertaccedilatildeo do homem mediante a imagem de uma ldquoponte sobre o abismo

entre a realidade do indiviacuteduo de jure e as perspetivas para uma individualidade de

factordquo313 o que pode ser alcanccedilado pela ressuscitaccedilatildeo da existecircncia enquanto cidadatildeo

Mostrar este abismo e revelar como se constroacutei sobre ele uma ponte que garanta ldquoa

reapropriaccedilatildeo coletiva de um projeto privatizado e utoacutepico de lsquolife-politicsrsquo

individualizadasrdquo314 constitui para Bauman a tarefa da teoria criacutetica Atraveacutes da

demissatildeo da poliacutetica como instrumento regulador controlador e de exerciacutecio de poder

os problemas resultantes das tentativas de desenvolver indiviacuteduos de facto cresceram

de um modo geral315

If the old objective of critical theory ndash human emancipation ndash means anything today it

means to reconnect the two edges of the abyss which has opened between the reality of the

individual de jure and the prospects of the individual de facto And individuals who

relearned forgotten citizen skills and reappropriated lost citizen tools are the only builders

up to the task of this particular bridge building316

310 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p90311 Eickelpasch RRademacher C Identitaumlt Bielefeld 2004 p45312 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 pp50 248313 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p54314 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 p65315 Bauman Z Freedom Milton Keynes 2003 pp53 64316 Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000 p41bdquoThe need in thinking is what makes us think said Adorno His Negative Dialectics that long andtortuous exploration of the ways of being human in a world inhospitable to humanity ends with thisbiting yet ultimately empty phrase after hundreds of pages nothing has been explained no mysterycracked no reassurance given The secret of being human remains as impenetrable as it had been at thebeginning of the journey Thinking makes us human but it is being human that makes us think Thinkingcannot be explained but it needs no explanation Thinking needs no justification but it would not bejustified even if one tried This predicament is Adorno would tell us again and again neither a sign of thethoughtrsquos weakness nor the badge of the thinking personrsquos shame If anything the opposite is true UnderAdornorsquos pen the grim necessity turns into a privilege The less a thought can be explained in termsfamiliar and making sense to the men and women immersed in their daily pursuit of survival the nearer itcomes to the standards of humanity the less it can be justified in terms of tangible gains and uses or theprice-tag attached to it in the superstore or at stock-exchange the higher is its humanizing worth It is theactive search for market value and the urge for immediate consumption that threaten the genuine valueof thought lsquoNo thought is immunersquo writes Adorno against communication and to utter it in the wrongplace and in wrong agreement is enough to undermine its truth hellip For the intellectual inviolableisolation is now the only way of showing some measure of solidarityhellip The detached observer is as

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much entangled as the active participant the only advantage of the former is insight into hisentanglement and the infinitesimal freedom that lies in knowledge as such It will become clear that theinsight is the beginning of freedom once we remember that lsquoto a subject that acts naiumlvely hellip its ownconditioning is nontransparentrsquo and that the non-transparency of conditioning is itself the warrant forperpetual naiumlvety Just as the thought needs nothing but itself to self-perpetuate so the naiumlvety is self-sufficient as long as it is not disturbed by insight it will keep its own conditioning intact lsquoNotdisturbedrsquo indeed the entry of insight is hardly ever welcomed by those who have grown used to livingwithout it as the sweet prospect of liberation The innocence of naiumlvety makes even the most turbulentand treacherous condition look familiar and therefore secure and any insight into its precariousscaffolding is the portent of non-confidence doubt and insecurity which few people would greet withjoyful anticipation It seems that for Adorno that widespread resentment to insight is for the betterthough it does not augur an easy ride The unfreedom of the naiumlve is the freedom of the thinking person Itmakes the lsquoinviolable isolationrsquo that much easierldquo Bauman Z Liquid Modernity Cambridge 2000p42

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24 | O pensamento filosoacutefico-social de Hartmut Rosa o conceito de

aceleraccedilatildeo

A quem perguntar pelo movens da tiacutepica aceleraccedilatildeo da Modernidade seraacute chamado aatenccedilatildeo para o mecanismo do acoplamento por reaccedilatildeo que o socioacutelogo americano RobertMerton apoiando-se numa passagem conhecida do Novo Testamento propocircs que seformulasse como ldquoefeito Mateusrdquo Nas palavras de Jesus ndash ldquo(hellip) a quem tem mais seraacute dadoe teraacute em grande quantidade Mas a quem natildeo tem ateacute o que tem lhe seraacute tiradordquo (Mateus2529) ndash eacute antecipada de uma maneira intuitiva a loacutegica do campo de atividade doacoplamento por reaccedilatildeo numa maneira auto-amplificada Efeitos deste tipo imprimem nastiacutepicas modernizaccedilotildees a forma do circulus virtuosus [hellip] Podem observar-se processosanaacutelogos no campo de accedilatildeo dos acoplamentos por reaccedilatildeo positivas normalmentedenominado ldquoeconomiardquo Tambeacutem nele se ativou a partir dos seacuteculos XIV e XV um circulusvirtuosus poderoso A este se deve que da uniatildeo do creacutedito ao talento ndash este uacuteltimoentendido num sentido moderno ndash surgissem grandes fortunas e que a partir de modestoscapitais iniciais crescessem empresas de alcance mundial Certamente tambeacutem nesta partedo mundo tal como na China claacutessica a dinacircmica autopotenciadora da arte econoacutemica dadireccedilatildeo de empresas teria estagnado num niacutevel de uma economia manufatureiradesenvolvida se natildeo tivesse no virar do seacuteculo XVII para o XVIII ligado com uma dimensatildeoimpulsionado adicional de processos autopotenciadores Estamos habituados a designar estaesfera com nomes sumaacuterios como ldquoconstruccedilatildeo de maacutequinasrdquo ou ldquoengenhariardquo e quem sequiser manter neste assunto irrefletidamente pode chamar-lhe apenas ldquotecnologiardquo Aestreita alianccedila entre o segundo e o terceiro circulus virtuosus isto eacute entre a economiaimpelida pelos juros e a construccedilatildeo de maacutequinas impelida pela inovaccedilatildeo resultou nomonstro dinacircmico que devido a uma preguiccedila de espiacuterito praticada desde o seacuteculo XIX aindase designa com o termo ldquocapitalismordquo - embora se se tivesse tratado de nominalizaccedilotildeesverdadeiras deveria ter-se chamado desde o princiacutepio ldquocreditismordquo ou ldquointervencionismordquoSchumpeter referiu este monstro que se gera a si mesmo ao escrever em 1912 uma fraseaparentemente inofensiva mas na verdade abismal ldquoO desenvolvimento gera sempre maisdesenvolvimento

Peter Sloterdijk O que aconteceu no seacutec XX

Prevecirc-se haacute muito tempo que a linha da frente das futuras lutas culturais nos Estadosindustrializados ocidentais se estenderaacute entre os aceleradores do capitalismo digital e os seusdesaceleradores Natildeo eacute necessaacuterio ser-se profeta para ver que os aceleradores estatildeofavorecidos Eles aliam-se agrave dinacircmica tecnoloacutegica e aos princiacutepios baacutesicos da vida econoacutemicao Homo technicus e o Homo oeconomicus mantecircm-se predominantes

Ruumldiger Safranski Tempo

O ponto de partida das reflexotildees de Hartmut Rosa consiste na experiecircncia do

tempo na Modernidade Segundo Rosa a aceleraccedilatildeo enquanto tal natildeo traduz

propriamente algo de novo tal realidade poderaacute ser apreciada como uma parte

constituinte das sociedades modernas317 Com efeito Rosa pretende debruccedilar-se sobre

aquilo que eacute essencialmente novo na modernidade tardia a saber ldquoa sensaccedilatildeo ou

317 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p39

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melhor a convicccedilatildeo (hellip) de que foi o proacuteprio tempo que se desfezrdquo318 Segundo Rosa eacute

distintivo da Modernidade que as estruturas temporais se alterem e que tal tenha

consequecircncias de longo alcance no acircmbito de todo o ldquoprojeto da Modernidaderdquo e do

seu objetivo central de configuraccedilatildeo de uma vida autoacutenoma Uma carateriacutestica

determinante da experiecircncia baacutesica da modernidade tardia consiste no facto de diversas

realidades se encontrarem sob efeito da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo o que por

conseguinte conduz a que as experiecircncias do passado e as experiecircncias do presente jaacute

natildeo sejam indicadores fiaacuteveis de um futuro que assim se torna cada vez mais

imprevisiacutevel319 Segundo Rosa torna-se como que impercetiacutevel devido aos elevados

niacuteveis de aceleraccedilatildeo e de mudanccedila o delineamento de uma direccedilatildeo de um movimento

orientado320 Aleacutem disso a experiecircncia contraditoacuteria do tempo moderno encontra

expressatildeo na vaga perceccedilatildeo de que o tempo se estaacute a tornar cada vez mais escasso

apesar de nos encontrarmos continuamente a desenvolver cada vez mais teacutecnicas de o

economizar321

Segundo Rosa as sociedades modernas necessitam de mudanccedila crescimento

aceleraccedilatildeo ldquoincrementordquo322 (Steigerung) jaacute que existem apenas dentro de um certo

dinamismo323 De acordo com o filoacutesofo tais sociedades soacute se podem estabilizar

dinamicamente sofrendo estruturalmente um ldquoincrementordquo (Steigerung) contiacutenuo por

meio de aceleraccedilatildeo do crescimento e de intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo324 Tal situaccedilatildeo

318 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p39319 Segundo Koselleck ldquoO moderno eacute por outro lado a mudanccedila que cria uma nova experiecircncia dotempo modificando tudo muito mais rapidamente do que ateacute entatildeo teria sido vivido Atraveacutes de intervalosde tempo mais curtos entra no quotidiano dos afetados uma componente de estranheza natildeo dedutiacutevel dequalquer anterior vivecircncia isto distingue a experiecircncia da aceleraccedilatildeosatildeo articulados ritmos eandamentos de tempo que jaacute natildeo podem ser derivados de tempo natural ou ordem geracionalrdquo KoselleckR Fortschritt und Beschleunigung Zur Utopie der Aufklaumlrung In Der Traum der Vernunft Vom Elendder Aufklaumlrung Darmstadt Neuwied 1985 p78320 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p40321Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p43322 Steigerung ldquoIncremento de quantidaderdquo323Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 pp4471324 ldquoNo meu livro sobre a aceleraccedilatildeo tentei mostrar que as tendecircncias das mudanccedilas identificadas ecaracterizadas se reuacutenem sistematicamente e sem contestaccedilatildeo sob um uacutenico conceito o da aceleraccedilatildeosocial sendo que o acircmago da Modernidade ou da ldquomodernizaccedilatildeordquo pode consistir num processoprolongado de dinamizaccedilatildeo (ou de ldquomovimentaccedilatildeo cada vez mais velozrdquo (ldquoschneller-in-Bewegung-Setzensrdquo) das relaccedilotildees materiais sociais e mentais (geistig) De importacircncia crucial no entanto eacute que aloacutegica intriacutenseca da dinamizaccedilatildeo ndash diferente da foacutermula proposta pelo projeto da Modernidade - se tornouela proacutepria uma compulsatildeo estrutural As sociedades modernas satildeo caracterizadas por soacute ser capazes deestabilizar e reproduzir as suas partes integrantes e a sua estrutura social de forma dinacircmica ganhamestabilidade no e atraveacutes do movimento e este pode ser mais precisamente encarado como um

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produz natildeo apenas uma tendecircncia galopante temporal espacial tecnoloacutegica e

econoacutemica mas tambeacutem conduz a que a energia cineacutetica325 e ou a ldquoenergia de

transformaccedilatildeordquo da sociedade se mantenha a um niacutevel muito alto326 Natildeo obstante a

aceleraccedilatildeo e o ldquoincrementordquo tornam-se problemaacuteticos quando atingem um ritmo cujos

efeitos satildeo de natureza dessincroacutenica Se houver aceleraccedilatildeo dentro das partes

integrantes da sociedade os correspondentes incrementos de ritmo tambeacutem deveratildeo ser

aplicados noutras aacutereas ndash em caso contraacuterio ocorreraacute uma dessincronizaccedilatildeo deste

modo os processos os sistemas ou os indiviacuteduos natildeo acompanham este passo

acelerado327 Eacute precisamente neste limiar do arrebatamento da capacidade de adaptaccedilatildeo

pelas taxas de aceleraccedilatildeo e incremento da mobilizaccedilatildeo que Rosa encontra a rutura no

desenvolvimento da Modernidade entre a Modernidade claacutessica e a tardia328Tambeacutem

outros autores entre os quais Zygmunt Bauman reconhecem esta mudanccedila social na

Modernidade que poderaacute promover segundo Keupp uma desconstruccedilatildeo do tipo ideal

(Idealtyp) positivo do ser humano autoacutenomo e moderno e do ambiente onde vive329

Rosa procura o cerne destes fenoacutemenos da Modernidade tardia encontrando-os na roda

da aceleraccedilatildeo desta era na velocidade que o indiviacuteduo e os Estados-naccedilatildeo jaacute quase natildeo

conseguem acompanhar330 A conjetura de Rosa sobre a rutura epocal postulada dentro

ldquoincrementordquo (Steigerungrdquo) De um ponto de vista estrutural uma sociedade pode chamar-se ldquomodernardquose (e apenas) se deixar estabilizar de forma dinacircmica se ela depende portanto sistematicamente docrescimento do intensificccedilatildeo da inovaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo para manter e reproduzir a sua estruturaCompreende-se esta triacuteade constituiacuteda pela aceleraccedilatildeo pelo crescimento e pela intensificaccedilatildeo dainovaccedilatildeo como um processo de dinamizaccedilatildeo uacutenico que por sua vez se traduz em ldquoincrementordquo (dequantidade) por unidade de tempo Esta definiccedilatildeo de aceleraccedilatildeo eacute a base da minha teoria da aceleraccedilatildeordquo(Rosa H Ressonanz Berlin 2016 pp673-674)325 Segundo Peter Sloterdijk o ldquoprojeto da Modernidaderdquo poderia fundar-se numa ldquoutopia cineacuteticardquo cujoconceito baacutesico eacute o ldquoprogressordquo diz respeito agrave extensatildeo e dissoluccedilatildeo do movimento humano (cfSloterdijk P A Mobilizaccedilatildeo Infinita Trad Paulo Osoacuterio de Castro Lisboa 2002)326 ldquoExiste a crenccedila de que a maneira como o sujeito moderno experiencia o mundo e se movimenta neleeacute ditada essencialmente pela loacutegica de ldquoincrementordquo da sociedade moderna A caracteriacutestica destasociedade eacute o facto de que se deixa apenas estabilizar de forma dinacircmica o que significa que ela natildeo soacutedepende (em situaccedilotildees especiais) contingente mas tambeacutem estrutural e prolongadamente do crescimentoda intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo para preservar e reproduzir as suas condiccedilotildees estruturaisIsto leva a uma dinacircmica perpeacutetua (e portanto ao mesmo tempo uma des-ontologizaccedilatildeo) das relaccedilotildeesmodernas com o mundo a relaccedilatildeo do sujeito moderno com o mundo das coisas o mundo social e consigomesmo eacute determinado por o facto que estes munos encontram se numa mudanccedila constante e numaaceleraccedilatildeo semore mais veloz O sistema econoacutemico dominante da Modernidade eacute sem qualquer duacutevidade importacircncia elementar para as forccedilas de dinamizaccedilatildeo e intensificaccedilatildeo que penetram as formas e esferasdos relacionamentos modernos s com o mundo Natildeo soacute Karl Marx mas tambeacutem o seu antiacutepodasocioloacutegico Max Weber chamou a atenccedilatildeo para este facto helliprdquo (Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalterder Beschleunigung Frankfurt 2012 pp13-14)327 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p44328 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p44329 Keupp H Identitaumltskonstruktionen Reinbeck 2006 p 17330Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p48 Rosa HStrecker D Streckmann A Soziologische Theorien Konstanz 2007 p221

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de uma construccedilatildeo teoricamente fundamentada empiricamente compatiacutevel e

diacronicamente diferenciada dita ldquoque a aceleraccedilatildeo social inerente agrave Modernidade

supera na Modernidade tardia um ponto criacutetico aleacutem do qual a reivindicaccedilatildeo por

sincronizaccedilatildeo e integraccedilatildeo sociais jaacute natildeo se manteacutemrdquo331

Rosa define a aceleraccedilatildeo tal como modificada pela fiacutesica newtoniana como

ldquoum incremento de quantidade por unidade de tempordquo332 ou noutras palavras como a

ldquoreduccedilatildeo do quantum de tempo por quantum fixo de quantidaderdquo333 Para Rosa o termo

ldquoquantidaderdquo apresenta-se usado numa infinidade de aacutereas e processos diferentes por

exemplo na distacircncia percorrida no nuacutemero de caracteres comunicados nos bens

produzidos e tambeacutem na troca de parceiros no nuacutemero de locais de trabalho e nos

ldquoepisoacutedios da accedilatildeo por unidade de tempordquo334 Quanto mais se comunicar produzir ou

viver por unidade de tempo tanto maior seraacute por consequecircncia a aceleraccedilatildeo335

Segundo Rosa a aceleraccedilatildeo social divide-se por sua vez em aacutereas analiticamente

independentes em dimensotildees que na sua interaccedilatildeo justificam a progressiva

dinamizaccedilatildeo da Modernidade ldquoA forma mais oacutebvia e importante da aceleraccedilatildeo

modernardquo eacute a dimensatildeo da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica que visa a aceleraccedilatildeo de processos

em vista de fins336

A forma mais visiacutevel e consequente de aceleraccedilatildeo moderna consiste na

aceleraccedilatildeo teacutecnica intencional e sobretudo na aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica (ie mecacircnica)

dos processos com vista a fins Paradigmaacuteticos satildeo entatildeo os processos do transporte

da comunicaccedilatildeo e da produccedilatildeo (de bens e serviccedilos) Este tipo de aceleraccedilatildeo eacute a mais

faacutecil de medir e de demonstrar A histoacuteria da aceleraccedilatildeo da velocidade do movimento ndash

desde a sociedade preacute-moderna e preacute-industrial ateacute ao presente portanto desde a

jornada a peacute depois a cavalo a barco a vapor a comboio a automoacutevel e finalmente de

aviatildeo e ateacute agrave nave espacial ndash eacute a todos familiar e estaacute bem documentada337 sendo jaacute

331Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p49332 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115333 Rosa H Dynamisierung und Erstarrung in der modernen Gesellschaft Berlin 2010 p285334 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115335Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p115336 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p11337 Sobre a histoacuteria da aceleraccedilatildeo tecnoloacutegica consultar Virilio P Geschwindigkeit und Politik Berlin1980 Virilio P Military Space In Derian J D (ed) The Virilio Reader Oxford 1998

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tratada por Virilio Contudo Rosa critica a abordagem de Virilio pelo facto de esta

conceber a aceleraccedilatildeo como uma aceleraccedilatildeo de pendor predominantemente

tecnoloacutegico338 natildeo considerando outros aspetos analiticamente independentes tais como

o da ldquoaceleraccedilatildeo da mudanccedila socialrdquo e da ldquoaceleraccedilatildeo do ritmo individual de vidardquo para

aleacutem de natildeo explorar suficientemente a base econoacutemica (capitalista) da temaacutetica da

aceleraccedilatildeo339

O sistema da economia capitalista une a aceleraccedilatildeo e o incremento quantitativo

(ou a aceleraccedilatildeo ao serviccedilo do ldquoincrementordquo) e combina-os segundo Rosa numa loacutegica

de accedilatildeo conjunta340 Ao dissolver o viacutenculo claacutessico e ldquonaturalrdquo entre a produccedilatildeo e a

satisfaccedilatildeo de necessidades (ou da procura) reconfigurando a economia numa loacutegica de

utilizaccedilatildeo de capital ou entatildeo na produccedilatildeo de mais-valias ndash isto eacute ao libertar a

produccedilatildeo da procura (tradicionalmente determinada) ndash eacute colocada em movimento uma

dinacircmica que supera todas as barreiras e obstaacuteculos de uma economia focando a

satisfaccedilatildeo de necessidades (ou da procura) Esta dinacircmica faz com que o aumento de

produccedilatildeo e de produtividade bem como a demanda de vantagens e eficiecircncia temporais

se tornem princiacutepios imperativos inevitaacuteveis de uma produccedilatildeo autonomizada que fabrica

ldquonecessidadesrdquo respetivas em simultacircneo341 O conceito de tempo utilizado na sociedade

moderna eacute segundo Rosa formulado e moldado decisivamente pela ldquocoisificaccedilatildeordquo do

tempo (caracterizada pelo processo de produccedilatildeo capitalista) isto eacute pela sua

transformaccedilatildeo num bem racionaacutevel e escasso no que concerne agrave sua eficiecircncia o que

338 Como Virilio tambeacutem Maurizio Ferraris vecirc uma conexatildeo entre a guerra e a tecnologizaccedilatildeomobilizada moderna na aacuterea das meios de comunicaccedilatildeo ldquoPara realizar a mobilizaccedilatildeo total natildeo eacutenecessaacuterio (como ateacute eacute tecnicamente possiacutevel) dispor de apps que digam onde estaacutes basta simplesmente acombinaccedilatildeo de um sistema de trabalhos flexiacuteveis com um aparato de responsabilizaccedilatildeo que te alcanccedila emtoda a parte atribuindo-te as tarefas E de um sistema de obrigaccedilotildees que se tornam perentoacuterias apenas pelofacto de serem tecnicamente possiacuteveis O imperativo teacutecnico vira assim ao contraacuterio o moral ldquose podesdevesrdquo A radicalizaccedilatildeo militar dos tempos do trabalho (em particular a solicitaccedilatildeo de disponibilidade aqualquer hora que faz desaparecer o caraacuteter proacuteprio da vida civil) pode ser pensada somente agrave luz danova responsabilidade da chamada Estamos todos em movimento seguimos todos as ordens natildeo haacutedistinccedilatildeo entre vida privada e vida puacuteblica entre vida civil e vida militar Aquilo que queria sugerir eacute que(geralmente) natildeo estamos em guerra mas estamos militarizados e que isto eacute o caraacuteter originalintroduzido pela chamadardquo Ferraris M Mobilizaccedilatildeo Total Trad Alberto Romele Joatildeo RebaldeLisboa 2018 p55339 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p103340 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p257341 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p262

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origina que o tempo seja experienciado como uma entidade linear sem qualidade e

abstrata342

Segundo Rosa a economia capitalista baseia-se constitutivamente entre outras

coisas na aquisiccedilatildeo e na exploraccedilatildeo da vantagem temporal343 de tal modo que no

interior deste sistema econoacutemico o dito de Marx de que ldquotoda a economia eacute uma

economia de tempordquo344 se afigura concretizado de uma maneira muito especiacutefica

Seguindo a anaacutelise sugerida por Marx o tempo de trabalho em primeiro lugar constitui

imediatamente um fator de produccedilatildeo decisivo isto eacute um fator de produccedilatildeo de valor

pois transforma tempo em valor atraveacutes do trabalho345 Na medida em que o valor de

troca de mercadorias eacute estipulado pelo tempo de trabalho o tempo que se poupa a

produzir pode ser diretamente traduzido em lucro (relativo) aqueles que satildeo capazes de

produzir em menos tempo ou seja permanecer abaixo do tempo meacutedio de trabalho

necessaacuterio para a produccedilatildeo de uma mercadoria geram lucros potencialmente maiores e

aumentam assim a ldquomais-valiardquo do trabalho (ou seja a proporccedilatildeo entre trabalho

ldquonecessaacuteriordquo ndash e assim trabalho pago ndash e ldquotrabalho mais-valiosordquo tomados no acircmbito

de um dia de trabalho muda em favor do uacuteltimo)346 O incremento da produtividade

diretamente definiacutevel por aumento de produccedilatildeo de output por unidade de tempo (por

hora de trabalho) ou por aceleraccedilatildeo cria vantagens competitivas ndash contudo apenas ateacute

a concorrecircncia copiar o processo e reduzir as horas de trabalho necessaacuterias para um

novo niacutevel iniciando assim uma espiral de aceleraccedilatildeo potencialmente infinita347 A

aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo ndash por exemplo atraveacutes da intensificaccedilatildeo ou ldquocondensaccedilatildeordquo do

trabalho ndash torna-se assim enquanto consequecircncia do princiacutepio da competiccedilatildeo um

elemento fundamental da economia capitalista Tal tambeacutem significa que o

desenvolvimento e a exploraccedilatildeo de vantagens temporais na introduccedilatildeo de novas

tecnologias de produccedilatildeo ou de novos produtos satildeo de importacircncia fundamental na luta

competitiva (de sobrevivecircncia no mercado) do fabrico de ldquolucros-extrardquo ou seja na

possibilidade de vender produtos num curto espaccedilo de tempo a um preccedilo

342Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p263343 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p259344 Marx K Grundrisse der Kritik der politischen Oumlkonomie In Marx KEngels F Werke vol42Berlin 1983 p105 apud Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in derModerne Frankfurt a M 2005 p265345 Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p66346 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p260347Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p66

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significativamente mais alto do que os custos de produccedilatildeo ou de os produzir abaixo do

valor de mercado antes que a concorrecircncia ganhe terreno novamente A aceleraccedilatildeo dos

ldquociclos de inovaccedilatildeordquo e do progresso tecnoloacutegico bem como o encurtamento dos ldquociclos

de vida dos produtosrdquo estatildeo de acordo com Rosa enraizadas no sistema348

Significativo para o viacutenculo entre a economia capitalista e a dinacircmica de

aceleraccedilatildeo da Modernidade eacute a circunstacircncia de que a aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo resultante

da economia do tempo capitalista exige uma aceleraccedilatildeo simultacircnea da distribuiccedilatildeo (pelo

menos se a possibilidade de abrir novos mercados estaacute esgotada) e do ato de consumo

De facto o ritmo do processo da utilizaccedilatildeo de capital depende decisivamente da

velocidade da sua circulaccedilatildeo isto eacute especialmente do transporte do armazenamento da

distribuiccedilatildeo e venda de bens e da aquisiccedilatildeo de mateacuterias-primas como neste caso natildeo se

cria qualquer valor atrasa-se a concretizaccedilatildeo de mais-valias e o tempo de circulaccedilatildeo

traduz-se de acordo com Marx num ldquotempo de desvalorizaccedilatildeordquo349 ndash a compulsatildeo para

acelerar constitui-se como uma nova premecircncia De particular interesse para a evoluccedilatildeo

da dinacircmica moderna de aceleraccedilatildeo eacute o facto de que do ponto de vista histoacuterico a

aceleraccedilatildeo impulsionada pela loacutegica da utilizaccedilatildeo de capital natildeo comeccedilou no setor da

produccedilatildeo mas no setor da distribuiccedilatildeo ou no da circulaccedilatildeo a partir do seacuteculo XVII o

transporte e a comunicaccedilatildeo aceleraram-se notavelmente muito antes das grandes

inovaccedilotildees tecnoloacutegicas que culminaram na aceleraccedilatildeo dos processos de produccedilatildeo A

principal razatildeo para tal situaccedilatildeo deve-se ao facto de que nos seacuteculos XVI e XVII o

capital se acumulara primeiro nas aacutereas do comeacutercio e nas da circulaccedilatildeo supondo um

aumento na rotatividade dos produtos pois a subsistecircncia e o corporativismo no setor de

produccedilatildeo impediam inicialmente tal desenvolvimento350 A aceleraccedilatildeo do comeacutercio e do

transporte foi portanto historicamente precedida pela aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo que

atingiu um cliacutemax dramaacutetico na Revoluccedilatildeo Industrial351

O incremento da aceleraccedilatildeo de capital e de mercadorias por unidade de tempo

tem como correlativo economicamente irrefutaacutevel um aumento na taxa de consumo por

unidade de tempo correspondente a um aumento na taxa de produccedilatildeo pois eacute somente

no ato de consumo que a mais-valia eacute concretizada A economia capitalista do tempo

348 Garhammer M Wie Europaumler ihre Zeit nutzen Berlin 1999 p79349 Marx K Das Kapital Stuttgart 1957 p458 apud Rosa H Beschleunigung Frankfurt aM 2005p 262 Schlote A Widerspruch sozialer Zeit Opladen 1996 p72350Richter G Die lineare Zeit Hamburg 1991 p27351 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p260

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impotildee um aumento na intensidade de consumo correspondente ao processo de

produccedilatildeo e segundo Rosa pode ldquodesmascararrdquo o aumento do ritmo de vida definido

por um aumento do nuacutemero de episoacutedios de accedilatildeo ou de experiecircncia por unidade de

tempo como uma ldquonecessidade econoacutemicardquo352 Eacute significativo do ponto de vista

econoacutemico que um dos problemas de base de uma economia capitalista natildeo seja apenas

um problema de distribuiccedilatildeo mas antes da manutenccedilatildeo da circulaccedilatildeo acelerada e

dinamizada353 Naturalmente esta necessidade sisteacutemica natildeo pode explicar a

intensificaccedilatildeo correspondente do ritmo de vida na esfera do consumo ningueacutem eacute

forccedilado por razotildees econoacutemicas a aumentar o ldquonuacutemero de accedilotildees de satisfaccedilatildeo de

necessidades por unidade de tempordquo354 e com isto a ldquoaveriguar qual o valor do tempo

proacuteprio nos escalotildees do incrementordquo Que o sujeito na sociedade moderna tenda a

valorizar assim o tempo natildeo eacute nem antropologicamente predeterminado como Linder

assume355 nem tatildeo simplesmente proveniente da necessidade econoacutemica como Scharf

sugere356 torna-se necessaacuteria uma outra explicaccedilatildeo segundo Rosa acerca de uma

reconstruccedilatildeo dos fundamentos culturais das orientaccedilotildees das accedilotildees individuais

caracteriacutesticas da Modernidade

No curso da industrializaccedilatildeo a compulsatildeo de usar os recursos do tempo ndash

resultantes de uma economia capitalista do tempo ndash teve um impacto maciccedilo e

generalizado na forma e na substacircncia das praacuteticas perceccedilotildees e orientaccedilotildees do tempo

predominantes entre a populaccedilatildeo trabalhadora Essa mudanccedila foi acompanhada por

duras lutas sociais e muitas das vezes levadas a cabo por todos os meios de pressatildeo

externa357

O tempo usado no trabalho assalariado passou a medir-se pelo trabalhar do

reloacutegio mecacircnico e desligou-se dos ritmos da natureza estruturais da vida social dos

anteriores seacuteculos senatildeo dos mileacutenios anteriores Os dias as estaccedilotildees ou as condiccedilotildees

climaacuteticas jaacute natildeo desempenham praticamente nenhum papel na produccedilatildeo industrial De

uma maneira particularmente draacutestica esta dissociaccedilatildeo manifesta-se no trabalho por

turnos Eacute sublinha Marx uma consequecircncia natural do facto de o tempo linear no

352 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p262353 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p263354 Scharf G Zeit und Kapitalismus Frankfurt aM 1988 p157355 Linder S The Harried Leisure Class New York 1970 p77356 Scharf G Zeit und Kapitalismus Frankfurt aM 1988 p168357Thompson E Zeit Arbeitsdisziplin und Industriekapitalismus Frankfurt aM 1980

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acircmbito da economia capitalista moderna permanecer sem qualidade progredindo dia e

noite no veratildeo e no inverno de forma linear e na mesma proporccedilatildeo ndash segundo tal

conceccedilatildeo poder-se-ia afirmar que uma hora durante qual as maacutequinas estatildeo paradas e

natildeo se trabalha nem se transporta nem se vende equivale a ldquouma hora economicamente

perdidardquo358 O processo ateacute hoje em progressatildeo da dissoluccedilatildeo dos primeiros ritmos

naturais e mais tarde dos novos ritmos sociais coletivos adquiridos tanto de produccedilatildeo

como de circulaccedilatildeo e consumo em prol de um tempo simultacircneo sem qualidade e

indiscriminado possui tambeacutem um cerne econoacutemico segundo Hartmut Rosa359

Ao mesmo tempo com a industrializaccedilatildeo desenvolveu-se uma separaccedilatildeo

temporal e espacial estrita e quase completa entre trabalho e tempo livre com largas

consequecircncias na experiecircncia e no planeamento do tempo por parte do indiviacuteduo e nas

estruturas temporais da sociedade moderna Foi somente atraveacutes desta separaccedilatildeo que

emergiram as instituiccedilotildees caracteriacutesticas da Modernidade de ldquotempo livrerdquo e das

ldquohoras de trabalhordquo que estruturam fundamentalmente os modos de viver do sujeito e

tambeacutem as formas com as quais este tenta conciliar as horas do quotidiano com o tempo

da vida e o tempo da histoacuteria A separaccedilatildeo espacial e temporal entre trabalho e a vida

privada produziu consequecircncias poliacuteticas que se manifestam na Modernidade

especialmente na demarcaccedilatildeo especiacutefica entre o puacuteblico e o privado360 Finalmente o

tempo de trabalho separou-se do seu objeto ou seja foi estipulado de acordo com uma

duraccedilatildeo abstrata de calendaacuterio e reloacutegio natildeo dependendo mais de tarefas ou eventos

(que estruturam ou estruturavam as atividades de sociedades tradicionais

particularmente as agraacuterias) A partir deste momento o iniacutecio e o fim do horaacuterio de

trabalho passaram a ser marcados por uma sirene de faacutebrica por um reloacutegio de ponto ou

pelo computador menos pelos requisitos relativos ao conteuacutedo das tarefas do trabalho

O ldquotempo de eventordquo tradicional que estipulava a duraccedilatildeo e o ritmo das atividades e dos

eventos atraveacutes do seu caraacuteter natural e histoacuterico ndash ou seja atraveacutes do seu ldquotempo

proacutepriordquo361 do oacutecio sujeito a flutuaccedilotildees ndash foi substituiacutedo por uma rede de tempo linear e

abstrata

por meio da qual o quadro temporal de atividades e eventos eacute determinado

358 Marx K Das Kapital Stuttgart 1957 p271 apud Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungender Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005 p263359 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p204360 Cf Giddens A Time and social organisation Stanford 1987 p151361 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995 p46

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precedentemente estabelece preacute-requisitos de previsibilidade de manipulaccedilatildeo de tempo e

consequentemente de aceleraccedilatildeo de processos sociais Com ela o foco de atenccedilatildeo

temporal mudou-se das tarefas ou eventos para uma orientaccedilatildeo de tempo abstrata A era do

capitalismo industrial que eacute marcada por um lado pela economia do capitalismo e por

outro pela loacutegica tecnoloacutegica e especiacutefica da produccedilatildeo industrial apresenta-se como um

tempo abstrato linear e simultaneamente como as lutas em torno das horas de trabalho

tornam claro polarizado362

Para a interiorizaccedilatildeo do novo conceito de tempo (como uma compulsatildeo

imediata) revelam-se de importante eficaacutecia todas aquelas instituiccedilotildees da sociedade

moderna nas quais as respetivas orientaccedilotildees e praacuteticas satildeo habitualmente exercidas por

exemplo (para aleacutem das faacutebricas e empresas) hospitais prisotildees quarteacuteis jardins de

infacircncia e escolas363 A observaccedilatildeo da rigorosa disciplina do tempo desempenha um

papel preponderante em todas as instituiccedilotildees cujos padrotildees de atividade assentam num

esquema temporal geralmente muito riacutegido e abstrato (poder-se-aacute pensar nos intervalos

de tempo dos horaacuterios das sentenccedilas de prisatildeo etc) delineado como um objetivo

disciplinador central Os reloacutegios representam assim por excelecircncia instrumentos de

vigilacircncia porque quebram os ldquoritmosrdquo e os ldquotempos proacutepriosrdquo364 dos seres humanos

definidos pela natureza ou pelo haacutebito

A disciplina no uso do tempo que se regista no corpo consiste principalmente na

capacidade de orientar as proacuteprias accedilotildees conforme um esquema temporal abstrato isto eacute

consiste em ser pontual em adiar a satisfaccedilatildeo de necessidades (por exemplo as do sono

da fome ou da vontade de ir agrave casa de banho) em prol do que estaacute estipulado no dito

esquema temporal reprimir os impulsos confinar picos de desempenho e fases de

recuperaccedilatildeo a momentos especiacuteficos etc365

Segundo Rosa somente o desenvolvimento de tal disciplina do tempo

juntamente com as revoluccedilotildees tecnoloacutegicas da Modernidade se afiguram capaz de

provocar uma aceleraccedilatildeo (temporal e economicamente eficiente) e um incremento tatildeo

dinacircmicos 366 Tal revela-se especialmente na aacuterea do trabalho

362Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p309363O tempo poderia assim ser um dos instrumentos da sociedade disciplinar analisada por MichelFoucault364Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995365 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p267366 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p269

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O filoacutesofo contrasta pois o conceito de alienaccedilatildeo ndash tomado como uma

patologia da modernidade criada entre outros pela aceleraccedilatildeo ndash com o conceito de

ressonacircncia aqui apresentado como o epiacutetome de uma vida natildeo-alienada367 (Rosa

utiliza aqui o conceito de alienaccedilatildeo natildeo somente no sentido de trabalho mas tambeacutem

no acircmbito de outros contextos da vida na modernidade tardia) Tal como Rahel Jaeggi

em Alienaccedilatildeo - Sobre a actualidade de um problema da filosoacutefico-social (Entfremdung

ndash Zur Aktualitaumlt eines sozialphilosophischen Problems)368 Rosa delineia uma

redefiniccedilatildeo do conceito de alienaccedilatildeo Para Rosa a alienaccedilatildeo eacute uma forma especiacutefica de

relaccedilatildeo com o mundo na qual sujeito e mundo se enfrentam de uma forma indiferente

ou hostil-repulsiva (relaccedilatildeo de natildeo-relaccedilatildeo) A alienaccedilatildeo define assim um estado no

qual o mundo aparece frio riacutegido mudo e que natildeo oferece resposta369 Por contraste a

ressonacircncia eacute um modo de relaccedilatildeo (triacuteade do corpo mente e mundo)370 As experiecircncias

de ressonacircncia poderatildeo ser por exemplo experiecircncias de reconhecimento Natildeo

obstante existem experiecircncias de ressonacircncia que vatildeo aleacutem das relaccedilotildees

intersubjectivas os sujeitos modernos tambeacutem procuram e podem entrar numa relaccedilatildeo

de ressonacircncia na natureza na religiatildeo na arte no trabalho

Entre plantas e jardineiros entre livros e estudiosos entre taacutebuas e carpinteiros massas e

padeiros violinos e violinistas podem surgir verdadeiras relaccedilotildees de resposta no sentido

caracteriacutestico das relaccedilotildees ressonantes (Sennett) De facto qualquer pessoa que jaacute tenha

aprendido ou melhor adquirido uma certa teacutecnica de processamento de material uma

habilidade manual conhece o sentimento especiacutefico que surge quando o material parece

encontrar-se ou responder ao trabalhador quando se estabelece uma relaccedilatildeo entre material

ferramenta e matildeo e esta relaccedilatildeo concorda Sennett pode tambeacutem desenvolver-se entre

homem e maacutequina por exemplo entre condutor e motocicleta e tambeacutem num triacircngulo de

ressonacircncia entre homem maacutequina e o material a ser trabalhado - ou entre homem e texto

por exemplo quando comeccedilamos a compreender uma liacutengua estrangeira [hellip] Segundo o

conceito de ressonacircncia a ideia do material que responde implica sempre a possibilidade e

a ocorrecircncia de resistecircncia de imprevisto e de surpresas A massa a moto mas tambeacutem o

texto que tento escrever todos eles falam com a sua proacutepria voz por vezes revelam-se

materiais resistentes e talvez nunca possam ser completamente controlados calculados e

367 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p147368 Jaeggi R Entfremdung ndash Zur Aktualitaumlt eines sozialphilosophischen Problems Frankfurt am Main2005369 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p316370 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p298

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previstos Se o fizerem a relaccedilatildeo deixa de ser uma relaccedilatildeo ressonante torna-se entatildeo

puramente rotineira371

E mais

a oferta de trabalho no sentido de trabalho assalariado pode transformar a relaccedilatildeo de

ressonacircncia numa relaccedilatildeo alienada A intuiccedilatildeo baacutesica por detraacutes desta suposiccedilatildeo que estaacute

impregnada de tradiccedilatildeo e criacutetica do capitalismo eacute tatildeo simples quanto plausiacutevel ao oferecer

o seu trabalho o trabalhador assalariado eacute obrigado a assumir uma relaccedilatildeo instrumental com

ele com o material e com meios de trabalho processados Aleacutem disso o trabalhador natildeo

experimenta qualquer auto-eficaacutecia proacutepria porque realiza as especificaccedilotildees da faacutebrica (ou

da bolsa de valores) produto e material natildeo lhe respondem a si mas em uacuteltima instacircncia ao

capital que se tornou o objecto do processo de produccedilatildeo Deste ponto de vista o problema

na verdade a patologia do capitalismo acelerado consiste no facto de destruir um terreno de

ressonacircncia central da vida humana com esta coisificaccedilatildeo na area do trabalho372

Rosa defende assim que a esfera de ressonacircncia do trabalho tal como a esfera

de ressonacircncia da famiacutelia deve ser concebida como um oaacutesis de ressonacircncia373

Como jaacute dissemos anteriormente a teoria da ressonacircncia de Rosa foi recebida e

discutida de forma controversa374 Com efeito a derivaccedilatildeo abrangente do conceito de

ressonacircncia a partir de uma variedade de perspetivas e contextos foi alvo de profunda

condenaccedilatildeo por parte de diversos leitores que invocaram por seu turno o facto de o

conceito de ressonacircncia supostamente parecer arbitraacuterio como que carecendo de

precisatildeo e de realidade e em uacuteltima anaacutelise afigurar-se inadequado enquanto conceito

soacutecio-filosoacutefico baacutesico375 tal como Rosa o pretenderia inicialmente sustentar Rosa

inicia a sua definiccedilatildeo de ressonacircncia atraveacutes da elucidaccedilatildeo do significado fiacutesico-musical

da ressonacircncia que o filoacutesofo procurar diferenciar metaforicamente em diferentes

direcccedilotildees A determinaccedilatildeo da ressonacircncia por Rosa eacute assim concebida de tal forma que

lhe seja possiacutevel integrar a antiacutetese absoluta do significado fiacutesico autonomia diferenccedila

e contradiccedilatildeo reflectida devem ser constitutivas nas relaccedilotildees de ressonacircncia Nas

371 Ibid372 Ibid373 Ibid374 Brumlik M Resonanz oder Das Ende der kritischen Theorie In Blaumltter fuumlr deutsche undinternationale Politik Mai 2016 Berlin 2016 p 120ndash123 Peters C-H- Schulz P Resonanzen undDissonanzen Hartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 Wils J-P ResonanzIm interdisziplinaumlren Gespraumlch mit Hartmut Rosa Baden-Baden 2018375 HartmannM Im Resonanzhafen bekommt die Welt ein anderes Gesicht In Frankfurter AllgemeineZeitung 5 April Frankfurt 2016

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leituras de Rosa o conceito de ressonacircncia funciona de acordo com a loacutegica de um

equivalente geral para o qual os conceitos teoacutericos mais heterogeacuteneos podem ser

transferidos A mimese de Adorno376 (53) a aura de Benjamin377 (555) a comunicaccedilatildeo

de Habermas378 (587) a antropologia simeacutetrica de Latour379 (384) a intensidade de

Masumi380 (288) a assimilaccedilatildeo de Simmel381 (561) o carisma de Weber382 (554) entre

outros satildeo todos reformulados em termos de teoria da ressonacircncia Neste sentido Rosa

procura combinar distintos teorias e autores aqui evocados para sustentar a sua teoria da

ressonacircncia

A abrangecircncia quase ilimitada que envolve a definiccedilatildeo de ressonacircncia tal

como Rosa a elabora e que se estende a vaacuterios niacuteveis de anaacutelise e de determinaccedilotildees

funcionais teoacutericas provocara a possibilidade de perspetivaccedilotildees relativas a diversos

equiacutevocos e contradiccedilotildees Na fronteira entre a antropologia e a filosofia social por

exemplo surge a objeccedilatildeo de que Rosa no seu recurso agrave neurologia e agrave pesquisa infantil

define a ressonacircncia como uma relaccedilatildeo global primaacuteria preacute-reflexiva383 todavia e por

outro lado o filoacutesofo acaba por postular a autonomia como uma condiccedilatildeo preacutevia da

ressonacircncia384 Na transiccedilatildeo do niacutevel social para o niacutevel das relaccedilotildees entre objectos

coloca-se a questatildeo de saber em que sentido os objectos podem falar com a sua proacutepria

voz e iniciar relaccedilotildees que integrem a possibilidade de resposta ao humano e que se

estabeleccedilam como efetivamente transformadoras Na interface entre as dimensotildees

descritiva e normativa eacute questionaacutevel se natildeo deveria haver algo como uma ressonacircncia

negativa Rosa nega-o e vota a favor de uma disposiccedilatildeo positiva385 que se revela

incompatiacutevel com a sua reivindicaccedilatildeo de criacutetica agraves relaccedilotildees de ressonacircncia Rosa ignora

pois as contradiccedilotildees do seu conceito O que os indiviacuteduos experimentam ou descrevem

subjectivamente como uma relaccedilatildeo ressonante com o mundo pode aparecer ao niacutevel da

anaacutelise como emoccedilatildeo sentimental relaccedilatildeo de eco puro ou como uma reacccedilatildeo

376 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p53 377 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p555378 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p587379 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p384380 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p288381 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p561382 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p554383 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p110384 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p650385 Rosa H Resonanz Berlin 2016 p744

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compensatoacuteria Um outro ponto de criacutetica diz respeito ao suposto recurso de Rosa ao

universo intelectual do Romantismo (condenaccedilatildeo essa apontada por Charles Taylor)386

386 Taylor C Resonanz und die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und DissonanzenHartmut Rosas kritische Theorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249-270 Taylor considerarelevante fazer inscrever o conceito de ressonacircncia no Romantismo pois segundo o filoacutesofo eacute nesteperiacuteodo filosoacutefico-cultural que o conceito desenvolvido por Rosa tem a sua origem (Taylor C Resonanzund die Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und Dissonanzen Hartmut Rosas kritischeTheorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp249) Taylor concorda com Rosa que uma boa vida seriaimpossiacutevel sem relaccedilotildees de ressonacircncia entre o eu e o mundo no entanto Taylor considera difiacutecil que aorigem romacircntica que envolve o conceito de ressonacircncia tal como tratado por Rosa possa pareceraceitaacutevel para muitos leitores modernos pois a perspetiva romacircntica inclui uma metafiacutesica e uma visatildeo danatureza que natildeo se compatibiliza com a visatildeo das ciecircncias naturais modernas (Taylor C Resonanz unddie Romantik In Peters C-H- Schulz P Resonanzen und Dissonanzen Hartmut Rosas kritischeTheorie in der Diskussion Bielefeld 2017 pp253)

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PARTE II

___

Para uma proposta de apreciaccedilatildeo de oacutecio enquanto

conceito eminentemente criacutetico

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Capiacutetulo 1

O oacutecio

Delimitaccedilatildeo de um conceito filosoacutefico

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11 | Primeiros delineamentos

Se a teacutecnica eacute o completo domiacutenio do movimento tudo o que nos resta agora eacute uma funccedilatildeo progressiva travagem

Peter Sloterdijk Exageros selecionados

No ensaio A Sociedade do Cansaccedilo Byun Chul Han387 diagnostica aquilo que

designa convocando o pensamento hegeliano de perda de negatividade no acircmbito da

atual sociedade definida por seu turno agrave luz de um incessante incremento do

desempenho A possibilidade de negaccedilatildeo dialeacutetica que em uacuteltima anaacutelise traduz

movimento dinamismo desenvolvimento afigura-se no contexto da nossa sociedade

atual ndash a sociedade do desempenho ndash suspensa De acordo com Han a sociedade atual

perdera os seus mecanismos de paragem o excesso de positividade ndash e a anulaccedilatildeo da

emergecircncia de quaisquer modos de negatividade ndash conduz a uma situaccedilatildeo que poderia

ser descrita em analogia com um complexo mecacircnico a incessante e muacuteltipla

positividade em contiacutenuo e ininterrupto movimento provoca o sobreaquecimento do

mecanismo e em uacuteltima instacircncia a sua gripagem e consequente inutilizaccedilatildeo O

trabalho e o desempenho constituem pois os imperativos que determinam a sociedade

na modernidade tardia ilustrada por Han como um ser humano que sem

constrangimentos externos e na pretensa consciecircncia da sua liberdade apenas trabalha

trabalha e trabalha natildeo sendo mais capaz de desenvolver uma experiecircncia de oacutecio ou de

imersatildeo contemplativa ndash ateacute ao seu colapso fiacutesico e psicoloacutegico Neste sentido segundo

a perspetivaccedilatildeo de Han a sociedade da modernidade tardia conhece somente ndash como se

tais se constituiacutessem como as suas uacutenicas realidades constitutivas ndash a produtividade

incrementada e o crescimento acelerado permanente

As poliacuteticas neoliberais tecircm destruiacutedo todas as formas de tempo que natildeo estatildeo no caminho

da loacutegica da eficiecircncia e do capital Isto adoece e destroacutei a alma Portanto precisamos de

um outro tipo de tempo o tempo como um presente A aceleraccedilatildeo nomeia a crise do

tempo presente Tudo se torna mais raacutepido sem ser capaz de travar A crise em tempo real

poreacutem eacute que perdemos aqueles tempos que natildeo permitem a aceleraccedilatildeo tempos que

permitem uma experiecircncia de duraccedilatildeo em presenccedila Hoje o tempo de trabalho foi

totalizado para o uacutenico tempo por excelecircncia nessa eacutepoca Eacute o tempo que pode ser

387 Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014

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acelerado e explorado388

Todavia importaria recordar que tudo tinha comeccedilado de forma muito diferente

no berccedilo da nossa civilizaccedilatildeo europeia Tenhamos presente a seguinte passagem de

Eacutetica a Nicoacutemaco de Aristoacuteteles noacutes ocupamos o tempo a trabalhar para podermos

gozar de tempo livre do mesmo modo que fazemos a guerra para poder viver em

paz389 Segundo Josef Pieper esta uacuteltima passagem deveria ser lida como Estamos no

natildeo-oacutecio para ter oacutecio390 pois no grego antigo natildeo existia conceito linguiacutestico que

traduzisse a realidade do trabalho para o cidadatildeo (como sabemos o trabalho enquanto

satisfaccedilatildeo de necessidades fora reservado para contexto do ambiente domeacutestico a casa

o oikos cumprido por escravos e mulheres) Com efeito no iniacutecio da reflexatildeo sobre o

oacutecio na antiguidade grega impunha-se a questatildeo acerca de uma vida boa (e feliz)391 Na

Eacutetica a Nicoacutemaco Aristoacuteteles apresenta as suas consideraccedilotildees sobre o oacutecio (scholeacute) agrave

luz da consideraccedilatildeo de um ideal relativo a um estilo de vida boa conducente agrave

felicidade perfeita (eudaimoniacutea) do ser humano Importaria a este propoacutesito

compreender a derivaccedilatildeo argumentativa de tal afirmaccedilatildeo pois em verdade Aristoacuteteles

integra nas suas posiccedilotildees determinados atributos ou singularidades do oacutecio que ainda

persistem no contexto da modernidade Primeiramente o filoacutesofo assinala

repetidamente que a eudaimonia soacute pode consistir na theoria isto eacute na atividade de

uma natureza teoacuterica ou ldquocontemplativa392 o modo teoacuterico de vida permite ao ser

humano dedicar-se inteiramente agrave reflexatildeo do mundo e aumentar o seu conhecimento a

respeito deste Recorde-se pois que a accedilatildeo praacutetica inclusivamente na sua determinaccedilatildeo

moral e virtuosa (Aristoacuteteles cita como exemplo o serviccedilo em funccedilatildeo do estado e o

serviccedilo militar) apresenta-se subordinada agrave teoria393 Aristoacuteteles justifica a primazia da

teoria com o facto de tal constituir a atividade mais poderosa mais contiacutenua no

tempo e mais agradaacutevel394 Trata-se pois da atividade que natildeo carece de nada

388 Han B-C Die Zeit 13 Juni 2013 Nr 252013 Hamburg 2013389 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b5390 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p49391 Uma visatildeo mais detalhada do antigo ideal de um estilo de vida teoacuterico e das suas implicaccedilotildees ateacute osdias atuais poderaacute ser consultada em Juumlrgasch TKeiling T (ed) Anthropologie der TheorieTuumlbingen 2017392 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a15393 Sobre a hierarquizaccedilatildeo de bios theoretikos e bios praktikos consultar Huber G Bios theoretikosund bios praktikos bei Aristoteles und Platon In Vickers B (ed) Arbeit Muszlige MeditationBetrachtungen zur Vita activa und Vita contemplativa Zuumlrich 1985 pp 21-33394 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a

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basta-se a si proacutepria395 A contemplaccedilatildeo teoacuterica em contraste com a accedilatildeo praacutetica natildeo

persegue nenhum outro propoacutesito que lhe seja externo

Demais esta actividade parece ser a uacutenica que eacute querida por si proacutepria porque dela natildeo se

produz mais nenhuma consequecircncia para aleacutem do proacuteprio olhar contemplativo enquanto a

partir das actividades praacuteticas ainda conseguimos obter um resultado melhor ou pior para

aleacutem da proacutepria acccedilatildeo396

Somente apoacutes a apresentaccedilatildeo de tais reflexotildees sobre a teoria eacute que Aristoacuteteles

introduz o scholeacute enquanto condiccedilatildeo de bem-aventuranccedila O calmo e imperturbaacutevel

scholeacute designa o estado propiciador agrave emergecircncia da atividade contemplativa liberta de

restriccedilotildees de objetos externos o scholeacute eacute em verdade a condiccedilatildeo preacutevia da teoria397

Platatildeo jaacute estabelecera tal conexatildeo anteriormente398 Platatildeo designa no Teeteto os

filoacutesofos como aqueles que natildeo se importam se os outros falam muito ou pouco pois

eles os filoacutesofos cumprem apenas certo399 e que como tal se apresentam como

aqueles homens que foram verdadeiramente criados em liberdade e oacutecio400 A

caracterizaccedilatildeo elitista de Platatildeo acerca do filoacutesofo que debate e discute numa situaccedilatildeo

privilegiada de oacutecio revela-se particularmente aguda ou incisiva tendo em conta o modo

como o estatuto do filoacutesofo se distingue do estatuto das ditas pessoas pragmaticamente

atuantes (como por exemplo os falantes do tribunal) que foram educadas como

servas401 Importaria ainda sublinhar que tanto Aristoacuteteles quanto Platatildeo atribuem ao

oacutecio natildeo apenas uma funccedilatildeo episteacutemica pois em verdade as posiccedilotildees sobre o oacutecio

sustentadas por ambos os filoacutesofos integram a consideraccedilatildeo da possibilidade de

conhecimento do mundo desenvolvida de acordo com a fruiccedilatildeo de uma atividade que

conduz agrave felicidade Segundo Aristoacuteteles eacute o prazer da teoria que intensifica a

atividade libertando forccedilas particularmente produtivas402 Especialmente no acircmbito da

definiccedilatildeo aristoteacutelica de teoria encontramo-nos perante a combinaccedilatildeo de diversos

conceitos que se revelam afins tais como contemplaccedilatildeo felicidade atividade e

395 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1176b6-7396 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b1397 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 19ndash37398 Huber G Bios theoretikos und bios praktikos bei Aristoteles und Platon In Vickers B (ed)Arbeit Muszlige Meditation Betrachtungen zur Vita activa und Vita contemplativa Zuumlrich 1985 pp26ndash30Telo H bdquoThe freedom of θεωρία and σχολή in Platoldquo In Juumlrgasch T Keiling T (ed) Anthropologieder Theorie Tuumlbingen 2017 pp 11ndash27399 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p168400 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p172401 Platatildeo Teeteto Trad Adriana Manuela Nogueira Lisboa 2008 p168402 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177b

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autossuficiecircncia Inclusivamente a relaccedilatildeo entre oacutecio e reclusatildeo ou solidatildeo individuais

que se tornaraacute relevante no contexto cultural moderna jaacute constitui uma condiccedilatildeo

perspetivada por Aristoacuteteles que constata O saacutebio eacute capaz de criar uma situaccedilatildeo

contemplativa sozinho a partir de si proacuteprio e em si proacuteprio e quanto mais saacutebio for

mais facilmente o consegue fazer403

Embora Aristoacuteteles caracterize a atividade teoacuterica de modo enaltecedor em

contraste com trabalho praacutetico natildeo se afigura suficiente compreender de um modo

definitivo os dois conceitos somente agrave luz de uma oposiccedilatildeo ou contraposiccedilatildeo Na visatildeo

de Aristoacuteteles a teoria e a praacutetica encontram-se numa relaccedilatildeo complexa que se

expressa de um modo mais manifesto nas sua teses poliacuteticas numa sociedade em que a

liberdade pessoal se determina como uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a participaccedilatildeo

poliacutetica o privileacutegio final de tal liberdade ndash o oacutecio ndash adquire uma funccedilatildeo poliacutetica

imediata Como Soeffner observa em Aristoacuteteles o oacutecio foi considerado um requisito

para uma accedilatildeo poliacutetica bem-sucedida a esfera do oacutecio conscientemente separada da

praacutetica no tempo e no espaccedilo mas no entanto orientada para esta servira para desenhar

cenaacuterios e estrateacutegias opcionais antes da accedilatildeo404 Esta figura de pensamento apresenta-

se amplamente reconhecida nos tempos modernos a accedilatildeo praacutetica deve ser precedida de

uma reflexatildeo teoacuterica para que seja bem-sucedida Cumpriria a este propoacutesito chamar a

atenccedilatildeo para o notaacutevel facto de tanto na cultura grega como na romana as definiccedilotildees de

oacutecio apresentarem uma certa prioridade e positividade conceptual sobre os seus

opostos405 assim assinala Riedl Trabalho eacute apenas a definiccedilatildeo negativa de oacutecio tanto

em grego como em latim scholē eacute o termo que a ascholia nega Em latim o negotium eacute

o contra-conceito do otium406 Se em latim o par de opostos otiumnegotium toma o

lugar da distinccedilatildeo aristoteacutelica entre teoria e praacutetica tal jaacute parece traduzir

etimologicamente a avaliaccedilatildeo contrastante entre o oacutecio livre e privilegiado e a ndashnas

palavras de Platatildeo ndash laboriosa atividade do servo407 Manfred Fuhrmann esclareceu tal

conexatildeo

As palavras otium e negotium pertencem aos pares de opostos cujo negativo eacute formado

403 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a35404 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p 37405 Fuest L Poetik des Nicht(s)tuns Verweigerungsstrategien in der Literatur seit 1800 Paderborn2008 p18406 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 22407 Burke P The invention of leisure in early modern Europe In Past amp Present 146 (1995) 139

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pelo nec com negatium se designou todas as atividades empreendidas para a

autopreservaccedilatildeo para aumentar a riqueza ou para aumentar o prestiacutegio social Abrangia

assim tudo o que sempre tinha constituiacutedo o conteuacutedo da vida romana Qualquer

ocupaccedilatildeo por outro lado que natildeo atendesse diretamente a um dos objetivos acima

mencionados era o otium Isto incluiacutea em particular o que foi transmitido aos romanos

pelos gregos Estudo e educaccedilatildeo arte ciecircncia e literatura teoria e filosofia408

Eacute significativo que inclusivamente o filoacutelogo claacutessico Fuhrmann no seu

esclarecimento do termo natildeo pudera evitar comeccedilar por invocar o ne-gotium ativo de

modo a ndash e ao contraacuterio da explicaccedilatildeo etimoloacutegica que o mesmo Fuhrmann expusera

anteriormente ndash delimitar o otium como um conceito negativo Repare-se que no

acircmbito de tais explicitaccedilotildees Fuhrmann revela porventura de um modo natildeo intencional

o facto de a prioridade original do otium natildeo se encontrar preservada no atual ou

moderno conceito de oacutecio ndash pois agrave luz deste moderno sentido o oacutecio constitui-se como

um conceito derivado porque negativo do trabalho conceptualizado como digamos

ldquoum estado normalrdquo Apesar das sobreposiccedilotildees entre as tradiccedilotildees grega e romana a

transiccedilatildeo para a cultura latina constitui uma mudanccedila significativa no discurso acerca do

oacutecio409 Mesmo nos tempos preacute-ciceroacutenicos o conceito de oacutecio jaacute havia perdido o

elemento da reflexatildeo teoacuterica e do bem viver que tinha sido central em Aristoacuteteles como

podemos constatar nas observaccedilotildees de Fuhrmann

Para a aristocracia romana cujo propoacutesito na vida era a eficaacutecia poliacutetica o otium

significava a esfera privada Natildeo fazia diferenccedila quais as atividades ou ocupaccedilotildees em que

esta se encontrava envolvida ou se por exemplo Scipio reunira conchas no litoral ou

conversara com os seus amigos sobre as fundaccedilotildees do estado romano ndash natildeo fazia

diferenccedila Aleacutem disso natildeo importava o tempo ou as ocasiotildees em que algueacutem se afastava

do Foacuterum e da Cuacuteria as horas de oacutecio as feacuterias e a reforma constituiacuteam de igual maneira

otium410

Assim esvaziado e dissociado do conceito grego de scholeacute o conceito de oacutecio

poderia assumir novos significados e ser adaptado agraves condiccedilotildees da cultura romana Na

eacutepoca de Ciacutecero o uso do oacutecio jaacute havia se estendido muito aleacutem da dimensatildeo privada

408 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488409 Uma histoacuteria conceptual detalhada e abrangente do oacutecio desde as suas origens na Antiguidade Antigapoderaacute ser lida em Andreacute J-M Lrsquootium dans la vie morale et intellectuelle romaine des origines agravelrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966410 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488

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inscrevendo-se progressivamente no acircmbito da esfera poliacutetica411 Nos textos romanos

do seacuteculo I aC o discurso poliacutetico-moral sobre o oacutecio ganhara cada vez mais

predominacircncia a importacircncia do oacutecio para a comunidade e para o Estado passara a ser

reconhecida e com efeito exigida

A foacutermula de cum dignitate otium de Ciacutecero apresenta-se porventura como a

manifestaccedilatildeo mais reconhecida deste novo ideal poliacutetico de oacutecio412 Em Sestiana Ciacutecero

afirma que cum dignitate otium constitui a meta maacutexima da res publica Neste sentido e

tal como elucida Fuhrmann o oacutecio eacute doravante usado na linguagem poliacutetica como um

termo para um estado de relaccedilotildees puacuteblicas [] e significava o funcionamento sem

perturbaccedilotildees de uma certa constituiccedilatildeo constituinte-poliacutetica413 A dignitas como

segunda parte da foacutermula refere-se agrave distinccedilatildeo e agrave soberania do Estado romano bem

como dos seus representantes poliacuteticos em relaccedilatildeo a outros Estados e igualmente em

relaccedilatildeo aos cidadatildeos romanos comuns a dignitas tinha um caraacutecter estaacutetico e

designava uma categoria social que ia aleacutem do meacuterito individual para aleacutem da liberdade

condicional do cargo anual individual414 Ciacutecero assinala expressamente que os dois

componentes da foacutermula devem manter-se numa relaccedilatildeo equilibrada porque na

poliacutetica natildeo se deve deixar levar pela dignitas a ponto de natildeo se preocupar com o otium

nem se agarrar a um otium que contradiz a dignitas415

Importaria pois assinalar que o conceito poliacutetico original de cum dignitate

otium natildeo pode ser prontamente identificado com um conceito moderno de oacutecio

imensamente distante em termos conceptuais e culturais da foacutermula ciceroacutenica

nomeadamente no que concerne agrave sua definiccedilatildeo de oacutecio digno considerado em

afinidade com a possibilidade de expressatildeo da situaccedilatildeo biograacutefica e das realizaccedilotildees

pessoais de um ser humano Para se aproximar de uma possiacutevel conceccedilatildeo moderna do

termo o oacutecio teve de regressar da esfera poliacutetica agrave esfera privada Mais uma vez foi

Ciacutecero quem lanccedilou as bases para esta mudanccedila de sentido Fuhrmann esclarece que

411 Sobre o conceito e a praacutetica do oacutecio na eacutepoca ciceroniana consultar Andreacute J-M Lrsquootium dans lavie morale et intellectuelle romaine des origines agrave lrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966 p205412 Sobre a criacutetica do termo otium cum dignitate consultar Andreacute J-M Lrsquootium dans la vie morale etintellectuelle romaine des origines agrave lrsquoeacutepoque augusteacuteenne Paris 1966 p295413 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 489414 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 488415 No original [hellip] neque enim rerum gerendarum dignitate homines ecferri ita convenit ut otio nonprospiciant neque ullum amplexari otium quod abhorreat a dignitateldquo Cicero MT Rede fuumlr P Sestius[Pro P Sestio] In Die politischen Reden Fuhrmann M(ed) Vol2 Darmstadt 1993 p18

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Ciacutecero aplica a sua foacutermula cum dignitate otium num duplo sentido tanto para o Estado

como para os liacutederes poliacuteticos a razatildeo poderaacute ser prontamente compreendida pois

comenta Fuhrmann ldquoCiacutecero identificou constantemente as duas esferasrdquo416

Consequentemente um niacutevel pessoal jaacute se encontrava implicado no conceito de cum

dignitate otium Quando Ciacutecero no final de sua vida transferiu completamente o otium

para o acircmbito da vida individual tal deveu-se agrave experiecircncia autobiograacutefica de uma

situaccedilatildeo de emergecircncia concreta Apoacutes a morte de Ceacutesar e no decurso da luta pelo poder

daiacute resultante o nome de Ciacutecero integrava a lista de proscriccedilatildeo de Antonius sendo

entatildeo forccedilado a fugir de Roma para a sua propriedade rural em Tusculum Assim o

rhetor livre dos seus ofiacutecios teve que renunciar ao seu ideal de atividade poliacutetica natildeo

mais podendo continuar a ver num negatium realizado a justificaccedilatildeo de um otium

igualmente cumpridordquo417

Impossibilitado de cumprir a sua proacutepria exigecircncia de cum dignitate otium

Ciacutecero sentiu-se envolvido num confronto completamente novo com as formas positivas

e negativas do otium Esta mudanccedila de terminologia manifesta-se em particular na

introduccedilatildeo ao terceiro livro de De officiis que constitui uma doutrina de virtudes

dedicada ao seu filho que Ciacutecero escrevera no seu exiacutelio rural O facto de Ciacutecero ter

inicialmente aderido agrave ideia de um otium poliacutetico desejaacutevel torna-se evidente a partir do

momento em que declara Scipio Africanus como modelo perspetivando o poliacutetico

romano que segundo as palavras de Ciacutecero utilizara as suas horas de oacutecio privado para

o bem da res publica418 Para Ciacutecero tal oacutecio cumprido ao serviccedilo do cargo puacuteblico e da

comunidade representa o caso ideal que no entanto de modo algum toda a forma

possiacutevel de otium redime Assim sob circunstacircncias que conduziriam outras pessoas

ao enfraquecimento mantiveram o espiacuterito [de Scipio Africanus] despertas inatividade

e solidatildeo419 No mesmo tom Ciacutecero distingue de modo claro o oacutecio positivo e

legiacutetimo do estadista puacuteblico do oacutecio natildeo realizado improdutivo e privado que para ele

mesmo constitui uma ameaccedila no seu exiacutelio rural

Porque desde que fomos impedidos de fazer trabalho poliacutetico e negoacutecios no Foacuterum pela

416 Fuhrmann M Cum dignitate otium Politisches Programm und Staatstheorie bei Cicero InGymnasium 67 (1960) 483417 Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p211418 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1 p211 No original ldquonumquam seminus otio sum esse quam cum otiosus nec minus solum quam cum solus essetrdquo419 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1 p21 No original bdquoIta duae resquae languorem adferunt ceteris illum acuebant otium et solitudoldquo

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violecircncia armada sem Deus nos entregamos agrave inatividade e desde que deixamos a cidade

por esse motivo temos vivido apenas no campo e muitas vezes estamos sozinhos Mas

esta inatividade natildeo pode ser comparada agrave inatividade de Africanus nem esta solidatildeo pode

ser comparada agrave sua solidatildeo Ele descansava das mais belas conquistas para o Estado e de

vez em quando tirava feacuterias e de vez em quando retirava-se da agitaccedilatildeo das pessoas para

a solidatildeo como num porto mas a nossa inatividade tem a sua razatildeo de ser na falta de

campo de atividade e natildeo no desejo de descanso420

Confrontado com a sua proacutepria inatividade Ciacutecero desenvolve uma estrateacutegia

para preencher o seu otium vazio segundo uma forma autodeterminada procurando

tornaacute-lo produtivo Em vez de ficar entediado Ciacutecero recorre agrave escrita de textos

literaacuterios e filosoacuteficos Assim entre outras obras surge o De officiis cuja gecircnese eacute

explicada como consequecircncia do retiro poliacutetico e do oacutecio forccedilado

Mas porque assim ouvimos dos filoacutesofos que eacute preciso natildeo soacute escolher o menor dos males

mas tambeacutem escolher o que haacute de bom neles eu gosto da inatividade [] e tambeacutem natildeo

me deixo afrouxar no isolamento que a coerccedilatildeo e natildeo o livre arbiacutetrio me impocircs [] Mas

noacutes que natildeo temos tanta forccedila que nos distraiacutemos da solidatildeo pelo pensamento sem

palavras pusemos todo o nosso zelo e cuidado nesta atividade literaacuteria Eacute por isso que

escrevemos mais no pouco tempo que decorre apoacutes a queda da Repuacuteblica do que nos

muitos anos em que a revelaccedilatildeo ainda existia421

Como observou Lefegravevre [Ciacutecero] sente-se repelido e volta-se para a filosofia

como um substituto422 Nos escritos deste periacuteodo torna-se claro que para Ciacutecero a

atividade literaacuteria tivera como propoacutesito enfrentar a vida Uma consequecircncia notaacutevel

de tal desenvolvimento eacute a (re)privatizaccedilatildeo do conceito de oacutecio repare-se pois que

Ciacutecero natildeo perspetivara no De officiis o otium enquanto um estado desenvolvido no

acircmbito das esferas puacuteblicas referindo-se por contraste e como que exclusivamente agrave

420 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 1-2 p211 No original ldquoNam et a republica forensibusque negotiis armis impi is vique prohibiti otium persequimur et ob eam causam urberelicta rura peragrantes saepe soli sumus Sed nec hoc otium cum Africani otio nec haec solitudo cum illacomparanda est Ille enim requiescens a rei publicae pulcherrimis muneribus otium sibi sumebataliquando et coetu hominum frequentiaque interdum tamquam in portum se in solitudinem recipiebatnostrum autem otium negotii inopia non requiescendi studio constitutum estrdquo421 Cicero MT De officiis Nickel R (ed) Duumlsseldorf 2008 III 3ndash4 pp211ndash213 No original ldquoSedquia sic ab hominibus doctis accepimus non solum ex malis eligere minima oportere sed etiam excerpereex his ipsis si quid inesset boni propterea et otio fruor [hellip] nec eam solitudinem languere patior quammihi adfert necessitas non voluntas [hellip] nos autem qui non tantum roboris habemus ut cogitationetacita a solitu dine abstrahamur ad hanc scribendi operam omne studium curamque convertimus Itaqueplura brevi tempore eversa quam multis annis stante re publica scripsimusrdquo422 Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p198

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esfera privadardquo423 O pensamento de Ciacutecero pode portanto ser apreciado agrave luz de

vaacuterios aspetos como um discurso precursor de um novo paradigma no discurso acerca

do oacutecio A sua distinccedilatildeo entre um oacutecio realizado e legiacutetimo por um lado e um oacutecio natildeo

realizado e repreensiacutevel por outro assume a possibilidade de o indiviacuteduo se tornar

responsaacutevel pela apropriaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo dos tempos livres destinados ao oacutecio Para

Ciacutecero o otium requer uma legitimaccedilatildeo moral que se entrecruza com a sua dimensatildeo

poliacutetica ndash e quanto mais a atividade desenvolvida no acircmbito do oacutecio se afigurar

orientada para o bem comum mais eminente e elevada tal atividade deveraacute ser

considerada no acircmbito poliacutetico-moral Uma atividade filosoacutefica e literaacuteria tambeacutem

poderaacute satisfazer tal criteacuterio Na decorrecircncia da sua retirada solitaacuteria (ainda que

involuntaacuteria) da esfera puacuteblica Ciacutecero estabelece um topos particularmente poderoso

sobre os quais os autores posteriores se orientaram Nos Essais Montaigne referiu-se

assim ao modelo de Ciacutecero laquo que dit vouloir employer sa solitude et sejour des affaires

publiques agrave sen acquerir par ses escris une vie immortelle raquo424

No contexto de tais posiccedilotildees Aristoacuteteles e Ciacutecero merecem amplas referecircncias e

citaccedilotildees ndash a convocaccedilatildeo dos seus pensamentos permite-nos responder a diversas

interrogaccedilotildees aqui delineadas tais como que tipo de atividade poderaacute ser desenvolvida

no acircmbito do oacutecio Cumpriria ter presente que o termo ldquooacuteciordquo natildeo significa

necessariamente natildeo-fazer-nada Em alematildeo a palavra significa originalmente

oportunidade ou possibilidade de fazer algo ou natildeo fazer nadardquo Com efeito o oacutecio no

sentido platoacutenico apresenta-se como uma atividade intelectual da mais alta prontidatildeo

para possibilidade de ocorrecircnca da theoria A teoria no seu sentido original de

contemplaccedilatildeo da verdade constitui-se como uma atividade intensamente intelectual

que natildeo obstante se desenvolve segundo uma imobilidade externa425

Uma filosofia moderna do oacutecio natildeo se caracteriza pela pretensatildeo de descrever

uma forma programaacutetica de oacutecio Se apreciarmos os distintos autores que em

determinado momento e ainda que de modo parco contribuiacuteram para uma filosofia do

oacutecio seremos levados a questionar a possibilidade de identificar ou delimitar quebras

epocais que correspondam a diferentes discursos acerca da mateacuteria Com efeito as teses

e os padrotildees de argumentaccedilatildeo elaborados pela filosofia antiga satildeo prolongados e

423Lefegravevre E Otium Catullianum und Otium Horatianum In Sigot E (ed) Otium ndash NegotiumBeitraumlge des interdisziplinaumlren Symposions der Sodalitas zum Thema Zeit Wien 2000 p198424 de Montaigne ME De la solitude In Essais Rat M (ed) Paris 1962 p275425 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p283

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porventura ligeiramente modificados mas em princiacutepio mantidos como referecircncia

primordial

Poder-se-ia com certa pertinecircncia afirmar que o motivo de alteraccedilatildeo mais

visiacutevel consiste em verdade na motivaccedilatildeo da reflexatildeo filosoacutefica sobre o oacutecio Neste

sentido cumpriria atentar que no acircmbito da modernidade o quadro de pensamento

cultural que envolve o oacutecio poderaacute ser descrito agrave luz de uma nova postura que procura

definir tal termo agrave luz de um outro conceito o conceito de trabalho o oacutecio deveacutem

portanto uma realidade conceptualmente secundaacuteria decorrente derivada o oacutecio eacute

assim avaliado o contraconceito do conceito de trabalho segundo as novas formas da

organizaccedilatildeo social da modernidade

Esta mudanccedila de perspetivaccedilatildeo do oacutecio deveraacute ser apreciada menos como uma

mudanccedila de pontos de vista estritamente filosoacuteficos que se proporiam refutar ou superar

programaticamente os discursos da antiguidade do que como uma reaccedilatildeo aos fenoacutemenos

da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo que caracterizam a modernidade tardia Como tal as

novas filosoacuteficas do oacutecio deveratildeo ser compreendidas como filosofias

preponderantemente criacuteticas relativamente agraves novas realidades sociais desenvolvidas no

acircmbito da modernidade tardia ndash o conceito de oacutecio ele mesmo constitui-se como um

conceito criacutetico envolto num quadro de reflexatildeo social e de criacutetica cultural

Poder-se-ia a este respeito mencionar Nietzsche e Schopenhauer que

contribuiacuteram de certa forma para uma filosofia de oacutecio nos tempos modernos se em

Schopenhauer o oacutecio se constitui como possibilidade de autorrealizaccedilatildeo do ser humano

as observaccedilotildees de Nietzsche sobre o oacutecio entrecruzam-se de modo intenso com a sua

criacutetica cultural acerca dos tempos modernos426 Especialmente no caso de Nietzsche natildeo

426 No pensamento de Nietzsche encontramos um elogio ao oacutecio e correlativamente uma criacutetica aotrabalho ndash ambos os conceitos afiguram-se com efeito tratados de um modo intiacutemo Tal poderaacute serperspetivado como uma criacutetica agrave Modernidade no seu todo uma vez que Nietzsche a concebera assim oavanccedila Heidegger como uma revalorizaccedilatildeo de todos os valoresrdquo (Heidegger M Nietzsche IGesamtausgabe vol61 Schillbach B (ed) Frankfurt a M 1996 pp 66ndash91) Dispersas ao longo daobra de Nietzsche surgem diversas poleacutemicas contra aquilo que desgina como a era do trabalho(Nietzsche F Goumltzendaumlmmerung Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol6 Colli GMontinari M (ed) Muumlnchen 1988 p130) Em Humano demasiado humano existem alguns fragmentosque celebram o oacutecio antigo como uma praacutetica alternativa agrave hegemonia da eacutetica do trabalho na sociedadeburguesa Tais afirmaccedilotildees satildeo ndash especialmente no acircmbito do pensamento tardio de Nietzsche ndashapresentadas de modo particularmente enfaacutetico A este respeito Nietzsche debruccedila-se sobre a tradicionaldistinccedilatildeo entre bom e mau trabalho Este uacuteltimo o trabalho mau eacute concebido como o tormento damaldiccedilatildeo biacuteblica que nunca encontra termo e que exige constantemente a labuta (labor) ndash trata-se poisde um trabalho mau que em uacuteltima anaacutelise permanece improdutivo Ao contraacuterio o trabalho dito bomcorresponde ao trabalho que produz ao trabalho de criaccedilatildeo (opus) esta forma de trabalho tem sido desdeo seacuteculo XVII crescentemente elevada ao estatudo de ideal nos discursos e nas praacuteticas correspondentesLeiamos Arendt a tal respeito bdquoO trabalho liberto eacute pensado de acordo com o princiacutepio da arte eacute pessoal

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se afigura oacutebvio todavia que as suas observaccedilotildees filosoacuteficas ofereccedilam uma posiccedilatildeo

sistemaacutetica proacutepria no discurso da filosofia do oacutecio427

Uma das constantes na reflexatildeo teoacuterica sobre o oacutecio consiste na consideraccedilatildeo da

sua demarcaccedilatildeo relativa a todos os modos de trabalho especialmente de uma

atividade funcional Em alguns textos programaacuteticos e cientiacuteficos explica-se que o

oacutecio permite um distanciamento das preocupaccedilotildees da vida quotidiana em particular

e criativo Constitutivamente continua a natildeo ser claro se a obra deve ser libertada para si proacutepria ou de siproacuteprialdquo (Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p125) No final do seacuteculoXIX Nietzsche radicalizou tal discurso dotando-o de uma tonalidade poleacutemica Os pontos histoacutericos dereferecircncia para Nietzsche satildeo por um lado o trabalho fabril e por outro a tremenda aceleraccedilatildeo da vidaldquo(Nietzsche F Menschliches Allzumenschliches Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol2Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p231) subjacente ao trabalho do mundo industrializadoperspetivado por Nietzsche agrave luz a omnipresente pressa das pessoas sem descanso (Ibid p231) Perantea nova barbaacuterie (Ibid p232) na qual Nietzsche vislumbrara a falta de descanso (Ibid p232) natildeo setrataria somente de elaborar um diagnoacutestico pessimista dos tempos o foco de atenccedilatildeo de Nietzscheconsiste com efeito em problematizar a diferenccedila tradicional entre o trabalho mau e interminaacutevel comolabuta (labor) e a actividade boa e produtiva Importaria a este respeito ter presente que Nietzsche natildeosomente nega a individualidade agravequeles que satildeo activos nas suas profissotildees como tambeacutem (ao estilo deSchlegel) a despreza bdquoAos que satildeo activos falta geralmente a actividade superior refiro-me agrave actividadeindividual Satildeo [] activos [] mas natildeo como indiviacuteduos especiacuteficos e uacutenicos seres humanos a esterespeito satildeo preguiccedilososldquo (Ibid p231) Numa palavra o trabalhador eacute preguiccediloso (Ibid p232) poissegundo Nietzsche nada produz limitando-se a repetir os processos de trabalho ditados pela suaespecializaccedilatildeo O trabalho fabril torna-se portanto uma forma metafoacuterica de escravatura como todas asoutras profissotildees Segundo Nietzsche a escravatura reside nas estruturas e dinacircmicas de uma formaccedilatildeocultural que se tornou omnipresente que se estendeu para aleacutem da faacutebrica alcanccedilando a cultura dostrabalhadores desenvolvida apoacutes a industrializaccedilatildeo bem como o trabalho dos que procuram conhecimentoe a constituiccedilatildeo do sujeito em geral De acordo com o filoacutesofo aqui se encontra configurada amoralidade escravaldquo (Nietzsche F Zur Genealogie der Moral Saumlmtliche Werke KritischeStudienausgabe vol2 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p270) que deve ser combatida e quese ancorou no mais iacutentimo dos seus suacutebditos Ao inveacutes de trabalhar para si proacuteprio cada ser humanotrabalho por dinheiro ou para o dono da faacutebrica ou incluisvamente para Deus Sob o termo trabalhoNietzsche concebe praacuteticas de alienaccedilatildeo e natildeo praacuteticas de autodeterminaccedilatildeo A elaboraccedilatildeo porNietzsche de um contraconceito de trabalho decorre da cultura antiga do natildeo-trabalho dos cidadatildeoslivres (ou proprietaacuterios de escravos) de Atenas bem como do natildeo-trabalho das desistecircncias romacircnticas Acoisa nobre do oacutecio de que o filoacutesofo tratar em Humano demasiado humano deve portantodistinguir-se da preguiccedila num sentido regressivo e heteroacutenomo Natildeo obstante a arte constitui-se comoum modelo para Nietzsche ndash jaacute natildeo a tatildeo admirada arte de Wagner que se situa agora do lado da ineacuterciada preguiccedila e da improdutividade Assim numa das poleacutemicas posteriores contra Wagner Nietzscheafirma bdquoO trabalhador cansado e de respiraccedilatildeo lenta que olha bondosamente que deixa as coisas andarcomo estatildeo esta figura tiacutepica que se encontra agora na era do trabalho [] em todas as classes dasociedade hoje encontra-se na arte [] Wagner compreendeu istoldquo (Nietzsche F GoumltzendaumlmmerungSaumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol6 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p130)Em contraste Nietzsche em A Gaia Ciecircncia estabelece uma arte diferente nomeadamente uma artede viver que natildeo se refere a obras de arte mas agrave proacutepria vida como uma obra de arte bdquoNoacutes no entantoqueremos tornar-nos naquilo que somos ndash os novos os uacutenicos os incomparaacuteveis os autolegislativos osautocriadoresldquo (Nietzsche F Die froumlhliche Wissenschaft Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabevol3 Colli G Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p422) bdquoApenas como criadores (Ibid p422) e tambeacutemapenas para os artistas (Ibid p351) o trabalho pode consequentemente ser libertado de si mesmo erealizado como arte Tal realizaccedilatildeo jaacute natildeo se refere agrave produccedilatildeo de obras de arte mas agrave proacutepria formaccedilatildeodo sujeito bdquoQueremos ser os poetas da nossa vida e nas coisas mais pequenas e quotidianas primeiroldquo(Ibid p538) 427 Gerhardt V ldquoDer freie Geist und die Muszlige Zur Anthropologie der Theorie bei Nietzscherdquo InJuumlrgasch TKeiling T (ed) Anthropologie der Theorie Tuumlbingen 2017 pp225-246 Schaumlfer MJ

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das atividades de aquisiccedilatildeo e de negoacutecio (negotium) regularmente praticadas428 Ao

contraacuterio dessas atividades as praacuteticas de oacutecio poderiam permitir um gozo

particularmente puro e determinado sem perseguir qualquer objetivo429 Tais praacuteticas

caracterizam-se sobretudo pelo facto de natildeo possuiacuterem uma finalidade exterior a si

mesmas o oacutecio natildeo eacute uma accedilatildeo intencional e racional430 e natildeo pode sob nenhuma

circunstacircncia ser integrado na conveniecircncia de uma orientaccedilatildeo futura431 No entanto

segundo vaacuterios autores tal natildeo significa que a oacutecio seja um fenoacutemeno infundado ou

supeacuterfluo Pelo contraacuterio a sua caracteriacutestica mais importante consiste no facto de o

oacutecio se constituir como uma realidade que encontra a sua finalidade em si mesma laquoLe

temps de lotium a sa finaliteacute en soi mecircmeraquo432

Com efeito tambeacutem estas caracterizaccedilotildees modernas de oacutecio podem ser traccediladas

desde Aristoacuteteles Nesta tradiccedilatildeo o conceito de oacutecio (e os seus correlatos em outras

liacutenguas) apresenta-se utilizado agrave luz de um intenso sentido de continuidade histoacuterica de

modo a traduzir uma atitude e um modo de vida que se desviam do modo de

funcionamento dominante do trabalho organizado no interior de uma sociedade O oacutecio

encontra-se assim em oposiccedilatildeo ao trabalho e a atividades quotidianas que devem ser

desenvolvidos tendo em vista a sobrevivecircncia e a continuidade da comunidade ndash assim

perspetivado o oacutecio poderaacute ser perspetivado como uma realidade que integra uma

funccedilatildeo determinada no interior da respetiva sociedade a saber a funccedilatildeo de relaxamento

e de recuperaccedilatildeo das forccedilas e das energias dos trabalhadores A avaliaccedilatildeo de que a

legitimaccedilatildeo do oacutecio decorre do processo de atribuiccedilatildeo e de estabelecimento da sua

funccedilatildeo no interior de uma sociedade e da sua forma de organizaccedilatildeo do trabalho constitui

objeto de estudo por vaacuterios autores que procuraram justamente num sentido teoacuterico e

socialmente criacutetico libertaacute-lo de tais processos ndash como eacute o caso de Gert Mattenklott por

exemplo

O oacutecio natildeo se afasta realmente deste princiacutepio [de uso racional] quando eacute obrigado a

Die Gewalt der Muszlige Wechselverhaumlltnisse von Arbeit Nichtarbeit Aumlsthetik ZuumlrichBerlin 2013Schaumlfer MJ Muumlssiggang eines Gottes Schreibarbeit nach Nietzsche In Karschnia A Kohns OKreuzer S Spies C (ed) Zum Zeitvertreib Strategien ndash Institutionen ndash Lektuumlren ndash BilderBielefeld 2005 pp175-186428 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p9429Hessel F Von der schwierigen Kunst spazieren zu gehen [1932] In In Ermunterung zum GenussKleine Prosa Berlin 1981 p46430 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p11431 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p10432 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p73

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prestar contas do ldquotempo vaziordquo quando permanece subordinado agrave pretensatildeo de provar o

seu significado no quadro da racionalidade interior-cultural433

Uma revisatildeo histoacuterica pode revelar que as funccedilotildees do oacutecio podem variar de

acordo com o contexto histoacuterico-social434 seja como condiccedilatildeo para a contemplaccedilatildeo

filosoacutefica do mundo (Aristoacuteteles) da dignidade poliacutetica (Ciacutecero) da transferecircncia

didaacutetica do conhecimento (Seacuteneca) da contemplaccedilatildeo cristatilde de Deus (Agostinho) da

autoria criativa (Montaigne) da formaccedilatildeo do caraacuteter individual (Goethe Schopenhauer)

ou como ponto de criacutetica contra uma modernidade acelerada (Nietzsche) No mundo

moderno e contemporacircneo a funcionalizaccedilatildeo do oacutecio poderia para aleacutem de constituir

uma possibilidade de travagem e de equiliacutebrio da mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo do

trabalho ser dirigida entre outras coisas para a autorreflexatildeo e autorrealizaccedilatildeo do ser

humano Em vez de contemplar Deus ou a natureza do mundo o indiviacuteduo moderno

coloca-se no centro da sua perceccedilatildeo o oacutecio poderia assim traduzir aquele estado

extraordinaacuterio em que o indiviacuteduo reflete sobre si mesmo e estaacute consigo mesmo - le

temps ougrave lon est aupregraves de soi435 Portanto de acordo com Schopenhauer ldquoo oacutecio livre

de cada um dando-lhe o livre gozo da sua consciecircncia e da sua individualidade eacute o

fruto e o rendimento de toda a sua existecircncialdquo436 A metaacutefora do fruto e rendimento

integra a esperanccedila associada agrave emergecircncia de um determinado resultado do oacutecio de

uma vantagem produtiva ndash trata-se pois de uma expectativa que se sustenta na

discriminaccedilatildeo moral entre oacutecio cumprido e oacutecio natildeo cumprido entre otium e

otiositas entre oacutecio e ociosidade Schopenhauer formula tal criteacuterio de benefiacutecio nos

seus Aforismos para a sabedoria de vida

Mas o que rende o oacutecio livre para a maioria das pessoas Aborrecimento e teacutedio se natildeo

houver prazeres sensuais ou tolices para preenchecirc-lo Como o oacutecio eacute completamente

inuacutetil mostra-se pela forma como as pessoas o usam eacute quase sempre apenas o entediante

oacutecio dos tolos As pessoas comuns soacute pensam em gastar este tempo quem tem algum

talento - para usaacute-lo437

433 Mattenklott G Faulheit In Blindgaumlnger Physiognomische Essais Frankfurt a M 1986 p69434 Sobre a possibilidade de relaccedilatildeo entre o oacutecio e o respetivo contexto social consultar Dobler GRiedl PP bdquoEinleitungldquo In Dobler GRiedl PP (ed) Muszlige und Gesellschaft Tuumlbingen 2017 pp1-17435 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p74436 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p 29437 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p 29

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A distinccedilatildeo de Schopenhauer ndash entre um oacutecio usado de uma maneira razoaacutevel

por alguns indiviacuteduos excelsos e o ldquooacutecio entedianterdquo ldquogastadordquo pelos tolosrdquo ndash ilustra

revelando o facto de o discurso puacuteblico da eacutepoca apenas reconhecer certas

funcionalizaccedilotildees do oacutecio Para Schopenhauer tais funccedilotildees satildeo sobretudo a realizaccedilatildeo

do proacuteprio talento ndash em outras palavras a autorrealizaccedilatildeo autoacutenoma No contexto do

seacuteculo XIX se um indiviacuteduo pode fazer uso do oacutecio e alcanccedilar um resultado que valha

a pena tal determina-se como um criteacuterio de distinccedilatildeo da elite econoacutemica intelectual e

artiacutestica ndash que de acordo com Thorstein Veblen pode ser descrita como a leisure

class438 por contraste com o proletariado439 Schopenhauer assim o confirma de forma

exemplar segundo o filoacutesofo uma bem-sucedida autoconstituiccedilatildeo cumprida no oacutecio

natildeo constitui uma capacidade humana geral mas o privileacutegio de uma pequena elite440

Como jaacute se disse o oacutecio livre eacute a flor ou melhor o fruto da existecircncia de cada indiviacuteduo

na medida em que soacute ele o coloca na posse do seu proacuteprio eu aqueles que entatildeo tambeacutem

438 Veblen T The Theory of the leisure class An economic study of institutions New York 1934439 Sobre exemplos relevantes no mundo anglo-americano consultar Fludernik M Muszlige als sozialeDistinktion In Dobler G Riedl PP (ed) Muszlige und Gesellschaft Tuumlbingen 2017 pp163-177440 O oacutecio da leisure class segundo Veblen (18991934) (Veblen T The Theory of the leisure class Aneconomic study of institutions New York 1934) possui uma funccedilatildeo de demarcaccedilatildeo social a leisure classdistingue-se da populaccedilatildeo trabalhadora por exibir ostensivamente as suas atividades nos tempos livresNeste aspeto os membros da leisure class imitam o conceito elitista de oacutecio da sociedade grega embora oproacuteprio oacutecio experimentado seja provavelmente diferente do de Atenas Enquanto o antigo σχολήenfatizava a autocontemplaccedilatildeo filosoacutefica e a troca intelectual (o banquete constitui-se com efeito comoum cenaacuterio do oacutecio concebido como um assunto puramente masculino) uma mudanccedila dos bensintelectuais para a concentraccedilatildeo da riqueza pode ser observada entre os ricos por exemplo na sociedadeamericana no final do seacuteculo XIX Como Rashmi Jain observa no seu estudo socioloacutegico uma cultura deconsumo do oacutecio estaacute a desenvolver-se no Ocidente (o conceito de leisure afigura-se como oacutecio somenteem casos excecionais ou seja otiose leisure) Tal significa que o tempo livre se encontra preenchido comatividades de consumo que conduzem a uma exibiccedilatildeo cada vez mais enfaacutetica dos altos custos desteconsumo ldquoVeblen predicted that conspicuous consumption would eventually replace conspicuous leisureas the primary means of displaying pecuniary strength In modern societies it is difficult to display aconspicuous waste of time The leisure class resorts to conspicuous consumption of consumer goodsrdquo(Jain R Access to Leisure Impact of Forces of Liberalisation Privatisation and Glo- balisation onSocially Disadvantaged Groups in India In World Leisure Journal 491 (2007) 15-23) Quando falamosde lazer como distinccedilatildeo social soacute podemos falar de caracteriacutesticas de lazer que se referem a dois aspetosnomeadamente a disponibilidade de tempo livre (o tempo livre como condiccedilatildeo baacutesica do oacutecio) e vaacuteriaspraacuteticas de oacutecio que podem ser de natureza elitista ou socialmente distinta Assim para considerar oprimeiro aspeto eacute razoavelmente claro que o tempo livre soacute se torna mais amplamente disponiacutevel commaior prosperidade porque a pobreza natildeo soacute restringe severamente o orccedilamento de tempo (as classessociais mais baixas tecircm frequentemente vaacuterios empregos mal pagos ao mesmo tempo e portantopraticamente nenhum tempo livre) mas tambeacutem os receios existenciais dos pobres dificultam-lhes opleno aproveitamento do tempo que tecircm disponiacutevel (por exemplo no tempo de desemprego) No entantoo tempo livre disponiacutevel tambeacutem parece diminuir na outra ponta da escala social entre os ricos de modoque o alto volume de trabalho natildeo pode ser compensado pelo tempo de oacutecio mas apenas financeiramentee de facto segundo Veblen tal situaccedilatildeo conduz a uma orientaccedilatildeo intensiva do consumo com oreconhecido resultado de que aquele que tem um jardim grande e bonito por exemplo quase nunca podedesfrutar dele por falta de tempo Ateacute ao seacuteculo XIX a definiccedilatildeo de gentleman consistia na ausecircncia danecessidade de trabalhar ou seja na posse de bens ou rendimentos correspondentes Apesar doPuritanismo o ideal do proprietaacuterio de terras ou rendas permaneceu o mesmo ateacute o seacuteculo XIX O oacuteciodas classes altas era constitutivo para o seu estatuto

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recebem algo de bom por si mesmos devem ser elogiados alegremente enquanto o oacutecio

livre natildeo daacute nada agrave grande maioria das pessoas como acontece com no sentimento de um

indiviacuteduo que estaacute terrivelmente aborrecido que se vecirc como um fardo para si mesmo441

As notas de Schopenhauer apresentadas nos Aforismos da sabedoria de vida

confirmam com efeito a reorientaccedilatildeo moderna do oacutecio para o acircmbito do sujeito

individual A autoconstituiccedilatildeo do indiviacuteduo revela-se a funccedilatildeo mais importante do oacutecio

moderno ndash e a narraccedilatildeo afigura-se progressivamente como uma das suas teacutecnicas mais

importantes442 Mediante a narraccedilatildeo o ser humano pode dar sentido agrave sua existecircncia

construindo uma identiteacute narrative para si mesmo443 Tal ideia manifesta-se de modo

concreto no geacutenero literaacuterio da autobiografia emergente a partir dos finais do seacuteculo

XVIII O claacutessico autobioacutegrafo eacute caracterizado pela sua capacidade de integrar os

acontecimentos heterogeacuteneos da sua vida numa narrativa holiacutestica Na narraccedilatildeo o

narrador cria-se a si mesmo de facto tal propoacutesito da narraccedilatildeo autobiograacutefica jaacute era

conhecido dos primeiros teoacutericos da autobiografia como demonstram as observaccedilotildees de

Wilhelm Dilthey

Olhando para traacutes na memoacuteria compreendemos a conexatildeo dos elementos decorrentes do

curso de vida sob a categoria do seu significado Quando vivemos no presente repleto de

diferentes realidades sentimos o seu valor positivo ou negativo e agrave medida que

avanccedilamos em direccedilatildeo ao futuro a categoria de propoacutesito surge deste comportamento444

Assim o oacutecio poderaacute igualmente constituir-se como condiccedilatildeo preacutevia da

reflexatildeo e da narraccedilatildeo autobiograacutefica e portanto como condiccedilatildeo da autoconstituiccedilatildeo

bem-sucedida do indiviacuteduo Com efeito tal perspetivaccedilatildeo integra o ideaacuterio da cultura

quotidiana entrecruzando-se com a nova exigecircncia de que o ser humano necessita de

mais oacutecio para poder encontrar-se a si mesmo445 No contexto moderno a nova funccedilatildeo

do oacutecio parece decorrer da nova filosofia da subjetividade se o oacutecio natildeo se determina

como realidade externamente configurada poder-se-ia num sentido contraacuterio concebe-

lo como uma realidade que se desenvolve agrave luz da interioridade subjetiva que aspira ao

delineamento da sua autoidentidade Com efeito natildeo seria supeacuterfluo afirmar que o

discurso moderno acerca do oacutecio permite sobretudo desenvolver perspetivaccedilotildees e

441 Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit Frankfurt a M 1976 [1851] p31

442 Klinkert T Muszlige und Erzaumlhlen ein poetologischer Zusammenhang Vom Roman de la Rose biszu Jorge Sempruacuten (Otium) Tuumlbingen 2016443 Ricœur P Lrsquoidentiteacute narrative In Esprit 12 (1988) 295ndash304444 Dilthey W Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften GesammelteSchriften vol7 Groethuysen B (ed) LeipzigBerlin 1942 p201445 Wulf C Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p12

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conclusotildees sobre o conceito moderno de sujeito Pois o paradigma individualista

implica a existecircncia de um lugar e de um tempo que permitam ao indiviacuteduo ser

completamente ele mesmo e assim realizar-se O conceito de oacutecio poderia assim

servir para nomear aquela estrutura espaacutecio-temporal utoacutepica na qual que as conceccedilotildees

modernas de individualidade autoacutenoma e o anseio de autorrealizaccedilatildeo se tornam

possiacuteveis Mattenklott assim esclarece

o oacutecio eacute parte de um programa de vida e eacute [] cercado pelas mais altas exigecircncias um

tempo de reflexatildeo sobre o sentido metafiacutesico da vida para uns um tempo de autecircntico

desenvolvimento da personalidade para outros []446

A ideia de Mattenklott de que o oacutecio como parte de um programa de vida

poderia ter duas funccedilotildees essenciais nomeadamente dar sentido e desenvolvimento

autecircntico da personalidade eacute com feito uma ideia assaz moderna No trabalho tal

como Mattenklott o afirma esta funcionalizaccedilatildeo surge como uma constante

antropoloacutegica embora pressuponha um conceito moderno do indiviacuteduo O indiviacuteduo

moderno necessita do oacutecio para refletir e desenvolver-se ndash neste ponto a definiccedilatildeo

aristoteacutelica acerca do oacutecio enquanto realidade pautada pela autorreferencialidade

adquire uma tonalidade nova moderna Mas como tal desenvolvimento do oacutecio poderaacute

cumprir-se no acircmbito da modernidade tardia ndash tal parece constituir a interrogaccedilatildeo mais

premente A este respeito poder-se-ia convocar Marx e a sua conceccedilatildeo acerca de uma

sociedade natildeo capitalista no contexto da qual a autorrealizaccedilatildeo do ser humano poderia

ter lugar no seio do desenvolvimento de um trabalho natildeo alienado em verdade segundo

Marx poder-se-ia perspetivar inclusivamente uma continuidade entre trabalho

diversatildeo e oacutecio

Pois assim que o trabalho comeccedila a ser distribuiacutedo todos tecircm um certo ciacuterculo exclusivo

de atividade que lhe eacute imposto do qual natildeo pode sair ele eacute um caccedilador pescador ou

pastor ou criacutetico e deve permanecer assim se natildeo quiser perder os meios de vida ndash

enquanto que na sociedade comunista onde ningueacutem tecircm um ciacuterculo exclusivo de

atividade mas pode ser formado em qualquer aacuterea a sociedade regula a produccedilatildeo geral e

assim me permite fazer isso hoje amanhatilde uma coisa diferente caccedilar de manhatilde pescar agrave

tarde criar gado agrave noite e criticar depois do jantar como eu quiser447

446 Mattenklott G Faulheit In Blindgaumlnger Physiognomische Essais Frankfurt a M 1986 p44 447 Marx KEngels F Die deutsche Ideologie [1846] Die Marx-Engels-Werke vol3 Berlin 1969p33

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Distintamente de autores anteriores tanto Pieper448 quanto Russel449 escreveram

textos que expotildeem o conceito de oacutecio nos seus tiacutetulos permitindo-se assim ser

tomados como contribuiccedilotildees programaacuteticas com reivindicaccedilotildees sociopoliacuteticas Pieper

concebe a sua filosofia do oacutecio explicitamente como um caso exemplar de uma

atualizaccedilatildeo do paradigma aristoteacutelico na modernidade Ao contraacuterio de Aristoacuteteles natildeo

obstante Pieper e Russell procurar compreender o oacutecio a partir do seu oposto

conceptual ndash o trabalho O contraste entre oacutecio e ldquonatildeo oacuteciordquo (ascholiacutea) segundo a

contraposiccedilatildeo moderna entre oacutecio e ldquotrabalhordquo natildeo substitui a descriccedilatildeo acerca daquilo

que se faz no oacutecio A observaccedilatildeo de que as liacutenguas antigas concebem o ldquotrabalhordquo como

a-scholiacutea ou neg-otium ndash isto eacute como negaccedilatildeo do oacutecio (scholeacute otium) ndash enquanto que

na modernidade eacute o oposto que se verifica pois eacute o oacutecio que eacute concebido como uma

negaccedilatildeo do trabalho revela-se verdadeira Mas tal observaccedilatildeo natildeo justifica a

consequecircncia de que a determinaccedilatildeo de uma atividade de oacutecio seja irrelevante na loacutegica

das descriccedilotildees e legalizaccedilotildees modernas do oacutecio sendo substituiacuteda pela justaposiccedilatildeo com

o trabalho O delineamento de uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio a partir de uma conceccedilatildeo

dominante de trabalho poderaacute pois ser avaliada como problemaacutetica como constatam

Pieper e Russel com efeito segundo uma perspetivaccedilatildeo mais aprofundada ambos

Pieper e Russel rejeitam como insuficiente a ideia de que a definiccedilatildeo de oacutecio deveraacute ser

simplesmente desenvolvida agrave luz da predominacircncia do conceito de trabalho

Segundo as elucidaccedilotildees de Pieper a ascolia foi concebida pelos gregos como

uma escola de formaccedilatildeo da alma deste modo tal como Pieper o avanccedila o oacutecio

deveria ser traduzido preferencialmente agrave luz do conceito de educaccedilatildeo no sentido de

Humboldt enquanto desenvolvimento integral de todas as habilidades humanas Esta

vita contemplativa natildeo se trata necessariamente de um solipsismo retirado do indiviacuteduo

isolado que tem de recuperar do seu trabalho extenuante mas segundo Pieper da

perfeiccedilatildeo do indiviacuteduo que eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da comunidade humana

Pieper inicia o ensaio Muszlige und Kult com a objeccedilatildeo de que o periacuteodo imediato

do poacutes-guerra natildeo eacute o momento certo para falar de oacutecio450 Esta objeccedilatildeo eacute refutada

pela consideraccedilatildeo de que eacute precisamente o novo fundamento da cultura que torna

necessaacuteria uma defesa do oacutecio Se a nova construccedilatildeo da cultura alematilde foi planeada

segundo o espiacuterito ocidental deveria ser decidida hoje E segundo Pieper a

448 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999449 Russel B In Praise of Idleness and Other Essays London 2004 [1935]450 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p2

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premecircncia da discussatildeo acerca do oacutecio decorre justamente do conhecimento de tal

fenoacutemeno como um dos fundamentos da cultura ocidental451

Afigura-se caracteriacutestico do ensaio de Pieper o salto abrupto para a filosofia

aristoteacutelica que integra a ideia de que o oacutecio determina todas as conquistas culturais A

palavra grega que poderaacute ser traduzida como escola no original scholeacute deveria ser

assim sustenta Piepr a primeira indicaccedilatildeo da validade geral desta consideraccedilatildeo452 Para

Pieper tal consideraccedilatildeo natildeo soacute fornece uma primeira orientaccedilatildeo mas forma

igualmente a base da sua proacutepria reflexatildeo Tal postura teoacuterica de Pieper manifesta-se

cumprira salientar no facto de a traduccedilatildeo inglesa de Muszlige und Kult surgida em 1952

apresentar como tiacutetulo Leisure the base of culture453 A combinaccedilatildeo entre teoria cultural

sistemaacutetica e diagnoacutestico de crise define a perspetiva de Pieper sobre a situaccedilatildeo

histoacuterica apoacutes a Segunda Guerra Mundial Pieper aborda a recente rutura com a

civilizaccedilatildeo tal como ocorrida no fascismo como um momento de total irrupccedilatildeo do

contrafenoacutemeno do oacutecio ndash a saber o trabalho Pieper natildeo considera tal rutura com a

civilizaccedilatildeo como uma narrativa alternativa de continuidade histoacuterica mas sim como

uma visatildeo original e inalteradamente vaacutelida em relaccedilatildeo agrave qual Aristoacuteteles tambeacutem se

posicionara num outro contexto histoacuterico454

Segundo Pieper a justaposiccedilatildeo de entre oacutecio e trabalho natildeo se constitui como

uma realizaccedilatildeo histoacuterica recente mas traduz sim uma caracteriacutestica da modernidade

enquanto um todo no acircmbito da qual a posiccedilatildeo hieraacuterquica dos conceitos de oacutecio e de

trabalho fora profundamente invertida Sem se referir agrave Segunda Guerra Mundial que

terminara trecircs anos antes Pieper escreve que o conceito original de oacutecio tornou-se

completamente irreconheciacutevel no cansaccedilo programaacutetico do mundo total do trabalho455

Este diagnoacutestico eacute seguido por uma proposta terapecircutica dirigida a uma comunidade

mas que exige igualmente consideraccedilatildeo individual Segundo Pipier eacute imperioso

451 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p2452 P PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3453 Pieper J Leisure the basis of culture London 1952 Esta traduccedilatildeo foi iniciada por T S Eliot quetambeacutem escreveu uma introduccedilatildeo Eliot concebe a filosofia de Pieper como uma resposta aoentendimento filosoacutefico do positivismo loacutegico Em contraste com esta uacuteltima Pieper combinou filosofia eteologia combinaccedilatildeo essa que Eliot considera essencial para uma compreensatildeo adequada da proacutepriafilosofia Segundo Eliot tambeacutem Pieper se opotildee agrave bdquoillusion of a progress of philosophyldquo (Pieper JLeisure the basis of culture London 1952 p72)454 Este pressuposto de continuidade corresponde agrave filosofia da histoacuteria de Pieper Consultar Pieper JHoffnung und Geschichte Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp375ndash440 Godfrey JThe Future of Pieperrsquos Hope and History In Schumacher B (ed) The Cosmopolitan HermitWashington DC 2009 pp 141ndash170455 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3

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vencer a nossa proacutepria resistecircncia que decorre da sobrevalorizaccedilatildeo do mundo do

trabalho456 Pieper concebe a sobrevalorizaccedilatildeo do trabalho como um dos principais

motes culturais do seu tempo Convocando diversas conceccedilotildees tais como ldquoespiacuterito do

capitalismordquo segundo Max Weber a terceira figura imperial segundo Ernst Niekisch e

o ldquotrabalhadorrdquo formulada por Ernst Juumlnger457 Pieper conclui que a ideia relativa de que

autoimagem que o mundo do trabalho oferece ao indiviacuteduo se afigura como

profundamente decisiva no acircmbito do pensamento moderno Tal autoconceccedilatildeo estaacute

presente no conceito de ldquotrabalhadorrdquo por exemplo o qual natildeo significa uma posiccedilatildeo

social ou ambiente ou uma afiliaccedilatildeo de classe mas traduz um ldquosentido

antropoloacutegicordquo uma ldquoimagem humana geralrdquo A crise da sociedade moderna eacute

portanto segundo Pieper uma crise antropoloacutegica caracterizada por

uma opiniatildeo alterada sobre a natureza do homem em geral e uma interpretaccedilatildeo alterada da

existecircncia humana (menschlichen Dasein) em geral que se manifesta na nova

reivindicaccedilatildeo do conceito de trabalho e de trabalhador458

O objetivo de Pieper natildeo eacute de natureza historiograacutefica mas terapecircutica natildeo se

trata de traccedilar o caminho histoacuterico de tal mudanccedila na autocompreensatildeo humana mas

investigar a causa raiz de uma doutrina filosoacutefica do homem459 Nesse sentido Pieper

perspetiva o oacutecio como um contraconceito descritivo e normativo de trabalho indo aleacutem

dos teoacutericos jaacute mencionados Ao definir o ldquotrabalhadorrdquo como sintoma de uma crise

antropoloacutegica o diagnoacutestico de modernidade de Pieper comeccedila no domiacutenio do

paradigma aristoteacutelico com a questatildeo da realizaccedilatildeo da vida humana Com efeito no

primeiro capiacutetulo do ensaio Muszlige und Kult Pieper avanccedila a tese de que o ldquotrabalhordquo

natildeo se constitui como a realidade promotora da realizaccedilatildeo humana sustentando jaacute no

contexto do segundo capiacutetulo da sua obra a preocupaccedilatildeo em reabilitar a theoria como

atividade antropologicamente privilegiada Em verdade Pieper condena a conceccedilatildeo

acerca da filosofia enquanto trabalho intelectual460 enquanto atividade tambeacutem ela

caracterizada agrave luz do conceito de trabalho

456 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p3457 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp3-5 Chad Lakiespropotildee a atualizaccedilatildeo deste diagnoacutestico de Pieper atraveacutes do pensamento de Charles Taylorperspetivando o trabalho como social imaginary Consultar Lakies C Challenging the CulturalImaginary Pieper on How Life might live In New Blackfriars 91 (2010) 499-510458 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p5459 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p6460 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p6

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Segundo Pieper Kant afigura-se como o responsaacutevel por tal mal-entendido

relativamente a si mesmo enquanto filoacutesofo e relativamente agrave sua proacutepria atividade

filosoacutefica Recorde-se que no ensaio intitulado Sobre um recentemente enaltecido tom

de distinccedilatildeo na Filosofia Kant descreve o pensar filosoacutefico agrave luz de uma lei da razatildeo

para adquirir posses atraveacutes do trabalho461 Pieper aponta as condiccedilotildees histoacutericas deste

comentaacuterio de Kant dirigido contra os filoacutesofos romacircnticos mas avalia-o como parte de

um autoengano eficaz conquanto assaz compreensiacutevel A conceccedilatildeo de Kant tal como

Pieper a comenta descreve o esforccedilo desenvolvido tendo em vista a aquisiccedilatildeo do

conhecimento como condiccedilatildeo suficiente da sua realizaccedilatildeo mas segundo as elucidaccedilotildees

de Piepier tal esforccedilo traduz inexoravelmente uma caracteriacutestica do trabalho dando

origem agrave postulaccedilatildeo da elevaccedilatildeo do ldquoesforccedilo de conhecerrdquo a criteacuterio de verdade Neste

sentido concluir-se-ia o trabalho parece ser a forma decisiva de desenvolvimento da

filosofia462

Tal posiccedilatildeo kantiana apresenta-se acompanhada como prontamente podemos

compreender pelo facto de o conhecimento filosoacutefico ser entendido como discursivo

natildeo intuitivo o que Pieper identifica como a primeira caracteriacutestica da obra

intelectual Esta compreensatildeo limitada da cogniccedilatildeo mental sublinha Pieper conduz ao

facto de a forma mais elevada de cogniccedilatildeo ndash a ideia que surge com a ldquorapidez do

relacircmpagordquo a ldquocontemplaccedilatildeo real ndash se assumir excluiacuteda enquanto possibilidade de

cogniccedilatildeo natildeo porque se apresente vazia de conteuacutedo mas porque eacute cumprida sem

esforccedilo463 A rejeiccedilatildeo de uma compreensatildeo do conhecimento como acontecimento

passivo ao inveacutes de accedilatildeo ativa determina-se como a segunda caracteriacutestica do trabalho

mental464 A conceccedilatildeo de filosofia enquanto trabalho apresenta consequecircncias no

acircmbito da organizaccedilatildeo social sublinha Pieper os processos de organizaccedilatildeo social tal

como os processos cognitivos devem estar sujeitas a um forte controlo social e a uma

profunda racionalizaccedilatildeo

No seguimento do que se enuncia a perspetivaccedilatildeo da filosofia como uma arte

livre (ars libera) apresenta-se ameaccedilada encontrando-se pois sujeita ou subordinada

461 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p7462 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p15463 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p14464 Neste contexto Pieper cita as palavras de Adolf Hitler as quais embora natildeo se refiram agrave atividade dereconhecimento descrevem aos olhos de Pieper em extrema radicalidade o autoentendimento dotrabalho que Pieper rejeita Toda a accedilatildeo eacute significativa ateacute mesmo um crime toda a passividade natildeotem sentido (PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p11) Pieperavalia esta afirmaccedilatildeo como uma frase terriacutevel (Ibid p14)

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ao ldquodever do cumprimento da funccedilatildeo de tal modo que o reconhecimento filosoacutefico se

afigura neste contexto como um serviccedilo social 465 De acordo com as posiccedilotildees de

Pieper seremos conduzidos agrave seguinte conclusatildeo se o desempenho criacutetico da filosofia

se relaciona de algum modo possiacutevel com a liberdade humana entatildeo poder-se-ia

argumentar que a definiccedilatildeo kantiana de filosofia enquanto de trabalho entra em conflito

com sua proacutepria ecircnfase no valor da liberdade A definiccedilatildeo kantiana de filosofia assim

apreciada parece contrariar a reivindicaccedilatildeo ndash tambeacutem profundamente kantiana ndash da

autonomia dos sujeitos livres que agem de modo autodeterminado Rejeitando o quadro

filosoacutefico kantiano Pieper recupera o paradigma aristoteacutelico de liberdade para

perspetivar uma possiacutevel definiccedilatildeo de filosofia ldquoA ldquoliberdaderdquo das ldquoartes liberaisrdquo

reside no fato de que elas natildeo precisam se legitimar a partir de sua funccedilatildeo socialrdquo466

O quarto capiacutetulo de Muszlige und Kult manifesta a recusa de Pieper em

perspetivar modos de estruturaccedilatildeo social e de distribuiccedilatildeo do privileacutegio do oacutecio entre

grupos sociais no contexto de uma alternativa organizaccedilatildeo social do trabalho Com

efeito a argumentaccedilatildeo de Pieper concentra-se nas consequecircncias antropoloacutegicas que o

mundo totalitaacuterio do trabalho produz O Excurso sobre o proletarianismo e a

desproletarizaccedilatildeo que constitui a maior parte do quarto capiacutetulo eacute significativo a este

respeito pois o mencionado excurso visa transpor o conceito de proletariado de uma

descriccedilatildeo de diferenciaccedilatildeo social para uma avaliaccedilatildeo do mal-entendido antropoloacutegico jaacute

analisado sob a palavra-chave trabalhador De acordo com a tese de Pieper

proletariado significa basicamente nada mais que estar preso ao processo de

trabalho Uma verdadeira desproletarizaccedilatildeo poderia ser alcanccedilada tornando

acessiacutevel ao trabalhador uma aacuterea de atividade significativa que natildeo eacute trabalho ndash em

outras palavras possibilitando-lhe a abertura do domiacutenio do verdadeiro oacutecio467 Pieper

modifica assim a distinccedilatildeo entre trabalho e oacutecio relativamente ao jaacute proposto ao longo

das suas observaccedilotildees anteriores A partir da descriccedilatildeo e da avaliaccedilatildeo da organizaccedilatildeo

social tal distinccedilatildeo constitui um contraste de formas de vida entre as quais os

indiviacuteduos aparentemente mudam Pieper descreve-o como algo inevitaacutevel tendo em

vista a possibilidade de provocar uma expansatildeo econoacutemica atraveacutes de medidas

poliacuteticas do espaccedilo vital que estaacute disponiacutevel para o oacutecio Tal significaria uma

465 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p16466 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p17467 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 pp35-36

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capacitaccedilatildeo externa do oacutecio uma mudanccedila na organizaccedilatildeo social468 Para Pieper esta

mudanccedila afigura-se necessaacuteria mas natildeo suficiente A coisa decisiva natildeo diz respeito agrave

organizaccedilatildeo social mas ao indiviacuteduo como representante do humano

Uma possibilidade puramente externa de oacutecio natildeo eacute suficiente soacute pode entatildeo florescer

para frutificar quando o homem se tornou capaz de fazer efeito de oacutecio por si mesmo

(esta eacute a expressatildeo grega - scholegraven aacutegein)469

Assim a descriccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo do oacutecio eacute transposta da acircmbito da filosofia

social para a esfera do questionamento acerca da determinaccedilatildeo da accedilatildeo que ocorre no

oacutecio ou eacute proacutepria do oacutecio como Pieper o apresenta com referecircncia a Aristoacuteteles Esta

consideraccedilatildeo implica poreacutem que a consideraccedilatildeo de que a justaposiccedilatildeo entre trabalho e

oacutecio ndash por mais relevante que se afigure atualmente ndash natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise

suficiente para desenvolver uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio Pieper permanece dentro

das orientaccedilotildees do paradigma aristoteacutelico quando remete a questatildeo da organizaccedilatildeo

social do trabalho e do oacutecio para a antropologia na qual somente uma determinaccedilatildeo

positiva do que significa agir no oacutecio pode ser dada O diagnoacutestico criacutetico moderno

com a sua reivindicaccedilatildeo sociopoliacutetica torna-se uma questatildeo de accedilatildeo individual Tal eacute

particularmente evidente no facto de Pieper na terceira secccedilatildeo do seu ensaio

determinar o oacutecio natildeo em relaccedilatildeo ao trabalho mas em relaccedilatildeo agrave ineacutercia (acedia) Aquele

que eacute dito preguiccediloso natildeo trabalha mais do que algueacutem que fazer efeito de oacutecio470

Este fenoacutemeno presta-se portanto a uma diferenciaccedilatildeo mais precisa dentro do natildeo-

trabalho No acircmbito do pensamento de Pieper o contraste entre oacutecio e trabalho

especifica-se agrave luz do contraste entre oacutecio e ineacutercia Referindo-se a Tomaacutes de Aquino

Pieper escreve que o contraconceito de acedia natildeo representa o espiacuterito de trabalho

da vida quotidiana mas a afirmaccedilatildeo e a concordacircncia altamente presumidas do

homem com o seu proacuteprio ser com o mundo como um todo com Deus ndash isto eacute com o

amor471

Torna-se claro a este respeito o modo como Pieper convoca o padratildeo

antropoloacutegico do paradigma aristoteacutelico segundo um olhar cristatildeo tendo em vista a

elaboraccedilatildeo de uma definiccedilatildeo positiva de oacutecio Soacute pode haver oacutecio se o homem for uno

468 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p36 Sobre a filosofiasocial de Pieper consultar Wald B Der ldquolinke Pieperrdquo und das Dritte Reich In FechtrupHSchulze F Sternberg T (ed) Wissen und Weisheit Zwei Symposien zu Ehren von Josef Pieper Muumlnster 2005 pp 38-82469 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p36470 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p21471 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p22

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consigo mesmo se concordar com o seu ser real472 Este criteacuterio esclarece por que

razatildeo o oacutecio natildeo deve ser reduzido agrave sua possibilidade externa no contexto de formas

sociais a concordacircncia consigo mesmo eacute como a superaccedilatildeo do pecado da aciacutedia uma

questatildeo individual e interna A incorporaccedilatildeo social soacute pode dificultar ou tornar mais

favoraacutevel mas natildeo garantir tal cumprimento No decorrer do seu ensaio Pieper

desenvolve a sua anaacutelise da modernidade agrave luz espiritualidade cristatilde que se torna

assim o centro da sua argumentaccedilatildeo

O oacutecio eacute como uma atitude mental (este facto evidente deve ser registado o oacutecio ainda

natildeo eacute dado com os factos externos de pausa no trabalho tempos livres fim de semana

feacuterias O oacutecio eacute um estado da alma) - o oacutecio eacute precisamente a contraposiccedilatildeo do ideal do

ldquotrabalhadorrdquo473

Poder-se-ia lendo cuidadosamente a citaccedilatildeo de Pieper concluir que a definiccedilatildeo

de oacutecio enquanto atitude mental se distancia por um lado do paradigma aristoteacutelico

jaacute que nada corresponde diretamente a esta atitude na filosofia aristoteacutelica474 Todavia

poder-se-ia por outro lado assinalar pontos comuns entre a sentenccedila de Pieper e a

filosofia aristoteacutelica pois tal atitude mental soacute poderaacute ser concretizada em formas

especiacuteficas de ser ativo que se caracterizam por tal concentraccedilatildeo na perspetiva

interior do ser humana Assim propondo uma inversatildeo da conceccedilatildeo de trabalhador

Pieper descreve o oacutecio como a atitude de natildeo atividade de descanso de deixar as

coisas acontecerem de silecircncio Enquanto atitude de escuta recetiva o oacutecio eacute ao

mesmo tempo atitude de imersatildeo contemplativa no existente475 Assim definido o

oacutecio constitui-se como uma disposiccedilatildeo que se realiza enquanto atividade

especificamente teoacuterica que natildeo eacute discursiva nem reflexiva ndash natildeo eacute ldquotrabalhordquo ndash mas

sim eminentemente intuitiva

De acordo com Pieper o oacutecio eacute a atitude de contemplaccedilatildeo solene que natildeo se

define como atividade de cogniccedilatildeo laboriosa mas sim como experiecircncia de

concordacircncia com a verdadeira essecircncia de si mesmo e igualmente como experiecircncia

de estar de acordo com o sentido do mundo476 No seguimento de tais posiccedilotildees Pieper

472 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p22473 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p23474 Tal diz respeito acima de tudo agrave qualificaccedilatildeo desta atitude como mental Para Aristoacutetelescertamente que existe uma atitude ou disposiccedilatildeo (heacutexis) para a conduta virtuosa e isto natildeo exclui atheoria que traduz a virtude ou areteacute da faculdade mental (nous) do ser humano Consultar AristoacutetelesEacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1177a475 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p24476 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p25

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descreve a celebraccedilatildeo de uma festa como fenoacutemeno exemplar como a mais alta forma

de afirmaccedilatildeo pois eacute na celebraccedilatildeo da festa que se experiencia um acordo intenso entre

si proacuteprio e o mundo a celebraccedilatildeo da festa eacute pois o momento exemplar do oacutecio ldquoa

origem interior e inata do oacutecio Eacute o caraacuteter celebrativo atraveacutes do qual o oacutecio natildeo eacute

apenas sem esforccedilo mas o oposto de esforccedilo477 Eacute apenas na celebraccedilatildeo que o natildeo-

trabalho adquire um significado entendido por Pieper como acordo e acordo com o

mundo de que tanto o trabalho como a ineacutercia carecem478

Tambeacutem o ensaio de Russell intitulado In Praise of Idleness procura esclarecer o

paradigma aristoteacutelico a partir da relaccedilatildeo entre a accedilatildeo autopropositiva e a

autodeterminaccedilatildeo autoacutenoma No entanto Russell natildeo parece conseguir cumprir tal

tarefa ao inveacutes de resolver o problema Russel descreve-o somente como resultado da

tensatildeo entre uma autoimagem modernaliberal e o paradigma aristoteacutelico479 Russell

assinala com efeito a existecircncia de um problema de distribuiccedilatildeo justa do oacutecio que

reclama de modo urgente uma organizaccedilatildeo mais justa do trabalho Tambeacutem Pieper

admite natildeo obstante a toacutenica na dimensatildeo espiritual da accedilatildeo no oacutecio a capacitaccedilatildeo

externa do oacutecio enquanto representaccedilatildeo de um valor Apesar das diferentes ecircnfases as

477 PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p26478 Com base neste criteacuterio acerca de um acordo intenso e pleno de cumprimento tal como ilustradono exemplo do festival podemos compreender as posiccedilotildees de Pieper sobre o oacutecio O caso exemplar deoacutecio natildeo eacute somente o filosofar mas a accedilatildeo culta A ideia de que as celebraccedilotildees satildeo momentosexemplares de oacutecio visa uma consequecircncia muito especiacutefica que jaacute havia sido sugerida na reinterpretaccedilatildeode uma questatildeo social como questatildeo antropoloacutegica e finalmente como questatildeo espiritual Se poreacutem acelebraccedilatildeo eacute o nuacutecleo do oacutecio entatildeo o oacutecio recebe desta a sua capacitaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo interiores eassim a festa e a celebraccedilatildeo recebem o seu significado e a sua capacitaccedilatildeo interior Mas este eacute o culto(PieperJ Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p38) A atividade de culto eacuteportanto a atividade paradigmaacutetica de oacutecio Culto eacute a perfeiccedilatildeo da celebraccedilatildeo como aquela accedilatildeoinabitual agrave qual se deve dar prioridade mesmo antes do trabalho O culto por sua vez eacute a celebraccedilatildeomais festiva Deste ideal surge tambeacutem um criteacuterio para as formas corretas e incorretas de celebraccedilatildeo Afesta genuiacutena soacute ocorre onde a relaccedilatildeo com o culto ainda estaacute viva (PieperJ Muszlige und Kult Werkein acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p41) Pieper sublinha que natildeo se trata apenas de umaexigecircncia mas tambeacutem de uma afirmaccedilatildeo de que o criteacuterio normativo de autenticidade nofenoacutemeno da proacutepria celebraccedilatildeo deva ser determinado de forma descritiva Separado do culto o oacuteciotorna-se acedia ou seja ocioso e sem uma base no culto o trabalho torna-se desumano (PieperJMuszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999 p42) Somente na accedilatildeo culta haacuteportanto aquela realizaccedilatildeo da natureza humana que nem a ineacutercia nem o trabalho oferecem mas que eacute auacutenica promessa de felicidade Na pequena introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo inglesa Pieper enfatiza que a defesa doculto eacute uma defesa da liberdade bdquoSuppress that last sphere of freedom and freedom itself and all ourliberties will in the end vanish into thin airldquo (Pieper J Leisure the basis of culture London 1952p20) Tambeacutem a experiecircncia da liberdade do oacutecio eacute portanto condicionada pela liberdade do cultobdquoleisure in its turn is free because of its relation to worship to the cultusldquo (Pieper J Leisure the basisof culture London 1952 p21)479 Um outro autor que se confronta com este problema eacute Hans Blumenberg Para Blumenberg oproblema de como a antropologia antiga (e a sua identificaccedilatildeo de eudaimonia com theoria) pode serassociado agrave descriccedilatildeo kantiana da razatildeo humana Consultar Keiling T The pleasure of the non-conceptual Theory leisure and happiness in Blumenbergrsquos anthropology In SATS NorthernEuropean Journal of Philosophy 17 (2016) pp 81ndash113

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sociedades modernas enfrentam a questatildeo de uma distribuiccedilatildeo justa do oacutecio que natildeo eacute

levada em conta no acircmbito do paradigma aristoteacutelico Pieper e Russell dedicam-se de

facto a descrever um possiacutevel processo de aprendizagem de atividades de oacutecio480 e

ambos situam tal processo no contexto das instituiccedilotildees educacionais Neste sentido

Russel sustenta que natildeo se trata de perspetivar o tempo livre como soluccedilatildeo mas the

wise use of leisure como a product of civilisation and education481 Se o oacutecio

representa um valor social entatildeo torna-se imperioso problematizar natildeo soacute a distribuiccedilatildeo

do trabalho e do tempo de oacutecio que tem de ser proporcionado mas tambeacutem o acesso

aos espaccedilos de oacutecio Uma sociedade necessita de (devido agrave digitalizaccedilatildeo teoricamente

cada vez menos) trabalho para garantir a produccedilatildeo e reproduccedilatildeo do seu material mas

tambeacutem precisa de oacutecio para o seu desenvolvimento eacutetico espiritual e cultural

480 Annette Holba apresentou uma teoria do transformative leisure que se concentra no significado dooacutecio nos processos individuais e sociais de autoentendimento Apesar de Holba seguir Pieper Holbaapresenta as suas criacuteticas Pieper ldquodoes not make explicitly clear the relationship between leisure and thecommunicative structure that organizes and propels our livesrdquo (Holba A Transformative Leisure APhilosophy of Communication Milwaukee 2013 p14)481 Russel B In Praise of Idleness and Other Essays London 2004 [1935] p8

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12 | A dicotomia histoacuterico-cultural entre oacutecio e trabalho

hellipdeclara-se que todos os Imperadores de qualquer Impeacuterio declarado Santo pela vontade osinteresses e os apetites dos homens devem ceder seu trono agraves caracteriacutesticas infantis deatenccedilatildeo contiacutenua agrave vida de existecircncia total no presente de ignoracircncia de coacutedigos manuais efronteiras de integraccedilatildeo no sonho de valorizaccedilatildeo do jogo sobre o trabalho de simpatia pelacigarra que logo a nossa escola substitui pelo aplauso agrave formiga jaacute que (a primeira) conveacutemagrave alegria apenas e a outra ao lucro

Agostinho da Silva Educaccedilatildeo de Portugal

Aceleraccedilatildeo intensificaccedilatildeo do trabalho e de todos os modos de produccedilatildeo laboral

intensificaccedilatildeo da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica e outros fenoacutemenos de ldquoincrementordquo482

encontram-se entre os principais temas que definem e caracterizam o nosso tempo Os

seus efeitos alteram o mundo em que vivemos e as relaccedilotildees que com ele mantemos bem

como a visatildeo ou a imagem que dele elaboramos e formamos ndash e anunciam a inquietaccedilatildeo

como o signo da modernidade tardia Tomando tal cenaacuterio como pano de fundo das

nossas reflexotildees um dos propoacutesitos centrais do trabalho que aqui apresentamos consiste

em sustentar que num sentido contraacuterio ao sentido corrente o oacutecio ndash um dos conceitos

que se tornaraacute estruturante no interior da presente tese acadeacutemica ndash natildeo se tornou uma

categoria historicamente obsoleta mas ao inveacutes adquiriu um novo significado pessoal

e social Como tal a definiccedilatildeo de oacutecio proposta e utilizada neste trabalho acadeacutemico

remete para a consideraccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de liberdade de ausecircncia de restriccedilotildees

temporais associadas agrave ausecircncia de uma expectativa imediata (e limitadora do tempo)

de desempenho e objetivo o oacutecio e a sua fruiccedilatildeo reclama liberdade das imposiccedilotildees de

restriccedilotildees de tempo e a produtividade de uma nova accedilatildeo pode crescer a partir da

liberdade de natildeo fazer Todavia o oacutecio permanece aqui indeterminaacutevel nas suas

finalidades diretas

Oacutecio e modernidade comportam uma relaccedilatildeo tensa Tal poderaacute ser verificado

atraveacutes da anaacutelise histoacuterica mas tambeacutem a partir da atenta consideraccedilatildeo da nossa

presente modernidade tardia As revoluccedilotildees industriais ndash desde a intensificaccedilatildeo da

482 O termo alematildeo Steigerung (que aqui traduzimos por ldquoincrementordquo) natildeo possui uma palavracorrespondente em liacutengua portuguesa Poderia significar ldquofazer maisrdquo num sentido quantitativo outambeacutem qualitativo Linguisticamente significa ldquoa comparaccedilatildeo de um adjetivordquo podendo tambeacutemsignificar o melhoramento do desempenho crescimento intensificaccedilatildeo aprimoramento expansatildeo eincremento

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mecanizaccedilatildeo por volta de 1800 ateacute agrave eletrificaccedilatildeo ocorrida a partir de

aproximadamente 1900 desde a automaccedilatildeo no seacuteculo XX ateacute agrave digitalizaccedilatildeo contiacutenua ndash

alteraram aceleraram e incrementaram de modo draacutestico e inexoraacutevel dimensotildees

significativas do mundo e da nossa relaccedilatildeo com ele ndash em especial o designado mundo

do trabalho483 A luz artificial dissolve o dia na noite o trabalho e o consumo tornam-se

possiacuteveis e exequiacuteveis a qualquer momento ao contraacuterio do sono que deixa de ser um

resiacuteduo fixo de repouso e de recuperaccedilatildeo fiacutesica e mental484 Os dados as informaccedilotildees

satildeo permanentemente transmitidos por todo o planeta e o capitalismo estabelece-se

mundialmente como a ordem econoacutemica e social dominante natildeo obstante a irrupccedilatildeo de

crises econoacutemicas e financeiras Na viragem do seacuteculo XX para o seacuteculo XXI os seres

humanos definidos nas suas potencialidades laborais e produtivas transformam-se em

trabalhadores independentes e em precaacuterios criativos

Otimizaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo natildeo satildeo apenas maacuteximas propagadas no mundo

externo mas tambeacutem internalizadas como nos revela a figura do eu-empreendedor485

perspetivado por alguns filoacutesofos sociais tais como Byung-Chul Han na sua obra A

Sociedade do Cansaccedilo Neste sentido o oacutecio parece ter-se tornado um conceito obsoleto

ou anacroacutenico conquanto nunca tenha desaparecido completamente Tal poderaacute ser

constatado por exemplo na tradiccedilatildeo da Bohegraveme cujos representantes no seacuteculo XIX e

iniacutecios do seacuteculo XX buscaram uma vida livre artisticamente inspirada para aleacutem das

convenccedilotildees sociais e morais e dos mecanismos de mercado486 Dandy e Flacircneur satildeo

figuras sociais proeminentes que se inscrevem natildeo obstante na cultura moderna aqui

adquirindo os seus contornos eminentemente esteacuteticos recordando-nos das

possibilidades quase esquecidas da vida ociosa no contexto da modernidade urbana em

raacutepida mutaccedilatildeo487

483 Schivelbusch W Geschichte der Eisenbahnreise Zur Industrialisierung von Zeit und Raum im 19Jahrhundert Muumlnchen 1977484 Crary J 247 Late capitalism and the ends of sleep London 2014485 Broumlckling U Das unternehmerische Selbst Soziologie einer Subjektivierungsform Frankfurt a M2007 E tambeacutem Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa 2014486 Kreuzer H Die Boheme Analyse und Dokumentation der intellektuellen Subkultur vom 19Jahrhundert bis zur Gegenwart Stuttgart 1971 Meyer A-R Jenseits der Norm Aspekte der Bohegraveme-Darstellung in der franzoumlsischen und deutschen Literatur 1830ndash1910 Bielefeld 2001487 Krause R bdquoDem muumlszligigen Flaneur den angenehmsten Zeitvertreib gewaumlhrenrdquo Figurationendes Muumlszligiggangs in Heines sbquoBriefen aus Berlinlsquo und sbquoLutezialsquo In Unger TLillge CWeyand B(ed) Arbeit und Muumlszligiggang in der Romantik Paderborn 2017 pp171ndash182 Krause R bdquoDandysmeZu einem Motiv aus Nietzsches Baudelaire-Exzerptenldquo In Graumltz KKaufmann S (ed) Nietzscheals Dichter Lyrik ndash Poetologie ndash Rezeption Berlin Boston 2017 pp 401ndash420

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Que significa pois oacutecio ndash e como tal conceito se desenvolvera ao longo dos

tempos No final do seacuteculo XVIII o dicionaacuterio de Adelung definia o oacutecio na sua

demarcaccedilatildeo relativamente a neg-oacutecio como

o tempo restante do emprego regular de transaccedilotildees profissionais do negoacutecio profissional

ou tempo livre isenccedilatildeo do negoacutecio regular ] Aleacutem disso a completa liberdade de todas

as ocupaccedilotildees obrigatoacuterias488

De acordo com esta definiccedilatildeo oacutecio natildeo significa inatividade per se mas sim a

possibilidade de poder escolher livremente entre inatividade e atividade sem no

entanto estar obrigado agrave atividade escolhida ou a qualquer outra atividade no tempo

disponiacutevel Com efeito desde a Antiguidade grega o conceito de oacutecio tem sido definido

segundo uma conotaccedilatildeo positiva neste sentido Platatildeo considerara o oacutecio uma condiccedilatildeo

social necessaacuteria para filosofar489 Nos tempos modernos e particularmente desde o

seacuteculo XVIII a posiccedilatildeo privilegiada do oacutecio como modo de vida que seria propiacutecio agrave

arte agrave filosofia e agrave ciecircncia encontra-se em regressatildeo e os seus campos de atividade

apresentam-se crescentemente incluiacutedos no conceito de trabalho490 a este respeito a

definiccedilatildeo de Adelung que perspetiva o oacutecio como possibilidade de transaccedilotildees

profissionais de tempo livre ou restante consiste numa definiccedilatildeo que jaacute natildeo se afigura

passiacutevel de integrar uma compreensatildeo do conceito de oacutecio sem uma referecircncia ao

conceito de trabalho

Curiosamente a preguiccedila por sua vez define-a Adelung como a omissatildeo

inativa do trabalho obediente e no sentido estrito da palavra a habilidade dessa

omissatildeo491 Neste sentido nos iniacutecios do seacuteculo XVIII a preguiccedila eacute concebida como

uma situaccedilatildeo de natildeo-trabalho ndash embora se deva realmente trabalhar Assim definido o

conceito de preguiccedila pressupotildee uma certa obrigaccedilatildeo de trabalhar E a referecircncia agrave

omissatildeo do trabalho parece evocar ndash advertindo para ndash o perigo de desenvolver um

estilo de vida indolente marcado pelo gosto pela negligecircncia do dever de trabalhar492

488 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p626489 Martin N Muszlige In Historisches Woumlrterbuch der Philosophie (Vol6) Ritter JGruumlnder K (ed)Darmstadt 1984 Vol 6 p 257-260490 Martin N Muszlige In Historisches Woumlrterbuch der Philosophie (vol6) Ritter JGruumlnder K (ed)Darmstadt 1984 p 258491 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p628492 Consultar muumlszligig In Duden Das groszlige Woumlrterbuch der deutschen Sprache in zehn Baumlden WissRat der Dudenredaktion Mannheim 1999 vol 6 p2665

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O conceito de trabalho tambeacutem requer pois uma definiccedilatildeo que neste

contexto poderaacute ser inicialmente orientada para o uso contemporacircneo do termo no

iniacutecio da modernidade por volta do ano 1800493 No seu artigo de dicionaacuterio Adelung

descreve o uso da palavra trabalho segundo dois aspetos por um lado para a

performance e por outro para o trabalho a ser produzido ou produzido pela atividade

O artigo apresenta algumas passagens essenciais para a compreensatildeo do conceito de

trabalho

O trabalho plur -os um substantivo usado para descrever tanto a aplicaccedilatildeo

das forccedilas do corpo e da alma como o objeto desta aplicaccedilatildeo Portanto

significa

I A aplicaccedilatildeo dos seus poderes [] nomeadamente

1 no significado verdadeiro a aplicaccedilatildeo de forccedilas fiacutesicas principalmente para

adquirir propriedade temporal com ela [] Especialmente os artesatildeos fizeram

desta palavra a sua proacutepria para imprimir toda a gama de ocupaccedilotildees

pertencentes aos seus ofiacutecios

2 em sentido mais amplo a aplicaccedilatildeo obrigatoacuteria das forccedilas da alma em que o

significado da maioria das expressotildees mencionadas acima pelos trabalhos

manuais tambeacutem eacute comum Por isso tambeacutem se diz aqui ldquofazer o trabalhordquo ldquoir

trabalharrdquo ldquoir para o trabalhordquo e assim por diante

3 figurativo (1) O movimento interno dos corpos inanimados especialmente

aquele produzido pela fermentaccedilatildeo [] (2) esforccedilo dificuldade Em tempos

passados este significado se estendia ainda mais e era muito comum para

irritaccedilatildeo dores perseguiccedilatildeo etc [] No Alto Alematildeo este significado jaacute natildeo eacute

mais usual exceto que agraves vezes ainda eacute comum usar a palavra trabalho para o

esforccedilo

493 Consultar Conze W Arbeit In Geschichtliche Grundbegriffe Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland Brunner OConzeWKoselleck R (ed) Stuttgart 1972 vol 1 pp154-215 Fuumlllsack M Arbeit Wien 2009

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II o objeto do trabalho nomeadamente

1 O que deve ser produzido pelo trabalho Para dar um trabalhordquo ldquoEle tem

muitos trabalhos estaacute sobrecarregado com trabalho [hellip]

2 o que foi produzido pelo trabalho Este eacute o trabalho das suas matildeos ou seja

ele conseguiu fazer isso [hellip]494

O artigo de Adelung aponta revelando alguns desenvolvimentos que poderatildeo

ser descritos como porventura virulentos ocorridos no contexto do trabalho no

momento da viragem do seacuteculo XVIII para o seacuteculo XIX e que se refletiram

inclusivamente no uso da liacutengua alematilde em primeiro lugar o significado figurativo de

trabalho como esforccedilo e dificuldade que fora central para o uso da liacutengua do Alto

Alematildeo Meacutedio495 natildeo mais se apresenta considerado no Alto Alematildeo (I3(2)) ou seja a

conotaccedilatildeo negativa da palavra outrora dominante recuou consideravelmente496 Em

segundo lugar no acircmbito exterior ao da aplicaccedilatildeo de forccedilas fiacutesicas ndash para a qual eacute

sublinhada a utilizaccedilatildeo do termo pelos artesatildeos ndash a aplicaccedilatildeo obrigatoacuteria de forccedilas

mentais ou seja a atividade intelectual passa tambeacutem a ser descrita como trabalho

(I2) Em terceiro lugar no entanto o objetivo do trabalho continua a ser considerado de

um modo redutor e pouco claro (I1) Jaacute Joachim Heinrich Campe (1746-1818) que no

seu artigo de dicionaacuterio escrito em 1807 seguira de modo evidente Adelung

concebera o propoacutesito do trabalho de um modo mais amplo Trabalho [] eacute a aplicaccedilatildeo

esforccedilada de forccedilas fiacutesicas ou mentais para alcanccedilar uma finalidaderdquo497

As atividades que natildeo se destinam a um fim satildeo aqui por conseguinte excluiacutedas

do termo trabalho Algumas deacutecadas mais tarde foram formuladas consideraccedilotildees

494 Adelung JC Die Muszlige In Ders Versuch eines vollstaumlndigen grammatisch-kritischenWoumlrterbuches Der Hochdeutschen Mundart Leipzig 1777 vol3 p634495 De acordo com M Lexer o termo Arbeit (trabalho) ndash e tambeacutem erbeit em alematildeo meacutedio-altoque traduz aquilo que eacute produzido pelo trabalho isto eacute a obra ndash significa esforccedilo custo arduidademiseacuteria que se sofre involuntaacuteria ou voluntariamente bem como inclusivamente puniccedilatildeo ConsultarLexer M Arbeit Arbeit In Ders Middle High German Dictionary Leipzig 1872 vol1 p88496 Antes do Iluminismo a Reforma contribuiu para uma valorizaccedilatildeo do trabalho quase como caridadepraticada e portanto como forma de culto cristatilde Entre os escritos da Reforma consultar Luther M Anden christlichen Adel deutscher Nation Stuttgart1990 [1520] pp17 44 Sobre os desenvolvimentosmodernos acerca da compreensatildeo do trabalho consultar Vontobel K Das Arbeitsethos des deutschenProtestantismus Das Arbeitsethos des deutschen Protestantismus Von der nachreformatori- schen Zeitbis zur Aufklaumlrung Bern 1946497 Consultar Die Arbeit In Woumlrterbuch der Deutschen Sprache Campe JH (ed) Braunschweig1807 Vol 1 p200

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muito mais precisas sobre o objetivo do trabalho humano A definiccedilatildeo de Karl Marx de

1844 relativa ao ser humano verdadeiro porque real como resultado do seu proacuteprio

trabalho498 constitui provavelmente o ponto culminante do significado antropoloacutegico

de trabalho

No entanto a definiccedilatildeo duacuteplice de Adelung ilustra de modo claro a finalidade

da produccedilatildeo da atividade (agraves vezes custosa) como forma de assegurar o proacuteprio sustento

(Adelung escreve para a aquisiccedilatildeo de propriedade) por um lado e como forma de

criaccedilatildeo de valor a produccedilatildeo de bens por outro lado sublinhando a complementaridade

destes dois aspetos do trabalho Na sua apresentaccedilatildeo da histoacuteria econoacutemica Andrea

Komlosy elucida-nos que estas duas dimensotildees do trabalho a partir do grego πόνοccedil

(poacutenos) para trabalho laborioso e uργον (eacutergon) para trabalho criativo (respetivamente

labor e molestia bem como opus em latim) podem ser encontradas em quase todas as

liacutenguas indo-europeias modernas do Arbeit e Werk em alematildeo ao trabalho e obra em

portuguecircs ateacute robocircta e dzieło em polaco499 Com efeito nos iniacutecios do seacuteculo XIX estes

dois aspetos da definiccedilatildeo de trabalho encontram-se profundamente interligados o

trabalho decorrente da forccedila manual humana e o trabalho enquanto opus

intelectualartiacutestico ndash tambeacutem este segundo aspeto saliente-se se afigura concebido

como algo que integra a proacutepria definiccedilatildeo de trabalho natildeo mais como uma produccedilatildeo

decorrente do oacutecio Hannah Arendt500 na sua obra A Condiccedilatildeo Humana clarificou tal

diferenciaccedilatildeo na sua anaacutelise do conceito moderno de trabalho agrave luz da formulaccedilatildeo dos

conceitos de trabalhar e de produzir salientando no acircmbito da definiccedilatildeo de trabalho a

inscriccedilatildeo do elemento da repeticcedilatildeo o que ainda natildeo ocorre na definiccedilatildeo de Adelung

Em contraste com a produccedilatildeo que termina quando o objeto tem a sua forma adequada e

agora pode ser inserido como uma coisa acabada do mundo das coisas existentes o

trabalho nunca estaacute acabado mas gira em repeticcedilatildeo infinita no ciacuterculo recorrente

prescrito pelo processo bioloacutegico da vida e cujo esforccedilo e praga soacute termina com a morte

498 Marx K Nationaloumlkonomie und Philosophie [1844] In Die Fruumlhschriften Landshut S (ed)Stuttgart 1971 p269499 Consultar Komlosy A Arbeit Eine globalhistorische Perspektive Wien 2014 pp36-40 Komlosyincorpora as liacutenguas modernas alematildeo inglecircs francecircs italiano espanhol portuguecircs russo polaco eseacutervio na sua investigaccedilatildeo sobre o conceito de trabalho desenvolvendo uma anaacutelise do atual sentido dotermo trabalho no domiacutenio das palavras assim perspetivando correspondecircncias ou natildeo conformidadeentre este e a liacutengua chinesa (consultar Komlosy A Arbeit Eine globalhistorische Perspektive Wien2014 pp44-52)500 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981

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do respetivo organismo501

Hoje o conceito afigura-se ainda mais complexo na medida em que o terceiro

domiacutenio da atividade humana discutido em Arendt a accedilatildeo e especialmente a accedilatildeo no

sistema social da poliacutetica apresenta-se tambeacutem avaliado como trabalho segundo a

linguagem comum ou corrente Arendt introduz a accedilatildeo e o falar como as duas formas de

atividades definidoras da identidade de seres humanos502 Na antiguidade agir na polis

constituiacutea uma tarefa dos homens livres sendo estritamente distinguida da esfera do

trabalho Rainer Hank entre outros autores diagnosticou um efeito oposto no final do

seacuteculo XX

O facto de que o compromisso com a poliacutetica ainda atrai pessoas soacute poderia ser bem-

sucedido por meio de um truque A poliacutetica tambeacutem pode ser entendida como uma

profissatildeo A poliacutetica eacute entatildeo trabalho jaacute natildeo brigas indisciplinadas mas responsaacutevel sobre

os assuntos da comunidade como nos tempos de Atenas503

No que respeita ao seacuteculo XX Hank poderia pois retomar a formulaccedilatildeo do

tiacutetulo da palestra de Max Weber sobre a poliacutetica como profissatildeo de 1917504 No iniacutecio

do seacuteculo XIX todavia provavelmente ainda natildeo era este o caso Mas a anaacutelise das

entradas do dicionaacuterio de Adelung mostra-nos que a subordinaccedilatildeo de partes cada vez

maiores da vita ativa agrave categoria de trabalho jaacute se havia configurado como uma situaccedilatildeo

que obtivera uma progressatildeo significativa no final do seacuteculo XVIII O periacuteodo de

meados do seacuteculo XVIII a meados do seacuteculo XIX eacute de extraordinaacuteria relevacircncia para o

desenvolvimento do conceito moderno de trabalho A literatura e as artes do

romantismo contribuem com estiacutemulos especiacuteficos para este processo pois as suas

posiccedilotildees esteacuteticas implicam uma contradiccedilatildeo da justaposiccedilatildeo estabelecida pelo

Iluminismo relativamente a trabalho positivamente valorizado e a ociosidade

negativamente valorizada no entanto poder-se-ia afirmar que os romacircnticos incorrem

na mera sobrevalorizaccedilatildeo do outro da vida ativa (para aleacutem da ociosidade tambeacutem o

sono o oacutecio e a preguiccedila) Num extremo do espectro de tais afirmaccedilotildees estaacute Friedrich

Schlegel por exemplo que em 1799 descrevera o ethos de trabalho burguecircs

501 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p90 502 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 pp164-174503 Hank R Arbeit ndash Die Religion des 20 Jahrhunderts Auf dem Weg in die Gesellschaft derSelbstaumlndigen Frankfurt a M 1995 p10 No que respeita agraves teorizaccedilotildees sobre o conceito de trabalhoprovindas da linguiacutestica anglo-saxoacutenica consultar Sennet R Handwerk Berlin 2008 de Botton AFreuden und Muumlhen der Arbeit Frankfurt a M 2014504 Consultar Weber M Politik als Beruf Berlin 2010 [1919]

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contemporacircneo segundo a personagem Juacutelio caracterizada segundo uma vazia

inquieta agitaccedilatildeo detentora de maus haacutebitos noacuterdicos a quem se opotildee a imagem

iluminada de Prometeu como um Heacutercules cujo objetivo final em todas as suas tarefas

hercuacuteleas sempre permaneceu um nobre oacutecio505 No outro extremo do espectro

localiza-se Georg Buumlchner que como saacutetiro trecircs deacutecadas e meia mais tarde em Leonce

e Lena trata de forma profundamente criacutetica o oacutecio como forma de vida da nobreza506

O desenvolvimento do emprego assalariado dependente no iniacutecio do seacuteculo XIX

caracterizava-se pelo facto de a esfera do trabalho estar cada vez mais separada espacial

e temporalmente da esfera da famiacutelia ter lugar em empresas ter iniacutecio a uma certa hora

da manhatilde e terminar a uma determinada hora da noite Nos tempos da modernidade

tardia deparamo-nos com o desenvolvimento inverso no escritoacuterio domeacutestico moderno

natildeo eacute apenas o espaccedilo de trabalho que dificilmente eacute separado do espaccedilo privado da

famiacutelia e do tempo livre ndash as duas esferas estatildeo tambeacutem profundamente interpenetradas

na modernidade Byung-Chul Han interpreta o contexto descrito como uma mudanccedila de

qualidade na experiecircncia do tempo com um efeito patoloacutegico

A sociedade moderna de desempenho acelerado de hoje tranca o tempo Ela amarra-o ao

trabalho O Burnout natildeo eacute uma doenccedila de trabalho mas uma doenccedila de desempenho Natildeo

eacute o trabalho como tal mas a performance esse novo princiacutepio neoliberal que torna a alma

doente A pausa como uma pausa do trabalho natildeo marca outra hora Eacute apenas uma fase do

tempo de trabalho Hoje natildeo temos outro tempo aleacutem do tempo de trabalho Haacute muito

tempo perdemos o tempo de celebraccedilatildeo e oacutecio [] Hoje natildeo soacute levamos o nosso tempo de

trabalho connosco de feacuterias mas tambeacutem de dormir [] O descanso eacute tambeacutem apenas um

modo de trabalho numa vida incrementada na medida em que serve principalmente para

regenerar a matildeo-de-obra507

No seguimento de tais consideraccedilotildees uma interrogaccedilatildeo impotildee-se como

enquadrar o oacutecio no contexto da modernidade Com efeito a modernidade tem sido

desde haacute muito um campo sui generis508 de investigaccedilatildeo no domiacutenio do conhecimento e

eacute frequentemente entendida como uma macro-epoch que poderia comeccedilar com a

filosofia literatura e induacutestria europeias por volta de 1800 A modernidade revela ser

505 Schlegel F Lucinde Polheim KK (ed) Stuttgart 1963 [1799] pp34 37 Dischner G FriedrichSchlegels Lucinde und Materialien zu einer Theorie des Muumlszligiggangs Hildesheim 1980506 Buumlchner G Dantons Tod In Ders Werke und Briefe Muumlnchen 1980 pp7-68507 Han B-C Alles eilt Wie wir die Zeit erleben In DIE ZEIT Sonderheft bdquoPhilosophieldquo 25 (2016)p42508 Consultar BeckerKiesel (ed)Moderne Begriff und Phaumlnomen Frankfurt aM 2013

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um conceito de diferenccedila O moderno eacute o que estaacute em contraste com o antigo509 A

modernidade define-se menos como uma eacutepoca claramente dataacutevel do que como uma

fissura510 como uma rutura forccedilada na sua diversidade e na sua incapacidade de

desenvolver-se segundo um princiacutepio de completude e agrave luz da elaboraccedilatildeo de um

conceito de sujeito que natildeo pode ser por princiacutepio finalizado ldquoA modernidade eacute a

idade que menos se manteve igual a si mesma observou Walter Benjamin jaacute em

193839511 Juumlrgen Habermas designou-a de um projeto inacabado512

Neste sentido a reavaliaccedilatildeo e a alteraccedilatildeo dos contornos esteacuteticos do oacutecio podem

ser consideradas como consequecircncias ou inclusivamente caracteriacutesticas constitutivas

na modernidade Neste contexto poder-se-ia apontar a relevacircncia do flacircneur concebido

como uma das principais figuras da modernidade urbana por conseguinte poder-se-ia

avaliar o oacutecio como uma categoria antropoloacutegica que assume uma forma histoacuterica

especiacutefica na sociedade moderna do trabalho uma categoria que se apresenta

esteticamente afim de uma compreensatildeo moderna da subjetividade individual agrave luz de

novas figuras como a do flacircneur

Segundo este uacuteltimo ponto de vista o oacutecio poderaacute ser geralmente considerado

como uma experiecircncia de pendor individual Todavia poder-se-ia tambeacutem afirmar que

as respetivas condiccedilotildees sociais desempenham um papel essencial na configuraccedilatildeo das

possibilidades e dos limites do oacutecio As restriccedilotildees de tempo e as expectativas concretas

de desempenho que limitam ou impedem o oacutecio decorrem de um modo preponderante

de estruturas sociais e econoacutemicas nas quais o homem estaacute integrado enquanto ser

social

509 Figal G bdquoKrise der Aufklaumlrung ndash Freiheitsphilosophie und Nihilismus als geschichtlicheVoraussetzungen der Moderneldquo In Vietta SKemper D (ed) Aumlsthetische Moderne in EuropaGrundzuumlge und Problemzusammenhaumlnge seit der Romantik Tuumlbingen 1997 p57Importaria a este respeito ler Sloterdijk ldquoNesta nossa parte do mundo comeccedilou uma rebeliatildeo contra atirania do real uma revolta que eacute apresentada por uma seacuterie de nomes escritos com letras mais ou menosdesgastadas revoluccedilatildeo industrial iluminismo ldquomodernizaccedilatildeordquo Aquele que usa tais expressotildees regrageral natildeo tem em conta que estas apenas fazem sentido enquanto componentes de uma revoluccedilatildeoontoloacutegica Mencionam aspetos da rebeliatildeo daquela eacutepoca contra a caracteriacutestica de carga esmagadoraque a realidade de outros tempos apresentava Quem quer ser moderno trabalha sempre mais raacutepido nosentido de fazer com que uma realidade que existiu ateacute ao presente se torne uma realidade que jaacute natildeoexisterdquo Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 p89510 Consultar Frick W bdquoAvantgarde und longue dureacutee Uumlberlegungen zum Traditionsverbrauch derklassischen Moderneldquo In BeckerKiesel (ed) Literarische Moderne Berlin 2007 pp 97ndash112511 Benjamin W bdquoCharles Baudelaire Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalis- musldquo GesammelteSchriften Tiedemann RSchweppenhaumluser H (ed) vol I2 Frankfurt a M 1974 p593512 Habermas J bdquoDie Moderne ndash ein unvollendetes Projektldquo In Habermas J Kleine philosophischeSchriften (IndashIV) Frankfurt a M 1981 p446

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A referecircncia a um sujeito do oacutecio natildeo significa natildeo obstante que o oacutecio soacute

possa ser vivenciado e experimentado na solidatildeo Pelo contraacuterio o oacutecio deve ser

concebido e com total justeza como um fenoacutemeno eminentemente social Desde a

antiguidade o oacutecio foi considerado repetidamente como uma condiccedilatildeo sine qua non

para a sociabilidade nas suas vaacuterias formas Interessantemente no final do seacuteculo

XVIII o filoacutesofo Christian Garve postulara que o oacutecio era uma conditio sine qua non

para a sociabilidade segundo tal perspetiva a sociabilidade constitui um ideal eacutetico da

vida decorrente entre outros da teoria da simpatia desenvolvida pela filosofia moral

escocesa

A relevacircncia social do oacutecio no entanto natildeo se limita agrave sua importacircncia para as

teorias e praacuteticas da sociabilidade Diversos estudos atribuem ao oacutecio um importante

valor social e poliacutetico que examinam criticamente a natureza da nossa economia e

juntamente com ela os nossos paradigmas econoacutemicos e sociopoliacuteticos Um exemplo

relevante desta atitude eacute a obra de Robert e Edward Skidelsky How Much is Enough

The Love of Money and the Case for the Good Life O ponto de partida central das

reflexotildees dos autores eacute uma palestra apresentada por John Maynard Keynes em 1928 e

publicada dois anos mais tarde de forma ampliada e atualizada no contexto da

devastadora crise econoacutemica mundial e que se intitula Economic Possibilities for our

Grandchildren De acordo com o que Keynes sustenta neste ensaio utoacutepico em cerca de

100 anos (por volta de 2030) o tempo de trabalho semanal seria de 15 horas Deste

modo o crescimento do capital e o progresso teacutecnico permitiriam o amanhecer de uma

nova era a era do oacutecio e da abundacircncia ndash ldquothe age of leisure and of abundancerdquo Com a

satisfaccedilatildeo de todas as necessidades materiais natildeo seria necessaacuterio mais crescimento

econoacutemico Keynes predisse pois que a idade futura do oacutecio seria uma idade da arte de

viver

Assim neste contexto o oacutecio constitui-se como um desafio eacutetico fundamental

Nesta questatildeo mas natildeo no prognoacutestico utoacutepico Robert Skidelsky segue Keynes Com

base na sua anaacutelise criacutetica do presente e no recurso a noccedilotildees eacuteticas de uma vida boa ndash

sustentadas em Aristoacuteteles ndash os autores de How Much is Enough The Love of Money

and the Case for the Good Life elaboram uma perspetiva poacutes-material para o futuro no

acircmbito da qual atribuem um papel importante ao oacutecio Robert e Edward Skidelsky

perspetivam o oacutecio como um ndash basic good ndash incluindo-o num cataacutelogo de demandas

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poliacuteticas com uma reivindicaccedilatildeo universal Os autores declaram que o oacutecio consiste

num valor baacutesico democraacutetico indispensaacutevel para uma sociedade que deve tratar os seus

proacuteprios recursos bem como os recursos do planeta com cuidado e justiccedila social

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Capiacutetulo 2

Espaccedilos e tempos do oacutecio

Uma leitura cultural

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21 | Do oacutecio como categoria espacial e temporal

La forme dune ville change plus vite heacutelas que le coeur dun mortel

Charles Baudelaire Le cygne

Vous pouvez eacutevidemment alleacuteguer que Sisyphe est paresseuxMais quoi ce sont les paresseux qui remuent le monde Les autres nrsquoont pas le temps

Albert Camus Carta a Francis Ponge de 27 de janeiro de 1943

Natildeo tenho pressa Pressa de queNatildeo tem pressa o sol e a lua estatildeo certosTer pressa eacute crer que a gente passa adiante das pernasOu que dando um pulo salta por cima da sombraNatildeo natildeo sei ter pressaSe estendo o braccedilo chega exactamente aonde o meu braccedilo chega ndash Nem um centiacutemetro mais longe

Alberto Caeiro Poemas inconjunctos

O oacutecio possui uma dimensatildeo espacial tal como toda a experiecircncia fiacutesica e

corporal o oacutecio desenvolve-se em espaccedilos especialmente concebidos diferindo estes

de forma frequente de outros espaccedilos tais como os espaccedilos de trabalho Academias

bibliotecas museus hoteacuteis casas de campo casas de chaacute banhos jardins ou parques

sanatoacuterios mosteiros (ou outros retreats) destacam-se amiuacutede da arquitetura normal da

vida e do trabalho destinando-se a um tipo de vida diferente apresentando-se distintos

dos edifiacutecios em que habitualmente se permanece Estes espaccedilos satildeo diferentes pois satildeo

lugares de ldquooacutecio-permitidordquo porventura de ldquooacutecio-promovidordquo Certamente o oacutecio natildeo eacute

apenas possiacutevel em lugares como aqueles aqui mencionados se natildeo todos os lugares

muitos lugares podem tornar-se e constituir-se como lugares de oacutecio

Mas quais satildeo as caracteriacutesticas dos lugares ou espaccedilos de oacutecio tais como

aqueles acima mencionados O que eacute que um mosteiro tem em comum com um hotel de

spa o que eacute que uma biblioteca tem em comum com um banho termal ou uma casa no

campo A primeira coisa comum e que subjaz aos lugares e espaccedilos de oacutecio consiste

num limite determinado mais ou menos demarcaacutevel Visitamo-los especificamente e a

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experiecircncia que se desenvolve no seu interior eacute de uma outra categoria que escapa agrave

normalidade da vida que lhe eacute exterior digamo-lo assim O limiar que se atravessa ao

entrar neles eacute o limiar entre o ruiacutedo e o silecircncio entre a azaacutefama e a tranquilidade Os

meios de comunicaccedilatildeo que transcendem o espaccedilo normalmente natildeo tecircm lugar em

espaccedilos de oacutecio embora o oacutecio possa ter uma dimensatildeo social e comunicativa Eis a sua

caracteriacutestica comum por muito diferentes que tais espaccedilos se afigurem entre si ndash mas o

oacutecio natildeo eacute o mesmo que tempo livre Tais lugares de oacutecio promovem a emergecircncia de

um tipo muito especial de atenccedilatildeo ndash uma atenccedilatildeo que natildeo tem de ser ganha e preservada

especificamente mas que surge por sua proacutepria iniciativa Sente-se aqui a vontade de

uma forma especial No oacutecio estamos envolvidos com possibilidades desfrutamos

delas Tal situaccedilatildeo alarga o campo de visatildeo do nosso olhar ndash natildeo se trata propriamente

da visatildeo concentrada na contemplaccedilatildeo de um quadro de um museu mas distintamente

da possibilidade de o nosso olhar extravasar o direcionamento o foco especiacutefico da

nossa visatildeo

O oacutecio ao que parece requer uma des-centraccedilatildeo especial um olhar natildeo fixo a

vontade de ser surpreendido Nesta prontidatildeo a liberdade desempenha um papel

especial mas um tipo especial de liberdade A liberdade eacute numa aceccedilatildeo corrente

concebida como a possibilidade de levar a cabo algo que se tenha decidido fazer sem

obstaacuteculos assim como num outro sentido a possibilidade de controlar o que acontece

em cada fase do ato para que nada possa simplesmente acontecer sem que seja previsto

ou pretendido Esta possibilidade de controlo eacute uma caracteriacutestica essencial do que se

chama vontade o controlo quanto a fazer algo segundo uma intenccedilatildeo preacute-estabelecida ndash

uma previsatildeo acerca de como algo deve acontecer antes de estar laacute tomando existecircncia

de acordo com aquilo que a imaginaccedilatildeo formulara previamente Em contraste a

liberdade de ser surpreendido natildeo eacute a liberdade de vontade mas a liberdade da vontade

Espaccedilos des-focados como um museu ou uma biblioteca que desperta o desejo

de ler encorajam ou permitem o oacutecio Estes espaccedilos promovem uma realizaccedilatildeo

particular que natildeo se traduz por sua vez numa realidade contiacutenua abrindo por

contraste um horizonte de possibilidades Do possiacutevel da fulguraccedilatildeo da possibilidade

resulta uma tranquilidade especial que estaacute intimamente ligada ao oacutecio Trata-se de uma

atividade pode ser formativa ou realizadora se realizada no oacutecio tal atividade

desenvolve-se sem forccedilar uma soluccedilatildeo No oacutecio deixa-se sempre acontecer o que se

estaacute ocupado com As soluccedilotildees podem permanecer abertas podem estar no contexto de

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outras possibilidades e tambeacutem do imprevisto ndash ou por outras palavras o natildeo previsiacutevel

desde o iniacutecio Desta forma a obra em que um artista trabalhou em oacutecio pode

surpreender o proacuteprio artista pois no oacutecio nada tem de ser decidido sob determinada

pressatildeo e uma tarefa poderaacute ser levada a cabo na plenitude das suas possibilidades Um

exemplo de tal situaccedilatildeo poderia ser a ocupaccedilatildeo de uma obra de arte que estaacute sempre

presente enquanto ela proacutepria na justaposiccedilatildeo das possibilidades da sua aparecircncia e tais

possibilidades sob vaacuterios pontos de vista da sua acessibilidade poderatildeo ser exploradas

Ainda que apenas possamos perceber ou entrever uma das suas acessibilidades as

outras encontram-se tambeacutem elas presentes

A espacialidade da vida eacute tanto mais esquecida quanto mais a accedilatildeo eacute orientada

para objetivos e assim empurrada para a estreiteza do canal do tempo Concebido agrave luz

da direccedilatildeo do objetivo tudo estaacute sujeito agrave compulsatildeo da sucessatildeo Tal natildeo eacute passiacutevel de

ser alterado ou resolvido com a mera mudanccedila do fazer para o natildeo fazer O natildeo fazer

poderaacute traduzir-se numa anoacutedina pausa tambeacutem ela subordinada ao fazer Eacute certo que a

pausa poderaacute ter o sentido de uma reflexatildeo faz-se uma pausa olha-se em redor e

pensa-se em como continuar No entanto a compulsatildeo da sucessatildeo permanece vigente

continuando a tratar-se de uma questatildeo de antes e depois de ainda natildeo e jaacute natildeo eacute Para

que isto se altere efetivamente a atitude deve mudar promovendo o afastamento de

uma orientaccedilatildeo para um objetivo de uma accedilatildeo para as possibilidades de experimentar

existecircncia de um forma des-centrada no espaccedilo Soacute desta forma a perceccedilatildeo e o

pensamento se tornaratildeo livres podendo envolver-se com o que existe Deste modo o

fazer natildeo para mas adquire um significado diferente No oacutecio estamos perante a

potencialidade de esquecimento da pausa enquanto momento permitido de suspensatildeo do

trabalho ndash trata-se justamente do esquecimento de que nos encontramos num momento

que nos eacute autorizada a interrupccedilatildeo do trabalho No oacutecio entrevemos as simples

possibilidades de existecircncia vecirc-se e aceita-se

A permanecircncia numa praccedila urbana o flanar a contemplaccedilatildeo do jogo de luzes e

nuvens na praia inclusivamente o passeio na natureza revelam um caraacutecter ocioso O

oacutecio natildeo exclui movimento mas tudo o que eacute observado por mais que possa alterar-se

nos seus pormenores deve pertencer a um todo calmo Observar ociosamente uma praccedila

urbana permite-nos dirigir o olhar para o quadro geral alargando o nosso campo de

visatildeo para laacute do movimento do ir e vir ndash eacute-nos aberta a possibilidade de contemplar tudo

no espaccedilo no jogo da distacircncia e da proximidade na pertenccedila conjunta do que eacute

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exterior ao outro no espaccedilo livre do grande horizonte no qual algo se pode mostrar

Este espaccedilo livre permite que tudo o que estaacute nele ou entra nele seja simultacircneo O que

muda com o tempo soacute pode confirmar esta simultaneidade e pertence aos

acontecimentos nesta praccedila nesta praia A observaccedilatildeo natildeo tem de ser limitada a uma

posiccedilatildeo e a um ponto de vista O perambular e a mudanccedila de perspetiva a ele associada

desbloqueia a totalidade espacial a ser observada Uma praccedila urbana pode ser vista a

partir de um determinado local numa perspetiva constante tal como um palco ou um

ecratilde de cinema Mas eacute apenas o perambular que iraacute revelar os seus vaacuterios aspetos Aqui

mostra-se como o observado tambeacutem pode incluir o observador Assim a praccedila pode

transformar-se num espaccedilo onde haacute calma uma calma que vem da simultaneidade do

que eacute visto e experimentado pelo observador Flanar passear ociosamente por aiacute

envolver-se com esta calma demorar-se nela Demorar eacute uma existecircncia temporal mas

que eacute retirada do seu caraacutecter temporal Eacute a pausa no tempo como uma presenccedila

ilimitada Este estado natildeo pode permanecer de modo duradouro eacute sabido mas tal natildeo

tem qualquer importacircncia enquanto nele nos demoramos Neste estado natildeo haacute um fim

e portanto tambeacutem natildeo haacute um depois Trata-se de estar temporalmente no espaccedilo

Tendo presente o amplo espectro filosoacutefico dedicado agrave avaliaccedilatildeo e agrave criacutetica da

mobilizaccedilatildeo e da aceleraccedilatildeo ndash novos conceitos filosoacuteficos aqui emergentes ndash no

contexto da modernidade tardia poder-se-ia com certa razoabilidade admitir que

perante tal situaccedilatildeo justificar-se-ia a existecircncia de uma certa necessidade crescente de

experiecircncias de fruiccedilatildeo do oacutecio tomadas como situaccedilotildees contrapostas ao estado de

coisas existente O oacutecio ele mesmo poderia neste sentido ser perspetivado como um

contra-conceito relativamente agraves matrizes de condiccedilotildees especiacuteficas da experiecircncia

espacial e temporal

O oacutecio poderia ser definido agrave partida como um fenoacutemeno passiacutevel de

contiacutenua alteraccedilatildeo segundo as condiccedilotildees culturais e sociais a que se encontra

intimamente relacionado ndash especialmente no que concerne ao conceito dominante de

trabalho Tendo em vista uma definiccedilatildeo mais fina vaacuterias diferenciaccedilotildees foram

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elaboradas de modo a conceptualizar o oacutecio513 Primeiramente uma importante distinccedilatildeo

deve ser estabelecida entre o oacutecio e o tempo livre Natildeo se trata de conceitos idecircnticos ndash

e tal diferenciaccedilatildeo deveraacute merecer especial atenccedilatildeo Com efeito na sociedade industrial

ocidental moderna as formas da realizaccedilatildeo do tempo livre emergiram natildeo raro como o

reverso do trabalho remunerado delineando-se e configurando-se o tempo dedicado ao

oacutecio como uma situaccedilatildeo ou uma realidade dependentes conquanto contrapostas do

trabalho (concretamente por exemplo na funccedilatildeo de reproduzir ou recuperar a forccedila de

trabalho ou comprar e consumir os bens produzidos) Todavia importaria elucidar que o

conceito de oacutecio remonta a raiacutezes mais antigas A origem do conceito de oacutecio pode ser

encontrada entre outras na antiga conexatildeo entre teoria e scholeacute sobre a qual

Aristoacuteteles se dedica na Eacutetica a Nicoacutemaco E na Poliacutetica o filoacutesofo distingue o oacutecio

enquanto atividade com um propoacutesito autossuficiente natildeo exclusivamente destinada agrave

recuperaccedilatildeo das forccedilas destinadas ao trabalho514 Portanto o oacutecio natildeo se configura como

mera inatividade mas sim atividade livre (praxis) que por sua vez se distingue das

atividades de manufatura que possuem o seu propoacutesito fora de si (poiesis)515 tal como

nos eacute dito na Eacutetica a Nicoacutemaco Paradigmaacutetico de uma accedilatildeo que serve a si proacutepria

poreacutem natildeo eacute a vida poliacutetica (praxis) mas a contemplaccedilatildeo (teoria) agrave qual a antiguidade

tardia e a Idade Meacutedia se referem repetidamente como fonte de felicidade

Com a institucionalizaccedilatildeo do trabalho na modernidade o quadro de referecircncia

mudou de tal modo que o designado tempo livre passou a corresponder no contexto do

seacuteculo XX ao contra-conceito de trabalho ndash e correlativamente o conceito de oacutecio

noccedilatildeo considerada como eticamente eminente no acircmbito da Antiguidade tornou-se

progressivamente a expressatildeo conceptual de uma situaccedilatildeo ou de uma realidade

moralmente reprovaacuteveis sofrendo os desenvolvimentos de uma conotaccedilatildeo

profundamente negativa em termos eacuteticos como ociosidade516 Prosaicamente o

lamento sobre a dissoluccedilatildeo ou a reduccedilatildeo da vida inteira ao trabalho se entrecortado com

a breve alegria que decorre da perspetiva do descanso ou da pausa parece tornar

possiacutevel a antiga promessa da felicidade no oacutecio novamente entrevista No entanto a

aceleraccedilatildeo e o incremento da vida quotidiana constituem elementos considerados como

passiacuteveis de neutralizar dificultar ou porventura aniquilar as possibilidades de

513 Gimmel JKeiling T Konzepte der Muszlige Tuumlbingen 2016514 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a1515 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Antoacutenio de Castro Caeiro Lisboa 2009 1094a 1ndash25516 Henning C Gluumlck in Arbeit und Muszlige Stuttgart 2011 pp34-37

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realizaccedilatildeo do oacutecio ndash motivo pelo qual assistimos hoje a uma crescente demanda pelas

possibilidades de criaccedilatildeo de espaccedilos livres nas nossas sociedades de modo a que a

experiecircncia especiacutefica do oacutecio possa ocorrer enquanto experiecircncia de fruiccedilatildeo

Curiosamente o termo espaccedilo livre refere-se a um momento espacial de oacutecio que se

combina com efeito com a determinaccedilatildeo temporal do mesmo ndash e ambas as dimensotildees

espacial e temporal parecem estar ameaccediladas por desenvolvimentos sociais que podem

ser associados agrave modernidade Como seraacute apresentado seguidamente recorrendo agrave

anaacutelise de Georg Simmel relativa agrave sociedade moderna as experiecircncias do espaccedilo e do

tempo satildeo historicamente variaacuteveis e as mudanccedilas ocorridas nestas experiecircncias

afetam tambeacutem as condiccedilotildees baacutesicas do oacutecio

O iniacutecio da tendecircncia de aceleraccedilatildeo ndash que torna mais difiacutecil o acesso a

experiecircncias de oacutecio hoje tal como procuraremos sustentar ao longo desta tese de

doutoramento ndash eacute muitas vezes localizada nos tempos modernos no acircmbito do qual se

acrescentam com os seus efeitos e consequecircncias as mudanccedilas na experiecircncia do

espaccedilo e do tempo De facto uma das caracteriacutesticas genuiacutenas do modo de vida

moderno eacute a experiecircncia alterada do tempo tal como ilustra a notaacutevel definiccedilatildeo de

Baudelaire acerca do moderno como experiecircncia do transitoacuterio e do fugidio517 O gosto

pela velocidade por um lado e o lamento sobre o ritmo acelerado da vida por outro

constituem um certo modo de mundiviecircncia coletiva que conduziu alcanccedilando o seu

acme ao triunfo de novos meios de transporte e teacutecnicas de comunicaccedilatildeo no iniacutecio do

seacuteculo XX518 A sensaccedilatildeo de que a sociedade estaria a sofrer alteraccedilotildees a um ritmo

demasiado ceacutelere jaacute havia sido formulada no iniacutecio da modernidade519 configurando-se

como uma experiecircncia dominante agrave luz da crescente industrializaccedilatildeo do iniacutecio do seacuteculo

XIX Tal experiecircncia da modernidade como um tempo acelerado ndash desde o seacuteculo XIX

ndash eacute acompanhada pela tese de um crescente afastamento do espaccedilo que deveria

culminar no desaparecimento do espaccedilo520 A experiecircncia da maior celeridade de

circulaccedilatildeo entre longas distacircncias primeiramente tornada possiacutevel com o caminho-de-

ferro reduz o significado global do espaccedilo ndash como que evocando a sentenccedila de que ldquoo

517 ldquoLa moderniteacute crsquoest le transitoire le fugitif le contingent la moitieacute de lrsquoart dont lrsquoautre moitieacute estlrsquoeacuteternel et lrsquoimmuable ldquo Baudelaire C Curiositeacutes estheacutetiques Paris 1971 p467518 Sobre os efeitos do traacutefego acelerado consultar Schivelbusch W Geschichte der EisenbahnreiseZur Industrialisierung von Zeit und Raum im 19 Jahrhundert Muumlnchen 1977519 Koselleck R bdquoGibt es eine Beschleunigung in der Geschichteldquo In Koselleck R ZeitschichtenStudien zur Historik Frankfurt a M 2000 p153520 Schroer M bdquoBringing space back in Zur Relevanz des Raums als soziologischer Kategorieldquo InDoumlring JThielmann T (ed) Das Raumparadigma Zur Standortbestimmung des Spatial turnBielefeld 2008 pp 125ndash148

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espaccedilo eacute morto escrita por Heinrich Heine521 tendo em vista os novos meios de

transporte O designado desaparecimento do espaccedilo eacute pois uma noccedilatildeo que estaacute hoje

novamente presente especialmente com o desenvolvimento da Internet e da economia

globalizada (global village)522 A este respeito David Harvey perspetivando a

experiecircncia da mobilidade num mundo globalmente conectado cunhou o termo

compressatildeo espaccedilo-tempordquo referindo-se agrave aceleraccedilatildeo da velocidade de viagem523 Paul

Virilio constata o desaparecimento do espaccedilo524 e Hartmut Rosa considera a

emancipaccedilatildeo do tempo do espaccedilo como o nascimento da modernidade525 Note-se

no entanto que paralelamente ao lamento sobre o desaparecimento do espaccedilo na

filosofia e nas ciecircncias sociais emerge ainda que de um modo aparentemente

paradoxal o regresso do espaccedilo ou de um discurso sobre o espaccedilo que em

retrospetiva coincide com o iniacutecio de uma eacutepoca habitualmente designada por

modernidade tardia ou poacutes-modernismo Com efeito natildeo soacute Foucault proclamou a era

do espaccedilo jaacute no final dos anos 60 como tambeacutem Fredric Jameson se debruccedilou sobre o

facto de que a nossa vida quotidiana as nossas experiecircncias psiacutequicas e as linguagens

da nossa cultura atual ndash em contraste com a eacutepoca precedente da Alta Modernidade ndash

se apresentam determinadas mais pelas categorias do espaccedilo do que pelas do tempo526

Tais constataccedilotildees contraditoacuterias ndash por um lado o estiolamento por outro lado o retorno

do espaccedilo ndash sugerem uma definiccedilatildeo pouco clara do termo espaccedilo como Markus Schroer

avisadamente observa527 chamando a atenccedilatildeo para a equivocidade da noccedilatildeo de espaccedilo

que se encontra envolvida em determinadas discussotildees e discursos Importa portanto

examinar se se pode falar de um desaparecimento do espaccedilo ou se a situaccedilatildeo a avaliar se

configura eventualmente como uma transformaccedilatildeo da experiecircncia do espaccedilo que se

confunde com uma tendecircncia de aceleraccedilatildeo temporal Se todavia eacute caracteriacutestico do

oacutecio que as experiecircncias do espaccedilo e do tempo mudem conforme o estado do proacuteprio

521 Heine H Lutezia Historisch-kritische Gesamtausgabe der Werke (Duumlsseldorfer Ausgabe)Windfuhr M (ed) Bd 141 Hamburg 1990 p58522 Consultar Berger P bdquoAnwesenheit und Abwesenheit Raumbezuumlge sozialen Handelnsldquo InBerliner Journal fuumlr Soziologie 1 (1995) pp99ndash111523 H Harvey D The Condition of Postmodernity An Enquiry into the Origins of Cultural ChangeMalden MAOxford 1990 pp 201ndash323524 Virilio P bdquoDas dritte Intervall Ein kritischer Uumlbergangldquo In Decker EWeibel P (ed) VomVerschwinden der Ferne Telekommunikation und Kunst Koumlln 1990 pp 335ndash346525 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p61526 Jameson F bdquoPostmoderne Zur Logik der Kultur im Spaumltkapitalismusldquo In Huyssen AScherpeKR (ed) Postmoderne Zeichen eines kulturellen Wandels Hamburg 1986 p60527Schroer M bdquoBringing space back in Zur Relevanz des Raums als soziologischer Kategorieldquo InDoumlring JThielmann T (ed) Das Raumparadigma Zur Standortbestimmung des Spatial turnBielefeld 2008 p132

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oacutecio528 se o oacutecio como fenoacutemeno pode ser caracterizado pela sua especificidade de

espaccedilo-temporalidade entatildeo tornar-se-aacute razoaacutevel ponderar as possibilidades de as

mudanccedilas histoacutericas ocorridas na experiecircncia do espaccedilo e do tempo tambeacutem

apresentarem os seus efeitos nas possibilidades de experimentar o oacutecio Neste sentido

tornar-se-ia pertinente voltar aos claacutessicos das teorias da modernidade ndash como Hartmut

Rosa sugere529 ndash e aiacute encontrar reflexotildees sobre uma experiecircncia de espaccedilo e tempo que

se alterou significativamente As posiccedilotildees de Georg Simmel satildeo merecedoras de estudo

para aleacutem das relevantes abordagens desenvolvidas para uma filosofia social do espaccedilo

importaria sublinhar como notaacutevel o diagnoacutestico da sociedade delineado por Simmel

especialmente na atenccedilatildeo dedicada agrave experiecircncia quotidiana do homem moderno agrave luz

de uma singular perspetivaccedilatildeo de que a modernidade como um todo se apresenta

caracterizada segundo um tipo especial de experiecircncia530 ndash e neste ponto a abordagem

de Simmel natildeo se encontra muito distante do diagnoacutestico de Hartmut Rosa acerca do

tempo como procuraremos sustentar oportunamente nesta tese de doutoramento

Em Filosofia do Dinheiro obra publicada em 1900 comummente interpretada

como uma teoria da cultura moderna Simmel trata natildeo somente do princiacutepio e da

funccedilatildeo da economia monetaacuteria mas tambeacutem dos efeitos da cultura moderna moldada

pela economia monetaacuteria na atitude do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida A este respeito os

conceitos espaccedilo-temporais desempenham um papel central no acircmbito da atitude do

indiviacuteduo relativamente agrave vida pois Simmel perspetiva o estilo de vida moderno como

caracterizado pela distacircncia pela velocidade e pelo ritmo No uacuteltimo capiacutetulo da

Filosofia do Dinheiro que trata especificamente do estilo de vida Simmel fornece um

diagnoacutestico do tempo da cultura moderna um diagnoacutestico delineado agrave luz do conceito

de dinheiro concebido como forccedila motriz e como siacutembolo Eacute com efeito notaacutevel o

modo como na descriccedilatildeo da atitude moderna em relaccedilatildeo agrave vida Simmel se refere

repetidamente a caracterizaccedilotildees espaciais e temporais Neste sentido o estilo de vida

moderna desdobra-se em trecircs aspetos que Simmel define em termos de tempo e espaccedilo

distacircncia ritmo e tempo

528 Figal GHubert HW Klinkert T bdquoEinleitungldquo In Figal GHubert HW Klinkert T (ed)Die Raumzeitlichkeit der Muszlige Tuumlbingen 2016 p1529 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 pp89ndash105530 A teoria da modernidade de Simmel natildeo assume a forma de uma anaacutelise histoacuterica mas representaum relatoacuterio sobre as experiecircncias da realidade social na modernidade Frisby D Fragmente derModerne Georg Simmel - Siegfried Kracauer - Walter Benjamin Rheda-Wiedenbruumlck 1989 p68

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Atentemos primeiramente sobre as ldquoexpressotildees espaciaisrdquo usadas por Simmel

Distacircncia eacute um termo de significativa importacircncia para a perspetivaccedilatildeo de Simmel

acerca dos processos culturais como um todo Para a formaccedilatildeo do valor econoacutemico e

esteacutetico por exemplo o distanciamento dos objetos constitui um preacute-requisito pois uma

certa distacircncia deve ser assumida para que se possa relacionar com algo de uma forma

desejaacutevel531 Aleacutem de uma dialeacutetica geral de proximidade e de distacircncia que por

princiacutepio desempenha um papel relevante na formaccedilatildeo do valor no processo cultural

Simmel constata igualmente uma mudanccedila histoacuterica na distacircncia entre sujeito e objeto

que o filoacutesofo atribui ao efeito do dinheiro assim caracterizada

A distacircncia que afastou o subjetivo e o objetivo da sua unidade original tornou-se por

assim dizer corporal no dinheiro - enquanto que por outro lado seu significado eacute fiel agrave

correlaccedilatildeo de distacircncia e proximidade discutida acima aproximar de noacutes o que de outra

forma seria inatingiacutevel532

A consideraccedilatildeo de determinados paradoxos ou contradiccedilotildees compotildee de um

modo incisivo as posiccedilotildees de Simmel Assim se por um lado agrave medida que a

economia monetaacuteria cresce aumenta tambeacutem a distacircncia entre os sujeitos e os objetos

por outro lado a economia monetaacuteria facilita o comeacutercio e disponibiliza oferecendo

muito mais objetos ao sujeito do que antes ndash o que anteriormente pareceria inalcanccedilaacutevel

eacute agora acessiacutevel atraveacutes da economia monetaacuteria cada vez mais global Tiacutepico da

sociedade moderna eacute por conseguinte a situaccedilatildeo paradoxal em que o indiviacuteduo tem agrave

sua disposiccedilatildeo cada vez mais produtos que lhe satildeo cada vez mais facilmente acessiacuteveis

natildeo conseguindo poreacutem estabelecer uma verdadeira relaccedilatildeo com os objetos

individuais pois tudo concebe e perspetiva atraveacutes das lentes do dinheiro

A racionalizaccedilatildeo e a quantificaccedilatildeo modernas do espaccedilo constituem igualmente

um foco de atenccedilatildeo de Simmel O filoacutesofo refere-se por diversas vezes em Filosofia do

Dinheiro ao traacutefego associando o uso do espaccedilo que eacute cultivado na construccedilatildeo de

estradas modernas a uma tendecircncia que se orienta natildeo somente no sentido de um

domiacutenio do espaccedilo mas inclusivamente na direccedilatildeo de uma necessidade de economizar

tempo

531 bdquoDistacircncia e aproximaccedilatildeo satildeo tambeacutem na praacutetica termos de mudanccedila cada um pressupondo ooutro e ambos formando os lados da relaccedilatildeo com as coisas que noacutes subjetivamente chamamos onosso desejo objetivamente o seu valorrdquo Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p49532 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p136

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O alongamento de estradas tortuosas a criaccedilatildeo de novos caminhos diagonais todo o

sistema moderno de simetria e sistemaacutetica retangular eacute de facto uma economia direta de

espaccedilo mas para o tracircnsito eacute sobretudo uma economia de tempo como exige o

racionalismo da vida533

A economia de tempo surge neste acircmbito como um imperativo para o qual a

construccedilatildeo da convivecircncia humana deve ser orientada Tal conduz-nos aos aspetos do

estilo de vida moderno que natildeo satildeo descritos por uma analogia espacial como

distacircncia mas por uma analogia temporal534 nomeadamente ritmo e tempo

Em vez de um movimento ondulatoacuterio regular que determina os processos

naturais tais como o curso das estaccedilotildees do ano e as estaccedilotildees de acasalamento nos

animais existe jaacute nas primeiras culturas humanas uma uniformidade do curso do tempo

que natildeo se encontra nos animais e que eacute intensificada no mundo moderno A dissoluccedilatildeo

da sequecircncia natural de tensatildeo e relaxamento eacute tambeacutem evidente no fluxo de trabalho agrave

medida que o desenvolvimento cultural progride As maacutequinas com os seus processos

fixos impotildeem o seu ritmo ao trabalhador moderno natildeo seguindo as necessidades

fisioloacutegicas deste A vida cultural moderna sob a influecircncia da economia monetaacuteria eacute

finalmente

dominada por uma uniformidade contiacutenua uma vez que se pode comprar tudo por dinheiro

a qualquer momento e portanto as emoccedilotildees e irritaccedilotildees do indiviacuteduo jaacute natildeo precisam de

aderir a um ritmo que a partir da possibilidade da sua satisfaccedilatildeo o sujeitaria a uma

periodicidade transindividual535

No entanto no que concerne ao ritmo Simmel considera igualmente um

desenvolvimento contraacuterio que provoca a um distanciamento de toda a uniformidade e

que o filoacutesofo associa ao individualismo moderno Neste contexto o dinheiro atua como

catalisador destes desenvolvimentos Por um lado e de acordo com Simmel o dinheiro

proacuteprio eacute o mais radical porque por si soacute eacute o meio completamente indiferente para

uma transformaccedilatildeo de um ritmo de condiccedilotildees de vida forccedilado supra-individual que nos

obriga a um equiliacutebrio e desnivelamento do si mesmo536 O dinheiro eacute indiferente agrave

533 Simmel G Soziologie Untersuchungen uumlber die Formen der Vergesellschaftung Gesamtausgabevol11 von Otthein Rammstedt O (ed) Frankfurt a M 2006 p712534 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p676535 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p680536 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p691

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pessoa e natildeo estaacute sujeito a qualquer ciclo natural portanto tende a ter um efeito

equalizador e nivelador quando domina as relaccedilotildees intersubjetivas Por outro lado o

dinheiro liberta o indiviacuteduo de laccedilos pessoais e objetuais facilitando-lhe assim o

desenvolvimento da sua personalidade e a definiccedilatildeo dos seus proacuteprios objetivos

interesses que se podem revelar numa forma mais livre no seu proacuteprio ritmo de vida O

dinheiro eacute natildeo soacute responsaacutevel pela distacircncia e pelo ritmo mas tambeacutem afeta o ritmo de

vida que Simmel descreve da seguinte forma O que percebemos como ritmo de vida eacute

o produto da soma e da profundidade de suas mudanccedilasrdquo537 Correlativamente o

impacto psicoloacutegico das significativas mudanccedilas sociais provocadas pelo triunfo da

economia monetaacuteria constitui um relevante aspeto a que Simmel concede atenccedilatildeo

Avaliando a situaccedilatildeo de aumento da moeda disponiacutevel e o seu efeito de aceleraccedilatildeo dos

processos econoacutemicos Simmel enfatiza as consequecircncias psicoloacutegicas de um aumento

da quantidade de dinheiro

Enquanto a nova adaptaccedilatildeo natildeo for concluiacuteda o aumento constante do dinheiro daraacute

origem a contiacutenuos sentimentos de diferenccedila e choques psiacutequicos [hellip] e assim ao

acelerar do ritmo da vida Aumentos na produtividade de um paiacutes e aumentos salariais

associados levam ao aumento da mobilidade social que tambeacutem eacute percebida como um

aumento no ritmo de vida538

Enquanto a ldquonecessidade exagerada de atenccedilatildeo e de prestiacutegiordquo (Blasiertheit)

atuava como contrapartida psicoloacutegica do distanciamento moderno a alteraccedilatildeo do ritmo

de vida a niacutevel psicoloacutegico provoca um aumento da vida nervosa resultante da

alternacircncia raacutepida e ininterrupta das impressotildees externas e internas539 Nas raacutepidas

537 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p696538 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989539 Para Simmel modernidade significa uma transformaccedilatildeo da estrutura da personalidade dos indiviacuteduosque reagem agraves imposiccedilotildees da aceleraccedilatildeo e do incremento da modernidade com uma modificaccedilatildeo da suagestatildeo dos sentimentos da sua estrutura emocional da sua vida nervosa e da relaccedilatildeo entre emoccedilotildees eintelecto Esta eacute a base para a definiccedilatildeo de Simmel sobre a essecircncia da modernidade tal como exposta noseu ensaio sobre a arte de Rodin no qual escreve ldquoEacute que a essecircncia da modernidade se eacute que haacute algumaeacute psicologismo a experimentaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo de acordo com as reaccedilotildees do nosso interior ede facto de um mundo interior a dissoluccedilatildeo de conteuacutedos soacutelidos no elemento liacutequido da alma da qualtoda a substacircncia eacute libertada e cujas formas satildeo apenas formas de movimentos (Simmel G Philosophiedes Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p714) Daiacuteque Simmel entenda o processo de modernizaccedilatildeo como uma mudanccedila no equiliacutebrio entre os princiacutepiosuniversais de movimento e ineacutercia em favor do primeiro e portanto como a dissoluccedilatildeo de ritmos fixos afavor de uma permanecircncia da mudanccedila (Simmel G Die Bedeutung des Geldes fuumlr das Tempo desLebensrdquo Frankfurt am Main 1897 p230 e Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt a M 1989 p711) Por seu turno os indiviacuteduos reagem a talmudanccedila com indiferenccedila para com os conteuacutedos do mundo segundo uma certa mudanccedila dialeacuteticaverificada em permanente sobre-estimulaccedilatildeo com a obsessatildeo de experiecircncias sempre novas e cada vez

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mudanccedilas da moda Simmel perspetiva uma marca de Modernidade classificada pelo

filoacutesofo como uma era nervosa

A mudanccedila de moda indica o grau em que os estiacutemulos nervosos podem ser atenuados

quanto mais nervosa for a idade mais raacutepida seraacute a mudanccedila de moda pois a necessidade

de estiacutemulos diferenciais um dos portadores essenciais de toda a moda eacute ligado ao

afrouxamento das energias nervosas540

Simmel menciona o ritmo especificamente impaciente da vida moderna541

que conduz a uma ecircnfase no presente A desintegraccedilatildeo das tradiccedilotildees cada vez mais

rapidamente tornadas obsoletas favoreceria segundo o filoacutesofo os elementos

volaacuteteisfugazes e mutaacuteveis da vida542 A tensatildeo nervosa descrita por Simmel ndash como

que evocando o quadro cliacutenico da neurastenia tornado ceacutelebre no tempo de vida do

proacuteprio filoacutesofo ndash assume o seu espaccedilo ou lugar de desenvolvimento na metroacutepole

moderna Devido agrave raacutepida mudanccedila de sensaccedilotildees e impressotildees a vida na grande cidade

difere da vida no campo e na pequena cidade pois segundo Simmel no campo e na

mais extremas e estiacutemulos provocativos em suma com todos os sintomas de neurastenia A ausecircnciado definitivo no interior da nossa alma conduziu-nos agrave procura da satisfaccedilatildeo momentacircnea em estiacutemulosextremos sempre novos bem como em sensaccedilotildees e atividades externas Assim tal ausecircncia enredou-nospor sua vez na confusatildeo na falta de estabilidade e de sossego que rapidamente se manifestam notumulto da grande cidade na perseguiccedilatildeo feroz da concorrecircncia na infidelidade especificamente modernanos domiacutenios do gosto dos estilos das atitudes dos relacionamentos (Ibid p714) O filoacutesofo francecircsTristan Garcia escreve a este respeito bdquoLa socieacuteteacute moderne ne promet plus aux individus une autre vie lagloire de lacuteau-delaacute mais seulement ce que nous sommes deacutejagrave ndash plus et mieux hellip Eh bien ce qui nous estoffert de meilleur cacuteest une augmentation de nos corps une intensification de nos plaisirs de nos amoursde nos eacutemotionshelliprdquo (Garcia T La vie intense Une obsession moderne Paris 2016 p11) Namodernidade tardia isto eacute onde ldquonormalmente nenhuma transcendecircncia acena para a maioria doshomensrdquo natildeo haacute senatildeo a vida breve seria consequentemente necessaacuterio tentar intensificaacute-lacontinuamente por exemplo invocando ldquoa sua eletricidade interiorrdquo Garcia reconhece na feacutee eacutelectriciteacute aimagem emblemaacutetica da procura de tensatildeo num mundo que perdeu o encanto (Max Weber) Garciaanalisa o sentimento de mediocridade e de rotina quando a tensatildeo da vida se aproxima de zero e nadaresta senatildeo o vazio como por exemplo no caso de um esgotamento Para Garcia a busca de intensidadee a exaustatildeo bem como a depressatildeo estatildeo de matildeos dadas enquanto momentos dialeacuteticos Mas quando avida consiste apenas em saltos de adrenalina estes tornam-se rotina e anulam-se a si proacuteprios Nesteparadoxo Garcia descobre o problema de fundo da ldquovida intensardquo Tous autant que nous sommes noussentons bien deacutesormais que lintensiteacute geacuteneacuteraliseacutee noffre dautre perspective une fois eacuteleveacutee au rang deprincipe de vie que notre eacutepuisement ineacuteluctable presque meacutecanique Elle entraicircne tout organismeindividuel ou collectif qui sy livre sans reacuteserve dans une vague deacutepression une lente diminution delexcitation une annulation fatale mais qui ne trouve jamais vraiment son terme agrave moins duneffondrement (Ibid p174) Interessante eacute o facto de que no seu ensaio ldquoLa vie intenserdquo Garcia quaseesgota a filosofia francesa do seacuteculo XX incluindo entre outros Bataille Lacan Klossowski e Lyotardque trataram a questatildeo das intensidades por vezes de forma intensiva e supostamente em nome deuma revolta contra ldquoa vida alienadardquo ou a mistificaccedilatildeo capitalista dos desejos Curiosamente o primeirovolume do coloacutequio sobre Nietzsche de 1972 em Cerisy-la-Salle tinha o tiacutetulo ldquoIntensiteacutesrdquo (Nietzscheaujourdhui colloque de Cerisy Volume 1 Intensiteacutes Paris 2011)540 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p194541 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p197542 Simmel G Die Mode Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurt aM 1996 p198

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pequena cidade a alma beneficia de um ritmo de vida uniforme e equilibrado passiacutevel

de profunda perturbaccedilatildeo no interior do enorme ritmo de vida nas metroacutepoles que apela

por sua vez e de um modo mais intenso ao intelecto

As observaccedilotildees de Simmel sobre a intelectualizaccedilatildeo e a coisificaccedilatildeo da vida

moderna decorrem de consideraccedilotildees intimamente relacionadas com a economia

monetaacuteria pois de acordo com as palavras esclarecedoras do filoacutesofo a economia

monetaacuteria [] e o domiacutenio intelectual estatildeo na conexatildeo mais profunda543 Nas relaccedilotildees

que definem ambas produzem um nivelamento das diferenccedilas individuais e uma

concentraccedilatildeo em relaccedilotildees objetivas544 A quantificaccedilatildeo ao inveacutes da qualificaccedilatildeo

desempenha um papel crescentemente preponderante na sociedade e na vida mental do

indiviacuteduo tal como o assinala Simmel ldquoA mente moderna tornou-se cada vez mais uma

mente calculista (rechnend)rdquo 545

No ensaio As Metroacutepoles e a Vida Mental bem como em Filosofia do Dinheiro

Simmel debruccedila-se curiosamente sobre a invenccedilatildeo do reloacutegio de bolso como modo de

ilustraccedilatildeo do domiacutenio da quantidade sobre a qualidade da transformaccedilatildeo do tempo em

realidade objetivamente mensuraacutevel e objetivada imposta ao indiviacuteduo em todos os

momentos546 A vida nas grandes cidades afigura-se assim determinada por esta nova

compreensatildeo do tempo mensuravelmente preciso exato uma ordem temporal

quantificada que determina coordena e rege as diversas atividades ndash quantificadamente

moldadas ndash dos seus habitantes547

Em Filosofia do Dinheiro Simmel refere-se igualmente agrave conexatildeo entre esse

novo tempo padronizado e a emergecircncia do capitalismo uma relaccedilatildeo essencial que

merece a atenccedilatildeo do filoacutesofo De acordo com Simmel com a emergecircncia do comeacutercio

mundial e dos primeiros centros financeiros originou-se o conceito moderno de tempo

543 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p118544 bdquoTodas as relaccedilotildees emocionais entre as pessoas satildeo baseadas na sua individualidade enquantoas relaccedilotildees racionais calculam as pessoas como nuacutemeros como elementos indiferentesmanifestando um interesse apenas de acordo com o seu desempenho objetivamente avaliaacutevel rdquoSimmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnke KC(ed) Frankfurt a M 1989 p118545 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p119546 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p119547 Simmel G bdquoDie Groszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnkeKC (ed) Frankfurt a M 1989 p120

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[] como valor determinado pela utilidade e pela escassez548 Poder-se-ia pois

asseverar que no acircmbito do pensamento de Simmel o conceito de tempo objetivo eacute

com efeito explicitamente avaliado como um conceito historicamente e culturalmente

determinado e desenvolvido encontrando-se na sua geacutenese intimamente relacionado

com o desenvolvimento econoacutemico especialmente com a emergecircncia do capitalismo

Simmel atenta ainda sobre um traccedilo geral do sentimento moderno que o

filoacutesofo associa a uma experiecircncia do tempo definindo-o como uma forma especial de

expectativa Aqui se revela interessantemente a relaccedilatildeo do homem moderno com o

futuro

Nos tempos modernos especialmente ao que parece na fase mais recente dos tempos

modernos haacute um sentimento de tensatildeo expectativa urgecircncia natildeo resolvida como se a

coisa principal o definitivo o ponto central da vida e das coisas ainda estivesse por vir no

futuro549

Continuamente Simmel constata uma inquietaccedilatildeo secreta e uma confusa falta

de estabilidade e da calma550 que envolvem e configuram a vida moderna e que o

filoacutesofo perspetivando o problema da distacircncia entre as pessoas nas cidades grandes

associa aos efeitos da economia monetaacuteria O sentimento de expectativa e adiamento

descrito por Simmel como caracteriacutesticas dos indiviacuteduos das grandes metroacutepoles eacute pois

perspetivado como uma decorrecircncia ou um efeito do incremento econoacutemico e da

implementaccedilatildeo do dinheiro como novo valor cultural e social que parece anular

enquanto novo meio universal a orientaccedilatildeo dos indiviacuteduos para determinados objetivos

ou propoacutesitos de vida natildeo economicamente determinados Acumulando dinheiro natildeo o

gastando constitui um gesto de adiamento da decisatildeo de consumir incessantemente

como que mantendo todas as possibilidades abertas num qualquer futuro A relaccedilatildeo com

o dinheiro eacute assim baseada na expectativa de que ainda teremos um qualquer destino

ou fim para ele no futuro Esta orientaccedilatildeo do dinheiro em direccedilatildeo a um suposto futuro ndash

e natildeo para a satisfaccedilatildeo das necessidades atuais ndash revela-se ainda mais evidente na

548 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p707549 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p669550 Simmel G Philosophie des Geldes Gesamtausgabe vol6 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p675

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modernidade tardia especialmente no que concerne ao creacutedito e demais instrumentos do

capitalismo financeiro que hoje conhecemos551

Hartmut Rosa retoma prologando as reflexotildees de Simmel segundo Rosa entre

as distintas criacuteticas claacutessicas da modernidade as posiccedilotildees de Simmel afiguram-se como

aquelas que se destacam pela sua notaacutevel atenccedilatildeo agraves realidades da aceleraccedilatildeo e do

incremento perspetivadas como realidades eminentemente modernistas ndash embora sem

lhe dedicar uma elaboraccedilatildeo teoacuterica independente552 A ecircnfase de Rosa sobre tal

singularidade das posiccedilotildees de Simmel apresenta-se como um elemento merecedor de

estudo no interior do seu proacuteprio pensamento tambeacutem Rosa tal como Simmel

encontra-se especialmente interessado nos efeitos que a sociedade moderna exerce sobre

a atitude e o sentimento da vida dos indiviacuteduos

Por conseguinte no que respeita ao tempo de vida Rosa constata um

incremento de episoacutedios de accedilatildeo eou experienciais por unidade de tempo como

resultado de uma escassez de recursos de tempo553 Neste ponto Rosa evoca o conceito

de Simmel sobre o ritmo de vida partilhando com efeito muitos dos seus

diagnoacutesticos554 Enquanto Simmel se concentra por completo na funccedilatildeo do dinheiro

enquanto causa do incremento do ritmo de vida Rosa oferece um total de trecircs causas

complexas a saber 1 fatores econoacutemicos 2 fatores culturais e 3 fatores soacutecio-

estruturais Todavia poder-se-ia afirmar que a segunda causa (ou seja os fatores

culturais) apontada por Rosa para a transformaccedilatildeo tatildeo manifesta na modernidade das

aspiraccedilotildees de uma vida religiosa (focada no aleacutem-mundo) para as aspiraccedilotildees de uma

551 Consultar Priddat B bdquoWozu Geldldquo In Schlitte A Denzler A Huditz F (ed) Geld Werteund Werte Wuumlrzburg 2017 pp199-209552 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p100553 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p198554 Rosa partilha a opiniatildeo de Simmel de que o ritmo da vida acelerada pode co-induzir patologias Noiniacutecio do seacuteculo XX como Joachim Radkau no seu estudo sobre a Idade do Nervosismo assinalou(Radkau J Das Zeitalter der Nervositaumlt Muumlnchen 1998) o diagnoacutestico de neurastenia como resultadode um ritmo de vida demasiado estimulado foi amplamente difundido (ver tambeacutem Simmel G bdquoDieGroszligstaumldte und das Geisteslebenldquo Gesamtausgabe vol7 Frisby DKoumlhnke KC (ed) Frankfurt aM 1989 p67) Uma forma muito semelhante de doenccedila da pressa foi tambeacutem descoberta no nossotempo nos EUA com as mesmas causas presumidas (Levine R Eine Landkarte der Zeit Muumlnchen1999 p 152) A este propoacutesito Hartmut Rosa comenta Se se seguir estes indicadores haacute fortespossibilidades de emergecircncia de outra grande aceleraccedilatildeo na transiccedilatildeo do seacuteculo XX para o seacuteculo XXIdesde a doenccedila da pressa ateacute agrave recente e omnipresente ldquoAttention Deficit Syndromerdquo em crianccedilas eadolescentesrdquo (Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der ModerneFrankfurt a M 2005 p437) Algumas formas de depressatildeo tambeacutem podem ser co-causadas pelo ritmoacelerado da vida moderna Alain Ehrenberg concebe pois a depressatildeo como uma reaccedilatildeo induzida pelostress de uma psique dessincronizada perante as exigecircncias de velocidade da vida moderna (EhrenbergA La fatigue decirctre soi deacutepression et socieacuteteacute Paris 1999)

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vida inscrita no mundo jaacute se encontra mencionada por Simmel particularmente na sua

abordagem do dinheiro como um substituto para um objetivo final555 de vida

entretanto perdido na modernidade

Tal como no pensamento de Simmel as mudanccedilas no modo de relacionamento

com o tempo e o espaccedilo resultam no contexto das posiccedilotildees de Rosa numa crise

descrita como alienaccedilatildeo trata-se pois de um estado que poderaacute ser caracterizado como

uma situaccedilatildeo no acircmbito da qual os sujeitos voluntariamente perseguem objetivos que

natildeo satildeo realmente desejados Na sua anaacutelise dedicada a tais fenoacutemenos de alienaccedilatildeo (em

relaccedilatildeo ao espaccedilo ao tempo e ao mundo das coisas) Rosa convoca muacuteltiplos aspetos

que tambeacutem desempenham um papel relevante nas reflexotildees de Simmel pensemos

pois nas posiccedilotildees de Simmel sobre o distanciamento e a quantificaccedilatildeo do espaccedilo que

em Rosa encontram afinidade teoacuterica com o distanciamento e alienaccedilatildeo das coisas556

Todavia importaria elucidar que Simmel permanece ambivalente em algumas das

avaliaccedilotildees centrais da cultura moderna em verdade para o filoacutesofo a objetificaccedilatildeo das

relaccedilotildees humanas encontra-se perspetivada como potencialidade de configuraccedilatildeo de um

ganho de liberdade para o indiviacuteduo que pode assim desligar-se das dependecircncias

pessoais e desenvolver as suas idiossincrasias

Segundo Rosa a tendecircncia de aceleraccedilatildeo e de incremento constitui-se como jaacute

vimos como caracteriacutestica de toda a modernidade A interrogaccedilatildeo sobre se e como eacute

possiacutevel escapar a este processo de aceleraccedilatildeo e incremento ndash a que procuraram

responder Simmel e Rosa ndash merece ser analisada com a devida atenccedilatildeo Enquanto a

teoria da ressonacircncia de Rosa557 se apresenta como uma proposta abrangente no que

concerne a uma eventual resposta ao problema da alienaccedilatildeo558 a abordagem de Simmel

assume-se na melhor das hipoacuteteses como uma proposta de neutralizaccedilatildeo da alienada

perspetivada ao niacutevel do estilo de vida individual que inclui por sua vez formas de

atividade que talvez pudessem ser descritas como oacutecio Tal conduz-nos agrave interrogaccedilatildeo

sobre se Simmel tambeacutem poderia delinear reflexotildees sobre as possibilidades da

experiecircncia de lazer na modernidade consideradas porventura como uma

contraposiccedilatildeo relativamente agraves tendecircncias de alienaccedilatildeo constatadas Com efeito

555 Rosa tambeacutem considera a funccedilatildeo substituta religiosa do dinheiro a este respeito consultarRosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M 2005p285556 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Frankfurt aM 2013 pp125ndash128557 Rosa H Resonanz Berlin 2016558 Rosa H Resonanz Berlin 2016

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importaria elucidar que o oacutecio natildeo constitui um conceito central no trabalho de Simmel

embora o seu diagnoacutestico pareccedila sugerir a constataccedilatildeo acerca de uma necessidade ou

uma premecircncia de experiecircncia de lazer nos tempos modernos No entanto Simmel

justapotildee oacutecio a trabalho econoacutemico entre outras coisas segundo uma observaccedilatildeo

lateral sobre o fenoacutemeno da moda Simmel menciona igualmente as vaacuterias atividades

de lazer do habitante da cidade559 No que diz respeito ao tempo livre o pensamento de

Simmel apresenta uma certa ecircnfase sobre o facto de os tempos livres se encontrarem

inexoravelmente determinados pelo desenvolvimento do trabalho apresentando-se

profundamente configurados segundo a economia monetaacuteria

Como foi dito que a histoacuteria das mulheres tem a peculiaridade de natildeo ser a histoacuteria das

mulheres mas a dos homens pode-se dizer que a histoacuteria do oacutecio dos jogos dos

divertimentos eacute se olharmos mais de perto a histoacuteria do trabalho e da seriedade560

De acordo com Simmel as condiccedilotildees de trabalho tornaram-se tatildeo exigentes sob

a influecircncia da economia monetaacuteria e da correlativa divisatildeo do trabalho que natildeo restaria

praticamente nenhuma energia que os indiviacuteduos poderiam dispensar para as designadas

atividades de oacutecio necessaacuterias para aleacutem do trabalho Se o dia tem esta aparecircncia que

rosto teraacute a noite561 eacute pois uma questatildeo que Simmel levanta no poleacutemico texto

Infelices possidentes de 1893 A resposta a tal interrogaccedilatildeo eacute suficientemente clara as

experiecircncias mudadas dos tempos modernos a inquietaccedilatildeo as experiecircncias de choque

bem como a hiperestesia562 geral conduzem a um esvaziamento das atividades de

oacutecio trata-se de um mero desejo de soacute se quer divertir ndash soacute divertir ndash e esta eacute toda a

miseacuteria do nosso sistema de diversatildeordquo563 Por conseguinte Simmel considera que o

trabalho e o oacutecio nos tempos modernos formam uma totalidade e que os problemas do

mundo do trabalho acelerado e incrementado dominado pelo dinheiro se prolongam

nas atividades de oacutecio O tempo de oacutecio constitui-se meramente e somente como o

lado oposto das horas de trabalho e natildeo como um antiacutedoto para a alienaccedilatildeo moderna ao

que parece

559 Consultar Frisby D bdquoSimmel and Leisureldquo In Rojek C (ed) Leisure for leisure Basingstoke1989 pp 75ndash91560 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295561 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295562 Simmel G Soziologische Aesthetik Gesamtausgabe vol5 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p211563 Simmel G bdquoInfelices possidentesldquo Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 p295

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A distinccedilatildeo entre fins e meios constitui-se como uma problemaacutetica central na

teoria da cultura Simmel Se o mundo do trabalho assalariado se caracteriza por relaccedilotildees

de propoacutesito e finalidade nas vaacuterias esferas da cultura por sua vez ocorre a

possibilidade de irrupccedilatildeo de momentos nos quais se opera uma rotaccedilatildeo de eixos564

segundo a qual as objeccedilotildees culturais se tornam formas autoacutenomas que jaacute natildeo podem ser

entendidas como meios para um fim Este processo apresenta duas possibilidades a

criaccedilatildeo de um mundo independente que se desprende como contra-imagem positiva de

uma vida quotidiana alienada ou a criaccedilatildeo de um mundo independente que surge ao

indiviacuteduo como estranho e hostil agrave vida e se volta contra ele tal como descrito na

trageacutedia da cultura Enquanto que para Simmel a autonomizaccedilatildeo progressiva da

economia e da tecnologia provoca de um modo mais contundente a configuraccedilatildeo da

segunda destas duas possibilidades expostas a autonomizaccedilatildeo progressiva da arte

afigura-se por sua vez como um domiacutenio de merecido enaltecimento aos olhos do

filoacutesofo natildeo obstante as suas advertecircncias contra formas extremas de lart pour lart

Pois de acordo com o pensamento de Simmel conquanto a arte seja tambeacutem

ela determinada pela loacutegica do dinheiro (tal como por exemplo a exposiccedilatildeo de arte

com a sua curta meia-vida565) este domiacutenio cultural possui ainda ndash assim o afirma o

filoacutesofo ndash um potencial libertador real permitindo a abertura para uma distacircncia

fecunda para as coisas O conceito de arte segundo Simmel ndash e de um modo que eacute

particularmente relevante no acircmbito do seu conceito de filosofia ndash entrecruza-se com as

perspetivaccedilotildees relativas ao conceito de contemplaccedilatildeo a este respeito assim escreve

Simmel a arte e a sua experiecircncia permite-nos mudar o alcance da visatildeo na qual nos

colocamos original e naturalmente em relaccedilatildeo agrave realidade566

As reflexotildees de Simmel sobre grandes personalidades artiacutesticas como Goethe e

Rembrandt revelam igualmente que no acircmbito da produccedilatildeo artiacutestica de obras se torna

possiacutevel a configuraccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o geral a qual por sua vez

natildeo impotildee um distanciamento entre o trabalho e o seu produtor ao contraacuterio do que

acontece com o produto industrial que se baseia pois na divisatildeo do trabalho Tal

atividade a produccedilatildeo artiacutestica poderia ser compreendida com devida justeza como

564 Simmel G Lebensanschauung vier metaphysische Kapitel Gesamtausgabe vol16 Fitzi GRammstedt O (ed) Frankfurt a M 1999 p245565 Simmel G Ueber Kunstausstellungen Gesamtausgabe vol17 Koumlhnke KC (ed) Frankfurt a M2005 pp 242ndash250566 Simmel G Soziologische Aesthetik Gesamtausgabe vol5 Frisby DKoumlhnke KC (ed)Frankfurt a M 1989 p209

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uma atividade natildeo alienada concretizada segundo o talento pessoal e individual

permanecendo por seu turno orientado para a obra como que convocando o conceito

de poiesis Trata-se igualmente de uma experiecircncia especial de tempo que rompe com

a vida quotidiana e nos liberta da ordem temporal objetiva do trabalho natildeo se

apresentando orientada para a produccedilatildeo de um trabalho ndash de acordo com Simmel a

atividade de produccedilatildeo artiacutestica poderia ser perspetivada nas suas potencialidades de

realizaccedilatildeo ou efetuaccedilatildeo da aventura

A caracteriacutestica formal da aventura daacute conta justamente dessa possibilidade de

irrupccedilatildeo de uma situaccedilatildeo que permite ao indiviacuteduo cair da contiguidade da vida567

Ao mesmo tempo a aventura proporciona um sentimento de unidade interior que a

distingue de outros episoacutedios da vida aproximando-a da experiecircncia da obra de arte A

aventura oferece uma liberdade que nem o trabalho nem os prazeres quotidianos

proporcionam e como tal uma interrupccedilatildeo do quotidiano que pode ser perspetivada

como uma situaccedilatildeo afim agrave experiecircncia da festa concebida por sua vez como um

permanente candidato agrave definiccedilatildeo ou agrave exemplificaccedilatildeo de experiecircncias de oacutecio568 Num

outro sentido a aventura partilha ainda a inquietaccedilatildeo e o sensacionalismo com a

experiecircncia moderna do tempo O conceito mais proacuteximo de uma possiacutevel definiccedilatildeo de

uma experiecircncia de oacutecio poderia ser encontrado assim sustentamos na noccedilatildeo

simmeliana de convivecircncia

A convivecircncia eacute segundo Simmel uma forma luacutedica social569 no acircmbito da

qual formas de sociabilidade podem ser exercidas sem que os envolvidos sigam

diretamente interesses concretos Tal poderaacute ser claramente encontrado nos haacutebitos da

conversaccedilatildeo social A conversaccedilatildeo social distingue-se da conversaccedilatildeo diaacuteria pelo facto

de na seriedade da vida as pessoas falarem acerca de conteuacutedos que querem comunicar

ou sobre os quais querem comunicar ndash na convivecircncia poreacutem a conversaccedilatildeo torna-se

um fim em si mesma570 Neste sentido e tal como a perspetivamos a descriccedilatildeo de

convivecircncia no sentido da praxis assim proposta por Simmel traduz com efeito

diversos aspetos que sugerem que tal situaccedilatildeo social ndash a convivecircncia ndash poderia com

567 Simmel G Das Abenteuer Gesamtausgabe vol14 Kramme RRammstedt O (ed) Frankfurta M 1996 p168568 Consultar Pieper J Muszlige und Kult Werke in acht Baumlnden vol6 Hamburg 1999569 Simmel G Soziologie der Geselligkeit Gesamtausgabe vol12 Kramme RRammstedt O (ed)Frankfurt a M 1996 pp177ndash193570 Simmel G Soziologie der Geselligkeit Gesamtausgabe vol12 Kramme RRammstedt O (ed)Frankfurt a M 1996 p187

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devida justeza ser tomada como exemplo de uma experiecircncia de oacutecio na

modernidade571

No discurso popular o termo oacutecio encontra-se frequentemente associado agrave

noccedilatildeo de des-aceleraccedilatildeo Segundo tal aceccedilatildeo o oacutecio representaria o oposto do ritmo

agitado da vida quotidiana podendo ser alcanccedilado e cumprido vivendo conscientemente

o dia mais lento572 Como tal o oacutecio desacelerado poderia ser perspetivado como um

contraprojeto relativamente a uma experiecircncia de modernidade que eacute tatildeo caracteriacutestica

quanto deploraacutevel mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo Perante tal quadro cultural poetas e

escritores tecircm-se ocupado criticamente com as tendecircncias de mobilizaccedilatildeo e aceleraccedilatildeo

como as observaccedilotildees de Goethe sobre o ldquovelocifeacutericordquo573 ou as observaccedilotildees de Musil

sobre o ldquoAcelerismordquo comprovam574 De particular importacircncia apresenta-se a

descoberta formulada por Heinrich Heine em 1843 a propoacutesito da abertura das

primeiras linhas ferroviaacuterias Os conceitos elementares de tempo e espaccedilo tornaram-se

flutuantes No caminho-de-ferro o espaccedilo eacute aniquilado e tudo o que nos resta eacute o

tempordquo575 Uma vez que a aceleraccedilatildeo teacutecnica permite ultrapassar mais rapidamente as

distacircncias geograacuteficas a relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo altera-se a favor deste uacuteltimo por

outras palavras na modernidade emerge uma de-espacializaccedilatildeo e uma

temporalizaccedilatildeo576 Para aqueles que sofrem de aceleraccedilatildeo moderna o oacutecio natildeo

obstante apresenta-se como uma opccedilatildeo que permite o escape a este desenvolvimento

ou pelo menos a sua suspensatildeo conquanto temporaacuteria Pois o oacutecio aparece duplamente

determinado por uma de-temporalizaccedilatildeo por um lado e ndash como se acrescenta no

paraacutegrafo seguinte ndash uma tendecircncia para a espacializaccedilatildeo por outro

Hartmut Rosa com efeito debruccedilou-se sobre as causas do lamento da aceleraccedilatildeo

geral da vida na modernidade em numerosos escritos Segundo o filoacutesofo o progresso

teacutecnico promove uma aceleraccedilatildeo da produccedilatildeo do transporte e da comunicaccedilatildeo

571 Sobre a sociabilidade no contexto do jogo consultar Schlitte A Das symbolische Spiel bei GeorgSimmel In Kowalewicz MH (ed) Spiel Facetten seiner Ideengeschichte Muumlnster 2013 pp55-71572 Gruumln A Vom Zauber der Muszlige Freiburg 2008 p34573 Goethe JW Brief an G H L Nicolovius November 1825 In Saumlmtliche Werke BriefeTagebuumlcher und Gespraumlche vol10 (37) Die letzten Jahre 1823ndash1828 Fleig H (ed) Frankfurt a M1993 p334574 Musil R Der Mann ohne Eigenschaften Reinbek 1970 p402575 Heine H Lutetia Berichte uumlber Politik Kunst und Volksleben Saumlmtliche Schriften vol5 BrieglebK (ed) Muumlnchen 1975 p449576 Schroer M Raum Zeit und soziale Ordnung In Ernst P Strohmaier A (ed) Raum Konzepte inden Kuumlnsten Kultur- und Naturwissenschaften Baden Baden 2013 p14

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reduzindo em uacuteltima consequecircncia o tempo necessaacuterio por unidade de quantidade577

Neste sentido e de acordo com Rosa a aceleraccedilatildeo teacutecnica liberta recursos de tempo

oferecendo ndash potencialmente ndash ocasiotildees para a eventual desaceleraccedilatildeo da vida humana

Todavia tal determinaccedilatildeo das sociedades modernas natildeo se afigura compatiacutevel com as

potencialidades teoacutericas da aceleraccedilatildeo teacutecnica pois em verdade os recursos de tempo

das nossas sociedades revelam-se cada vez mais escassos apesar da economia de tempo

decorrente do desenvolvimento tecnoloacutegico578

As observaccedilotildees de Rosa sustentam igualmente que a desaceleraccedilatildeo natildeo pode

constituir o princiacutepio formativo temporal do oacutecio Se tal fosse o caso o oacutecio encontrar-

se-ia passiacutevel de ser reduzido a um estado no acircmbito do qual se disponibilizaria mais

tempo para uma determinada atividade ou no acircmbito do qual haveria menos a fazer

num determinado periacuteodo de tempo No entanto e tal como assinala Rosa a

produtividade absoluta natildeo deve ser determinada como o criteacuterio decisivo do oacutecio ndash

pode-se ser muito produtivo e tambeacutem muito improdutivo numa vivecircncia de oacutecio ndash

mas sim a perspetiva do indiviacuteduo experiente em torno deste (natildeo-) fazer Assim se

natildeo eacute o periacuteodo de tempo em que algo eacute feito que caracteriza o oacutecio mas o modo de

fazer-se a si proacuteprio a des-temporizaccedilatildeo oferece-se como um termo promissor para a

descriccedilatildeo temporal do oacutecio Tal caracterizaccedilatildeo coincide com posiccedilotildees teoacutericas que

definem o oacutecio como devaneio do tempo como uma esfera de intemporalidade

leve579 ou como uma intemporalidade limitada580

Para uma compreensatildeo mais precisa acerca do que a destemporalizaccedilatildeo do oacutecio

pode consistir algumas consideraccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre o tempo afiguram-se aqui

pertinentes Em primeiro lugar haacute que fazer uma distinccedilatildeo entre duas noccedilotildees opostas de

temporalidade que estatildeo profundamente enraizadas na histoacuteria cultural europeia Henri

Bergson observou que o tempo eacute perspetivado na maioria das vezes [como] um meio

homogecircneo581 ou seja como uma condiccedilatildeo fiacutesica objetiva determinada pelas leis da

577 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 Rosa H Beschleunigung und Entfremdung Entwurf einer kritischen Theorie spaumltmodernerZeitlichkeit Frankfurt aM 2013578 Rosa H Bewegung und Beharrung in modernen Gesellschaften Eine beschleunigungstheoretischeZeitdiagnose In Kodalle K Rosa H (ed) Rasender Stillstand Beschleunigung desWirklichkeitswandels Konsequenzen und Grenzen Wuumlrzburg 2008 p13579 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p11580 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p45581 Bergson H Zeit und Freiheit Hamburg 1994 p70

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linearidade uniformidade e unidirecionalidade Este tempo cosmoloacutegico progride

contiacutenua e consistentemente transformando irrevogavelmente o futuro no passado De

um modo distinto existe ainda a ideia de um tempo fenomenoloacutegico que soacute emerge na

experiecircncia do proacuteprio indiviacuteduo tal forma subjetiva de tempo eacute caracterizada pela

caracteriacutestica de singularidade para o experimentador e pela qualidade da duraccedilatildeo582

A filosofia desenvolveu termos distintos para designar estas duas formas de

temporalidade A distinccedilatildeo entre tempo cosmoloacutegico e fenomenoloacutegico remonta agrave

teoria narrativa de Paul Ricœur apresentando-se como anaacuteloga da distinccedilatildeo corrente

entre tempo objetivo e subjetivo presente em outras abordagens teoacutericas de

tempo583

Aleacutem destas diferenccedilas terminoloacutegicas as conceccedilotildees dicotoacutemicas acerca do

tempo possuem a sua origem comum na teologia de Agostinho de Hipona que

estabelecera a sua teoria do tempo no Deacutecimo Primeiro Livro de Confessiones

Agostinho natildeo considera o tempo como um mero facto externo pela primeira vez na

histoacuteria da filosofia o tempo eacute perspetivado agrave luz da existecircncia de uma duraccedilatildeo

interna Enquanto o tempo exterior decorre constantemente e pode ser medido e

comparado a sua perceccedilatildeo interior e espiritual atinge uma qualidade completamente

diferente Soacute a alma humana segundo Agostinho conhece a presenccedila do presente

assim como a presenccedila do passado (a memoacuteria) e a presenccedila do futuro (a

expectativa) Pois estes trecircs estatildeo na alma e em outros lugares eu natildeo os vejo584

Segundo Agostinho o tempo espiritual transcende o tempo objetivamente fiacutesico tal

apreciaccedilatildeo do tempo subjetivo eacute com efeito motivada religiosamente encontrando-se

intimamente ligada ao seu interesse pela contemplaccedilatildeo divina ndash Deus criador do tempo

estaacute fora do tempo (isto eacute na eternidade) e o proacuteprio Agostinho se vecirc a si mesmo

como um ser humano finito derretido no tempo Natildeo obstante Agostinho concebe a

simultaneidade do passado do presente e do futuro na alma humana agrave luz da conceccedilatildeo

de uma imagem conquanto fraacutegil da eterna unidade divina agrave qual o ser humano aspira

582 Polkinghorne DE Narrative Psychologie und Geschichtsbewuszligtsein Beziehungen undPerspektiven In Juumlrgen Straub J (ed) Erzaumlhlung Identitaumlt und historisches Bewuszligtsein Diepsychologische Konstruktion von Zeit und Geschichte Frankfurt a M 1998 p35583 Ricœur P Zeit und Erzaumlhlung Muumlnchen 1991 p390 Consultar Roumlmer I Das Zeitdenken beiHusserl Heidegger und Ricœur Dordrecht 2010 pp254ndash275584 Augustinus Confessiones XI 26 (565) No original bdquo[hellip] tempora sunt trira praesens de praeteritispraesens de praesentibus praesens de futuris sunt enim haec in anima tria quaedam et alibi ea non video[hellip]ldquo

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a unir-se atraveacutes da contemplaccedilatildeo585 Assim se o tempo interior permite a uniatildeo do

homem a Deus o tempo exterior por sua vez revela-se insignificante Agostinho

privilegia com efeito o tempo interior pois este relaciona-se intimamente com as

noccedilotildees de contemplaccedilatildeo eternidade divina e intemporalidade

Todavia e como bem sabemos a praacutetica quotidiana moderna afigura-se muitas

vezes orientada para e segundo o tempo objetivo A razatildeo para tal situaccedilatildeo apresenta-se

tatildeo simples quanto pragmaacutetica atraveacutes da objetivaccedilatildeo do tempo mediante a sua

mensurabilidade a comparabilidade e o planeamento requeridos pelo desempenho das

tarefas quotidianas encontram-se possibilitados e cumpridos Na vida quotidiana o

tempo objetivo transfigura-se numa mercadoria utilizaacutevel que eacute consumida para agir e

alcanccedilar determinadas metas como o tempo enquanto recurso natildeo se encontra

disponiacutevel indefinidamente ndash eacute pois um bem escasso ndash constitui-se ele mesmo objeto

de consideraccedilotildees econoacutemicas586 O tempo eacute por conseguinte alocado para determinados

fins administrado em calendaacuterios e planeado de tal forma que o maior benefiacutecio

possiacutevel pode ser derivado dele Tambeacutem o designado tempo livre natildeo se afigura isento

de tais consideraccedilotildees de uso no sentido real uma vez que eacute desejaacutevel e expectaacutevel que o

empregadotrabalhador o utilize tendo em vista a regeneraccedilatildeo da sua forccedila de trabalho

(e tambeacutem o desenvolvimento do consumo de bens) A perceccedilatildeo subjetiva do tempo

natildeo eacute plenamente passiacutevel de ser abolida na vida quotidiana todavia a temporalidade

quotidiana ou normal apresenta-se caracterizada pelo facto de que o tempo subjetivo

natildeo se consiste numa quantidade independente Pelo contraacuterio o tempo subjetivo parece

estar ligado ao tempo objetivo dominante adquirindo significado enquanto objeto de

comparaccedilatildeo a designada pressatildeo do tempo por exemplo parece traduzir um certo

modo de perceccedilatildeo subjetiva vivenciada quando temos pouco tempo objetivo disponiacutevel

para cumprir uma tarefa ndash por outro lado o teacutedio tambeacutem ele um modo de perceccedilatildeo

subjetiva parece indicar uma situaccedilatildeo de excesso de tempo objetivo como que fazendo

correr o reloacutegio muito lentamente

O tempo de oacutecio representa pois a possibilidade de um desvio do tempo

normal diaacuterio pois os caacutelculos de benefiacutecios temporais natildeo desempenham aiacute qualquer

funccedilatildeo Para o indiviacuteduo que vivencia uma experiecircncia de oacutecio o tempo cosmoloacutegico

585 Augustinus Confessiones XI 39 (587) No original bdquo[hellip] donec in te confluam purgatus et liquidusigne amoris tuildquo586 Consultar Safranski R Zeit Was sie mit uns macht und was wir aus ihr machen Muumlnchen 2015pp106ndash130

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natildeo eacute totalmente abolido mas jaacute natildeo se afigura concebido como um recurso escasso e

constantemente mensuraacutevel natildeo se traduzindo pois num objeto de urgecircncia

permanente Hans Blumenberg distinguiu o tempo-de-ter-que-fazer utilitaacuterio (Muss-

Zeit) que designa a parte da vida individual ocupada pelas exigecircncias da

autopreservaccedilatildeo do tempo-de-poder-fazer (Kann-Zeit) definido como um espaccedilo

livre de realizaccedilotildees indefinidas587 No tempo-de-ter-que-fazer o ser vivo reage agraves suas

necessidades existenciais enquanto o tempo-de-poder-fazer apresenta-se libertado de

tais constrangimentos tornando possiacutevel o preenchimento individual do tempo de vida

com algum conteuacutedo significativo

De acordo com Blumenberg poder-se-ia sustentar que enquanto a vida

quotidiana parece estar dominada por um tempo-de-ter-que-fazer as potencialidades

oferecidas pelo tempo-pode-ser-fazer representam por seu turno uma condiccedilatildeo

necessaacuteria para o oacutecio Por conseguinte a temporalidade especiacutefica do oacutecio tambeacutem

poderaacute ser compreendida como o resultado do seu caraacuteter autorreferencial conquanto o

tempo diaacuterio ou o tempo-de-ter-que-fazer se destina agrave execuccedilatildeo de tarefas certas

necessaacuterias e propositadas no tempo-de-poder-fazer proacuteprio do oacutecio natildeo eacute exigida uma

divisatildeo dos recursos de tempo disponiacuteveis em diferentes tarefas decorrentes de

restriccedilotildees externas ndash porque por definiccedilatildeo tais restriccedilotildees natildeo existem Na ausecircncia de

tais exigecircncias o indiviacuteduo moderno pode na experiecircncia de oacutecio colocar-se no centro

da sua reflexatildeo e da sua accedilatildeo autoacutenoma ou autodeterminada considerando que tal

situaccedilatildeo se afigure cumprida agrave luz da possibilidade de natildeo imposiccedilatildeo de um tempo

cosmoloacutegico ou tambeacutem dito objetivo De facto nos comentaacuterios narrativos

autobiograacuteficos por exemplo verifica-se a descriccedilatildeo de experiecircncias de presenccedila e

fenoacutemenos de destemporalizaccedilatildeo no acircmbito dos quais a sucessatildeo do tempo exterior

perde o seu significado Em verdade tal estado um estado elevado de tempo eacute na

maioria dos casos apenas temporaacuterio ndash ateacute que as exigecircncias da vida quotidiana

retornem novamente A experiecircncia do oacutecio constitui-se portanto num estado de

tempo excecional que soacute pode atingir um significado (temporaacuterio) por contraste com o

fundo normal de um tempo quotidiano588 Neste sentido o tempo de oacutecio tambeacutem

pode ser descrito como uma heterocronia

587 Blumenberg H Lebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p291588 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32

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Como compreender tal conceito ndash heterocronia A este respeito poder-nos-

iacuteamos sustentar no conceito jaacute avanccedilado por Michel Foucault de heterotopia589 que

parece integrar uma certa referecircncia agrave temporalidade lrsquoheacuteteacuterotopie [qui] se met agrave

fonctionner agrave plein lorsque les hommes se trouvent dans une sorte de rupture absolue

avec leur temps traditionnelrdquo590 Aparentemente para aleacutem das exigecircncias sistemaacuteticas

o modelo de heterotopia de Foucault inclui de uma certa forma a ideia de uma

conceccedilatildeo especiacutefica do tempo que possui uma designaccedilatildeo anaacuteloga Foucault recorre ao

exemplo do museu e da biblioteca que o filoacutesofo interpreta em termos de uma extensatildeo

de tempo pretendida Os exemplos que rompem com a estruturaccedilatildeo tradicional ou

quotidiana do tempo satildeo segundo Foucault museus e bibliotecas ndash e bem assim

lugares claacutessicos de oacutecio o tempo passado seria neles preservado pois tais lugares

assim perspetivados afiguram-se como que libertos das restriccedilotildees temporais como se

se encontrassem fora do tempo Segundo Foucault uma segunda forma de heterotopia

temporal consiste na heacuteteacuterotopie chronique que o filoacutesofo francecircs exemplifica atraveacutes

de acontecimentos culturais como feiras de divertimento e aldeias de feacuterias Nestes

lugares o tempo natildeo eacute acumulado mas celebrado como algo fugaz ndash laquode plus futile de

plus passager de plus preacutecaireraquo591 Apesar da dicotomia conceptual entre eternidade e

efemeridade ambas as formas de heterotopia do tempo assemelham-se na medida em

que o tempo natildeo estaacute disponiacutevel neles como recurso sendo sim celebrado como um

fenoacutemeno independente Todavia o simples facto de ter tempo de ter tempo livre ndash e

de assim se sugerir a rutura com a temporalidade quotidiana ndash natildeo configura por si

mesmo um criteacuterio suficiente para o oacutecio afinal de contas o tempo natildeo gasto ainda

estaacute disponiacutevel como um recurso para accedilotildees futuras relacionadas com objetivos e pode

assim tornar-se objecto de consideraccedilotildees econoacutemicas592 Tal como adverte Blumenberg

589 Em analogia com Foucault o espaccedilo de oacutecio seria um espace autre de tipo diferente e distinto(proacuteprio) dos espaccedilos habituais bem como excluiacutedo e fechado E o tempo heterocronia designaria algoque natildeo se determina sob o signo do habitual natildeo se apresentando regulamentado segundo o cursoregular das coisas mas experimentando uma determinaccedilatildeo individual e por consequecircncia uma atribuiccedilatildeode significado a heterocronia independentemente de ser prolongada ou restrita encontra-se em estreitaligaccedilatildeo (funcionando como um acto de justificaccedilatildeo) com as instituiccedilotildees cujo significado eacute alimentado poraquela ndash nenhum museu sem eternidade intencional nenhum festival sem limite temporal do qual extrai asua solenidade em primeiro lugar Como a heterocronia o oacutecio tambeacutem segue o seu proacuteprio horaacuterio namedida em que quase nunca abrange uma vida inteira mas apenas uma parte seja de curto ou de longoprazo 590 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p759591 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p760592 Figal G Muszlige als Forschungsgegenstand In Muszlige Ein Magazin 11 (2015)p 19

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a margem de manobra temporal do tempo-de-ter-que-fazer natildeo eacute suficiente para ter

um tempo preenchido593

Qual eacute entatildeo a diferenccedila fundamental que separa o tempo diaacuterio do tempo de

oacutecio A liberdade relativamente agrave pressatildeo externa do tempo constitui de facto uma

condiccedilatildeo necessaacuteria para o oacutecio ndash todavia o elemento decisivo determina-se como o

modo segundo o qual o indiviacuteduo percebe esse espaccedilo livre no tempo Neste sentido

importaria asseverar o tempo de oacutecio eacute portanto determinado pela sua qualidade

fenomenoloacutegica a experiecircncia do oacutecio ocorre ndash e assim poderiacuteamos concluir ndash quando o

sujeito jaacute natildeo se sente compelido a comparar a sua proacutepria perceccedilatildeo do tempo (com o

tempo externo) como que se esquecendo justamente ainda que por momentos de tal

diferenccedila ou dicotomia O tempo de oacutecio eacute pois um tempo proacuteprio594 (Eigen-Zeit no

sentido literal) na experiecircncia de oacutecio apenas o tempo subjetivo adquire significado

enquanto o tempo objetivo natildeo possui qualquer relevacircncia A partir de tais

consideraccedilotildees poder-se-ia explicitar de um modo mais claro o efeito da

destemporalizaccedilatildeo que emerge enquanto desvio heteroacutecrono relativamente ao

tempo quotidiano trata-se pois de perspetivar a possibilidade de uma separabilidade

entre o subjetivo e o objetivo entre o tempo fenomenoloacutegico e o tempo cosmoloacutegico Eacute

precisamente esta possibilidade de separabilidade que determina o tempo de oacutecio

repousado na experiecircncia e natildeo mensuraacutevel595 Ao contraacuterio do caso normal da vida

quotidiana o tempo objetivo natildeo se introduz na experiecircncia do oacutecio como uma

referecircncia para a perceccedilatildeo subjetiva do tempo Na sua experiecircncia de oacutecio o sujeito

pode natildeo obstante sentir a passagem do tempo ndash mas tal situaccedilatildeo natildeo determina a sua

fruiccedilatildeo enquanto tal Ao inveacutes de comparar planear e utilizar intervalos de tempo ndash

situaccedilotildees que configuram a temporalidade objetiva ndash o indiviacuteduo pode concentrar-se

de um modo tanto quanto possiacutevel pleno na atividade que para si mesmo escolheu

realizar Se o tempo fenomenoloacutegico jaacute natildeo eacute comparado com o tempo cosmoloacutegico o

tempo em si mesmo pode ser objeto de olvido por parte do sujeito do oacutecio tal como

elucida Figal assim que se tem tempo para fazer algo o tempo jaacute natildeo desempenha um

papel Certamente o tempo natildeo para mas eacute singularmente suspenso596 Ao sujeito do

oacutecio a singular ldquosuspensatildeordquo do tempo parece sugerir que o tempo (fenomenoloacutegico)

593 Blumenberg H Lebenszeit und Weltzeit Frankfurt aM 1986 p291594 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995595 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p45596 Figal G Muszlige als Forschungsgegenstand In Muszlige Ein Magazin 11 (2015) 19

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ficara completamente parado enquanto o tempo (cosmoloacutegico) permanece

despercebido

Para ilustrar tal situaccedilatildeo alguns conceitos filosoacuteficos poderatildeo ser apontados

tendo em vista a elucidaccedilatildeo conceptual da possibilidade da perceccedilatildeo individual do

tempo se determinar para aleacutem da objetividade cosmoloacutegica O termo alematildeo Weile

(ldquopermanecircncia certo espaccedilo de tempordquo) pode ser aplicado aos tempos de oacutecio como um

caso especial de experiecircncia subjetiva do tempo Figal descreve a dimensatildeo temporal do

oacutecio como um periacuteodo de tempo que se estabelece em Weile597 ou atraveacutes da forma

verbal ativa de permanecer (verweilen) oacutecio significar ser capaz (poder) de

permanecer (verweilen) assim tambeacutem elucida Bruumlhweiler598 No mesmo tom o oacutecio

realiza-se num Verweilen (permanecer) livre e significativo no tempo sustenta Riedl599

Entre tais posiccedilotildees as observaccedilotildees de Michael Theunissen sobre o Verweilen

(permanecer) afiguram-se assaz pertinentes pois o filoacutesofo descreve o oacutecio como uma

possibilidade de concentraccedilatildeo no sempre presente600 Somente aqueles que natildeo se

importam com o futuro e tambeacutem natildeo pensam nos seus sofrimentos passados podem

verweilen (permanecer) Concentrando-se no presente a pessoa que verweilt

(permanece) sente portanto como que um aliacutevio601 Aleacutem disso Verweilen

(permanecer) pode significar um certo tipo de felicidade conceccedilatildeo que Theunissen

define na sua iacutentima ligaccedilatildeo com os conceitos aristoteacutelicos de teoria e de eudaimoniacutea

Esta eacute a felicidade que Aristoacuteteles pode atribuir ao comportamento teoacuterico no mundo pois

concebe a teoria como um observar e assim a coloca no mesmo niacutevel de uma

contemplaccedilatildeo esteacutetica602

Theunissen recusa proclamar a existecircncia equivalente ou inclusivamente

independente de um tempo subjetivo face ao tempo objetivo pois o que se faz

independente no tempo-do-ego natildeo eacute em verdade senatildeo uma consumaccedilatildeo do tempo

pelos sujeitos humanos a consumaccedilatildeo de um tempo cosmoloacutegico que natildeo eacute subjetivo

597 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32598 Bruumlhweiler H Musse (scholeacute) ein Beitrag zur Klaumlrung eines urspruumlnglich paumldagogischen BegriffsKoumlln 1971 p11599 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 20600 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291601 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291602 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291

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em si603 Natildeo obstante para Theunissen a possibilidade de uma experiecircncia de

felicidade depende de um modo de perceccedilatildeo que jaacute natildeo presta atenccedilatildeo ao tempo

homogeneamente progressivo

O momento eacute adequado para a irrupccedilatildeo suacutebita Verweilen (permanecer) proporciona

felicidade porque o seu objeto desligado do meu anteprojeto relativamente ao futuro

aparece de repente sob uma luz nova e desconhecida604

Segundo Theunissen a felicidade praacutetica que resulta da sintetizaccedilatildeo dos

tempos605 poderia constituir uma contraparte ao Verweilen (permanecer) concebido

por seu turno como um prolongamento do tempo orientado para a experiecircncia no

presente No acircmbito da experiecircncia da ldquofelicidade praacuteticardquo tal como perspetivada por

Theunissen o sujeito natildeo se dissolve no presente mas medeia o seu passado presente e

futuro numa experiecircncia de continuidade que lhe permite construir uma identidade

supratemporal a qual pode determinar-se como possibilidade de autorrealizaccedilatildeo praacutetica

agrave luz do conceito de autonomia

Neste sentido e ainda de acordo com Theunissen uma conceccedilatildeo linear

acelerada do tempo poderia ser complementada por uma conceccedilatildeo riacutetmica e ciacuteclica do

tempo Tal conceccedilatildeo riacutetmica e ciacuteclica do tempo encontra-se claramente em tensatildeo com

o conceito linear do tempo que hoje conhecemos como dominante O conceito de

tempo linear enfatiza com efeito a continuidade do fluxo irreversiacutevel de

acontecimentos que flui sem pontos inicial e final segundo uma loacutegica sempre mais

acelerada e mais incrementada tal como a reconhecemos no contexto da modernidade

tardia A abertura do tempo a este sentido de infinito afigura-se natildeo obstante tentadora

e desafiadora tal como observa Wendorff ldquoUm mundo tatildeo moderno de tempo linear

natildeo tem pontos fixos em nenhum lugar mas tambeacutem natildeo oferece paz em nenhum

lugarrdquo606

Segundo este quadro cada momento possui a sua existecircncia irrevogavelmente

fugaz sem a possibilidade de um aprofundamento real Em lugar algum o ser humano

pode ancorar-se firmemente na corrente do tempo ndash e o seu sentimento mais premente

consiste em desejar adaptar-se tanto quanto lhe for possiacutevel agrave velocidade do tempo que

lhe foi atribuiacutedo a fim de com ela se tornar sincroacutenico preenchendo-a de significado e

603 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p303604 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p292605 Theunissen M Negative Theologie der Zeit Frankfurt a M 1991 p291606 Wendorff R Der Mensch und die Zeit Opladen 1988 pp34-35

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conteuacutedo Na era da vida acelerada os (cada vez mais) temidos perigos do futuro

determinam o presente o presente encontra-se parcialmente coberto pelo futuro e ao

mesmo tempo o futuro estaacute sobrecarregado com os problemas do presente (repare-se

por exemplo que as sociedades modernas dificilmente podem resolver os seus

problemas ecoloacutegicos de outra forma que natildeo seja sobrecarregando os custos de

eliminar o seu lixo civilizacional no futuro) Por outro lado o constante progresso do

conhecimento torna difiacutecil a adaptaccedilatildeo ao futuro no presente Paradoxalmente quanto

mais raacutepido cresce o nuacutemero de inovaccedilotildees mais difiacutecil se torna prever situaccedilotildees de vida

futuras

Na modernidade tardia e sob a constante interaccedilatildeo entre inovaccedilatildeo e nostalgia a

diferenccedila entre conhecido e desconhecido afigura-se profundamente reduzida O

exoacutetico ou o novo natildeo se apresentam mais estranhos ao sujeito moderno do que o antigo

ou o familiar Com efeito no acircmbito da modernidade temporalmente acelerada cujo

curso se desdobra ao longo de experiecircncias cada vez mais fugazes dos tempos presentes

o anteriormente ldquonovordquo torna-se pronta e rapidamente obsoleto velho Dir-se-ia com

efeito que o original o claacutessico e o perene possuem a vantagem de dificilmente

envelhecerem no sentido histoacuterico ndash mas o novo ao inveacutes ameaccedila transfigurar-se

segundo uma celeridade inexoraacutevel em velho

Contra tais tendecircncias um tempo qualitativo perspetivado como ldquotempo-

proacutepriordquo607 desenvolvido no acircmbito de uma vivecircncia de oacutecio permitiria a abertura de

horizontes humanos da experiecircncia ndash desde logo a experiecircncia-de-si A hegemonia de

uma conceccedilatildeo linear do tempo conduz-nos ao esquecimento de que nos encontramos

inseridos numa complexidade de ritmos temporais e de mareacutes de realidade Distintas

situaccedilotildees naturais e relacionamentos humanos exigem tempos proacuteprios de

desenvolvimento e de amadurecimento A agricultura por exemplo eacute

predominantemente orientada segundo ciclos naturais mas a distribuiccedilatildeo dos seus

produtos eacute determinada por padrotildees de tempo lineares Atraveacutes da mecanizaccedilatildeo e da

transformaccedilatildeo quiacutemica da produccedilatildeo de alimentos estruturas temporais cada vez mais

lineares penetram no reino ciacuteclico da natureza e no reino agriacutecola O sujeito da

modernidade tardia por sua vez sofre a perda do sentido dos ritmos naturais608 tal

607 Nowotny H Eigenzeit Entstehung und Strukturierung eines Zeitgefuumlhls Frankfurt aM 1995608 Benz E Akzeleration der Zeit Mainz 1977 Consultar Luumlbbe H Der verkuumlrzte Aufenthalt in derGegenwart In Kemper P (ed) bdquoPostmodemeldquo Frankfurt 1988 pp145-164

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como assinala Benz ndash conquanto estes possam ainda ser parcialmente experienciados no

espaccedilo do idiacutelio A este respeito leiamos Hans-Georg Gadamer

Eacute uma unilateralidade voluntaacuteria da modernidade que a coisa mais importante aqui eacute

poder-fazer poder-controlar Mas tambeacutem vemos que isto natildeo eacute tudo haacute tambeacutem a

hora da morte e a hora do nascimento Eacute precisamente aqui que nos chega tambeacutem a

incontrolabilidade do tempo das coisas que natildeo podemos-fazer Inclusivamente coisas

que acontecem naturalmente e ritmicamente Haacute um esquema baacutesico de experiecircncia

riacutetmica do tempo em que o fim estaacute ligado ao iniacutecio Olhamos para o reloacutegio quando

queremos ver como estatildeo as coisas com o tempo O reloacutegio eacute algo que liga constantemente

o fim com o iniacutecio nomeadamente atraveacutes do movimento circular E assim tudo no nosso

mundo estaacute entrelaccedilado com o movimento de autorrenovaccedilatildeo todos noacutes conhecemos o

ritmo do acordar e do dormir ou aquele momento particular em que a respiraccedilatildeo se

transforma em exalaccedilatildeo de que Paul Celan falou609

E continuamente

E assim se pode ver em toda a parte este padratildeo baacutesico do riacutetmico no qual noacutes mesmos

estamos inseridos como seres vivos E talvez toda a literacia real consista em natildeo

desaprender esta reconexatildeo riacutetmica e experimentaacute-la no oacutecio em tudo o que absorvemos

no mundo e na experiecircncia610

A formulaccedilatildeo moderna dos distintos conceitos de trabalhordquo e de oacutecio ndash bem

como as relaccedilotildees entre as diferentes realidades que designam ndash constitui a possibilidade

da determinaccedilatildeo e da regulaccedilatildeo do tempo como tempo de trabalho e tempo de natildeo-

trabalho Este uacuteltimo o tempo de natildeo-trabalho ndash definido tal como a sua designaccedilatildeo o

ilustra em relaccedilatildeo contraposta ao conceito de trabalho ndash diz respeito pois ao periacuteodo

do dia ou da noite que sucede ao periacuteodo laboral bem como ao domingo e ainda agraves

feacuterias (recorde-se que o periacuteodo de feacuterias concedido ao trabalhador constituiu uma

conquista histoacuterico-social que ainda natildeo se plenamente encontrava efetivada e regulada

nos iniacutecios do seacuteculo XIX) Importaria igualmente tomar em linha de conta os periacuteodos

de doenccedila enquanto parte integrante do tempo de natildeo-trabalho tal como ndash se bem

609 Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weise Maszlig (CD)Penzberg 1989 A este respeito assim escreve Gadamar Mas tambeacutem enquanto acordamos e dormimosEm alematildeo uso o termo Entschlafenen[algueacutem que natildeo mais acorda] Muito proacuteximos um do outroencontram-se o sono e a morte como o disse Heraacuteclito de modo inolvidaacutevel Poderiacuteamos ainda falar deuma das grandes particularidades dos deuses gregos pois o divino nunca dorme aqui mas estaacutepermanentemente desperto o divino natildeo conhece o ato de despertar mas este o despertar eacute de algumaforma um milagrerdquo (Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weiseMaszlig (CD) Penzberg 1989)610 Gadamer H-G Kairos Ein Diskurs uumlber die Gunst des Augenblicks und das weise Maszlig (CD)Penzberg 1989

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pretendermos tomar o ponto de vista da biografia do indiviacuteduo trabalhador ndash os anos da

infacircncia e da velhice Este quadro assim exposto assume com efeito a consideraccedilatildeo dos

complexos contornos que envolvem a relaccedilatildeo entre trabalhonatildeo-trabalho e tempo trata-

se pois de uma perspetivaccedilatildeo acerca das implicaccedilotildees entre trabalho e temporalidade

Analogamente cumpriria tomar em atenta anaacutelise a interseccedilatildeo entre

trabalhonatildeo-trabalho e o conceito de espaccedilo Em verdade a espacialidade ndash a

configuraccedilatildeo de conceccedilotildees espaciais especiais ndash determina e estabelece distintamente

os espaccedilos de trabalho (a oficina domeacutestica do artesatildeo o campo do agricultor as

primeiras faacutebricas etc) e os espaccedilos de oacutecio (o jardim e o parque o teatro o museu o

salatildeo o quarto o prado verde o barco sobre o lago etc) Assim a apreciaccedilatildeo da

oposiccedilatildeo entre trabalho por um lado e ldquotempo livrerdquo e ldquooacuteciordquo por outro exige a

consideraccedilatildeo da demarcaccedilatildeo entre espaccedilos de trabalho e espaccedilos privados uma

demarcaccedilatildeo que traduz igualmente uma envolvecircncia histoacuterico-social (conquanto nem

sempre passiacutevel de exata diferenciaccedilatildeo ndash um exemplo a evocar poderia ser o trabalho

em casa a tecelagem entre outros especialmente desempenhado por mulheres) A este

respeito o periacuteodo em torno de 1800 poderaacute apresentar-se como um momento de

transiccedilatildeo no acircmbito do qual a contraposiccedilatildeo acentuada entre espaccedilos de trabalho e

espaccedilos privados comeccedilara a implementar-se como uma nova realidade crescente

particularmente com a industrializaccedilatildeo e a proliferaccedilatildeo das faacutebricas A distinccedilatildeo entre

espaccedilos de trabalho e espaccedilos de oacutecio poderaacute ainda ser lida agrave luz de uma outra

interessante oposiccedilatildeo que se afigura elaborada segundo um certo desenvolvimento

semacircntico das noccedilotildees de cidade e de campo

Desde os tempos antigos a histoacuteria cultural tem conhecido uma infinidade de

lugares e de configuraccedilotildees espaciais que se destinam a permitir ao indiviacuteduo iniciar o

desenvolvimento da fruiccedilatildeo do oacutecio podendo em alguns casos traduzir-se como

efetivas expressotildees de uma disposiccedilatildeo individual para o oacutecio Enquanto os aristocratas

romanos por exemplo se retiravam para suas propriedades os priacutencipes modernos

encenavam o lugar da sua experiecircncia do oacutecio atraveacutes da construccedilatildeo de residecircncias

proacuteprias para tal fim geralmente integrando amplos jardins A construccedilatildeo destes

uacuteltimos tambeacutem considerados como lugares propiacutecios agrave contemplaccedilatildeo traduz uma

interessante continuidade histoacuterica que se prolonga no tempo desde a construccedilatildeo dos

jardins do mosteiro dos monges bem como dos parques da cidade nos quais os flacircneurs

burgueses do seacuteculo XIX procuravam a paz por contraste com o ruiacutedo das ruas mais

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agitadas de uma nova modernidade urbana ndash no caso de natildeo desejarem o escape da

floresta mais exoacutetica ou misteriosa ou a fuga para as paisagens arcaacutedicas da Itaacutelia O

conceito de paisagem belardquo ilustra o facto de nem todos os locais de oacutecio terem de ser

construiacutedos de raiz como tal ndash de um modo distinto certas praacuteticas espaacutecio-temporais

tais como os passeios a peacute ou as caminhadas podem transformar um qualquer local

indiferenciado num lugar de oacutecio Com efeito a cultura espacial do oacutecio manifesta-se

de forma muito variada e estaacute presente em numerosos locais o Jardim de Agostinho a

Biblioteca de Montaigne a Ilha de Rousseau e a Itaacutelia de Goethe encontram-se entre os

topoi mais culturalmente evocados do oacutecio

Tendo presente tal quadro teoacuterico alguns estudiosos do oacutecio tecircm-se dedicado agraves

suas condiccedilotildees e manifestaccedilotildees espaciais ndash o que talvez aconteccedila devido a um certo

gosto pela fenomenologia da espacialidade Vaacuterias abordagens acerca da espacialidade

do oacutecio podem aqui ser mencionadas e distinguidas tendo em conta diferentes

meacutetodos de anaacutelise dos aspetos de tal realidade e diferentes niacuteveis da sua descriccedilatildeo

Assim alguns estudos satildeo dedicados agrave descriccedilatildeo detalhada de espaccedilos concretos de

oacutecio particularmente configuraccedilotildees arquitetoacutenicas ou naturais que em virtude das suas

caracteriacutesticas se apresentam adequados para permitir ao indiviacuteduo o desenvolvimento

de situaccedilotildees de oacutecio Esta abordagem sustenta-se no pressuposto de que os espaccedilos de

oacutecio satildeo com efeito espaccedilos artificialmente construiacutedos ou produzidos de acordo com a

possibilidade de efetuaccedilatildeo de tal experiecircncia ndash satildeo pois espaccedilos criados segundo o

propoacutesito da promoccedilatildeo do favorecimento da fruiccedilatildeo do oacutecio Guumlnter Figal chama a

atenccedilatildeo para tal afinidade da experiecircncia do oacutecio com certos locais que lhe satildeo neste

sentido conformes O oacutecio procura e encontra os seus lugares e espaccedilos611

Tal observaccedilatildeo sugere vaacuterias interrogaccedilotildees quais as caracteriacutesticas que

predestinam um determinado espaccedilo como espaccedilo de oacutecio tais caracteriacutesticas revelam

modos de continuidade antropoloacutegica no acircmbito de diferentes tempos e contextos ou

ao inveacutes cada eacutepoca produz para si mesma os seus proacuteprios espaccedilos especiacuteficos Tal

como Figal esclarece o facto de um certo gosto pela construccedilatildeo de jardins banhos

museus e outros locais de oacutecio percorrer a histoacuteria cultural europeia parece constituir

uma indicaccedilatildeo de que existe uma consciecircncia histoacuterica do efeito favoraacutevel de certos

611 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p26

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enquadramentos espaciais do oacutecio Por sua vez uma outra abordagem relativa ao

estudo da espacialidade do oacutecio consiste natildeo em examinar os espaccedilos de oacutecio mas em

descrever o proacuteprio oacutecio metaforicamente como um espaccedilo de acordo com tal postura

de anaacutelise Maeumll Renouard define o oacutecio como um espaccedilo propiacutecio agrave reflexatildeo ldquoLe

recueillement promis par lrsquootium concerne les conditions de la penseacutee Il est lrsquoespace ougrave

elle est possiblerdquo612 A vantagem argumentativa de tal posiccedilatildeo revela-se clara se

tomarmos o oacutecio como uma unidade espacial podemos delimitaacute-lo por contraste com

outros espaccedilos sociais tais como o espaccedilo de trabalho da economia ou da poliacutetica A

dicotomia estrutural entre o oacutecio e o mundo quotidiano pode ser mais facilmente

conceptualizada como uma oposiccedilatildeo espacial ndash o oacutecio apresenta-se descrito como uma

realidade aleacutem do trabalho e aleacutem do tempo livre613

Nesse sentido Peter Philipp Riedl identifica o oacutecio com os espaccedilos livres que

permitem o afastamento de todos os mecanismos coercitivos sociais e poliacuteticos da

modernidade614 Assim o oacutecio assume-se compreendido como um domiacutenio da vida

humana que se determina por seu turno como uma condiccedilatildeo possibilitadora de certos

processos cognitivos ou praacuteticos no oacutecio o homem pode pensar sobre si mesmo

realizar-se Por fim uma terceira abordagem integra ainda os estudos acerca da

espacialidade do oacutecio segundo esta uacuteltima postura de anaacutelise o oacutecio perspetivado sob

o tiacutetulo da espacialidade anuncia-se como a experiecircncia de um sujeito que se

caracteriza pela perceccedilatildeo intensificada do espaccedilo circundante trata-se pois de uma

perspetiva de pendor fenomenoloacutegico que compreende o oacutecio como a possibilidade de

experiecircncia de uma existecircncia espacial [desenvolvida pelo sujeito] que estaacute no mundo

e ao mesmo tempo perante o mundo615 O individuo ao dirigir o seu olhar para o seu

ambiente envolvente ndash aqui apresentam-se novamente evocados os velhos conceitos de

theoria e de contemplatio ndash desenvolve a experiecircncia do espaccedilo que se anuncia

inteiramente como o foco da sua atenccedilatildeo e assim se transfigura o espaccedilo assim

contemplado em espaccedilo de oacutecio A caracteriacutestica especial do olhar que o individuo

612 Renouard M Lrsquootium entre politique et recircverie In Fumaroli M Simon DJeanCharles DarmonJ-C (Eds) Lrsquootium dans la Reacutepublique des lettres Paris 2011 p73613 Reinhard W Die fruumlhneuzeitliche Wende Von der sbquoVita contemplativalsquo zur sbquoVita activalsquo In WulfCJorg Zirfas J (ed) Muszlige Berlin 2007 p9614 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) 26615 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p32

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dirige ao espaccedilo (de oacutecio) reside justamente na abstraccedilatildeo dos processos temporais e na

integraccedilatildeo de vaacuterias impressotildees num todo espacial

A observaccedilatildeo contemplativa desenvolvida numa experiecircncia de oacutecio de uma praccedila

urbana deteacutem-se menos no ir-e-vir do que o panorama geral e no movimento da proacutepria

observaccedilatildeo Assim se pode ver como acontece em todas as observaccedilotildees contemplativas

desenvolvidas no oacutecio tudo no espaccedilo ndash no jogo da distacircncia e da proximidade na

pertenccedila conjunta do que eacute exterior no espaccedilo livre do grande horizonte em que algo se

pode mostrar Este espaccedilo livre permite que tudo aquilo que estaacute dentro de si ou tudo

aquilo que em si entre se afigure pois simultacircneo616

Importaria elucidar que de acordo com esta uacuteltima abordagem acerca da

espacialidade do oacutecio ndash uma abordagem marcada por um cariz eminentemente

fenomenoloacutegico ndash o conceito de tempo poder-se-ia constituir igualmente como uma

determinaccedilatildeo integrante No acircmbito de tal abordagem fenomenoloacutegica cumpre

perspetivar a experiecircncia do espaccedilo enquanto experiecircncia do oacutecio agrave luz de uma

possibilidade de relaccedilatildeo ndash ou de modo rigoroso contrarrelaccedilatildeo ndash face ao ldquocaso

normalrdquo ou seja o contexto da vida quotidiana distante da fruiccedilatildeo do oacutecio Se a

experiecircncia do oacutecio eacute caracterizada por um estado de tempo excecional que rompe

com a administraccedilatildeo diaacuteria e a mediccedilatildeo do tempo como um recurso econoacutemico escasso

entatildeo tal experiecircncia do oacutecio poderaacute com justeza ser perspetivada como uma exceccedilatildeo

ou desvio dos modos de perceccedilatildeo usual do espaccedilo De acordo com a premissa

fenomenoloacutegica quem experimenta o oacutecio natildeo perceciona um mero espaccedilo limitado que

pode ser utilizado e preenchido com objetos quotidianos em vez disso no acircmbito do

espaccedilo do oacutecio emergem as qualidades do proacuteprio espaccedilo perante o qual o sujeito se

coloca numa relaccedilatildeo individual Na histoacuteria da cultura existem muacuteltiplos exemplos de

tal fruiccedilatildeo do oacutecio num contexto espacial ao inveacutes de temer a floresta ou de evitaacute-la

enquanto fonte de perigo atravessando-a pelo caminho mais raacutepido a burguesia do

seacuteculo XVIII passara a procurar a floresta para tomaacute-la como o lugar das suas

caminhadas sem rumo e sem destino definidos agrave partida O mesmo se pode dizer das

montanhas que neste mesmo periacuteodo cultural deixaram de ser consideradas como um

lugar de terra incognita para serem perspetivadas como um lugar de autoconhecimento

Natildeo se trata pois de possibilidades de alteraccedilatildeo ou de mudanccedila constitutivas do espaccedilo

enquanto tal mas sobretudo da perceccedilatildeo do espaccedilo que passara a ser apreciado como

616 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p30

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adequado para praacuteticas de movimento em oacutecio e em contemplaccedilatildeo Tais espaccedilos natildeo

satildeo pois procurados por razotildees econoacutemicas ou sociais mas sim como novos lugares

propiacutecios agrave experiecircncia e agrave aventura

Tal como a dimensatildeo temporal do oacutecio pode ser compreendida agrave luz da noccedilatildeo de

destemporalizaccedilatildeordquo assim a espacializaccedilatildeo oferece-se neste ponto como uma

expressatildeo conceptual passiacutevel de descrever a mudanccedila de perceccedilatildeo que promove a

atenccedilatildeo dedicada agraves qualidades do espaccedilo617 A perceccedilatildeo do espaccedilo quanto experiecircncia

de oacutecio apresenta-se por conseguinte baseada num processo semacircntico num contexto

de experiecircncia do oacutecio o espaccedilo deixa de ser tomado como um facto fiacutesico ou

geograacutefico para ser concebido como um lugar significativo A semantizaccedilatildeo do espaccedilo

pode com efeito decorrer de processos coletivos bem como de criaccedilotildees individuais

ou em muitos casos de ambas as situaccedilotildees Ao atribuir significado a um espaccedilo

indefinido o indiviacuteduo pode tomar esse mesmo espaccedilo (objetivo) transfigurando-o e

determinando-o subjetivamente e assim tornaacute-lo um lugar de oacutecio A utilizaccedilatildeo

diferenciada dos termos espaccedilo e lugar cujas definiccedilotildees e relaccedilotildees natildeo satildeo

consensualmente perspetivadas na teoria do espaccedilo618 desenvolvida ateacute ao momento

pretende dar conta da seguinte distinccedilatildeo enquanto o espaccedilo representa uma estrutura e

uma disposiccedilatildeo a priori os lugares constituem-se somente atraveacutes da diferenciaccedilatildeo de

espaccedilos diferentes do estabelecimento de fronteiras e sobretudo da atribuiccedilatildeo de

significado a uma determinada estrutura topograacutefica topoloacutegica ou social

A passagem do espaccedilo para o lugar ndash a configuraccedilatildeo da experiecircncia do oacutecio ndash

natildeo se apresenta inteiramente anaacuteloga agrave passagem da perceccedilatildeo objetiva para a perceccedilatildeo

subjetiva do tempo conquanto tal relaccedilatildeo se afigure pelo menos estruturalmente

semelhante pois enquanto o espaccedilo se constitui como uma realidade mais ou menos

divisiacutevel e mensuraacutevel em termos objetivos jaacute a conexatildeo do lugar com um eu que

estaacute aqui e tambeacutem designa esse ser aqui eacute de importacircncia excecional619 Segundo

Jacques Derrida o lugar pode ser compreendido como um lugar ocupadoequipado

617 Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige In Hasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellenWandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p31618 Sobre os termos espaccedilo e lugar e as suas diferentes relaccedilotildees no curso da histoacuteria da filosofiaconsultar Waldenfels B Ortsverschiebungen Zeitverschiebungen Modi leibhaftiger ErfahrungFrankfurt a M 2009 p31 Guumlnzel S Raumkehren In Guumlnzel S (ed) Raum Ein interdisziplinaumlresHandbuch StuttgartWeimar 2010 pp 77ndash120619 Waldenfels B Ortsverschiebungen Zeitverschiebungen Modi leibhaftiger Erfahrung Frankfurt aM 2009 p32

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(lieu investi) por contraste com o espaccedilo abstrato620 A fonte na floresta soacute se torna um

lugar quando se distingue conceptualmente do espaccedilo circundante e ndash tal como locus

amoenus na literatura por exemplo ndash se afigura suscetiacutevel de integrar um significado

cultural Distintamente um espaccedilo arquitetoacutenico tal como uma construccedilatildeo significativa

criada pelo homem jaacute eacute sempre um lugar Com efeito nem todos os lugares se

apresentam de raiz como lugares de oacutecio do mesmo modo a semacircntica que configura

um lugar enquanto tal natildeo se afigura vinculativa para todos os indiviacuteduos de uma

comunidade nem vaacutelida independentemente do contexto ndash trata-se pois de perspetivar

a atitude dos sujeitos em relaccedilatildeo ao espaccedilo atitude passiacutevel de configuraccedilatildeo desse

mesmo espaccedilo em lugar (tenha-se presente pois que o mesmo espaccedilo ndash por exemplo

uma praccedila urbana movimentada ndash pode ser perspetivada por um sujeito como o espaccedilo

do seu negotium e por outro sujeito ndash digamos um flacircneur ndash como o lugar da sua

flacircnerie esteacutetica)

A perceccedilatildeo do espaccedilo constitui-se como a pedra de toque de tais consideraccedilotildees

a percepccedilatildeo do espaccedilo enquanto lugar representa uma situaccedilatildeo ou desvio da atitude

quotidiana perante o espaccedilo Neste sentido e analogamente ao conceito de

heterocronia a espacialidade do oacutecio pode assim ser definida como uma

heterotopia Michel Foucault designa de heacuteteacuterotopies um certo tipo de lugares que

estatildeo inscritos em cada cultura de forma semelhante ao que se passa nas utopias nas

heterotopias os mecanismos de ordem regular de uma sociedade satildeo simultaneamente

representados questionados e invertidos (agrave la fois repreacutesenteacutes contesteacutes et inverseacutes)

Todavia ao contraacuterio das utopias ficcionais as heterotopias estatildeo ligadas a lugares reais

(lieux reacuteels) Enquanto utopias ldquoeffectivement reacutealiseacuteesrdquo as heterotopias possuem um

estatuto paradoxal satildeo ldquodes sortes de lieux qui sont hors de tous les lieux bien que

pourtant ils soient effectivement localisablesrdquo Por outras palavras as heterotopias

formam uma espeacutecie de contra-lugar onde as regras e os processos de uma sociedade

satildeo interrompidos ou invertidos Esta eacute a sua caracteriacutestica saliente eles satildeo

ldquoabsolument autres que tous les emplacements qursquoils reflegravetentrdquo621

A partir da consideraccedilatildeo de tal caracteriacutestica que determina e envolve a

Heterotopia poderemos compreender e descrever tambeacutem o caraacutecter espacial

620 Derrida J Chōra Wien 1990 p42621 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p755

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excecional do oacutecio Algumas heterotopias mencionadas por Foucault ndash tais como jardins

ndash correlacionam-se com os lugares ldquoclaacutessicosrdquo do oacutecio622 Natildeo obstante para aleacutem das

formas concretas de realizaccedilatildeo o oacutecio per se pode ser considerado agrave luz de estruturas

heterotoacutepicas se as compreendermos como desvios do modo funcional normal de uma

sociedade Foucault refere-se explicitamente agrave realidade da oisiveteacute como um

exemplo de tal heterotopia de desvio (heacuteteacuterotopie de deacuteviation) pois dans notre

socieacuteteacute ougrave le loisir est la regravegle loisiveteacute forme une sorte de deacuteviation623 O conceito

tambeacutem oferece pontos de partida relevantes para uma segunda observaccedilatildeo a de que a

alteridade do oacutecio consiste acima de tudo numa perceccedilatildeo alterada e profundamente

subjetiva dos lugares e dos tempos Rainer Warning por seu turno descreveu as

heterotopias como ldquoespaccedilos de experiecircncia esteacutetica e assim elucidou sobre a

possibilidade de determinar o modo especiacutefico de perceccedilatildeo de uma heterotopia literaacuteria

de oacutecio624 Segundo o Warning as heterotopias surgem de uma

[] convergecircncia do sujeito da escrita com um espaccedilo real que pode ser experimentado e

mantido imaginativamente como outro espaccedilo com base em certas caracteriacutesticas de

modo que as ocupaccedilotildees jaacute existentes deste espaccedilo pelo imaginaacuterio social possam

acomodar esta correspondecircncia como eacute o caso da maioria dos exemplos do cataacutelogo de

Foucault conquanto natildeo dependentes de tais especificaccedilotildees625

No espiacuterito de Foucault Warning sustenta assim que natildeo eacute o espaccedilo enquanto

tal que determina o seu estatuto de homotopia (isto eacute de lugar regular) ou de

heterotopia mas sim a atitude do autor ou do narrador relativamente a esse mesmo

espaccedilo No entanto o espaccedilo pode ter caracteriacutesticas que o distinguem de tal forma que

convidam o sujeito a uma interpretaccedilatildeo heterotoacutepica626 Por essas caracteriacutesticas do

espaccedilo Warning compreende certos estiacutemulos do imaginaacuterio que movem o sujeito da

622 Designadas de espaces ou lieux autres as heterotopias segundo Foucault tecircm origem na ideia deum espaccedilo fundamentalmente heterogeacuteneo ao qual tambeacutem devem o seu nome Os espaccedilos no espaccedilo satildeodemarcados do conjunto maior (tais como utilizando um dos exemplos de Foucault os lares de idosos)ou excluiacutedos dele Foucault menciona assim os hospitais psiquiaacutetricos ou as prisotildees como ilustraccedilatildeo detal conceito Independentemente de se tratar de exclusatildeo ou de marginalizaccedilatildeo os espaccedilos de oacuteciorequerem uma demarcaccedilatildeo a fim de os distinguir dos outros espaccedilos e por assim dizer de os protegerdestes pois o oacutecio eacute suscetiacutevel de perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da sua diferenccedilaTraduzido com a versatildeo gratuita do tradutor - wwwDeepLcomTranslator623 Foucault M Des espaces autres In Dits et eacutecrits Vol 4 1954ndash1988 Defert DEwald F (ed)Paris 1994 p757624 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009625 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p21626 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p21

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concentraccedilatildeo na realidade para o modo da imaginaccedilatildeo Warning menciona alguns

exemplos que tambeacutem podem ser concebidos como situaccedilotildees de oacutecio

Tal pode ser a solidatildeo a beleza da natureza e a distacircncia da civilizaccedilatildeo para os quais um

sujeito danificado pela civilizaccedilatildeo se sente atraiacutedo Mas tambeacutem pode ser simplesmente

um banco protegido que convida a permanecer na azaacutefama da grande cidade ou mesmo

um barracatildeo de madeira que limita um potencial local de construccedilatildeo um terrain vague

[] As heterotopias literaacuterias constituem-se a partir de tais encontros entre os estiacutemulos

do imaginaacuterio com um sujeito que por eles pode ser influenciado627

Em uacuteltima anaacutelise a forccedila imaginativa do sujeito ndash eventualmente colocada

em movimento atraveacutes de estiacutemulos do espaccedilo ndash decide sobre a transformaccedilatildeo de uma

homotopia em heterotopia Natildeo eacute por acaso que Warning elucida e sustenta as suas teses

recorrendo a exemplos de textos literaacuterios que se afiguram culturalmente centrais para a

compreensatildeo moderna do oacutecio incluindo a quinta promenade de Les Recircveries du

promeneur solitaire de Rousseau No episoacutedio da Icircle Saint Pierre Rousseau introduz as

mais importantes caracteriacutesticas baacutesicas do idiacutelio sobretudo o foco espacial a beleza

da natureza a falta de sujet a sensaccedilatildeo de proteccedilatildeo e seguranccedila a ausecircncia de

conflitos O sujeito pode aqui assim sublinha Warning imergir-se em formas

simples de vida oacutecio para atividades criativas e de prazer em outras palavras um

mundo de fantasia euforicamente afinado como um todo628 No episoacutedio da Icircle Saint

Pierre Rousseau contrasta a heterotopia de oacutecio da ilha com a normalidade agitada da

metroacutepole de Paris Assim Warning conclui com a tese aqui apresentada sobre a

espacializaccedilatildeo e a destemporalizaccedilatildeo da perceccedilatildeo excecional A intensidade espacial

do silecircncio e da solidatildeo na quinta Recircverie de Rousseau corresponde a uma reduccedilatildeo da

intensidade temporal ao ponto da ilusatildeo de um stans nunc privado do tempo []629

Segundo Hermann Luumlbbe a possibilidade de experiecircncia de tal nunc stans ndash

experienciado por Rousseau na mencionada Recircverie como um eminente tempo de oacutecio ndash

encontra-se perniciosamente submetida nas nossas sociedades contemporacircneas a uma

atrofia do presente630 (Gegenwartsschrumpfung) tendo em conta que de acordo com

Luumlbbe a experiecircncia do tempo vivenciada na modernidade tardia se determina por uma

627 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p29628 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p43629 Warning R Heterotopien als Raumlume aumlsthetischer Erfahrung Muumlnchen 2009 p37630 Luumlbbe H Gegenwartsschrumpfung In Backhaus KHolger Bonus H (ed) Die Beschleunigungsfalle oder der Triumph der Schildkroumlte Stuttgart 1998 pp263-293

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crescentemente nociva estadia mais curta no presente631 Aqui encontramo-nos pois

no centro das discussotildees contemporacircneas sobre as tendecircncias de aceleraccedilatildeo na

modernidade tardia A este respeito voltemos a Hartmut Rosa

O pressuposto formulado por Luumlbbe de que as sociedades modernas no sentido desta

definiccedilatildeo experimentam um contiacutenuo encolhimento endoacutegeno isto eacute uma atrofia do

presente sistematicamente autogerado em resultado de uma crescente velocidade de

obsolescecircncia ou de uma incessante compressatildeo da inovaccedilatildeo socioculturais assume

agora uma importacircncia decisiva632

Estas satildeo razotildees essenciais para a configuraccedilatildeo de uma experiecircncia de

compressatildeo do tempo sob a qual se tenta processar culturalmente a acumulaccedilatildeo de

inovaccedilatildeo condensada temporalmente O resultado dessa relaccedilatildeo modificada com o

tempo poderaacute ser enunciado por exemplo atraveacutes de um aumento do nuacutemero de

episoacutedios de vida por unidade de tempo De acordo com Rosa a maacutexima cultural da

sociedade moderna tardia eacute a seguinte quantos mais e quanto mais intensos satildeo os

episoacutedios de experiecircncia que podem ser provados de modo a enriquecer a vida interior

em menos tempo mais interessante seraacute a vida dos sujeitos contemporacircneos Saborear e

desfrutar a vida relacionam-se pois com a possibilidade de ter tempo ou por outras

palavras com a possibilidade de se entregar temporariamente ao intemporal Saborear e

desfrutar de algo de modo acelerado resulta em verdade numa contradictio in adjecto

Neste contexto poder-se-ia igualmente referir a hiperatividade da cultura

contemporacircnea Byung Chul Han interpreta a cultura da aceleraccedilatildeo da seguinte forma

Eacute precisamente agrave vida nua radicalmente transitoacuteria que se reage com a hiperatividade

com a histeria do trabalho e da produccedilatildeordquo633

Tal como sublinha Rosa no contexto da modernidade tardia o encurtamento e a

compressatildeo dos episoacutedios da experiecircncia conduzem a uma fragmentaccedilatildeo das estruturas

do tempo bem como a uma alteraccedilatildeo significativa na experiecircncia do tempo e na

perceccedilatildeo do seu raacutepido fluxo634 As vaacuterias accedilotildees individuais afiguram-se diacutespares

profundamente acompanhadas pelo sentimento de cumprir um dever e satildeo

percecionados como realizaccedilotildees insatisfatoacuterias incompletas privadas de qualquer

631 Luumlbbe H Im Zug der Zeit Verkuumlrzter Aufenthalt in der Gegenwart Heidelberg 1994632 Rosa H Weltbeziehungen im Zeitalter der Beschleunigung Frankfurt a M 2012 p192633 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p37634 Rosa H Beschleunigung Die Veraumlnderungen der Zeitstrukturen in der Moderne Frankfurt a M2005 p203

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sentido de plenitude Tal explica-se agrave luz do facto de que a soma de tais accedilotildees e

episoacutedios natildeo resultar numa experiecircncia concebida como uma totalidade significativa

natildeo constituindo uma narrativa mas sim consistir na justaposiccedilatildeo de vivecircncias natildeo

mediadas fragmentadas natildeo promovendo uma experiecircncia efetiva e subjetivamente

satisfatoacuteria Na sua ausecircncia de contextualidade e de espacializaccedilatildeo as experiecircncias e

accedilotildees individuais natildeo adquirem a qualidade de memoacuterias enriquecidas com qualidades e

componentes sensuais A ldquoatrofia do presenterdquo (Gegenwartsschrumpfung) tal como

descrita por Luumlbbe e perspetivada segundo a consideraccedilatildeo das atuais tendecircncias de

aceleraccedilatildeo da modernidade tardia poderia ser contrariada por um ldquoaumento do

presenterdquo (Gegenwartsvergroumlszligerung) de acordo com o qual se possibilitaria que no

acircmbito de uma determinada experiecircncia de oacutecio o tempo presente fosse efetivamente

vivenciado como um nunc permanens A este respeito poder-se-ia evocar

Schopenhauer e a sua formulaccedilatildeo da primeira e mais importante regra da sua

Eudemonologia ldquoNatildeo deve ser tolo ter sempre a certeza de que se aprecia o presente

tanto quanto possiacutevel uma vez que a vida como um todo eacute apenas um pedaccedilo maior do

presenterdquo635

635 Schopenhauer A Die Kunst gluumlcklich zu sein Muumlnchen 2018 p11

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22 | Pierre Hadot sobre Goethe da vivecircncia do presente como exerciacutecio

espiritual

Natildeo cuida a alma de futuro nem passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte e fado

Goethe Faust II

Um dos mais belos livros dedicados agrave questatildeo do tempo de um ponto de vista

eminentemente eacutetico eacute Natildeo te esqueccedilas de viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios

Espirituais (2008) de Pierre Hadot O livro de Hadot cujo capiacutetulo I se debruccedila sobre a

questatildeo da vivecircncia plena do tempo presente a partir do pensamento de Goethe introduz

a temaacutetica filosoacutefico-eacutetica do ldquoexerciacutecio espiritualrdquo enquanto Bildung enquanto

formaccedilatildeo-de-si e em uacuteltima instacircncia enquanto praacutetica-de-si

A expressatildeo ldquoexerciacutecio espiritualrdquo que foi utilizada por um certo nuacutemero de historiadores

do pensamento como Louis Gernet e Jean-Pierre Vernant ou autores como Georges

Friedmann natildeo tem uma conotaccedilatildeo religiosa apesar do que pensam alguns criacuteticos A

expressatildeo estaacute relacionada com actos do intelecto ou da imaginaccedilatildeo ou mesmo da

vontade que se caracterizam pela sua finalidade graccedilas a eles o indiviacuteduo esforccedila-se por

transformar a sua maneira de ver o mundo com o objectivo de se transformar a si proacuteprio

Natildeo tem que ver com o informar-se mas com o formar-se636

Tal como nos elucida Hadot no prefaacutecio que apresenta o seu livro o tiacutetulo da

obra em questatildeo ndash Natildeo te esqueccedilas de viver ndash constitui a evocaccedilatildeo de uma maacutexima

goethiana assumindo-se como a luz orientadora do delineamento das teorizaccedilotildees

propostas pelo historiador da filosofia particularmente no que concerne agrave apreciaccedilatildeo do

exerciacutecio espiritual tatildeo caro a Goethe de concentraccedilatildeo absoluta no instante presente de

vivecircncia plena do momento presente num sentido eacutetico que convoca as mais eminentes

perspetivaccedilotildees relativas agrave temporalidade desenvolvidas no acircmbito do estoicismo e do

epicurismo A sugestatildeo de uma alianccedila entre as posiccedilotildees de Goethe e a praacutetica antiga

dos exerciacutecios espirituais como modos de formaccedilatildeo-de-si e de constituiccedilatildeo de um

636 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p11

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sentido de afinidade harmoniosa entre o indiviacuteduo e a totalidade do ser traduz com

efeito um dos eixos filosoacuteficos que orienta a referida obra de Hadot

ldquoNatildeo cuida a alma de futuro nem passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte

e fadordquo637 trata-se dos ceacutelebres versos de Fausto II que marcam o momento da uniatildeo

entre os dois amantes Fausto e Helena e aos quais Hadot vai conceder as suas melhores

atenccedilotildees Tais versos que traduzem a uniatildeo de dois tempos duas culturas duas

metafiacutesicas ndash Fausto o protoacutetipo do homem moderno e Helena a figura que evoca a

beleza antiga ndash constituiu-se como um diaacutelogo amoroso desdobrando-se nos seus

versos rimados (eacute o momento da aprendizagem por Helena e atraveacutes da matildeo de Fausto

a arte da rima) que ilustra o momento de intenso e pleno presente como que isento de

passado e de futuro no qual dois amantes desfrutam da presenccedila absoluta um do outro

sem nada mais desejar ou aspirar Tal como esclarece Hadot tais versos ecoam outros

tantos os da Elegia de Marienbad ldquoNatildeo te restou esperanccedila acircnsia desejo Era esta a

meta do mais iacutentimo anelordquo638 O desvanecimento do passado ou do futuro concertado

com a fruiccedilatildeo total da felicidade no instante presente anuncia-se como expressatildeo do

encontro entre dois amantes a que tambeacutem Fausto e Helena deram corpo representando

poeticamente a uniatildeo entre o moderno e o antigo num ponto temporal que eacute o da arte

Todavia tal como elucida Hadot os ceacutelebres versos que compotildee o diaacutelogo amoroso

entre Fausto e Helena poderatildeo ser lidos a partir de um outro niacutevel de interpretaccedilatildeo

trata-se com efeito da ilustraccedilatildeo do momento em que Fausto se depara com a sageza

antiga com a antiga arte de viver que reclama um outro sentido de temporalidade que

Fausto ateacute entatildeo desconhecia por completo ndash a dedicaccedilatildeo absoluta ao instante presente

Assim escreve Hadot

De facto para Goethe era precisamente essa a caracteriacutestica da vida e da arte antigas

saber viver no presente conhecer aquilo a que ele chamava como veremos a ldquosauacutede do

momentordquo Como afirma Siegfried Morenz ldquoEssa natureza particular da Greacutecia ningueacutem

a caracterizou melhor do que Goethe [hellip] no diaacutelogo entre Fausto e Helena quando o

alematildeo ensina agrave heroiacutena grega a arte da rima Entatildeo ldquoNatildeo cuida a alma de futuro nem de

passado Pois soacute o presente ndash eacute nossa sorte e fadordquo [hellip] Ao Fausto niilista que apostou

com Mefistoacutefeles que nunca diria ao instante ldquoSuspende-te tu que eacutes tatildeo belordquo a antiga e

nobre Helena depois da inocente Margarida revela o esplendor do ser isto eacute do instante

637 Goethe JW Fausto II Ato III vv9382-9384 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe ea Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p15638 Goethe JW Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p18

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presente e convida-o a dizer sim ao instante ao mundo e a ele proacuteprio639

Como compreender a expressatildeo goethiana ldquosauacutede do momentordquo Segundo

Hadot tal expressatildeo constitui-se como uma formulaccedilatildeo que Goethe desenvolvera num

acircmbito esteacutetico especialmente no contexto de uma reflexatildeo a propoacutesito das pinturas

murais de Herculano e de Pompeia e que conduzira o poeta ao delineamento de uma

perspetivaccedilatildeo de pendor eminentemente eacutetico o exerciacutecio espiritual de absoluta

concentraccedilatildeo no presente tatildeo caro aos homens antigos e do qual os modernos pouco ou

nada sabem pois estes afiguram-se perdidos de um sentido de temporalidade plena

dispersando-se entre a nostalgia do passado e acircnsia do futuro O escrito evocado por

Hadot eacute uma carta a Zelter datada de outubro de 1829 na qual Goethe desenvolve a sua

visatildeo acerca de duas noccedilotildees afins a de presente e a de presenccedila correspondentemente

atualidade temporal e proximidade especial ambas expressas atraveacutes da mesma palavra

Gegenwart Leiamos a passagem em questatildeo

A presenccedila tem realmente qualquer coisa de absurdo imaginamos que eacute assim vemos

sentimo-nos Confiamos nisso Mas natildeo temos consciecircncia do benefiacutecio que podemos tirar

desses instantes Queremos dizer o seguinte O ausente eacute uma pessoa ideal enquanto as

pessoas que estatildeo aiacute presentes aparecem aos olhos umas das outras como triviais Eacute de

facto muito estranho que devido agrave realidade da presenccedila o ideal desapareccedila quase por

completo Seraacute provavelmente por essa razatildeo que para os Modernos o ideal apenas se

manifesta como nostalgia640

A passagem afigura-se interessantemente pertinente quando lida do ponto de

vista da contraposiccedilatildeo entre Goethe e os romacircnticos seus contemporacircneos em verdade

de acordo com Goethe a postura filosoacutefica romacircntica de aspiraccedilatildeo incessante do ideal

constitui-se como uma postura a depreciar Recorde-se a este respeito a relevante

dicotomia apresentada por Schiller entre poesia ingeacutenua e poesia sentimental natildeo eacute em

verdade a poesia sentimental ndash a poesia moderna romacircntica ndash definida agrave luz do conceito

de ideal A impossibilidade romacircntica de afirmaccedilatildeo do instante pleno e da presenccedila

viva do ser a favor da postulaccedilatildeo de modos de nostalgia pelo passado ou de formas de

aspiraccedilatildeo de entidades ou determinaccedilotildees ideais natildeo passiacuteveis de cumprimento ou

realizaccedilatildeo efetivas assume-se como uma das caracteriacutesticas que revelam a falecircncia do

639 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p19640 Goethe JW Carta a Zelter de 19 de outubro de 1829 Goethes Briefe HA vol4 P346 ApudHadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p20

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homem moderno em dedicar-se de modo total ao instante presente A evasatildeo

romacircntica relativamente ao momento presente anuncia-se pois como alvo de rejeiccedilatildeo e

de condenaccedilatildeo por parte de Goethe trata-se neste sentido de censurar aos romacircnticos a

sua incapacidade de perspetivar o instante presente como prenhe de intensidade de

experiecircncia e de sentido e agrave luz do qual a existecircncia humana pode nas palavras de

Hadot ldquoreencontrar dignidade e nobrezardquo641 O sentido eacutetico da dedicaccedilatildeo total ao

momento presente ndash jaacute entrevisto e desenvolvido pelos homens da antiguidade ndash

constitui-se como o fundo das posiccedilotildees de Goethe a este respeito

Por conseguinte a adesatildeo ao instante presente e agrave presenccedila viva do ser afirma-

se pois como a postura eacutetica representativa da designaccedilatildeo goethiana ldquoa sauacutede do

momentordquo Tenhamos presente a seguinte passagem da jaacute mencionada carta a Zelter

desta feita a propoacutesito das pinturas de Herculano e de Pompeia

Aiacute se encontra o que haacute de mais maravilhoso na Antiguidade para quem pode ver ver

com os seus proacuteprios olhos a sauacutede do momento [die Gesundheit des Moments] e todo o

seu valor Porque essas pinturas desaparecidas devido a uma cataacutestrofe atroz continuam a

ter a mesma frescura depois de quase dois mil anos a ser tatildeo belas tatildeo agradaacuteveis como

no momento de felicidade e de bem-estar que precedeu o seu terriacutevel desaparecimento Se

nos interrogarmos sobre o que representam ficaremos talvez embaraccedilados com a resposta

Por ora direi o seguinte essas figuras transmitem esse sentir o instante deve estar prenhe

bastando-se a si proacuteprio para que possa vir a ser uma cesura digna no tempo e na

eternidade642

A reflexatildeo esteacutetica traccedilada por Goethe a respeito das pinturas de Herculano e de

Pompeia desenvolve-se sob uma tonalidade eminentemente eacutetica permitindo ao poeta o

contacto e o conhecimento com uma singular sageza que afirma a adesatildeo incondicional

ao instante prenhe de sentido ndash aquilo a que os gregos chamavam o kairoacutes ndash e a

correlativa comunhatildeo do indiviacuteduo com a presenccedila viva dos seres e das coisas

Importaria a este respeito chamar a atenccedilatildeo para o caraacutecter problemaacutetico ou

inclusivamente controverso da idealizaccedilatildeo do homem antigo que subjaz agraves visotildees de

Goethe ndash assim como como bem sabemos das posturas eacuteticas e esteacuteticas das geraccedilotildees

culturais dos seacuteculos XVIII e XIX (pense-se em Schiller ou em Houmllderlin por

exemplo) Tal idealizaccedilatildeo Greacutecia e do espiacuterito grego assume-se pois como resultado

641 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p22642 Goethe JW Carta a Zelter de 19 de outubro de 1829 Goethes Briefe HA vol4 Pp346-347Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p22

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das influentes teorizaccedilotildees esteacuteticas de Winckelmann especialmente no que concerne agrave

perspetivaccedilatildeo da escultura claacutessica grega enquanto modo mais elevado de realizaccedilatildeo

artiacutestica humana Interessantemente de acordo com o estudioso francecircs Roger Ayrault

autor do estudo La Geacutenese du romantisme allemand (1961-1976) a leitura intensa de

Winckelmann pelas geraccedilotildees posteriores contribuiacutera para a irrupccedilatildeo de uma ldquocrise

esteacuteticardquo no contexto cultural germacircnico agrave luz da qual se poderaacute compreender a origem

do sentimento de melancolia romacircntica associado agrave consciecircncia de impossibilidade de

realizaccedilatildeo de objetos artiacutesticos que se encontrariam em plena comunhatildeo com a arte da

antiguidade a mais elevada que a humanidade alguma vez produzira tal como

Winckelmann afirmara

Natildeo obstante o caraacutecter problemaacutetico ou controverso da idealizaccedilatildeo do espiacuterito

grego num acircmbito germacircnico ndash viveriam de facto os antigos gregos segundo a ldquosauacutede

do momentordquo tal como crera Goethe ndash cumpriria assim sustenta Hadot atentar com

devido rigor sobre a vontade filosoacutefica tal como mantida pelos gregos de ldquoencontrar a

paz da alma atraveacutes da transformaccedilatildeo de si e do modo de olhar o mundordquo643 Natildeo se

trata pois de postular de modo decisivo a existecircncia de uma serenidade inata como

que inconsciente por parte do homem grego e que estaria na origem do seu modo de

saber viver aderindo incondicionalmente ao instante presente Talvez tal serenidade se

afigurasse como uma serenidade conquistada ndash e tal esforccedilo da vontade desenvolvida

pelo homem grego natildeo deveraacute constituir objeto de suspeiccedilatildeo teoacuterica

Tal vontade filosoacutefica esclarece Hadot poderaacute em verdade ser vislumbrada jaacute

no periacuteodo arcaico Quando um dos Sete Saacutebios Piacutetaco escreve que a melhor coisa eacute

ldquofazer bem o presenterdquo644 ou seja concentrar-se na accedilatildeo presente sem se deixar

perturbar pelas preocupaccedilotildees em relaccedilatildeo ao futuro e pelas anguacutestias experienciadas no

passado tal constitui um conselho que se postula como uma norma eacutetica Do mesmo

modo no seacuteculo V no contexto do movimento sofista tambeacutem Antifonte censura os

seus contemporacircneos por natildeo praticarem um modo de existecircncia centrado no presente

permitindo que o tempo se desvaneccedila sem ter sido efetivamente vivido

Haacute pessoas que natildeo vivem a vida presente eacute como se estivessem a preparar-se

concentrando toda a sua energia para viver uma outra vida que natildeo esta e enquanto fazem

643 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p31644 Laeacutercio D Vies et doctrines des philosophes illustres I 17 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas deViver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p31

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isso o tempo passa e esvai-se645

Segundo Hadot as posiccedilotildees epicurista e estoica natildeo obstante as suas profundas

diferenccedilas em diversas mateacuterias integram conceccedilotildees anaacutelogas acerca da experiecircncia ndash

eacutetica ndash de vivenciar o tempo presente A alianccedila entre eacutetica e temporalidade presente

anuncia-se com efeito como uma das caracteriacutesticas filosoacuteficas que aproximam

epicurismo e estoicismo Neste sentido ambas as correntes filosoacuteficas convergem na

afirmaccedilatildeo da superioridade da postura saacutebia de dedicaccedilatildeo plena ao momento presente

ausente de dispersatildeo no passado ou no futuro a definiccedilatildeo de felicidade agrave luz de uma

conceccedilatildeo de adesatildeo incondicional do saacutebio ao instante presente ndash e que a felicidade que

o instante presente proporciona eacute uma felicidade equivalente agrave felicidade eterna

podendo ser alcanccedilada e experienciada no imediato no aqui e agora ndash determina-se

como uma das traves-mestras do epicurismo e do estoicismo Poder-se-ia com justeza

sustentar que o exerciacutecio espiritual ndash recorrendo ao termo de Hadot ndash de dedicaccedilatildeo

absoluta ao momento presente tal como verificado no epicurismo e no estoicismo

implica o delineamento de uma singular postura filosoacutefica acerca da (ou perante a)

temporalidade que se encontra por sua vez na origem da postulaccedilatildeo eacutetica O

desenvolvimento de um ldquosaber que ensina a tranquilidaderdquo que propotildee a anulaccedilatildeo da

inquietaccedilatildeo constitui-se como a possibilidade de cumprir uma ldquotransformaccedilatildeo total da

vidardquo ndash e no acircmbito do qual um dos elementos mais relevantes ldquoeacute a mudanccedila de atitude

em relaccedilatildeo ao tempordquo646

A transformaccedilatildeo radical da atitude humana relativamente ao tempo ou agrave

temporalidade anuncia-se assim como condiccedilatildeo de possibilidade de alcance da

felicidade pelo saacutebio segundo o epicurismo A concentraccedilatildeo no momento presente do

qual se pode retirar toda a felicidade que eacute possiacutevel ao homem isenta de imersatildeo na

anguacutestia no medo ou na ansiedade decorrentes da perturbaccedilatildeo dos tempos passados ou

dos tempos futuros apresenta-se como uma norma do saber-viver O prazer mais

intenso ou a felicidade mais desejaacutevel definem-se agrave luz da ausecircncia de temores de

inquietaccedilotildees e de incertezas condiccedilatildeo indispensaacutevel do alcance da paz da alma

Inscrever os desejos humanos num horizonte de expetativas futuras anuncia-se como

causa de sofrimento tal como explicita Hadot no acircmbito do epicurismo importa

645 Les Preacutesocratiques Ed P Dumont Paris 1988 P1112 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de ViverGoethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p31646 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p33

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determinar quais os ldquodesejos naturais e necessaacuteriosrdquo concebidos como desejos

essenciais para a preservaccedilatildeo da existecircncia ndash estes desejos assim entendidos ldquopodem

ser facilmente satisfeitos sem nos entregarmos agrave incerteza e agrave inquietaccedilatildeo de um longa

demandardquo647 Continuemos a ler Hadot a tal respeito

ldquoDecircmos graccedilas agrave bem-aventurada Naturezardquo diz uma maacutexima epicurista ldquoque fez como

que seja faacutecil chegar agraves coisas necessaacuterias e que as coisas difiacuteceis de atingir natildeo sejam

necessaacuteriasrdquo Tudo o que faz parte da doenccedila da alma ndash paixatildeo humana desejo de riqueza

de poder ou de depravaccedilatildeo ndash eacute que obriga a pensar no passado e no futuro Mas o prazer

mais puro talvez o mais intenso pode ser atingido facilmente no presente Natildeo eacute apenas

da quantidade de desejos satisfeitos que o prazer natildeo depende ele sobretudo natildeo depende

da duraccedilatildeo Natildeo eacute necessaacuterio ser longo para ser absolutamente perfeito ldquoUm tempo

infinito natildeo nos faz experimentar um prazer maior do que aquele que experimentamos

num tempo que vemos como limitadordquo648

A felicidade epicurista ndash ou a sabedoria epicurista ndash apresenta-se traccedilada

segundo a recusa da construccedilatildeo de uma expetativa delineada sob a noccedilatildeo de futuro o

apercebimento da vacuidade dos desejos situados no futuro e a dedicaccedilatildeo ao instante

enquanto uacutenico (e autecircntico) momento capaz de despertar a felicidade e a alegria

afiguram-se como postulados eacuteticos que traduzem de modo concreto a alianccedila entre

sabedoria e fina perspetivaccedilatildeo acerca do tempo A este respeito a maacutexima de Horaacutecio

natildeo poderia ser mais ilustrativa ldquoQue a alma feliz com o presente odeie preocupar-se

com o futurordquo649

No acircmbito do estoicismo e convocando o pensamento de Marco Aureacutelio ndash a que

Hadot dedicou a obra La citadelle inteacuterieure Introduction aux Penseacutees de Marc Auregravele

(1992) ndash importaria no mesmo tom compreender a possibilidade de realizaccedilatildeo do

exerciacutecio espiritual de concentraccedilatildeo no momento presente o momento que nos basta e

o presente basta-nos num duplo sentido com ele podemos ocupar-nos por completo

natildeo necessitando de pensar em outra coisa e aleacutem disso ele concede-nos a felicidade

plena natildeo sendo necessaacuterio dele sairmos em busca de qualquer outra realidade ou

situaccedilatildeo que resultariam invariavelmente vatildes Segundo Marco Aureacutelio o presente eacute

tudo aquilo quanto basta agrave nossa felicidade ndash e esta somente poderaacute ser alcanccedilada na

647 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p34648 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p34649 Horaacutecio Odes Livro II XVI v25 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p35

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medida em que sabemos reconhecer e distinguir aquilo que depende de noacutes daquilo que

natildeo depende de noacutes A este respeito assim escreve Hadot

O passado jaacute natildeo depende de noacutes porque estaacute definitivamente arrumado o futuro natildeo

depende de noacutes porque ainda natildeo existe Soacute o presente depende de noacutes Portanto eacute a uacutenica

coisa que pode ser boa ou maacute uma vez que eacute a uacutenica que depende da nossa vontade O

passado e o futuro porque natildeo dependem de noacutes porque natildeo satildeo da ordem do mal ou do

bem moral devem portanto ser-nos indiferentes Eacute inuacutetil preocuparmo-nos com o que jaacute

natildeo existe ou com o que talvez nunca venha a existir650

No seguimento de tais observaccedilotildees Hadot cita Marco Aureacutelio e Seacuteneca

Se expulsas de ti mesmo quero dizer do teu pensamento [hellip[ tudo o que por tua vez

fizeste ou disseste tudo o que com apreensotildees de futuro te atormenta [hellip] se expulsas

[hellip] aquilo que estaacute por vir bem como o que jaacute laacute vai [hellip] se te aplicas a viver somente o

momento que passa quero dizer o presente poderaacutes passar o tempo que te for dado ateacute agrave

morte com calma benevolecircncia e reconhecimento ao teu bom geacutenio651

Haacute portanto dois sentimentos que devemos eliminar decididamente o medo do futuro e a

recordaccedilatildeo da desgraccedila jaacute passada esta jaacute natildeo me diz respeito aquele ainda natildeo me diz

respeito652

O saacutebio goza o presente sem depender do futuro liberto das pesadas inquietaccedilotildees que

atormentam a alma ele natildeo espera nada natildeo deseja nada e natildeo se lanccedila no incerto porque

se contenta com o que tem [isto eacute o presente a uacutenica coisa que nos pertence] E natildeo se

pense que se contenta com pouco porque aquilo que ele tem [o presente] eacute todas as

coisas653

Segundo Hadot a analogia mais fulgurante entre o epicurismo e o estoicismo

poderaacute ser compreendida agrave luz da proposta do exerciacutecio espiritual de transformaccedilatildeo

radical da apreciaccedilatildeo humana do tempo concretizada de acordo com o postulado de

absoluta concentraccedilatildeo no instante presente doador de toda a felicidade possiacutevel O

saber relativo ao momento presente como realidade prenhe de sentido e o

reconhecimento acerca da vacuidade ou da futilidade das anguacutestias introduzidas por

tempos estranhos ndash o passado ou o futuro fontes de toda a perturbaccedilatildeo da alma ndash

650 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p38651 Marco Aureacutelio Pensamentos Livro XII 3 3-4 p144 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de ViverGoethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 pp38-39652 Seacuteneca Cartas a Luciacutelio Carta 78 sect14 p333 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe ea Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p39653 Seacuteneca Des Bienfaits VIII 2 4-5 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p39

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traduzem um elemento de afinidade essencial entre ambas as correntes filosoacuteficas A

tais observaccedilotildees cumpriria ainda acrescentar a conceccedilatildeo estoica acerca da adesatildeo

incondicional ao tempo presente ndash concebido como exerciacutecio espiritual por Hadot ndash com

a possibilidade de plena uniatildeo com a totalidade do ser A adesatildeo ao instante constitui-se

neste sentido como possibilidade de integraccedilatildeo no movimento ou no devir do ser ou do

mundo ou segundo os termos especificamente estoicos da Razatildeo universal A

dimensatildeo miacutestica de tal praacutetica natildeo deve ser descurada o assentimento agrave ou com a

totalidade do ser a fusatildeo ou a uniatildeo decorrentes de um sentimento de iacutentima

identificaccedilatildeo com o mundo e o seu devir traduzem a praacutetica eacutetica do saacutebio ndash para quem

o instante presente oferece contendo a totalidade do ser Sobre tais conceccedilotildees Hadot

esclarece recorrendo a Marco Aureacutelio e a Seacuteneca uma vez mais

O instante presente eacute fugidio minuacutesculo ndash Marco Aureacutelio insiste bastante neste ponto ndash

mas nesse vislumbre como diz Seacuteneca podemos exclamar em uniacutessono com Deus Tudo

me pertencerdquo [hellip] Para compreender isto eacute preciso lembrar o que representa para o

estoico a acccedilatildeo moral a virtude ou a sabedoria O bem moral uacutenico bem para o estoico

tem uma dimensatildeo coacutesmica eacute a concordacircncia da razatildeo que estaacute em noacutes com a Razatildeo que

preside ao cosmos que produz o encadeamento do destino A cada momento eacute o nosso

juiacutezo a nossa acccedilatildeo os nossos desejos que devem entrar em concordacircncia com a Razatildeo

universal Principalmente eacute necessaacuterio acolher com alegria a conjunccedilatildeo de acontecimentos

que resulta do curso da Natureza Eacute portanto necessaacuterio a cada instante ressituarmo-nos

na perspectiva da Razatildeo universal de modo que a cada instante se o homem viver de

acordo com a Razatildeo universal a sua consciecircncia espraia-se na infinitude do cosmos o

cosmos aparece-lhe na sua totalidade Isto eacute possiacutevel porque para os estoicos haacute uma

fusatildeo total uma implicaccedilatildeo reciacuteproca de todas as coisas em todas as coisas Criacutesipo falava

da gota de vinho que se funde com a totalidade do mar e se estende a todo o mundo654

Voltemos a Goethe Em verdade a determinaccedilatildeo da influecircncia direta do

epicurismo ou no estoicismo no pensamento ou na obra goethianos constitui tarefa

irrelevante As teses principais de tais correntes filosoacuteficas perpassaram a tradiccedilatildeo

cultural e literaacuteria europeia desde Montaigne ateacute Rosseau e agraves suas Les Recircveries du

promeneur solitaire ndash recorde-se a este respeito na quinta promenade a seguinte frase

ldquoEacute necessaacuterio que o coraccedilatildeo esteja em paz e que nenhuma paixatildeo venha perturbar a sua

calmardquo655 Curiosamente e tal como aponta Hadot importaria ter presente um poema de

654Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 pp 40-41655 Rousseau JJ Os Devaneios do Caminhante Solitaacuterio Lisboa 1989 p77 Apud Hadot P Natildeo TeEsqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa2019 p44

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Andreas Gryphius muito ceacutelebre num acircmbito germacircnico e que parece incorporar de

modo mais ou menos declarado o conselho eacutetico de dedicaccedilatildeo ao presente como praacutetica

de uma vida boa

Natildeo satildeo meus os anos que o tempo me levou

Nem meus satildeo ainda os anos que o futuro reservou

Soacute o instante eacute meu se lhe der atenccedilatildeo

Meu eacute tambeacutem o que anos e eternidades satildeo656

Tal como considera W Schadewaldt657 no acircmbito do pensamento goethiano a

noccedilatildeo de Gegenwart integra o sentido de ldquopresenccedilardquo no sentido de apariccedilatildeo de

manifestaccedilatildeo viva ndash trata-se com efeito de uma noccedilatildeo afim de Dasein ldquoestar-aiacuterdquo por

conseguinte somente existe presenccedila manifestaccedilatildeo viva ldquoestar aiacuterdquo no instante presente

ndash ou para usar o termo de Goethe Augenblick ldquopiscar de olhosrdquo tatildeo repentino quatildeo

efeacutemero e natildeo obstante prenhe de significado denso de sentido suscetiacutevel de irrupccedilatildeo

na consciecircncia de quem o vivencia de um sentimento de uniatildeo ou de fusatildeo com o devir

do mundo Evoquemos novamente a Elegia de Marienbad ldquoOlha o instante

[Augenblick] de frente [nos olhos] Augenrdquo658 A disposiccedilatildeo do indiviacuteduo para entregar-

se ao instante presente apreciando-o na sua densidade de sentido e na sua intensidade

temporal como que concentrando e fundindo na sua efemeridade passado e presente

apresenta-se para Goethe como um saber viver ndash e um exerciacutecio espiritual ndash proacuteprio do

homem grego Trata-se recorrendo agrave expressatildeo do poeta da ldquosauacutede do momentordquo

conquanto esta visatildeo relativa agrave mundividecircncia grega possa ser discutiacutevel devido agrave sua

eventual ausecircncia de rigor histoacuterico importaria no entanto tomar a posiccedilatildeo goethiana

como uma avaliaccedilatildeo acerca da impossibilidade de desenvolver tal exerciacutecio espiritual de

absoluta dedicaccedilatildeo ao instante presente por parte dos homens modernos Tal como

salienta Hadot Egmont parece constituir um temperamento excecional pela sua alegria

de viver ldquoHei-de deixar de saborear o momento presente para poder estar certo do

momento que estaacute para vir E voltar a consumir o momento seguinte em temores e

656 Gryphius A Gedichte Eine Auswahl Org Adalbert Elschenbroich Estugarda 1968 Apud HadotP Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria EtelvinaSantos Lisboa 2019 p43657 Schadewalt W Goethestudien p476 n103 Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e aTradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p45658 Goethe JW Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeodos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p45

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preocupaccedilotildeesrdquo659 Curiosamente e no mesmo sentido eacute o proacuteprio Goethe quem numa

conversa com o chanceler Von Muumlller afirma em tom de lamento ldquoPorque os homens

natildeo foram capazes de reconhecer o valor do presente e de lhe dar vida suspiraram por

um futuro melhor e interpretaram o pensamento sobre o passado com uma apaixonada

nostalgiardquo660 De modo igualmente ilustrativo importaria ainda ter presente as

palavras de Goethe numa das conversas com Eckermann ldquoAgarra-te com firmeza ao

presente Qualquer circunstacircncia qualquer instante tem um valor infinito pois eacute ele o

representante de toda a eternidaderdquo661 E no acircmbito de um poema intitulado

Lebensregel poder-se-ia ler uma vez mais a convocaccedilatildeo de tais posiccedilotildees proacuteprias da

sabedoria antiga acerca da concentraccedilatildeo plena no instante presente

Se na vida quiseres passar um bom bocado

Natildeo tens de te preocupar com o passado

Aborrece-te o menos que puderes

Aproveita o presente o melhor que souberes

Ignora o oacutedio a outros e aos teus

E deixa o futuro nas matildeos de Deus662

Por fim e tal como interessantemente elucida Hadot cada instante anuncia-se

para Goethe como ldquosiacutembolordquo do ser se aceitarmos a definiccedilatildeo de siacutembolo como ldquoa

relaccedilatildeo viva e instantacircnea do insondaacutevelrdquo663 tal como formulada pelo proacuteprio poeta Em

que consiste o insondaacutevel segundo Goethe De acordo com os esclarecimentos de

Hadot o insondaacutevel representa ldquoo misteacuterio indiziacutevel que estaacute no seio da Natureza e de

toda a realidaderdquo664 o instante presente e a dedicaccedilatildeo a ele permitem a anunciaccedilatildeo e a

659 Goethe JW Egmont Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dosExerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p52660 Goethe JW Entretiens avec le chancelier F de Muumlller de 7 de setembro de 1827 Apud GoetheElegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos ExerciacuteciosEspirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p52661 Conversations de Goethe avec Eckermann de 3 novembro de 1823 Apud Goethe Elegia deMarienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios EspirituaisTrad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019 p53662 Goethes JW Lebensregel Apud Goethe Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo Te Esqueccedilasde Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa 2019p52663 Goethe JW Maacuteximas e Reflexotildees Apud Goethe Elegia de Marienbad Apud Hadot P Natildeo TeEsqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad Maria Etelvina Santos Lisboa2019 p57664 Hadot P Natildeo Te Esqueccedilas de Viver Goethe e a Tradiccedilatildeo dos Exerciacutecios Espirituais Trad MariaEtelvina Santos Lisboa 2019 p57

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abertura ao misteacuterio do ser que se apresenta pois natildeo obstante a efemeridade do

momento na sua eterna presenccedila A concentraccedilatildeo absoluta no instante presente afigura-

se neste sentido como possibilidade de absoluta imersatildeo no devir do ser acompanhada

de sentimentos de participaccedilatildeo coacutesmica e de totalidade ontoloacutegica O exerciacutecio

espiritual de dedicaccedilatildeo plena ao instante presente eacute a sua propedecircutica ndash assim os

antigos nos ensinaram

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23 | Rousseau e a autonarrativa

Oacutecio e ociosidade As pessoas jaacute se comeccedilam a envergonhar do descanso as longasreflexotildees quase fazem remorsos Pensa-se com o reloacutegio na matildeo enquanto se almoccedila o olhono jornal da Bolsa vive-se como algueacutem que continuamente ldquopudesse perderrdquo algo ldquoMelhorfazer qualquer coisa do que nadardquo ndash esta maacutexima eacute tambeacutem uma corda para estrangulartoda a cultura e todo o gosto mais elevado E do mesmo modo que a expressatildeo individual seafunda visivelmente nesta pressa dos trabalhadores assim acontece tambeacutem com o sentidoda expressatildeo individual com os olhos e os ouvidos para a melodia dos movimentos A provaestaacute na rude clareza que se exige agora por todo o lado presente em todas as situaccedilotildees emque os seres humanos queiram alguma vez ser honestos uns com os outros no conviacutevio comamigos mulheres parentes crianccedilas professores alunos chefes e priacutencipes ndash jaacute natildeo haacutetempo nem forccedilas para cerimoacutenias para a cortesia com rodeios para todo o esprit naconversaccedilatildeo e sequer para algum otium Pois a vida agrave caccedila dos ganhos materiais obrigacontinuamente a despender o espiacuterito ateacute agrave exaustatildeo fingindo sempre defraudando ouantecipando-se aos outros a virtude propriamente dita eacute agora fazer qualquer coisa emmenos tempo do que qualquer outro E assim eacute raro haver horas de honestidade permitidanestas poreacutem estaacute-se cansado e uma pessoa gostaria natildeo soacute de se ldquodeixar ficarrdquo como ateacutede se estender rudemente ao comprimento e agrave largura De acordo com esta tendecircnciaescrevem as pessoas agora as suas cartas e o estilo e o espiacuterito das cartas seraacute sempre overdadeiro ldquosinal dos temposrdquo Se ainda houver algum prazer na sociedade e nas artes seraacuteo que conseguem os escravos exaustos do trabalho Oh como a nossa gente culta e incultagoza tatildeo pouco a ldquoalegriardquo E como cresce a suspeita em relaccedilatildeo a toda a alegria Otrabalho ganha cada vez mais a boa consciecircncia para o seu lado o pendor para a alegriachama-se jaacute ldquonecessidade de descansordquo e comeccedila a envergonhar-se de si proacuteprio ldquoDevemosisto agrave nossa sauacutederdquo assim falam quando satildeo apanhados num passeio ao campo Simpoderiacuteamos em breve chegar ao ponto de natildeo nos entregarmos a um pendor para a vitacontemplativa (isto eacute a dar passeios com ideias e amigos) sem autodesprezo e maacuteconsciecircncia

Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia

A narraccedilatildeo constitui uma das teacutecnicas crucias da autoestruturaccedilatildeo e da

autoconstituiccedilatildeo humanas atraveacutes da narraccedilatildeo o ser humano permite-se dar sentido agrave

sua vida construindo segundo as palavras de Ricœur uma identiteacute narrative para si

proacuteprio665 Tal como Ricœur propotildee no seu ensaio Lrsquoidentiteacute narrative (1988) ndash um

escrito que recupera e desenvolve tal conceito que lhe daacute tiacutetulo previamente formulado

em Temps et reacutecit III ndash a funccedilatildeo narrativa (fonction narrative) determina-se como um

modo de acesso mediaccedilatildeo e configuraccedilatildeo da identidade de um ser humano Se de

acordo com o filoacutesofo o conhecimento-de-si se constitui inexoravelmente como

interpretaccedilatildeo ndash porventura como escrita-de-si e como leitura-de-si ndash natildeo seraacute

supeacuterfluo perspetivar as possibilidades de determinaccedilatildeo de uma identidade atraveacutes da

fusatildeo entre histoacuteria (ou conjunto de factos) e ficccedilatildeo tendo presente que a identidade

poderaacute determinar-se agrave luz das narrativas que ela mesma desenvolve para si proacutepria

sobre si proacutepria Neste sentido segundo Ricœur a ficccedilatildeo e a funccedilatildeo narrativa

665 Ricœur P Lrsquoidentiteacute narrative In Esprit 12 (1988) pp 295-304

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determina-se como uma mediaccedilatildeo privilegiada da escrita da identidade de um ser

humano no mesmo tom o filoacutesofo atenta sobre um certo caraacutecter epistemoloacutegico da

autobiografia (a narraccedilatildeo-de-si) concebido como geacutenero literaacuterio passiacutevel de tal

mediaccedilatildeo privilegiada que compotildee o conhecimento-de-si Trata-se pois de perspetivar

o ser humano nunca considerado enquanto um sujeito que se determina como uma

entidade puramente formal como um escritor-de-si como um leitor-de-si cuja

identidade integra as possibilidades da ficccedilatildeo e da narraccedilatildeo enquanto modos de

autoestruturaratildeo e autoconstituiccedilatildeo

Atente-se que do ponto de vista dos estudos literaacuterios e de acordo com Martin

Kreiswirth a intensificaccedilatildeo da emergecircncia da narraccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas conhecera a

formulaccedilatildeo de uma expressatildeo conceptual profundamente ilustrativa narrativist turn666

Com efeito importaria chamar a atenccedilatildeo sobre o facto de numerosas obras filosoacuteficas

fornecerem um espectro consideraacutevel de distinccedilotildees ou variaccedilotildees conceptuais relativas agrave

temaacutetica da narraccedilatildeo o que torna o fenoacutemeno de contar histoacuterias narrativamente cada

vez mais tangiacutevel relevante presente Talvez o ponto basilar de todas estas

consideraccedilotildees consista em desenvolver as narrativas em contraposiccedilatildeo agraves regras e

princiacutepios gerais e abstratos normalmente usados na ciecircncia para compreender os

fenoacutemenos667 Quem tenta explicar uma situaccedilatildeo por meio de algumas regras gerais

dedica a sua atenccedilatildeo a somente uma parte das informaccedilotildees abstratas disponiacuteveis Em

contraste ao transmitir um facto atraveacutes de uma narrativa o foco natildeo estaacute na

abstraccedilatildeo e na reduccedilatildeo mas no detalhe concreto De acordo com os representantes das

abordagens narrativas tal riqueza de informaccedilatildeo e tal densidade de pormenorizaccedilatildeo

traduzem o caraacutecter eminente da narraccedilatildeo Aleacutem disso o gesto de contar narrativas

permite igualmente a formulaccedilatildeo de modos de possibilidade de expressar algo sobre

quem somos ndash para noacutes mesmos e para os outros ndash e que exigecircncias e expectativas

podem ser colocadas sobre noacutes Estas satildeo as abordagens que podem ser descritas como

autoconceito narrativo O ponto de partida da teoria da identidade narrativa em

666 Consultar Kreiswirth M Trusting the Tale The Narrativist Turn in the Human Science In NewLiterary History 23 (1992) 629-657 Nash C (ed) Narrative in Culture The Use of Storytelling in theSciences Philosophy and Literature LondonNew York 1990 Hinchman LHinchman S (ed)Memory Identity Community The Idea of Narrative in the Human Sciences Albany 1997 Haker HbdquoNarrative und moralische Identitaumltldquo In Mieth D (ed) Erzaumlhlen und Moral Narrativitaumlt imSpannungsfeld von Ethik und Aumlsthetik Tuumlbingen 2000 pp37-65 Kraus W bdquoDas narrative Selbst unddie Virulenz des Nicht-Erzaumlhltenldquo In Joisten K (ed) Narrative Ethik Das Gute and das Boumlse erzaumlhlenMuumlnchen 2007 pp25-43667 Arras J D Narrative Ethics In Routledge Encyclopedia LondonNew York 1998 pp 1201-1205

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Ricoeur eacute a ideia de que a identidade dos seres humanos natildeo pode ser explicada apenas

pela identidade numeacuterica a categoria da mesmidade (a identidade como mesmidade)

constitui pois uma determinaccedilatildeo natildeo particularmente relevante aos olhos do filoacutesofo

que propotildee por sua vez uma elaboraccedilatildeo de pendor profundamente eacutetico relativo agrave

categoria da ipseidade (a identidade como si-mesmo) a categoria que elege como modo

de perspetivaccedilatildeo da identidade narrativa Ricoeur critica o facto de a discussatildeo analiacutetica

se centrar predominantemente nas caracteriacutesticas mentais e fiacutesicas como criteacuterios

definidores de identidade dos seres humanos ndash em verdade o filoacutesofo francecircs procura

recusar a corrente analiacutetica elaborada por Derek Parfit que sustenta a intencional

limitaccedilatildeo do conceito de identidade pessoal de tal modo que em uacuteltima o mencionado

conceito de identidade pessoal se reduza a uma vazio e a impessoalidade se afirme

como noccedilatildeo privilegiada Ora para Ricoeur pelo contraacuterio eacute justamente a experiecircncia

individual e pessoal ordenada narrativamente que forma a base da identidade de

algueacutem

Todavia segundo Byun-Chul Han desenvolver e organizar narrativamente a

experiecircncia pessoal no contexto da modernidade tardia constitui uma tarefa difiacutecil

periclitante A perspetivaccedilatildeo de uma ldquocrise temporalrdquo inserta no contexto da

modernidade tardia constitui um dos elementos centrais da argumentaccedilatildeo do filoacutesofo a

este propoacutesito ndash uma ldquocrise temporalrdquo caracterizada tanto por uma forte aceleraccedilatildeo

quanto por uma paralisaccedilatildeo e sobretudo avaliada na sua ausecircncia de uma estrutura de

um ritmo668 Tal situaccedilatildeo assim considerada conduz a uma de-temporalizaccedilatildeo

(Entzeitlichung)

A des-temporalizaccedilatildeo (Entzeitlichung) generalizada implica o desaparecimento dos cortes

temporais e das conclusotildees dos limiares e das transiccedilotildees que satildeo constitutivos do sentido

A falta de uma articulaccedilatildeo forte do tempo daacute lugar agrave sensaccedilatildeo de que este corre mais

rapidamente do que antes Esta sensaccedilatildeo intensifica-se porque os acontecimentos

desprendem-se com crescente celeridade uns dos outros sem deixarem marca profunda

sem chegarem a tornar-se uma experiecircncia A falta da gravitaccedilatildeo faz com que todas as

coisas soacute superficialmente se aflorem Nada importa Nada eacute decisivo Nada eacute definitivo

Natildeo haacute qualquer corte Quando deixa de ser possiacutevel determinar o que tem importacircncia

tudo perde importacircncia O excesso de possibilidades de conexatildeo equivalentes ndash quer dizer

de direccedilotildees potenciais ndash poucas vezes conduz a uma conclusatildeo O concluir pressupotildee um

tempo articulado669

668 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p38669 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p38

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E mais adiante

A destemporalizaccedilatildeo natildeo permite lugar a qualquer progresso narrativo O narrador

demora-se nos acontecimentos mais pequenos e insignificantes porque natildeo sabe distinguir

o que eacute do que natildeo eacute importante A narrativa implica diferenccedilas e escolhashellipA falta da

trajetoacuteria narrativa que funciona de maneira seletiva faz com que o narrador natildeo possa

escolher o que eacute significativo hellip A destemporalizaccedilatildeo faz com que toda a tensatildeo narrativa

desapareccedila O tempo narrado decompotildee-se numa cronologia vazia de acontecimentos

Deveriacuteamos falar de uma enumeraccedilatildeo mais do que uma narrativa Os acontecimentos natildeo

se imprimem numa imagem coerente Esta incapacidade de siacutentese narrativa e tambeacutem

temporal gera uma crise de identidade O narrador jaacute natildeo eacute capaz de reunir os

acontecimentos em seu redor670

A narratividade no entanto natildeo soacute estrutura as experiecircncias que satildeo feitas na

vida mas tambeacutem na sua forma literaacuteria forma a base sobre a qual podemos aprender

algo sobre a identidade de algueacutem Tenha-se presente que atraveacutes do recurso agrave

autobiografia a histoacuteria cultural europeia pocircde produzir um tipo de escrita

profundamente orientada para a construccedilatildeo de identidades narrativas permitindo o

desenvolvimento de processos de autoconstituiccedilatildeo de um determinado sujeito que se

escreve a si mesmo e que se afigura transparente ao seu leitor ou perante o seu leitor

Importaria assinalar a este respeito que a emergecircncia das narrativas autobiograacuteficas

tem lugar num momento cultural em que o conceito moderno de sujeito se encontra a

tomar forma e configuraccedilatildeo proacuteprias ndash um momento cultural em que a autoconstituiccedilatildeo

se determina para uma funccedilatildeo de oacutecio nomeadamente no final do seacuteculo XVIII671 Com

efeito a configuraccedilatildeo de uma ideia de individualidade humana entrecruza-se com a

possibilidade de emergecircncia da narrativa literaacuteria No entanto se a narrativa

autobiograacutefica eacute uma forma de autoconstituiccedilatildeo e se a ideia de autoconstituiccedilatildeo estaacute

conceptualmente ligada ao oacutecio entatildeo eacute razoaacutevel assumir que nas autobiografias

modernas as situaccedilotildees de oacutecio satildeo frequentemente encenadas

Tomemos um exemplo profundamente ilustrativo Les recircveries du promeneur

solitaire de Jean-Jacques Rousseau Este escrito tardio de Rousseau uma das obras

autobiograacuteficas mais influentes do final do seacuteculo XVIII revela a ecircnfase no oacutecio como a

670 Han B-C O Aroma do tempo Trad Miguel Serras Pereira Lisboa 2016 p40671 Sill O Zerbrochene Spiegel Studien zur Theorie und Praxis modernen auto- biographischenErzaumlhlens BerlinNew York 1991 p53 Stuumlssel K bdquoAutorschaft und Autobiographik im kultur- undmediengeschichtlichen Wandelldquo In Breuer USandberg B (ed) Grenzen der Identitaumlt und derFiktionalitaumlt (Autobiographisches Schreiben in der deutschsprachigen Gegenwartsliteratur vol1)Muumlnchen 2006 pp19-33

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mais indispensaacutevel das condiccedilotildees para a autorreflexatildeo Na quinta promenade das

Recircveries du promeneur solitaire o ego narrativo daacute por si mesmo vivenciando um

dolce far niente

Le preacutecieux far niente fut la premiegravere et la principale de ces jouissances que je voulus sa-

vorer dans toute sa douceur et tout ce que je fis [] ne fut en effet que loccupation

dlicieuse et neacutecessaire dun homme qui est deacutevoueacute agrave loisiveteacute672

Rousseau estiliza o oacutecio como um modo ideal de existecircncia que permite ao

narrador autobiograacutefico uma experiecircncia-de-si feliz Enquanto se demora no oacutecio as

restriccedilotildees e as necessidades externas entram em segundo plano O sujeito de Rousseau

pode colocar-se no centro da sua contemplaccedilatildeo como que experienciando um estado de

autossuficiecircncia divina

De quoi jouait-on dans une pareille situation The rien dexteacuterieur agrave soi the rien sinon de

soi-mecircme et de sa propre existence tant que cet eacutetat dure on seine suffit agrave soi-mecircme

comme Dieu673

Interessantemente a respeito da emergecircncia da subjetividade moderna e da sua

autoproibiccedilatildeo de cumprimento do oacutecio Peter Sloterdijk elucida

O big bang no desenvolvimento do conceito subjetivo europeu de liberdade de que

estou a falar aqui eacute abordado mais de dois mil anos depois em solo suiacuteccedilo nomeadamente

no Outono de 1765 Atraveacutes da sua uacutenica testemunha que ao mesmo tempo representa o

protagonista dos acontecimentos temos um conhecimento relativamente detalhado sobre

tal conceito Naquela eacutepoca a Suiacuteccedila tinha um papel fundamental na histoacuteria da ideia da

liberdade republicana renovada mas como pode ser visto imediatamente esta ideia

deveria tambeacutem desempenhar um papel importante na histoacuteria da subjetividade moderna

que naquela eacutepoca estava a ganhar velocidade O heroacutei da histoacuteria natildeo eacute Jean-Jacques

Rousseau nascido em Genebra cinquenta e trecircs anos de idade naquele ano um homem

em fuga Em alguns dias ensolarados de outono o autor perseguido agora em repouso e

encantado pelo charme da ilha tranquila havia sido levado para o lago num barco a remos

Num lugar distante deixara os remos afundarem e deitou-se de costas no fundo do barco

para se dedicar a uma atividade movimentada Deixou-se conduzir por uma viagem

interior que o autor descreveu com o termo recircverie Devo portanto retomar o termo Big

Bang jaacute que na realidade natildeo era um acontecimento explosivo mas quase impercetiacutevel e

de caraacuteter implosivo ou contemplativo Neste momento o termo liberdade assume

672 Rousseau J-J Les recircveries du promeneur solitaire Œuvres complegravetes Vol 1 Gagnebin B (ed)Paris 1959 [1776ndash1778] p1042 673 Rousseau J-J Les recircveries du promeneur solitaire Œuvres complegravetes Vol 1 Gagnebin B (ed)Paris 1959 [1776ndash1778] p1047

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involuntariamente um novo significado Descreve o estado de uma inutilidade requintada

em que o indiviacuteduo estaacute completamente consigo mesmo Deste modo a liberdade no

sentido atual experimenta-a quem descobre um desemprego sublime no seu interior ndash sem

contactar imediatamente uma agecircncia de empregos674

E mais adiante

Uma vez que a subjetividade tinha sido posta em movimento desta maneira eram

necessaacuterios meios para lidar com o perigo colocado pela inutilidade divina do sujeito-da-

recircverie que se contemplava e perdia em si mesmo Estes meios soacute seriam fornecidos por

sujeitos-controladores pensantes Eles foram inicialmente recrutados a partir da filosofia

alematilde da geraccedilatildeo apoacutes Rousseau por volta de 1800 Os seus protagonistas compreenderam

intuitivamente que o novo sujeito-da-recircverie era socialmente inaceitaacutevel Isto soacute poderia

acontecer de tal forma que o novo sujeito autoacutenomo do sonho-acordado ndash ao contraacuterio da

sua proacutepria tendecircncia ndash fosse agora associado ao mundo do desempenho Kant

primeiramente conseguiu fazecirc-lo desenvolvendo a transiccedilatildeo para o sujeito atraveacutes da

filosofia transcendental mas apenas para usar o sujeito em todo este campo de tarefas das

atividades de reconhecimento e de julgamento A partir desse momento acabou o seu feliz

desemprego Kant retirou o sonhador do barco e recrutou-o para um emprego no serviccedilo

puacuteblico Ningueacutem iria escapar ao campo de trabalho da sociedade no futuro Assim o

fundador do positivismo Auguste Comte pronunciou-se deste modo numa conferecircncia

por volta de 1850 Ningueacutem tem direito algum a natildeo ser o de cumprir sempre o seu

dever Natildeo eacute aqui que se deve difundir toda a histoacuteria da disciplina da socializaccedilatildeo

forccedilada e finalmente da caluacutenia da negaccedilatildeo e da submissatildeo do sujeito ao

desenvolvimento cultural dos seacuteculos XIX e XX O resultado seria o romance da

modernidade que tem medo da sua mais importante descoberta Contentar-me-ei em

salientar que a Inquisiccedilatildeo contra o sujeito autoacutenomo parece ter entrado numa fase final nas

uacuteltimas deacutecadas675

Um outro fenoacutemeno das Recircveries apresenta-se particularmente sintomaacutetico da

narrativa autobiograacutefica moderna trata-se do locus da autorreflexatildeo ociosa ndash com

efeito esta encontra-se intimamente ligada a determinados lugares tranquilos676 Na

quinta promenade eacute pois a Ilha de Satildeo Pedro no Lago Biel para onde Rousseau foge

dos seus perseguidores Neste seu exiacutelio Rousseau passa seis semanas que preenche

com passeios ao longo da ilha Na outra obra autobiograacutefica de Rousseau as

674 Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 pp44-45675 Sloterdijk P Streszlig und Freiheit Frankfurt aM 2011 p45 676 Sobre o caraacutecter espacial do oacutecio em geral consultar Figal G Die Raumlumlichkeit der Muszlige InHasebrink B Riedl PP (ed) Muszlige im kulturellen Wandel Semantisierungen AumlhnlichkeitenUmbesetzungen Berlin 2014 pp26-33

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Confessions eacute a floresta de Montmorency ao norte de Paris para onde o autor se retira

para caminhar e escrever na pura solidatildeo677 A perspetivaccedilatildeo de um locus proacuteprio agrave

autorreflexatildeo natildeo constitui no entanto uma inovaccedilatildeo de Rousseau encontrando-se

presente em verdade nos primoacuterdios da autobiografia A cena-chave das Confessiones

de Agostinho eacute bem conhecida num jardim isolado em Milatildeo as duacutevidas de Agostinho

sobre a sua proacutepria vida atingem o seu acme e inspiradas pela leitura das cartas de

Paulo conduzem-no agrave conversatildeo ao cristianismo678 As claacutessicas autobiografias

demonstram quatildeo decisiva eacute a posiccedilatildeo espacial do ego autobiograacutefico para a sua

autoexploraccedilatildeo e para a autonarrativa

677 Consultar Rousseau J-J Les confessions Œuvres completes Vol 1 Gagnebin B (ed) Paris1959 [1782ndash1789] p404678 Augustinus A Confessiones Flasch KMojsisch B (ed) Stuttgart 2009 [397-401 AD] p386

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24 | O enquadramento do oacutecio

Quanto mais o trabalho intelectual se assimilava agrave violenta atividade industrial sem gostonem tradiccedilatildeo e quanto mais a ciecircncia e a escola se esforccedilavam diligentemente para nosprivarem da liberdade e da personalidade e por nos forccedilarem desde a mais terna idade aviver forccedilados e esbaforidos numa situaccedilatildeo dita ideal de azaacutefama tanto mais a arte do oacutecioentrou em decadecircncia desuso e descreacutedito junto das outras artes jaacute obsoletas Como se emalgum momento tiveacutessemos sido mestres nela Pelos tempos fora no ocidente a preguiccedilaconvertida em arte foi praticada apenas por inofensivos diletanteshellipNatildeo tenho a menor intenccedilatildeo de aconselhar a maquinaccedilatildeo devoradora de personalidades danossa induacutestria e da nossa ciecircncia Se a induacutestria e a ciecircncia natildeo sentem mais a necessidadede uma personalidade entatildeo que prescindam dela Mas noacutes os artistas que no meio dagrande bancarrota cultural habitamos uma ilha com recursos de vida ainda suportaacuteveisdevemos reger-nos por outras leis como sempre o fizemoshellipChegou o momento em que sinto a falta da arte do preguiccedilar fortalecida e refinada por umasoacutelida tradiccedilatildeo e no qual o meu outrora imaculado espiacuterito germacircnico direciona o seu olharcom inveja e nostalgia para a Aacutesia maternal onde uma praacutetica antiga amestrou um ritmoestruturador e enobrecedor ao aparentemente informe estado de presenccedila e inaccedilatildeo

Hermann Hesse A arte do oacutecio

Especialmente sob certas condiccedilotildees externas a reflexatildeo sobre a proacutepria vida

assume-se possiacutevel legiacutetima e promissora A praacutetica literaacuteria que consiste em mostrar o

eu que recorda e que narra inserido numa situaccedilatildeo de oacutecio e num lugar

preferencialmente natural e isolado encontra a sua possibilidade no discurso teoacuterico

sobre a autobiografia enquanto geacutenero no curso da modernidade679 Pode-se portanto

perspetivar os ldquoenquadramentos do oacuteciordquo como espaciais mas tambeacutem como soacutecio-

histoacutericos ou temporais680 Na sua anaacutelise de enquadramento Goffman elucida que

circundamos situaccedilotildees sociais com enquadramentos de modo a poder reconhececirc-las

no seu caraacutecter individual e assim distingui-las de outras situaccedilotildees681 Com estes atos

de enquadramento os parceiros de interaccedilatildeo indicam mutuamente como definem a

situaccedilatildeo social especiacutefica em que se encontram que regras de interaccedilatildeo nela se aplicam

e que acento da realidade682 atribuem a esta situaccedilatildeo especiacutefica

679 Desta forma o acoplamento da reflexatildeo autobiograacutefica e do oacutecio adquire um caraacutecter toacutepico o oacuteciodo autobioacutegrafo estaacute ligado a certos lugares de autorreflexatildeo que se estabeleceram no decurso da histoacuteriacultural e desenvolveram a sua influecircncia atraveacutes dos limites epocais680 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 pp43-45681 Goffman E Frame Analysis An Essay on the Organization of Experience Havard 1974682 Schuumltz ALuckmann T Strukturen der Lebenswelt Konstanz 2003

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A fruiccedilatildeo do oacutecio a criaccedilatildeo de seus espaccedilos e tempos segue um regulamento

social que pode ser exemplarmente apreciado no Decamerone de Boccaccio683 A

condiccedilatildeo que permite que sete senhoras e trecircs senhores narrem uma centena de novelas

uns aos outros durante dez dias eacute o enquadramento espacial e temporal que tecircm de

criar de antematildeo Este enquadramento afigura-se intimamente relacionado com a

necessidade e com a ameaccedila pois a praga grassa em Florenccedila Aleacutem do perigo real que

representa a praga constitui um siacutembolo que evoca um mundo caoacutetico e um destino

incontrolaacutevel Escapar deste perigo em direccedilatildeo a uma propriedade rural fora de Florenccedila

eacute mais do que verosiacutemil ou compreensiacutevel traduzindo uma reaccedilatildeo convincente Entra-

se assim num enclave espacial na paisagem de uma quinta e num tempo para si

proacuteprio dez dias cada um deles decorrendo segundo uma rotina diaacuteria fixa Este

conjunto de atos de enquadramento apresenta-se projetado segundo a finalidade de criar

uma atmosfera serena e aberta na qual os temas contraditoacuterios e os distintos geacuteneros

narrativos possam coexistir farsa romance e drama erotismo religiatildeo engano golpes

do destino intriga amor amizade etc Em Decamerone Boccaccio revela

paradigmaticamente o que ndash sempre jaacute ndash tem de ser criado e desenvolvido

estruturalmente em termos de tempo e espaccedilo para que o oacutecio possa desenvolver-se

por um lado o afastamento da vita ativa do quotidiano dos seus objetivos e da

consequente compulsatildeo para agir e tomar decisotildees e por outro lado a adoccedilatildeo de uma

postura dirigida para as possibilidades de uma abertura extraordinaacuteria do tempo e do

espaccedilo mediante a rutura com a perceccedilatildeo orientada para objetivos jaacute definidos de

antematildeo

Curiosamente importaria assinalar de um ponto de vista do desenvolvimento

histoacuterico e social os distintos modos de criaccedilatildeo dos espaccedilos e dos tempos do oacutecio

segundo diferentes classes sociais ndash pois tambeacutem a criaccedilatildeo de tais espaccedilos e tempos se

afigura determinada inicialmente segundo diferentes padrotildees de comportamento social

A aristocracia prefere a quinta rural (por exemplo o Tusculum de Cicero) ou o castelo

de prazer e de caccedila O clero que com seus mosteiros criara um mundo dentro do mundo

e portanto a sua proacutepria ordem simboacutelica de espaccedilo e tempo enquadra molda

configura os seus lugares e tempos dedicados ao oacutecio e agrave meditaccedilatildeo dentro desse mesmo

mundo religioso Neste sentido o clero desenvolve um paradoxo que lhe eacute especiacutefico o

oacutecio proposital na meditaccedilatildeo a abertura para tudo o que eacute divino combinado com a

683 Soumlffner J Das Decamerone und sein Rahmen des Unlesbaren Heidelberg 2005

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exclusatildeo de tudo o que eacute mundano ou mais do que isso diaboacutelico A burguesia por

sua vez encontra os seus enclaves de oacutecio espacial e temporal para aleacutem do seu mundo

profissional no conviacutevio do salatildeo e na sala tranquila da biblioteca ou na sala de estudo

Se a aristocracia se abre agrave natureza atraveacutes da caccedila o cidadatildeo dedica-se ao passeio

urbano684 e igualmente agrave natureza e ao ar livre E os trabalhadores (qualificados) e os

pequenos empregados constroem as suas casas de jardim Ateacute hoje sob a forma de

finas diferenccedilas685 as vaacuterias formas de espaccedilos de oacutecio foram preservadas

dependendo dos seus contextos sociais Por muito diferentes que sejam os respetivos

enquadramentos do oacutecio todos eles revelam caracteriacutesticas em comum

Todos os regulamentos do oacutecio satildeo destinados agrave criaccedilatildeo de pequenos mundos

autoacutenomos no mundo governados de acordo com as suas proacuteprias leis Neles se

permitem e se concretizam as possibilidades do tempo experimentado contra o tempo

medido segundo um propoacutesito de suspensatildeo do tempo dito normal do tempo padratildeo de

trabalho e das rotinas diaacuterias procurando-se assim estabelecer uma outra loacutegica em

contraposiccedilatildeo agrave cronologia Os espaccedilos e os tempos exteriores possibilitam a abertura

da perceccedilatildeo e do sentimento humano para a interaccedilatildeo de todos os sentidos ndash com efeito

o oacutecio cria a oportunidade de uma sinestesia liberada experienciaacutevel Assim este

enquadramento espacial e temporal do oacutecio potencia o contraste com a realidade

quotidiana o pano de fundo do qual o oacutecio emerge e vive O afastamento deliberado de

um mundo no qual por um lado nos movemos em trecircs quartos das nossas accedilotildees como

autoacutematos686 e por outro lado se configura como um mundo de perspetiva

unidimensional orientado pelo interesse e condenado agrave compulsatildeo de agir e tomar

decisotildees pode conduzir agrave emergecircncia de paradoxos produtivos inclusivamente a

atividade de enquadramento poderaacute ser perspetivada como uma atividade intencional

para a produccedilatildeo de uma certa liberdade deliberada o espaccedilo para interesses

livremente flutuantes Desta forma o oposto de trabalho como esforccedilo deveria tornar-

se possiacutevel trata-se igualmente de criar o paradoxo do trabalho prazeroso um

trabalho que natildeo estaacute orientado para um fim exterior a si proacuteprio nem orientado para

assegurar a sua existecircncia nem para auferir dinheiro decorrente de um suposto contrato

de trabalho O enquadramento espacial e temporal do oacutecio promove com efeito tal

contraste paradoxal A separaccedilatildeo e o encerramento dos espaccedilos do oacutecio relativamente

684 Woumllfel K Spaziergaumlnge Zuumlrich 2009685 Bourdieu P La distinction Critique sociale du jugement Paris 1979686 Bourdieu P La distinction Critique sociale du jugement Paris 1979 p740

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aos espaccedilos do quotidiano neg-oacutecio potenciam a abertura de um espaccedilo de imaginaccedilatildeo

para aleacutem do mensuraacutevel

Trata-se de uma intemporalidade de que os artistas por exemplo necessitam ou

agrave qual aspiram uma intemporalidade no interior da qual se pode sonhar sem ter de

adormecer (Nietzsche por exemplo descreve o artista como o noctacircmbulo do dia687)

O mesmo se aplica ao tempo ocioso que natildeo se pode ser medido pois repousa na

experiecircncia Com a sua proacutepria extensatildeo variaacutevel este tempo natildeo soacute se opotildee ao curso

padratildeo diaacuterio do tempo mas produz tambeacutem um paradoxo de intemporalidade

temporaacuteria atraveacutes do seu enquadramento (e do estatuto de enclave que eacute assim

criado)688

Assim apesar da sua funccedilatildeo excludente e do caraacutecter exclusivo de lazer o

enquadramento potencia uma exclusatildeo das influecircncias externas do mundo Mas o

enclave do oacutecio natildeo eacute absorvido por ele Natildeo gera uma atenccedilatildeo dirigida mas ndash

metaforicamente ndash como que cria por um lado uma moldura de imagem fechada para o

exterior e por outro lado uma superfiacutecie de projeccedilatildeo que se abre e na qual tudo pode

ser potencialmente pintado Movimentar-se num espaccedilo de opccedilotildees que reivindica todos

os sentidos significa entrar nesse humor extraordinaacuterio permitindo-nos aqui prever ou

reconhecer porventura a reflexatildeo de uma vida tatildeo deliciosa quatildeo improvaacutevel no reino

da liberdade autoacutenoma

687 Nietzsche F Die froumlhliche Wissenschaft Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe vol3 ColliG Montinari M (ed) Muumlnchen 1988 p79688 Soeffner H-G Muszlige ndash Absichtsvolle Absichtslosigkeit In Hasebrink BRiedl PP (ed) Muszlige imkulturellen Wandel Semantisierungen Aumlhnlichkeiten Umbesetzungen Berlin 2014 p36

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25 | O enquadramento do idiacutelico

Eu nunca guardei rebanhosMas eacute como se os guardasseMinha alma eacute como um pastorConhece o vento e o solE anda pela matildeo das EstacotildeesA seguir e a olharToda a paz da Natureza sem genteVem sentar-se a meu lado

Alberto Caeiro O guardador de rebanhos

O homem natildeo deve viver numa pobreza de espiacuterito idiacutelica ndash deve trabalhar689

O veredicto de Hegel a propoacutesito do idiacutelio ilustra e sintetiza um debate que tivera o seu

iniacutecio nos finais do seacuteculo XVIII especialmente nas geraccedilotildees anteriores agrave de Hegel as

geraccedilotildees de Kant e de Schiller ndash e que em traccedilos gerais se caracteriza por uma

crescente postura de subordinaccedilatildeo do conceito de oacutecio ao conceito-chave de trabalho

Com efeito quando Hegel formula a propoacutesito do idiacutelio o sentimento de falta dos

impulsos mais elevados do ser humano impulsos que o incitam agrave atividade

proporcionando-lhe o sentimento de forccedila interior e do qual os interesses mais

profundos se podem desenvolver690 o filoacutesofo propotildee-se delinear em verdade um

conceito de trabalho que se afigura caracterizado como uma potecircncia histoacuterica e humana

que o idiacutelio natildeo pode satisfazer De acordo com a noccedilatildeo de idiacutelio ndash noccedilatildeo aqui

contraposta ao conceito de trabalho ndash a natureza satisfaz [] ao homem toda a

necessidade que nele possa surgir e este contenta-se no seu estado de inocecircncia []

com o que o prado a floresta as manadas um pequeno jardim a sua cabana podem

oferecer-lhe em comida habitaccedilatildeo e outras comodidades de modo que todas as paixotildees

de ambiccedilatildeo ou de cobiccedila []permanecem ainda em silecircnciordquo691

689 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p336690 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p336691 Hegel GWF Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik I Werke B 13 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p335

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Joseph Vogl atentou sobre tais posiccedilotildees de Hegel relativas ao conceito de

trabalho ndash lidas agrave luz da foacutermula hegeliana de desejo inibido692 contrastando-as com

uma certa interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo iluminista (anterior portanto) de tal conceito de

acordo com Vogl o conceito de trabalho tal como compreendido na Aufklaumlrung

traduzia toda atividade que natildeo se interrompe com a satisfaccedilatildeo de uma

necessidade693 Debruccedilando-se sobre Fausto II de Goethe Vogl elabora uma nova

economia do trabalho na modernidade [] cujo ponto central estaacute na impossibilidade

de terminar as accedilotildees (e do ldquofazerrdquo) e numa certa emergecircncia da ldquofutilidaderdquo como

caracteriacutestica que envolve todas as produccedilotildees694 No contexto de Fausto II um texto

literaacuterio que curiosamente evoca um tratamento tatildeo interessante quatildeo problemaacutetico do

idiacutelio Vogl comenta a propoacutesito da abertura do Quinto Ato a apresentaccedilatildeo do idiacutelio na

sua realidade espacial descrita agrave luz da existecircncia harmoniosa de cabanas de Filemom

e Baucis cuja pura existecircncia atrai o impulso inquieto de Fausto para a expansatildeo695

Com efeito o confronto entre o idiacutelio e a modernidade caracterizada agrave luz da irrupccedilatildeo

do conceito do trabalho tal como encarnado no projeto de exploraccedilatildeo de terras de

Fausto constitui uma realidade filosoficamente considerada reconhecida e perspetivada

jaacute nos iniacutecios de 1800 Neste acircmbito o idiacutelico configura-se como algo mais do que um

espaccedilo dramatuacutergico ou narrativo de contraste Trata-se da evocaccedilatildeo de uma vida de

oacutecio uma contraimagem com qual a literatura e a filosofia passaram a trabalhar a

partir de iniacutecios do seacuteculo XIX

Cerca de cinquenta anos antes das referecircncias de Goethe e Hegel ao idiacutelio jaacute

Kant havia tratado em Ideia de uma histoacuteria universal de um ponto de vista

cosmopolita a questatildeo do progresso da humanidade agrave luz da designada qualidade em si

natildeo realmente amaacutevel do egoiacutesmo da ambiccedilatildeo do desejo de poder ou de ganacircncia

perspetivada em contraposiccedilatildeo a uma vida de pastor arcaacutedico desenvolvida com

perfeita harmonia contentamento e amor agrave mudanccedila e na qual todos os talentos

permanecem escondidos no seu germe para sempre696 Segundo Kant e a sua proposta

relativa a uma comparaccedilatildeo ou analogia entre o oacutecio e um tempo vazio perante o qual

692 Hegel GWF Phaumlnomenologie des Geistes Werke vol3 Moldenhauer EMichel KM (ed)Frankfurt a M 1986 p153693 Vogl J Kalkuumll und Leidenschaft Poetik des oumlkonomischen Menschen Muumlnchen 2002 p339694 Vogl J Kalkuumll und Leidenschaft Poetik des oumlkonomischen Menschen Muumlnchen 2002 p336695 Goethe JW Faust Frankfurter Ausgabe vol 71 Schoumlne A (ed) Frankfurt a M 2005p434696 Kant I bdquoIdee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbuumlrgerlicher Absichtldquo Werke vol9Weischedel W (ed) Darmstadt 1983 p38

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o acircnimo humano sente desgosto descontentamento nojo697 a ideia de um estado no

acircmbito do qual apenas canccedilotildees arcaacutedicas seriam cantadas e a beleza da natureza seria

observadardquo698 constitui uma metaacutefora do fracasso de destino humano tanto em termos

de psicologia individual quanto em termos de histoacuteria da humanidade Neste sentido o

uso metafoacuterico do idiacutelio poderaacute ser tomado como uma indicaccedilatildeo ilustrativa dos modos

de tratamento filosoacuteficos de determinadas formas de oacutecio e do oacutecio em geral em iniacutecios

do seacuteculo XIX

Em Sobre a poesia ingeacutenua e sentimental Schiller formulou o mais decisivo e

abrangente reflexo da problematizaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do idiacutelio no domiacutenio da

esteacutetica A sua tentativa de redefinir o idiacutelio como uma forma que conduz o ser

humano que natildeo pode mais retornar agrave Arcaacutedia ao Eliacutesio699 apresenta-se distinta do

tradicional (sentimental) idiacutelio dos pastores700 na medida em que o primeiro

representa um estado antes do iniacutecio da cultura que proporciona por sua vez muito

pouco para o espirito Assim escreve Schiller portanto soacute podemos amaacute-la e buscaacute-la

quando temos necessidade de descanso natildeo quando as nossas forccedilas aspiram ao

movimento e a atividaderdquo701 Por outro lado no idiacutelio eacute necessaacuterio apresentar um

estado de harmonia e paz consigo mesmo como o objetivo uacuteltimo702 da cultura que

absorve o momento ativo da civilizaccedilatildeo

Assim o descanso seria a impressatildeo dominante deste tipo de poesia mas um descanso da

perfeiccedilatildeo natildeo da ineacutercia um descanso que flui do equiliacutebrio natildeo da paralisaccedilatildeo das

forccedilas que flui da abundacircncia natildeo da vacuidade e eacute acompanhado pelo sentimento de

uma capacidade infinita703

Como antecipaccedilatildeo de um futuro utoacutepico o idiacutelio espacialmente limitado de

Schiller participa na temporalizaccedilatildeo da utopia que segundo a observaccedilatildeo de Reinhart

Koselleck comeccedilou na segunda metade do seacuteculo XVIII704 Ao mesmo tempo no

697 Kant I Eine Vorlesung Kants uumlber Ethik Menzer P (ed) Berlin 1924 p201 Sobre o problemado tempo em Kant consultar Seel M Rhythmen des Lebens Kant uumlber erfuumlllte und leere Zeit InKersting W Langbehn C (ed) Kritik der Lebenskunst Frankfurt a M 2007 pp 181ndash200698 Kant I Uumlber Paumldagogik Werke vol10 Weischedel W (ed) Darmstadt 1983 p730699 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 p730 700 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 pp747-748701702 Schiller F Uumlber naive und sentimentalische Dichtung Saumlmtliche Werke vol5 Alt P-A- MaierARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 pp746 751703704 Koselleck R Die Verzeitlichung der Utopie Frankfurt a M 2003 pp131ndash149

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acircmbito das posiccedilotildees de Schiller encontramo-nos perante uma postura que pretende

suavizar a dureza da loacutegica da filosofia histoacuterica tornando possiacutevel no jogo esteacutetico

aquilo que natildeo pode ser experimentado na atividade da vida comum Neste sentido em

Cartas sobre a educaccedilatildeo esteacutetica Schiller contrasta o trabalho escravo dos indiviacuteduos

contemporacircneos e o oacutecio feliz das geraccedilotildees posteriores formadas segundo a educaccedilatildeo

da natureza humana705 Como tal o tratamento filosoacutefico do oacutecio tal como

desenvolvido por Schiller natildeo se afigura propriamente perspetivado num sentido

utoacutepico706 todavia poder-se-ia asseverar que a este respeito encontramo-nos perante

uma postura schilleriana de enfatizaccedilatildeo da discrepacircncia entre as reivindicaccedilotildees

fracassadas do indiviacuteduo e a perfeiccedilatildeo adiada do geacutenero Se o oacutecio constitui um modo

de situaccedilatildeo contraposta ao trabalho doloroso produtivo o idiacutelio por sua vez e tal como

Schiller o avalia filosoficamente apresenta-se definido e caracterizado atraveacutes de uma

nova formulaccedilatildeo do proacuteprio conceito de oacutecio agora relacionada com a possibilidade de

uma interseccedilatildeo com a experiecircncia esteacutetica o idiacutelio consiste pois numa fenomenal e

estrutural ligaccedilatildeo entre o oacutecio e a experiecircncia esteacutetica707 o surgimento do ideal na

realidade deve assim poder ser desfrutado Atraveacutes do abandono de uma definiccedilatildeo

sentimental de idiacutelio ndash o idiacutelio bucoacutelico e arcaacutedico do pastor ndash e da ecircnfase sobre a

atividade enquanto elemento integrante da definiccedilatildeo proposta o conceito de idiacutelio

segundo Schiller consiste natildeo meramente num reflexo criacutetico do triunfo histoacuterico da

vita ativa no mundo prometeico da modernidade708 mas principalmente e

inclusivamente numa nova perspetivaccedilatildeo acerca da consequecircncia desse mesmo

desenvolvimento na realidade do idiacutelio Com efeito de acordo com Schiller jaacute por volta

de 1800 os termos arcaacutedia e pastor bucoacutelico constituem referecircncias idiacutelicas que se

assumem como obsoletas709

Perante a proclamaccedilatildeo da a crise do oacutecio aquando da emergecircncia da sociedade

burguesa de trabalho atraveacutes da perspetivaccedilatildeo acerca de uma cisatildeo contundente entre

705 Schiller F Uumlber die aumlsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen SaumlmtlicheWerke vol5 Alt P-A- Maier ARiedel W (ed) Muumlnchen 2004 p588706 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 25707 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 26708 Riedl PP Die Kunst der Muszlige Uumlber ein Ideal in der Literatur um 1800 In Publications of theEnglish Goethe Society 801 (2011) p 26709 Consultar Kaiser G Wandrer und Idylle Goethe und die Phaumlnomenologie der Natur in derdeutschen Dichtung von Geszligner bis Gottfried Keller Goumlttingen 1977 p101

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trabalho produtivo e fuga para a para a ociosidade sonhadora710 (a ociosidade

caracterizada na sua tendecircncia agressiva agrave recusa impotildee-se pois enquanto novo

conceito que implica uma interpretaccedilatildeo profundamente depreciativa porque

moralmente e socialmente condenaacutevel da realidade do oacutecio) e a proclamaccedilatildeo da

impossibilidade de configuraccedilatildeo de mais estados idiacutelicos711 a nossa tese de

doutoramento procuraraacute discutir tais problemaacuteticas segundo uma argumentaccedilatildeo distinta

e apresentando conclusotildees que divergem das posiccedilotildees anteriormente tratadas Com

efeito a rejeiccedilatildeo da oposiccedilatildeo aceacuterrima entre oacutecioidiacutelio e trabalho ndash uma tese

continuamente formulada no contexto dos debates dedicados agrave mateacuteria ndash constitui a

pedra de toque deste trabalho acadeacutemico

No acircmbito da situaccedilatildeo designada como bucoacutelica concebida como uma preacute-

configuraccedilatildeo do idiacutelico tal como desenvolvido no seacuteculo XVIII712 o oacutecio encontra-se

relacionado com a figura do pastor pois a sua atividade proporcionava-lhe ocasiotildees

bastantes para o oacutecio e portanto para o canto713 Eacute bem sabido que natildeo se tratava de

uma representaccedilatildeo realista dos estilos de vida rurais714 Ao separar o pastoreio do seu

campo de atividade original e ao encenaacute-lo como uma mimese da poesia715 o bucoacutelico

tradicional orientou a vida do pastor para uma zona de oacutecio Desde o iniacutecio do

Iluminismo tal artificialidade poeacutetica que envolve a atividade dos pastores tornara-se

cada vez mais problemaacutetica ou pelo menos sujeita a uma exigecircncia de justificaccedilatildeo716

Conquanto o problema da representaccedilatildeo do oacutecio pastoral face agraves condiccedilotildees

rurais caracterizadas por um trabalho aacuterduo e pouco reconhecido do ponto de vista

social constitua um relevante tema de discussatildeo o bucoacutelico do seacuteculo XVIII natildeo foi

criticado somente pela sua inverosimilhanccedila pela sua ausecircncia de realidade tal como

710 Forte L Lob der Faulheit Muszlige und Muumlszligiggang im 19 Jahrhundertldquo In Huber M FeilchenfeldtK (ed) Bildung und Konfession Politik Religion und literarische Identitaumltsbildung 1850ndash1918Tuumlbingen 1996 p80711 Fuest L Poetik des Nicht(s)tuns Verweigerungsstrategien in der Literatur seit 1800 Paderborn2008 p21712 Haumlntzschel G Idylle In Reallexikon der deutschen Literaturwissenschaft vol2 Weimar KFricke H (ed) Berlin 1997 p123 Garber K Bukolik In Fricke HGrubmuumlller K (ed) Reallexikonder deutschen Literaturwissenschaf VolI BerlinNew York 2007 p288 Heller JC Masken derNatur Zur Transformation des Hirtengedichts im 18 Jahrhundert Paderborn 2018713 Scaliger JC Poetices libri septem (Faks-Neudr d Ausg Leipzig von Lyon 1561) Stuttgart BadCannstatt 1987 p6714 Mix Y-G Idyllik Anti-Idyllik Aufklaumlrung und Selbstaufklaumlrung Zur aumlsthetischen undphilosophischen Kritik des Arkadien-Topos In Birkner NMix Y-G (ed) Idyllik im Kontext vonAntike und Moderne Tradition und Transformation eines europaumlischen Topos Berlin 2015 p207715 Iser W Das Fiktive und das Imaginaumlre Perspektiven literarischer Anthropologie Frankfurt a M1993 p70716 Gottsched JC Versuch einer Critischen Dichtkunst 4 Aufl Leipzig 1751 (Darmstadt 1962)p582

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adverte Mix717 O problema realista configurou apenas um aspeto de uma mudanccedila

geral na poeacutetica do idiacutelio no seacuteculo XVIII Esta intensificou-se especialmente a partir de

1800 e neste novo contexto as situaccedilotildees de oacutecio passaram a ser relacionadas com

outras profissotildees ou atividades profissionais nos finais do seacuteculo XVIII por exemplo a

escolha de pescadores em vez de pastores como figuras do idiacutelio podia ser justificada

pelo facto de estes serem demasiado ociosos pois descanso e oacutecio [] sem diligencia

natildeo eram traccedilos de verdadeira felicidade718

A crescente rejeiccedilatildeo cultural e poeacutetica do pastor enquanto figura do idiacutelio par

excellence foi acompanhada por uma extensatildeo do idiacutelio a uma aacuterea de representaccedilatildeo

predominantemente rural Deste modo o idiacutelio passara assim a ser descrito num

sentido mais moderno como um conglomerado natildeo soacute de poesia de pastor mas tambeacutem

de poesia de vida rural719 Em verdade a representaccedilatildeo do trabalho como parte

integrante da ruralidade sempre encontrou o seu lugar na poesia da vida rural720

conquanto na oposiccedilatildeo toacutepica do campo e da cidade a vida rural tambeacutem figure aqui

como a opccedilatildeo menos atarefada Neste contexto a integraccedilatildeo das obras rurais no idiacutelio

do final do seacuteculo XVIII pode ser descrita natildeo soacute como a substituiccedilatildeo da categoria

fundamental do geacutenero do oacutecio pelo trabalho721 mas principalmente como a

transformaccedilatildeo de conceitos idiacutelicos de oacutecio

A vida no campo (Das Landleben) de 1768 de Christian Cay Lorenz Hirschfeld

revela de modo ilustrativo a relaccedilatildeo entre oacutecio vida no campo e trabalho fiacutesico Escrito

num periacuteodo cultural e social anterior agraves turbulecircncias ocorridas a partir de 1800 a

referida obra de Hirschfeld sobre a vida no campo definida como um idiacutelio

pitoresco722 oferece propondo muacuteltiplas evocaccedilotildees e referecircncias relativas ao artigo A

vida do campo (Landleben) na Oeconomischer Encyclopaedie723 da autoria de

Johann Georg Kruumlnitz Contra o desprezo pelo trabalho rural o texto estabelece para

717 Mix Y-G Idyllik Anti-Idyllik Aufklaumlrung und Selbstaufklaumlrung Zur aumlsthetischen undphilosophischen Kritik des Arkadien-Topos In Birkner NMix Y-G (ed) Idyllik im Kontext vonAntike und Moderne Tradition und Transformation eines europaumlischen Topos Berlin 2015 p208718 Bronner FX Neue Fischergedichte und Erzaumlhlungen Zuumlrich 1794 p8719 Boumlschenstein-Schaumlfer R Idylle Stuttgart 1977 pp4 6 p 74720 Garber K Der Locus amoenus und der Locus terribilis Bild und Funktion der Natur in derdeutschen Schaumlfer- und Landlebendichtung des 17 Jahrhunderts Koumlln 1974 p83721 Boumlschenstein-Schaumlfer R Arbeit und Muszlige in der Idyllendichtung des 18 Jahrhunderts InHoffmeister G (ed) Goethezeit Studien zur Erkenntnis und Rezeption Goethes und seiner ZeitgenossenFestschrift fuumlr Stuart Atkins Bern 1981 p27722 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p23723 Consultar bdquoLandlebenldquo In Kruumlnitz JG (ed) Oeconomische Encyclopaumldie oder allgemeinesSystem der Land- Haus- und Staats-Wirthschaft in alphabetischer Ordnung vol 60 Berlin 1773ndash1858pp318ndash358

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aleacutem da referecircncia aos benefiacutecios da agricultura que a sua contemplaccedilatildeo (das

atividades do trabalho rural) recordando-nos as penas dos nossos vizinhos anima

tambeacutem o nosso sentimento de paz e de conforto724 Por outro lado a obra de

Hirschfeld procura tambeacutem avaliar um determinando tipo de indiviacuteduos os designados

distintos ociosos725 para os quais o tempo livre no campo constitui um mero pretexto

para nada fazer pois apesar de contemplarem cem cenas de trabalho de manhatilde cedo ateacute

agrave tarde tais indiviacuteduos natildeo exercem qualquer ocupaccedilatildeo uacutetil agrave sociedade humana nem

entretecircm o espiacuterito com qualquer consideraccedilatildeo adequada agrave dignidade da vida rural726

Assim segundo Hirschfeld por um lado o apreciador do oacutecio natildeo desempenha

qualquer trabalho fiacutesico no campo por outro lado a contemplaccedilatildeo do trabalho fiacutesico

deve destinar-se a evitar que o seu oacutecio se transfigure numa mera situaccedilatildeo de

ociosidade

O significado das perceccedilotildees idiacutelicas insertas num contexto de trabalho agriacutecola

para a definiccedilatildeo e o tratamento filosoacutefico dos conceitos de oacutecio tal como desenvolvidos

a partir de 1800 poderaacute tambeacutem ser relevantemente avaliado no ensaio de Christian

Garve ldquoSobre o oacuteciordquo (Uumlber die Muszlige) De acordo com a tradiccedilatildeo europeia que remonta

agrave antiguidade Garve define o campo como um local privilegiado de oacutecio

Quem poderia falar de oacutecio sem comemorar a vida rural e as ciecircncias Natildeo haacute lugar onde

o oacutecio seja tatildeo desejado como no campo nenhum objeto pode preenchecirc-lo de tal forma

que o cultivo das Ciecircncias727

A demarcaccedilatildeo toacutepica entre o campo e a cidade ndash esta concebida como local de

trabalho comercial [] negoacutecios governamentais e distraccedilotildees728 ndash corresponde agrave

dupla demarcaccedilatildeo entre por um lado o oacutecio e o trabalho (enquanto atividade

heteroacutenoma) e por outro lado entre oacutecio e ociosidade A uacuteltima a ociosidade eacute a

inatividade mas o oacutecio eacute a possibilidade externa de uma atividade voluntaacuteria

autoescolhida portanto a atividade mais nobre729 A caracterizaccedilatildeo do oacutecio como

atividade como ldquooacutecio ativordquo730 eacute pois central para Garve que propotildee inclusivamente

724 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p38725 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p112726 Hirschfeld CCL Das Landleben Leipzig 1776 p114727 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p237728 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p237729 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p234

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a designaccedilatildeo das atividades exercidas no oacutecio como trabalho731 desde que estas sejam

determinadas de uma forma autoacutenoma (como tal e segundo tal perspetivaccedilatildeo nem

todas as atividades satildeo portanto adequadas para o oacutecio)

Garve caracteriza o oacutecio como uma atividade mental relacionando-a natildeo

obstante com o trabalho fiacutesico no campo Tal conceccedilatildeo encontra-se interessantemente

manifesta tambeacutem em termos linguiacutesticos o discurso acerca do cultivo das ciecircncias

em associaccedilatildeo direta com o imaginaacuterio do campo assume-se assim apresentado pois

de acordo com as palavras de Garve a capacidade de desfrutar da vida rural eacute atribuiacuteda

agravequeles que ou cultivam a proacutepria terra que habitam ou cultivam o campo da ciecircncia e

da literatura732 A perspetivaccedilatildeo sobre o ldquocultivordquo da literatura e da ciecircncia ou dos

campos embora mantendo a diferenccedila entre os campos de atividade intelectual e

agriacutecola integra inclusivamente a surpreendente consideraccedilatildeo do oacutecio como metaacutefora

para trabalho O pensamento e a escrita diferem da agricultura no que diz respeito ao

seu campo de atividade mas correspondem-lhe no seu caraacutecter de atividade na medida

em que podem ocupar o seu lugar Enquanto na poesia bucoacutelica o pastor servia como

representante ou equivalente ficcional do oacutecio do poeta aqui jaacute natildeo eacute o oacutecio mas o

trabalho da populaccedilatildeo rural que interveacutem para definir e descrever o acircmbito do oacutecio

como uma atividade diferente mas homoacuteloga sobretudo em distinccedilatildeo agrave ociosidade A

divisatildeo eficaz do trabalho num espetaacuteculo idiacutelico para o ator do oacutecio por um lado e um

trabalho esforccedilado externalizado pela divisatildeo social do trabalho por outro devem-se

tambeacutem a uma mudanccedila funcional da literatura rural no decurso da modernidade

econoacutemica

Muitas das fontes literaacuterias do tempo dizem-nos que falar de vida rural significa cada vez

menos a praacutetica da produccedilatildeo agriacutecola e da sua atividade de mercado mas antes um

conceito de reflexatildeo que expressa estados de espiacuterito e de alma no espelho de uma certa

experiecircncia de existecircncia733

Com a racionalizaccedilatildeo da agricultura e a separaccedilatildeo do trabalho a imagem da vida

rural fora progressivamente substituiacuteda pela da literatura econoacutemica A incorporaccedilatildeo de

730 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p236731 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p239732 Garve C Uumlber die Muszlige In Ein solches Jahrhundert vergiszligt sich nicht mehr Lieblingstexteaus dem 18 Jahrhundert Muumlnchen 2000 p239733 Fruumlhsorge G Die Kunst des Landlebens Vom Landschloss zum Campingplatz EineKulturgeschichte Muumlnchen 1993 p29

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passagens do livro de Hirschfeld na Enciclopeacutedia Oeconomica revela tratar-se ainda de

um testemunho desta ligaccedilatildeo anterior e igualmente da ligaccedilatildeo entre a perceccedilatildeo esteacutetica

e a reforma econoacutemica ateacute ao momento em que finalmente se prescindira

completamente da idealizaccedilatildeo A este respeito Fruumlhsorge assinala a total ausecircncia de

verbetes dedicados agrave vida rural nas enciclopeacutedias ulteriores734

Tais transformaccedilotildees ocorridas nos modos de representaccedilatildeo da literatura de vida

rural tal como verificadas por volta de 1800 deveratildeo ser entendidas agrave luz da

possibilidade de uma transferecircncia parcial de padrotildees de representaccedilatildeo bucoacutelicos para o

campo da vida rural bem como uma extensatildeo da gama temaacutetica da poesia pastoril Natildeo

eacute mais a figura do pastor mas a ideia de uma existecircncia feliz no campo que representa

uma forma de vida artificialmente estilizada aberta agrave irrupccedilatildeo de determinadas

possibilidades que natildeo tecircm lugar ou efetividade na vida social na cidade A combinaccedilatildeo

de diferentes estrateacutegias de representaccedilatildeo dos respetivos geacuteneros eacute acompanhada de

uma hibridaccedilatildeo dos valores tradicionalmente associados O oacutecio mediado pelos

pastores deveacutem assim um oacutecio ativo conquanto estilizado mas profundamente

relacionado com um modo de vida concreto da vida rural

A partir daqui (e acompanhando este desenvolvimento na poeacutetica idiacutelica do

seacuteculo XVIII) eacute possiacutevel uma abstraccedilatildeo ou formalizaccedilatildeo do idiacutelio que tambeacutem pode

destacar-se de definiccedilotildees temaacuteticas relacionadas com o conteuacutedo como a vida rural

Herder em Adrastea define o idiacutelio como a representaccedilatildeo ou narrativa de um modo

de vida humano de acordo com o seu estado de natureza com a sua elevaccedilatildeo a um ideal

de felicidade e desgraccedila735 Em vez do desenho de uma vida feliz numa aacuterea delimitada

ndash o oacutecio no campo ndash que engloba no seu interior uma outra aacuterea ndash o trabalho agriacutecola

justamente ndash e no qual o oacutecio se reflete encontramo-nos perante o alargamento do

conceito de idiacutelio relativamente a representaccedilotildees de um modo de vida inteira A funccedilatildeo

medial do trabalho agriacutecola como ainda se podia observar em Hirschfeld ou Garve

diminui com efeito a favor da produccedilatildeo ativa do estado idiacutelico tal como jaacute verificado

na uniatildeo do oacutecio e do trabalho rural

Brotando dos nossos coraccedilotildees as nossas mentes devem criar este idiacutelio da vida atraveacutes da

arte completar este claustro da vida atraveacutes da seleccedilatildeo O idiacutelio do vazio as descriccedilotildees da

734 Fruumlhsorge G Landleben Vom Paradies-Bericht zum Natur-Erlebnis Entwicklungsphasenliterarisierter Lebenspraxis In Barner W (ed) Tradition Norm Innovation Soziales und literarischesTraditionsverhalten in der Fruumlhzeit der deutschen Aufklaumlrung Muumlnchen 1989 p165735 Herder JG Idyll In Adrastea (Werke vol10) Arnold G (ed) Frankfurt a M 2000 p281

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natureza os pastores que natildeo existem em nenhum lugar desaparecem nele como

galantarias fugitivas desaparece todo o material de um mundo de imagens alheias a noacutes

de que a nossa imaginaccedilatildeo sabe tatildeo pouco como a nossa sensaccedilatildeo Por outro lado o nosso

mundo em todos os sentidos e costumes entra no belo esplendor de uma nova criaccedilatildeo

espiacuterito e coraccedilatildeo amor generosidade diligecircncia coragem doccedilura criam uma Arcaacutedia no

seu mundo no seu estado ordenando-o desfrutando-o utilizando-o736

O idiacutelio do pastor tradicional eacute aqui evocado pela uacuteltima vez A peculiaridade e a

singularidade das formas individuais de vida deveratildeo concretizar-se tal como Herder as

perspetiva agrave luz das possibilidades de transformaccedilatildeo deste mundo estrangeiro de

imagens mediante a atividade produtiva de criaccedilatildeo do respetivo estado737 que garanta o

idiacutelico para si proacuteprio

Importaria assinalar o modo como no texto de Herder o niacutevel de representaccedilatildeo

esteacutetica se interseta com o idiacutelico enquanto imagem Tal como o idiacutelio da vida deve

ser criado atraveacutes da arte assim tambeacutem estes mesmo domiacutenios vida e arte criam

uma Arcaacutedia no seu mundo Enquanto segundo Iser o bucoacutelico tematiza o

fingimento e assim permite visualizar a ficcionalidade literaacuteria738 no conceito de

idiacutelico de Herder encontramo-nos por sua vez perante um princiacutepio de produtividade

que eacute igualmente eficaz na poesia e na vida combinando a diferenccedila entre os dois

domiacutenios

Esta ecircnfase na dimensatildeo de produtividade afigura-se profundamente distinta das

perspetivaccedilotildees sobre o oacutecio e o idiacutelio anteriormente apresentadas como representativas

do conceito moderno de trabalho No contexto do capitalismo inicial as referecircncias a

gozar e usar exigem uma forma de produccedilatildeo que seja cumprida segundo a satisfaccedilatildeo

das necessidades e correlativamente que seja orientada mais para o valor de utilidade

do que para o valor de troca Se se entende o oacutecio como accedilatildeo autoacutenoma fundada sobre

si mesma que enquanto tal se encontra de certa forma relacionada negativamente

com o trabalho739 importaria concluir pois que o designado trabalho idiacutelicordquo somente

poderaacute tratar-se de um conceito obsoleto pretensamente referido a uma situaccedilatildeo de

736 Herder JG Idyll In Adrastea (Werke vol10) Arnold G (ed) Frankfurt a M 2000 p282737 Para o mestre dos heteroacutenimos de Pessoa o pastor poeacutetico Alberto Caeiro este estado constituiacutea oestado de ldquoum mestre Budista Zen iluminado que vive no aqui e agora concentrando-se no mundoimediato da perceccedilatildeo que dissolve o pensamento (especialmente o pensamento abstrato)738 Iser W Das Fiktive und das Imaginaumlre Perspektiven literarischer Anthropologie Frankfurt a M1993 p60739 Schuumlrmann V Muszlige Bielefeld 2001 p28

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impossiacutevel ou contraditoacuteria realidade ou efetividade e portanto de uma certa forma

relacionado negativamente com o conceito moderno de trabalho

Todavia no contexto da modernidade do mundo da vida e do trabalho no seacuteculo

XIX o idiacutelico natildeo desaparece A compreensatildeo da complexidade de associaccedilotildees

referidas ao idiacutelico na era Biedermeier natildeo obstante a crescente dissoluccedilatildeo de tal

situaccedilatildeo ou realidade ao longo do curso do mencionado seacuteculo740 (como Schneider jaacute

constata no pensamento tardio de Herder) deveraacute tender para a apreciaccedilatildeo da

possibilidade de tal estado conduzir o sujeito do mundo moderno acelerado para o

mais calmo simples e natural e assim criar uma relaccedilatildeo complementar funcional

que se contraponha a uma experiecircncia de uma modernidade aceleradardquo741

740 Schneider HJ Einleitung Antike und Aufklaumlrung Tuumlbingen 1988 p63741 Seeber HU Einleitung In Seeber HU Klussmann PG (ed) Idylle und Modernisierung inder europaumlischen Literatur des 19 Jahrhunderts Bonn 1986 p7

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Capiacutetulo 3

Sobre a possibilidade de inscriccedilatildeo do oacutecio no acircmbito da

modernidade tardia

Um ensaio

Nunca tive dinheiro para poder ter teacutedio agrave vontade

Bernardo Soares Livro do Desassossego

Segundo as conceccedilotildees de Aristoacuteteles expressas na Poliacutetica742 a alianccedila entre o

trabalho e o cultivo do oacutecio com dignidade constitui uma das determinaccedilotildees essenciais

da vida boa O cultivo e a fruiccedilatildeo do oacutecio afiguram-se para o filoacutesofo antigo como

condiccedilotildees propiciadoras do desenvolvimento da educaccedilatildeo do ser humano ndash e o trabalho

por sua vez constitui somente o seu outro lado necessaacuterio Com efeito a sociedade

industrial e o capitalismo nunca aceitaram uma relaccedilatildeo tatildeo equilibrada e

interdependente entre trabalho e oacutecio ndash pelo contraacuterio o trabalho constituiacutera neste

742 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b

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contexto o conceito e a realidade merecedores de todos os enaltecimentos culturais o

oacutecio por sua vez fora parcialmente desacreditado e identificado com preguiccedila e a

sua temporalidade proacutepria possibilidade de realizaccedilatildeo da sua experiecircncia e fruiccedilatildeo fora

reduzida ao acircmbito do ldquotempo livrerdquo Tais transformaccedilotildees tiverem como propoacutesito

como sabemos a reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho destituiacuteda de valor proacuteprio Neste

sentido se a realidade institucionalizada do trabalho procurara controlar o fator

subjetivo e impor aos empregados o espartilho do ldquotu devesrdquo a moderna

ldquosubjetivaccedilatildeo do trabalhordquo743 consiste na configuraccedilatildeo de um incitante ldquotu podesrdquo que

no fundo oculta no seu iacutentimo um ldquoNatildeo podes natildeo quererrdquo Os meacutetodos modernos de

gestatildeo do trabalho procuram capturar a ldquopessoa inteirardquo com todas as suas emoccedilotildees

motivaccedilotildees paixotildees e entusiasmos e assim integraacute-la na totalidade da sua existecircncia

na realidade do trabalho Todas as forccedilas subjetivas devem assim ser direcionadas para

os objetivos da empresa a fim de incrementar a eficiecircncia e o lucro o autocontrolo

voluntaacuterio deve segundo tal loacutegica substituir a dominaccedilatildeo externa Por conseguinte

de acordo com os princiacutepios da loacutegica moderna do trabalho tais exigecircncias ou

submissotildees apresentam-se de modo ocluso como pretensos motivos para o

desenvolvimento pessoal dos trabalhadores Perante tal quadro Foucault designara estes

novos meacutetodos de controlo dos seres humanos segundo o conceito de

governabilidade744 o qual traduz o processo de interiorizar o poder tornando-o

invisiacutevel e insuscetiacutevel de ser confrontado ou destituiacutedo

Privada da fruiccedilatildeo do oacutecio a sociedade natildeo possui cultura num sentido enfaacutetico

ndash apenas induacutestrias culturais destinadas a promover o entretenimento e assim a

diversatildeo e as distraccedilotildees mais inoacutecuas Natildeo obstante se desejarmos dotar com plena

justeza a experiecircncia de oacutecio de um significado social importaria perspetivaacute-lo

tambeacutem agrave luz do conceito do trabalho ndash neste sentido uma ldquovida boardquo deveria integrar

a dimensatildeo do ldquotrabalho bomrdquo tal como escreve Seel745 Que significaria tal realidade a

do ldquotrabalho bomrdquo No reino da liberdade no acircmbito do qual o desenvolvimento

humano constitui um fim em si mesmo a reduccedilatildeo da jornada de trabalho anuncia-se ndash

evoque-se Marx ndash como a condiccedilatildeo baacutesica746 Para Marx o tempo ganho eacute tanto o

743 Moldaschl M Das Subjekt als Objekt der Begierde ndash Die Perspektive der bdquoSubjektivierung vonArbeitldquo Heidelberg 2002744 Foucault M Die Gouvernementalitaumlt In Broumlckling U Krasmann S Lemke T (ed)Gouvernementalitaumlt der Gegenwart Studien zur Oumlkonomisierung des Sozialen Frankfurt a M 2000pp41-60745 Seel M Versuch uumlber die Form des Gluumlcks Frankfurt a M 1999 p142

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tempo de lazer como o tempo destinado a atividades superiores747 Um primeiro passo

para a libertaccedilatildeo da omnipotente obrigaccedilatildeo de trabalhar poderia ser apresentado

segundo a consideraccedilatildeo seacuteria e consequente de um Rendimento Baacutesico Incondicional

(RBI)748 perspetivado como projeto social cujas potencialidades consistiriam na

libertaccedilatildeo das maiores preocupaccedilotildees com o proacuteprio sustento garantindo ao indiviacuteduo

uma certa forma da autonomia749

Libertaccedilatildeo do trabalho e libertaccedilatildeo no trabalho satildeo portanto duas faces da

mesma moeda e que devem representar uma nova premecircncia social no acircmbito de uma

comunidade que deseja efetivar as condiccedilotildees de desenvolvimento da experiecircncia de

fruiccedilatildeo do oacutecio Em primeiro lugar tornar-se-ia necessaacuterio religar o trabalho agraves

necessidades humanas e sociais ao inveacutes de o manter capturado no interior de uma

loacutegica de crescimento econoacutemico A este propoacutesito importaria saber distinguir do

ponto de vista das possibilidades de realizaccedilatildeo digna do ser humano a especificidade de

uma efetiva necessidade social ndash que possa cumprir-se no acircmbito do consumo dos bens

baacutesicos coletivos da sustentabilidade ecoloacutegica e da justiccedila do social ndash de uma

necessidade que visa natildeo mais do que o incremento permanente do crescimento e de

novas possibilidades de utilizaccedilatildeo de capital750 A economia deveria seguir a efetiva

necessidade e natildeo ndash como Luhmann afirma ndash a necessidade da economia751

As necessidades de uma sociedade boa e justa datildeo lugar agrave configuraccedilatildeo das

prestaccedilotildees indispensaacuteveis para alcanccedilar tal propoacutesito Estas prestaccedilotildees devem poder ser

diferenciadas daquelas que apenas conduzem agrave produccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser

vendido ndash forccediladamente pelo marketing e pela publicidade ndash sem considerar

746 Marx K Das Kapital Kritik der politischen Oumlkonomie Die Marx-Engels-Werke vol24 Berlin1976 p828747 Marx K Grundrisse der Kritik der politischen Oumlkonomie In Marx KEngels F Werke vol42Berlin 1983 p599748 A este respeito importaria mencionar a recente publicaccedilatildeo em Portugal de um estudo filosoacuteficoseacuterio e competente acerca de tal mateacuteria Referimo-nos agrave obra intitulada Rendimento BaacutesicoIncondicional Uma Defesa da Liberdade da autoria de Roberto Merrill Sara Bizarro Gonccedilalo Marceloe Jorge Pinto publicada em 2019 (Merril RBizarro SMarcelo GPinto J Rendimento BaacutesicoIncondicional Uma Defesa da Liberdade Lisboa 2009)749 Vanderborght Y van Parijs P Ein Grundeinkommen fuumlr alle Geschichte und Zukunft einesradikalen Vorschlags Frankfurt a M 2005 Arlt H-J Erwerbsarbeit und soziale Existenz Leitbildervon gestern und Werte fuumlr morgen Karlsruhe 2012

750 Neste contexto deve ser claramente enfatizado que nem todas as formas de crescimento econoacutemicosatildeo geralmente rejeitadas aqui (tal como Rosa tambeacutem o considera) Haacute naturalmente muitos paiacuteses (porexemplo no Terceiro Mundo) que dependem urgentemente do crescimento econoacutemico o que natildeo podeser por exemplo o caso dos paiacuteses industrializados do Norte da Europa A criacutetica eacute dirigida contra umaideologia de incremento aceleraccedilatildeo e crescimento por sua proacutepria causa751 Luhmann N Wirtschaft als soziales System Opladen 1974 p208

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consequecircncias a longo prazo Desde que o desempenho do trabalho seja interpretado e

tratado como um fator de custo (Kostenfaktor) as condiccedilotildees de trabalho soacute podem ser

restritivas e onerosas Natildeo obstante importaria reconhecer que o desempenho do

trabalho constitui igualmente uma atividade humana e que como tal deveria ser

avaliada tomando em linha de conta o bem-estar fiacutesico psicoloacutegico e social dos

trabalhadores

Somente no uso eacute que o significado do trabalho se torna real O uso deveria

permanecer intimamente vinculado agrave necessidade real a fim de evitar consumos inuacuteteis

supeacuterfluos ou inclusivamente prejudiciais Mas no contexto da sociedade capitalista

natildeo basta que a necessidade se apresente realmente satisfeita ndash cumpre sim manter os

consumidores num estado de perpeacutetua insatisfaccedilatildeo perniciosamente favoraacutevel agrave venda

incessante de mais produtos pois a pedra de toque da produccedilatildeo capitalista consiste com

efeito em identificar os consumidores estimular os seus desejos criando assim

necessidades artificiais

Juntamente com uma nova e distinta conceccedilatildeo de trabalho que permitiria avaliaacute-

lo na sua possibilidade de libertaccedilatildeo do domiacutenio capitalista a experiecircncia de fruiccedilatildeo do

oacutecio poderia alcanccedilar o seu valor e significados sociais natildeo mais como um privileacutegio

elitista de uns poucos indiviacuteduos mas como um modo de vida coletivo destinado a

produzir e representar o humanum sob a forma de educaccedilatildeo e de cultura A capacidade

de desenvolvimento da experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio deveraacute neste sentido ser passiacutevel

de ser cumprida como uma capacidade individual merecedora de exerciacutecio e de

aperfeiccediloamento que teria como cerne a potencialidade de realizaccedilatildeo de uma certa

forma de desprendimento serena no presente Com o recurso ao termo desprendimento

procuramos caracterizar um determinado estado que livre de constrangimentos e

fixaccedilotildees possa abrir-se agrave ocupaccedilatildeo autoacutenoma e sem propoacutesitos exteriores com as

questotildees espirituais do ser humano no mundo Sem estar compulsivamente focalizado

num determinado resultado o ser humano permitir-se-ia em estado contemplativo

desenvolver uma experiecircncia de fruiccedilatildeo de oacutecio que poderia mas natildeo necessariamente

adquirir os contornos de uma situaccedilatildeo de exerciacutecio do filosofar Com efeito o oacutecio

tambeacutem poderia ser descrito como uma forma paradoxal de passividade ativa ou

atividade passiva assim perspetivado a experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio poderaacute ser

caracterizada pela assunccedilatildeo de um alto niacutevel de alerta mental e por conseguinte como

uma disposiccedilatildeo ou prontidatildeo para receber conhecimento

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Importaria tambeacutem conceber a experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio agrave luz das

potencialidades de configuraccedilatildeo da capacidade que consideramos eminente de

perceccedilatildeo plena do presente Segundo tal estado percetivo encontrar-nos-iacuteamos natildeo

propriamente no acircmbito de uma atividade de aquisiccedilatildeo de conhecimento intelectual

mas no contexto de um modo singular de abertura agrave receccedilatildeo de ideias (a theoria no

sentido grego) repare-se a este propoacutesito que na liacutengua alematilde o termo ideia pode ser

expresso recorrendo agrave palavra Einfall ndash que significa entre outros conceitos ldquoinvasatildeordquo

Tal soa-nos profundamente ilustrativo trata-se da experiecircncia de um certo

autoconhecimento ndash e um conhecimento do mundo que nos invade (einfallen) que nos

encontra e que a noacutes se dirige O momento feacutertil verificado durante este processo

ldquoexiste muitas vezes precisamente onde natildeo se suspeitava e natildeo se procurava752

Atraveacutes da experiecircncia aqui descrita o momento de desprendimento de pensamentos ou

de imagens ndash que deveraacute seguir-se a um intenso e complexo fluxo mental ndash afigura-se

como momento de formulaccedilatildeo ou de descoberta de ideias que em bom rigor como que

nos ldquoinvademrdquo

O exerciacutecio e o desenvolvimento de tal experiecircncia poderiam ser ensinados no

sistema educacional dos nossos estados mas lamentavelmente no atual desenho do

sistema de ensino o oacutecio (acadeacutemico) encontra-se excluiacutedo O que pretenderiacuteamos

referir a este respeito consiste naquilo a que os gregos designaram de aretecirc a

excelecircncia ndash uma atitude e uma atividade (ethos) que ilustram a condiccedilatildeo para o

exerciacutecio de uma vida boa numa sociedade justa Deste modo a experiecircncia de fruiccedilatildeo

do oacutecio tal como a concebemos encontra-se relacionada com a formaccedilatildeo do humanum

tanto no que concerne ao indiviacuteduo quanto no que respeita agrave vida comunitaacuteria Em

tempos mais recentes Gadamer reativou tal perspetivaccedilatildeo de educaccedilatildeo753 convocando

os pensamentos de Herder e de Hegel Gadamer considera a educaccedilatildeo como um dever

que o indiviacuteduo deve manter consigo mesmo destinado agrave aspiraccedilatildeo do ensino superior

para a humanidade num mundo comunitaacuterio A experiecircncia de fruiccedilatildeo do oacutecio torna-se

agrave luz deste quadro indispensaacutevel para a possibilidade de emergecircncia de tal situaccedilatildeo

formativa do indiviacuteduo Que o exerciacutecio e o desenvolvimento da capacidade de fruir

oacutecio se constitui como um elemento integrante da formaccedilatildeo dos indiviacuteduos e que a sua

752 Kaumlmpf-Jansen H Aumlsthetische Forschung Wege durch Alltag Kunst und Wissenschaft Zu eineminnovativen Konzept aumlsthetischer Bildung Koumlln 2002 p128753 Gadamer H-G Hermeneutik I Wahrheit und Methode Grundzuumlge einer philosophischenHermeneutik Gesammelte Werke vol 1 Tuumlbingen 1990 p15

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promoccedilatildeo se determina como uma tarefa essencial dos Estados o pensamento de

Aristoacuteteles jaacute o contemplava de forma eminente754

Ora a felicidade eacute um fim em si proacuteprio pois todos julgam que natildeo surge acompanhada de

dor mas de prazer No entanto as opiniotildees divergem quando se trata de definir que prazer eacute

esse pois cada qual o determina de acordo com a sua disposiccedilatildeo Uma coisa eacute certa o

melhor prazer eacute o do melhor homem e o que proveacutem das fontes mais excelentes Torna-se

claro portanto que devem ser aprendidas e ensinadas coisas em funccedilatildeo da diagogia e que

esses ensinos e aprendizagens devem ser uacuteteis em si mesmos ao passo que as mateacuterias que

se referem ao trabalho satildeo necessaacuterias e uacuteteis em funccedilatildeo de outras coisas755

No entanto as sociedades da nossa modernidade tardia parecem desenvolver-se

na direccedilatildeo oposta seguindo a pressatildeo da economia a educaccedilatildeo escolar e os estudos

universitaacuterios estatildeo a transformar-se de modo progressivo e como que inexoraacutevel

numa temporada formativa que tem como objetivo a preparaccedilatildeo imediata e exclusiva

para o exerciacutecio de uma profissatildeo Com efeito as nossas organizaccedilotildees educacionais

parecem encontrar-se submetidas aos ditames da usabilidade econoacutemica ndash a pergunta

pela utilidade econoacutemica dos cursos e dos curricula universitaacuterios afirma-se sobre todas

as outras Mas a verdadeira educaccedilatildeo ndash aliada agrave possibilidade de experiecircncia eminente

do oacutecio ndash natildeo possui utilidade exterior a si mesmo natildeo servindo nenhum propoacutesito

externo Lamentavelmente os aspetos educacionais concentrados no desenvolvimento

de uma visatildeo clara e sofisticada do mundo em todas as suas dimensotildees racional-

espiritual e sensual-esteacutetica encontram-se profundamente descurados negligenciados

depreciados

Agrave luz da capability approach756 de Amartya Sen natildeo se trata apenas de chamar

as pessoas a desenvolverem a sua capacidade individual de fruiccedilatildeo de oacutecio a sociedade

e as suas instituiccedilotildees poliacuteticas devem tambeacutem ser impelidas a providenciar as

condiccedilotildees estruturais para tal Natildeo seria portanto absurdo ou destituiacutedo de

razoabilidade ndash como o adverte Bahr ndash exigir uma legislaccedilatildeo que teria de proporcionar

uma educaccedilatildeo geral que reintroduzisse o oacutecio757

754Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b755 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a5-10756 Sen A Capability and well-being In Nussbaum M Sen A (ed) The quality of life Oxford 1993pp30-53757 Bahr H-D Fragment uumlber Muszlige Landsberg 2007 p26

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Recorde-se que Bertrand Russell em 1935 se posicionara a favor da

proclamaccedilatildeo de que a tarefa de uma educaccedilatildeo e ou formaccedilatildeo mais avanccediladas consistiria

em superar a ideologia interiorizada do trabalho e permitir que as pessoas usassem

sabiamente os seus tempos de oacutecio758 Se o oacutecio eacute essencial para o desenvolvimento da

civilizaccedilatildeo759 e o resultado do oacutecio consiste num desenvolvimento abrangente e

completo do homem entatildeo o lado artiacutestico e esteacutetico teraacute de desempenhar igualmente

um papel mais relevante nos processos de aprendizagem escolar que assim merecem o

nome de uma verdadeira ldquoeducaccedilatildeordquo Todavia o caminho de abertura agrave revalorizaccedilatildeo

do oacutecio como parte integrante da formaccedilatildeo do indiviacuteduo deve desenvolver-se se acordo

com a proposta de uma nova conceccedilatildeo de trabalho

Detenhamo-nos neste ponto sobre o conceito de trabalho segundo Marx Com

efeito de acordo com o conceito marxiano de trabalho tal noccedilatildeo deveraacute ser concebida

no seu fundamento como metabolismo com a natureza760 como a praacutetica de

fabricaccedilatildeo da Lebenswelt O trabalho definido por Marx corresponde tanto ao meio

central da exploraccedilatildeo e da alienaccedilatildeo humanas quanto agrave potencialidade de o ser humano

se constituir enquanto tal libertando-se da sua alienaccedilatildeo subjugante761 Em oposiccedilatildeo a

Adam Smith Marx sustenta

Que esta superaccedilatildeo de obstaacuteculos eacute em si mesma uma atividade de liberdade e que para

aleacutem disso os fins externos recebem a aparecircncia de necessidade meramente externa da

natureza despojada sendo definidos como fins que o proacuteprio indiviacuteduo estabelece (assim

como a autorrealizaccedilatildeo a objetivaccedilatildeo do sujeito portanto a liberdade real cuja accedilatildeo eacute o

trabalho)hellip de tal A Smith natildeo suspeita762

Recorde-se pois que o complexo conceito de trabalho de Marx se baseia numa

estrutura antropoloacutegico-utoacutepica Assim escreve Marx nos Manuscritos Econoacutemico-

Filosoacuteficos

O objeto do trabalho eacute portanto a objetivaccedilatildeo da vida do homem na medida em que este

ndash natildeo soacute de um ponto de vista intelectualmente consciente mas tambeacutem em termos de

produccedilatildeo laboral ndash se dobra sobre si proacuteprio olhando-se deparando-se consigo mesmo

758 Russell B Lob des Muumlszligiggangs Muumlnchen 2002 p85759 Russell B Lob des Muumlszligiggangs Muumlnchen 2002 p75760 Marx K Das Kapital Kritik der politischen Oumlkonomie Die Marx-Engels-Werke vol24 Berlin1976 p192761 Consultar Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40Berlin 1983 p510762 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p512

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atraveacutes de um mundo por si criado763

Tal posiccedilatildeo marxiana deve ser perspetivada de um ponto de vista eminentemente

antropoloacutegico o ser humano na sua relaccedilatildeo laboriosa com a natureza ndash avaliada por

Marx como o corpo inorgacircnicordquo764 do humano ndash produz-se a si mesmo enquanto ser

humano justamente e em contraste com o animal Assim esta autogeraccedilatildeo do humano

mediante o trabalho constitui o modo de determinaccedilatildeo da sua proacutepria essecircncia da

essecircncia do seu ser enquanto humano eacute justamente atraveacutes do trabalho que potencia a

configuraccedilatildeo de um ambiente de vida que o humano se constitui enquanto tal O

trabalho enquanto potencialidade de autorrealizaccedilatildeo do homem afigura-se com efeito

como a determinaccedilatildeo antropoloacutegica do ser humano765 De acordo com tal visatildeo

marxiana o ser do humano apresenta-se compreendido agrave luz da noccedilatildeo de projeto ndash o ser

do humano constitui-se como algo que se produz segundo um processo um vir-a-ser

que se desenvolve atraveacutes da atividade do trabalho natildeo se determinando como uma

invariaacutevel ontologicamente configurada como uma essecircncia A produccedilatildeo-de-si mediante

o trabalho afirma-se pois como o ser do ser humano Esta dimensatildeo dinacircmica que

envolve a ideia de autodesenvolvimento do ser humano tal como sustentada por Marx

traduz a sua influecircncia de Hegel Assim se conclui que o desenvolvimento da essecircncia

do ser humano na sua proacutepria humanidade se determina como uma tarefa histoacuterico-

material Esta eacute tambeacutem a visatildeo de Kofler

Mas o homem em virtude da sua capacidade de pensar e agir com consciecircncia (isto eacute de

estar sujeito) alcanccedila formas sempre mais elevadas de liberdade e assim permanece o

verdadeiro sujeito da histoacuteria A histoacuteria aparece aqui como a autorrealizaccedilatildeo do homem

no caminho da realizaccedilatildeo de niacuteveis sempre mais elevados de liberdade Com tal Hegel

fundou o conceito histoacuterico de progresso que Marx adotou766

Do ponto de vista marxiano o sentido de autorrealizaccedilatildeo humana que envolve a

definiccedilatildeo de trabalho natildeo se encontra ainda historicamente alcanccedilado nem

materialmente realizado e cumprido Tal deveraacute ocorrer sobretudo no decurso do

progresso da sociedade como um todo e como seu elemento essencial Todavia e ao

inveacutes das aspiraccedilotildees marxianas a histoacuteria da humanidade tal como a conhecemos tem

763 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p517764 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p517765 Gimmel J Konstellationen negativ-utopischen Denkens Ein Beitrag zu Adornos aporetischemVerfahren Freiburg Muumlnchen 2015 p165766 Kofler L Zur Kritik buumlrgerlicher Freiheit Hamburg 2000 p84

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sido fundamentalmente determinada pelo trabalho alienado que priva as pessoas da sua

essecircncia fazendo-as recuar agrave condiccedilatildeo de animal Tal trabalho alienado poderaacute ser

exemplificado pois como trabalho assalariado em condiccedilotildees capitalistas

Importaria ainda esclarecer que o conceito de oacutecio que aqui tratamos avaliado

como um espaccedilo de acontecimentos da autorrealizaccedilatildeo humana deve ser

fundamentalmente distinguido de um conceito de tempo livre trabalho e tempo livre satildeo

geralmente concebidos como conceitos opostos na medida em que o tempo livre eacute

definido e determinado por natildeo ter de trabalhar ndash uma suspensatildeo do trabalho

justamente Como tal trabalho e tempo livre significam princiacutepios complementares

profundamente interligados de ordem da rotina diaacuteria Em verdade o conceito de

tempo livre eacute um conceito secundaacuterio porque decorrente do conceito de trabalho Em

termos da histoacuteria das ideias ndash e isto eacute especialmente verificaacutevel quando se trata de

fenoacutemenos de oacutecio ndash o conceito de tempo livre estaacute normalmente subordinado ao

campo do trabalho O tempo livre eacute concebido como uma funccedilatildeo do trabalho que serve

ele mesmo para a reproduccedilatildeo do trabalho Na Poliacutetica Aristoacuteteles referia-se a estas

questotildees num tom muito similar a propoacutesito do descanso e da diversatildeo

Com efeito se o trabalho e o oacutecio satildeo indispensaacuteveis para (embora o oacutecio seja preferiacutevel

ao trabalho e ateacute agrave finalidade deste) pesquisemos como deve ser usado o tempo de lazer

Natildeo certamente a jogar porque entatildeo o jogo constituiria forccedilosamente a finalidade da

vida o que eacute impossiacutevel (eacute aliaacutes durante a labuta quotidiana que os jogos satildeo melhor

empregues pois o trabalho aacuterduo exige pausas e os jogos satildeo proacuteprios para dar descanso

sendo que o trabalho implica cansaccedilo e esforccedilo) Nesse sentido importa fomentar os

jogos mas sempre acautelando o momento oportuno da sua utilizaccedilatildeo e aplicando-os

como se de uma terapecircutica se tratasse porquanto o movimento da alma que deles resulta

produz relaxamento e o prazer que deles se retira facilita o descanso767

De acordo com o pensamento de Aristoacuteteles o tempo livre perspetivado como

possibilidade de descanso e de diversatildeo torna-se natildeo exclusivamente a antiacutetese do

trabalho mas sim o seu elemento complementar O tempo livre serve pois o trabalho

e portanto assim o tem como finalidade Todavia segundo Aristoacuteteles o conceito

autenticamente contraacuterio do conceito de trabalho eacute pois o conceito de oacutecio ndash natildeo o

tempo livre ou porventura o descanso ou a diversatildeo Assim clarifica Aristoacuteteles ldquo[] o

767 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981337b30-40

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oacutecio parece conter em si mesmo prazer felicidade e ventura Os que trabalham natildeo

podem fruir disto mas apenas os que se entregam ao oacuteciordquo768

Neste sentido e enquanto conceito contrastante relativamente ao conceito de

trabalho o oacutecio traduz natildeo um princiacutepio organizador do tempo mas a caracteriacutestica

central da diferenciaccedilatildeo social alguns homens desenvolvem uma vida de e no trabalho

enquanto que os homens livres cumprem uma vida isenta da compulsatildeo do trabalho No

contexto do pensamento de Marx eacute precisamente esta diferenciaccedilatildeo social que ilustra a

relaccedilatildeo de exploraccedilatildeo em funccedilatildeo das aacutereas de trabalho recreaccedilatildeo (tempo livre) e oacutecio

Se na antiguidade (e nas suas sociedades esclavagistas) a exploraccedilatildeo do trabalho

escravo proporcionava uma mais-valia que permitiria uma vida em liberdade para os

seus cidadatildeos no capitalismo por seu turno eacute a exploraccedilatildeo da forccedila de trabalho

proletaacuteria que proporciona lucro ao capitalista Neste contexto o conceito de tempo

livre significa um elemento potenciador da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho dos

explorados que se encontra sujeito a uma loacutegica de eficiecircncia da qual resulta o ritmo da

jornada de trabalho de acordo com os padrotildees de maacuteximo lucro agregado o tempo de

tempo livre deve pois ser limitado ao miacutenimo de modo a que natildeo se reduza o

desempenho no trabalho A este propoacutesito Marx classificara ironicamente esta

estrateacutegia na sua obra-maior O Capital sob o capiacutetulo jornada de trabalho como

pequenos furtos de capital nas refeiccedilotildees e tempos de recuperaccedilatildeo dos

trabalhadores769 Assim a diferenciaccedilatildeo entre trabalho e tempo livre aplica-se apenas

ao assalariado perspetivado como o sucessor do antigo escravo Note-se que Aristoacuteteles

definira a vida do homem livre agrave luz da ausecircncia da necessidade de trabalhar Eacute a

imposiccedilatildeo externa do trabalho que obriga os escravos ou os trabalhadores assalariados

modernos ao descanso e ao tempo livre neste sentido a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles

poderia ser traduzida de forma mais incisiva aqueles que natildeo precisam de tempo livre

satildeo livres770

768 Aristoacuteteles Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo AmaralCarlos de Carvalho Gomes Lisboa 19981338a1-5769 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p257770 Marx tambeacutem aborda esta circunstacircncia Depois de criticar o conceito de trabalho de Smith Marxnatildeo obstante admite No entanto ele [Smith] estaacute certo de que nas formas histoacutericas do trabalho comotrabalho escravo trabalho fronteiriccedilo e trabalho assalariado o trabalho sempre parece repulsivo semprecomo trabalho forccedilado extremo e o natildeo-trabalho como liberdade e felicidade por relaccedilatildeo com aquele(Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin 1983p512)

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Poder-se-ia na limitaccedilatildeo radical do tempo de trabalho efetuado no acircmbito da

sociedade da modernidade tardia discernir um momento que potenciaria a fuga ao

caraacutecter viciante das formas de produccedilatildeo capitalista Com efeito a demanda por uma

forma de abstinecircncia que recoloca a relaccedilatildeo entre a satisfaccedilatildeo da necessidade e o

desempenho no trabalho num contexto significativo poderia ser assim avaliada

Giorgio Agamben perspetiva na possibilidade de abstenccedilatildeo (o natildeo-fazer ou natildeo-

participar) o proprium do homem ndash trata-se pois segundo o filoacutesofo italiano de uma

faculdade essencial extraordinaacuteria do ser humano que o diferencia de todos os outros

seres vivos Para Agamben o ser humano eacute essencialmente um ser de possibilidade

um ser cuja vida consiste em ser livre isto eacute em cumprir as oportunidades ou

abandonaacute-las Convocando a filosofia de Aristoacuteteles Agamben sustenta que a potecircncia

de fazer algo (ou ser algo) eacute igualmente e desde sempre a potecircncia de natildeo fazer (ou

natildeo ser) o filoacutesofo italiano procura neste sentido pensar a potecircncia como potecircncia isto

eacute pensar a possibilidade como possibilidade

O que [] [Aristoacuteteles] procura pensar no livro theta da Metafiacutesica eacute por outras palavras

natildeo a potecircncia como pura possibilidade mas os modos efetivos da sua existecircncia Portanto

ndash e porque natildeo se evapora de uma soacute vez e diretamente na accedilatildeo mas possui a sua proacutepria

existecircncia ndash a potecircncia natildeo tem necessariamente de poder passar a ato o natildeo ter que ser

(ou o natildeo ter que fazer) eacute tambeacutem e de modo constitutivo potecircncia []771

A potecircncia genuinamente humana para se abster ou para ser inativo a

possibilidade de natildeo transferir uma possibilidade para o ato a potencialidade de natildeo

realizar uma possibilidade ndash eis pois o que segundo Agambem deve ser preservado

para que o homem seja livre podendo cumprir-se como ser humano Ao contraacuterio se o

ser humano tivesse de cumprir em ato todas as suas potecircncias de tal modo que todas

as suas possibilidades tivessem de ser transformadas em realidade entatildeo o ser humano

encontrar-se-ia privado de liberdade ndash pois de acordo com Agambem a liberdade

humana consiste justamente no facto de que o que se pode fazer pode igualmente ser

recusado ser feito Agamben formula tal pensamento no seu livro Laperto Luomo e

lanimale (2002) no qual define a inatividade e o fazer-nada como a forma mais alta

da vida e principalmente no epiacutelogo da obra La communitagrave che viene (1990) onde

faz alusatildeo a especulaccedilotildees teoloacutegicas judaicas

No Saacutebado abster-nos-emos [] de qualquer trabalho produtivo [] Uma atividade

771 Agamben G Das Offene Der Mensch und das Tier Frankfurt aM 2002 p55

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puramente destrutiva ou natildeo criativa [] a qual decorresse do oacutecio sabaacutetico natildeo seria no

entanto proibida Natildeo o trabalho mas a inatividade e a discriccedilatildeo satildeo o paradigma da

poliacutetica vindoura [] A salvaccedilatildeo [] que eacute o assunto deste livro natildeo eacute uma obra mas um

certo tipo de vazio sabaacutetico [] Portanto este livro natildeo trata da questatildeo o que fazer mas

da questatildeo como fazer Inatividade natildeo significa ineacutercia mas [] uma operaccedilatildeo em que o

como substitui o quecirc [hellip]772

Aqui Agamben convoca um pensamento de Adorno exposto em Minima

Moralia (1951) sobre a forma da sociedade utoacutepica justa de acordo com o filoacutesofo

alematildeo o fim da produtividade anuncia-se como a caracteriacutestica essencial da sociedade

justa (vindoura) cuja diferenccedila constitutiva relativamente ao capitalismo (e ao estado de

coisas existente) consiste na sua possibilidade de configurar-se como uma alteridade

pouco percetiacutevel um discreto outro ser-como da atividade

A casa agrave crianccedila que regressa das feacuterias parece-lhe nova fresca festiva Mas

nada nela mudou desde que a deixara O simples facto de esquecer o dever [hellip] restitui

agrave casa a sua paz sabaacutetica [hellip] Natildeo de outro modo surgiraacute o mundo ndash quase sem

mudanccedila ndash agrave perpeacutetua luz da sua festividade quando jaacute natildeo se encontrar sob a lei do

trabalho e para quem regressa a casa o dever eacute tatildeo faacutecil como o jogo nas feacuterias 773

A este respeito importaria sublinhar que Agamben e Adorno natildeo identificam a

redenccedilatildeo da alienaccedilatildeo e da dominaccedilatildeo com a cessaccedilatildeo completa de toda a produtividade

e de toda a accedilatildeo (posiccedilatildeo que de certa forma se apresenta em conformidade com as

visotildees de Hegel e de Marx acerca do trabalho como determinaccedilatildeo essencial do ser

humano) ndash de modo distinto os dois filoacutesofos propotildeem uma interpretaccedilatildeo do conceito

de trabalho agrave luz da possibilidade de exerciacutecio da produccedilatildeo como um ldquojogo de

autorrealizaccedilatildeordquo potenciando no acircmbito da sociedade justa liberta de todo o designado

ldquotrabalho alienanterdquo sustentado numa loacutegica inexoraacutevel que conduz ao incremento sem

rumo e sem propoacutesito da produccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo de tal estado assim descrito e proposto Agamben evoca a

ceacutelebre maacutexima do Escrivatildeo de Melville Bartleby774 I would prefer not to ndash Eu

preferiria natildeo fazer Tal maacutexima como sabemos constitui a foacutermula com a qual

Bartleby o funcionaacuterio de um escritoacuterio de advocacia de Nova Iorque em Wall Street

escapa furtando-se a qualquer atividade O propoacutesito de Agambem evocando o escrito

772 Agamben G La communitagrave che viene Torino 2001 p92773 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 sect72774 Agamben G Bartleby oder die Kontingenz Berlin 1998 p37

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de Melville consiste em perspetivar a sentenccedila de Bartleby como a foacutermula de uma

resistecircncia poacutes-utopia para aleacutem do carrossel poliacutetico-potencial de dominaccedilatildeo e

servidatildeo em que as posiccedilotildees de mestre e servo podem ser alteradas mas a dominaccedilatildeo

enquanto tal permanece intocada ndash pois Bartleby natildeo concordando com as solicitaccedilotildees

que lhe satildeo impostas natildeo recusa mera e simplesmente e nada estaacute mais longe dele do

que o heroico pathos da negaccedilatildeo775 como sublinha Agamben Atraveacutes do recurso agraves

expressotildees serenidade e abandono Agamben procura designar o estado utoacutepico de

redenccedilatildeo sabaacutetica Neste ponto Agamben parece referir-se uma vez mais a Adorno

que descreve o estado de salvaccedilatildeo no qual o homem pode abster-se de agir e assim

olhar pacificamente para o ceacuteu como um animal (e como Rousseau ao longo das suas

promenades)

Talvez a verdadeira sociedade se canse do desenvolvimento e deixe por liberdade sem

aproveitar possibilidades em vez de tomar de assalto com compulsatildeo maniacuteaca estrelas

desconhecidas Para uma humanidade que jaacute natildeo conheccedila a miseacuteria amanhece algo do

deliacuterio da infrutuosidade de todas as accedilotildees ateacute entatildeo realizadas para fugir agrave miseacuteria e que

reproduziam engrandecida a miseacuteria juntamente com a riqueza [hellip] Rien faire comme

une becircte deitado sobre a aacutegua e olhar tranquilamente para o ceacuteu ser nada mais sem

outra determinaccedilatildeo ou cumprimento poderia substituir o processo o fazer o cumprir

[hellip]776

Tal consistiria pois numa vida de oacutecio que dificilmente atribuiremos ao

empresaacuterio ocupado dos tempos modernos A diferenccedila conceptual entre as formas

antigas e as formas modernas de interpretaccedilatildeo do conceito de trabalho poderaacute ser

clarificada agrave luz da anaacutelise do entendimento do conceito de oacutecio no acircmbito de uma

perspetivaccedilatildeo moderna encontramo-nos com efeito perante o cada-vez-mais e nunca-

suficiente que tende a tornar infinito o processo de produccedilatildeo e a intensificar a demanda

por desempenho Neste sentido e tendo presente os quadros antigos e modernos de

perspetivaccedilatildeo do trabalho propomos compreender e descrever o oacutecio como uma

situaccedilatildeo em que as pessoas satildeo libertadas da compulsatildeo de trabalharem aleacutem dos seus

limites impostos pela necessidade ou por inquietaccedilotildees interiores no acircmbito de uma

sociedade desenhada na modernidade tardia ndash uma sociedade que segundo Byun Chul

Han operou a mudanccedila de paradigma de uma configuraccedilatildeo disciplinar no sentido de

775 Agamben G Bartleby oder die Kontingenz Berlin 1998 p38776 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 sect100

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Foucault para uma sociedade de desempenho777 tal mudanccedila de paradigma tal como

Byun Chul Han constitui com efeito uma continuidade e natildeo propriamente uma

qualquer rutura

O inconsciente social tem evidentemente a aspiraccedilatildeo de maximizar a produccedilatildeo Atingido

um determinado niacutevel de produtividade a teacutecnica disciplinar isto eacute o esquema negativo

da proibiccedilatildeo rapidamente atinge os seus limites Devido ao incremento da produccedilatildeo o

paradigma da disciplina eacute substituiacutedo pelo paradigma de desempenho isto eacute pelo esquema

positivo do verbo ldquopoderrdquo (koumlnnenrdquo) pois a partir de um determinado niacutevel de produccedilatildeo

a negatividade de proibiccedilatildeo bloqueia e impede um novo incremento A positividade do

ldquopoderrdquo eacute muito mais eficaz do que a negatividade do ldquodeverrdquo Como tal o inconsciente

social altera-se do ldquodeverrdquo para o ldquopoderrdquo O sujeito do desempenho eacute mais raacutepido e mais

produtivo do que o sujeito disciplinar O ldquopoderrdquo natildeo anula poreacutem o ldquodeverrdquo O sujeito

do desempenho continua a ser disciplinado uma vez que jaacute passou pelo estaacutedio da

disciplina O ldquopoderrdquo aumenta o niacutevel de produtividade778

No que concerne agrave situaccedilatildeo psicoloacutegica dos indiviacuteduos da modernidade tardia

Han refere-se agraves posiccedilotildees de Alain Ehrenberg

Alain Ehrenberg situa a depressatildeo no momento de transiccedilatildeo da sociedade disciplinar para

a sociedade de desempenho ldquoA carreira da depressatildeo comeccedila no momento em que o

modelo disciplinar de controlo comportamental modelo que atribuiacutea de modelo

autoritaacuterio e reprimido um determinado papel a cada classe social e a cada um dos sexos

eacute substituiacutedo por uma norma que induz cada indiviacuteduo agrave iniciativa pessoal obrigando-o a

tornar-se a ele mesmo (hellip) O homem deprimidohellip estaacute cansado de esforccedilar-se de tornar-

se ele mesmohellip Natildeo deixa de ser controverso que Alain Ehrenberg trate a depressatildeo

apenas de um ponto de vista da economia do lsquoeu mesmorsquo (Selbst) Para o socioacutelogo

francecircs a depressatildeo decorre do imperativo social de ser o lsquoeu mesmorsquo a depressatildeo

traduziria assim a expressatildeo patoloacutegica do fracasso do indiviacuteduo em ser ele mesmo na

modernidade tardia hellip Ehrenberg natildeo aborda a violecircncia sisteacutemica inerente agrave sociedade de

empenho que provoca enfartes psiacutequicos A depressatildeo provocada por esgotamento natildeo

tem como origem o imperativo de estar entregue apenas a si mesmo mas sim de acordo

com Ehrenberg a pressatildeo por um maior desempenho779

777 Lamentavelmente o tradutor da ediccedilatildeo portuguesa do livro de Byun-Chul HanMuumldigkeitsgesellschaft (Han B-C A Sociedade do Cansaccedilo Trad Gilda Lopes Encarnaccedilatildeo Lisboa2014) traduziu o termo alematildeo ldquoLeistungsgesellschaftrdquo por sociedade de produccedilatildeo o que natildeo eacutecompletamente correto neste contexto Seria preferiacutevel o recurso agrave traduccedilatildeo sociedade de empenho Aleacutemdisso o termo psicoloacutegicosocioloacutegico inconsciente social foi traduzido como o sujeito sem consciecircnciasocial o que tambeacutem nos soa inapropriado778 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 pp20-21779 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 pp21-22

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Continuamente

Alain Ehrenberg compara de modo erroacuteneo o tipo de homem da atualidade com o homem

soberano de Nietzsche ldquoO homem soberano semelhante a si mesmo e anunciado por

Nietzsche estaacute a ponto de se tornar realidade massificada Nada haacute acima dele que lhe

possa impor diretrizes ou prescriccedilotildees jaacute que se julga o uacutenico senhor de si mesmordquo Seria

precisamente Nietzsche o primeiro a dizer que o tipo de homem que se encontra a ponto de

se tornar realidade massificada natildeo corresponderia ao super-homem soberano mas sim

ao uacuteltimo homem que apenas trabalhahellipO homem depressivo eacute o animal laborans que se

explora a si mesmo780

Segundo a conceccedilatildeo aristoteacutelica de felicidade e de vida virtuosa tal quadro

traduziria uma apropriaccedilatildeo indevida da possibilidade fundamental inerente agrave perfeiccedilatildeo

humana a qual deve sim ser cumprida agrave luz do conceito de ergon de autopropoacutesito

consistindo a perfeiccedilatildeo humana na realizaccedilatildeo de um tipo de accedilatildeo que se exerce dentro

dos seus proacuteprios limites sem expansatildeo ou incremento externos Recorde-se pois que

de acordo com Aristoacuteteles a realizaccedilatildeo das accedilotildees humanas determinada segundo o

saber eacutetico da justa medida constitui a caracteriacutestica essencial da perfeiccedilatildeo e da

felicidade Correlativamente e tendo presente que o oacutecio poderia significar em traccedilos

essenciais uma situaccedilatildeo em que as pessoas poderiam ser libertadas da obrigaccedilatildeo de

ultrapassar as suas fronteiras internas seja por necessidade interior ou imposiccedilatildeo

externa a analogia do oacutecio com a paz tambeacutem poderia ser aqui pertinentemente

proposta Paz e oacutecio poderiam traduzir espaccedilos livres de possibilidades nos quais a

plenitude harmoniosa ndash no sentido de autossuficiecircncia e autossatisfaccedilatildeo ndash permite a

possibilidade de conduccedilatildeo a determinados sentidos de perfeiccedilatildeo perspetivada por sua

vez agrave luz de ideais antigos de vida praacutetica tomados como contramodelos do progresso e

do crescimento ilimitados que envolvem a nossa modernidade tardia Natildeo se trata com

efeito de proclamar mediante a proposta de um conceito de oacutecio enquanto conceito

criacutetico a aceacuterrima oposiccedilatildeo relativamente ao trabalho e agrave produccedilatildeo laboral ndash mas sim

de perspetivar o oacutecio enquanto espectro de possibilidades que permitem a libertaccedilatildeo dos

sujeitos perante a coaccedilatildeo da expansatildeo e do incremento sem fim e sem finalidade do

trabalho A liberdade do oacutecio relativamente agrave coaccedilatildeo do trabalho ndash e oacutecio neste ponto

natildeo deve ser confundido com o mero tempo livre como recreaccedilatildeo ndash constitui a liberdade

de possibilitaccedilatildeo de modos de vida boa que possua o seu fim em si mesma e que se

realiza em atividades como a arte a sociabilidade livre a contemplaccedilatildeo espiritual e a

780 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p23

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teoria781 A vida boa encontra a sua realizaccedilatildeo em si mesma sem ser orientada para

qualquer propoacutesito externo A vida boa natildeo traduz um mero tempo livre supostamente

isento de trabalho coagido ndash ela natildeo constitui uma pausa numa qualquer tarefa

exteriormente imposta ao contraacuterio a vida boa natildeo eacute uma tarefa ndash eacute um saber viver eacute

um ethos

Num contexto moderno como bem sabemos e tal como Marx o formulara a

ordem econoacutemica capitalista eacute determinada por uma loacutegica interna que obriga e

condiciona igualmente o explorador do trabalho assalariado natildeo se trata da coaccedilatildeo a

trabalhar (no sentido de trabalho assalariado) mas da coaccedilatildeo agrave acumulaccedilatildeo eterna de

capital782 Eacute necessaacuterio acumular mais-valias para vencer no sistema competitivo do

mercado Segundo Marx o capitalista afigura-se dependente da expansatildeo infinita Neste

sentido importaria elucidar a diferenccedila constitutiva entre o capitalista e o cidadatildeo livre

da polis o capitalista ele proacuteprio encontra-se sujeito a uma coaccedilatildeo a um viacutecio isto eacute o

de expandir a sua riqueza incessantemente inexoravelmente O capitalista natildeo conhece

pois verdadeiramente o oacutecio Concluir-se-ia a partir de tal posiccedilatildeo que o oacutecio ndash no

sentido eminente que decorre das formulaccedilotildees de Aristoacuteteles ndash natildeo tem lugar ou

presenccedila na modernidade capitalista O trabalho ndash que configura de modo tatildeo

dominante quatildeo inexoraacutevel o nosso mundo atual ndash natildeo decorre de uma necessidade

real natildeo conduz agrave satisfaccedilatildeo real das necessidades e natildeo traduz uma demanda por uma

produccedilatildeo significativa de bens com uma destinaccedilatildeo efetiva trata-se de um modo

distinto de um processo que visa a destruiccedilatildeo uacuteltima dos bens produzidos e vendidos de

modo a que estes sejam substituiacutedos por outros bens sempre novos ndash a loacutegica do

781 Peter Sloterdijk sobre teoria na Modernidade ldquoQuero dar a um poeta a uacuteltima palavra para articular afelicidade e a miseacuteria da vida de teoria De facto nos tempos modernos satildeo os poetas e natildeo os filoacutesofosque conseguem expressar a Dasein na epocheacute involuntaacuteria do homem melancoacutelico e a descriccedilatildeovoluntaacuteria do observador excecircntrico Deixamos o mundo muitas vezes confinado e confinante dasdisciplinas cientiacuteficas e entramos na esfera da marginalidade soberana quando lemos no Livro doDesassossego de composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboabdquoe do alto da majestade de todos os sonhos ajudante de guarda-livros na cidade de LisboaMas o contraste natildeo me esmaga ndash liberta-me e a ironia que haacute nele eacute sangue meu O que deverahumilhar-me eacute a minha bandeira que desfraldo e o riso com que deveria rir de mim eacute um clarim comque sauacutedo e gero uma alvorada em que me faccediloA gloacuteria nocturna de ser grande natildeo sendo nada A majestade sombria de esplendor desconhecido Esinto de repente o sublime do monge no ermo e do eremita no retiro inteirado da substacircncia do Cristonas pedras e nas cavernas do afastamento do mundoE na mesa do meu quarto absurdo reles empregado e anoacutenimo escrevo palavras como a salvaccedilatildeo daalma e douro-medo poente impossiacutevel de montes altos vastos e longiacutenquos da minha estaacutetua recebida porprazeres e do anel de renuacutencia em meu dedo evangeacutelico joacuteia parada do meu desdeacutem extaacuteticordquoSloterdijkP Scheintod im Denken Von Philosophie und Wissenschaft als Uumlbung Berlin 2010 pp146-147782 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 23 capiacutetulo VII

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consumo infinito encontra-se aqui a sua justificaccedilatildeo Segundo tal quadro o trabalho

tende a tornar-se um processo sem sentido vatildeo fuacutetil e inesperadamente mais proacuteximo

de acontecimentos de diversatildeo pautado por estrutura viciante e por uma loacutegica de

produccedilatildeo econoacutemica no sentido convencional Hannah Arendt descreveu este fenoacutemeno

em Vita activa da seguinte forma

O milagre econoacutemico alematildeo poderia ser um exemplo claacutessico do facto de nas condiccedilotildees

modernas a destruiccedilatildeo da propriedade privada a destruiccedilatildeo do mundo dos objetos e o

esmagamento de cidades natildeo produzirem pobreza mas sim riqueza que estes processos

de destruiccedilatildeo se transformem natildeo numa reconstruccedilatildeo dos destruiacutedos mas antes num

processo de acumulaccedilatildeo incomparavelmente mais raacutepido e mais eficaz traduz a uacutenica

condiccedilatildeo para que um determinado paiacutes seja suficientemente moderno permitindo-se

assim reagir a tal destruiccedilatildeo com um incremento da produccedilatildeo783

Nesta descriccedilatildeo de uma processualidade que atinge incrementos exponenciais de

produccedilatildeo recorrendo a formas de aniquilaccedilatildeo Hannah Arendt concebe o proacuteprio

caraacutecter distintivo da modernidade como alienaccedilatildeo radical do mundo devido a uma

totalizaccedilatildeo do conceito de trabalho784 As posiccedilotildees de Arendt ndash como que convocando

Marx ndash propotildeem a necessidade de configuraccedilatildeo de uma alternativa mais humana

nomeadamente atraveacutes da reformulaccedilatildeo da noccedilatildeo de verdadeira riqueza Eis o que

Marx escrevera sobre tal questatildeo

a verdadeira riqueza [] eacute o tempo que natildeo eacute absorvido pelo trabalho diretamente

produtivo mas pelo prazer pelo oacutecio para que decirc lugar agrave livre atividade e

desenvolvimento785

E seguidamente

Mas o tempo livre o tempo disponiacutevel eacute a proacutepria riqueza em parte destinado ao gozo dos

produtos em parte dirigida agrave livre atividade que natildeo eacute como o trabalho determinada pela

coaccedilatildeo de um propoacutesito externo que deve ser cumprido e cujo cumprimento eacute uma

necessidade natural ou um dever social786

Na sociedade ideal comunista tal como Marx a concebera a verdadeira

riqueza resultaria da potencialidade de o trabalho efetivamente necessaacuterio ser

783 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p323784 Arendt H Vita Activa oder Vom taumltigen Leben Muumlnchen 1981 p367785 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p252786 Marx K Oumlkonomisch-philosophischen Manuskripten Die Marx-Engels-Werke vol40 Berlin1983 p253

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minimizado ao ponto de um maacuteximo de tempo livre se tornar possiacutevel Tal significaria

uma emancipaccedilatildeo social dos indiviacuteduos com vista agrave sua proacutepria liberdade que Ernst

Bloch na sua obra Das Prinzip Hoffnung (1954) descrevera agrave luz da expressatildeo

atividade no oacutecio787 perspetivando a utopia comunista como um oacutecio ativo em todos

os campos788 A loacutegica da exploraccedilatildeo social alterar-se-ia ndash pois a limitaccedilatildeo da riqueza

material agrave satisfaccedilatildeo das necessidades efetivamente necessaacuterias conduziria agrave abdicaccedilatildeo

do tempo livre enquanto mera funccedilatildeo do trabalho e agrave fruiccedilatildeo do oacutecio na sua

determinaccedilatildeo mais eminente O oacutecio assim compreendido significaria a realizaccedilatildeo de

atividades livres de imposiccedilatildeo externa ndash tratar-se-ia enfim do cumprimento de

atividades livres e desenvolvidas segundo finalidades proacuteprias De acordo com tal visatildeo

utoacutepica da sociedade comunista o tempo livre e o oacutecio convergem no contexto de uma

minimizaccedilatildeo do trabalho necessaacuterio (Tempo livre e o oacutecio natildeo significam o mesmo O

tempo livro eacute condiccedilatildeo para o oacutecio mas natildeo suficiente) Simultaneamente o contraste

claacutessico entre trabalho e oacutecio torna-se difuso na medida em que o trabalho jaacute natildeo teria

de ser considerado essencialmente como alienado mas poderia ser entendido num

sentido profundamente emancipatoacuterio como autorrealizaccedilatildeo

Com Marx um novo conceito de oacutecio poderia assim ser associado ao conceito

de trabalho ndash pois de acordo com os dois filoacutesofos trabalho significa em verdade a

atividade humana de autorrealizaccedilatildeo cumprida segundo propoacutesitos internos e

autoacutenomos (natildeo heteroacutenomos) desvinculada da obrigaccedilatildeo de perseguiccedilatildeo de objetivos

externos e livre de coerccedilatildeo externa O trabalho assim definido integra todas as

determinaccedilotildees centrais do oacutecio ndash interessantemente tal conceito de trabalho traduziria

em uacuteltima consequecircncia uma descriccedilatildeo das atividades que as pessoas fazem quando

estatildeo livres da coerccedilatildeo para trabalhar no duplo sentido de estar livre da coerccedilatildeo da

dependecircncia e da necessidade de trabalhar Mas seraacute que tal conceito de trabalho pode

realmente ser estabelecido Natildeo faraacute mais sentido sustentar abertamente que natildeo soacute o

trabalho no sentido da sociedade do desempenho merece reconhecimento social mas

tambeacutem uma vida de oacutecio sem as coaccedilotildees de produtividade que se verificam no domiacutenio

do trabalho Haacute nos dias de hoje uma tendecircncia a conceber cada vez mais aacutereas da

vida como aacutereas de trabalho a fim de poder conferir-lhes verdadeiro reconhecimento789

787 Bloch E Das Prinzip Hoffnung Frankfurt a M 1982 p1083788 Bloch E Das Prinzip Hoffnung Frankfurt a M 1982 p1080789 Krebs A Arbeit und Liebe Die philosophischen Grundlagen sozialer Gerechtigkeit Frankfurt a M2002 A autora combina aqui o conceito de reconhecimento social com o de trabalho refletindo sobre oconceito especiacutefico de um trabalho socialmente relevante O conceito de oacutecio que natildeo tem de definir oreconhecimento social por uma produccedilatildeo externa poderia ser oposto ao conceito de trabalho aqui jaacute

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ldquoTrabalho de relacionamentordquo ldquotrabalho de cuidadordquo ldquotrabalho de almardquo etc satildeo

exemplos de um desejaacutevel alargamento do conceito de trabalho com vista agrave integraccedilatildeo

dos domiacutenios das relaccedilotildees interpessoais ou da autorreferecircncia que tambeacutem merecem

reconhecimento enquanto trabalho para aleacutem das questotildees de eficiecircncia necessidade e

benefiacutecio social Atraveacutes da reformulaccedilatildeo criacutetica do conceito de oacutecio proporiacuteamos a

possibilidade de contrariar uma expansatildeo inflacionaacuteria da retoacuterica do desempenho e do

trabalho coercivo independentemente de se ter de afirmar que o proacuteprio modelo antigo

de oacutecio se baseou numa ideologia de exclusatildeo social servidatildeo e exploraccedilatildeo790

Cumpriria assim levantar a questatildeo acerca do modo como as mudanccedilas nas

formas contemporacircneas de trabalho afetam a relaccedilatildeo entre trabalho e tempo livre

Fenoacutemenos como a flexibilizaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho o trabalho de home office e o

falso autoemprego indicam que o trabalho assalariado claacutessico e por conseguinte o

horaacuterio rigoroso de trabalho e de oacutecio estatildeo a perder a sua importacircncia Ainda temos

tempo livre quando nos tornamos empresaacuterios de noacutes mesmo Byan Chul Han

responde

A sociedade do seacuteculo XXI jaacute natildeo eacute uma sociedade disciplinar mas uma sociedade de

desempenho Tambeacutem os seus habitantes natildeo satildeo nomeados ldquosujeitos de obediecircnciardquo mas

sujeitos de desempenho Satildeo empresaacuterios de si proacuteprios791

Continuamente

Reage-se a esta vida nua (e convertida em algo radicalmente efeacutemero) com a

hiperatividade e a histeria do trabalho e da produccedilatildeo A aceleraccedilatildeo atual tem tambeacutem

muito que ver com esta carecircncia de ser A sociedade de trabalho e de desempenho natildeo eacute

uma sociedade livre pois ela produz novas coaccedilotildees A dialeacutetica do senhor e do escravo

natildeo desemboca afinal numa sociedade em que cada homem eacute um ser livre passiacutevel de se

entregar ao oacutecio Ela conduz ao inveacutes a uma sociedade de trabalho em que o proacuteprio

senhor se tornou escravo do trabalho Nesta sociedade coerciva cada homem transporta

consigo o seu proacuteprio campo de trabalho forccedilado A particularidade deste campo de

trabalho forccedilado consiste no facto de cada um ser ao mesmo tempo prisioneiro e capataz

viacutetima e agressor Desta forma cada um explora-se a si mesmo792

No acircmbito de profissotildees que permitem a organizaccedilatildeo do proacuteprio tempo de

trabalho como as profissotildees artiacutesticas ou cientiacuteficas sabe-se que eacute difiacutecil traccedilar a linha

alargado790 Adorno TW Negative Dialektik Gesammelte Schriften vol6 Frankfurt aM 1966 p241791 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p19792 Han BC Muumldigkeitsgesellschaft Berlin 2010 p37

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estrita entre tempo livre e trabalho ou igualmente desenvolver um esforccedilo para impor

a si mesmo um plano de trabalho e de recuperaccedilatildeo consistente A pergunta eacute oacutebvia

podemos afirmar que tais formas de trabalho tornam o oacutecio parte integrante do proacuteprio

trabalho na medida em que permitem a isenccedilatildeo perante a coaccedilatildeo externa de trabalhar

num determinado momento ndash ou pelo contraacuterio seraacute que tais formas de trabalho

conduzem de um modo tatildeo inesperado quatildeo pernicioso agrave minimizaccedilatildeo do oacutecio de uma

forma tatildeo eficiente e tatildeo desejaacutevel no acircmbito da sociedade capitalista Talvez a resposta

mais apropriada a tal questatildeo consista natildeo obstante em formular a interrogaccedilatildeo tratar-

se-ia ainda de estar-se sujeito agrave coaccedilatildeo de trabalhar Com efeito se a coaccedilatildeo agrave

produtividade externa permanecer intacta a transferecircncia para a proacutepria organizaccedilatildeo do

dia tende a tornar-se a maximizaccedilatildeo da (auto)exploraccedilatildeo Um trabalho com oacutecio seria

somente concebiacutevel sem a coaccedilatildeo de trabalhar Entatildeo o tempo livre natildeo mais seria

necessaacuterio pois seriacuteamos soberanos do proacuteprio tempo Neste contexto a relaccedilatildeo entre

o oacutecio e a demanda sociopoliacutetica por um rendimento baacutesico incondicional793 que se

refere precisamente agrave possibilidade de circunstacircncias pautadas por uma produtividade

livre de coerccedilatildeo (para trabalhar) teria de ser considerada e elucidada A tendecircncia para

dissolver a distinccedilatildeo entre trabalho e tempo livre no entanto apresenta uma outra

faceta O tempo livre natildeo constitui apenas uma funccedilatildeo do trabalho supostamente

regeneradora da matildeo-de-obra ndash o tempo livre torna efetivos a existecircncia e o

desenvolvimento de um mercado de consumo dos produtos do trabalho Neste sentido

os tempos de recreaccedilatildeo diversatildeo prazer e relaxamento encontram-se tambeacutem eles

sujeitos a uma crescente economizaccedilatildeo nos tempos livres consome-se e compra-se o

que foi produzido no trabalho Como eacute sabido os niacuteveis de consumo verificados no

designado tempo livre aumentaram enormemente nas uacuteltimas deacutecadas Dificilmente

poder-se-ia imaginar um tempo livre sem meios eletroacutenicos de comunicaccedilatildeo e de

entretenimento sempre novos sempre mais acelerados e sempre mais capazes ou

passiacuteveis de desenvolvimento de dependecircncia nos seus utilizadores dificilmente poder-

se-ia imaginar uma (induacutestria de) cultura que natildeo esteja sujeita agraves leis das empresas

793 Curiosamente Franzmann concebe a introduccedilatildeo de um rendimento baacutesico incondicional como umademocratizaccedilatildeo do oacutecio (Franzmann M Einleitung Kulturelle Abwehrformationen gegen die Kriseder Arbeitsgesellschaft und ihre Loumlsung In Franzmann M (Ed) Bedingungsloses Grundeinkommen alsAntwort auf die Krise der Arbeitsgesellschaft Weilerswist 2010 pp 11ndash103) Com efeito Franzmannrefere-se a uma democratizaccedilatildeo pois segundo o socioacutelogo a disponibilidade estrutural do oacutecioencontra-se distribuiacuteda de forma profundamente desigual na sociedade (Franzmann M EinleitungKulturelle Abwehrformationen gegen die Krise der Arbeitsgesellschaft und ihre Loumlsung In FranzmannM (Ed) Bedingungsloses Grundeinkommen als Antwort auf die Krise der ArbeitsgesellschaftWeilerswist 2010 p37)

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rentaacuteveis de entretenimento Com a crescente pressatildeo para criar novos mercados (de

consumo) incluindo a expansatildeo da induacutestria do tempo livre a relaccedilatildeo entre trabalho e

tempo livre estaacute a ser reequilibrada nas sociedades ocidentais a relaccedilatildeo entre trabalho e

tempo livre natildeo traduz somente o resultado da lei da minimizaccedilatildeo do tempo livre (ateacute ao

limite da perda de eficiecircncia do desempenho laboral) pois neste preciso contexto o

tempo livre constitui igualmente uma variaacutevel profundamente necessaacuteria para

aumentar as vendas dos bens produzidos os assalariados precisam do tempo livre

suficiente natildeo somente para continuar a trabalhar recuperando forccedilas mas

inclusivamente para gastar os seus salaacuterios no mercado O consumo revela-se uma

segunda forma de complementaridade do trabalho aleacutem da recreaccedilatildeo

O que se encontra em causa seria pois a apreciaccedilatildeo da possibilidade de

configuraccedilatildeo de um tempo utoacutepico que possibilitaria que todos os indiviacuteduos pudessem

ter tempo disponiacutevel Tratar-se-ia pois de poder dispor do seu proacuteprio tempo

quotidiano e do seu proacuteprio tempo da vida de poder dividir o seu orccedilamento de acordo

com o tempo para si mesmo ndash dentro dos limites necessaacuterios para assegurar a produccedilatildeo

social e independentemente da separaccedilatildeo entre tempo de trabalho e tempo livre de

poder desenvolver um tempo proacuteprio e inclusivamente um tempo socialmente

dividido dependendo da situaccedilatildeo e da fase da vida Tal regime de tempo utoacutepico

permitiria a configuraccedilatildeo de modos de ldquotempo-soberanordquo de ldquotempo-autoacutenomordquo A este

respeito o conceito de oacutecio revela-se adequado para contrariar enquanto corretivo

conceptual o conceito de trabalho coercivo O conceito de trabalho poderia entatildeo ser

enriquecido (atraveacutes da exigecircncia de oacutecio e de um aumento da soberania sobre o tempo

e portanto da sua proacutepria autorrealizaccedilatildeo) precisamente no sentido da emancipaccedilatildeo

humana Estamos com efeito a usar um conceito de trabalho que estaacute muito distante de

qualquer caacutelculo de utilidade e que natildeo pode ser medido com base no reconhecimento

econoacutemico atraveacutes da remuneraccedilatildeo ou do lucro ndash um conceito de trabalho que natildeo

corresponde ao trabalho desenvolvido na sociedade da modernidade tardia no acircmbito

da qual a gestatildeo da carecircncia de tempo se exerce sob criteacuterios de eficiecircncia Neste

sentido no acircmbito da sociedade da modernidade tardia o oacutecio poderaacute ndash deveraacute ndash

constituir-se como um conceito normativo-criacutetico de particular importacircncia e soacute poderaacute

cumprir-se enquanto realidade para aleacutem de um trabalho orientado para a eficiecircncia e

para um fim racional inscrito numa loacutegica econoacutemico-social de mobilizaccedilatildeo e de

aceleraccedilatildeo

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Errata

Paacutegina Onde se lecirc Deve ler-se

Paacutegina 20 linha 14 Hartmut Rosa e o trabalho de

Sloterdijk

Hartmut Rosa o trabalho de

Sloterdijk

Paacutegina 25 linha 11 como um conceito eminentemente

critico

como um conceito critico

Paacutegina 142 linha 29como experiecircncia de concordacircncia

com a verdadeira essecircncia de si

mesmo e igualmente como

experiecircncia de estar de acordo com

o sentido do mundo

como experiecircncia de concordacircncia

com a verdadeira essecircncia de si

mesmo

Paacutegina 176 linha 22por uma de-temporalizaccedilatildeo por uma de-temporalizaccedilatildeo do

ldquotempo cosmoloacutegicordquo

Paacutegina 177 linha 18des-temporizaccedilatildeo de-temporalizaccedilatildeo

Paacutegina 180 linha 13tempo-pode-ser-fazer tempo-de-poder-fazer

Paacutegina 211 linha 22de-temporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo (ldquoqualitativordquo)

Paacutegina 211 linha 23des-temporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 212 linha 3 destemporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 212 linha 7 destemporalizaccedilatildeo ldquonegaccedilatildeo-do-tempordquo

Paacutegina 193

nota rodapeacute

perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da

sua diferenccedila Traduzido com a

versatildeo gratis do tradutor

perturbaccedilatildeo e vive da qualidade da

sua diferenccedila

Paacutegina 213 linha 29 O heroacutei da histoacuteria natildeo eacute

Jean-Jacques Rousseau

O heroacutei da histoacuteria eacute Jean-

Jacques Rousseau

| 282 |

  • Klinkert T Muszlige und Erzaumlhlen ein poetologischer Zusammenhang Vom Roman de la Rose bis zu Jorge Sempruacuten (Otium) Tuumlbingen 2016
  • | Sumaacuterio
  • | Declaraccedilatildeo de honra
  • | Agradecimentos
  • | Resumo
  • | Abstract
  • | Nota sobre traduccedilotildees
  • | Referecircncias bibliograacuteficas
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